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Revista do CEPEJ Revista do CEPEJ

Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade
de Direito da Universidade Federal da Bahia de Direito da Universidade Federal da Bahia
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE DIREITO

Revista do CEPEJ
Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade
de Direito da Universidade Federal da Bahia

Nº 8 • Jul./Dez. 2007
Salvador, Bahia, Brasil
Publicação semestral do Centro de Estudos e Pesquisas Jurídi-
cas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Os conceitos emitidos em trabalhos assinados são de responsabilidade de seus autores.


Os originais não serão devolvidos, embora não publicados. Os artigos são divulgados no
idioma original ou traduzidos.

Tiragem: 500 exemplares.


Distribuição: Todo o Território Nacional

Revista do CEPEJ. – N.8 (jul./dez.. 2007) – Salvador: Centro de Estudos


e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal
da Bahia – CEPEJ, 1988.

Semestral
ISSN 1981-6758

1. Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução parcial ou total sem a indicação da fonte.
Revista do CEPEJ

DIRETORIA DO CEPEJ
Presidente: Bernardo Amorim Chezzi
Secretária-Geral: Clarissa Pereira Alves Miranda de Ramalho
Tesoureiro: Aldo Lins de oliveira

CONSELHO EDITORIAL
Fredie Didier Jr. – Mestre (UFBA) e Doutor (PUC/SP). Professor de Processo
Civil da UFBA. Advogado.
Jonhson Meira Santos – Mestre (USP) e Doutor (USP). Professor de Direito do
Trabalho da UFBA. Diretor da Faculdade de Direito da UFBA. Ex-Procurador
do Trabalho (5ª Região).
Laíse Maria Guimarães – Professora de Direito Constitucional da UFBA. Co-
ordenadora do NUPEM (Núcleo de Pesquisa e Monografia).
Maria Auxiliadora Minahim – Mestre (UFRJ) e Doutora (UFPR). Professora
de ­Direito Penal da UFBA. Presidente Nacional da Associação Brasileira de
Professores de Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos
da Bahia
Nilza Reis – Mestre (UFBA). Professora de Direito Civil da UFBA. Juíza Federal/BA.
Rodolfo Pamplona Filho – Mestre e Doutor (PUC/SP). Professor de Direito do
Trabalho da UFBA. Juiz do Trabalho (5ª Região).
Saulo Casali – Mestre (UFBA) e Doutor (PUC/SP). Professor de Direito Cons-
titucional da UFBA. Juiz Federal/BA.

COMISSÃO ESTUDANTIL
Alina Mourato Eleotério
Bernardo Amorim Chezzi
Clarissa Nilo de Magaldi
Felipe Jacques Silva
Fernando Nunes de Miranda
Samira Oliveira Noronha
Yves West Bchrens
Colaboradores
COORDENADOR Rodolfo Pamplona Filho

CORPO DOCENTE Douglas White


Flavia Marimpietri
Fredie Didier
Gamil Föppel El Hireche
Maria Auxiliadora Minahim
Nilza Reis
Paulo Pimenta
Rodolfo Pamplona Filho
e Sérgio Waly Pirajá Bispo
Saulo José Casali Bahia
Wilson Alves de Souza
Winston P. Nagan

CORPO Discente Bernardo Amorim Chezzi


Bruno Gomes Bahia
e Jaqueline Almeida Silva
Claudiane Cunha da Conceição
Daniel Oitaven
Pamponet Miguel
Devapi Souza Sampaio
e Rafael de Souza Figueiredo
Ermiro Ferreira Neto
Felipe Jacques Silva
Flávia Moreira G. Pessoa
João Paulo Lordelo G.Tavares
José Rosa
Misael Neto Bispo da França
Ricardo Barreto de Andrade
Samira Oliveira Noronha
Tagore Trajano de A. Silva
e Ceci Vilar Noronha
Vinícios Conceição Silva Silva
Yves West Behrens
CORPO Técnico Simone Guimarães
Editorial

Não sei bem o motivo, mas versos de uma antiga canção dos Titãs não saem
da minha mente, desde que fui convidado para coordenar os trabalhos da mais
nova edição da Revista do CEPEJ – Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
“O pulso ainda pulsa...”
Talvez seja porque fico encantado em ver uma belíssima e já tradicional ins-
tituição estudantil, que vi dar seus primeiros passos (como membro na graduação
e, depois, Presidente), ainda continuar brilhando e atuando no cenário acadêmico
baiano e nacional...
“E o pulso ainda pulsa...”
Talvez seja pela feliz constatação de que a iniciativa estudantil consegue
superar as amarras institucionais e, rompendo com a burocracia estatal, apresenta
à comunidade jurídica um belíssimo trabalho, com profundas reflexões do seu
corpo docente e d­ iscente.
“E o corpo ainda é pouco...”
Talvez porque tudo que se fizer, por melhor que seja (e esta revista é exemplo
e prova inequívoca), ainda é pouco para demonstrar o valor e o talento transbor-
dante dos amantes da Faculdade de Direito da UFBA – Universidade Federal da
Bahia...
Ter a missão de redigir o Editorial, em nome do Conselho composto para a
organização da revista, porém, é mais do que uma prerrogativa acadêmica, cons-
tituindo-se em uma enorme honra, principalmente por ter tido acesso privilegiado
ao seu conteúdo, notadamente a leitura pormenorizada dos 11 (onze) artigos do
corpo docente (incluindo professores substitutos e convidados) e 16 (dezesseis)
textos do corpo discente (incluindo a pós-graduação stricto sensu).
Este oitavo volume da Revista do CEPEJ tem, porém, um gosto ainda mais
especial para o subscritor dessas linhas.
Não somente pela retomada da publicação (o sétimo volume remonta a 2002),
mas, também, por ser a primeira publicação da UFBA – Universidade Fede-
ral da Bahia depois do seu ingresso formal no corpo docente, o que significou
muito mais do que possam imaginar os membros do CEPEJ, ao fazer o gentil
convite.
10 Rodolfo Pamplona Filho 10 Rodolfo Pamplona Filho

E faz-se este registro pela maravilhosa circunstância de que esta publicação E faz-se este registro pela maravilhosa circunstância de que esta publicação
reúne, em verdade, expressivos textos de várias gerações de docentes, acompa- reúne, em verdade, expressivos textos de várias gerações de docentes, acompa-
nhada de uma talentosíssima nova fornada de discentes (que, pelos seus próprios nhada de uma talentosíssima nova fornada de discentes (que, pelos seus próprios
méritos, brevemente devem compor o professorado desta instituição). méritos, brevemente devem compor o professorado desta instituição).
Todos, sem exceção, se encontram visivelmente irmanados por um mesmo Todos, sem exceção, se encontram visivelmente irmanados por um mesmo
ideal e um mesmo sentimento. ideal e um mesmo sentimento.
O ideal é o de convicção da necessidade de incentivar os pólos de publicação O ideal é o de convicção da necessidade de incentivar os pólos de publicação
acadêmica, trazendo à tona toda a qualidade da reflexão e produção do curso, em acadêmica, trazendo à tona toda a qualidade da reflexão e produção do curso, em
seus diversos níveis (graduação e pós-graduação, lato e stricto sensu). seus diversos níveis (graduação e pós-graduação, lato e stricto sensu).
O sentimento, todavia, é o mais belo de todos: o amor a um curso de exce- O sentimento, todavia, é o mais belo de todos: o amor a um curso de exce-
lência, afeto este cultivado, na maior parte dos casos, desde os bancos escolares lência, afeto este cultivado, na maior parte dos casos, desde os bancos escolares
de graduação... de graduação...
É por isso que “o corpo ainda é pouco”. É por isso que “o corpo ainda é pouco”.
E é com satisfação que repetimos “o pulso ainda pulsa...” E é com satisfação que repetimos “o pulso ainda pulsa...”
Longa vida à Revista do CEPEJ! Longa vida à Revista do CEPEJ!
Salvador, outubro de 2007 Salvador, outubro de 2007

Rodolfo Pamplona Filho Rodolfo Pamplona Filho


Coordenador do Conselho Editorial da Revista do CEPEJ 2007 Coordenador do Conselho Editorial da Revista do CEPEJ 2007
Professor Adjunto do Departamento de Direito Privado Professor Adjunto do Departamento de Direito Privado
do Curso de Direito da UFBA. do Curso de Direito da UFBA.
Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP.
Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho
e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Juiz do Trabalho. e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Juiz do Trabalho.
Prólogo Prólogo

De logo, quando se nada contra a maré, superando dificuldades ínsitas e des- De logo, quando se nada contra a maré, superando dificuldades ínsitas e des-
bravando novos horizontes, há de se defender o que faz. Este discurso legitima os bravando novos horizontes, há de se defender o que faz. Este discurso legitima os
esforços empreendidos, tem o condão de albergar mais voluntários e o de reavivar esforços empreendidos, tem o condão de albergar mais voluntários e o de reavivar
os que já labutam em busca do mesmo sonho. os que já labutam em busca do mesmo sonho.
Tem o Centro de Estudos e Pesquisa Jurídica da Faculdade de Direito da Tem o Centro de Estudos e Pesquisa Jurídica da Faculdade de Direito da
­Universidade Federal da Bahia o dever primordial de fazer e pensar a pesquisa, ­Universidade Federal da Bahia o dever primordial de fazer e pensar a pesquisa,
para disseminá-la entre os corredores daquela Escola e também nos do mundo. para disseminá-la entre os corredores daquela Escola e também nos do mundo.
Este é o nosso maior desafio. Nesta esteira, é premente ressaltar a importância da Este é o nosso maior desafio. Nesta esteira, é premente ressaltar a importância da
pesquisa jurídica num curso de ­Direito. pesquisa jurídica num curso de ­Direito.
Seja como sistematização do conhecimento para a melhor aplicação do Seja como sistematização do conhecimento para a melhor aplicação do
ordenamento posto (no Brasil são mais de 180 mil leis), preenchimento de lacu- ordenamento posto (no Brasil são mais de 180 mil leis), preenchimento de lacu-
nas normativas (a exemplo do que sucede no Direito Eletrônico), criação de teses nas normativas (a exemplo do que sucede no Direito Eletrônico), criação de teses
que prefiram o uso de determinado dispositivo a outro, que embasem a edição de que prefiram o uso de determinado dispositivo a outro, que embasem a edição de
lei para regular certa matéria ou, simplesmente, dêem norte peculiar à atividade lei para regular certa matéria ou, simplesmente, dêem norte peculiar à atividade
do intérprete – e, esclareça-se, este rol não é taxativo –, não há como se falar do intérprete – e, esclareça-se, este rol não é taxativo –, não há como se falar
em aprendizado na graduação de Direito sem, utilizando-se da técnica aferida em aprendizado na graduação de Direito sem, utilizando-se da técnica aferida
friamente nos livros e em sala de aula, traduzir juridicamente os anseios postos friamente nos livros e em sala de aula, traduzir juridicamente os anseios postos
e impostos pela vida. e impostos pela vida.
Como ciência social aplicada, soa absurdo a indagação leiga de “para quê Como ciência social aplicada, soa absurdo a indagação leiga de “para quê
pesquisa em Direito”, como se este fosse letra morta. O Direito, não olvidemos, pesquisa em Direito”, como se este fosse letra morta. O Direito, não olvidemos,
é resposta às vicissitudes do ser social – intermitente e metamórfico. O objeto do é resposta às vicissitudes do ser social – intermitente e metamórfico. O objeto do
Direito – a sociedade – muda a cada dia, e a pesquisa jurídica é o primeiro meio Direito – a sociedade – muda a cada dia, e a pesquisa jurídica é o primeiro meio
idôneo a traduzir os seus sintomas. idôneo a traduzir os seus sintomas.
Acerca de sua utilidade prática, as dúvidas esteiam-se em premissas falsas, Acerca de sua utilidade prática, as dúvidas esteiam-se em premissas falsas,
talvez sustentadas em ignorância, partindo de idéias como a de que o legislador, talvez sustentadas em ignorância, partindo de idéias como a de que o legislador,
ao editar uma lei, não o fizesse, no mais das vezes, balizado pelos ensinamentos ao editar uma lei, não o fizesse, no mais das vezes, balizado pelos ensinamentos
acadêmicos – talvez acreditem que o legislador utiliza-se duma entidade superior acadêmicos – talvez acreditem que o legislador utiliza-se duma entidade superior
–, ou a de que o juiz, ao fundamentar sua decisão, não se apoiasse em doutrina, –, ou a de que o juiz, ao fundamentar sua decisão, não se apoiasse em doutrina,
e, ainda assim, como se o que chamado de doutrina jurídica não fosse também e, ainda assim, como se o que chamado de doutrina jurídica não fosse também
fruto de pesquisa. fruto de pesquisa.
A VIII Revista do CEPEJ traz em seu bojo textos que são resultado de vivaz A VIII Revista do CEPEJ traz em seu bojo textos que são resultado de vivaz
produção científica sedimentada por docentes e discentes, em decorrência de produção científica sedimentada por docentes e discentes, em decorrência de
maturações alcançadas nos grupos de estudo, de pesquisa, através dos programas maturações alcançadas nos grupos de estudo, de pesquisa, através dos programas
de monitoria, do PIBIC, do PERMANECER, ou, ainda, por meios não institucio- de monitoria, do PIBIC, do PERMANECER, ou, ainda, por meios não institucio-
nalizados, esteados, pois, na livre produção. nalizados, esteados, pois, na livre produção.
12 Bernardo Amorim Chezzi 12 Bernardo Amorim Chezzi

Há de se parabenizar a todos os escritores, mormente hajam vencido a falta Há de se parabenizar a todos os escritores, mormente hajam vencido a falta
de incentivo e os óbices inerentes ao preconceito da visão dogmática. Esta Revista de incentivo e os óbices inerentes ao preconceito da visão dogmática. Esta Revista
é uma alegria a todos os membros do CEPEJ, vindos e vindouros, e mais uma é uma alegria a todos os membros do CEPEJ, vindos e vindouros, e mais uma
vitória nesta jornada, no sentido que acima narramos. vitória nesta jornada, no sentido que acima narramos.
De outro giro, gostaria de confraternizar-me com esta geração do CEPEJ, da De outro giro, gostaria de confraternizar-me com esta geração do CEPEJ, da
qual faço parte, que vem reerguendo-o, ocioso que estava por alguns anos. Graças qual faço parte, que vem reerguendo-o, ocioso que estava por alguns anos. Graças
a estes esforços, temos retroalimentado a produção científica na Faculdade de a estes esforços, temos retroalimentado a produção científica na Faculdade de
Direito da UFBA. Além de competentes, e dedicados, os colegas revelaram-se Direito da UFBA. Além de competentes, e dedicados, os colegas revelaram-se
grandes amigos e pessoas fantásticas. grandes amigos e pessoas fantásticas.
Agradeço ao professor Rodolfo Pamplona Filho, pela seriedade e leveza Agradeço ao professor Rodolfo Pamplona Filho, pela seriedade e leveza
com que conduziu os trabalhos, a todos os membros do Conselho Editorial, sem com que conduziu os trabalhos, a todos os membros do Conselho Editorial, sem
prejuízo dos professores que, embora não façam parte deste, têm sido nossos prejuízo dos professores que, embora não façam parte deste, têm sido nossos
parceiros na empreitada de criar novos grupos de estudos, na feitura de seminários parceiros na empreitada de criar novos grupos de estudos, na feitura de seminários
e na direção de programas. e na direção de programas.
Mais uma vitória alcançada, saímos ainda mais motivados. E assim se retoma Mais uma vitória alcançada, saímos ainda mais motivados. E assim se retoma
o mote para convencer os leitores menos detidos. Num tempo em que mudar o o mote para convencer os leitores menos detidos. Num tempo em que mudar o
mundo é discurso de políticos e politicados, nós, do CEPEJ, temos a real convicção mundo é discurso de políticos e politicados, nós, do CEPEJ, temos a real convicção
de que a pesquisa é o meio de que dispomos para encampar uma nova realidade de que a pesquisa é o meio de que dispomos para encampar uma nova realidade
gravada sob os nossos pés. Pesquisar no Direito é ir além da sala de aula, é galgar gravada sob os nossos pés. Pesquisar no Direito é ir além da sala de aula, é galgar
perguntas para respostas prontas, inverter a ordem “natural” das coisas, propondo perguntas para respostas prontas, inverter a ordem “natural” das coisas, propondo
mudanças, endossando esperanças, desfazendo pecados. mudanças, endossando esperanças, desfazendo pecados.
Pesquisa-se e apontam-se caminhos, quando inexistentes ou obscuros, e Pesquisa-se e apontam-se caminhos, quando inexistentes ou obscuros, e
felizes são os pesquisadores que não se conformam com tamanha certeza ou que felizes são os pesquisadores que não se conformam com tamanha certeza ou que
vislumbram certezas em tanta inconformidade. Mergulhemos na vida acadêmica, vislumbram certezas em tanta inconformidade. Mergulhemos na vida acadêmica,
com as mãos no presente, sérias e ágeis, e os olhos no futuro, esperançosos, sim, com as mãos no presente, sérias e ágeis, e os olhos no futuro, esperançosos, sim,
jamais cansados, porém. jamais cansados, porém.
Boa leitura! Boa leitura!

Bernardo Amorim Chezzi Bernardo Amorim Chezzi


Presidente do CEPEJ Presidente do CEPEJ
Sumário Sumário

Editorial ....................................................................................................... 9 Editorial ....................................................................................................... 9


Prólogo.......................................................................................................... 11 Prólogo.......................................................................................................... 11

ARTIGOS DO CORPO DOCENTE ARTIGOS DO CORPO DOCENTE

Capítulo I – Um questionamento sobre a livre concorrência................... 25 Capítulo I – Um questionamento sobre a livre concorrência................... 25
Douglas White Douglas White

Capítulo II – O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas Capítulo II – O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas
no CDC e a revisão de contratos Introdução............................................. 29 no CDC e a revisão de contratos Introdução............................................. 29
Flavia Marimpietri Flavia Marimpietri
1. Identificação............................................................................................. 30 1. Identificação............................................................................................. 30
2. Nulidades de pleno direito X revisão dos contratos................................. 31 2. Nulidades de pleno direito X revisão dos contratos................................. 31
2.1. A tese do ato ilícito lato sensu.......................................................... 32 2.1. A tese do ato ilícito lato sensu.......................................................... 32
2.2. A tese do abuso de direito................................................................ 33 2.2. A tese do abuso de direito................................................................ 33
2.3. A tese das nulidades relativas.......................................................... 33 2.3. A tese das nulidades relativas.......................................................... 33
3. Diversidade de sanções............................................................................ 36 3. Diversidade de sanções............................................................................ 36
4. O sistema de nulidades do art. 51 do CDC.............................................. 37 4. O sistema de nulidades do art. 51 do CDC.............................................. 37
5. Conclusão ............................................................................................... 38 5. Conclusão ............................................................................................... 38
6. Referências ............................................................................................... 39 6. Referências ............................................................................................... 39

Capítulo III – O Recurso Extraordinário e a ­Transformação Capítulo III – O Recurso Extraordinário e a ­Transformação
do Controle Difuso de Constitucionalidade no Direito ­Brasileiro........... 41 do Controle Difuso de Constitucionalidade no Direito ­Brasileiro........... 41
Fredie Didier Jr. Fredie Didier Jr.
1. Nota introdutória...................................................................................... 41 1. Nota introdutória...................................................................................... 41
2. A criatividade judicial e a ratio decidendi............................................... 41 2. A criatividade judicial e a ratio decidendi............................................... 41
3. A “objetivação” do recurso extraordinário............................................... 46 3. A “objetivação” do recurso extraordinário............................................... 46

Capítulo IV – Teoria geral do concurso de crimes.................................... 57 Capítulo IV – Teoria geral do concurso de crimes.................................... 57
Gamil Föppel el Hireche Gamil Föppel el Hireche
1. Considerações iniciais: do concursus delictorum.................................... 58 1. Considerações iniciais: do concursus delictorum.................................... 58
1.1. Posição sistemática do concursus delictorum.................................. 59 1.1. Posição sistemática do concursus delictorum.................................. 59
1.2. Critérios de solução para o concursus delictorum........................... 60 1.2. Critérios de solução para o concursus delictorum........................... 60
2. Do concurso material ou real de infrações............................................... 60 2. Do concurso material ou real de infrações............................................... 60
2.1. Considerações iniciais...................................................................... 60 2.1. Considerações iniciais...................................................................... 60
2.2. Pluralidade de condutas X Pluralidade de resultados: 2.2. Pluralidade de condutas X Pluralidade de resultados:
As diferenças entre condutas e ações, entre condutas e atos............ 61 As diferenças entre condutas e ações, entre condutas e atos............ 61
2.3. Classificação do concurso material.................................................. 62 2.3. Classificação do concurso material.................................................. 62
14 Revista do CEPEJ, Nº 8 • Jul./Dez. 2007 14 Revista do CEPEJ, Nº 8 • Jul./Dez. 2007

2.4. Regramento jurídico da matéria....................................................... 62 2.4. Regramento jurídico da matéria....................................................... 62


3. Do concurso formal. Primeira análise...................................................... 62 3. Do concurso formal. Primeira análise...................................................... 62
3.1. Concursus normarum x concursus delictorum (formal).................. 62 3.1. Concursus normarum x concursus delictorum (formal).................. 62
3.2. Classificação do concurso formal: concurso formal 3.2. Classificação do concurso formal: concurso formal
homogêneo e concurso formal heterogêneo............................................ 64 homogêneo e concurso formal heterogêneo............................................ 64
3.3. Diferença entre concurso material e formal..................................... 64 3.3. Diferença entre concurso material e formal..................................... 64
3.4. Tratamento jurídico do concurso formal ou ideal de crimes. 3.4. Tratamento jurídico do concurso formal ou ideal de crimes.
Concurso formal próprio (também chamado de perfeito) Concurso formal próprio (também chamado de perfeito)
e concurso formal impróprio (ou imperfeito).......................................... 65 e concurso formal impróprio (ou imperfeito).......................................... 65
3.4.1. Do concurso formal impróprio. Tratamento jurídico............. 66 3.4.1. Do concurso formal impróprio. Tratamento jurídico............. 66
3.4.2. Do concurso formal próprio. Tratamento jurídico................. 66 3.4.2. Do concurso formal próprio. Tratamento jurídico................. 66
4. Do crime continuado. Considerações primeiras....................................... 67 4. Do crime continuado. Considerações primeiras....................................... 67
4.1. Crime continuado. Evolução histórica............................................. 67 4.1. Crime continuado. Evolução histórica............................................. 67
4.2. Crime continuado. Natureza jurídica............................................... 68 4.2. Crime continuado. Natureza jurídica............................................... 68
4.3. Teorias a respeito do crime continuado............................................ 68 4.3. Teorias a respeito do crime continuado............................................ 68
4.4. Dos elementos da continuidade delitiva........................................... 69 4.4. Dos elementos da continuidade delitiva........................................... 69
4.4.1. Mais de uma ação ou omissão................................................ 69 4.4.1. Mais de uma ação ou omissão................................................ 69
4.4.2. Crimes da mesma espécie...................................................... 69 4.4.2. Crimes da mesma espécie...................................................... 69
4.4.3. Circunstância de tempo.......................................................... 70 4.4.3. Circunstância de tempo.......................................................... 70
4.4.4. Circunstância de lugar............................................................ 70 4.4.4. Circunstância de lugar............................................................ 70
4.4.5. Circunstâncias de modo......................................................... 70 4.4.5. Circunstâncias de modo......................................................... 70
4.5. Do crime continuado específico....................................................... 71 4.5. Do crime continuado específico....................................................... 71
4.6. Crime continuado e prescrição......................................................... 71 4.6. Crime continuado e prescrição......................................................... 71
4.7. Crime continuado e sucessão de leis penais..................................... 72 4.7. Crime continuado e sucessão de leis penais..................................... 72
4.8. Crime continuado e coisa julgada.................................................... 72 4.8. Crime continuado e coisa julgada.................................................... 72
5. Multa no concurso de crimes................................................................... 72 5. Multa no concurso de crimes................................................................... 72
6. Unificação das penas................................................................................ 72 6. Unificação das penas................................................................................ 72
7. Do crime aberrante................................................................................... 72 7. Do crime aberrante................................................................................... 72
7.1. Aberratio ictus.................................................................................. 72 7.1. Aberratio ictus.................................................................................. 72
7.2. Resultado diverso do pretendido...................................................... 73 7.2. Resultado diverso do pretendido...................................................... 73
8. Concurso de agentes................................................................................. 73 8. Concurso de agentes................................................................................. 73
9. Conclusões............................................................................................... 74 9. Conclusões............................................................................................... 74

Capítulo V – A Preservação da vida em face da Biotecnologia: Capítulo V – A Preservação da vida em face da Biotecnologia:
Inserção de Novas Antinomias no Direito Penal....................................... 75 Inserção de Novas Antinomias no Direito Penal....................................... 75
Maria Auxiliadora Minahim Maria Auxiliadora Minahim

Capítulo VI – As antigas e novas facetas Capítulo VI – As antigas e novas facetas


do fideicomisso e o atual Código Civil........................................................ 87 do fideicomisso e o atual Código Civil........................................................ 87
Nilza Reis Nilza Reis
1. Noções Introdutórias................................................................................ 87 1. Noções Introdutórias................................................................................ 87
Sumário 15 Sumário 15

2. O usufruto e o fideicomisso: distinções necessárias................................. 89 2. O usufruto e o fideicomisso: distinções necessárias................................. 89


3. Direitos do Fiduciário e do Fideicomissário............................................ 92 3. Direitos do Fiduciário e do Fideicomissário............................................ 92
4. O fideicomisso no atual Código Civil: A inovação no instituto............... 94 4. O fideicomisso no atual Código Civil: A inovação no instituto............... 94
5. Conclusões Necessárias............................................................................ 97 5. Conclusões Necessárias............................................................................ 97
6. Referências Bibliográficas........................................................................ 98 6. Referências Bibliográficas........................................................................ 98

Capítulo VII – A súmula com efeito vinculante na lei Nº 11.417/2006.... 101 Capítulo VII – A súmula com efeito vinculante na lei Nº 11.417/2006.... 101
Paulo Roberto Lyrio Pimenta Paulo Roberto Lyrio Pimenta
1. Introdução................................................................................................. 101 1. Introdução................................................................................................. 101
2. Eficácia da norma veiculada pelo art.103-A da CF.................................. 101 2. Eficácia da norma veiculada pelo art.103-A da CF.................................. 101
3. Modalidades de procedimento................................................................. 102 3. Modalidades de procedimento................................................................. 102
4. Aspectos subjetivos.................................................................................. 104 4. Aspectos subjetivos.................................................................................. 104
5. Eficácia da súmula com efeito vinculante................................................ 105 5. Eficácia da súmula com efeito vinculante................................................ 105
6. Meios de impugnação da decisão contrária à súmula.............................. 107 6. Meios de impugnação da decisão contrária à súmula.............................. 107
7. Alterações no processo administrativo..................................................... 108 7. Alterações no processo administrativo..................................................... 108
8. Aplicação subsidiária do Regimento Interno 8. Aplicação subsidiária do Regimento Interno
do Supremo Tribunal Federal .................................................................. 110 do Supremo Tribunal Federal .................................................................. 110
9. Conclusões............................................................................................... 110 9. Conclusões............................................................................................... 110

Capítulo VIII – Justiça do Trabalho e competência penal....................... 113 Capítulo VIII – Justiça do Trabalho e competência penal....................... 113
Rodolfo Pamplona Filho e Sérgio Waly Pirajá Bispo Rodolfo Pamplona Filho e Sérgio Waly Pirajá Bispo
1. Introdução ............................................................................................... 113 1. Introdução ............................................................................................... 113
2. Origem, evolução e vocação da Justiça do Trabalho............................... 114 2. Origem, evolução e vocação da Justiça do Trabalho............................... 114
3. Uma questão de ade­quação e efetividade................................................. 124 3. Uma questão de ade­quação e efetividade................................................. 124
4. O juiz do trabalho e a ação penal............................................................. 127 4. O juiz do trabalho e a ação penal............................................................. 127
5. Operacionalização da nova competência................................................. 129 5. Operacionalização da nova competência................................................. 129
5.1. Modificações legislativas necessárias.............................................. 129 5.1. Modificações legislativas necessárias.............................................. 129
5.2. Processo penal x processo do trabalho............................................. 130 5.2. Processo penal x processo do trabalho............................................. 130
5.3. Aumento de competência e estrutura da Justiça do Trabalho.......... 132 5.3. Aumento de competência e estrutura da Justiça do Trabalho.......... 132
5.4. O Ministério Público do Trabalho e a Defensoria da União............ 133 5.4. O Ministério Público do Trabalho e a Defensoria da União............ 133
6. Considerações finais................................................................................. 134 6. Considerações finais................................................................................. 134
7. Referências ............................................................................................... 134 7. Referências ............................................................................................... 134

Capítulo IX – O Mercosul e seus Projetos Institucionais......................... 137 Capítulo IX – O Mercosul e seus Projetos Institucionais......................... 137
Saulo José Casali Bahia Saulo José Casali Bahia
1. As razões para a integração econômica 1. As razões para a integração econômica
e política na América do Sul.................................................................... 137 e política na América do Sul.................................................................... 137
2. O modelo institucional do Mercosul: 2. O modelo institucional do Mercosul:
entre o interestatismo e o supranacionalismo........................................... 139 entre o interestatismo e o supranacionalismo........................................... 139
3. Histórico de criação e quadro institucional do Mercosul......................... 140 3. Histórico de criação e quadro institucional do Mercosul......................... 140
16 Revista do CEPEJ, Nº 8 • Jul./Dez. 2007 16 Revista do CEPEJ, Nº 8 • Jul./Dez. 2007

4. O Mercosul Invisível................................................................................ 144 4. O Mercosul Invisível................................................................................ 144


5. O Futuro do Mercosul.............................................................................. 145 5. O Futuro do Mercosul.............................................................................. 145

Capítulo X – Acesso à justiça e problemas processuais em torno Capítulo X – Acesso à justiça e problemas processuais em torno
do princípio da igualdade no Direito Brasileiro........................................ 147 do princípio da igualdade no Direito Brasileiro........................................ 147
Wilson Alves de Souza Wilson Alves de Souza
1. Introdução................................................................................................. 147 1. Introdução................................................................................................. 147
2. Lei que concede privilégio de prazo em caso 2. Lei que concede privilégio de prazo em caso
de litisconsórcio com ­procuradores diferentes......................................... 151 de litisconsórcio com ­procuradores diferentes......................................... 151
3. Lei que concede privilégio de prazo 3. Lei que concede privilégio de prazo
aos titulares do direito à justiça gratuita................................................... 153 aos titulares do direito à justiça gratuita................................................... 153
4. Lei que concede privilégio de prazo 4. Lei que concede privilégio de prazo
à Fazenda Pública e ao ministério público............................................... 154 à Fazenda Pública e ao ministério público............................................... 154
5. Lei que concede privilégio de intimação pessoal 5. Lei que concede privilégio de intimação pessoal
aos defensores públicos............................................................................ 158 aos defensores públicos............................................................................ 158
6. Lei que concede privilégio de intimação pessoal 6. Lei que concede privilégio de intimação pessoal
aos procuradores de Estado e membros do ministério público................ 159 aos procuradores de Estado e membros do ministério público................ 159
7. Lei que concede prioridade de julgamento nos processos 7. Lei que concede prioridade de julgamento nos processos
em que o idoso figure como parte............................................................ 160 em que o idoso figure como parte............................................................ 160
8. Lei que concede tratamento diferenciado em favor 8. Lei que concede tratamento diferenciado em favor
do Estado em caso de condenação em honorários de advogado.............. 161 do Estado em caso de condenação em honorários de advogado.............. 161
9. Lei que concede tratamento diferenciado em favor 9. Lei que concede tratamento diferenciado em favor
dos necessitados em caso de condenação em honorários de advogado... 163 dos necessitados em caso de condenação em honorários de advogado... 163
10. Lei que concede tratamento diferenciado em favor 10. Lei que concede tratamento diferenciado em favor
da Fazenda Pública e do ministério público com relação da Fazenda Pública e do ministério público com relação
a adiantamento de despesas processuais.................................................. 163 a adiantamento de despesas processuais.................................................. 163
11. Lei que concede privilégio ao necessitado com relação 11. Lei que concede privilégio ao necessitado com relação
às custas e despesas processuais............................................................... 165 às custas e despesas processuais............................................................... 165
12. Lei que isenta o autor de adiantamento de despesas processuais 12. Lei que isenta o autor de adiantamento de despesas processuais
e do ônus da sucumbência no caso de ação popular e ação civil pública. 165 e do ônus da sucumbência no caso de ação popular e ação civil pública. 165
13. Tratamento diferenciado entre réus com relação ao efeito da revelia...... 167 13. Tratamento diferenciado entre réus com relação ao efeito da revelia...... 167
14. Lei que concede privilégio do duplo grau obrigatório 14. Lei que concede privilégio do duplo grau obrigatório
de jurisdição em favor de determinados entes estatais............................. 169 de jurisdição em favor de determinados entes estatais............................. 169
15. Lei que concede privilégio de inversão 15. Lei que concede privilégio de inversão
do ônus da prova em favor do consumidor ............................................. 170 do ônus da prova em favor do consumidor ............................................. 170
16. Conclusões............................................................................................... 171 16. Conclusões............................................................................................... 171
17. Referências bibliográficas........................................................................ 174 17. Referências bibliográficas........................................................................ 174

Capítulo XI – Depois da onda: mudança de regime? Capítulo XI – Depois da onda: mudança de regime?
(entendendo a crise no Iraque)................................................................... 177 (entendendo a crise no Iraque)................................................................... 177
Winston P. Nagan Winston P. Nagan
Sumário 17 Sumário 17

ARTIGOS DO CORPO DISCENTE ARTIGOS DO CORPO DISCENTE

Capítulo XII – Aspectos processuais dos Crimes Capítulo XII – Aspectos processuais dos Crimes
praticados pela Internet.............................................................................. 183 praticados pela Internet.............................................................................. 183
Bernardo Chezzi Bernardo Chezzi
1. Considerações iniciais.............................................................................. 183 1. Considerações iniciais.............................................................................. 183
2. Ocorrência do crime. A ata notarial.......................................................... 184 2. Ocorrência do crime. A ata notarial.......................................................... 184
3. O procedimento da Autoridade Policial na fase de inquérito................... 185 3. O procedimento da Autoridade Policial na fase de inquérito................... 185
4. A notificação ao provedor de conteúdo.................................................... 186 4. A notificação ao provedor de conteúdo.................................................... 186
5. Jurisdição e competência.......................................................................... 187 5. Jurisdição e competência.......................................................................... 187
5.1. A jurisdição penal brasileira............................................................. 187 5.1. A jurisdição penal brasileira............................................................. 187
5.2. Justiça Estadual ou Federal?............................................................ 189 5.2. Justiça Estadual ou Federal?............................................................ 189
5.3. Foro competente............................................................................... 191 5.3. Foro competente............................................................................... 191
5.4. Juízo competente ............................................................................. 193 5.4. Juízo competente ............................................................................. 193
6. Conclusões necessárias............................................................................ 195 6. Conclusões necessárias............................................................................ 195
7. Referências bibliográficas........................................................................ 196 7. Referências bibliográficas........................................................................ 196

Capítulo XIII – Conselho Tutelar: um avanço Capítulo XIII – Conselho Tutelar: um avanço
contingenciado pelo Poder Público............................................................. 199 contingenciado pelo Poder Público............................................................. 199
Bruno Gomes Bahia e Jaqueline Almeida Silva Bruno Gomes Bahia e Jaqueline Almeida Silva
1. Introdução................................................................................................. 199 1. Introdução................................................................................................. 199
2. Origem...................................................................................................... 200 2. Origem...................................................................................................... 200
3. Conceito................................................................................................... 201 3. Conceito................................................................................................... 201
4. Atribuições do Conselho.......................................................................... 202 4. Atribuições do Conselho.......................................................................... 202
5. Deficiências.............................................................................................. 207 5. Deficiências.............................................................................................. 207
6. Conclusão................................................................................................. 208 6. Conclusão................................................................................................. 208
7. Referências............................................................................................... 209 7. Referências............................................................................................... 209

Capítulo XIV – A competência da Justiça do Trabalho Capítulo XIV – A competência da Justiça do Trabalho
para o julgamento das lides oriundas das prestações para o julgamento das lides oriundas das prestações
de serviços consumeristas............................................................................ 211 de serviços consumeristas............................................................................ 211
Claudiane Cunha da Conceição Claudiane Cunha da Conceição
1. Introdução................................................................................................. 211 1. Introdução................................................................................................. 211
2. A ampliação da competência material da Justiça do Trabalho: 2. A ampliação da competência material da Justiça do Trabalho:
a abrangência do termo “relação de trabalho”......................................... 211 a abrangência do termo “relação de trabalho”......................................... 211
3. A prestação de serviço consumerista como uma relação de trabalho...... 213 3. A prestação de serviço consumerista como uma relação de trabalho...... 213
4. A competência da Justiça Trabalhista para o julgamento 4. A competência da Justiça Trabalhista para o julgamento
das lides oriundas das prestações de serviços consumeristas................... 214 das lides oriundas das prestações de serviços consumeristas................... 214
5. Conclusão. ............................................................................................... 215 5. Conclusão. ............................................................................................... 215
6. Referências bibliográficas........................................................................ 215 6. Referências bibliográficas........................................................................ 215
18 Revista do CEPEJ, Nº 8 • Jul./Dez. 2007 18 Revista do CEPEJ, Nº 8 • Jul./Dez. 2007

Capítulo XV – O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico..... 217 Capítulo XV – O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico..... 217
Daniel Oitaven Pamponet Miguel Daniel Oitaven Pamponet Miguel
1. Introdução................................................................................................. 217 1. Introdução................................................................................................. 217
1.1.Panorama histórico............................................................................. 217 1.1.Panorama histórico............................................................................. 217
1.1.1. O período pré-revolucionário................................................. 217 1.1.1. O período pré-revolucionário................................................. 217
1.1.2. O período pós-revolução: a ascensão 1.1.2. O período pós-revolução: a ascensão
da lei a fonte formal por excelência........................................ 218 da lei a fonte formal por excelência........................................ 218
2. O Positivismo Legalista e suas repercussões........................................... 218 2. O Positivismo Legalista e suas repercussões........................................... 218
2.1. A Escola de Exegese........................................................................ 218 2.1. A Escola de Exegese........................................................................ 218
2.2. Tentativas de reação contra o pensamento exegético....................... 219 2.2. Tentativas de reação contra o pensamento exegético....................... 219
3. O Normativismo kelseniano..................................................................... 220 3. O Normativismo kelseniano..................................................................... 220
3.1. O sistema jurídico na visão de Hans Kelsen:.................................... 221 3.1. O sistema jurídico na visão de Hans Kelsen:.................................... 221
3.1.1. Tipos de interpretação jurídica e o desafio kelseniano ........... 222 3.1.1. Tipos de interpretação jurídica e o desafio kelseniano ........... 222
4. Conclusões a respeito do pensamento positivista.................................... 224 4. Conclusões a respeito do pensamento positivista.................................... 224
4.1. A Nova Hermenêutica ..................................................................... 225 4.1. A Nova Hermenêutica ..................................................................... 225
4.1.1. A dicotomia vontade da lei-vontade do legislador................. 225 4.1.1. A dicotomia vontade da lei-vontade do legislador................. 225
5. Referências............................................................................................... 227 5. Referências............................................................................................... 227

Capítulo XVI – O consentimento do ofendido Capítulo XVI – O consentimento do ofendido


e a capacidade para consentir: análise crítica........................................... 229 e a capacidade para consentir: análise crítica........................................... 229
Devapi Souza Sampaio e Rafael de Souza Figueiredo Devapi Souza Sampaio e Rafael de Souza Figueiredo
1. Aspectos Introdutórios............................................................................. 229 1. Aspectos Introdutórios............................................................................. 229
2. Capacidade de Consentimento: Legislação Comparada.......................... 230 2. Capacidade de Consentimento: Legislação Comparada.......................... 230
3. Natureza Jurídica do Consentimento do Ofendido.................................. 232 3. Natureza Jurídica do Consentimento do Ofendido.................................. 232
4. Critérios Definidores da Capacidade de consentir................................... 233 4. Critérios Definidores da Capacidade de consentir................................... 233
4.1. Critério Etário................................................................................... 234 4.1. Critério Etário................................................................................... 234
4.2. Critério Subjetivo............................................................................. 235 4.2. Critério Subjetivo............................................................................. 235
5. Conclusões................................................................................................. 236 5. Conclusões................................................................................................. 236
5. Referências................................................................................................. 236 5. Referências................................................................................................. 236

Capítulo XVII – Aspectos controvertidos a respeito da cláusula Capítulo XVII – Aspectos controvertidos a respeito da cláusula
vedatória de abertura de filial em contratos de shopping center............. 239 vedatória de abertura de filial em contratos de shopping center............. 239
Ermiro Ferreira Neto Ermiro Ferreira Neto
1. Introdução................................................................................................. 239 1. Introdução................................................................................................. 239
2. Contrato de shopping center. Conceito. Características.......................... 240 2. Contrato de shopping center. Conceito. Características.......................... 240
3. A mínima regulamentação e a necessária 3. A mínima regulamentação e a necessária
incidência das regras da Teoria Geral dos Contratos............................... 243 incidência das regras da Teoria Geral dos Contratos............................... 243
4. Cláusulas vedatórias de abertura de filiais............................................... 244 4. Cláusulas vedatórias de abertura de filiais............................................... 244
4.1. A proibição de constituição de filial................................................. 245 4.1. A proibição de constituição de filial................................................. 245
4.2. A proibição de constituição de filial nas redondezas 4.2. A proibição de constituição de filial nas redondezas
do shopping center........................................................................... 246 do shopping center........................................................................... 246
4.3. A proibição de constituição de filial 4.3. A proibição de constituição de filial
em shopping center concorrente...................................................... 247 em shopping center concorrente...................................................... 247
Sumário 19 Sumário 19

5. Conclusão................................................................................................. 248 5. Conclusão................................................................................................. 248


6. Referências............................................................................................... 249 6. Referências............................................................................................... 249

Capítulo XVIII – Foucault: entre o Poder e o D ­ ireito.............................. 251 Capítulo XVIII – Foucault: entre o Poder e o D ­ ireito.............................. 251
Felipe Jacques Silva Felipe Jacques Silva
1. As Bases do Pensamento de Foucault...................................................... 252 1. As Bases do Pensamento de Foucault...................................................... 252
1.2. Os Métodos: Arqueológico e Genealógico....................................... 252 1.2. Os Métodos: Arqueológico e Genealógico....................................... 252
1.3. As Relações de Poder....................................................................... 254 1.3. As Relações de Poder....................................................................... 254
1.3.1. O Poder-Saber......................................................................... 257 1.3.1. O Poder-Saber......................................................................... 257
1.3.2. A Microfísica do Poder........................................................... 257 1.3.2. A Microfísica do Poder........................................................... 257
1.3.3. O Contrapoder......................................................................... 258 1.3.3. O Contrapoder......................................................................... 258
1.3.4. Os Dispositivos Disciplinares................................................. 258 1.3.4. Os Dispositivos Disciplinares................................................. 258
2. Questionamentos sobre a existência das 2. Questionamentos sobre a existência das
verdades universais e do “humanismo”................................................... 259 verdades universais e do “humanismo”................................................... 259
3. A Normalização........................................................................................ 260 3. A Normalização........................................................................................ 260
4. Os Dispositivos Jurídicos segundo Foucault............................................ 260 4. Os Dispositivos Jurídicos segundo Foucault............................................ 260
4.1. A Lei ................................................................................................. 261 4.1. A Lei ................................................................................................. 261
4.2. A Revolução..................................................................................... 261 4.2. A Revolução..................................................................................... 261
4.3. O Crime............................................................................................ 263 4.3. O Crime............................................................................................ 263
4.4. A Pena.............................................................................................. 264 4.4. A Pena.............................................................................................. 264
4.5. A Transição Paradigmática da Justiça Criminal............................... 265 4.5. A Transição Paradigmática da Justiça Criminal............................... 265
4.6. As Ciências Extrajurídicas............................................................... 274 4.6. As Ciências Extrajurídicas............................................................... 274
5. Conclusão ................................................................................................. 276 5. Conclusão ................................................................................................. 276
6. Referências Bibliográficas........................................................................ 276 6. Referências Bibliográficas........................................................................ 276

Capítulo XIX – Direitos fundamentais e hermenêutica Capítulo XIX – Direitos fundamentais e hermenêutica
constitucional concretizadora .................................................................... 279 constitucional concretizadora .................................................................... 279
Flávia Moreira Guimarães Pessoa Flávia Moreira Guimarães Pessoa
1. Introdução................................................................................................. 279 1. Introdução................................................................................................. 279
2. Direitos fundamentais: conceituação e conteúdo..................................... 279 2. Direitos fundamentais: conceituação e conteúdo..................................... 279
3. A evolução do raciocínio judiciário......................................................... 282 3. A evolução do raciocínio judiciário......................................................... 282
4. A necessidade de uma hermenêutica constitucional concretizadora........ 287 4. A necessidade de uma hermenêutica constitucional concretizadora........ 287
5. Considerações Finais................................................................................ 290 5. Considerações Finais................................................................................ 290
6. Referências Bibliográficas........................................................................ 290 6. Referências Bibliográficas........................................................................ 290

Capítulo XX – Das liminares em Mandado de Segurança: Capítulo XX – Das liminares em Mandado de Segurança:
Natureza Jurídica e impossibilidade de limitação abstrata..................... 293 Natureza Jurídica e impossibilidade de limitação abstrata..................... 293
João Paulo Lordelo Guimarães Tavares João Paulo Lordelo Guimarães Tavares
1. Introdução................................................................................................. 293 1. Introdução................................................................................................. 293
2. Natureza do Mandado de Segurança........................................................ 293 2. Natureza do Mandado de Segurança........................................................ 293
3. Conceito de Medida Liminar ................................................................... 294 3. Conceito de Medida Liminar ................................................................... 294
4. A Liminar em Mandado de Segurança..................................................... 295 4. A Liminar em Mandado de Segurança..................................................... 295
5. A Impossibilidade de Limitação Abstrata................................................ 297 5. A Impossibilidade de Limitação Abstrata................................................ 297
20 Revista do CEPEJ, Nº 8 • Jul./Dez. 2007 20 Revista do CEPEJ, Nº 8 • Jul./Dez. 2007

6. Conclusões .............................................................................................. 298 6. Conclusões .............................................................................................. 298


7. Referências Bibliográficas........................................................................ 299 7. Referências Bibliográficas........................................................................ 299

Capítulo XXI – A Assistência Social tipo educação formal. Obrigações Capítulo XXI – A Assistência Social tipo educação formal. Obrigações
do Estado e das associações beneficentes do tipo escolas do Estado e das associações beneficentes do tipo escolas
portadoras do Certificado de Entidade Beneficente do CNAS...................... 301 portadoras do Certificado de Entidade Beneficente do CNAS...................... 301
José Rosa José Rosa
1. Introdução................................................................................................. 301 1. Introdução................................................................................................. 301
2. Histórico................................................................................................... 304 2. Histórico................................................................................................... 304
3. Conceito e Fundamentos Jurídicos........................................................... 307 3. Conceito e Fundamentos Jurídicos........................................................... 307
4. O SUAS – Sistema Unificado de Assistência Social................................ 310 4. O SUAS – Sistema Unificado de Assistência Social................................ 310
5. Obrigações das Escolas beneficentes de Assistência 5. Obrigações das Escolas beneficentes de Assistência
Social Decorrentes da Adesão ao SUAS.................................................. 312 Social Decorrentes da Adesão ao SUAS.................................................. 312
6. Os Sujeitos Ativos da Assistência Social Educacional e seus Direitos.... 314 6. Os Sujeitos Ativos da Assistência Social Educacional e seus Direitos.... 314
7. Escolas Privadas Beneficentes e as Leis 8.742/93 – 7. Escolas Privadas Beneficentes e as Leis 8.742/93 –
LOAS e 9.394/96 – LDBE; Direitos e Obrigações.................................. 316 LOAS e 9.394/96 – LDBE; Direitos e Obrigações.................................. 316
8. Conclusão ................................................................................................. 316 8. Conclusão ................................................................................................. 316
9. Referência Bibliográfica........................................................................... 318 9. Referência Bibliográfica........................................................................... 318

Capítulo XXII – Interrogado delator – a constitucionalização Capítulo XXII – Interrogado delator – a constitucionalização
da sua atividade no processo penal por meio da sua atividade no processo penal por meio
do princípio da comunhão da prova........................................................... 319 do princípio da comunhão da prova........................................................... 319
Misael Neto Bispo da França Misael Neto Bispo da França
1. Aspectos introdutórios.............................................................................. 319 1. Aspectos introdutórios.............................................................................. 319
2. Breves anotações sobre conceito de prova............................................... 320 2. Breves anotações sobre conceito de prova............................................... 320
3. Natureza jurídica do interrogatório segundo o 3. Natureza jurídica do interrogatório segundo o
processo penal constitucional: meio de defesa......................................... 322 processo penal constitucional: meio de defesa......................................... 322
4. Valor probante do interrogatório e sua submissão ao princípio da 4. Valor probante do interrogatório e sua submissão ao princípio da
comunhão da prova – um abrigo nos casos de co-delinqüência.............. 324 comunhão da prova – um abrigo nos casos de co-delinqüência.............. 324
5. Conclusão ................................................................................................. 329 5. Conclusão ................................................................................................. 329
6. Referências Bibliográficas........................................................................ 333 6. Referências Bibliográficas........................................................................ 333

Capítulo XXIII – Os meios de solução de conflitos relativos Capítulo XXIII – Os meios de solução de conflitos relativos
ao comércio eletrônico internacional......................................................... 335 ao comércio eletrônico internacional......................................................... 335
Ricardo Barretto de Andrade Ricardo Barretto de Andrade
1. Introdução................................................................................................. 335 1. Introdução................................................................................................. 335
2. A aplicação das regras de conflitos 2. A aplicação das regras de conflitos
de leis no comércio eletrônico internacional............................................ 336 de leis no comércio eletrônico internacional............................................ 336
3. A unificação dos direitos substanciais do mundo..................................... 337 3. A unificação dos direitos substanciais do mundo..................................... 337
4. A criação de uma ordem legal internacional privada............................... 338 4. A criação de uma ordem legal internacional privada............................... 338
5. Conclusão................................................................................................. 341 5. Conclusão................................................................................................. 341
6. Referências ............................................................................................... 341 6. Referências ............................................................................................... 341
Sumário 21 Sumário 21

Capítulo XXIV – Questionamentos a respeito da estabilidade Capítulo XXIV – Questionamentos a respeito da estabilidade
provisória da empregada doméstica gestante: provisória da empregada doméstica gestante:
uma visão sócio-juridica dessas mulheres.................................................. 343 uma visão sócio-juridica dessas mulheres.................................................. 343
Samira Oliveira Noronha Samira Oliveira Noronha
1. Introdução ............................................................................................... 343 1. Introdução ............................................................................................... 343
2. Os Aspectos Sócio-históricos: 2. Os Aspectos Sócio-históricos:
quem é a empregada doméstica brasileira?.............................................. 344 quem é a empregada doméstica brasileira?.............................................. 344
3. A estabilidade provisória da doméstica gestante...................................... 347 3. A estabilidade provisória da doméstica gestante...................................... 347
3.1. A realidade jurídica versus a realidade social.................................. 347 3.1. A realidade jurídica versus a realidade social.................................. 347
3.2. Empregada doméstica: algoz ou vítima?.......................................... 351 3.2. Empregada doméstica: algoz ou vítima?.......................................... 351
4. Conclusão ................................................................................................. 352 4. Conclusão ................................................................................................. 352
5. Referências Bibliográficas........................................................................ 353 5. Referências Bibliográficas........................................................................ 353

Capítulo XXV – Formas de violência extralegal: Capítulo XXV – Formas de violência extralegal:
Linchamentos e execuções sumárias.......................................................... 355 Linchamentos e execuções sumárias.......................................................... 355
Tagore Trajano de Almeida Silva e Ceci Vilar Noronha Tagore Trajano de Almeida Silva e Ceci Vilar Noronha
1. Introdução................................................................................................. 355 1. Introdução................................................................................................. 355
2. Metodologia............................................................................................. 357 2. Metodologia............................................................................................. 357
2.1. Coleta de dados................................................................................ 358 2.1. Coleta de dados................................................................................ 358
2.2. Análise de dados............................................................................... 358 2.2. Análise de dados............................................................................... 358
3. Explorando os conceitos........................................................................... 358 3. Explorando os conceitos........................................................................... 358
4. Resultados................................................................................................ 363 4. Resultados................................................................................................ 363
4.1. Grupos de Extermínio...................................................................... 363 4.1. Grupos de Extermínio...................................................................... 363
4.2. Linchamento..................................................................................... 365 4.2. Linchamento..................................................................................... 365
5. Discussão ................................................................................................. 366 5. Discussão ................................................................................................. 366
6. Considerações finais................................................................................. 367 6. Considerações finais................................................................................. 367
7. Referências............................................................................................... 367 7. Referências............................................................................................... 367

Capítulo XXVI – A Cláusula de Barreira no Direito Capítulo XXVI – A Cláusula de Barreira no Direito
Constitucional Brasileiro............................................................................. 371 Constitucional Brasileiro............................................................................. 371
Vinícios Conceição Silva Silva Vinícios Conceição Silva Silva
1. Aspectos introdutórios.............................................................................. 371 1. Aspectos introdutórios.............................................................................. 371
2. Finalidade ................................................................................................. 371 2. Finalidade ................................................................................................. 371
3. Direito comparado e história da legislação brasileira ............................. 372 3. Direito comparado e história da legislação brasileira ............................. 372
4. Regramento atual...................................................................................... 374 4. Regramento atual...................................................................................... 374
5. Constitucionalidade da cláusula de desempenho: A posição do STF ...... 375 5. Constitucionalidade da cláusula de desempenho: A posição do STF ...... 375
5.1. Dos elementos fáticos....................................................................... 376 5.1. Dos elementos fáticos....................................................................... 376
5.2. Do pluralismo político e da soberania popular.................................. 377 5.2. Do pluralismo político e da soberania popular.................................. 377
5.3. Dos direitos da minoria..................................................................... 378 5.3. Dos direitos da minoria..................................................................... 378
5.4. A lei ordinária em face do poder reformador.................................... 379 5.4. A lei ordinária em face do poder reformador.................................... 379
5.5. Do princípio da proporcionalidade e da igualdade de chances......... 379 5.5. Do princípio da proporcionalidade e da igualdade de chances......... 379
5.6. Da densidade axiológica do texto constitucional.............................. 380 5.6. Da densidade axiológica do texto constitucional.............................. 380
22 Revista do CEPEJ, Nº 8 • Jul./Dez. 2007 22 Revista do CEPEJ, Nº 8 • Jul./Dez. 2007

5.7. Do conflito de normas....................................................................... 380 5.7. Do conflito de normas....................................................................... 380


5.8. Do sistema bicameral perfeito........................................................... 381 5.8. Do sistema bicameral perfeito........................................................... 381
5.9. Da decisão final................................................................................. 381 5.9. Da decisão final................................................................................. 381
6. Conclusão ................................................................................................. 381 6. Conclusão ................................................................................................. 381
7. Referências............................................................................................... 382 7. Referências............................................................................................... 382

Capítulo XXVII – A intervenção anômala e a dispensa Capítulo XXVII – A intervenção anômala e a dispensa
de interesse jurídico para ingresso no processo........................................ 383 de interesse jurídico para ingresso no processo........................................ 383
Yves West Behrens Yves West Behrens
1. Introdução................................................................................................. 383 1. Introdução................................................................................................. 383
2. Intervenção especial das pessoas de direito público................................ 384 2. Intervenção especial das pessoas de direito público................................ 384
3. Ressalva quanto à dispensa de interesse econômico................................ 385 3. Ressalva quanto à dispensa de interesse econômico................................ 385
4. A Intervenção anômala e a isonomia........................................................ 385 4. A Intervenção anômala e a isonomia........................................................ 385
4.1. O Regime jurídico-administrativo.................................................... 386 4.1. O Regime jurídico-administrativo.................................................... 386
4.2. Interesses público primário e secundário......................................... 386 4.2. Interesses público primário e secundário......................................... 386
5. Possibilidade de enquadramento como amicus curiae ............................ 388 5. Possibilidade de enquadramento como amicus curiae ............................ 388
6. Conclusões .............................................................................................. 389 6. Conclusões .............................................................................................. 389
7. Referências Bibliográficas........................................................................ 389 7. Referências Bibliográficas........................................................................ 389
Artigos do CORPO Docente Artigos do CORPO Docente
Capítulo I Capítulo I
Um questionamento Um questionamento
sobre a livre concorrência sobre a livre concorrência

Douglas White* Douglas White*

A Constituição Federal brasileira, no Título VII, que trata “Da ordem eco- A Constituição Federal brasileira, no Título VII, que trata “Da ordem eco-
nômica e financeira”, fundando-se especialmente na valorização do trabalho nômica e financeira”, fundando-se especialmente na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, assegura a todos existência digna, conforme os humano e na livre iniciativa, assegura a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observados os princípios dispostos nos diversos incisos ditames da justiça social, observados os princípios dispostos nos diversos incisos
do seu artigo 170, dentre os quais destaca-se o inciso IX – que determina trata- do seu artigo 170, dentre os quais destaca-se o inciso IX – que determina trata-
mento favorecido para as empresas de pequeno porte, constituídas sob as leis mento favorecido para as empresas de pequeno porte, constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sede e administração no País – que se harmoniza com brasileiras e que tenham sede e administração no País – que se harmoniza com
a disposição do § 4º do art. 173 – que determina a repressão ao abuso do poder a disposição do § 4º do art. 173 – que determina a repressão ao abuso do poder
econômico que vise a dominação dos mercados, à eliminação da concorrência, e econômico que vise a dominação dos mercados, à eliminação da concorrência, e
ao aumento arbitrário dos lucros. ao aumento arbitrário dos lucros.
De Plácido e Silva salienta que, princípios são “... as normas elementares De Plácido e Silva salienta que, princípios são “... as normas elementares
ou os requisitos primordiais instituídos como base, como sustentáculo de alguma ou os requisitos primordiais instituídos como base, como sustentáculo de alguma
coisa. Revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de coisa. Revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de
norma a toda espécie de ação jurídica, traçando assim, a conduta a ser tida em norma a toda espécie de ação jurídica, traçando assim, a conduta a ser tida em
qualquer operação jurídica. Deste modo exprimem sentido mais relevante que qualquer operação jurídica. Deste modo exprimem sentido mais relevante que
o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental
de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em perfeitos axiomas. Sem dúvida, de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em perfeitos axiomas. Sem dúvida,
significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos
vitais do próprio Direito”. vitais do próprio Direito”.
Defere-se, portanto a todos, o direito de organizar e desenvolver adequada- Defere-se, portanto a todos, o direito de organizar e desenvolver adequada-
mente qualquer atividade econômica – respeitante os princípios constitucionais e mente qualquer atividade econômica – respeitante os princípios constitucionais e
ao que dispõem leis pertinentes. A livre iniciativa empresarial é garantida, gozando ao que dispõem leis pertinentes. A livre iniciativa empresarial é garantida, gozando
do apoio do Estado, e de sua intervenção e ou regulação quando for o caso. do apoio do Estado, e de sua intervenção e ou regulação quando for o caso.
O presente cenário empresarial revela redes empresariais de grande porte, O presente cenário empresarial revela redes empresariais de grande porte,
atuando concomitantemente nos ramos varejista e atacadista, utilizando-se de suas atuando concomitantemente nos ramos varejista e atacadista, utilizando-se de suas
aptidões associadas a tecnologia de ponta e mecanismos eficientes de logística, aptidões associadas a tecnologia de ponta e mecanismos eficientes de logística,
dispostas a desdobrar suas atividades mercantis com a criação de empresas com dispostas a desdobrar suas atividades mercantis com a criação de empresas com
estabelecimentos de menor tamanho, para exercer a mercancia em territórios, estabelecimentos de menor tamanho, para exercer a mercancia em territórios,
aldeias onde concorrerão com microempresas e pequenos empresários. aldeias onde concorrerão com microempresas e pequenos empresários.

* Douglas White é advogado, Professor Adjunto e Coordenador do Colegiado de Graduação da * Douglas White é advogado, Professor Adjunto e Coordenador do Colegiado de Graduação da
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
26 Douglas White 26 Douglas White

Os microempresários e as empresas de pequeno porte, obviamente destituídos Os microempresários e as empresas de pequeno porte, obviamente destituídos
do suporte dos vistosos grupos empresariais, provavelmente sucumbirão diante do suporte dos vistosos grupos empresariais, provavelmente sucumbirão diante
das grandes redes, as quais, detentoras de expressiva penetração no mercado das grandes redes, as quais, detentoras de expressiva penetração no mercado
varejista, e com o apoio no atacadista, poderão ser predatórias nesses territórios varejista, e com o apoio no atacadista, poderão ser predatórias nesses territórios
porque absorverão a clientela lá situada. porque absorverão a clientela lá situada.
Dantes, esses territórios não despertavam o interesse aos grandes grupos, mais Dantes, esses territórios não despertavam o interesse aos grandes grupos, mais
focados em estratégias, logística de lucratividade diferenciada. focados em estratégias, logística de lucratividade diferenciada.
Com a melhoria de renda dos chamados bolsões, com clientela apontando Com a melhoria de renda dos chamados bolsões, com clientela apontando
viabilidade de faturamento, as economias de bairros e de outras localidades ou- viabilidade de faturamento, as economias de bairros e de outras localidades ou-
trora vistos como pouco rentáveis, passam a ser objeto de alvo especial porque trora vistos como pouco rentáveis, passam a ser objeto de alvo especial porque
analisados como propiciadores de potencial lucratividade. analisados como propiciadores de potencial lucratividade.
É certo que esses novos possíveis estabelecimentos – ao que se poderia É certo que esses novos possíveis estabelecimentos – ao que se poderia
apelidar de cauda de cometa, porque no rastro dos grandes grupos –, alavanca apelidar de cauda de cometa, porque no rastro dos grandes grupos –, alavanca
criação, oferta de empregos, espera-se também proporcione treinamento e con- criação, oferta de empregos, espera-se também proporcione treinamento e con-
seqüente melhor qualificação profissional para a mão de obra que arregimente, e seqüente melhor qualificação profissional para a mão de obra que arregimente, e
arrecadação de tributos. arrecadação de tributos.
Porém, em contrapartida, os microempresários e as empresas de pequeno porte Porém, em contrapartida, os microempresários e as empresas de pequeno porte
poderão estar ameaçados, simplesmente desaparecer, sofrer ataque predatório, poderão estar ameaçados, simplesmente desaparecer, sofrer ataque predatório,
serem exterminados, diante de uma concorrência desnivelada. serem exterminados, diante de uma concorrência desnivelada.
Imperiosa especial atenção, cautela, cuja prudência deve ensejar uma busca Imperiosa especial atenção, cautela, cuja prudência deve ensejar uma busca
de satisfatória adequação econômica. de satisfatória adequação econômica.
Não que se concite intervenção precipitada do Estado de forma discricionária, Não que se concite intervenção precipitada do Estado de forma discricionária,
mas estimular a livre concorrência sem os nefastos exercícios predatórios referidos mas estimular a livre concorrência sem os nefastos exercícios predatórios referidos
acima. Necessário assegurar estudos, exercícios e esforços na busca e preservação acima. Necessário assegurar estudos, exercícios e esforços na busca e preservação
da livre con­co­­rrência com a participação efetiva de uma estratificação empresarial da livre con­co­­rrência com a participação efetiva de uma estratificação empresarial
segura e estimulante. segura e estimulante.
Não se pode simplesmente em nome e na busca do desenvolvimento econô- Não se pode simplesmente em nome e na busca do desenvolvimento econô-
mico, do progresso, dispensar aqueles atores que já agregaram esforços, sacrifi- mico, do progresso, dispensar aqueles atores que já agregaram esforços, sacrifi-
cando-se em áreas muitas vezes inóspita, hostil. cando-se em áreas muitas vezes inóspita, hostil.
A livre concorrência – garantida pela CF, art. 170, IV – é um dos alicerces da A livre concorrência – garantida pela CF, art. 170, IV – é um dos alicerces da
estrutura da economia brasileira. Os esforços devem ser no sentido de acentuar estrutura da economia brasileira. Os esforços devem ser no sentido de acentuar
a presença continua e viçosa das empresas privadas aquinhoadas de condições a presença continua e viçosa das empresas privadas aquinhoadas de condições
econômicas e financeiras desejosas de compartilhar com a nação, o progresso, econômicas e financeiras desejosas de compartilhar com a nação, o progresso,
entrelaçando-se de modo a assegurar eficácia necessária, convivência harmônica, entrelaçando-se de modo a assegurar eficácia necessária, convivência harmônica,
entre o mais avançado em tecnologia, mas sem olvidar-se na proteção a livre entre o mais avançado em tecnologia, mas sem olvidar-se na proteção a livre
iniciativa dos microempresários e pequenos empreendedores, estes, muitas vezes iniciativa dos microempresários e pequenos empreendedores, estes, muitas vezes
clientes absolutos das grandes redes e dos viçosos grupos econômicos. clientes absolutos das grandes redes e dos viçosos grupos econômicos.
Um questionamento sobre a livre concorrência 27 Um questionamento sobre a livre concorrência 27

Expressa o artigo 174, da Constituição Federal: “Como agente normativo e Expressa o artigo 174, da Constituição Federal: “Como agente normativo e
regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções
de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor
público e indicativo para o setor privado.” público e indicativo para o setor privado.”
Não se pode tolerar um mercado cinza ou um mercado que pode ser caracteri- Não se pode tolerar um mercado cinza ou um mercado que pode ser caracteri-
zado como invisível, pois, o mundo contemporâneo não mais admite e tampouco zado como invisível, pois, o mundo contemporâneo não mais admite e tampouco
deve incentivar práticas não recomendáveis. deve incentivar práticas não recomendáveis.
Com a livre iniciativa, com a busca continuada de melhores oportunidades e Com a livre iniciativa, com a busca continuada de melhores oportunidades e
opções para a produção de riquezas, exercitando-se normas em vigor já presentes, opções para a produção de riquezas, exercitando-se normas em vigor já presentes,
alcançar-se-á um mercado mais justo e não predatório. A Lei nº 8.884/94 objetiva alcançar-se-á um mercado mais justo e não predatório. A Lei nº 8.884/94 objetiva
preservar as relações de mercado, respeitante aos princípios constitucionais da preservar as relações de mercado, respeitante aos princípios constitucionais da
livre concorrência, sem olvidar a defesa dos consumidores, proporcionando à co- livre concorrência, sem olvidar a defesa dos consumidores, proporcionando à co-
letividade, que é a titular dos bens jurídicos, o cumprimento da ordem econômica letividade, que é a titular dos bens jurídicos, o cumprimento da ordem econômica
de liberdade de iniciativa, mantendo-se, bem como, o escopo relativo à repressão de liberdade de iniciativa, mantendo-se, bem como, o escopo relativo à repressão
ao abuso do poder econômico, no que dispõe o § 4º do art. 173 da CF. ao abuso do poder econômico, no que dispõe o § 4º do art. 173 da CF.
É cediço acompanhar, orientar os empresários segundo as regras já prescritas, É cediço acompanhar, orientar os empresários segundo as regras já prescritas,
cabendo que se conduzam sempre subordinados a ordem econômica, sem prejudi- cabendo que se conduzam sempre subordinados a ordem econômica, sem prejudi-
car a livre concorrência, e ainda observando a vontade do legislador na proteção car a livre concorrência, e ainda observando a vontade do legislador na proteção
ao microempresário conforme se vê expressa nas disposições já acima citadas e ao microempresário conforme se vê expressa nas disposições já acima citadas e
ainda no artigo 179 da CF que proporciona conferência de tratamento diferenciado ainda no artigo 179 da CF que proporciona conferência de tratamento diferenciado
às microempresas e ás empresas de pequeno porte. às microempresas e ás empresas de pequeno porte.
Capítulo II Capítulo II
O Sistema de nulidades das cláusulas O Sistema de nulidades das cláusulas
abusivas no CDC e a revisão de contratos abusivas no CDC e a revisão de contratos

Flavia Marimpietri* Flavia Marimpietri*

Sumário • Introdução – 1.Identificação – 2. Nulidades de pleno direito X revisão dos contratos: 2.1. A Sumário • Introdução – 1.Identificação – 2. Nulidades de pleno direito X revisão dos contratos: 2.1. A
tese do ato ilícito lato sensu; 2.2 A tese do abuso de direito; 2.3 A tese das nulidades relativas – 3. Diver- tese do ato ilícito lato sensu; 2.2 A tese do abuso de direito; 2.3 A tese das nulidades relativas – 3. Diver-
sidade de sanções – 4. O sistema de nulidades do art. 51 do CDC – 5.Conclusão – 6. Referências. sidade de sanções – 4. O sistema de nulidades do art. 51 do CDC – 5.Conclusão – 6. Referências.

INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO
A moderna economia trouxe consigo a necessidade de padronização e des- A moderna economia trouxe consigo a necessidade de padronização e des-
pesoalização das relações (em especial as contratuais). Neste contexto, tornou-se pesoalização das relações (em especial as contratuais). Neste contexto, tornou-se
necessária a racionalização da atividade empresarial para o crescimento econômico, necessária a racionalização da atividade empresarial para o crescimento econômico,
surgindo como um verdadeiro contingente da produção em escala e da economia surgindo como um verdadeiro contingente da produção em escala e da economia
de mercado um novo modelo contratual – o contrato de adesão. de mercado um novo modelo contratual – o contrato de adesão.
Segundo Enzo Roppo apud Cláudio Luiz Bueno de Godoy, esta padronização Segundo Enzo Roppo apud Cláudio Luiz Bueno de Godoy, esta padronização
das relações permite o desenvolvimento da economia, planejamento da produção e das relações permite o desenvolvimento da economia, planejamento da produção e
dos custos, acelera a conclusão dos contratos e otimiza seu controle e, desta forma, dos custos, acelera a conclusão dos contratos e otimiza seu controle e, desta forma,
previne litígios e reduz riscos adicionais. Este novo modelo contratual também previne litígios e reduz riscos adicionais. Este novo modelo contratual também
traz benefícios, obviamente se assimilado dentro do limite traçado pela esfera dos traz benefícios, obviamente se assimilado dentro do limite traçado pela esfera dos
princípios e mandamentos do Direito contemporâneo (GODOY, 2004, p. 5). princípios e mandamentos do Direito contemporâneo (GODOY, 2004, p. 5).
Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2005, p. 8-40), Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2005, p. 8-40),
deve-se reconhecer que, a despeito da sua suscetibilidade às expansões do poder deve-se reconhecer que, a despeito da sua suscetibilidade às expansões do poder
econômico, o contrato de adesão, desde que concebido segundo o superior princípio econômico, o contrato de adesão, desde que concebido segundo o superior princípio
da função social do contrato, e pactuado em atenção ao mandamento constitucional da função social do contrato, e pactuado em atenção ao mandamento constitucional
de respeito à d­ ignidade da pessoa humana, é um instrumento de contratação so- de respeito à d­ ignidade da pessoa humana, é um instrumento de contratação so-
cialmente necessário e economica­mente útil, considerando-se o imenso número de cialmente necessário e economica­mente útil, considerando-se o imenso número de
pessoas que pactuam, dia a dia, repetidamente, negócios da mesma natureza, com pessoas que pactuam, dia a dia, repetidamente, negócios da mesma natureza, com
diversas empresas ou com o próprio Poder Público. Mesmo em algumas modalidades diversas empresas ou com o próprio Poder Público. Mesmo em algumas modalidades
contratuais, a exemplo daquelas pactuadas sob forma de adesão, onde o âmbito de contratuais, a exemplo daquelas pactuadas sob forma de adesão, onde o âmbito de
atuação da vontade é sobremaneira diminuído, não pode-se negar a sua ocorrência, atuação da vontade é sobremaneira diminuído, não pode-se negar a sua ocorrência,
pois, ainda assim, o aderente tem liberdade de contratar ou não. pois, ainda assim, o aderente tem liberdade de contratar ou não.
Na atualidade, a forma mais usual de contrato consumerista tem-se revestido sob Na atualidade, a forma mais usual de contrato consumerista tem-se revestido sob
a forma de adesão, sendo na seara de consumo regulamentado pelo CDC no art. 54. a forma de adesão, sendo na seara de consumo regulamentado pelo CDC no art. 54.

* Mestra em Direito Econômico pela UFBa, professora universitária e advogada. * Mestra em Direito Econômico pela UFBa, professora universitária e advogada.
30 Flavia Marimpietri 30 Flavia Marimpietri

A modalidade adesiva de contrato é lícita e não significa falta de consentimento A modalidade adesiva de contrato é lícita e não significa falta de consentimento
da parte contratante. Para Cristiano Heineck Schmitt (2006, p. 70-71), o contrato da parte contratante. Para Cristiano Heineck Schmitt (2006, p. 70-71), o contrato
de adesão tem natureza jurídica de contrato (o que engloba a presença necessária de adesão tem natureza jurídica de contrato (o que engloba a presença necessária
do consentimento das partes), tendo como característica peculiar, contudo, a au- do consentimento das partes), tendo como característica peculiar, contudo, a au-
sência de discussão preliminar sobre o conteúdo negocial, configurando-se, assim, sência de discussão preliminar sobre o conteúdo negocial, configurando-se, assim,
como “técnica de conclusão de negócio e de disciplina de relações contratuais”. como “técnica de conclusão de negócio e de disciplina de relações contratuais”.
Vale dizer que, nos contratos de consumo adesivos, o consentimento também está Vale dizer que, nos contratos de consumo adesivos, o consentimento também está
presente, porém, em função das peculiaridades deste, o consentimento contratual presente, porém, em função das peculiaridades deste, o consentimento contratual
essencial para a formação do negócio dá-se como ato de assentimento. essencial para a formação do negócio dá-se como ato de assentimento.
A falta da discussão das cláusulas contratuais entre as partes não invalida o A falta da discussão das cláusulas contratuais entre as partes não invalida o
contrato de adesão por falta de consentimento; apenas este, apesar de existente contrato de adesão por falta de consentimento; apenas este, apesar de existente
na hora da adesão ao pacto, possui pouca influência na elaboração das cláusulas. na hora da adesão ao pacto, possui pouca influência na elaboração das cláusulas.
Para Thereza Christina Nahas (2002, p. 28), o contrato de adesão presente nas Para Thereza Christina Nahas (2002, p. 28), o contrato de adesão presente nas
sociedades atuais não suprime a expressão da vontade; o que ocorre é que esta sociedades atuais não suprime a expressão da vontade; o que ocorre é que esta
vontade vem de nova forma. O que saiu da esfera de controle das partes foi a vontade vem de nova forma. O que saiu da esfera de controle das partes foi a
possibilidade criadora de cláusulas, não a expressão da vontade, mesmo que esta possibilidade criadora de cláusulas, não a expressão da vontade, mesmo que esta
expressão venha de forma reduzida a adesão ou não ao pacto. expressão venha de forma reduzida a adesão ou não ao pacto.
O problema surge na ocorrência de maior possibilidade de abusos neste tipo O problema surge na ocorrência de maior possibilidade de abusos neste tipo
de contrato, por meio das conhecidas “ cláusulas abusivas”. Estas são inseridas de contrato, por meio das conhecidas “ cláusulas abusivas”. Estas são inseridas
no contrato, e provocam um rompimento no equilíbrio das partes e na equação no contrato, e provocam um rompimento no equilíbrio das partes e na equação
contratual. A abusividade da cláusula, em geral, reside na imposição de um com- contratual. A abusividade da cláusula, em geral, reside na imposição de um com-
portamento que traga vantagem desproporcional e imotivada a um dos contratantes, portamento que traga vantagem desproporcional e imotivada a um dos contratantes,
rompendo a base do negócio e desvirtuando a finalidade essencial do mesmo. rompendo a base do negócio e desvirtuando a finalidade essencial do mesmo.
Segundo Cristiano Heineck Schmitt (2006, p. 99), na doutrina e jurisprudên- Segundo Cristiano Heineck Schmitt (2006, p. 99), na doutrina e jurisprudên-
cia moderna, o principal fundamento para a vedação das cláusulas abusivas, é o cia moderna, o principal fundamento para a vedação das cláusulas abusivas, é o
princípio da boa-fé objetiva. Note-se que, a despeito de estarem mais facilmente princípio da boa-fé objetiva. Note-se que, a despeito de estarem mais facilmente
presentes nos contratos de adesão, as cláusulas abusivas podem existir em qual- presentes nos contratos de adesão, as cláusulas abusivas podem existir em qual-
quer tipo de contrato de consumo, vez que a finalidade do sistema protetivo é o quer tipo de contrato de consumo, vez que a finalidade do sistema protetivo é o
equilíbrio contratual em geral. equilíbrio contratual em geral.
Reza o art. 51 do CDC, que quando da presença de cláusulas abusivas, o Reza o art. 51 do CDC, que quando da presença de cláusulas abusivas, o
sistema consumeirsta deve repudiá-las, impondo a nulidade de pleno direito ou sistema consumeirsta deve repudiá-las, impondo a nulidade de pleno direito ou
absoluta. O problema central surge em saber como compatibilizar este tipo de absoluta. O problema central surge em saber como compatibilizar este tipo de
sanção com o direito básico do consumidor de revisionar contratos, conforme sanção com o direito básico do consumidor de revisionar contratos, conforme
previsto no art. 6, inciso V do mesmo diploma legal. previsto no art. 6, inciso V do mesmo diploma legal.

1. Identificação 1. Identificação
O primiero passo para compreensão da questão das nulidades reside em O primiero passo para compreensão da questão das nulidades reside em
identificar a presença ou ausência de abusividade. Na opinião de Ruy Rosado identificar a presença ou ausência de abusividade. Na opinião de Ruy Rosado
de Aguiar Jr. (2006, p. 1, 2) o problema inicial reside na determinação desta de Aguiar Jr. (2006, p. 1, 2) o problema inicial reside na determinação desta
O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas no CDC e a revisão de contratos 31 O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas no CDC e a revisão de contratos 31

abusividade, podendo o legislador optar por três caminhos: a) definir o conceito abusividade, podendo o legislador optar por três caminhos: a) definir o conceito
de abusividade; b) empregar cláusula geral de Direito para permitir, ao intérprete de abusividade; b) empregar cláusula geral de Direito para permitir, ao intérprete
e aplicador da lei, o preenchimento do concei­to de abuso de acordo com o caso e aplicador da lei, o preenchimento do concei­to de abuso de acordo com o caso
concreto; c) enumerar os casos onde o abuso aconteceria (por presunção). Moder- concreto; c) enumerar os casos onde o abuso aconteceria (por presunção). Moder-
namente têm sido utilizadas, principalmente, as idéias de prejuízo substancial e namente têm sido utilizadas, principalmente, as idéias de prejuízo substancial e
inevitável, razoabilidade e inescrupulosidade. O sistema brasileiro optou por não inevitável, razoabilidade e inescrupulosidade. O sistema brasileiro optou por não
definir a abusividade, elaborando um rol exemplificativo conforme o art. 51 do definir a abusividade, elaborando um rol exemplificativo conforme o art. 51 do
CDC, o qual contempla duas grandes cláusulas gerais para identificar as situações CDC, o qual contempla duas grandes cláusulas gerais para identificar as situações
abusivas: cláusula geral da lesão e cláusula geral da boa fé. A desconformidade abusivas: cláusula geral da lesão e cláusula geral da boa fé. A desconformidade
entre a conduta prevista e a efetiva resulta na ilicitude da conduta. entre a conduta prevista e a efetiva resulta na ilicitude da conduta.
Neste sentido, conclui (AGUIAR JR., 2006, p. 10-16), que são abusivas as Neste sentido, conclui (AGUIAR JR., 2006, p. 10-16), que são abusivas as
cláusulas que caracterizam lesão ou violam a boa-fé objetiva, funcionando estas cláusulas que caracterizam lesão ou violam a boa-fé objetiva, funcionando estas
como cláusulas gerais de Direito, capazes de atingir situações não expressamente como cláusulas gerais de Direito, capazes de atingir situações não expressamente
reguladas no contrato ou na lei. Mais adiante, aduz que as cláusulas abusivas po- reguladas no contrato ou na lei. Mais adiante, aduz que as cláusulas abusivas po-
dem ser controladas por meio de dois tipos de controle: interno (feito pelo próprio dem ser controladas por meio de dois tipos de controle: interno (feito pelo próprio
contratante) e externo (feito antes ou depois da celebração do contrato, pro via contratante) e externo (feito antes ou depois da celebração do contrato, pro via
administrativa ou judicial). Por fim, ainda, que no tocante ao controle judicial, que administrativa ou judicial). Por fim, ainda, que no tocante ao controle judicial, que
o legislador ofereceu importantes ferramentas favoráveis ao consumidor, como o legislador ofereceu importantes ferramentas favoráveis ao consumidor, como
a possibilidade de inversão do ônus probatório, o incentivo a criação de juizados a possibilidade de inversão do ônus probatório, o incentivo a criação de juizados
especiais, a assistência jurídica gratuita ao consumidor carente e possibilitou a especiais, a assistência jurídica gratuita ao consumidor carente e possibilitou a
desconsideração da personalidade jurídica para a perseguição dos bens dos sócios desconsideração da personalidade jurídica para a perseguição dos bens dos sócios
para a efetiva reparação de danos etc. para a efetiva reparação de danos etc.
É mister salientar, ainda, que as ditas cláusulas abusivas encontram-se dentro É mister salientar, ainda, que as ditas cláusulas abusivas encontram-se dentro
do contrato de consumo, o qual tem natureza de negócio jurídico. Este último, do contrato de consumo, o qual tem natureza de negócio jurídico. Este último,
por sua vez, possui como elementos constitutivos a manifestação de vontade, o por sua vez, possui como elementos constitutivos a manifestação de vontade, o
agente, o objeto e a forma. Sem a presença de todos estes, não pode se falar em agente, o objeto e a forma. Sem a presença de todos estes, não pode se falar em
negócio jurídico. negócio jurídico.

2. Nulidades de pleno direito X revisão dos contratos 2. Nulidades de pleno direito X revisão dos contratos
A partir do panorama acima traçado, surgem algumas indagações, no sentido A partir do panorama acima traçado, surgem algumas indagações, no sentido
de ser o sistema de nulidades de pleno direito ou absolutas compatíveis com a de ser o sistema de nulidades de pleno direito ou absolutas compatíveis com a
possibilidade de revisão dos pactos de consumo. Alguns autores chegam a pre- possibilidade de revisão dos pactos de consumo. Alguns autores chegam a pre-
lecionar que consideram-se como não-escritas (logo inexistentes) as cláusulas lecionar que consideram-se como não-escritas (logo inexistentes) as cláusulas
abusivas presentes nos contratos de consumo. abusivas presentes nos contratos de consumo.
Segundo Orlando Gomes (1993, p. 488), a nulidade é incurável, o que signi- Segundo Orlando Gomes (1993, p. 488), a nulidade é incurável, o que signi-
fica que as partes não podem saná-la e nem ao juiz é lícito supri-la. Ora, a revisão fica que as partes não podem saná-la e nem ao juiz é lícito supri-la. Ora, a revisão
conforme con­-cebida pelo CDC prevê justamente a possibilidade do juiz rever conforme con­-cebida pelo CDC prevê justamente a possibilidade do juiz rever
as cláusulas contratuais e modificá-las para retirar o excesso ou abusividade, as cláusulas contratuais e modificá-las para retirar o excesso ou abusividade,
podendo o magistrado, inclusive, reformulá-las na sua redação. Seria, então, podendo o magistrado, inclusive, reformulá-las na sua redação. Seria, então,
possível compatibilizar as nulidades absolutas do art. 51 do CDC com o princípio possível compatibilizar as nulidades absolutas do art. 51 do CDC com o princípio
32 Flavia Marimpietri 32 Flavia Marimpietri

da conservação dos contratos e do direito de revisão contratual? Qual a natureza da conservação dos contratos e do direito de revisão contratual? Qual a natureza
jurídica das cláusulas abusivas? Voltemos às definições da teoria geral do direito, jurídica das cláusulas abusivas? Voltemos às definições da teoria geral do direito,
para buscarmos uma construção adequada. para buscarmos uma construção adequada.
Pode-se relembrar algumas definições gerais e outras referentes à seara con- Pode-se relembrar algumas definições gerais e outras referentes à seara con-
tratual. Segundo Marcos Bernardes de Mello (2003, p. 38-44), o sistema jurídico tratual. Segundo Marcos Bernardes de Mello (2003, p. 38-44), o sistema jurídico
comporta atos jurídicos (independem da vontade humana) e atos jurídicos lato comporta atos jurídicos (independem da vontade humana) e atos jurídicos lato
sensu (atos que d­ ependem da vontade humana), sendo estes últimos os que inte- sensu (atos que ­dependem da vontade humana), sendo estes últimos os que inte-
ressam à nossa questão das cláusulas abusivas. O suporte fático da norma jurídica ressam à nossa questão das cláusulas abusivas. O suporte fático da norma jurídica
se traduz num fato, evento ou conduta que ocorre no mundo, e por ser considerada se traduz num fato, evento ou conduta que ocorre no mundo, e por ser considerada
relevante, tornou-se objeto da normatividade jurídica. Assim, a conduta humana relevante, tornou-se objeto da normatividade jurídica. Assim, a conduta humana
de pactuar vontades deixa de ser apenas um ato, para por incidência da norma, de pactuar vontades deixa de ser apenas um ato, para por incidência da norma,
transformar-se em ato jurídico lato sensu. Outrossim, no negócio jurídico, o su- transformar-se em ato jurídico lato sensu. Outrossim, no negócio jurídico, o su-
porte fático do contrato possui dois fatos jurídicos como elementos, onde a falta porte fático do contrato possui dois fatos jurídicos como elementos, onde a falta
dos quais implica em inexistência do ato: a proposta e a aceitação. Nos con­-tratos dos quais implica em inexistência do ato: a proposta e a aceitação. Nos con­-tratos
de consumo, vê-se a presença da proposta (ligada diretamente ao princípio da de consumo, vê-se a presença da proposta (ligada diretamente ao princípio da
vinculação da oferta) e da aceitação quando da assinatura do instrumento ou a vinculação da oferta) e da aceitação quando da assinatura do instrumento ou a
concordância verbal; logo, não há que falar-se em inexistência. concordância verbal; logo, não há que falar-se em inexistência.
Para Orlando Gomes (1993, p. 274-279), negócio jurídico é instrumento pró- Para Orlando Gomes (1993, p. 274-279), negócio jurídico é instrumento pró-
prio da circulação dos direitos, de modificação intencional das relações jurídicas, prio da circulação dos direitos, de modificação intencional das relações jurídicas,
sendo conceituado como ato de autonomia privada vinculante para os agentes, sendo conceituado como ato de autonomia privada vinculante para os agentes,
onde se regulamentam condutas a partir de interesses. Pode-se, então, definir o onde se regulamentam condutas a partir de interesses. Pode-se, então, definir o
contrato de consumo como negócio jurídico bilateral. Neste contexto, o negócio contrato de consumo como negócio jurídico bilateral. Neste contexto, o negócio
jurídico reclama, não só a presença de declaração de vontade, agente, objeto e jurídico reclama, não só a presença de declaração de vontade, agente, objeto e
forma, mas uma “qualificação” destes elementos, transformado-os em manifestação forma, mas uma “qualificação” destes elementos, transformado-os em manifestação
de vontade livre e de boa-fé, agente capaz, objeto lícito, possível e determinado de vontade livre e de boa-fé, agente capaz, objeto lícito, possível e determinado
(ou, ao menos, determinável) e forma não vedada pela lei. Quando estes elementos (ou, ao menos, determinável) e forma não vedada pela lei. Quando estes elementos
deixam de ser “simples” para tornarem-se “compostos” (qualificados), o negócio, deixam de ser “simples” para tornarem-se “compostos” (qualificados), o negócio,
que antes era apenas existente, passa a ser autorizado pelo sistema jurídico a ser que antes era apenas existente, passa a ser autorizado pelo sistema jurídico a ser
válido, ou seja, apto a produzir seus regulares efeitos. válido, ou seja, apto a produzir seus regulares efeitos.
Feitas estas considerações preliminares, é possível entender melhor as diversas Feitas estas considerações preliminares, é possível entender melhor as diversas
posições da doutrina no tocante á natureza jurídica das cláusulas abusivas. posições da doutrina no tocante á natureza jurídica das cláusulas abusivas.

2.1. A tese do ato ilícito lato sensu 2.1. A tese do ato ilícito lato sensu
Segundo Marcos Bernardes de Mello (2003, p. 238), existe uma categoria que Segundo Marcos Bernardes de Mello (2003, p. 238), existe uma categoria que
p­ o-deria comprometer o regular desenvolvimento do ato – o chamado ato ilícito p­ o-deria comprometer o regular desenvolvimento do ato – o chamado ato ilícito
lato sensu. Este ocorre quando alguém por ação ou omissão voluntária (culposa lato sensu. Este ocorre quando alguém por ação ou omissão voluntária (culposa
ou não), cause dano a outrem e implique em infração a dever absoluto (sujeito ou não), cause dano a outrem e implique em infração a dever absoluto (sujeito
passivo indeterminado) ou relativo (sujeito passivo determinado, e em geral, passivo indeterminado) ou relativo (sujeito passivo determinado, e em geral,
relacionado com deveres contratuais). Logo, é possível afirmar que ato ilícito é relacionado com deveres contratuais). Logo, é possível afirmar que ato ilícito é
ato jurídico que contraria o direito. Assim, quando o CDC estabelece princípios, ato jurídico que contraria o direito. Assim, quando o CDC estabelece princípios,
O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas no CDC e a revisão de contratos 33 O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas no CDC e a revisão de contratos 33

diretrizes e deveres, principalmente a boa-fé objetiva em sua tríplice função (padrão diretrizes e deveres, principalmente a boa-fé objetiva em sua tríplice função (padrão
hermenêutico, fonte de deveres e integradora das normas), devem os contratos de hermenêutico, fonte de deveres e integradora das normas), devem os contratos de
consumo conter cláusulas que obedeçam a todos estes aspectos. Quando isto não consumo conter cláusulas que obedeçam a todos estes aspectos. Quando isto não
ocorre, ou seja, quando um ato afronta uma norma (princípio, política ou regra) ocorre, ou seja, quando um ato afronta uma norma (princípio, política ou regra)
cogente, o ordenamento classifica este ato como ilícito e impõe uma sanção. cogente, o ordenamento classifica este ato como ilícito e impõe uma sanção.
Não deve-se descartar a tese das cláusulas abusivas como ato ilícito lato sensu. Não deve-se descartar a tese das cláusulas abusivas como ato ilícito lato sensu.
Na lição de Ruy Rosado de Aguiar Jr. (2006, p. 12), as cláusulas abusivas do art. Na lição de Ruy Rosado de Aguiar Jr. (2006, p. 12), as cláusulas abusivas do art.
51 do CDC são também ilícitas, porque contrárias ao Direito, enquanto conjunto 51 do CDC são também ilícitas, porque contrárias ao Direito, enquanto conjunto
de leis integrado por princípios gerais de moralidade e interesse público. Em linhas de leis integrado por princípios gerais de moralidade e interesse público. Em linhas
gerais, as cláusulas abusivas têm natureza jurídica de ato ilícito. gerais, as cláusulas abusivas têm natureza jurídica de ato ilícito.

2.2. A tese do abuso de direito 2.2. A tese do abuso de direito


Mister ainda colacionar a tese do abuso de direito. De acordo com tal enten- Mister ainda colacionar a tese do abuso de direito. De acordo com tal enten-
dimento, as cláusulas abusivas poderiam ser consideradas como abuso de direito, dimento, as cláusulas abusivas poderiam ser consideradas como abuso de direito,
como categoria apartada do ato ilícito. O Título III do CC disciplina os atos ilícitos, como categoria apartada do ato ilícito. O Título III do CC disciplina os atos ilícitos,
comportando duas modalidades: o ato ilícito que nasce ilícito (art. 186), pois por comportando duas modalidades: o ato ilícito que nasce ilícito (art. 186), pois por
ação ou omissão do agente viola direito ou causa dano, e o ato ilícito derivado ação ou omissão do agente viola direito ou causa dano, e o ato ilícito derivado
do abuso de direito (art. 187), o qual nasce lícito e transforma-se em ilícito por do abuso de direito (art. 187), o qual nasce lícito e transforma-se em ilícito por
desvio de finalidade (BRASIL, 2004b). desvio de finalidade (BRASIL, 2004b).
Para Cláudia Lima Marques (2003a, p. 625), ambos são repudiados pelo Para Cláudia Lima Marques (2003a, p. 625), ambos são repudiados pelo
sistema jurídico, variando, contudo, a hipótese de incidência de cada um. O ato sistema jurídico, variando, contudo, a hipótese de incidência de cada um. O ato
ilícito previsto no art. 186 é aquele que se mostra desconforme ao direito, e que ilícito previsto no art. 186 é aquele que se mostra desconforme ao direito, e que
provoca uma reação negativa no ordenamento. Este ato viola direito ou causa provoca uma reação negativa no ordenamento. Este ato viola direito ou causa
prejuízo, fazendo nascer a obrigação da reparação (responsabilidade). O ato ilícito prejuízo, fazendo nascer a obrigação da reparação (responsabilidade). O ato ilícito
previsto no art. 187 ocorre quando um ato inicial é tido como lícito, mas o modo previsto no art. 187 ocorre quando um ato inicial é tido como lícito, mas o modo
excessivo do seu exercício ofende o ordenamento. excessivo do seu exercício ofende o ordenamento.
Esta linha de raciocínio, em verdade, corrobora com a tese sobre a ilicitude Esta linha de raciocínio, em verdade, corrobora com a tese sobre a ilicitude
das cláusulas abusivas, pois poderíamos dizer que quando um fornecedor introduz das cláusulas abusivas, pois poderíamos dizer que quando um fornecedor introduz
num contrato de consumo (adesivo, na maioria das vezes) uma cláusula abusiva, num contrato de consumo (adesivo, na maioria das vezes) uma cláusula abusiva,
há violação da proteção do vulnerável, ofensa à boa-fé objetiva e à harmonia nas há violação da proteção do vulnerável, ofensa à boa-fé objetiva e à harmonia nas
relações de consumo etc. Logo, desta violação nasce o ato ilícito que faz com que relações de consumo etc. Logo, desta violação nasce o ato ilícito que faz com que
essas cláusulas possam ser consideradas ilícitas, pois violam as regras e valores essas cláusulas possam ser consideradas ilícitas, pois violam as regras e valores
da ordem jurídica consumerista. da ordem jurídica consumerista.

2.3. A tese das nulidades relativas 2.3. A tese das nulidades relativas
Segundo Ruy Rosado de Aguiar Jr. (2006, p. 18), o Código Civil abarcou, sob Segundo Ruy Rosado de Aguiar Jr. (2006, p. 18), o Código Civil abarcou, sob
o manto das invalidades, as chamadas nulidades e anulabilidades. A nulidade é o manto das invalidades, as chamadas nulidades e anulabilidades. A nulidade é
decretável de ofício, independente de ação, enquanto a anulabilidade só pode ser decretável de ofício, independente de ação, enquanto a anulabilidade só pode ser
alegada pelo beneficiário por meio de ação cabível. O ato anulável é ratificável alegada pelo beneficiário por meio de ação cabível. O ato anulável é ratificável
34 Flavia Marimpietri 34 Flavia Marimpietri

e eficaz até a sua anulação. Em linhas gerais, a nulidade de pleno direito corres- e eficaz até a sua anulação. Em linhas gerais, a nulidade de pleno direito corres-
ponderia à nulidade absoluta, e a anulabilidade à nulidade relativa. ponderia à nulidade absoluta, e a anulabilidade à nulidade relativa.
Desta forma, inicialmente, quando não existem defeitos ou vícios, os contratos Desta forma, inicialmente, quando não existem defeitos ou vícios, os contratos
são válidos; contudo, é preciso analisá-los à luz de seus efeitos e da sua função. são válidos; contudo, é preciso analisá-los à luz de seus efeitos e da sua função.
Aduz Calmon de Passos (2005, p. 27, 31) que o pensar jurídico deve ocorrer Aduz Calmon de Passos (2005, p. 27, 31) que o pensar jurídico deve ocorrer
em função da conseqüência que deve se operar do ato. Havendo correspondência em função da conseqüência que deve se operar do ato. Havendo correspondência
entre o suposto material verificado e o normativamente exigido, haverá o que entre o suposto material verificado e o normativamente exigido, haverá o que
chama de “tipicidade” ou “adequação”, o que acarretará o deferimento da con- chama de “tipicidade” ou “adequação”, o que acarretará o deferimento da con-
seqüência pretendida e a validade do ato. Haverá invalidade, contudo, se houver seqüência pretendida e a validade do ato. Haverá invalidade, contudo, se houver
“atipicidade” ou “inadequação”. Na análise da validade dos negócios jurídicos, “atipicidade” ou “inadequação”. Na análise da validade dos negócios jurídicos,
deve o intérprete analisar os seguintes aspectos: a) existência de vontade livre e deve o intérprete analisar os seguintes aspectos: a) existência de vontade livre e
sã dos pactantes; b)exercício da vontade deve estar dentro dos limites dados pelo sã dos pactantes; b)exercício da vontade deve estar dentro dos limites dados pelo
direito; c) adequação entre o efeito pretendido/efetivado e o pactuado. Conclui-se, direito; c) adequação entre o efeito pretendido/efetivado e o pactuado. Conclui-se,
portanto, que presente a vontade das partes, sendo a mesma exercida de boa-fé, de portanto, que presente a vontade das partes, sendo a mesma exercida de boa-fé, de
forma livre e dentro dos limites dados pelo próprio sistema (a exemplo da função forma livre e dentro dos limites dados pelo próprio sistema (a exemplo da função
social) deve haver, em regra, uma adequação entre o pretendido e os resultados social) deve haver, em regra, uma adequação entre o pretendido e os resultados
fáticos do contrato. Quando não houver esta adequação, a despeito da sua existência fáticos do contrato. Quando não houver esta adequação, a despeito da sua existência
e validade, de acordo com o caso concreto, é possível haver ineficácia, ou seja, não e validade, de acordo com o caso concreto, é possível haver ineficácia, ou seja, não
produção dos efeitos regulares do contrato e dos efeitos queridos pelas partes. produção dos efeitos regulares do contrato e dos efeitos queridos pelas partes.
A partir das lições dos diversos autores supra citados, pode-se concluir que, A partir das lições dos diversos autores supra citados, pode-se concluir que,
quando a despeito da vedação aos abusos, o fornecedor oferta ao consumidor quando a despeito da vedação aos abusos, o fornecedor oferta ao consumidor
um contrato onde existe uma cláusula portadora de uma vantagem excessiva, a um contrato onde existe uma cláusula portadora de uma vantagem excessiva, a
despeito da presença da abusividade, houve uma proposta; pode ocorrer, contudo, despeito da presença da abusividade, houve uma proposta; pode ocorrer, contudo,
que o consumidor, a despeito de muitas vezes enxergar esta abusividade, aceita o que o consumidor, a despeito de muitas vezes enxergar esta abusividade, aceita o
contrato como um todo, havendo declaração de vontade e aceitação. Logo, não há contrato como um todo, havendo declaração de vontade e aceitação. Logo, não há
de se falar em inexistência do ato, e portanto, não pode ser a cláusula considerada, de se falar em inexistência do ato, e portanto, não pode ser a cláusula considerada,
de plano, como inexistente ou não escrita. de plano, como inexistente ou não escrita.
Para Marcos Bernardes de Mello (2003, p. 96-100), ao sofrer a incidência Para Marcos Bernardes de Mello (2003, p. 96-100), ao sofrer a incidência
da norma jurídica, o fato/ato ingressa no mundo jurídico, adentrando o plano da da norma jurídica, o fato/ato ingressa no mundo jurídico, adentrando o plano da
existência; se existente, este fato/ato jurídico passará pelo crivo da perfeição ou existência; se existente, este fato/ato jurídico passará pelo crivo da perfeição ou
imperfeição (defeito no sujeito, objeto ou forma) do ato, vez que, se considerado imperfeição (defeito no sujeito, objeto ou forma) do ato, vez que, se considerado
perfeito, adentrará o plano da validade. Ingressando na seara das cláusulas abusi- perfeito, adentrará o plano da validade. Ingressando na seara das cláusulas abusi-
vas, a lesão que vicia o consentimento é causa de anulabilidade do negócio, e não vas, a lesão que vicia o consentimento é causa de anulabilidade do negócio, e não
de inexistência. Tal assertiva afigura-se correta, até porque o problema da lesão de inexistência. Tal assertiva afigura-se correta, até porque o problema da lesão
reside, não na inexistência da declaração de vontade, mas na falta de liberdade reside, não na inexistência da declaração de vontade, mas na falta de liberdade
contida nesta declaração, principalmente, em face aos contratos de adesão que contida nesta declaração, principalmente, em face aos contratos de adesão que
dominam a sociedade atual, onde o consumidor é muitas vezes motivado a con- dominam a sociedade atual, onde o consumidor é muitas vezes motivado a con-
tratar pela necessidade do bem, o que o faz concordar com algo que, em outras tratar pela necessidade do bem, o que o faz concordar com algo que, em outras
condições, não o faria. Note-se ainda que, segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodol­ condições, não o faria. Note-se ainda que, segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodol­
fo Pamplona Filho (2006, p. 372), para concepção da validade da declaração de fo Pamplona Filho (2006, p. 372), para concepção da validade da declaração de
O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas no CDC e a revisão de contratos 35 O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas no CDC e a revisão de contratos 35

vonta­de, é preciso reconhecer nela a conjugação dos princípios da autonomia da vonta­de, é preciso reconhecer nela a conjugação dos princípios da autonomia da
vontade e da b­ oa-fé. vontade e da b­ oa-fé.
A partir de tudo o quanto foi exposto, conclui-se que as cláusulas abusivas A partir de tudo o quanto foi exposto, conclui-se que as cláusulas abusivas
poderiam ser classificadas como atos anuláveis por nulidade relativa, dispensando poderiam ser classificadas como atos anuláveis por nulidade relativa, dispensando
o rótulo da nulidade de pleno direito equiparada à inexistência. A um, porque esta o rótulo da nulidade de pleno direito equiparada à inexistência. A um, porque esta
última dispensa de dilação probatória por não admitir prova em contrário, o que última dispensa de dilação probatória por não admitir prova em contrário, o que
não corresponde à realidade dos nossos tribunais, onde a fase instrutória ocorre de não corresponde à realidade dos nossos tribunais, onde a fase instrutória ocorre de
forma consistente, oportunizando ao réu a possibilidade de influenciar no conven- forma consistente, oportunizando ao réu a possibilidade de influenciar no conven-
cimento do magistrado, provando não ter havido a abusividade. O próprio CDC cimento do magistrado, provando não ter havido a abusividade. O próprio CDC
oportuniza este momento, quando prevê, no parágrafo 1º do art. 51, a presunção oportuniza este momento, quando prevê, no parágrafo 1º do art. 51, a presunção
de vantagem exagerada, cabendo ao fornecedor demonstrar que esta não ocorreu. de vantagem exagerada, cabendo ao fornecedor demonstrar que esta não ocorreu.
A dois, porque a nulidade absoluta pode ser decretada de ofício, o que não condiz A dois, porque a nulidade absoluta pode ser decretada de ofício, o que não condiz
com o texto do parágrafo 4º do mesmo artigo, que legitimam o consumidor e o com o texto do parágrafo 4º do mesmo artigo, que legitimam o consumidor e o
Ministério Público a propor ação declaratória de nulidade de cláusula contratual Ministério Público a propor ação declaratória de nulidade de cláusula contratual
quando não houver equilíbrio entre direitos e obrigações das partes. Segundo Pa- quando não houver equilíbrio entre direitos e obrigações das partes. Segundo Pa-
blo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2006, p. 440) a nulidade relativa blo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2006, p. 440) a nulidade relativa
(diferente da absoluta) não tem efeitos antes da coisa julgada e não poderá ser (diferente da absoluta) não tem efeitos antes da coisa julgada e não poderá ser
pronunciada de ofício, exigindo a provocação do judiciário. pronunciada de ofício, exigindo a provocação do judiciário.
Outrossim, pela atual redação do caput do citado artigo, havendo cláusula Outrossim, pela atual redação do caput do citado artigo, havendo cláusula
abusiva, estaríamos diante de um vício insanável que a fulminaria, sendo esta abusiva, estaríamos diante de um vício insanável que a fulminaria, sendo esta
considerada nula de pleno direito e “não escrita”, de acordo com a doutrina. considerada nula de pleno direito e “não escrita”, de acordo com a doutrina.
Thereza Christina Nahas (2002, p. 55, 93) afirma que, quando da ocorrência de Thereza Christina Nahas (2002, p. 55, 93) afirma que, quando da ocorrência de
uma situação fática que contrarie o sistema legal de proteção do CDC, pode o uma situação fática que contrarie o sistema legal de proteção do CDC, pode o
intérprete considerar esta cláusula como não escrita. Todo contrato que viole as intérprete considerar esta cláusula como não escrita. Todo contrato que viole as
normas do art. 51 do mesmo diploma legal, contém cláusulas nulas e conside- normas do art. 51 do mesmo diploma legal, contém cláusulas nulas e conside-
radas não escritas, devendo haver substituição automática das mesmas. Ousa-se radas não escritas, devendo haver substituição automática das mesmas. Ousa-se
discordar da posição da autora. discordar da posição da autora.
Inicialmente, vale salientar que a questão em tela é por demais tormentosa Inicialmente, vale salientar que a questão em tela é por demais tormentosa
na doutrina. A própria autora acima citada, a despeito de considerar o rol do art. na doutrina. A própria autora acima citada, a despeito de considerar o rol do art.
51 do CDC como causa de nulidade de pleno direito, a qual não admite prova em 51 do CDC como causa de nulidade de pleno direito, a qual não admite prova em
contrário, mais adiante, ao referir-se ao parágrafo 1º, que fala sobre vantagem contrário, mais adiante, ao referir-se ao parágrafo 1º, que fala sobre vantagem
excessiva, contradiz-se aduzindo tratar-se de uma “presunção relativa”, poden- excessiva, contradiz-se aduzindo tratar-se de uma “presunção relativa”, poden-
do o fornecedor fazer prova de que não obteve vantagem com o ato praticado. do o fornecedor fazer prova de que não obteve vantagem com o ato praticado.
(NAHAS, 2002, p. 118) Aliás, esta “vantagem excessiva” deve ser apurada pelo (NAHAS, 2002, p. 118) Aliás, esta “vantagem excessiva” deve ser apurada pelo
juiz em razão da natureza do negócio, do interesse das partes e das peculiaridades juiz em razão da natureza do negócio, do interesse das partes e das peculiaridades
do caso concreto, fatos estes que só podem chegar ao conhecimento do magistrado, do caso concreto, fatos estes que só podem chegar ao conhecimento do magistrado,
pela instrução probatória. pela instrução probatória.
Em segundo lugar, pode-se afirmar que o que não está escrito, em verdade, Em segundo lugar, pode-se afirmar que o que não está escrito, em verdade,
não está presente no mundo dos fatos e, portanto, não existe. Note-se que estamos não está presente no mundo dos fatos e, portanto, não existe. Note-se que estamos
no campo do direito material, o qual trabalha apenas com a existência no plano no campo do direito material, o qual trabalha apenas com a existência no plano
36 Flavia Marimpietri 36 Flavia Marimpietri

fático, diferente do direito processual que concebe a possibilidade da existência fático, diferente do direito processual que concebe a possibilidade da existência
processual, sem que haja existência fática ou física. Neste contexto, o que é nulo processual, sem que haja existência fática ou física. Neste contexto, o que é nulo
de pleno direito, podendo ser até considerado inexistente, não tem existência neste de pleno direito, podendo ser até considerado inexistente, não tem existência neste
mundo dos fatos, o que impossibilita sua revisão ou reavaliação. Tampouco ad- mundo dos fatos, o que impossibilita sua revisão ou reavaliação. Tampouco ad-
mite prova em contrário por ser considerada uma presunção absoluta ou juri et de mite prova em contrário por ser considerada uma presunção absoluta ou juri et de
juri, a qual dispensa dilação probatória, o que não ocorre na vida prática judicial. juri, a qual dispensa dilação probatória, o que não ocorre na vida prática judicial.
Outrossim, note-se que as nulidades instituídas a favor do consumidor não serão Outrossim, note-se que as nulidades instituídas a favor do consumidor não serão
decretadas quando provado o proveito da cláusula para o beneficiário. decretadas quando provado o proveito da cláusula para o beneficiário.
Caso se insista na questão da nulidade absoluta, o problema continua sem Caso se insista na questão da nulidade absoluta, o problema continua sem
solução no tocante à principiologia do CDC. Sendo a nulidade insanável e abso- solução no tocante à principiologia do CDC. Sendo a nulidade insanável e abso-
luta, não seria possível a compatibilização destas nulidades com o princípio da luta, não seria possível a compatibilização destas nulidades com o princípio da
conservação dos contratos e revisão dos mesmos, uma vez que o CDC classifica conservação dos contratos e revisão dos mesmos, uma vez que o CDC classifica
como nulas de pleno direito as cláusulas apostas no art. 51, equiparando a doutrina como nulas de pleno direito as cláusulas apostas no art. 51, equiparando a doutrina
estas nulidades à inexistência. Ora, repita-se que o que não está escrito no contrato, estas nulidades à inexistência. Ora, repita-se que o que não está escrito no contrato,
não pode ser revisto, pois jamais chegou a ser visto ou existente. Por exemplo, não pode ser revisto, pois jamais chegou a ser visto ou existente. Por exemplo,
quando, no decorrer de um contrato, uma cláusula torne-se excessivamente onerosa quando, no decorrer de um contrato, uma cláusula torne-se excessivamente onerosa
para uma das partes, é possível sua revisão para o ajuste da essência do pacto, o para uma das partes, é possível sua revisão para o ajuste da essência do pacto, o
que não quer dizer que tal cláusula tenha, antes do aparecimento deste excesso que não quer dizer que tal cláusula tenha, antes do aparecimento deste excesso
de onerosidade, sido viciada ou nula, tampouco inexistente. de onerosidade, sido viciada ou nula, tampouco inexistente.

3. Diversidade de sanções 3. Diversidade de sanções


Outro interessante problema surge quando o legislador prevê em um mesmo Outro interessante problema surge quando o legislador prevê em um mesmo
artigo e um só tipo de sanção (nulidade de pleno direito) para situações fáticas artigo e um só tipo de sanção (nulidade de pleno direito) para situações fáticas
diversas, que comportam respostas jurídicas também diversas. Dois exemplos são diversas, que comportam respostas jurídicas também diversas. Dois exemplos são
fornecidos por Ruy Rosado de Aguiar Jr. (2006, p. 21-22) extraídos dos incisos fornecidos por Ruy Rosado de Aguiar Jr. (2006, p. 21-22) extraídos dos incisos
do art. 51 do CDC: do art. 51 do CDC:
a) O inciso III, que transfere responsabilidades para terceiros, traz vício a) O inciso III, que transfere responsabilidades para terceiros, traz vício
aparente onde a prova literal está no próprio instrumento contratual. A despeito aparente onde a prova literal está no próprio instrumento contratual. A despeito
da penalidade de nulidade ser de pleno direito, esta nulidade in casu pode ser da penalidade de nulidade ser de pleno direito, esta nulidade in casu pode ser
afastada se, na situação concreta, ocorrer benefício para o consumidor. Sendo afastada se, na situação concreta, ocorrer benefício para o consumidor. Sendo
norma-objetivo, esta norma visa a proteção dos interesses econômicos do consu- norma-objetivo, esta norma visa a proteção dos interesses econômicos do consu-
midor conforme art. 4º do CDC, onde a sanção de invalidade serve para proteger midor conforme art. 4º do CDC, onde a sanção de invalidade serve para proteger
o mesmo dos defeitos extrínsecos do contrato. Ora, se a despeito deste defeito, o mesmo dos defeitos extrínsecos do contrato. Ora, se a despeito deste defeito,
nenhum prejuízo atingiu o consumidor, demonstrada a utilidade e o benefício nenhum prejuízo atingiu o consumidor, demonstrada a utilidade e o benefício
aferido pelo contrato, não há de prevalecer a nulidade. aferido pelo contrato, não há de prevalecer a nulidade.
b) Os incisos IV (cláusulas incompatíveis com a boa-fé) e o XV (violem o b) Os incisos IV (cláusulas incompatíveis com a boa-fé) e o XV (violem o
sistema de defesa do consumidor), a despeito de serem consideradas pelo caput sistema de defesa do consumidor), a despeito de serem consideradas pelo caput
nulas de pleno direito (o que dispensaria a dilação probatória), necessitam de nulas de pleno direito (o que dispensaria a dilação probatória), necessitam de
confronto com provas e análise das circunstâncias fáticas do contrato. Ademais, confronto com provas e análise das circunstâncias fáticas do contrato. Ademais,
a nulidade como está posta pelo artigo não comporta sanação, o que não ocorre de a nulidade como está posta pelo artigo não comporta sanação, o que não ocorre de
O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas no CDC e a revisão de contratos 37 O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas no CDC e a revisão de contratos 37

fato. Os incisos citados visam proteger o princípio da equivalência contratual, e fato. Os incisos citados visam proteger o princípio da equivalência contratual, e
por isso, admitem intervenção judicial para ajuste. Logo, uma vez restabelecidas por isso, admitem intervenção judicial para ajuste. Logo, uma vez restabelecidas
a equidade e a boa-fé, não há razão para o reconhecimento da nulidade vez que o a equidade e a boa-fé, não há razão para o reconhecimento da nulidade vez que
vício desapareceu. o vício desapareceu.

4. O sistema de nulidades do art. 51 do CDC 4. O sistema de nulidades do art. 51 do CDC


Sobre o sistema de nulidades aposto neste artigo, a despeito da confusão gerada Sobre o sistema de nulidades aposto neste artigo, a despeito da confusão gerada
pela terminologia aplicada, aduz Cristiano Heineck Schmitt (2006, p. 127-136) que pela terminologia aplicada, aduz Cristiano Heineck Schmitt (2006, p. 127-136) que
o diploma consumerista utilizou mal a expressão “nulidade de pleno direito”, uma o diploma consumerista utilizou mal a expressão “nulidade de pleno direito”, uma
vez que esta terminologia traduz um “exagero”. Isto porque a expressão só pode vez que esta terminologia traduz um “exagero”. Isto porque a expressão só pode
ter sido usada na tentativa de reforçar o caráter de gravidade do defeito presente, ter sido usada na tentativa de reforçar o caráter de gravidade do defeito presente,
e não no sentido técnico jurídico que dispensa a dilação probatória judicial em e não no sentido técnico jurídico que dispensa a dilação probatória judicial em
função de uma presunção absoluta, pois esta dilação é essencial para atividade função de uma presunção absoluta, pois esta dilação é essencial para atividade
hermenêutica do intérprete e para o seu convencimento. A solução trazida à baila hermenêutica do intérprete e para o seu convencimento. A solução trazida à baila
estaria na combinação dos arts. 1º e 51 do CDC, no sentido de demonstrar a opção estaria na combinação dos arts. 1º e 51 do CDC, no sentido de demonstrar a opção
legislativa pela nulidade insanável, o que não resolve o problema. legislativa pela nulidade insanável, o que não resolve o problema.
A doutrina contudo, não é pacífica neste tocante. Posição inovadora é proposta A doutrina contudo, não é pacífica neste tocante. Posição inovadora é proposta
por Nélson Nery Jr., com a qual, apesar de diferenciada, não se concorda,com a devi- por Nélson Nery Jr., com a qual, apesar de diferenciada, não se concorda,com a devi-
da vênia. Para este autor, as nulidades previstas no CDC teriam criado um “sistema da vênia. Para este autor, as nulidades previstas no CDC teriam criado um “sistema
próprio”, diferente do sistema geral previsto pelo direito civil e processual civil próprio”, diferente do sistema geral previsto pelo direito civil e processual civil
(GRINOVER, 1999, p. 490-491). Tal assertiva não afigura-se correta, pois tal (GRINOVER, 1999, p. 490-491). Tal assertiva não afigura-se correta, pois tal
conclusão fundada na alegação de que o sistema de nulidades varia de acordo conclusão fundada na alegação de que o sistema de nulidades varia de acordo
com cada ramo do direito, não possui sustentação jurídica; pensa-se que a teoria com cada ramo do direito, não possui sustentação jurídica; pensa-se que a teoria
das nulidades é uma e pertencente ao ramo da teoria geral do direito, podendo das nulidades é uma e pertencente ao ramo da teoria geral do direito, podendo
ser adaptada às vicissitudes de cada sub-ramo do direito, a exemplo do direito de ser adaptada às vicissitudes de cada sub-ramo do direito, a exemplo do direito de
família, comercial, tributário etc. Para Ruy Rosado de Aguiar Jr. (2006, p. 20-24), família, comercial, tributário etc. Para Ruy Rosado de Aguiar Jr. (2006, p. 20-24),
não há razão para descartar a classificação proposta pela teoria geral do direito não há razão para descartar a classificação proposta pela teoria geral do direito
e criação de um novo sistema de nulidades para o CDC, devendo, portanto, as e criação de um novo sistema de nulidades para o CDC, devendo, portanto, as
chamadas “nulidades de pleno direito” do art. 51, ser encaixadas no conceito de chamadas “nulidades de pleno direito” do art. 51, ser encaixadas no conceito de
nulidades trazido pelo Código Civil. Parece-nos que o sistema consumerista (prin­ nulidades trazido pelo Código Civil. Parece-nos que o sistema consumerista (prin­
cipalmente em face ao princípio da conservação dos contratos), visa a correção dos cipalmente em face ao princípio da conservação dos contratos), visa a correção dos
defeitos por meio de intervenção judicial equilibrada, a qual irá expurgar o vício defeitos por meio de intervenção judicial equilibrada, a qual irá expurgar o vício
e ajustar o contrato aos princípios e regras conformadores do sistema. e ajustar o contrato aos princípios e regras conformadores do sistema.
Ademais, o esquema da inexistência, validade e eficácia do ato jurídico é uno Ademais, o esquema da inexistência, validade e eficácia do ato jurídico é uno
e pertencente à teoria geral do direito, o que significa que comporta adaptações e pertencente à teoria geral do direito, o que significa que comporta adaptações
em função das diversas áreas do direito, mas não cria um novo sistema de nuli- em função das diversas áreas do direito, mas não cria um novo sistema de nuli-
dades para cada ramo, muito menos, para cada sub-ramo, como o microssistema dades para cada ramo, muito menos, para cada sub-ramo, como o microssistema
de consumo. A despeito do texto legal do art. 51 do CDC que prevê a nulidade de consumo. A despeito do texto legal do art. 51 do CDC que prevê a nulidade
de pleno direito das cláusulas abusivas, Nélson Nery Jr. (GRINOVER, 1999, p. de pleno direito das cláusulas abusivas, Nélson Nery Jr. (GRINOVER, 1999, p.
490-491), chega a dizer que o aludido diploma legal afastou o sistema de nulidades 490-491), chega a dizer que o aludido diploma legal afastou o sistema de nulidades
38 Flavia Marimpietri 38 Flavia Marimpietri

do código civil, superando a dicotomia entre nulidades relativas e absolutas. do código civil, superando a dicotomia entre nulidades relativas e absolutas.
Indaga-se, contudo, com que substrato jurídico chegou-se a tal conclusão de que Indaga-se, contudo, com que substrato jurídico chegou-se a tal conclusão de que
o sistema de nulidades vigente no macrossistema do direito civil estaria afastado o sistema de nulidades vigente no macrossistema do direito civil estaria afastado
dentro do seu microssistema de consumo? dentro do seu microssistema de consumo?
Para Cláudia Lima Marques (2003b, p. 92), o caminho seria o “diálogo das Para Cláudia Lima Marques (2003b, p. 92), o caminho seria o “diálogo das
fontes”. Vale dizer que, a base conceitual do Código Civil, pode ser integrada ao fontes”. Vale dizer que, a base conceitual do Código Civil, pode ser integrada ao
CDC, para dar conteúdo a conceitos postos de maneira aberta. Assim, podemos CDC, para dar conteúdo a conceitos postos de maneira aberta. Assim, podemos
concluir que o sistema de nulidades não é definido pelo CDC, e sim, por definição concluir que o sistema de nulidades não é definido pelo CDC, e sim, por definição
atualizada pelo novo Código Civil de 2002. atualizada pelo novo Código Civil de 2002.
Pensa-se que importante caminho pode ser analisado e construído a partir Pensa-se que importante caminho pode ser analisado e construído a partir
do pensamento do processualista Galeno Velhinho Lacerda (1976). Seu modelo do pensamento do processualista Galeno Velhinho Lacerda (1976). Seu modelo
aplicado às nulidades processuais pode ser transposto para a seara material, na aplicado às nulidades processuais pode ser transposto para a seara material, na
qualidade de vetor hermenêutico na interpretação das nulidades colacionadas no qualidade de vetor hermenêutico na interpretação das nulidades colacionadas no
art. 51 do CDC. A questão da invalidade estaria resumida em três categorias: as art. 51 do CDC. A questão da invalidade estaria resumida em três categorias: as
nulidades absolutas, que ocorrem quando há infração a normas cogentes com fins nulidades absolutas, que ocorrem quando há infração a normas cogentes com fins
prevalecentes públicos; as nulidades relativas, que ocorrem por infração a normas prevalecentes públicos; as nulidades relativas, que ocorrem por infração a normas
cogentes, mas erigidas preponderantemente para o interesse da parte; por fim, as cogentes, mas erigidas preponderantemente para o interesse da parte; por fim, as
anulabilidades que ocorrem por infração a normas dispositivas construídas prefe- anulabilidades que ocorrem por infração a normas dispositivas construídas prefe-
rencialmente no interesse da parte. As nulidades absolutas são insanáveis, enquanto rencialmente no interesse da parte. As nulidades absolutas são insanáveis, enquanto
que, para as nulidades relativas e anulabilidades, o juiz pode agir de ofício para que, para as nulidades relativas e anulabilidades, o juiz pode agir de ofício para
impulsionar sua sanação. Para o entendimento do regime de nulidades, o citado impulsionar sua sanação. Para o entendimento do regime de nulidades, o citado
autor propõe a idéia de um “sobredireito” – interpretação teleológica das normas, autor propõe a idéia de um “sobredireito” – interpretação teleológica das normas,
dando prevalência àquelas que sufragam, em si mesmas, valores superiores. dando prevalência àquelas que sufragam, em si mesmas, valores superiores.
Em outras palavras, seria a aplicação de regras e princípios maiores que po- Em outras palavras, seria a aplicação de regras e princípios maiores que po-
deriam revogar ou suprimir a incidência de regras menores, propondo assim, um deriam revogar ou suprimir a incidência de regras menores, propondo assim, um
modelo onde as nulidades quando menores que o valor a ser atingido pelo ato, modelo onde as nulidades quando menores que o valor a ser atingido pelo ato,
possam ser relativizadas ou suprimidas, se o fim foi alcançado. Vale dizer que, possam ser relativizadas ou suprimidas, se o fim foi alcançado. Vale dizer que,
se a despeito de ser taxada como nula de pleno direito, uma cláusula tida como se a despeito de ser taxada como nula de pleno direito, uma cláusula tida como
abusiva pode ser modificada pelo juiz espancando o abuso ou, se beneficiou o abusiva pode ser modificada pelo juiz espancando o abuso ou, se beneficiou o
consumidor no caso concreto, não há motivos para ser anulada. consumidor no caso concreto, não há motivos para ser anulada.

5. CONCLUSÃO 5. CONCLUSÃO
Em suma, observa-se que o legislador não foi feliz com a expressão “nulidade Em suma, observa-se que o legislador não foi feliz com a expressão “nulidade
de pleno direito”, uma vez que não se trata disto. Melhor seria se, no caput do de pleno direito”, uma vez que não se trata disto. Melhor seria se, no caput do
art. 51 do CDC, ele vedasse as cláusulas abusivas e impusesse às mesmas a art. 51 do CDC, ele vedasse as cláusulas abusivas e impusesse às mesmas a
sanção da nulidade relativa. Desta forma, a cláusula seria inválida e ineficaz em sanção da nulidade relativa. Desta forma, a cláusula seria inválida e ineficaz em
virtude da abusividade, o que permitiria ao magistrado uma revisão da citada virtude da abusividade, o que permitiria ao magistrado uma revisão da citada
cláusula, para espancar esta abusividade, mantendo a essência do contrato, o que, cláusula, para espancar esta abusividade, mantendo a essência do contrato, o que,
aliás, é um dos objetivos da legislação consumerista – a conservação dos pactos. aliás, é um dos objetivos da legislação consumerista – a conservação dos pactos.
O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas no CDC e a revisão de contratos 39 O Sistema de Nulidades das cláusulas abusivas no CDC e a revisão de contratos 39

Quando da reformulação da cláusula, a validade e a eficácia do contrato teriam Quando da reformulação da cláusula, a validade e a eficácia do contrato teriam
plena operatividade. plena operatividade.

6. REFERÊNCIAS 6. REFERÊNCIAS
AGUIAR JR., Ruy Rosado de. “A boa-fé na relação de consumo”. Revista de Direito do AGUIAR JR., Ruy Rosado de. “A boa-fé na relação de consumo”. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo, v. 14, 1995. Consumidor, São Paulo, v. 14, 1995.
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Alegre: Livraria do Advogado: Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, Alegre: Livraria do Advogado: Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor,
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LYRA JUNIOR, Eduardo Messias Gonçalves de (Coords.). A teoria do contrato e o LYRA JUNIOR, Eduardo Messias Gonçalves de (Coords.). A teoria do contrato e o
novo Código Civil. Recife: Nossa Livraria, 2003. novo Código Civil. Recife: Nossa Livraria, 2003.
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ALVES, Jones Figueirêdo. Novo Código Civil: questões controvertidas no direito das ALVES, Jones Figueirêdo. Novo Código Civil: questões controvertidas no direito das
obrigações e dos contratos. São Paulo: Método, 2005. v. 4. (Séries Grandes Temas obrigações e dos contratos. São Paulo: Método, 2005. v. 4. (Séries Grandes Temas
de Direito Privado). de Direito Privado).
BONATTO, Cláudio e MORAES, Paulo Valério. Questões Controvertidas no Código de BONATTO, Cláudio e MORAES, Paulo Valério. Questões Controvertidas no Código de
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CARVALHO JR., Pedro Lino. A lesão consumeirista no direito brasileiro. Rio de Janeiro: CARVALHO JR., Pedro Lino. A lesão consumeirista no direito brasileiro. Rio de Janeiro:
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MARIMPIETRI, Flavia. Direito Material do Consumidor. Salvador: Endoquality, 2001. MARIMPIETRI, Flavia. Direito Material do Consumidor. Salvador: Endoquality, 2001.
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RT, 2003a. RT, 2003a.
______. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2004. v. 1. (Bi- ______. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2004. v. 1. (Bi-
blioteca de Direito do Consumidor). blioteca de Direito do Consumidor).
40 Flavia Marimpietri 40 Flavia Marimpietri

______. “Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: o ‘diá- ______. “Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: o ‘diá-
logo das fontes’ no combate às cláusulas abusivas”. Revista de Direito do Consumidor, logo das fontes’ no combate às cláusulas abusivas”. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, n. 45, p. X-Y, 2003b. São Paulo, n. 45, p. X-Y, 2003b.
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et al. Código brasileiro de defesa do consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1999. et al. Código brasileiro de defesa do consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às
nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2005. nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. São Paulo: SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. São Paulo:
RT, 200. v. 27. (Biblioteca de Direito do Consumidor). RT, 200. v. 27. (Biblioteca de Direito do Consumidor).
SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança
e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
Capítulo III Capítulo III
O Recurso Extraordinário O Recurso Extraordinário
e a ­transformação do Controle Difuso e a ­transformação do Controle Difuso
de Constitucionalidade no Direito de Constitucionalidade no Direito
­Brasileiro ­Brasileiro
Fredie Didier Jr.* Fredie Didier Jr.*

Sumário • 1. Nota introdutória – 2. A criatividade judicial e a ratio decidendi – 3. A “objetivação” Sumário • 1. Nota introdutória – 2. A criatividade judicial e a ratio decidendi – 3. A “objetivação”
do recurso extraordinário. do recurso extraordinário.

1. Nota introdutória 1. Nota introdutória


O objetivo deste ensaio é o de demonstrar a transformação do controle difuso O objetivo deste ensaio é o de demonstrar a transformação do controle difuso
de constitucionalidade no direito brasileiro, notadamente quando realizado por de constitucionalidade no direito brasileiro, notadamente quando realizado por
meio do recurso extraordinário. meio do recurso extraordinário.
A idéia é a seguinte: o controle, embora difuso, quando feito pelo STF (Pleno) A idéia é a seguinte: o controle, embora difuso, quando feito pelo STF (Pleno)
tem força para vincular os demais órgãos do Poder Judiciário, assemelhando-se, tem força para vincular os demais órgãos do Poder Judiciário, assemelhando-se,
nesta eficácia, ao controle concentrado de constitucionalidade. nesta eficácia, ao controle concentrado de constitucionalidade.
Aos argumentos, pois. Aos argumentos, pois.

2. A criatividade judicial e a ratio decidendi 2. A criatividade judicial e a ratio decidendi


O fenômeno de atuação dos enunciados normativos no plano social comporta O fenômeno de atuação dos enunciados normativos no plano social comporta
três momentos distintos1: (i) o da formulação abstrata dos preceitos normativos; (ii) três momentos distintos1: (i) o da formulação abstrata dos preceitos normativos; (ii)
o da definição da norma para o caso concreto; (iii) o da execução da norma o da definição da norma para o caso concreto; (iii) o da execução da norma
­individuali­zada. ­individuali­zada.
O primeiro momento (formulação abstrata dos preceitos normativos) é tarefa O primeiro momento (formulação abstrata dos preceitos normativos) é tarefa
que cabe exclusivamente ao Estado. Já a definição da norma concreta (a identi- que cabe exclusivamente ao Estado. Já a definição da norma concreta (a identi-
ficação da norma individualizada que se formou, concretamente, pela incidência ficação da norma individualizada que se formou, concretamente, pela incidência

* Mestre (UFBA) e Doutor (PUC/SP). Professor-Adjunto da Faculdade de Direito da Universida- * Mestre (UFBA) e Doutor (PUC/SP). Professor-Adjunto da Faculdade de Direito da Universida-
de Federal da Bahia (graduação, especialização, mestrado e doutorado). Advogado e consultor de Federal da Bahia (graduação, especialização, mestrado e doutorado). Advogado e consultor
jurídico. www.frediedidier.com.br jurídico. www.frediedidier.com.br
1. Baseado em ZAVASCKI, Teori Albino. “Sentenças declaratórias, sentenças condenatórias e efi- 1. Baseado em ZAVASCKI, Teori Albino. “Sentenças declaratórias, sentenças condenatórias e efi-
cácia executiva dos julgados”, in Leituras complementares de processo civil. 3 ed. Fredie Didier cácia executiva dos julgados”, in Leituras complementares de processo civil. 3 ed. Fredie Didier
Jr. (org.). Salvador: Edições JusPodivm, 2005, p. 24 e seguintes. Jr. (org.). Salvador: Edições JusPodivm, 2005, p. 24 e seguintes.
42 Fredie Didier Jr. 42 Fredie Didier Jr.

da norma abstrata), bem como a sua execução (transformação efetiva em fatos e da norma abstrata), bem como a sua execução (transformação efetiva em fatos e
comportamentos) são atividades que não demandam, necessariamente, atuação comportamentos) são atividades que não demandam, necessariamente, atuação
estatal. estatal.
Ao comprar uma revista numa banca, os sujeitos já identificam a norma ju- Ao comprar uma revista numa banca, os sujeitos já identificam a norma ju-
rídica individualizada (referente ao contrato de compra e venda), que é a que vai rídica individualizada (referente ao contrato de compra e venda), que é a que vai
reger a sua relação jurídica; se o pagamento é feito e a coisa é entregue, ali já se reger a sua relação jurídica; se o pagamento é feito e a coisa é entregue, ali já se
promove a execução da norma individualizada. Tudo isso espontaneamente, sem promove a execução da norma individualizada. Tudo isso espontaneamente, sem
necessidade de atuação e­ statal. necessidade de atuação e­ statal.
Quando, porém, a definição da norma individualizada ou a sua execução não Quando, porém, a definição da norma individualizada ou a sua execução não
se desenvolvem voluntariamente, há necessidade de intervenção estatal, o que se se desenvolvem voluntariamente, há necessidade de intervenção estatal, o que se
dá através da atuação do Estado-juiz – salvo, obviamente, se as partes submetem dá através da atuação do Estado-juiz – salvo, obviamente, se as partes submetem
a definição desta norma individualizada à arbitragem, ou se trata de caso em que a definição desta norma individualizada à arbitragem, ou se trata de caso em que
se admite a autotutela. Por exemplo: num acidente de trânsito, os envolvidos se admite a autotutela. Por exemplo: num acidente de trânsito, os envolvidos
atribuem um ao outro a culpa pela superveniência da colisão, ou simplesmente atribuem um ao outro a culpa pela superveniência da colisão, ou simplesmente
discutem sobre os danos efetivamente causados. Aquele fato da vida ocorreu, discutem sobre os danos efetivamente causados. Aquele fato da vida ocorreu,
sofreu incidência da norma jurídica abstrata, o que lhe atribuiu aptidão para gerar sofreu incidência da norma jurídica abstrata, o que lhe atribuiu aptidão para gerar
efeitos jurídicos. Só que um dos sujeitos enxerga a norma individualizada de uma efeitos jurídicos. Só que um dos sujeitos enxerga a norma individualizada de uma
forma e o outro, de outra. Controvertem, pois, quanto à sua identificação. Surgi- forma e o outro, de outra. Controvertem, pois, quanto à sua identificação. Surgi-
da esta crise de identificação, o Poder Judiciário, mediante atividade cognitiva, da esta crise de identificação, o Poder Judiciário, mediante atividade cognitiva,
definirá, por sentença – palavra aqui utilizada em sentido amplo –, o conteúdo da definirá, por sentença – palavra aqui utilizada em sentido amplo –, o conteúdo da
norma jurídica individualizada, indicando os elementos da relação jurídica dela norma jurídica individualizada, indicando os elementos da relação jurídica dela
decorrente, seus sujeitos e seu objeto. decorrente, seus sujeitos e seu objeto.
Daí se dizer que a sentença é um ato jurídico que contém uma norma jurídica Daí se dizer que a sentença é um ato jurídico que contém uma norma jurídica
individualizada, ou simplesmente norma individual, definida pelo Poder Judiciário, individualizada, ou simplesmente norma individual, definida pelo Poder Judiciário,
que se diferencia das demais normas jurídicas (leis, por exemplo) em razão da que se diferencia das demais normas jurídicas (leis, por exemplo) em razão da
possibilidade de tornar-se indiscutível pela coisa julgada material. possibilidade de tornar-se indiscutível pela coisa julgada material.
Para a formulação dessa norma jurídica individualizada, contudo, não basta Para a formulação dessa norma jurídica individualizada, contudo, não basta
que o juiz promova, pura e simplesmente, a aplicação da norma geral e abstrata que o juiz promova, pura e simplesmente, a aplicação da norma geral e abstrata
ao caso concreto. Em virtude do chamado pós-positivismo que caracteriza o atual ao caso concreto. Em virtude do chamado pós-positivismo que caracteriza o atual
Estado constitucional, exige-se do juiz uma postura muito mais ativa, cumprindo- Estado constitucional, exige-se do juiz uma postura muito mais ativa, cumprindo-
lhe compreender as particularidades do caso concreto e encontrar, na norma geral e lhe compreender as particularidades do caso concreto e encontrar, na norma geral e
abstrata, uma solução que esteja em conformidade com as disposições e princípios abstrata, uma solução que esteja em conformidade com as disposições e princípios
constitucionais, bem assim com os direitos fundamentais. Toda decisão judicial constitucionais, bem assim com os direitos fundamentais. Toda decisão judicial
deve ser resultado de uma interpretação do texto normativo de acordo com os deve ser resultado de uma interpretação do texto normativo de acordo com os
direitos fundamentais (dimensão objetiva dos direitos fundamentais). Em outras direitos fundamentais (dimensão objetiva dos direitos fundamentais). Em outras
palavras, o princípio da supremacia da lei, amplamente influenciado pelos valores palavras, o princípio da supremacia da lei, amplamente influenciado pelos valores
do Estado liberal, que enxergava na atividade legislativa algo perfeito e acabado, do Estado liberal, que enxergava na atividade legislativa algo perfeito e acabado,
atualmente deve ceder espaço à crítica judicial, no sentido de que o magistrado, atualmente deve ceder espaço à crítica judicial, no sentido de que o magistrado,
necessariamente, deve dar à norma geral e abstrata aplicável ao caso concreto necessariamente, deve dar à norma geral e abstrata aplicável ao caso concreto
uma interpretação conforme a Constituição, sobre ela exercendo o controle de uma interpretação conforme a Constituição, sobre ela exercendo o controle de
O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 43 O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 43

constitucionalidade se for necessário, bem como viabilizando a melhor forma de constitucionalidade se for necessário, bem como viabilizando a melhor forma de
tutelar os direitos fundamentais2. tutelar os direitos fundamentais2.
Quando o juiz dá uma interpretação à lei conforme à Constituição ou a re- Quando o juiz dá uma interpretação à lei conforme à Constituição ou a re-
puta inconstitucional, ele cria uma norma jurídica para justificar a sua decisão. A puta inconstitucional, ele cria uma norma jurídica para justificar a sua decisão. A
expressão “norma jurídica” aqui é utilizada num sentido distinto daquele utilizado expressão “norma jurídica” aqui é utilizada num sentido distinto daquele utilizado
linhas atrás. Não se está referindo aqui à norma jurídica individualizada (norma linhas atrás. Não se está referindo aqui à norma jurídica individualizada (norma
individual) contida no dispositivo da decisão, mas à norma jurídica entendida como individual) contida no dispositivo da decisão, mas à norma jurídica entendida como
resultado da interpretação do texto da lei e do controle de constitucionalidade resultado da interpretação do texto da lei e do controle de constitucionalidade
exercido pelo magistrado. exercido pelo magistrado.
Como se disse, ao se deparar com os fatos da causa, o juiz deve compreender Como se disse, ao se deparar com os fatos da causa, o juiz deve compreender
o seu sentido, a fim de poder observar qual a lei que se lhes aplica. Identificada o seu sentido, a fim de poder observar qual a lei que se lhes aplica. Identificada
a lei aplicável, ela deve ser conformada à Constituição através das técnicas de a lei aplicável, ela deve ser conformada à Constituição através das técnicas de
interpretação conforme, de controle de constitucionalidade em sentido estrito e de interpretação conforme, de controle de constitucionalidade em sentido estrito e de
balanceamento dos direitos fundamentais (princípio da proporcionalidade). balanceamento dos direitos fundamentais (princípio da proporcionalidade).
Nesse sentido, o julgador cria uma norma jurídica (= norma legal conformada Nesse sentido, o julgador cria uma norma jurídica (= norma legal conformada
à norma constitucional) que vai servir de fundamento jurídico para a decisão a ser à norma constitucional) que vai servir de fundamento jurídico para a decisão a ser
tomada na parte dispositiva do pronunciamento. É nessa parte dispositiva que se tomada na parte dispositiva do pronunciamento. É nessa parte dispositiva que se
contém a norma jurídica individualizada, ou simplesmente norma individual (= contém a norma jurídica individualizada, ou simplesmente norma individual (=
definição da norma para o caso concreto; solução da crise de identificação). definição da norma para o caso concreto; solução da crise de identificação).
A norma jurídica criada e contida na fundamentação do julgado compõe o A norma jurídica criada e contida na fundamentação do julgado compõe o
que se chama de ratio decidendi, tema que será abordado mais adiante. Trata-se que se chama de ratio decidendi, tema que será abordado mais adiante. Trata-se
de “norma jurídica criada diante do caso concreto, mas não uma norma individual de “norma jurídica criada diante do caso concreto, mas não uma norma individual
que regula o caso concreto”3, que, por indução, pode passar a funcionar como que regula o caso concreto”3, que, por indução, pode passar a funcionar como
regra geral, a ser invocada como precedente judicial em outras situações. “Ou regra geral, a ser invocada como precedente judicial em outras situações. “Ou
seja, há necessidade de distinguir a cristalização da interpretação e do controle seja, há necessidade de distinguir a cristalização da interpretação e do controle
de constitucionalidade da criação de uma norma individual que, particularizando de constitucionalidade da criação de uma norma individual que, particularizando
a norma geral, é voltada especificamente à regulação de um caso concreto”4. a norma geral, é voltada especificamente à regulação de um caso concreto”4.
Assim, de acordo com a lição de Luiz Guilherme Marinoni, “se nas teorias Assim, de acordo com a lição de Luiz Guilherme Marinoni, “se nas teorias
clássicas o juiz apenas declarava a lei ou criava a norma individual a partir da clássicas o juiz apenas declarava a lei ou criava a norma individual a partir da
norma geral, agora ele constrói a norma jurídica a partir da interpretação de acordo norma geral, agora ele constrói a norma jurídica a partir da interpretação de acordo
com a Constituição, do controle da constitucionalidade e da adoção da regra do com a Constituição, do controle da constitucionalidade e da adoção da regra do
balanceamento (ou da regra da proporcionalidade em sentido estrito) dos direitos balanceamento (ou da regra da proporcionalidade em sentido estrito) dos direitos
fundamentais no caso concreto”5. fundamentais no caso concreto”5.

2. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. São Paulo: RT,
2006, v. 1, p. 90-97. 2006, v. 1, p. 90-97.
3. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo, cit., v. 1, p. 97. 3. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo, cit., v. 1, p. 97.
4. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo, cit., v. 1, p. 97. 4. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo, cit., v. 1, p. 97.
5. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo, cit., v. 1, p. 99. 5. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo, cit., v. 1, p. 99.
44 Fredie Didier Jr. 44 Fredie Didier Jr.

Pois bem. Pois bem.


No conteúdo da fundamentação, é preciso distinguir o que é a ratio decidendi No conteúdo da fundamentação, é preciso distinguir o que é a ratio decidendi
e o que é obiter dictum. e o que é obiter dictum.
A ratio decidendi são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; A ratio decidendi são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão;
a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido
proferida como foi; trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgador no caso proferida como foi; trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgador no caso
concreto. “A ratio decidendi (...) constitui a essência da tese jurídica suficiente concreto. “A ratio decidendi (...) constitui a essência da tese jurídica suficiente
para decidir o caso concreto (rule of law)”6. para decidir o caso concreto (rule of law)”6.
“Para a correta inferência da ratio decidendi, propõe-se uma operação mental, “Para a correta inferência da ratio decidendi, propõe-se uma operação mental,
mediante a qual, invertendo-se o teor do núcleo decisório, se indaga se a conclusão mediante a qual, invertendo-se o teor do núcleo decisório, se indaga se a conclusão
permaneceria a mesma, se o juiz tivesse acolhido a regra invertida. Se a decisão permaneceria a mesma, se o juiz tivesse acolhido a regra invertida. Se a decisão
ficar mantida, então a tese originária não pode ser considerada ratio decidendi; ficar mantida, então a tese originária não pode ser considerada ratio decidendi;
caso contrário, a resposta será positiva” 7. caso contrário, a resposta será positiva” 7.

Já o obiter dictum (obiter dicta, no plural) consiste nos argumentos que são Já o obiter dictum (obiter dicta, no plural) consiste nos argumentos que são
expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos
acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que
não tenha influência relevante e substancial para a decisão (“prescindível para o não tenha influência relevante e substancial para a decisão (“prescindível para o
deslinde da controvérsia”8), sendo apenas algo que se fez constar “de passagem”, deslinde da controvérsia”8), sendo apenas algo que se fez constar “de passagem”,
não podendo ser utilizado com força vinculativa por não ter sido determinante não podendo ser utilizado com força vinculativa por não ter sido determinante
para a decisão. para a decisão.
Essa distinção é muito relevante para o estudo (i) da força vinculativa dos Essa distinção é muito relevante para o estudo (i) da força vinculativa dos
preceden­tes judiciais, assunto que ganhou importância por conta da adoção da preceden­tes judiciais, assunto que ganhou importância por conta da adoção da
“súmula vinculante” em matéria constitucional (art. 103-A, CF/88, e Lei Federal “súmula vinculante” em matéria constitucional (art. 103-A, CF/88, e Lei Federal
n. 11.417/2006), (ii) do valor que se tem atribuído aos enunciados consagrados em n. 11.417/2006), (ii) do valor que se tem atribuído aos enunciados consagrados em
súmula dos tribunais (arts. 475, § 3º, 518, § 1º, 544, § 3º, 557 etc., todos do CPC), (iii) súmula dos tribunais (arts. 475, § 3º, 518, § 1º, 544, § 3º, 557 etc., todos do CPC), (iii)
da possibilidade de julgamento liminar de causas repetitivas (art. 285-A, CPC), da possibilidade de julgamento liminar de causas repetitivas (art. 285-A, CPC),
(iv) da admissibilidade do incidente de uniformização de jurisprudência (arts. 476 (iv) da admissibilidade do incidente de uniformização de jurisprudência (arts. 476
a 479, CPC), (v) dos recursos que têm por objetivo uniformizar a jurisprudência a 479, CPC), (v) dos recursos que têm por objetivo uniformizar a jurisprudência
com base em precedentes judiciais, tais como os embargos de divergência (art. com base em precedentes judiciais, tais como os embargos de divergência (art.
546, CPC) e o recurso especial fundado em divergência (art. 105, III, “c”, CF) (vi) 546, CPC) e o recurso especial fundado em divergência (art. 105, III, “c”, CF) (vi)
do estudo do incidente de exame por amostragem da ­repercussão geral no recurso do estudo do incidente de exame por amostragem da ­repercussão geral no recurso
extraordinário (art. 543-B, CPC, acrescentado pela Lei Federal n. 11.418/2006, extraordinário (art. 543-B, CPC, acrescentado pela Lei Federal n. 11.418/2006,
que regulamenta o § 3º do art. 102 da CF/88). Este ensaio cuida das h­ ipóteses que regulamenta o § 3º do art. 102 da CF/88). Este ensaio cuida das h­ ipóteses
(i) e (vi).iando obstspeito ao que foi decidido, ora dificultando de direito que por (i) e (vi).iando obstspeito ao que foi decidido, ora dificultando de direito que por
ser generalizada. ser generalizada.

6. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: RT, 2004, 6. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: RT, 2004,
p. 175. p. 175.
7. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito, cit., p. 177. 7. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito, cit., p. 177.
8. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito, cit., p. 177. 8. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito, cit., p. 177.
O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 45 O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 45

A coisa julgada vincula as partes à decisão do objeto litigioso (a solução da A coisa julgada vincula as partes à decisão do objeto litigioso (a solução da
questão principal apresentada no dispositivo da decisão) de um determinado caso questão principal apresentada no dispositivo da decisão) de um determinado caso
concreto. Quando se estuda a força vinculativa dos precedentes judiciais (enun- concreto. Quando se estuda a força vinculativa dos precedentes judiciais (enun-
ciado da súmula da jurisprudência predominante de um tribunal, por exemplo), ciado da súmula da jurisprudência predominante de um tribunal, por exemplo),
é preciso investigar a ratio decidendi dos julgados anteriores, encontrável em é preciso investigar a ratio decidendi dos julgados anteriores, encontrável em
sua fundamentação. Assim, as razões de decidir do precedente é que operam a sua fundamentação. Assim, as razões de decidir do precedente é que operam a
vinculação: extrai-se da ratio decidendi, por indução, uma regra geral que pode vinculação: extrai-se da ratio decidendi, por indução, uma regra geral que pode
ser aplicada a outras situações semelhantes. Da solução de um caso concreto ser aplicada a outras situações semelhantes. Da solução de um caso concreto
(particular) extrai-se uma regra de direito que pode ser generalizada. Configura (particular) extrai-se uma regra de direito que pode ser generalizada. Configura
exatamente o que Luiz Guilherme Marinoni chama de norma jurídica criada pelo exatamente o que Luiz Guilherme Marinoni chama de norma jurídica criada pelo
magistrado, à luz do caso concreto, a partir da conformação da hipótese legal de magistrado, à luz do caso concreto, a partir da conformação da hipótese legal de
incidência às normas constitucionais9. Só se pode considerar como ratio decidendi incidência às normas constitucionais9. Só se pode considerar como ratio decidendi
a opção ­hermenêutica que, a despeito de ser feita para um caso concreto, tenha a opção ­hermenêutica que, a despeito de ser feita para um caso concreto, tenha
aptidão para ser universalizada10. aptidão para ser universalizada10.
“É certamente em decorrência desse relevante aspecto, na órbita de um sistema “É certamente em decorrência desse relevante aspecto, na órbita de um sistema
jurídico estribado na observância compulsória dos precedentes, que as razões de jurídico estribado na observância compulsória dos precedentes, que as razões de
decidir devem prever e sopesar a repercussão prática que determinada decisão decidir devem prever e sopesar a repercussão prática que determinada decisão
poderá oferecer para o ordenamento jurídico globalmente considerado”11. poderá oferecer para o ordenamento jurídico globalmente considerado”11.

Tudo isso nos leva a uma importante advertência: não bastasse a exigência Tudo isso nos leva a uma importante advertência: não bastasse a exigência
constitucional de a decisão judicial ser devidamente motivada, é preciso que o constitucional de a decisão judicial ser devidamente motivada, é preciso que o
órgão jurisdicional, máxime os tribunais superiores, tenha bastante cuidado na órgão jurisdicional, máxime os tribunais superiores, tenha bastante cuidado na
elaboração da fundamentação dos seus julgados, pois, a prevalecer determinada elaboração da fundamentação dos seus julgados, pois, a prevalecer determinada
ratio decidendi, será possível extrair, a partir dali, uma regra geral a ser observada ratio decidendi, será possível extrair, a partir dali, uma regra geral a ser observada
em outras situações. em outras situações.
Finalmente, uma última palavra: em uma decisão, o órgão judicial não in- Finalmente, uma última palavra: em uma decisão, o órgão judicial não in-
dica, expressamente, qual é a ratio decidendi – ressalvado a decisão que julga dica, expressamente, qual é a ratio decidendi – ressalvado a decisão que julga
o incidente de uniformização de jurisprudência (arts. 476-479 do CPC) ou o o incidente de uniformização de jurisprudência (arts. 476-479 do CPC) ou o
incidente de decretação de inconstitucionalidade (arts. 480-482 do CPC), que incidente de decretação de inconstitucionalidade (arts. 480-482 do CPC), que
têm esse objetivo12. “Cabe aos juízes, em momento posterior, ao examinarem-na têm esse objetivo12. “Cabe aos juízes, em momento posterior, ao examinarem-na
como precedente, extrair a ‘norma legal’ (abstraindo-a do caso) que poderá ou como precedente, extrair a ‘norma legal’ (abstraindo-a do caso) que poderá ou
não incidir na situação concreta”13. A consolidação do entendimento na súmula da não incidir na situação concreta”13. A consolidação do entendimento na súmula da

9. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo, cit., v. 1, p. 9. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo, cit., v. 1, p.
96-97. Ver o que foi dito no item relativo à sentença como norma jurídica individualizada. 96-97. Ver o que foi dito no item relativo à sentença como norma jurídica individualizada.
10. É o que se denomina, com eloqüência, de holding (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente 10. É o que se denomina, com eloqüência, de holding (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente
judicial como fonte do Direito, cit., p. 177). judicial como fonte do Direito, cit., p. 177).
11. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito, cit., p. 176. 11. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito, cit., p. 176.
12. No caso do incidente de uniformização de jurisprudência, o próprio art. 479 do CPC diz que “o 12. No caso do incidente de uniformização de jurisprudência, o próprio art. 479 do CPC diz que “o
julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será
objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência” (acrescentamos objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência” (acrescentamos
o itálico). o itálico).
13. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito, cit., p. 175. 13. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito, cit., p. 175.
46 Fredie Didier Jr. 46 Fredie Didier Jr.

jurisprudência do tribunal tem, dentre outras, a função de “identificar”e “divulgar” jurisprudência do tribunal tem, dentre outras, a função de “identificar”e “divulgar”
a ratio decidendi construída pelo tribunal à luz de casos concretos semelhantes a ratio decidendi construída pelo tribunal à luz de casos concretos semelhantes
(situações de fato-tipo). (situações de fato-tipo).

3. A “objetivação” do recurso extraordinário 3. A “objetivação” do recurso extraordinário


O sistema de controle de constitucionalidade das leis no direito brasileiro tem O sistema de controle de constitucionalidade das leis no direito brasileiro tem
passado, nos últimos tempos, por algumas mudanças bastante significativas. A EC passado, nos últimos tempos, por algumas mudanças bastante significativas. A EC
n. 45/2004, por exemplo, criou a “súmula”14 vinculante em matéria constitucional n. 45/2004, por exemplo, criou a “súmula”14 vinculante em matéria constitucional
(art. 103-A) e consagrou, no texto Carta Magna, a orientação do STF de conferir (art. 103-A) e consagrou, no texto Carta Magna, a orientação do STF de conferir
efeito também vinculante às decisões proferidas em causas de controle concentrado efeito também vinculante às decisões proferidas em causas de controle concentrado
de constitucionalidade, quer em ADIN, quer em ADC (art. 102, § 2º, CF/88). de constitucionalidade, quer em ADIN, quer em ADC (art. 102, § 2º, CF/88).
Um dos aspectos dessa mudança é a transformação do recurso extraordinário, Um dos aspectos dessa mudança é a transformação do recurso extraordinário,
que, embora instrumento de controle difuso de constitucionalidade das leis, tem que, embora instrumento de controle difuso de constitucionalidade das leis, tem
servido, também, ao controle abstrato. Normalmente, relaciona-se o controle difuso servido, também, ao controle abstrato. Normalmente, relaciona-se o controle difuso
ao controle concreto da constitucionalidade. São, no entanto, coisas diversas. O ao controle concreto da constitucionalidade. São, no entanto, coisas diversas. O
controle é difuso porque pode ser feito por qualquer órgão jurisdicional; ao con- controle é difuso porque pode ser feito por qualquer órgão jurisdicional; ao con-
trole difuso contrapõe-se o concentrado. Chama-se de controle concreto, porque trole difuso contrapõe-se o concentrado. Chama-se de controle concreto, porque
feito a posteriori, à luz das peculiaridades do caso; a ele se contrapõe o controle feito a posteriori, à luz das peculiaridades do caso; a ele se contrapõe o controle
abstrato, em que a inconstitucionalidade é examinada em tese, a priori. Normal- abstrato, em que a inconstitucionalidade é examinada em tese, a priori. Normal-
mente, o controle abstrato é feito de forma concentrada, no STF, por intermédio da mente, o controle abstrato é feito de forma concentrada, no STF, por intermédio da
ADIN, ADC ou ADPF, e o controle concreto,15 de forma difusa. O controle difuso ADIN, ADC ou ADPF, e o controle concreto,15 de forma difusa. O controle difuso
é sempre incidenter tantum, pois a constitucionalidade é questão incidente, que é sempre incidenter tantum, pois a constitucionalidade é questão incidente, que

14. É incorreto falar em “súmulas” do STF. Só há uma súmula do STF, que tem diversos enunciados. 14. É incorreto falar em “súmulas” do STF. Só há uma súmula do STF, que tem diversos enunciados.
Explica o tema Barbosa Moreira: “A ‘Súmula’, sempre no singular, foi publicada como anexo Explica o tema Barbosa Moreira: “A ‘Súmula’, sempre no singular, foi publicada como anexo
ao Regimento ­Interno, e a respectiva citação, feita ‘pelo número do enunciado’, dispensaria, ao Regimento ­Interno, e a respectiva citação, feita ‘pelo número do enunciado’, dispensaria,
perante a Corte, ‘a indicação complementar de julgados no mesmo sentido’. Mais tarde, outros perante a Corte, ‘a indicação complementar de julgados no mesmo sentido’. Mais tarde, outros
tribunais seguiram o exemplo: o Superior Tribunal de Justiça tem sua própria ‘Súmula’, o Tribunal tribunais seguiram o exemplo: o Superior Tribunal de Justiça tem sua própria ‘Súmula’, o Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro a sua, e assim por diante. Em todos os casos, a denominação oficial de Justiça do Rio de Janeiro a sua, e assim por diante. Em todos os casos, a denominação oficial
de ‘Súmula’ corresponde ao conjunto, ao todo, à totalidade das teses compendiadas. O modo de de ‘Súmula’ corresponde ao conjunto, ao todo, à totalidade das teses compendiadas. O modo de
citar a ‘Súmula’, pelo número do enunciado, levou a curiosa ­corruptela na linguagem forense. citar a ‘Súmula’, pelo número do enunciado, levou a curiosa c­ orruptela na linguagem forense.
Era correto dizer ‘n. X da ‘Súmula’ ou ‘Súmula, n. x’. Mas passou-se a falar com freqüência de Era correto dizer ‘n. X da ‘Súmula’ ou ‘Súmula, n. x’. Mas passou-se a falar com freqüência de
‘Súmula n. x’, sem pausa, como se cada enunciado, individualmente, constituísse uma ‘súmula’.... ‘Súmula n. x’, sem pausa, como se cada enunciado, individualmente, constituísse uma ‘súmula’....
Pois bem. A Emenda Constitucional n. 45 rende-se ao uso informal, tolerável em conversas de Pois bem. A Emenda Constitucional n. 45 rende-se ao uso informal, tolerável em conversas de
corredor do Fórum, nunca porém num documento oficial, e menos que alhures em texto que se corredor do Fórum, nunca porém num documento oficial, e menos que alhures em texto que se
incorpora à Constituição. O novo art. 103-A desta autoriza o Supremo Tribunal Federal a editar incorpora à Constituição. O novo art. 103-A desta autoriza o Supremo Tribunal Federal a editar
‘súmula que (...) terá efeito vinculante’, e já se generalizou, até fora dos meios especializados, a ‘súmula que (...) terá efeito vinculante’, e já se generalizou, até fora dos meios especializados, a
referência às futuras ‘súmulas vinculantes’, no plural, para designar as proposições ou teses a que referência às futuras ‘súmulas vinculantes’, no plural, para designar as proposições ou teses a que
a Corte, reunidos os pressupostos, imprimirá esse efeito”. (“A redação da Emenda Constitucional a Corte, reunidos os pressupostos, imprimirá esse efeito”. (“A redação da Emenda Constitucional
n. 45 (Reforma da Justiça)”. Revista ­Forense. Rio de Janeiro: Forense, 2005, n. 378, p. 43). A n. 45 (Reforma da Justiça)”. Revista ­Forense. Rio de Janeiro: Forense, 2005, n. 378, p. 43). A
referência que se fizer às “súmulas” será, apenas, brevitatis causae. referência que se fizer às “súmulas” será, apenas, brevitatis causae.
15. Convém apontar o posicionamento de Eduardo Appio, para quem não há controle de consti- 15. Convém apontar o posicionamento de Eduardo Appio, para quem não há controle de consti-
tucionalidade concreto, nem mesmo o difuso, sob o fundamento de que “as considerações de tucionalidade concreto, nem mesmo o difuso, sob o fundamento de que “as considerações de
ordem subjetiva, fundadas nas peculiaridades do caso concreto e na situação particular das ordem subjetiva, fundadas nas peculiaridades do caso concreto e na situação particular das
partes envolvidas no litígio se situam no plano da aplicação da lei e não no plano do controle de partes envolvidas no litígio se situam no plano da aplicação da lei e não no plano do controle de
O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 47 O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 47

será resolvida na fundamentação da decisão judicial; assim, a decisão a respeito será resolvida na fundamentação da decisão judicial; assim, a decisão a respeito
da questão somente tem eficácia inter partes. O controle concentrado, no Brasil, da questão somente tem eficácia inter partes. O controle concentrado, no Brasil,
é feito principaliter tantum, ou seja, a questão sobre a constitucionalidade da lei é feito principaliter tantum, ou seja, a questão sobre a constitucionalidade da lei
compõe o objeto litigioso do processo e a decisão a seu respeito ficará imune pela compõe o objeto litigioso do processo e a decisão a seu respeito ficará imune pela
coisa julgada material, com eficácia erga omnes. coisa julgada material, com eficácia erga omnes.
Nada impede, porém, que o controle de constitucionalidade seja difuso, mas Nada impede, porém, que o controle de constitucionalidade seja difuso, mas
abstrato: a análise da constitucionalidade é feita em tese, embora por qualquer abstrato: a análise da constitucionalidade é feita em tese, embora por qualquer
órgão judicial. Obviamente, porque tomada em controle difuso, a decisão não ficará órgão judicial. Obviamente, porque tomada em controle difuso, a decisão não ficará
acobertada pela coisa julgada e será eficaz apenas inter partes. Mas a análise é acobertada pela coisa julgada e será eficaz apenas inter partes. Mas a análise é
feita em tese, que vincula o tribunal a adotar o mesmo posicionamento em outras feita em tese, que vincula o tribunal a adotar o mesmo posicionamento em outras
oportunidades16. É o que acontece quando se instaura o incidente de argüição de oportunidades16. É o que acontece quando se instaura o incidente de argüição de
inconstitucionalidade perante os tribunais (art. 97 da CF/88 e arts. 480-482 do inconstitucionalidade perante os tribunais (art. 97 da CF/88 e arts. 480-482 do
CPC): embora instrumento processual típico do controle difuso, a análise da cons- CPC): embora instrumento processual típico do controle difuso, a análise da cons-
titucionalidade da lei, neste incidente, é feita em ­abstrato17. Trata-se de incidente titucionalidade da lei, neste incidente, é feita em a­ bstrato17. Trata-se de incidente
processual de natureza objetiva (é exemplo de processo objetivo, semelhante ao processual de natureza objetiva (é exemplo de processo objetivo, semelhante ao
processo da ADIN ou ADC). É por isso que, também à semelhança do que já ocorre processo da ADIN ou ADC). É por isso que, também à semelhança do que já ocorre
na ADIN e ADC, é possível a intervenção de amicus curiae neste incidente (§§ do na ADIN e ADC, é possível a intervenção de amicus curiae neste incidente (§§ do
art. 482). É em razão disso, ainda, que fica dispensada a instauração de um novo art. 482). É em razão disso, ainda, que fica dispensada a instauração de um novo
incidente para decidir questão que já fora resolvida anteriormente pelo mesmo incidente para decidir questão que já fora resolvida anteriormente pelo mesmo
tribunal ou pelo STF (art. 481, par. ún., CPC)18-19. tribunal ou pelo STF (art. 481, par. ún., CPC)18-19.

constitucionalidade” (p. 75). Para o autor, “em ambos os casos – controle concentrado e difuso – a constitucionalidade” (p. 75). Para o autor, “em ambos os casos – controle concentrado e difuso – a
atividade judicial é essencialmente a mesma, uma vez que avulta de interesse um escopo político, atividade judicial é essencialmente a mesma, uma vez que avulta de interesse um escopo político,
qual seja o de garantir a supremacia da Constituição através da declaração da nulidade da lei qual seja o de garantir a supremacia da Constituição através da declaração da nulidade da lei
inconstitucional”. (“A teoria da inconstitucionalidade induzida”. Revista de Direito Processual inconstitucional”. (“A teoria da inconstitucionalidade induzida”. Revista de Direito Processual
Civil. Curitiba: Gênesis, 2005, n. 35, p. 72). Civil. Curitiba: Gênesis, 2005, n. 35, p. 72).
16. “A decisão plenária não se equipara plenamente às decisões tomadas no controle em abstrato de 16. “A decisão plenária não se equipara plenamente às decisões tomadas no controle em abstrato de
constitucionalidade dado não surtir típico efeito erga omnes de, por exemplo, uma ação direta constitucionalidade dado não surtir típico efeito erga omnes de, por exemplo, uma ação direta
de inconstitucionalidade. Mas, por outro lado, fica muito longe de restringir-se ao caso concreto de inconstitucionalidade. Mas, por outro lado, fica muito longe de restringir-se ao caso concreto
que lhe deu ensejo, porquanto dela emana % em razão de normas legais e regimentais % eficá- que lhe deu ensejo, porquanto dela emana % em razão de normas legais e regimentais % eficá-
cia vinculante intra muros, isto é, vincula os colegiados fracionários do tribunal que dirimiu o cia vinculante intra muros, isto é, vincula os colegiados fracionários do tribunal que dirimiu o
incidente, valendo para todos os casos concretos subseqüentes que envolvam a mesma quaestio incidente, valendo para todos os casos concretos subseqüentes que envolvam a mesma quaestio
iuris constitucional”. (AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de argüição de incons- iuris constitucional”. (AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de argüição de incons-
titucionalidade. São Paulo: RT, 2002, p. 47, nota 21.) titucionalidade. São Paulo: RT, 2002, p. 47, nota 21.)
17. Sobre o tema, também, MENDES, Gilmar Ferreira. “O sistema de controle das normas da Consti- 17. Sobre o tema, também, MENDES, Gilmar Ferreira. “O sistema de controle das normas da Consti-
tuição de 1988 e reforma do Poder Judiciário”. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS, 1999, tuição de 1988 e reforma do Poder Judiciário”. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS, 1999,
n. 75, p. 244. n. 75, p. 244.
18. AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de argüição de inconstitucionalidade, cit., p. 18. AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de argüição de inconstitucionalidade, cit., p.
48-49. 48-49.
19. Considerando que todo controle de constitucionalidade é abstrato, Eduardo Appio: “O controle é 19. Considerando que todo controle de constitucionalidade é abstrato, Eduardo Appio: “O controle é
sempre abstrato, mesmo quando utilizado pelo juiz singular no caso concreto, do que se dessume sempre abstrato, mesmo quando utilizado pelo juiz singular no caso concreto, do que se dessume
que não existe, no Brasil, controle concreto de constitucionalidade das leis. O juiz singular, ao que não existe, no Brasil, controle concreto de constitucionalidade das leis. O juiz singular, ao
rejeitar a aplicação de uma lei federal, porque incompatível com a Constituição, não pode con- rejeitar a aplicação de uma lei federal, porque incompatível com a Constituição, não pode con-
siderar as peculiaridades do caso concreto, mas tão-somente aferir da compatibilidade no plano siderar as peculiaridades do caso concreto, mas tão-somente aferir da compatibilidade no plano
político (objetivo), assim como faria seu colega no Supremo Tribunal Federal, em sede de ação político (objetivo), assim como faria seu colega no Supremo Tribunal Federal, em sede de ação
direta de inconstitucionalidade”. (“A teoria da inconstitucionalidade induzida”. Revista de Direito direta de inconstitucionalidade”. (“A teoria da inconstitucionalidade induzida”. Revista de Direito
Processual Civil. Curitiba: Gênesis, 2005, n. 35, p. 73) Processual Civil. Curitiba: Gênesis, 2005, n. 35, p. 73)
48 Fredie Didier Jr. 48 Fredie Didier Jr.

O STF, ao examinar a constitucionalidade de uma lei em recurso extraordiná­- O STF, ao examinar a constitucionalidade de uma lei em recurso extraordiná­-
rio, tem seguido esta linha. A decisão sobre a questão da inconstitucionalidade se- rio, tem seguido esta linha. A decisão sobre a questão da inconstitucionalidade se-
ria tomada em abstrato, passando a orientar o tribunal em situações semelhantes. ria tomada em abstrato, passando a orientar o tribunal em situações semelhantes.
Sobre o tema, convém lembrar a lição de Gilmar Ferreira Mendes, no Processo Sobre o tema, convém lembrar a lição de Gilmar Ferreira Mendes, no Processo
Adminis­trativo n. 318.715/STF, que culminou na edição da Emenda n. 12 ao RISTF Adminis­trativo n. 318.715/STF, que culminou na edição da Emenda n. 12 ao RISTF
(Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), publicada no DJ de 17.12.2003: (Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), publicada no DJ de 17.12.2003:
O recurso extraordinário “deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa O recurso extraordinário “deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa
de interesses das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da de interesses das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da
ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas
de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso cons- de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso cons-
titucional (Verfassungsbeschwerde). (...) titucional (Verfassungsbeschwerde). (...)
A função do Supremo nos recursos extraordinários – ao menos de modo imediato A função do Supremo nos recursos extraordinários – ao menos de modo imediato
– não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pro- – não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pro-
nunciamentos das Cortes inferiores. O processo entre as partes, trazido à Corte via nunciamentos das Cortes inferiores. O processo entre as partes, trazido à Corte via
recurso extraordinário, deve ser visto apensa como pressuposto para uma atividade recurso extraordinário, deve ser visto apensa como pressuposto para uma atividade
jurisdicional que transcende os interesses subjetivos”.20 jurisdicional que transcende os interesses subjetivos”.20

Há diversas manifestações deste fenômeno, que é importantíssimo, na legis- Há diversas manifestações deste fenômeno, que é importantíssimo, na legis-
lação e na jurisprudência brasileiras. lação e na jurisprudência brasileiras.
a) O primeiro exemplo é o procedimento do recurso extraordinário interposto a) O primeiro exemplo é o procedimento do recurso extraordinário interposto
no âmbito dos Juizados Especiais Federais, regulado pelo art. 14, §§ 4º a 9º, da no âmbito dos Juizados Especiais Federais, regulado pelo art. 14, §§ 4º a 9º, da
Lei Federal n. 10.259/200121 e § 5º do art. 321 do RISTF (Regimento Interno Lei Federal n. 10.259/200121 e § 5º do art. 321 do RISTF (Regimento Interno
do Supremo Tribunal Federal)22. O procedimento para julgamento deste recurso do Supremo Tribunal Federal)22. O procedimento para julgamento deste recurso

20. O excerto foi retirado de MADOZ, Wagner Amorim. “O recurso extraordinário interposto de de­- 20. O excerto foi retirado de MADOZ, Wagner Amorim. “O recurso extraordinário interposto de de­-
cisão de Juizados Especiais Federais”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2005, n. 119, p. 75-76. cisão de Juizados Especiais Federais”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2005, n. 119, p. 75-76.
21. “§ 4º Quando a orientação acolhida pela Turma de Uniformização, em questões de direito ma- 21. “§ 4º Quando a orientação acolhida pela Turma de Uniformização, em questões de direito ma-
terial, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça – STJ, a terial, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça – STJ, a
parte interessada poderá provocar a manifestação deste, que dirimirá a divergência. § 5º No caso parte interessada poderá provocar a manifestação deste, que dirimirá a divergência. § 5º No caso
do § 4º, presente a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio de dano de difícil do § 4º, presente a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio de dano de difícil
reparação, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, medida liminar reparação, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, medida liminar
determinando a suspensão dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida. § 6º Eventuais determinando a suspensão dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida. § 6º Eventuais
pedidos de uniformização idênticos, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais, pedidos de uniformização idênticos, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais,
ficarão retidos nos autos, aguardando-se pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça. § 7º Se ficarão retidos nos autos, aguardando-se pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça. § 7º Se
necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Turma Recursal ou Coordenador da Turma necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Turma Recursal ou Coordenador da Turma
de Uniformização e ouvirá o Ministério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados, de Uniformização e ouvirá o Ministério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados,
ainda que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias. § 8º Decor- ainda que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias. § 8º Decor-
ridos os prazos referidos no § 7º, o relator incluirá o pedido em pauta na Seção, com preferência ridos os prazos referidos no § 7º, o relator incluirá o pedido em pauta na Seção, com preferência
sobre todos os demais feitos, ressalvados os processos com réus presos, os habeas corpus e os sobre todos os demais feitos, ressalvados os processos com réus presos, os habeas corpus e os
mandados de segurança. § 9º Publicado o acórdão respectivo, os pedidos retidos referidos no § 6º mandados de segurança. § 9º Publicado o acórdão respectivo, os pedidos retidos referidos no § 6º
serão apreciados pelas Turmas Recursais, que poderão exercer juízo de retratação ou declará-los serão apreciados pelas Turmas Recursais, que poderão exercer juízo de retratação ou declará-los
prejudicados, se veicularem tese não acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça”. prejudicados, se veicularem tese não acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça”.
22. “§ 5º Ao recurso extraordinário interposto no âmbito dos Juizados Especiais Federais, instituídos 22. “§ 5º Ao recurso extraordinário interposto no âmbito dos Juizados Especiais Federais, instituídos
pela Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, aplicam-se as seguintes regras: I – verificada a pela Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, aplicam-se as seguintes regras: I – verificada a
plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio da ocorrência de dano de difícil plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio da ocorrência de dano de difícil
reparação, em especial quando a ­decisão recorrida contrariar súmula ou jurisprudência dominante reparação, em especial quando a ­decisão recorrida contrariar súmula ou jurisprudência dominante
O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 49 O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 49

permite a intervenção de interessados na discussão da tese (inciso III do § 5º do permite a intervenção de interessados na discussão da tese (inciso III do § 5º do
art. 321 do RISTF); a decisão do STF é vinculante para as turmas recursais, que art. 321 do RISTF); a decisão do STF é vinculante para as turmas recursais, que
deverão retratar-se ou declarar prejudicado o recurso extraordinário já interposto, deverão retratar-se ou declarar prejudicado o recurso extraordinário já interposto,
conforme seja (inciso VII do § 5º do art. 321 do RISTF); e, ainda, poderá ser conforme seja (inciso VII do § 5º do art. 321 do RISTF); e, ainda, poderá ser
concedida medida cautelar para sobrestar o processamento de outros recursos concedida medida cautelar para sobrestar o processamento de outros recursos
extraordinários que versem sobre a mesma questão constitucional, até que o STF extraordinários que versem sobre a mesma questão constitucional, até que o STF
julgue o recurso (inciso I do § 5º do art. 321 do RISTF), norma semelhante ao art. julgue o recurso (inciso I do § 5º do art. 321 do RISTF), norma semelhante ao art.
21 da Lei Federal n. 9.868/1999, que cuida da ADC. 21 da Lei Federal n. 9.868/1999, que cuida da ADC.
b) O art. 103-A da CF/88 consagra a “súmula” vinculante em matéria consti- b) O art. 103-A da CF/88 consagra a “súmula” vinculante em matéria consti-
tucional, que poderá ser editada após reiteradas decisões do STF sobre a questão tucional, que poderá ser editada após reiteradas decisões do STF sobre a questão
constitucional, todas tomadas em controle difuso de constitucionalidade. constitucional, todas tomadas em controle difuso de constitucionalidade.
c) Em recente decisão, a Min. Ellen Gracie Northfleet dispensou o preenchimento c) Em recente decisão, a Min. Ellen Gracie Northfleet dispensou o preenchimento
do requisito do prequestionamento de um recurso extraordinário, sob o fundamento do requisito do prequestionamento de um recurso extraordinário, sob o fundamento
de dar efetividade a posicionamento do STF sobre questão constitucional, ado- de dar efetividade a posicionamento do STF sobre questão constitucional, ado-
tado em julgamento de outro recurso extraordinário (AI n. 375.011, constante tado em julgamento de outro recurso extraordinário (AI n. 375.011, constante
do Informativo 365 do STF). A ministra manifestou-se expressamente sobre a do Informativo 365 do STF). A ministra manifestou-se expressamente sobre a
transformação do recurso extraordinário em remédio de controle abstrato de transformação do recurso extraordinário em remédio de controle abstrato de
constitucionalidade, e sob esse fundamento dispensou o prequestionamento para constitucionalidade, e sob esse fundamento dispensou o prequestionamento para
prestigiar o posicionamento do STF em matéria de controle de constitucionalidade. prestigiar o posicionamento do STF em matéria de controle de constitucionalidade.
Importante precedente nesse sentido é o julgamento da Medida Cautelar no RE n. Importante precedente nesse sentido é o julgamento da Medida Cautelar no RE n.
376.852, rel. Min. Gilmar Mendes (Plenário, por maioria, DJ de 27.03.2003). 376.852, rel. Min. Gilmar Mendes (Plenário, por maioria, DJ de 27.03.2003).

do Supremo Tribunal Federal, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interes- do Supremo Tribunal Federal, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interes-
sado, ad referendum do Plenário, medida liminar para determinar o sobrestamento, na origem, sado, ad referendum do Plenário, medida liminar para determinar o sobrestamento, na origem,
dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida, até o pronunciamento desta Corte dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida, até o pronunciamento desta Corte
sobre a matéria; II – o relator, se entender necessário, solicitará informações ao Presidente da sobre a matéria; II – o relator, se entender necessário, solicitará informações ao Presidente da
Turma Recursal ou ao Coordenador da Turma de Uniformização, que serão prestadas no prazo Turma Recursal ou ao Coordenador da Turma de Uniformização, que serão prestadas no prazo
de 05 (cinco)dias; III – eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão de 05 (cinco)dias; III – eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão
manifes­tar-se no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação da decisão concessiva da me- manifes­tar-se no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação da decisão concessiva da me-
dida cautelar prevista no inciso I deste § 5º; IV – o relator abrirá vista dos autos ao Ministério dida cautelar prevista no inciso I deste § 5º; IV – o relator abrirá vista dos autos ao Ministério
Público Federal, que deverá pronunciar-se no prazo de 05 (cinco) dias; V – recebido o parecer Público Federal, que deverá pronunciar-se no prazo de 05 (cinco) dias; V – recebido o parecer
do Ministério Público Federal, o relator lançará relatório, colocando-o à disposição dos demais do Ministério Público Federal, o relator lançará relatório, colocando-o à disposição dos demais
Ministros, e incluirá o processo em pauta para julgamento, com preferência sobre todos os demais Ministros, e incluirá o processo em pauta para julgamento, com preferência sobre todos os demais
feitos, à exceção dos processos com réus presos, ­habeas-corpus e mandado de segurança; VI feitos, à exceção dos processos com réus presos, ­habeas-corpus e mandado de segurança; VI
– eventuais recursos extraordinários que versem idêntica controvérsia constitucional, recebidos – eventuais recursos extraordinários que versem idêntica controvérsia constitucional, recebidos
subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais ou de Uniformização, ficarão sobrestados, subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais ou de Uniformização, ficarão sobrestados,
aguardando-se o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal; VII – publicado o acórdão res- aguardando-se o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal; VII – publicado o acórdão res-
pectivo, em lugar especificamente destacado no Diário da Justiça da União, os recursos referidos pectivo, em lugar especificamente destacado no Diário da Justiça da União, os recursos referidos
no inciso anterior serão apreciados pelas Turmas Recursais ou de Uniformização, que poderão no inciso anterior serão apreciados pelas Turmas Recursais ou de Uniformização, que poderão
exercer o juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se cuidarem de tese não acolhida pelo exercer o juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se cuidarem de tese não acolhida pelo
Supremo Tribunal Federal; VIII – o acórdão que julgar o recurso extraordinário conterá, se for o Supremo Tribunal Federal; VIII – o acórdão que julgar o recurso extraordinário conterá, se for o
caso, súmula sobre a questão constitu­ci­onal controvertida, e dele será enviada cópia ao Superior caso, súmula sobre a questão constitu­ci­onal controvertida, e dele será enviada cópia ao Superior
Tribunal de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais, para comunicação a todos os Juizados Tribunal de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais, para comunicação a todos os Juizados
Especiais Federais e às Turmas Recursais e de Uniformização”. Especiais Federais e às Turmas Recursais e de Uniformização”.
50 Fredie Didier Jr. 50 Fredie Didier Jr.

d) No julgamento do RE n. 298.694, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ d) No julgamento do RE n. 298.694, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ
23.4.200423, decidiu-se, por maioria, admitir a possibilidade de o STF julgar o 23.4.200423, decidiu-se, por maioria, admitir a possibilidade de o STF julgar o
recurso extraordinário com base em fundamento diverso daquele enfrentado pelo recurso extraordinário com base em fundamento diverso daquele enfrentado pelo
tribunal recorrido. Trata-se de acórdão histórico, que merece leitura cuidadosa, tribunal recorrido. Trata-se de acórdão histórico, que merece leitura cuidadosa,
principalmente os votos do relator, do Min. Carlos Ayres (sucinto e preciso) e do principalmente os votos do relator, do Min. Carlos Ayres (sucinto e preciso) e do
Min. Peluso, em que o STF alterou antiga praxe, em que o recurso extraordinário Min. Peluso, em que o STF alterou antiga praxe, em que o recurso extraordinário
somente era conhecido para ser provido (no caso, o recurso foi conhecido, mas somente era conhecido para ser provido (no caso, o recurso foi conhecido, mas
não foi provido). À semelhança do que já acontece no julgamento das ações de não foi provido). À semelhança do que já acontece no julgamento das ações de
controle de concentrado de constitucionalidade, a causa de pedir (no caso, a causa controle de concentrado de constitucionalidade, a causa de pedir (no caso, a causa
de pedir recursal) é aberta, permitindo que o STF decida a questão da constitu- de pedir recursal) é aberta, permitindo que o STF decida a questão da constitu-
cionalidade com base em outro fundamento24, mesmo que não enfrentado pelo cionalidade com base em outro fundamento24, mesmo que não enfrentado pelo
tribunal recorrido. tribunal recorrido.
e) O § 3º do art. 475 do CPC dispensa o reexame necessário, quando a sentença e) O § 3º do art. 475 do CPC dispensa o reexame necessário, quando a sentença
se baseia em posicionamento tomado pelo Pleno do STF, a despeito de ter sido ou se baseia em posicionamento tomado pelo Pleno do STF, a despeito de ter sido ou
não sumulado. Neste caso, revela-se a importância que se pretende conferir aos não sumulado. Neste caso, revela-se a importância que se pretende conferir aos
precedentes do STF, mesmo àqueles oriundos de processos não-objetivos. precedentes do STF, mesmo àqueles oriundos de processos não-objetivos.
f) O STF tem admitido reclamação constitucional como mecanismo processual f) O STF tem admitido reclamação constitucional como mecanismo processual
para garantir a obediência às decisões, definitivas ou liminares25, proferidas em para garantir a obediência às decisões, definitivas ou liminares25, proferidas em
ADIN ou ADC. O § 3º do art. 103-A da CF/88, introduzido pela EC n. 45/2004, ADIN ou ADC. O § 3º do art. 103-A da CF/88, introduzido pela EC n. 45/2004,
permite, da mesma forma, o ajuizamento da reclamação constitucional para cassar permite, da mesma forma, o ajuizamento da reclamação constitucional para cassar
a decisão judicial que contrariar “súmula” vinculante – editada, conforme visto, a a decisão judicial que contrariar “súmula” vinculante – editada, conforme visto, a
partir de decisões tomadas em controle difuso de constitucionalidade. partir de decisões tomadas em controle difuso de constitucionalidade.
g) O STF, no julgamento do RE 197.917/SP (publicado no DJU de 27.02.2004) g) O STF, no julgamento do RE 197.917/SP (publicado no DJU de 27.02.2004)
interpretou a cláusula de proporcionalidade prevista no inciso IV do art. 29 da interpretou a cláusula de proporcionalidade prevista no inciso IV do art. 29 da
CF/88, que cuida da fixação do número de vereadores em cada município. O CF/88, que cuida da fixação do número de vereadores em cada município. O
TSE, diante deste julgamento, conferindo-lhe eficácia erga omnes (note-se que TSE, diante deste julgamento, conferindo-lhe eficácia erga omnes (note-se que
se trata de um julgamento em recurso extraordinário, controle difuso, pois), edi- se trata de um julgamento em recurso extraordinário, controle difuso, pois), edi-
tou a Resolução n. 21.702/2004, na qual adotou o posicionamento do STF. Essa tou a Resolução n. 21.702/2004, na qual adotou o posicionamento do STF. Essa
Resolução foi alvo de duas ações diretas de inconstitucionalidade (3.345 e 3.365, Resolução foi alvo de duas ações diretas de inconstitucionalidade (3.345 e 3.365,
rel. Min. Celso de Mello), que foram rejeitadas, sob o argumento de que o TSE, rel. Min. Celso de Mello), que foram rejeitadas, sob o argumento de que o TSE,

23. Também neste sentido, RE n. 300.020, rel. Min. Sepúlveda Pertence, ata publicada no DJ de 23. Também neste sentido, RE n. 300.020, rel. Min. Sepúlveda Pertence, ata publicada no DJ de
24.10.2003. 24.10.2003.
24. AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de argüição de inconstitucionalidade, cit., p. 24. AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de argüição de inconstitucionalidade, cit., p.
48, com inúmeros argumentos. Analisou esse importantíssimo acórdão, reconhecendo a “objeti- 48, com inúmeros argumentos. Analisou esse importantíssimo acórdão, reconhecendo a “objeti-
vação” do recurso extraordinário MADOZ, Wagner Amorim. “O recurso extraordinário interposto vação” do recurso extraordinário MADOZ, Wagner Amorim. “O recurso extraordinário interposto
de decisão de Juizados Especiais Federais”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2005, n. 119, p. de decisão de Juizados Especiais Federais”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2005, n. 119, p.
84-85. 84-85.
25. Rcl (QO) n. 1.507-RJ e Rcl (QO) n. 1.652-RJ, rel. Min. Néri da Silveira, 21.9.2000; Rcl n. 777- 25. Rcl (QO) n. 1.507-RJ e Rcl (QO) n. 1.652-RJ, rel. Min. Néri da Silveira, 21.9.2000; Rcl n. 777-
DF, 785-RJ, 800-SP, rel. Min. Moreira Alves, 10.4.2002. Sobre o cabimento de reclamação contra DF, 785-RJ, 800-SP, rel. Min. Moreira Alves, 10.4.2002. Sobre o cabimento de reclamação contra
decisão judicial que desrespeita comando liminar em ADI, o acórdão leading case proferido na decisão judicial que desrespeita comando liminar em ADI, o acórdão leading case proferido na
Rcl. 2256-1, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 11.09.2003, publicado no DJ de 30.04.2004. Rcl. 2256-1, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 11.09.2003, publicado no DJ de 30.04.2004.
O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 51 O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 51

ao expandir a interpretação constitucional definitiva dada pelo STF, “guardião da ao expandir a interpretação constitucional definitiva dada pelo STF, “guardião
Constituição”, submeteu-se ao princípio da força normativa da Constituição26. da Constituição”, submeteu-se ao princípio da força normativa da Constituição26.
Aqui, mais uma vez, aparece o fenômeno ora comentado: uma decisão proferida Aqui, mais uma vez, aparece o fenômeno ora comentado: uma decisão proferida
pelo STF em controle difuso passa a ter eficácia erga omnes, tendo sido a causa pelo STF em controle difuso passa a ter eficácia erga omnes, tendo sido a causa
da edição de uma Resolução do TSE (norma geral) sobre a matéria. da edição de uma Resolução do TSE (norma geral) sobre a matéria.
h) O STF decidiu admitir, “considerando a relevância da matéria, e, apontando h) O STF decidiu admitir, “considerando a relevância da matéria, e, apontando
a objetivação do processo constitucional também em sede de controle incidental, a objetivação do processo constitucional também em sede de controle incidental,
especialmente a realizada pela Lei 10.259/2001”, a sustentação oral de amici especialmente a realizada pela Lei 10.259/2001”, a sustentação oral de amici
curiae (Confederação Brasileira dos Aposentados, Pensionistas e Idosos – COBAP curiae (Confederação Brasileira dos Aposentados, Pensionistas e Idosos – COBAP
e da União dos Ferroviários do Brasil) em julgamento de recurso extraordinário, e da União dos Ferroviários do Brasil) em julgamento de recurso extraordinário,
ratificando, também neste julgamento, a tendência de “objetivação” do controle ratificando, também neste julgamento, a tendência de “objetivação” do controle
difuso, tantas vezes mencionada neste ensaio27. difuso, tantas vezes mencionada neste ensaio27.
i) O Min. Gilmar Mendes, no julgamento do HC n. 82.959, não obstante i) O Min. Gilmar Mendes, no julgamento do HC n. 82.959, não obstante
tenha considerado inconstitucional o § 1o do art. 2º da Lei Federal n. 8.072/1990 tenha considerado inconstitucional o § 1o do art. 2º da Lei Federal n. 8.072/1990
(Lei dos Crimes Hediondos), aplicou o art. 27 da Lei Federal n. 9.868/1999 (Lei (Lei dos Crimes Hediondos), aplicou o art. 27 da Lei Federal n. 9.868/1999 (Lei
da ADI/ADC), para dar eficácia não-retroativa (ex nunc) à sua decisão28. Ou seja: da ADI/ADC), para dar eficácia não-retroativa (ex nunc) à sua decisão28. Ou seja:
aplicou-se ao controle difuso de constitucionalidade um instrumento do controle aplicou-se ao controle difuso de constitucionalidade um instrumento do controle
concentrado, que é possibilidade de o STF determinar, no juízo de inconstitucio- concentrado, que é possibilidade de o STF determinar, no juízo de inconstitucio-
nalidade, a eficácia da sua decisão, ex nunc ou ex tunc. Esse julgamento, que foi nalidade, a eficácia da sua decisão, ex nunc ou ex tunc. Esse julgamento, que foi
interrompido por pedido de vista da Min. Ellen Gracie, foi concluído em fevereiro interrompido por pedido de vista da Min. Ellen Gracie, foi concluído em fevereiro
de 2006, quando o habeas corpus, já sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, foi de 2006, quando o habeas corpus, já sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, foi
definitivamente deferido, com decretação de inconstitucionalidade incidenter tan- definitivamente deferido, com decretação de inconstitucionalidade incidenter tan-
tum do referido dispositivo, nos seguintes termos: “O Tribunal, por unanimidade, tum do referido dispositivo, nos seguintes termos: “O Tribunal, por unanimidade,
explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal
em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas
nesta data, uma vez que a decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento nesta data, uma vez que a decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento
do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo
da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos
pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão29. pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão29.
j) Tudo isso conduz a que se admita a ampliação do cabimento da reclamação j) Tudo isso conduz a que se admita a ampliação do cabimento da reclamação
consti­tucional, para abranger os casos de desobediência a decisões tomadas pelo consti­tucional, para abranger os casos de desobediência a decisões tomadas pelo

26. Informativo do STF n. 398, 22-26 de agosto de 2005. 26. Informativo do STF n. 398, 22-26 de agosto de 2005.
27. RE n. 416827/SC e RE n. 415454/SC, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 21.9.2005, publicado no 27. RE n. 416827/SC e RE n. 415454/SC, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 21.9.2005, publicado no
Informativo n. 402 do STF, 19-23 de setembro de 2005. Informativo n. 402 do STF, 19-23 de setembro de 2005.
28. “Salientou, ainda, a incidência do disposto no art. 27 da Lei 9.868/99 também no controle in- 28. “Salientou, ainda, a incidência do disposto no art. 27 da Lei 9.868/99 também no controle in-
cidental, e, considerando o reiterado posicionamento do Tribunal quanto ao reconhecimento da cidental, e, considerando o reiterado posicionamento do Tribunal quanto ao reconhecimento da
constitucionalidade da vedação da progressão de regime nos crimes hediondos e as possíveis constitucionalidade da vedação da progressão de regime nos crimes hediondos e as possíveis
conseqüências decorrentes da referida declaração nos âmbitos civil, processual e penal, ressaltou conseqüências decorrentes da referida declaração nos âmbitos civil, processual e penal, ressaltou
que o efeito ex nunc conferido deve ser entendido como aplicável às condenações que envolvam que o efeito ex nunc conferido deve ser entendido como aplicável às condenações que envolvam
situações passíveis de serem submetidas ao regime de progressão”. (Informativo do STF n. 372, situações passíveis de serem submetidas ao regime de progressão”. (Informativo do STF n. 372,
29 de novembro a 3 de dezembro de 2004.) 29 de novembro a 3 de dezembro de 2004.)
29. Informativo do STF, n.418, 6 a 10 de Março de 2006. 29. Informativo do STF, n.418, 6 a 10 de Março de 2006.
52 Fredie Didier Jr. 52 Fredie Didier Jr.

Pleno do STF em controle difuso de constitucionalidade, independentemente da Pleno do STF em controle difuso de constitucionalidade, independentemente da
existência de ­enunciado sumular de eficácia vinculante. É certo, porém, que não há existência de ­enunciado sumular de eficácia vinculante. É certo, porém, que não há
previsão expressa neste sentido (fala-se de reclamação por desrespeito a “súmula” previsão expressa neste sentido (fala-se de reclamação por desrespeito a “súmula”
vinculante e a decisão em ação de controle concentrado de constitucionalidade). vinculante e a decisão em ação de controle concentrado de constitucionalidade).
Mas a nova feição que vem assumindo o controle difuso de constitucionalidade, Mas a nova feição que vem assumindo o controle difuso de constitucionalidade,
quando feito pelo STF, permite que se faça essa interpretação extensiva, até mesmo quando feito pelo STF, permite que se faça essa interpretação extensiva, até mesmo
como forma de evitar decisões contraditórias e acelerar o julgamento das demandas. como forma de evitar decisões contraditórias e acelerar o julgamento das demandas.
Recentemente, o STF começou o julgamento de uma reclamação, em que se Recentemente, o STF começou o julgamento de uma reclamação, em que se
pedia a cassação de decisão que não admitiu a progressão de regime prisional para pedia a cassação de decisão que não admitiu a progressão de regime prisional para
condenado por crime hediondo, sob o fundamento de que, assim, teria desrespeita- condenado por crime hediondo, sob o fundamento de que, assim, teria desrespeita-
do o posicionamento do STF consolidado no HC 82.959, julgado em fevereiro de do o posicionamento do STF consolidado no HC 82.959, julgado em fevereiro de
2006 (decisão proferida em controle difuso-incidental de constitucionalidade). 2006 (decisão proferida em controle difuso-incidental de constitucionalidade).
O Min. Gilmar Mendes, relator desta reclamação, votou pela procedência do O Min. Gilmar Mendes, relator desta reclamação, votou pela procedência do
pedido, fundamentando-se, exatamente, na mencionada transformação do papel do pedido, fundamentando-se, exatamente, na mencionada transformação do papel do
controle difuso de constitucionalidade no direito brasileiro. Registre-se que Gilmar controle difuso de constitucionalidade no direito brasileiro. Registre-se que Gilmar
Mendes é o grande arauto desta corrente e, como Ministro do STF, coerente com Mendes é o grande arauto desta corrente e, como Ministro do STF, coerente com
as suas lições, tratou de aplicá-la. O julgamento ainda não terminou, pois o Min. as suas lições, tratou de aplicá-la. O julgamento ainda não terminou, pois o Min.
Eros Grau pediu vista. Mas a simples decisão do relator já é um marco, pois ratifica Eros Grau pediu vista. Mas a simples decisão do relator já é um marco, pois ratifica
essa mudança paradigmática do controle de constitucionalidade brasileiro30. essa mudança paradigmática do controle de constitucionalidade brasileiro30.

30. Informativo do STF n. 454, de 07 de fevereiro de 2007: “Reclamação: Cabimento e Senado Federal 30. Informativo do STF n. 454, de 07 de fevereiro de 2007: “Reclamação: Cabimento e Senado Federal
no Controle de Constitucionalidade – 1 O Tribunal iniciou julgamento de reclamação ajuizada no Controle de Constitucionalidade – 1 O Tribunal iniciou julgamento de reclamação ajuizada
contra decisões do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco-AC, contra decisões do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco-AC,
pelas quais indeferira pedido de progressão de regime em favor de condenados a penas de reclusão pelas quais indeferira pedido de progressão de regime em favor de condenados a penas de reclusão
em regime integralmente fechado em decorrência da prática de crimes hediondos. Alega-se, na em regime integralmente fechado em decorrência da prática de crimes hediondos. Alega-se, na
espécie, ofensa à autoridade da decisão da Corte no HC 82959/SP (DJU de 1º.9.2006), em que espécie, ofensa à autoridade da decisão da Corte no HC 82959/SP (DJU de 1º.9.2006), em que
declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que vedava a progressão de declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que vedava a progressão de
regime a condenados pela prática de crimes hediondos. O Min. Gilmar Mendes, relator, julgou regime a condenados pela prática de crimes hediondos. O Min. Gilmar Mendes, relator, julgou
procedente a reclamação, para cassar as decisões impugnadas, assentando que caberá ao juízo procedente a reclamação, para cassar as decisões impugnadas, assentando que caberá ao juízo
reclamado proferir nova decisão para avaliar se, no caso concreto, os interessados atendem ou reclamado proferir nova decisão para avaliar se, no caso concreto, os interessados atendem ou
não os requisitos para gozar do referido benefício, podendo determinar, para esse fim, e desde não os requisitos para gozar do referido benefício, podendo determinar, para esse fim, e desde
que de modo fundamentado, a realização de exame criminológico. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gil- que de modo fundamentado, a realização de exame criminológico. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gil-
mar Mendes, 1º.2.2007.  (Rcl-4335) Reclamação: Cabimento e Senado Federal no Controle de mar Mendes, 1º.2.2007.  (Rcl-4335) Reclamação: Cabimento e Senado Federal no Controle de
Constitucionalidade – 2 Preliminarmente, quanto ao cabimento da reclamação, o relator afastou Constitucionalidade – 2 Preliminarmente, quanto ao cabimento da reclamação, o relator afastou
a alegação de inexistência de decisão do STF cuja autoridade deva ser preservada. No ponto, afir- a alegação de inexistência de decisão do STF cuja autoridade deva ser preservada. No ponto, afir-
mou, inicialmente, que a jurisprudência do STF evoluiu relativamente à utilização da reclamação mou, inicialmente, que a jurisprudência do STF evoluiu relativamente à utilização da reclamação
em sede de controle concentrado de normas, tendo concluído pelo cabimento da reclamação para em sede de controle concentrado de normas, tendo concluído pelo cabimento da reclamação para
todos os que comprovarem prejuízo resultante de decisões contrárias às suas teses, em reconhe- todos os que comprovarem prejuízo resultante de decisões contrárias às suas teses, em reconhe-
cimento à eficácia vinculante erga omnes das decisões de mérito proferidas em sede de controle cimento à eficácia vinculante erga omnes das decisões de mérito proferidas em sede de controle
concentrado. Em seguida, entendeu ser necessário, para análise do tema, verificar se o instrumento concentrado. Em seguida, entendeu ser necessário, para análise do tema, verificar se o instrumento
da reclamação fora usado de acordo com sua destinação constitucional: garantir a autoridade das da reclamação fora usado de acordo com sua destinação constitucional: garantir a autoridade das
decisões do STF; e, depois, superada essa questão, examinar o argumento do juízo reclamado decisões do STF; e, depois, superada essa questão, examinar o argumento do juízo reclamado
no sentido de que a eficácia erga omnes da decisão no HC 82959/SP dependeria da expedição da no sentido de que a eficácia erga omnes da decisão no HC 82959/SP dependeria da expedição da
resolução do Senado suspendendo a execução da lei (CF, art. 52, X). Para apreciar a dimensão resolução do Senado suspendendo a execução da lei (CF, art. 52, X). Para apreciar a dimensão
constitucional do tema, discorreu sobre o papel do Senado Federal no controle de constituciona- constitucional do tema, discorreu sobre o papel do Senado Federal no controle de constituciona-
lidade. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007.  (Rcl-4335) Reclamação: Cabimento lidade. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007.  (Rcl-4335) Reclamação: Cabimento
O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 53 O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 53

l) A Lei Federal n. 11.418/2006 regulamentou o requisito de admissibilidade l) A Lei Federal n. 11.418/2006 regulamentou o requisito de admissibilidade
do recurso extraordinário previsto no § 3º do art. 102 da CF, denominado de do recurso extraordinário previsto no § 3º do art. 102 da CF, denominado de
repercussão geral. repercussão geral.
Dentre algumas outras inovações, destaca-se a criação de um incidente de Dentre algumas outras inovações, destaca-se a criação de um incidente de
análise da repercussão geral por amostragem, semelhante ao que já existe para análise da repercussão geral por amostragem, semelhante ao que já existe para
o julgamento do recurso extraordinário proveniente do Juizado Especial Federal o julgamento do recurso extraordinário proveniente do Juizado Especial Federal
(art. 321, § 5º, RISTF). (art. 321, § 5º, RISTF).
Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica con- Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica con-
trovérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento trovérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento
Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto no art. 543-B, CPC. Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto no art. 543-B, CPC.
Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da
controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais
até o pronunciamento definitivo da Corte (§ 1º do art. 543-B, CPC). até o pronunciamento definitivo da Corte (§ 1º do art. 543-B, CPC).
A mais importante inovação está no § 2º deste art. 543-B: “Negada a existência A mais importante inovação está no § 2º deste art. 543-B: “Negada a existência
de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente
não admitidos”. O STF julgará um, ou alguns, recurso(s) extraordinário(s), que não admitidos”. O STF julgará um, ou alguns, recurso(s) extraordinário(s), que
envolva(m) a mesma questão de direito – a(s) decisão(ões) recorrida(s) tem(êm) envolva(m) a mesma questão de direito – a(s) decisão(ões) recorrida(s) tem(êm)
a mesma ratio decidendi. Se negar a existência de repercussão geral, todos os a mesma ratio decidendi. Se negar a existência de repercussão geral, todos os
demais, que não subiram ao STF, reputam-se não-conhecidos. Eis o julgamento demais, que não subiram ao STF, reputam-se não-conhecidos. Eis o julgamento
por amostragem. por amostragem.

e Senado Federal no Controle de Constitucionalidade – 3 Aduziu que, de acordo com a doutrina e Senado Federal no Controle de Constitucionalidade – 3 Aduziu que, de acordo com a doutrina
tradicional, a suspensão da execução pelo Senado do ato declarado inconstitucional pelo STF tradicional, a suspensão da execução pelo Senado do ato declarado inconstitucional pelo STF
seria ato político que empresta eficácia erga omnes às decisões definitivas sobre inconstituciona- seria ato político que empresta eficácia erga omnes às decisões definitivas sobre inconstituciona-
lidade proferidas em caso concreto. Asseverou, no entanto, que a amplitude conferida ao controle lidade proferidas em caso concreto. Asseverou, no entanto, que a amplitude conferida ao controle
abstrato de normas e a possibilidade de se suspender, liminarmente, a eficácia de leis ou atos abstrato de normas e a possibilidade de se suspender, liminarmente, a eficácia de leis ou atos
normativos, com eficácia geral, no contexto da CF/88, concorreram para infirmar a crença na normativos, com eficácia geral, no contexto da CF/88, concorreram para infirmar a crença na
própria justificativa do instituto da suspensão da execução do ato pelo Senado, inspirado numa própria justificativa do instituto da suspensão da execução do ato pelo Senado, inspirado numa
concepção de separação de poderes que hoje estaria ultrapassada. Ressaltou, ademais, que ao concepção de separação de poderes que hoje estaria ultrapassada. Ressaltou, ademais, que ao
alargar, de forma significativa, o rol de entes e órgãos legitimados a provocar o STF, no processo alargar, de forma significativa, o rol de entes e órgãos legitimados a provocar o STF, no processo
de controle abstrato de normas, o constituinte restringiu a amplitude do controle difuso de cons- de controle abstrato de normas, o constituinte restringiu a amplitude do controle difuso de cons-
titucionalidade. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007. (Rcl-4335) Reclamação: titucionalidade. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007. (Rcl-4335) Reclamação:
Cabimento e Senado Federal no Controle de Constitucionalidade – 4 Considerou o relator que, Cabimento e Senado Federal no Controle de Constitucionalidade – 4 Considerou o relator que,
em razão disso, bem como da multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral e do advento da em razão disso, bem como da multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral e do advento da
Lei 9.882/99, alterou-se de forma radical a concepção que dominava sobre a divisão de poderes, Lei 9.882/99, alterou-se de forma radical a concepção que dominava sobre a divisão de poderes,
tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a EC 16/65 e tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a EC 16/65 e
a CF 67/69. Salientou serem inevitáveis, portanto, as reinterpretações dos institutos vinculados a CF 67/69. Salientou serem inevitáveis, portanto, as reinterpretações dos institutos vinculados
ao controle incidental de inconstitucionalidade, notadamente o da exigência da maioria absoluta ao controle incidental de inconstitucionalidade, notadamente o da exigência da maioria absoluta
para declaração de inconstitucionalidade e o da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. para declaração de inconstitucionalidade e o da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal.
Reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da Reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da
lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle
incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais,
fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do
Congresso. Concluiu, assim, que as decisões proferidas pelo juízo reclamado desrespeitaram a Congresso. Concluiu, assim, que as decisões proferidas pelo juízo reclamado desrespeitaram a
eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão do STF no HC 82959/SP. Após, pediu vista eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão do STF no HC 82959/SP. Após, pediu vista
o Min. Eros Grau. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007. (Rcl-4335) o Min. Eros Grau. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007. (Rcl-4335)
54 Fredie Didier Jr. 54 Fredie Didier Jr.

Em razão disso, é indispensável o aprimoramento da intervenção do amicus Em razão disso, é indispensável o aprimoramento da intervenção do amicus
curiae no procedimento de análise da repercussão geral, de modo a que todos os curiae no procedimento de análise da repercussão geral, de modo a que todos os
interessados na solução desta questão possam manifestar-se. É esse o sentido do interessados na solução desta questão possam manifestar-se. É esse o sentido do
§ 6º do art. 543-A do CPC: “O Relator poderá admitir, na análise da repercussão § 6º do art. 543-A do CPC: “O Relator poderá admitir, na análise da repercussão
geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos
do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”. Esse dispositivo segue a do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”. Esse dispositivo segue a
linha do inciso III do § 5º do art. 321 do RISTF, que também permite a intervenção linha do inciso III do § 5º do art. 321 do RISTF, que também permite a intervenção
do amicus curiae no julgamento do recurso extraordinário proveniente do Juizado do amicus curiae no julgamento do recurso extraordinário proveniente do Juizado
Especial Federal. Especial Federal.
É possível concluir, sem receio, de que o incidente para a apuração da reper- É possível concluir, sem receio, de que o incidente para a apuração da reper-
cussão geral por amostragem é um procedimento de caráter objetivo, semelhante cussão geral por amostragem é um procedimento de caráter objetivo, semelhante
ao procedimento da ADIN, ADC e ADPF, e de profundo interesse público, pois ao procedimento da ADIN, ADC e ADPF, e de profundo interesse público, pois
se trata de exame de uma questão que diz respeito a um sem-número de pessoas, se trata de exame de uma questão que diz respeito a um sem-número de pessoas,
resultando na criação de uma norma jurídica de caráter geral pelo STF. É mais resultando na criação de uma norma jurídica de caráter geral pelo STF. É mais
uma demonstração do fenômeno de “objetivação” do controle difuso de consti- uma demonstração do fenômeno de “objetivação” do controle difuso de consti-
tucionalidade das leis, que será examinado no item seguinte. tucionalidade das leis, que será examinado no item seguinte.
A permissão de manifestação dos interessados é indispensável para a efe- A permissão de manifestação dos interessados é indispensável para a efe-
tivação das garantias constitucionais processuais do devido processo legal e do tivação das garantias constitucionais processuais do devido processo legal e do
contraditório. contraditório.
Há ainda uma outra novidade. Há ainda uma outra novidade.
Reconhecida a existência da repercussão geral, e “julgado o mérito do recurso Reconhecida a existência da repercussão geral, e “julgado o mérito do recurso
extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas
de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou
retratar-se” (art. 543-B, § 3º, CPC, acrescentado pela Lei Federal n. 11.418/2006). retratar-se” (art. 543-B, § 3º, CPC, acrescentado pela Lei Federal n. 11.418/2006).
Note que foi conferido ao recurso extraordinário um efeito regressivo, mas com Note que foi conferido ao recurso extraordinário um efeito regressivo, mas com
perfil dogmático um pouco diferente daquele usualmente utilizado na apelação perfil dogmático um pouco diferente daquele usualmente utilizado na apelação
(art. 296 do CPC, por exemplo) ou no agravo de instrumento, que permitem o (art. 296 do CPC, por exemplo) ou no agravo de instrumento, que permitem o
juízo de retratação logo após a interposição do recurso. Seguiu-se, mais uma vez, o juízo de retratação logo após a interposição do recurso. Seguiu-se, mais uma vez, o
precedente normativo do Regimento Interno do STF, inciso VII do § 5º do art. 321, precedente normativo do Regimento Interno do STF, inciso VII do § 5º do art. 321,
que cuida do recurso extraordinário proveniente do Juizado Especial Federal. que cuida do recurso extraordinário proveniente do Juizado Especial Federal.
Permite-se o juízo de retratação do órgão a quo, nesses casos, após a decisão Permite-se o juízo de retratação do órgão a quo, nesses casos, após a decisão
do STF sobre a questão de direito que corresponde à ratio decidendi da decisão do STF sobre a questão de direito que corresponde à ratio decidendi da decisão
recorrida, no julgamento do recurso que subiu como amostra. A permissão de recorrida, no julgamento do recurso que subiu como amostra. A permissão de
retratação justifica-se, pois a decisão do STF, em sentido diverso daquela proposta retratação justifica-se, pois a decisão do STF, em sentido diverso daquela proposta
pelo tribunal recorrido, foi tomada em abstrato, de modo a resolver o problema pelo tribunal recorrido, foi tomada em abstrato, de modo a resolver o problema
em tese, conforme visto. em tese, conforme visto.
Se não houver retratação, admitido o recurso extraordinário cujo processamen- Se não houver retratação, admitido o recurso extraordinário cujo processamen-
to ficara sobrestado, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento to ficara sobrestado, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento
O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 55 O Recurso Extraordinário e a t­ransformação do Controle Difuso de Constitucionalidade… 55

Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada
(art. 543-B, § 4º, CPC, acrescentado pela Lei Federal n. 11.418/2006). (art. 543-B, § 4º, CPC, acrescentado pela Lei Federal n. 11.418/2006).
m) A 1ª T. do STJ acolheu o nosso entendimento, expressamente, no julga- m) A 1ª T. do STJ acolheu o nosso entendimento, expressamente, no julga-
mento dos REsp n. 744.937 e 741.737, ambos relatados pela Min. Denise Arruda, mento dos REsp n. 744.937 e 741.737, ambos relatados pela Min. Denise Arruda,
j. em 04.04.2006, e publicados no DJ, respectivamente, em 19.06.2006, p. 111, j. em 04.04.2006, e publicados no DJ, respectivamente, em 19.06.2006, p. 111,
e 12.06.2006, p. 445. e 12.06.2006, p. 445.
n) Assim, as decisões do STF, em matéria de controle de constitucionalidade n) Assim, as decisões do STF, em matéria de controle de constitucionalidade
e interpretação da constituição, podem ser divididas em quatro espécies, de acordo e interpretação da constituição, podem ser divididas em quatro espécies, de acordo
com a sua força vinculante e a extensão subjetiva dos seus efeitos: a) proferidas com a sua força vinculante e a extensão subjetiva dos seus efeitos: a) proferidas
por uma turma, em controle difuso; b) proferidas pelo Pleno, em controle difuso, por uma turma, em controle difuso; b) proferidas pelo Pleno, em controle difuso,
e ainda não consagradas em enunciado da súmula vinculante; c) posicionamentos e ainda não consagradas em enunciado da súmula vinculante; c) posicionamentos
já consagrados em súmula vinculante; d) decisões em controle concentrado de já consagrados em súmula vinculante; d) decisões em controle concentrado de
constitucionalidade. constitucionalidade.
A primeira espécie (“a”) só tem eficácia inter partes e se constitui em pre- A primeira espécie (“a”) só tem eficácia inter partes e se constitui em pre-
cedente jurisprudencial de menor importância, até mesmo porque a outra turma cedente jurisprudencial de menor importância, até mesmo porque a outra turma
do STF pode adotar posicionamento diverso (exatamente por isso admitem-se os do STF pode adotar posicionamento diverso (exatamente por isso admitem-se os
embargos de divergência nessas situações). embargos de divergência nessas situações).
A segunda espécie (“b”), como vimos, pode produzir efeitos ultra partes, A segunda espécie (“b”), como vimos, pode produzir efeitos ultra partes,
como precedente jurisprudencial vinculativo, mas pode ser revista pelo Pleno do como precedente jurisprudencial vinculativo, mas pode ser revista pelo Pleno do
STF, surgindo novos fundamentos e tendo em vista a evolução do pensamento STF, surgindo novos fundamentos e tendo em vista a evolução do pensamento
a respeito do assunto. É o que aconteceu com a discussão sobre a competência a respeito do assunto. É o que aconteceu com a discussão sobre a competência
da Justiça do Trabalho para processar e julgar causas envolvendo danos morais da Justiça do Trabalho para processar e julgar causas envolvendo danos morais
decorrentes da relação de trabalho, após a EC/45, em que o Pleno do STF, em um decorrentes da relação de trabalho, após a EC/45, em que o Pleno do STF, em um
período de quatro meses, adotou posicionamentos antagônicos, prevalecendo a período de quatro meses, adotou posicionamentos antagônicos, prevalecendo a
orientação pela competência da Justiça do Trabalho. orientação pela competência da Justiça do Trabalho.
A súmula vinculante (“c”) tem eficácia erga omnes e somente pode ser revista A súmula vinculante (“c”) tem eficácia erga omnes e somente pode ser revista
de acordo com os pressupostos previstos no § 2º do art. 103-A da CF/88. de acordo com os pressupostos previstos no § 2º do art. 103-A da CF/88.
Revelam um estádio bem mais avançado de estabilidade do posicionamento Revelam um estádio bem mais avançado de estabilidade do posicionamento
do STF, que, porém, ainda pode ser revisto, pois tomado a partir de decisões pro- do STF, que, porém, ainda pode ser revisto, pois tomado a partir de decisões pro-
feridas em controle difuso, em que a questão constitucional aparece incidenter feridas em controle difuso, em que a questão constitucional aparece incidenter
tantum, inepta para ficar imune pela coisa julgada material. tantum, inepta para ficar imune pela coisa julgada material.
As decisões proferidas em controle concentrado – “d”: ADI, ADC e ADPF As decisões proferidas em controle concentrado – “d”: ADI, ADC e ADPF
– ficam imunes pela coisa julgada material, não podendo ser revistas sequer por – ficam imunes pela coisa julgada material, não podendo ser revistas sequer por
ação rescisória (art. 26 da Lei Federal n. 9.868/1999 e art. 12 da Lei Federal n. ação rescisória (art. 26 da Lei Federal n. 9.868/1999 e art. 12 da Lei Federal n.
9.882/1999). Trata-se do nível mais elevado de estabilidade a que pode chegar um 9.882/1999). Trata-se do nível mais elevado de estabilidade a que pode chegar um
posicionamento do STF em tema de interpretação da Constituição Federal. posicionamento do STF em tema de interpretação da Constituição Federal.
Capítulo IV Capítulo IV
Teoria geral do concurso de crimes 1
Teoria geral do concurso de crimes1
Gamil Föppel el Hireche* Gamil Föppel el Hireche*

Sumário • 1. Considerações iniciais: do concursus delictorum: 1.1. Posição sistemática do concursus Sumário • 1. Considerações iniciais: do concursus delictorum: 1.1. Posição sistemática do concursus
de­lictorum; 1.2. Critérios de solução para o concursus delictorum – 2. Do concurso material ou real de­lictorum; 1.2. Critérios de solução para o concursus delictorum – 2. Do concurso material ou real
de infrações: 2.1. Considerações iniciais; 2.2. Pluralidade de condutas X Pluralidade de resultados; As de infrações: 2.1. Considerações iniciais; 2.2. Pluralidade de condutas X Pluralidade de resultados; As
diferenças entre condutas e ações, entre condutas e atos; 2.3. Classificação do concurso material; 2.4. diferenças entre condutas e ações, entre condutas e atos; 2.3. Classificação do concurso material; 2.4.
Regramento jurídico da matéria – 3. Do concurso formal. Primeira análise: 3.1. Concursus normarum Regramento jurídico da matéria – 3. Do concurso formal. Primeira análise: 3.1. Concursus normarum
x concursus delictorum (formal); 3.2. Classificação do concurso formal: concurso formal homogêneo e x concursus delictorum (formal); 3.2. Classificação do concurso formal: concurso formal homogêneo e
concurso formal heterogêneo; 3.3. Diferença entre concurso material e formal; 3.4. Tratamento jurídico concurso formal heterogêneo; 3.3. Diferença entre concurso material e formal; 3.4. Tratamento jurídico
do concurso formal ou ideal de crimes. Concurso formal próprio (também chamado de perfeito) e do concurso formal ou ideal de crimes. Concurso formal próprio (também chamado de perfeito) e
concurso formal impróprio (ou imperfeito): 3.4.1. Do concurso formal impróprio. Tratamento jurídico; concurso formal impróprio (ou imperfeito): 3.4.1. Do concurso formal impróprio. Tratamento jurídico;
3.4.2. Do concurso formal próprio. Tratamento jurídico – 4. Do crime continuado. Considerações 3.4.2. Do concurso formal próprio. Tratamento jurídico – 4. Do crime continuado. Considerações
primeiras: 4.1. Crime continuado. Evolução histórica; 4.2. Crime continuado. Natureza jurídica; 4.3. primeiras: 4.1. Crime continuado. Evolução histórica; 4.2. Crime continuado. Natureza jurídica; 4.3.
Teorias a respeito do crime continuado; 4.4. Dos elementos da continuidade delitiva: 4.4.1. Mais de uma Teorias a respeito do crime continuado; 4.4. Dos elementos da continuidade delitiva: 4.4.1. Mais de uma
ação ou omissão; 4.4.2. Crimes da mesma espécie; 4.4.3. Circunstância de tempo; 4.4.4. Circunstância ação ou omissão; 4.4.2. Crimes da mesma espécie; 4.4.3. Circunstância de tempo; 4.4.4. Circunstância
de lugar; 4.4.5. Circunstâncias de modo; 4.5. Do crime continuado específico; 4.6. Crime continuado de lugar; 4.4.5. Circunstâncias de modo; 4.5. Do crime continuado específico; 4.6. Crime continuado
e prescrição; 4.7. Crime continuado e sucessão de leis penais; 4.8. Crime continuado e coisa julgada e prescrição; 4.7. Crime continuado e sucessão de leis penais; 4.8. Crime continuado e coisa julgada
– 5. Multa no concurso de crimes – 6. Unificação das penas – 7. Do crime aberrante: 7.1. Aberratio – 5. Multa no concurso de crimes – 6. Unificação das penas – 7. Do crime aberrante: 7.1. Aberratio
ictus; 7.2. Resultado diverso do pretendido; 8. Concurso de agentes; 9. Conclusões. ictus; 7.2. Resultado diverso do pretendido; 8. Concurso de agentes; 9. Conclusões.

Antes de examinar a matéria proposta à análise – concurso de crimes e con- Antes de examinar a matéria proposta à análise – concurso de crimes e con-
tinuidade delitiva (em suas espécies, modalidades, características e teorias) – sob tinuidade delitiva (em suas espécies, modalidades, características e teorias) – sob
o ponto de vista dogmático e legal, impõe-se, por necessidade, fazer uma teoria o ponto de vista dogmático e legal, impõe-se, por necessidade, fazer uma teoria
geral a respeito do a­ ssunto. Desta maneira, o primeiro ponto a se explorar é uma geral a respeito do a­ ssunto. Desta maneira, o primeiro ponto a se explorar é uma
teoria geral do concursus delictorum. Em seguida, cuidar-se-á do concurso formal, teoria geral do concursus delictorum. Em seguida, cuidar-se-á do concurso formal,
material e da continuidade delitiva, em suas particularidades. Adiante, ainda se material e da continuidade delitiva, em suas particularidades. Adiante, ainda se
apreciará um assunto correlato, o crime aberrante2, bem como da unificação das apreciará um assunto correlato, o crime aberrante2, bem como da unificação das

* Mestre em Direito Público (UFBA) e Especialista em Ciências Criminais (IELF/Juspodivm). * Mestre em Direito Público (UFBA) e Especialista em Ciências Criminais (IELF/Juspodivm).
Professor-coordenador do curso de Pós-graduação em Ciências Criminais da Unyahna/Juspodivm. Professor-coordenador do curso de Pós-graduação em Ciências Criminais da Unyahna/Juspodivm.
Professor dos cursos de Pós-graduação da UFPA, da Fundação Faculdade de Direito da UFBA, Professor dos cursos de Pós-graduação da UFPA, da Fundação Faculdade de Direito da UFBA,
Unifacs e IELF/­Proomnis. Professor Assistente de Direito Penal da graduação da UFBA e da Unifacs e IELF/­Proomnis. Professor Assistente de Direito Penal da graduação da UFBA e da
Unyahna. Advogado. Sócio Fundador e Diretor do IPAN. Membro da ABPCP. E-mail: gfoppel@ Unyahna. Advogado. Sócio Fundador e Diretor do IPAN. Membro da ABPCP. E-mail: gfoppel@
terra.com.br. Site: www.gamilfoppel.adv.br. terra.com.br. Site: www.gamilfoppel.adv.br.
1. Esta é uma reprodução sem alterações de conteúdo da prova-escrita do concurso público para 1. Esta é uma reprodução sem alterações de conteúdo da prova-escrita do concurso público para
Professor Assistente de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, Professor Assistente de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia,
a qual foi conferida pontuação máxima pela banca examinadora composta pelos Eminentes a qual foi conferida pontuação máxima pela banca examinadora composta pelos Eminentes
Professores Doutores: Gérson Pereira dos Santos (UFBA – Presidente), Paulo José da Costa Jr. Professores Doutores: Gérson Pereira dos Santos (UFBA – Presidente), Paulo José da Costa Jr.
(USP/Roma) e João Gualberto Garcez Ramos (UFPR). O leitor deve ficar esclarecido, portanto, (USP/Roma) e João Gualberto Garcez Ramos (UFPR). O leitor deve ficar esclarecido, portanto,
que se trata da reprodução de uma prova, daí porque, por vezes, não serão atendidas algumas que se trata da reprodução de uma prova, daí porque, por vezes, não serão atendidas algumas
formalidades, já que o escrito corresponde, com fidelidade, ao original. formalidades, já que o escrito corresponde, com fidelidade, ao original.
2. Nomenclatura difundida no Brasil pelo Prof. Dr. Paulo José da Costa Jr., titular de cadeira no 2. Nomenclatura difundida no Brasil pelo Prof. Dr. Paulo José da Costa Jr., titular de cadeira no
Largo de São Francisco e em Roma. O mencionado professor, autor de mais de trinta obras, Largo de São Francisco e em Roma. O mencionado professor, autor de mais de trinta obras,
58 Gamil Föppel el Hireche 58 Gamil Föppel el Hireche

penas. Esclareça-se, ab initio, que a exposição c­ ontará com os aspectos legais, penas. Esclareça-se, ab initio, que a exposição c­ ontará com os aspectos legais,
doutrinários e jurisprudenciais (inclusive súmulas dos tribunais superiores). Com doutrinários e jurisprudenciais (inclusive súmulas dos tribunais superiores). Com
o objetivo de tornar a exposição mais clara, ela será dividida em t­ópicos. o objetivo de tornar a exposição mais clara, ela será dividida em t­ópicos.

1. Considerações iniciais: do concursus delictorum 1. Considerações iniciais: do concursus delictorum


Inicialmente, forçoso é declarar a diferença existente entre o concurso de Inicialmente, forçoso é declarar a diferença existente entre o concurso de
crimes (concursus delictorum), o concurso de pessoas (concursus delinquentium) crimes (concursus delictorum), o concurso de pessoas (concursus delinquentium)
e o conflito aparente de normas3 (concursus normarum). Com efeito, no concurso e o conflito aparente de normas3 (concursus normarum). Com efeito, no concurso
aparente de ­normas, há uma conduta, que se adequa a mais de um tipo penal. Em aparente de ­normas, há uma conduta, que se adequa a mais de um tipo penal. Em
razão disto, em homenagem ao princípio do non bis in idem – impossibilidade razão disto, em homenagem ao princípio do non bis in idem – impossibilidade
de dupla punição pelo mesmo fato, só uma norma irá incidir. Sobre o assunto, de dupla punição pelo mesmo fato, só uma norma irá incidir. Sobre o assunto,
malgrado exista forte e acentuado debate doutrinário, prevalecem três4 princípios: malgrado exista forte e acentuado debate doutrinário, prevalecem três4 princípios:
especialidade, subsidiariedade (que remete à clássica figura do “Soldado de Re- especialidade, subsidiariedade (que remete à clássica figura do “Soldado de Re-
serva”, como proposto por Hungria)5 e consunção ou absorção. serva”, como proposto por Hungria)5 e consunção ou absorção.
No concurso de pessoas – concursus deliquentium – há uma infração que No concurso de pessoas – concursus deliquentium – há uma infração que
é perpetrada por duas ou mais pessoas. A despeito de não ser o objeto central é perpetrada por duas ou mais pessoas. A despeito de não ser o objeto central
desta exposição, reservamos espaço, em momento apropriado, para tratar, ainda desta exposição, reservamos espaço, em momento apropriado, para tratar, ainda
que de maneira perfunctória, de tão intrigante assunto. Sobre ele, recomenda-se que de maneira perfunctória, de tão intrigante assunto. Sobre ele, recomenda-se
vivamente a leitura da tese do Prof. Dr. Nilo Batista, recentemente re-publicada vivamente a leitura da tese do Prof. Dr. Nilo Batista, recentemente re-publicada
pela Editora Lumen Juris. Sobre os desafios atuais deste assunto, com ênfase pela Editora Lumen Juris. Sobre os desafios atuais deste assunto, com ênfase
na tormentosa e problemática cumplicidade através de ações neutras (ou ações na tormentosa e problemática cumplicidade através de ações neutras (ou ações
cotidianas) imperioso é o registro à obra do Prof. Luis Greco – Cumplicidade cotidianas) imperioso é o registro à obra do Prof. Luis Greco – Cumplicidade
através de ações neutras. O problema da imputação objetiva da participação. Rio através de ações neutras. O problema da imputação objetiva da participação. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003. de Janeiro: Renovar, 2003.
O tema que aqui será tratado com maior cuidado se refere ao concurso de O tema que aqui será tratado com maior cuidado se refere ao concurso de
crimes e a continuidade delitiva, chamado de concursus delictorum. Neste caso, crimes e a continuidade delitiva, chamado de concursus delictorum. Neste caso,
analisar-se-á que uma mesma pessoa pode cometer mais de um crime, devendo ser analisar-se-á que uma mesma pessoa pode cometer mais de um crime, devendo ser
por todos os seus atos sancionada. Enquanto que, no concurso de pessoas, diversos por todos os seus atos sancionada. Enquanto que, no concurso de pessoas, diversos

publicou os trabalhos Bala Perdida e Crime Aberrante, a respeito da matéria, termo este também publicou os trabalhos Bala Perdida e Crime Aberrante, a respeito da matéria, termo este também
aceito por Bettiol. aceito por Bettiol.
3. Sobre o assunto, no Brasil, é obrigatória a leitura da tese para professor assistente da UFBA, de 3. Sobre o assunto, no Brasil, é obrigatória a leitura da tese para professor assistente da UFBA, de
José Cândido de Carvalho. Destaca-se, ainda, a obra de Marcelo Fortes Barbosa, professor da José Cândido de Carvalho. Destaca-se, ainda, a obra de Marcelo Fortes Barbosa, professor da
USP. Na Espanha, chamam a atenção as teses de Enrique Peñaranda Ramos e Contreiro Nicás. USP. Na Espanha, chamam a atenção as teses de Enrique Peñaranda Ramos e Contreiro Nicás.
Puig Peña prefere chamar o assunto de conflito de normas ou concurso de normas. Sobre isto, Puig Peña prefere chamar o assunto de conflito de normas ou concurso de normas. Sobre isto,
mencionaremos no momento oportuno. mencionaremos no momento oportuno.
4. Oscar Stevenson e Rogerio Greco ainda colocam um quarto: o da alternatividade, muito usado 4. Oscar Stevenson e Rogerio Greco ainda colocam um quarto: o da alternatividade, muito usado
em tipos mistos alternativos. Vicente Sabino, citado por José Cândido de Carvalho, adiciona um em tipos mistos alternativos. Vicente Sabino, citado por José Cândido de Carvalho, adiciona um
quinto princípio: o da lei mais extensa. Consoante advertência já feita (vide nota 02), o assunto quinto princípio: o da lei mais extensa. Consoante advertência já feita (vide nota 02), o assunto
será tratado no momento oportuno. será tratado no momento oportuno.
5. O Código Penal vigente só tratou de forma expressa do princípio da especialidade (artigo 12). O 5. O Código Penal vigente só tratou de forma expressa do princípio da especialidade (artigo 12). O
Projeto Nelson Hungria, no artigo 5o, tratava dos três. A este se opôs Heleno Cláudio Fragoso. Projeto Nelson Hungria, no artigo 5o, tratava dos três. A este se opôs Heleno Cláudio Fragoso.
No Brasil, pois, os princípios da consunção e da subsidiariedade são implícitos. Sobre princípios No Brasil, pois, os princípios da consunção e da subsidiariedade são implícitos. Sobre princípios
implícitos, obrigatória a leitura de Eros Grau. implícitos, obrigatória a leitura de Eros Grau.
Teoria geral do concurso de crimes 59 Teoria geral do concurso de crimes 59

agentes praticam um crime, no concurso de crimes, uma mesma pessoa pratica in- agentes praticam um crime, no concurso de crimes, uma mesma pessoa pratica
frações diversas. Consigne-se, expres­samente, como o fazem os germânicos Claus infrações diversas. Consigne-se, expres­samente, como o fazem os germânicos
Roxin e Günther Jakobs, que podem coexistir os concursos de pessoas e crimes Claus Roxin e Günther Jakobs, que podem coexistir os concursos de pessoas e
(pode haver existência simultânea de concursos delinquentium e delictorum), desde crimes (pode haver existência simultânea de concursos delinquentium e delicto-
que, diversas pessoas em co-delinqüencia, pratiquem vários crimes. rum), desde que, diversas pessoas em co-delinqüencia, pratiquem vários crimes.
Aldo Mouro, citado pelo emérito Prof. Dr. Paulo José da Costa Jr., advertia Aldo Mouro, citado pelo emérito Prof. Dr. Paulo José da Costa Jr., advertia
que pode haver pluralidade de normas e unidade de crimes (qual ocorre no concurso que pode haver pluralidade de normas e unidade de crimes (qual ocorre no concurso
de tipos, na progressão criminosa, no crime complexo, bem como nos antefatos de tipos, na progressão criminosa, no crime complexo, bem como nos antefatos
e pós-fatos não punidos); pluralidade de normas e pluralidade de condutas, como e pós-fatos não punidos); pluralidade de normas e pluralidade de condutas, como
pluralidade de crimes (a exemplo do que ocorre no concurso material ou real); pluralidade de crimes (a exemplo do que ocorre no concurso material ou real);
finalmente, pode haver uma conduta com mais de um resultado, com mais de um finalmente, pode haver uma conduta com mais de um resultado, com mais de um
crime (como, verbi gratia, no concurso formal ou ideal). crime (como, verbi gratia, no concurso formal ou ideal).

1.1. Posição sistemática do concursus delictorum 1.1. Posição sistemática do concursus delictorum
Estabelecida a diferença entre concursus normarum, concursus delinquentium Estabelecida a diferença entre concursus normarum, concursus delinquentium
e delictorum, deve-se agora tratar da posição sistemática deste. Patrícia Methé e delictorum, deve-se agora tratar da posição sistemática deste. Patrícia Methé
Glioche Béze, professora da UERJ e presentante do Ministério Público no Es- Glioche Béze, professora da UERJ e presentante do Ministério Público no Es-
tado do Rio de Janeiro, em sua Dissertação de Mestrado, com o título Concurso tado do Rio de Janeiro, em sua Dissertação de Mestrado, com o título Concurso
Formal e Crime Continuado (Renovar, 2003), sugere que o assunto – concurso Formal e Crime Continuado (Renovar, 2003), sugere que o assunto – concurso
de crimes – seja uma transição entre a Teoria Geral do Crime e a Teoria Geral da de crimes – seja uma transição entre a Teoria Geral do Crime e a Teoria Geral da
Pena (no particular, preferimos a denominação proposta pelo Prof. m. Dr. Jorge Pena (no particular, preferimos a denominação proposta pelo Prof. m. Dr. Jorge
Figueiredo Dias, adotada pelo seu discípulo brasileiro e recém aprovado à cátedra Figueiredo Dias, adotada pelo seu discípulo brasileiro e recém aprovado à cátedra
da UFMG – Fernando Fernandes, que defende que se deve chamar de teoria das da UFMG – Fernando Fernandes, que defende que se deve chamar de teoria das
conseqüências jurídicas do delito, haja vista que uma infração criminal encerra conseqüências jurídicas do delito, haja vista que uma infração criminal encerra
outras conseqüências que não exclusivamente a pena). outras conseqüências que não exclusivamente a pena).
Observa-se que, no Brasil, o assunto do concurso de crimes foi tratado na Observa-se que, no Brasil, o assunto do concurso de crimes foi tratado na
teoria das conseqüências jurídicas do delito, haja vista que o regramento legal da teoria das conseqüências jurídicas do delito, haja vista que o regramento legal da
matéria foi fi
­ xado, grosso modo, nos artigos 69 a 76 do Código Penal. matéria foi fi
­ xado, grosso modo, nos artigos 69 a 76 do Código Penal.
Paulo José da Costa Jr., em sua 8ª edição dos Comentários ao Código Penal Paulo José da Costa Jr., em sua 8ª edição dos Comentários ao Código Penal
(DPJ, 2005) informa que, na Itália, o assunto é tratado na Teoria Geral do Crime. (DPJ, 2005) informa que, na Itália, o assunto é tratado na Teoria Geral do Crime.
No particular, defendemos que, efetivamente, o assunto deveria ser tratado em No particular, defendemos que, efetivamente, o assunto deveria ser tratado em
transição da teoria do crime para a teoria das conseqüências jurídicas, haja vista transição da teoria do crime para a teoria das conseqüências jurídicas, haja vista
que o assunto se relaciona diretamente com o crime e a sua estrutura – trata de que o assunto se relaciona diretamente com o crime e a sua estrutura – trata de
condutas, elemento subjetivo, nexo causal – mas repercute, decisivamente, na condutas, elemento subjetivo, nexo causal – mas repercute, decisivamente, na
teoria das conseqüências jurídicas do delito. Se assim não fosse, sustentamos que, teoria das conseqüências jurídicas do delito. Se assim não fosse, sustentamos que,
por coerência lógica, o assunto deveria ser tratado na teoria do crime, como fez na por coerência lógica, o assunto deveria ser tratado na teoria do crime, como fez na
Itália. Com efeito, há outros assuntos, como o próprio concurso de pessoas, que Itália. Com efeito, há outros assuntos, como o próprio concurso de pessoas, que
repercutem nas penas e que foram fixados, entre nós, na teoria do crime. repercutem nas penas e que foram fixados, entre nós, na teoria do crime.
Ultrapassada a análise da posição sistemática, cuide-se, nesse instante, do Ultrapassada a análise da posição sistemática, cuide-se, nesse instante, do
conjunto de critérios que rege a matéria. conjunto de critérios que rege a matéria.
60 Gamil Föppel el Hireche 60 Gamil Föppel el Hireche

1.2. Critérios de solução para o concursus delictorum 1.2. Critérios de solução para o concursus delictorum
A doutrina mais abalizada (Paulo José da Costa Jr., Luiz Régis Prado e Paulo A doutrina mais abalizada (Paulo José da Costa Jr., Luiz Régis Prado e Paulo
Queiroz) apresenta quatro critérios para a solução do problema, a saber: Queiroz) apresenta quatro critérios para a solução do problema, a saber:
a) Critério do cúmulo material – Neste caso, as penas são somadas para a) Critério do cúmulo material – Neste caso, as penas são somadas para
os ­diversos crimes. Vale, como salienta Paulo José da Costa Jr., a máxima tot os ­diversos crimes. Vale, como salienta Paulo José da Costa Jr., a máxima tot
crimina quod poenae. As sanções são aritmeticamente somadas, depois de haver, crimina quod poenae. As sanções são aritmeticamente somadas, depois de haver,
por ditame constitucional, a aplicação individualizada para cada um dos crimes. O por ditame constitucional, a aplicação individualizada para cada um dos crimes. O
Professor Cezar ­Roberto Bitencourt, no primeiro volume de seu Tratado (Saraiva, Professor Cezar ­Roberto Bitencourt, no primeiro volume de seu Tratado (Saraiva,
2005) critica este critério, haja vista a possibilidade de haver penas muito altas pelo 2005) critica este critério, haja vista a possibilidade de haver penas muito altas pelo
somatório. No Brasil, este foi o critério adotado para o concurso material (CP, art. somatório. No Brasil, este foi o critério adotado para o concurso material (CP, art.
69). O Prof. Dr. Paulo José da Costa Jr., porém, esclarece que este critério foi 69). O Prof. Dr. Paulo José da Costa Jr., porém, esclarece que este critério foi
adotado, entre nós, de forma temperada ou matizada, ante a existência do artigo adotado, entre nós, de forma temperada ou matizada, ante a existência do artigo
75 do código, que será abordado no momento adequado; 75 do código, que será abordado no momento adequado;
b) Critério da exasperação – Este critério não soma as penas, porém não b) Critério da exasperação – Este critério não soma as penas, porém não
despreza uma pelas outras. Neste caso, toma-se uma das penas (a maior ou, se despreza uma pelas outras. Neste caso, toma-se uma das penas (a maior ou, se
iguais, qualquer uma delas) e, em relação a esta pena, incide uma majoração, uma iguais, qualquer uma delas) e, em relação a esta pena, incide uma majoração, uma
causa tarifada de aumen­to, é dizer, uma fração. No Brasil, este critério foi ado- causa tarifada de aumen­to, é dizer, uma fração. No Brasil, este critério foi ado-
tado para o concurso formal próprio (CP, art. 70, 1a parte) e para a Continuidade tado para o concurso formal próprio (CP, art. 70, 1a parte) e para a Continuidade
delitiva (CP, art. 71). Esclareça-se que o concurso formal impróprio (CP, art. 70, delitiva (CP, art. 71). Esclareça-se que o concurso formal impróprio (CP, art. 70,
parte final) segue a regra do cúmulo ma­terial; parte final) segue a regra do cúmulo ma­terial;
c) Cúmulo Jurídico – Este critério não é usado no Brasil. Consiste na apli- c) Cúmulo Jurídico – Este critério não é usado no Brasil. Consiste na apli-
cação da pena por um cúmulo jurídico legal, diferente do cúmulo material; cação da pena por um cúmulo jurídico legal, diferente do cúmulo material;
d) Absorção – Neste caso, as penas mais graves absorvem as menos graves d) Absorção – Neste caso, as penas mais graves absorvem as menos graves
ou, no dizer de Hungria, major absorbet minorem. Chamando o gaúcho Cezar ou, no dizer de Hungria, major absorbet minorem. Chamando o gaúcho Cezar
Bitencourt à colação, mais uma vez, tem-se que este critério é falho, pois deixa- Bitencourt à colação, mais uma vez, tem-se que este critério é falho, pois deixa-
ria impune uma gama de infrações. A mesma crítica é endereçada pelo Prof. Dr. ria impune uma gama de infrações. A mesma crítica é endereçada pelo Prof. Dr.
Paulo José da Costa Júnior, que adverte que tal critério traz consigo um “bill” Paulo José da Costa Júnior, que adverte que tal critério traz consigo um “bill”
de impunidade. de impunidade.
Vistos os critérios existentes e a opção do legislador, que, no Brasil, adotou Vistos os critérios existentes e a opção do legislador, que, no Brasil, adotou
o material (por somatório) de forma temperada e a exasperação, resta cuidar dos o material (por somatório) de forma temperada e a exasperação, resta cuidar dos
concursos de crimes e da continuidade delitiva. concursos de crimes e da continuidade delitiva.

2. Do concurso material ou real de infrações 2. Do concurso material ou real de infrações


2.1. Considerações iniciais 2.1. Considerações iniciais
O Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos6, adjunto da UFPR e pós-doutor pela O Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos6, adjunto da UFPR e pós-doutor pela
Universidade de Saarland, Alemanha, adverte que a cumulação pode ser de três Universidade de Saarland, Alemanha, adverte que a cumulação pode ser de três

6. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 6. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
Teoria geral do concurso de crimes 61 Teoria geral do concurso de crimes 61

espécies: sucessiva (como ocorre no concurso material), simultânea (a exemplo espécies: sucessiva (como ocorre no concurso material), simultânea (a exemplo
do concurso formal próprio)7 e continuada (crime continuado). Cuidaremos do do concurso formal próprio)7 e continuada (crime continuado). Cuidaremos do
assunto, assim, em separado: primeiro trataremos do concurso material, depois assunto, assim, em separado: primeiro trataremos do concurso material, depois
do concurso formal e, finalmente, da continuidade delitiva. do concurso formal e, finalmente, da continuidade delitiva.

2.2. Pluralidade de condutas X Pluralidade de resultados: As diferenças entre 2.2. Pluralidade de condutas X Pluralidade de resultados: As diferenças entre
condutas e ações, entre condutas e atos condutas e ações, entre condutas e atos
No concurso material de infrações, há várias condutas que geram vários re- No concurso material de infrações, há várias condutas que geram vários re-
sultados, devendo-se proceder ao somatório das penas. O problema, neste passo, sultados, devendo-se proceder ao somatório das penas. O problema, neste passo,
é, como adverte o Prof. Dr. Miguel Reale Júnior8, diferenciar conduta de ato, é, como adverte o Prof. Dr. Miguel Reale Júnior8, diferenciar conduta de ato,
ou, como sugere o Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos, separar ações das ações ou, como sugere o Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos, separar ações das ações
típicas. típicas.
Com efeito. O concurso material é marcado pela pluralidade de condutas Com efeito. O concurso material é marcado pela pluralidade de condutas
típicas com pluralidade de resultados, devendo-se fazer o somatório das penas. típicas com pluralidade de resultados, devendo-se fazer o somatório das penas.
Quid juris se, em um roubo contra única vítima, no mesmo instante, o assaltante Quid juris se, em um roubo contra única vítima, no mesmo instante, o assaltante
leva mais de um bem como, ut upta, o celular, o relógio e uma caneta de ouro? leva mais de um bem como, ut upta, o celular, o relógio e uma caneta de ouro?
Nesta hipótese avençada, é forçoso concluir que há crime único. Malgrado Nesta hipótese avençada, é forçoso concluir que há crime único. Malgrado
existam vários atos, é certo que aí houve um única infração. No particular, depre- existam vários atos, é certo que aí houve um única infração. No particular, depre-
ende-se que ocorreu apenas um crime, apenas uma conduta, composta por vários ende-se que ocorreu apenas um crime, apenas uma conduta, composta por vários
atos. Assim, com Miguel Reale Jr., pode-se concluir que uma sem conduta pode atos. Assim, com Miguel Reale Jr., pode-se concluir que uma sem conduta pode
ser composta por di­­ver­sos atos, que, consoante Patrícia Mothé Glioche Béze, ser composta por di­­ver­sos atos, que, consoante Patrícia Mothé Glioche Béze,
são ligadas por unidade de e­ s­copo. são ligadas por unidade de e­ s­copo.
Vale registrar, ainda, a sempre cuidadosa e acurada análise do Prof. Dr. Juarez Vale registrar, ainda, a sempre cuidadosa e acurada análise do Prof. Dr. Juarez
Cirino dos Santos. Para ele, a distinção fica mais nítida se separarmos as ações Cirino dos Santos. Para ele, a distinção fica mais nítida se separarmos as ações
das ações típicas. Segundo o ilustrado penalista e criminólogo9, uma ação típica das ações típicas. Segundo o ilustrado penalista e criminólogo9, uma ação típica
pode ser composta por vários atos, por várias ações. pode ser composta por vários atos, por várias ações.
Assim, o concurso material deve ser entendido como pluralidade de ações Assim, o concurso material deve ser entendido como pluralidade de ações
típicas, a fim de evitar qualquer confusão com a pluralidade de ações, que, segundo típicas, a fim de evitar qualquer confusão com a pluralidade de ações, que, segundo
Reale Jr. e Cirino, configuram crime único. Reale Jr. e Cirino, configuram crime único.

7. Marcelo Fortes Barbosa, em sua tese de Doutoramento, em 1976, preferia – o que faz de forma 7. Marcelo Fortes Barbosa, em sua tese de Doutoramento, em 1976, preferia – o que faz de forma
isolada – chamar o concurso formal de concurso real cumulativo de infrações. isolada – chamar o concurso formal de concurso real cumulativo de infrações.
8. Professor Titular de Direito Penal da USP. A este respeito consulte-se o seu “Instituições de Direito 8. Professor Titular de Direito Penal da USP. A este respeito consulte-se o seu “Instituições de Direito
Penal”, Volume II. Rio de Janeiro: Forense, 2003. Penal”, Volume II. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
9. Apenas para esclarecer que estas disciplinas são diferentes. Segundo Garcia-Pablos de Molina, a 9. Apenas para esclarecer que estas disciplinas são diferentes. Segundo Garcia-Pablos de Molina, a
Criminologia é uma ciência do ser; o Direito Penal, do dever ser. Sobre Criminologia, imperiosa Criminologia é uma ciência do ser; o Direito Penal, do dever ser. Sobre Criminologia, imperiosa
é a leitura de Alessandro Baratta (Criminologia Crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2001), sempre é a leitura de Alessandro Baratta (Criminologia Crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2001), sempre
citado pelo Prof. Dr. Gerson Pereira dos Santos em seus trabalhos. Coube a BAratta a criação citado pelo Prof. Dr. Gerson Pereira dos Santos em seus trabalhos. Coube a BAratta a criação
do novo modelo integral, evolução significativa quando comparada à Enciclopédia das Ciências do novo modelo integral, evolução significativa quando comparada à Enciclopédia das Ciências
Penais, formulada por Liszt. Penais, formulada por Liszt.
62 Gamil Föppel el Hireche 62 Gamil Föppel el Hireche

2.3. Classificação do concurso material 2.3. Classificação do concurso material


Segundo a doutrina, o concurso material pode ser homogêneo (quando o Segundo a doutrina, o concurso material pode ser homogêneo (quando o
sujeito pratica mais de uma vez o mesmo delito, como, ut upta, dois homicídios) sujeito pratica mais de uma vez o mesmo delito, como, ut upta, dois homicídios)
ou heterogêneos (que tem lugar quando o sujeito pratica dois crimes diferentes, ou heterogêneos (que tem lugar quando o sujeito pratica dois crimes diferentes,
como, v.g., homicídio e estupro). como, v.g., homicídio e estupro).

2.4. Regramento jurídico da matéria 2.4. Regramento jurídico da matéria


O Código Penal tratou do assunto no artigo 69, consagrando, para o concurso O Código Penal tratou do assunto no artigo 69, consagrando, para o concurso
material de infrações, a regra do cúmulo material, mitigada, como bem esclareceu material de infrações, a regra do cúmulo material, mitigada, como bem esclareceu
o Prof. Dr. Paulo José da Costa Júnior. o Prof. Dr. Paulo José da Costa Júnior.
Nos parágrafos do artigo 69, o código tratou da sua referência à diversidade Nos parágrafos do artigo 69, o código tratou da sua referência à diversidade
de penas, no que tange às penas alternativas. Se, havendo concurso material, de penas, no que tange às penas alternativas. Se, havendo concurso material,
houver duas penas alternativas cabíveis, elas poderão ser executadas de forma houver duas penas alternativas cabíveis, elas poderão ser executadas de forma
simultânea ou sucessiva, desde que observados os critérios dos artigos 43, 44 e simultânea ou sucessiva, desde que observados os critérios dos artigos 43, 44 e
69 do código. Se elas – as penas – forem incompatíveis, nos termos do artigo 69, 69 do código. Se elas – as penas – forem incompatíveis, nos termos do artigo 69,
parágrafo primeiro, não se ­aplicará a pena alternativa – sobre a qual, registre-se, parágrafo primeiro, não se a­ plicará a pena alternativa – sobre a qual, registre-se,
houve uma Convenção Internacional, fixando as chamadas regras de Tóquio. houve uma Convenção Internacional, fixando as chamadas regras de Tóquio.
O concurso material, por certo, é a modalidade mais simples de concurso de O concurso material, por certo, é a modalidade mais simples de concurso de
crimes. Veja-se, neste instante, a modalidade do concurso formal de infrações. crimes. Veja-se, neste instante, a modalidade do concurso formal de infrações.

3. Do concurso formal. Primeira análise 3. Do concurso formal. Primeira análise


O Código Penal tratou do concurso formal no artigo 70. Nesta hipótese, tem-se O Código Penal tratou do concurso formal no artigo 70. Nesta hipótese, tem-se
uma conduta que lesiona diferentes bens jurídicos, que gera, em verdade, resulta- uma conduta que lesiona diferentes bens jurídicos, que gera, em verdade, resulta-
dos distintos e que podem ser ou não emanadas do mesmo desígnio. Cabe, pois, dos distintos e que podem ser ou não emanadas do mesmo desígnio. Cabe, pois,
diferenciar o ­concurso formal do conflito aparente de normas, antes de enfrentar diferenciar o ­concurso formal do conflito aparente de normas, antes de enfrentar
todas as particularidades do concurso formal (atendendo, pois, à nota feita supra, todas as particularidades do concurso formal (atendendo, pois, à nota feita supra,
com o número 2 para o rodapé). com o número 2 para o rodapé).

3.1. Concursus normarum x concursus delictorum (formal) 3.1. Concursus normarum x concursus delictorum (formal)
Há conflito aparente de normas penais10 quando uma mesma conduta encontra, Há conflito aparente de normas penais10 quando uma mesma conduta encontra,
prima facie, adequação típica em mais de um dispositivo penal. Neste caso, há prima facie, adequação típica em mais de um dispositivo penal. Neste caso, há
tão somente uma ação típica, com um resultado lesivo a um bem jurídico e que, tão somente uma ação típica, com um resultado lesivo a um bem jurídico e que,
a despeito disso, encontra previsão legal em mais de um dispositivo. O exemplo a despeito disso, encontra previsão legal em mais de um dispositivo. O exemplo
clássico que se traz ao lume é a mãe puérpera que mata o próprio filho, durante o clássico que se traz ao lume é a mãe puérpera que mata o próprio filho, durante o

10. Sobre o assunto, Merkel. No Brasil, além da bibliografia já citada e indicada, imperiosa a análise 10. Sobre o assunto, Merkel. No Brasil, além da bibliografia já citada e indicada, imperiosa a análise
de Nelson Hungria e de Flávio Augusto Monteiro de Barros. O assunto – concursus normarum de Nelson Hungria e de Flávio Augusto Monteiro de Barros. O assunto – concursus normarum
– deve, como bem aponta Aníbal Bruno – ser estudado na Teoria Geral da Norma Penal. – deve, como bem aponta Aníbal Bruno – ser estudado na Teoria Geral da Norma Penal.
Teoria geral do concurso de crimes 63 Teoria geral do concurso de crimes 63

parto ou logo após. Observa-se que, nesta hipótese, há, em princípio, a incidência parto ou logo após. Observa-se que, nesta hipótese, há, em princípio, a incidência
de dois tipos penais em abstrato, qual seja, o tipo penal de homicídio e o tipo de dois tipos penais em abstrato, qual seja, o tipo penal de homicídio e o tipo
penal de infanticídio. penal de infanticídio.
Diz-se que neste caso o conflito é tão somente aparente11 porque, em con- Diz-se que neste caso o conflito é tão somente aparente11 porque, em con-
creto, em respeito ao princípio do non bis in idem, apenas uma norma irá incidir. creto, em respeito ao princípio do non bis in idem, apenas uma norma irá incidir.
É intuitivo que uma pessoa não pode ser punida duas vezes pela prática de um É intuitivo que uma pessoa não pode ser punida duas vezes pela prática de um
mesmo fato. Assim, usam-se os princípios da especialidade, da subsidiariedade e mesmo fato. Assim, usam-se os princípios da especialidade, da subsidiariedade e
da consunção ou absorção. Veja-se, em breves linhas, o significado deles.12 da consunção ou absorção. Veja-se, em breves linhas, o significado deles.12

a) Especialidade – Através deste princípio, chega-se à constatação que a norma a) Especialidade – Através deste princípio, chega-se à constatação que a norma
especial afasta, no particular, a norma geral: lex specialis derogat legi generali. A especial afasta, no particular, a norma geral: lex specialis derogat legi generali. A
norma especial possui todos os elementos da norma geral e ainda um plus diferen- norma especial possui todos os elementos da norma geral e ainda um plus diferen-
ciador, um traço “especializante”. Na hipótese do conflito entre uma morte – que ciador, um traço “especializante”. Na hipótese do conflito entre uma morte – que
pode ser prevista no art. 121 e no art. 123, ambos do Código Penal – é facilmente pode ser prevista no art. 121 e no art. 123, ambos do Código Penal – é facilmente
constatável que a norma do art. 123 tem um critério, um traço a mais, qual seja, o constatável que a norma do art. 123 tem um critério, um traço a mais, qual seja, o
fato de o sujeito passivo da infração ser o próprio filho, com o elemento normativo fato de o sujeito passivo da infração ser o próprio filho, com o elemento normativo
do tipo estado puerperal e, ainda, com observância ao elemento temporal: durante do tipo estado puerperal e, ainda, com observância ao elemento temporal: durante
o parto ou logo após. Assim, pela especialidade, no conflito entre os arts. 121 e o parto ou logo após. Assim, pela especialidade, no conflito entre os arts. 121 e
123, é este que prevalece. 123, é este que prevalece.

b) Subsidiariedade13 – Neste caso, uma norma funciona como “soldado de b) Subsidiariedade13 – Neste caso, uma norma funciona como “soldado de
reserva” – parafraseando a expressão de Hungria – de uma outra. Vale dizer: há reserva” – parafraseando a expressão de Hungria – de uma outra. Vale dizer: há
crimes que ficam em estado de latência, que só vão incidir se o fato não constituir crimes que ficam em estado de latência, que só vão incidir se o fato não constituir
crime mais grave. A subsidiariedade pode ser expressa (quando enunciada em crime mais grave. A subsidiariedade pode ser expressa (quando enunciada em
lei) ou tácita, quando se faz um comparativo entre as figuras típicas sem que as lei) ou tácita, quando se faz um comparativo entre as figuras típicas sem que as
normas os enuncie. Existe subsidiariedade, pois, entre o crime de estupro e o de normas os enuncie. Existe subsidiariedade, pois, entre o crime de estupro e o de
constrangimento ilegal. Neste caso, vale a máxima que a lei principal prevalece. constrangimento ilegal. Neste caso, vale a máxima que a lei principal prevalece.
A norma principal afasta a norma subsidiária. A norma principal afasta a norma subsidiária.

11. Marcelo Fortes Barbosa fala em concurso formal e em concurso real, que pode ser cumulativo 11. Marcelo Fortes Barbosa fala em concurso formal e em concurso real, que pode ser cumulativo
ou não cumulativo. ou não cumulativo.
12. Não se adentrará, aqui, na cizânia doutrinária a respeito da quantidade de princípios. 12. Não se adentrará, aqui, na cizânia doutrinária a respeito da quantidade de princípios.
13. Polêmica também é a relação entre especialidade e subsidiariedade. Grispini chegou a dizer que a 13. Polêmica também é a relação entre especialidade e subsidiariedade. Grispini chegou a dizer que a
diferen­ça era supérflua. No Brasil, sobre o assunto, deve-se registrar o escólio de Paulo José da diferen­ça era supérflua. No Brasil, sobre o assunto, deve-se registrar o escólio de Paulo José da
Costa Júnior e de Flávio Augusto Monteiro de Barros. Este último propõe o seguinte critério, Costa Júnior e de Flávio Augusto Monteiro de Barros. Este último propõe o seguinte critério,
assim colocado g­ raficamente. assim colocado g­ raficamente.

Especialidade Subsidiariedade Especialidade Subsidiariedade


1) A norma especial prevalece, ainda que 1) Prevalece a mais grave, sempre. 1) A norma especial prevalece, ainda que 1) Prevalece a mais grave, sempre.
mais branda. mais branda.
2) Há uma relação de gênero e grau. 2) Não há tal relação. 2) Há uma relação de gênero e grau. 2) Não há tal relação.
3) O conflito se resolve em abstrato. 3) O conflito se resolve em concreto. 3) O conflito se resolve em abstrato. 3) O conflito se resolve em concreto.
64 Gamil Föppel el Hireche 64 Gamil Föppel el Hireche

c) Consunção ou absorção – Lex consumens derogat legi consumptuae. Este c) Consunção ou absorção – Lex consumens derogat legi consumptuae. Este
critério é usado quando, para a realização de um tipo, o sujeito ativo precise passar critério é usado quando, para a realização de um tipo, o sujeito ativo precise passar
por um comportamento que também seja típico. Por exemplo, se alguém pretende por um comportamento que também seja típico. Por exemplo, se alguém pretende
roubar outrem, terá de empregar ou violência ou ameaça grave, que têm adequa- roubar outrem, terá de empregar ou violência ou ameaça grave, que têm adequa-
ção típica, respectivamente, nos artigos 129 e 147, ambos do Código Penal. Aqui ção típica, respectivamente, nos artigos 129 e 147, ambos do Código Penal. Aqui
vale a máxima major absorbet minorem. Este princípio é muito usado no crime vale a máxima major absorbet minorem. Este princípio é muito usado no crime
progressivo, na progressão criminosa e nos antefatos e pós-fatos não punidos.14 progressivo, na progressão criminosa e nos antefatos e pós-fatos não punidos.14

Assim, no conflito aparente de normas – abordado de forma perfunctória, pela Assim, no conflito aparente de normas – abordado de forma perfunctória, pela
limitação de tempo e pela pertinência temática – há uma conduta, que lesiona um limitação de tempo e pela pertinência temática – há uma conduta, que lesiona um
bem e que se adequa a mais de um tipo penal. Neste caso, um precisa ser afastado. bem e que se adequa a mais de um tipo penal. Neste caso, um precisa ser afastado.
No concursus delictorum, na modalidade concurso formal, ao revés, tem-se que No concursus delictorum, na modalidade concurso formal, ao revés, tem-se que
uma mesma conduta, uma mesma ação típica, provoca mais de um resultado. Neste uma mesma conduta, uma mesma ação típica, provoca mais de um resultado. Neste
caso, não há que se falar em bis in idem – fundamento que afasta a dupla punição caso, não há que se falar em bis in idem – fundamento que afasta a dupla punição
no conflito aparente de normas. Assim, a depender do tipo de concurso formal no conflito aparente de normas. Assim, a depender do tipo de concurso formal
(se próprio ou impróprio) as penas serão somadas ou sofrerão uma exasperação. (se próprio ou impróprio) as penas serão somadas ou sofrerão uma exasperação.
Pode-se arrematar esta distinção invocando Bettiol, que aduz que, no conflito Pode-se arrematar esta distinção invocando Bettiol, que aduz que, no conflito
de normas, há várias normas com resultado único; no concurso formal, há uma de normas, há várias normas com resultado único; no concurso formal, há uma
conduta com resultado plúrimo. conduta com resultado plúrimo.

O que difere, pois, o conflito aparente do concurso formal é o número de O que difere, pois, o conflito aparente do concurso formal é o número de
resultados, o número de lesão a bens. resultados, o número de lesão a bens.

3.2. Classificação do concurso formal: concurso formal homogêneo e concurso 3.2. Classificação do concurso formal: concurso formal homogêneo e concurso
formal heterogêneo formal heterogêneo
A distinção entre homogêneo e heterogêneo se refere à qualidade dos crimes A distinção entre homogêneo e heterogêneo se refere à qualidade dos crimes
que são perpetrados. Se forem os mesmos delitos, há concurso formal homogêneo. que são perpetrados. Se forem os mesmos delitos, há concurso formal homogêneo.
Se os delitos forem diferentes, será heterogêneo o concurso formal. Se os delitos forem diferentes, será heterogêneo o concurso formal.

3.3. Diferença entre concurso material e formal 3.3. Diferença entre concurso material e formal
A distinção entre concurso formal e concurso material ou real reside no nú- A distinção entre concurso formal e concurso material ou real reside no nú-
mero de ações típicas. No concurso material, há pluralidade de ações típicas. No mero de ações típicas. No concurso material, há pluralidade de ações típicas. No
formal, apenas uma ação típica, com mais de um resultado. E.g.: atropelamento formal, apenas uma ação típica, com mais de um resultado. E.g.: atropelamento
com óbito de duas pessoas. Aí há uma conduta típica e dois resultados. com óbito de duas pessoas. Aí há uma conduta típica e dois resultados.

14. Em regra, estes fatos não são punidos. Juarez Cirino dos Santos, com sua acuidade invulgar, 14. Em regra, estes fatos não são punidos. Juarez Cirino dos Santos, com sua acuidade invulgar,
observa que pode haver pós-fatos co-punidos como, v.g., a venda a terceiro de boa-fé de mercadoria observa que pode haver pós-fatos co-punidos como, v.g., a venda a terceiro de boa-fé de mercadoria
que anteriormente fora furtada. Deve-se diferenciar o crime progressivo da progressão criminosa que anteriormente fora furtada. Deve-se diferenciar o crime progressivo da progressão criminosa
porque nesta há mudança do elemento volitivo que orientou o agente ao início; naquele, não há porque nesta há mudança do elemento volitivo que orientou o agente ao início; naquele, não há
mudança. Desde o início que o sujeito ativo quer apenas um resultado, sendo necessários atos mudança. Desde o início que o sujeito ativo quer apenas um resultado, sendo necessários atos
que são típicos. que são típicos.
Teoria geral do concurso de crimes 65 Teoria geral do concurso de crimes 65

3.4. Tratamento jurídico do concurso formal ou ideal de crimes. Concurso 3.4. Tratamento jurídico do concurso formal ou ideal de crimes. Concurso
formal próprio (também chamado de perfeito) e concurso formal impróprio formal próprio (também chamado de perfeito) e concurso formal impróprio
(ou imperfeito) (ou imperfeito)
Viu-se que o concurso formal difere do material pela quantidade de condutas. Viu-se que o concurso formal difere do material pela quantidade de condutas.
Releva notar, porém, que o concurso formal – diferentemente do material – tem Releva notar, porém, que o concurso formal – diferentemente do material – tem
uma outra classificação, que é lastreada na unidade ou pluralidade de desígnios. uma outra classificação, que é lastreada na unidade ou pluralidade de desígnios.
Com efeito, fala-se em concurso formal próprio se houver desígnio único e em Com efeito, fala-se em concurso formal próprio se houver desígnio único e em
concurso formal impróprio se houver desígnios autônomos. Veja-se. concurso formal impróprio se houver desígnios autônomos. Veja-se.
Pode ocorrer que, com um único comportamento, que deriva de uma vontade Pode ocorrer que, com um único comportamento, que deriva de uma vontade
única, o agente lesione dois ou mais sujeitos, provoque dois ou mais resultados. única, o agente lesione dois ou mais sujeitos, provoque dois ou mais resultados.
Imagine-se, v.g., a conduta daquele que pretende tão somente causar um dano Imagine-se, v.g., a conduta daquele que pretende tão somente causar um dano
material e que, arremessando uma pedra contra o carro, quebre a vidraça e pro- material e que, arremessando uma pedra contra o carro, quebre a vidraça e pro-
duza ferimentos numa pessoa que estava dentro do veículo e que, pelo uso de duza ferimentos numa pessoa que estava dentro do veículo e que, pelo uso de
película solar, não poderia ser vista. Neste caso, temos uma ação, com elemento película solar, não poderia ser vista. Neste caso, temos uma ação, com elemento
subjetivo único, que gera dois eventos: lesão corporal e dano. Como o dolo foi subjetivo único, que gera dois eventos: lesão corporal e dano. Como o dolo foi
de danificar, exclusivamente, vislumbra-se, em aberratio delicti, um concurso de danificar, exclusivamente, vislumbra-se, em aberratio delicti, um concurso
formal próprio ou perfeito. formal próprio ou perfeito.
Haverá, porém, concurso formal impróprio ou imperfeito quando os diversos Haverá, porém, concurso formal impróprio ou imperfeito quando os diversos
resultados, provocados por ação única, se prenderem a elementos subjetivos dis- resultados, provocados por ação única, se prenderem a elementos subjetivos dis-
tintos, é dizer, a desígnios autônomos, a vontades diferentes. Neste caso, veja-se tintos, é dizer, a desígnios autônomos, a vontades diferentes. Neste caso, veja-se
o exemplo. O sujeito “A” quer matar “B” e “C”, seus inimigos, colocando uma o exemplo. O sujeito “A” quer matar “B” e “C”, seus inimigos, colocando uma
bomba no escritório que “B” e “C” dividem. Assim agindo, “A” produziu dois bomba no escritório que “B” e “C” dividem. Assim agindo, “A” produziu dois
resultados15, com apenas uma conduta, presa a vontades diferentes. resultados15, com apenas uma conduta, presa a vontades diferentes.
Desta maneira, neste ponto, pode-se arrematar que: Desta maneira, neste ponto, pode-se arrematar que:
a) A diferença entre o concurso formal próprio e impróprio reside no número a) A diferença entre o concurso formal próprio e impróprio reside no número
de vontades, na quantidade de desígnios. No impróprio, há desígnios autônomos; de vontades, na quantidade de desígnios. No impróprio, há desígnios autônomos;
no próprio, existe unidade de desígnio. no próprio, existe unidade de desígnio.
b) A diferença entre o concurso formal e o material está na quantidade de b) A diferença entre o concurso formal e o material está na quantidade de
condutas: no material, há pluralidade; no formal, unidade. condutas: no material, há pluralidade; no formal, unidade.
Feito o paralelo entre o concurso formal próprio e o concurso formal impróprio, Feito o paralelo entre o concurso formal próprio e o concurso formal impróprio,
veja-se, agora, o tratamento jurídico da matéria. veja-se, agora, o tratamento jurídico da matéria.

15. Neste passo, importante lembrar da figura do dolo de segundo grau ou necessário, como proposto 15. Neste passo, importante lembrar da figura do dolo de segundo grau ou necessário, como proposto
por Basileu Garcia. Assim, quem coloca uma bomba em um avião e a detona, com a intenção de por Basileu Garcia. Assim, quem coloca uma bomba em um avião e a detona, com a intenção de
matar o passageiro “A”, agiu com dolo direto de primeiro grau em relação a “A” e com dolo direto matar o passageiro “A”, agiu com dolo direto de primeiro grau em relação a “A” e com dolo direto
de segundo grau com relação a todos os demais passageiros. Neste caso, é flagrante a existência de segundo grau com relação a todos os demais passageiros. Neste caso, é flagrante a existência
de concurso formal. de concurso formal.
66 Gamil Föppel el Hireche 66 Gamil Föppel el Hireche

3.4.1. Do concurso formal impróprio. Tratamento jurídico 3.4.1. Do concurso formal impróprio. Tratamento jurídico
No concurso formal impróprio ou imperfeito, consoante já demonstrado, No concurso formal impróprio ou imperfeito, consoante já demonstrado,
há uma conduta, com mais de um resultado, atrelado a diferentes desígnios, a há uma conduta, com mais de um resultado, atrelado a diferentes desígnios, a
diferentes vontades. Esta modalidade foi prevista no art. 70, caput, parte final, diferentes vontades. Esta modalidade foi prevista no art. 70, caput, parte final,
do Código Penal. do Código Penal.
Veja-se que este concurso em muito se aproxima do concurso material. Poder- Veja-se que este concurso em muito se aproxima do concurso material. Poder-
se-ia definir, inclusive, como “um concurso que se aproxima da idéia de cúmulo se-ia definir, inclusive, como “um concurso que se aproxima da idéia de cúmulo
material, com economia de golpes”. material, com economia de golpes”.
Para o concurso formal impróprio, outra solução não resta senão o somatório Para o concurso formal impróprio, outra solução não resta senão o somatório
de penas. Com efeito, o código menciona que, em casos tais, as penas se aplicam de penas. Com efeito, o código menciona que, em casos tais, as penas se aplicam
cumulativamente. Vale dizer, o código consagrou, no concurso formal impróprio, cumulativamente. Vale dizer, o código consagrou, no concurso formal impróprio,
a regra do cúmulo material, empregada para o concurso material de infrações. a regra do cúmulo material, empregada para o concurso material de infrações.
Assim, se um carrasco colocar cinqüenta pessoas numa câmara de gás letal Assim, se um carrasco colocar cinqüenta pessoas numa câmara de gás letal
e, em seguida, há um único comportamento, preso a vários (cinqüenta) elementos e, em seguida, há um único comportamento, preso a vários (cinqüenta) elementos
volitivos. Neste caso, as penas, pelos homicídios, serão somadas, o que, no exemplo volitivos. Neste caso, as penas, pelos homicídios, serão somadas, o que, no exemplo
lançado, corresponde a cinqüenta vezes a prática de homicídio. lançado, corresponde a cinqüenta vezes a prática de homicídio.
Desta forma, se haver pluralidade de resultados derivados de múltiplos de- Desta forma, se haver pluralidade de resultados derivados de múltiplos de-
sígnios, as penas seriam somadas, quer seja mediante única conduta (concurso sígnios, as penas seriam somadas, quer seja mediante única conduta (concurso
formal próprio) quer seja por múltiplas condutas (concurso material). formal próprio) quer seja por múltiplas condutas (concurso material).

3.4.2. Do concurso formal próprio. Tratamento jurídico 3.4.2. Do concurso formal próprio. Tratamento jurídico
Pode ocorrer, porém, conforme já evidenciado, que o concurso formal derive Pode ocorrer, porém, conforme já evidenciado, que o concurso formal derive
de uma única vontade, de um único desígnio. Neste caso, o critério legal a ser de uma única vontade, de um único desígnio. Neste caso, o critério legal a ser
usado é o do caput do art. 70, 1ª figura, do Código Penal, qual seja, o critério da usado é o do caput do art. 70, 1ª figura, do Código Penal, qual seja, o critério da
exasperação. exasperação.
Assim, imagine-se que “A”, sujeito, queira matar “B”. O único projétil dis- Assim, imagine-se que “A”, sujeito, queira matar “B”. O único projétil dis-
parado por “A” acerta “C” e, transpondo o cadáver, ainda atinge “B”. Neste caso, parado por “A” acerta “C” e, transpondo o cadáver, ainda atinge “B”. Neste caso,
é patente e evidente a existência de elemento subjetivo único, presente, pois, o é patente e evidente a existência de elemento subjetivo único, presente, pois, o
concurso formal próprio de infrações. concurso formal próprio de infrações.
Da análise do art. 70, caput, primeira parte, do Código Penal, conclui-se, com Da análise do art. 70, caput, primeira parte, do Código Penal, conclui-se, com
facilidade, que se trata de uma causa de aumento de pena16. Neste caso, toma- facilidade, que se trata de uma causa de aumento de pena16. Neste caso, toma-
se a pena maior ou, se idêntica, qualquer uma delas, aumentada de um sexto à se a pena maior ou, se idêntica, qualquer uma delas, aumentada de um sexto à
metade. metade.

16. Usada, pois, na terceira fase da dosimetria da pena, em conformidade com o método trifásico, 16. Usada, pois, na terceira fase da dosimetria da pena, em conformidade com o método trifásico,
proposto por Hungria. Aqui, imperioso é que se faça menção à obra de Paganella Boschi, com proposto por Hungria. Aqui, imperioso é que se faça menção à obra de Paganella Boschi, com
o título “Das penas e seus critérios de aplicação”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. o título “Das penas e seus critérios de aplicação”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
Teoria geral do concurso de crimes 67 Teoria geral do concurso de crimes 67

Rogério Greco, penalista mineiro, aduz que a variação da tarifação (entre Rogério Greco, penalista mineiro, aduz que a variação da tarifação (entre
um sexto e a metade) deve levar em conta a quantidade de lesões. Propõe ele o um sexto e a metade) deve levar em conta a quantidade de lesões. Propõe ele o
seguinte quadro: seguinte quadro:

Número de lesões Fração de aumento Número de lesões Fração de aumento


2 1/6 2 1/6
3 1/5 3 1/5
4 1/4 4 1/4
5 1/3 5 1/3
6 ou mais 1/2 6 ou mais 1/2

Registre-se, ainda, que jamais, em se tratando de exasperação, se pode ultra- Registre-se, ainda, que jamais, em se tratando de exasperação, se pode ultra-
passar o que seria correspondente ao somatório das penas. Trata-se da chamada passar o que seria correspondente ao somatório das penas. Trata-se da chamada
regra benéfica do concurso material, válida para o concurso formal próprio e para regra benéfica do concurso material, válida para o concurso formal próprio e para
o crime continuado. Dito mais claramente: nestas duas hipóteses, a exasperação o crime continuado. Dito mais claramente: nestas duas hipóteses, a exasperação
– criada em benefício do réu – jamais pode superar o somatório das penas. É – criada em benefício do réu – jamais pode superar o somatório das penas. É
dizer, cabe ao juiz fazer uma projeção: a maior pena aplicável pela exasperação dizer, cabe ao juiz fazer uma projeção: a maior pena aplicável pela exasperação
no concurso formal próprio e na continuidade delitiva é aquela quer seria corres- no concurso formal próprio e na continuidade delitiva é aquela quer seria corres-
pondente ao somatório.17 pondente ao somatório.17
Analisados os concursos de crimes – material e formal – cumpre-nos apreciar Analisados os concursos de crimes – material e formal – cumpre-nos apreciar
a continuidade delitiva. a continuidade delitiva.

4. Do crime continuado. Considerações primeiras 4. Do crime continuado. Considerações primeiras


Sobre a continuidade delitiva, é farta e vasta a bibliografia nacional. A obra Sobre a continuidade delitiva, é farta e vasta a bibliografia nacional. A obra
definitiva, porém já esgotada, é a do Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel, das definitiva, porém já esgotada, é a do Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel, das
Arcadas Franciscanas. Dignos de nota são também os trabalhos de Ney Fayet Arcadas Franciscanas. Dignos de nota são também os trabalhos de Ney Fayet
Júnior e Alcides Muñoz Neto, bem como a dissertação de mestrado da Prof.ª Júnior e Alcides Muñoz Neto, bem como a dissertação de mestrado da Prof.ª
Dr.ª Patrícia Glioche Béze. Antes de analisarmos o instituto, cumpre fazer um Dr.ª Patrícia Glioche Béze. Antes de analisarmos o instituto, cumpre fazer um
brevíssimo escorço histórico. brevíssimo escorço histórico.

4.1. Crime continuado. Evolução histórica 4.1. Crime continuado. Evolução histórica
Aponta-se a origem do crime continuado no século XIV, por obra de Baldo Aponta-se a origem do crime continuado no século XIV, por obra de Baldo
deUbaldis. A tese ganhou maior notoriedade, porém, a partir da contribuição de deUbaldis. A tese ganhou maior notoriedade, porém, a partir da contribuição de
Bártolo de Sassoferrato. Na Itália, ganhou destaque no Código de Zanardelli, Bártolo de Sassoferrato. Na Itália, ganhou destaque no Código de Zanardelli,
em 1889. No Brasil, há registro no Código do Império de 1890 e, ainda, na em 1889. No Brasil, há registro no Código do Império de 1890 e, ainda, na

17. No particular, consultar Frederico Marques. Instituições de Direito Penal. Atualizada por Antônio 17. No particular, consultar Frederico Marques. Instituições de Direito Penal. Atualizada por Antônio
Mariz de Oliveira e Guilherme de Souza Nucci. Campinas: Bookseller. Mariz de Oliveira e Guilherme de Souza Nucci. Campinas: Bookseller.
Vide ainda, QUEIROZ, Paulo. Direito Penal, Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2005. Vide ainda, QUEIROZ, Paulo. Direito Penal, Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2005.
68 Gamil Föppel el Hireche 68 Gamil Föppel el Hireche

Consolidação de Leis Piragibe (que lhe cobrava a existência de elemento subjetivo, Consolidação de Leis Piragibe (que lhe cobrava a existência de elemento subjetivo,
consoante apreciação a ser feita no momento oportuno). consoante apreciação a ser feita no momento oportuno).
O crime continuado surgiu para evitar penas muito altas, por vezes cruéis e O crime continuado surgiu para evitar penas muito altas, por vezes cruéis e
infamantes, para a hipótese de o sujeito tratar de cometer vários delitos. O assunto infamantes, para a hipótese de o sujeito tratar de cometer vários delitos. O assunto
é muito bem apreciado por Manoel Pedro Pimentel em obra específica. Trata-se é muito bem apreciado por Manoel Pedro Pimentel em obra específica. Trata-se
o crime continuado de um tratamento mais brando a condutas que, se não exis- o crime continuado de um tratamento mais brando a condutas que, se não exis-
tisse o instituto, seriam tratadas como crime em concurso material. Com o crime tisse o instituto, seriam tratadas como crime em concurso material. Com o crime
continuado, consideram-se várias condutas como se única fosse, apreciando o continuado, consideram-se várias condutas como se única fosse, apreciando o
“conjunto da obra”. “conjunto da obra”.
Com esta breve introdução, passemos a analisar a natureza jurídica do crime Com esta breve introdução, passemos a analisar a natureza jurídica do crime
continuado. continuado.

4.2. Crime continuado. Natureza jurídica 4.2. Crime continuado. Natureza jurídica
Segundo Carrara, o crime continuado resulta de uma ficção. Em essência, a Segundo Carrara, o crime continuado resulta de uma ficção. Em essência, a
continuidade delitiva seria uma hipótese de concurso material. Dispensa-lhe um continuidade delitiva seria uma hipótese de concurso material. Dispensa-lhe um
tratamento mais brando pela presença de certos elementos. É uma ficção que leva tratamento mais brando pela presença de certos elementos. É uma ficção que leva
ao tratamento como unitário de condutas delituosas distintas. ao tratamento como unitário de condutas delituosas distintas.

Assim, em países árabes, o sujeito tem a mão decepada depois da condenação Assim, em países árabes, o sujeito tem a mão decepada depois da condenação
pelo terceiro furto. Se olharmos os três furtos como um, com os atos posteriores pelo terceiro furto. Se olharmos os três furtos como um, com os atos posteriores
sendo, considerados desdobramento do primeiro, aplicar-se-á a pena pelo conjunto, sendo, considerados desdobramento do primeiro, aplicar-se-á a pena pelo conjunto,
evitando-se, destarte, a mutilação. Esta – a ficção – a opção do legislador pátrio. evitando-se, destarte, a mutilação. Esta – a ficção – a opção do legislador pátrio.

Poder-se-ia ainda falar do crime continuado ainda como se fosse uma rea- Poder-se-ia ainda falar do crime continuado ainda como se fosse uma rea-
lidade jurídica ou realidade em seus próprios termos. Para estes doutrinadores lidade jurídica ou realidade em seus próprios termos. Para estes doutrinadores
– defensores da tese – existe uma entidade real chamada crime continuado, que – defensores da tese – existe uma entidade real chamada crime continuado, que
difere, do ponto de vista ôntico, do concurso material. Logicamente, esta teoria, difere, do ponto de vista ôntico, do concurso material. Logicamente, esta teoria,
que propugna ser real a natureza jurídica do crime continuado, não pode prevale- que propugna ser real a natureza jurídica do crime continuado, não pode prevale-
cer. O crime continuado é, uma realidade, uma pluralidade de atos, tomada como cer. O crime continuado é, uma realidade, uma pluralidade de atos, tomada como
crume único por ficção legal. crume único por ficção legal.

Exposta a natureza, cumpre observar sua teoria. Exposta a natureza, cumpre observar sua teoria.

4.3. Teorias a respeito do crime continuado 4.3. Teorias a respeito do crime continuado

A primeira teoria que visou a explicar o crime continuado propõe uma análise A primeira teoria que visou a explicar o crime continuado propõe uma análise
puramente objetiva. Segundo Manoel Pedro Pimentel, é a teoria que vigora na puramente objetiva. Segundo Manoel Pedro Pimentel, é a teoria que vigora na
Alemanha. Sua construção se deve a Feuerbach. No Brasil, adotou-se por expresso Alemanha. Sua construção se deve a Feuerbach. No Brasil, adotou-se por expresso
à teoria objetiva, máxime diante da redação do item 59 da EGM (Exposição Geral à teoria objetiva, máxime diante da redação do item 59 da EGM (Exposição Geral
de Motivos). Assim, tomam-se em consideração tão somente elementos objetivos de Motivos). Assim, tomam-se em consideração tão somente elementos objetivos
sem considerar elementos subjetivos. Vale dizer: não se cobra unidade de elemento sem considerar elementos subjetivos. Vale dizer: não se cobra unidade de elemento
subjetivo, não se exige que o sujeito projete mentalmente a intenção de praticar subjetivo, não se exige que o sujeito projete mentalmente a intenção de praticar
Teoria geral do concurso de crimes 69 Teoria geral do concurso de crimes 69

crime único. Assim, se a cada dia uma emprega doméstica, por exemplo, furta crime único. Assim, se a cada dia uma emprega doméstica, por exemplo, furta
dinheiro de casa, deve-se-lhe reconhecer a continuidade delitiva, ainda que ela dinheiro de casa, deve-se-lhe reconhecer a continuidade delitiva, ainda que ela
não tenha projetado, em mente, um crime único. não tenha projetado, em mente, um crime único.
A teoria subjetiva, segundo o escólio de Paulo José Costa Jr., vigora na A teoria subjetiva, segundo o escólio de Paulo José Costa Jr., vigora na
Itália. No Brasil, o maior defensor da teoria é o Prof. Juarez Cirino dos Santos. Itália. No Brasil, o maior defensor da teoria é o Prof. Juarez Cirino dos Santos.
Para estes teóricos, que influenciaram, a Consolidação de Leis Piragibe18, deve-se Para estes teóricos, que influenciaram, a Consolidação de Leis Piragibe18, deve-se
cobrar, no crime continuado, a presença de elemento subjetivo. É dizer: para além cobrar, no crime continuado, a presença de elemento subjetivo. É dizer: para além
da existência de elementos semelhantes de natureza objetiva, dever-se-ia cobrar da existência de elementos semelhantes de natureza objetiva, dever-se-ia cobrar
a existência de vontade voltada a um fim único e específico. Assim, retornando a existência de vontade voltada a um fim único e específico. Assim, retornando
ao exemplo supra, da emprega doméstica que furta as coisas de sua “patroa”, ao exemplo supra, da emprega doméstica que furta as coisas de sua “patroa”,
dever-se-ia cobrar da empregada uma única vontade, como se, por exemplo, ela dever-se-ia cobrar da empregada uma única vontade, como se, por exemplo, ela
pensasse em furtar um mil reais em cem vezes de dez reais cada. A favor desta pensasse em furtar um mil reais em cem vezes de dez reais cada. A favor desta
tese, o argumento de que em Direito Penal o elemento subjetivo é imprescindível, tese, o argumento de que em Direito Penal o elemento subjetivo é imprescindível,
irrenunciável. irrenunciável.
Finalmente, ainda há uma teoria mista, híbrida ou eclética, que funde os ele- Finalmente, ainda há uma teoria mista, híbrida ou eclética, que funde os ele-
mentos objetivos e subjetivos, chamada de objetiva-subjetiva, que não é aceita mentos objetivos e subjetivos, chamada de objetiva-subjetiva, que não é aceita
no Brasil. no Brasil.
Assim sendo, a natureza jurídica do crime continuado é de ficção e a teoria Assim sendo, a natureza jurídica do crime continuado é de ficção e a teoria
que o rege é a objetiva. Passa-se, agora, à análise dos seus elementos. que o rege é a objetiva. Passa-se, agora, à análise dos seus elementos.

4.4. Dos elementos da continuidade delitiva 4.4. Dos elementos da continuidade delitiva
O crime continuado vem regido pelo art. 71 do código. Consoante já assina- O crime continuado vem regido pelo art. 71 do código. Consoante já assina-
lado, não se cobra a unidade de elemento subjetivo. Veja-se, pois, cada um dos lado, não se cobra a unidade de elemento subjetivo. Veja-se, pois, cada um dos
elementos, escandindo o art. 71 do Código Penal. elementos, escandindo o art. 71 do Código Penal.

4.4.1. Mais de uma ação ou omissão 4.4.1. Mais de uma ação ou omissão
É pressuposto do crime continuado que exista mais de uma conduta. Conduta É pressuposto do crime continuado que exista mais de uma conduta. Conduta
única com produção de mais de um resultado seria crime em concurso formal. única com produção de mais de um resultado seria crime em concurso formal.

4.4.2. Crimes da mesma espécie 4.4.2. Crimes da mesma espécie


Aqui está uma das maiores problemáticas do crime continuado: definir o que Aqui está uma das maiores problemáticas do crime continuado: definir o que
são crimes da mesma espécie. Parte da doutrina defende que crimes da mesma são crimes da mesma espécie. Parte da doutrina defende que crimes da mesma
espécie são os previstos necessariamente no mesmo tipo penal, podendo, porém, espécie são os previstos necessariamente no mesmo tipo penal, podendo, porém,
haver continuidade delitiva entre o tipo simples e os derivados (qualificado e pri- haver continuidade delitiva entre o tipo simples e os derivados (qualificado e pri-
vilegiado). Não aceitamos tal tese, que na verdade confunde “crimes da mesma vilegiado). Não aceitamos tal tese, que na verdade confunde “crimes da mesma
espécie” com crimes idênticos. No particular, seguimos a lição do Prof. Dr. Paulo espécie” com crimes idênticos. No particular, seguimos a lição do Prof. Dr. Paulo

18. Que perdurou durante 13 anos. De 1927 a 1940. 18. Que perdurou durante 13 anos. De 1927 a 1940.
70 Gamil Föppel el Hireche 70 Gamil Föppel el Hireche

José da Costa Júnior, secundado por Prof. Dr. Heleno Cláudio Fragoso e por José da Costa Júnior, secundado por Prof. Dr. Heleno Cláudio Fragoso e por
Paulo Queiroz, que já encontra, inclusive, eco no Superior Tribunal de Justiça, Paulo Queiroz, que já encontra, inclusive, eco no Superior Tribunal de Justiça,
em voto de lavra do então Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro (6a Turma). Para em voto de lavra do então Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro (6a Turma). Para
esta corrente, crimes da mesma espécie não são necessariamente previstos no esta corrente, crimes da mesma espécie não são necessariamente previstos no
mesmo tipo. São aqueles que, em verdade, lesionam bens semelhantes com con- mesmo tipo. São aqueles que, em verdade, lesionam bens semelhantes com con-
dutas similares. Assim, Luiz Vicente Cernicchiaro entendeu haver continuidade dutas similares. Assim, Luiz Vicente Cernicchiaro entendeu haver continuidade
delitiva entre o roubo (art. 157) e a extorsão (art. 158), desde que respeitadas as delitiva entre o roubo (art. 157) e a extorsão (art. 158), desde que respeitadas as
condições do art. 71. No STF, porém, prevalece a tese de que crime continuado condições do art. 71. No STF, porém, prevalece a tese de que crime continuado
só pode haver se a previsão for do mesmo tipo penal. só pode haver se a previsão for do mesmo tipo penal.

4.4.3. Circunstância de tempo 4.4.3. Circunstância de tempo


A doutrina aponta que entre um ato e outro não pode haver prazo superior a A doutrina aponta que entre um ato e outro não pode haver prazo superior a
trinta dias. Aqui, invocando passagem de Hungria a respeito da ilicitude, deve-se trinta dias. Aqui, invocando passagem de Hungria a respeito da ilicitude, deve-se
mencionar que, também neste caso, não pode haver rigor de balança de farmácia. mencionar que, também neste caso, não pode haver rigor de balança de farmácia.
Pequenas oscilações superiores aos 30 dias são toleradas.19 Pequenas oscilações superiores aos 30 dias são toleradas.19

4.4.4. Circunstância de lugar 4.4.4. Circunstância de lugar


Entende-se que os diversos atos devem ser praticados na mesma cidade. Mais Entende-se que os diversos atos devem ser praticados na mesma cidade. Mais
uma vez, recomenda-se cautela e os tribunais já aceitam a tese mesmo quando se uma vez, recomenda-se cautela e os tribunais já aceitam a tese mesmo quando se
tratar de fatos praticados em cidades distintas, conurbadas. tratar de fatos praticados em cidades distintas, conurbadas.

4.4.5. Circunstâncias de modo 4.4.5. Circunstâncias de modo


Deve haver semelhança no modus operandi do infrator. Deve haver semelhança no modus operandi do infrator.
Presentes todas estas condições, objetivamente, tem lugar a ficção jurídica do Presentes todas estas condições, objetivamente, tem lugar a ficção jurídica do
crime continuado, com natureza jurídica de ficção e regido pela teoria objetiva. crime continuado, com natureza jurídica de ficção e regido pela teoria objetiva.
Trata-se de uma causa de aumento de pena (que, a despeito de ser de aumento, Trata-se de uma causa de aumento de pena (que, a despeito de ser de aumento,
dá tratamento mais brando que o concurso material). Para o crime continuado, dá tratamento mais brando que o concurso material). Para o crime continuado,
aplica-se a tese de exasperação, com a mesma vedação que o crime em concurso aplica-se a tese de exasperação, com a mesma vedação que o crime em concurso
formal próprio, vale dizer, aplica-se a regra benéfica do concurso material, ou formal próprio, vale dizer, aplica-se a regra benéfica do concurso material, ou
seja, a pena exasperada jamais poderá ultrapassar o correspondente ao somatório, seja, a pena exasperada jamais poderá ultrapassar o correspondente ao somatório,
máxime porque se trata de instituto para beneficiar o réu. máxime porque se trata de instituto para beneficiar o réu.
Expostas as circunstâncias do crime continuado, veja-se a problemática Expostas as circunstâncias do crime continuado, veja-se a problemática
questão do crime continuado específico. questão do crime continuado específico.

19. Fora daí, haveria apenas reiteração criminosa, não continuidade delitiva. Não se confunda crime 19. Fora daí, haveria apenas reiteração criminosa, não continuidade delitiva. Não se confunda crime
continuado com crime habitual, que é aquele que só se consuma se houver reiteração de atos, continuado com crime habitual, que é aquele que só se consuma se houver reiteração de atos,
e que, por isso, não aceita o conatus. Também não se confunde crime continuado com crime e que, por isso, não aceita o conatus. Também não se confunde crime continuado com crime
permanente, aquele cuja consumação se protrai no tempo por interesse do sujeito ativo. permanente, aquele cuja consumação se protrai no tempo por interesse do sujeito ativo.
Teoria geral do concurso de crimes 71 Teoria geral do concurso de crimes 71

4.5. Do crime continuado específico 4.5. Do crime continuado específico


Na década de 80, um caso ganhou repercussão nacional, conhecido como Na década de 80, um caso ganhou repercussão nacional, conhecido como
episódio Lu e Malu. Era um casal carioca e que Lu, o companheiro, tinha ciúmes episódio Lu e Malu. Era um casal carioca e que Lu, o companheiro, tinha ciúmes
do passado de sua companheira Malu. Para acabar com o problema, resolveram, do passado de sua companheira Malu. Para acabar com o problema, resolveram,
em co-delinqüência, que matariam todos os ex-amantes de Malu. Questiona-se: em co-delinqüência, que matariam todos os ex-amantes de Malu. Questiona-se:
poder-se-ia invocar a tese de continuidade delitiva? poder-se-ia invocar a tese de continuidade delitiva?
O STF chegou a editar a Súmula 605, que dispõe que não se aceita continuidade O STF chegou a editar a Súmula 605, que dispõe que não se aceita continuidade
delitiva nos crimes dolosos contra as pessoas. Em 1984, porém, o art. 71 ganhou delitiva nos crimes dolosos contra as pessoas. Em 1984, porém, o art. 71 ganhou
um parágrafo único, dispondo que, nos crimes violentos, praticados contra vítimas um parágrafo único, dispondo que, nos crimes violentos, praticados contra vítimas
­diferentes, observadas as condições de culpabilidade20, antecedentes, conduta social ­diferentes, observadas as condições de culpabilidade20, antecedentes, conduta social
e personalidade do indivíduo, poderá o juiz21 aplicar a pena de um só dos crimes e personalidade do indivíduo, poderá o juiz21 aplicar a pena de um só dos crimes
aumentada até o triplo. Assim, com a reforma de 1984, poder-se-ia invocar a tese aumentada até o triplo. Assim, com a reforma de 1984, poder-se-ia invocar a tese
do crime continuado para “serial killers” como os de Vigário Geral. do crime continuado para “serial killers” como os de Vigário Geral.
Assim sendo, para o crime continuado específico, exigem-se os requisitos do Assim sendo, para o crime continuado específico, exigem-se os requisitos do
71 e mais que haja violência ou ameaça contra vítimas distintas. E aí se indaga: e 71 e mais que haja violência ou ameaça contra vítimas distintas. E aí se indaga: e
se a vítima for a mesma? No particular, em homenagem ao princípio da proporcio- se a vítima for a mesma? No particular, em homenagem ao princípio da proporcio-
nalidade, estamos com Cezar Roberto Bitencourt. Se a vítima for a mesma, fica nalidade, estamos com Cezar Roberto Bitencourt. Se a vítima for a mesma, fica
afastada a regra do parágrafo único do 71, mas remanesce, por subsidiariedade, afastada a regra do parágrafo único do 71, mas remanesce, por subsidiariedade,
a forma do caput. a forma do caput.
Visto o crime continuado específico, cuide-se agora de outro tema relevante: Visto o crime continuado específico, cuide-se agora de outro tema relevante:
crime continuado e prescrição. crime continuado e prescrição.

4.6. Crime continuado e prescrição 4.6. Crime continuado e prescrição


Na continuidade delitiva, por força do art. 119 do código e em razão da Na continuidade delitiva, por força do art. 119 do código e em razão da
Súmula 497 do Supremo Tribunal Federal, haverá extinção da punibilidade de Súmula 497 do Supremo Tribunal Federal, haverá extinção da punibilidade de
ato por ato, desprezando-se o acréscimo de continuidade delitiva. Isto porque o ato por ato, desprezando-se o acréscimo de continuidade delitiva. Isto porque o
crime continuado, criado para beneficiar o réu, não pode ser usado em seu desfa- crime continuado, criado para beneficiar o réu, não pode ser usado em seu desfa-
vor. A doutrina ainda usa esta súmula por empréstimo – como faz Ada Pelegrini vor. A doutrina ainda usa esta súmula por empréstimo – como faz Ada Pelegrini
Grinover, titular de cadeira da USP – para justificar o acréscimo da continuidade Grinover, titular de cadeira da USP – para justificar o acréscimo da continuidade
delitiva não pode ser retomado em efeito para afastar a incidência dos juizados delitiva não pode ser retomado em efeito para afastar a incidência dos juizados
especiais criminais, nos crimes de menor potencial ofensivo, com redação dada especiais criminais, nos crimes de menor potencial ofensivo, com redação dada
pela Lei 10259/0122, que considera desta espécie as infrações com penas máximas pela Lei 10259/0122, que considera desta espécie as infrações com penas máximas
iguais ou inferiores a dois anos. iguais ou inferiores a dois anos.

20. Sobre o assunto, é obrigatória a leitura de Claus Roxin, a demonstrar a tríplice dimensão da 20. Sobre o assunto, é obrigatória a leitura de Claus Roxin, a demonstrar a tríplice dimensão da
culpabilidade. culpabilidade.
21. Entendemos, com Delmanto, que a expressão deve ser lida como “terá de” por se tratar de direito 21. Entendemos, com Delmanto, que a expressão deve ser lida como “terá de” por se tratar de direito
subjetivo do réu. É a interpretação mais garantista, consentânea com o movimento inaugurado subjetivo do réu. É a interpretação mais garantista, consentânea com o movimento inaugurado
por Ferrajoli. por Ferrajoli.
22. O STJ já reconheceu sua aplicabilidade aos crimes da justiça estadual. 22. O STJ já reconheceu sua aplicabilidade aos crimes da justiça estadual.
72 Gamil Föppel el Hireche 72 Gamil Föppel el Hireche

4.7. Crime continuado e sucessão de leis penais 4.7. Crime continuado e sucessão de leis penais
Por força da Súmula 711 do STF, editada em 24.09.03, aplica-se a lei mais Por força da Súmula 711 do STF, editada em 24.09.03, aplica-se a lei mais
nova ao crime continuado e permanente de forma imediata, sem que isto represente nova ao crime continuado e permanente de forma imediata, sem que isto represente
violação à legalidade estrita. violação à legalidade estrita.

4.8. Crime continuado e coisa julgada 4.8. Crime continuado e coisa julgada
Se houver novos fatos praticados pelo réu se que se tenham sido objeto de Se houver novos fatos praticados pelo réu se que se tenham sido objeto de
denúncia, ela deve sofrer um aditamento objetivo, haja vista a conexão processual. denúncia, ela deve sofrer um aditamento objetivo, haja vista a conexão processual.
Se, porém, o fato for descoberto depois do trânsito em julgado de sentença, após Se, porém, o fato for descoberto depois do trânsito em julgado de sentença, após
a condenação por este novo fato, cabe ao juiz de execuções, no dizer de Manoel a condenação por este novo fato, cabe ao juiz de execuções, no dizer de Manoel
Pedro Pimentel, unificar as penas. Pedro Pimentel, unificar as penas.
Encerrada a análise do crime continuado, cuidaremos de assuntos ligados ao Encerrada a análise do crime continuado, cuidaremos de assuntos ligados ao
ponto central deste trabalho. ponto central deste trabalho.

5. Multa no concurso de crimes 5. Multa no concurso de crimes


No concurso de crimes, para a multa, o critério é apenas um: o do somatório No concurso de crimes, para a multa, o critério é apenas um: o do somatório
das infrações. Para o crime continuado, entendemos, com Paulo José da Costa das infrações. Para o crime continuado, entendemos, com Paulo José da Costa
Júnior, que as multas não serão somadas, haja vista se tratar de crime único e não Júnior, que as multas não serão somadas, haja vista se tratar de crime único e não
concurso de crimes. concurso de crimes.

6. Unificação das penas 6. Unificação das penas


As penas devem ser unificadas em conformidade com o art. 75 do Código As penas devem ser unificadas em conformidade com o art. 75 do Código
Penal, sendo o seu máximo limite, para cumprimento, em 30 anos, limite este Penal, sendo o seu máximo limite, para cumprimento, em 30 anos, limite este
que só é válido para o cumprimento e não para os incidentes de execução, em que só é válido para o cumprimento e não para os incidentes de execução, em
conformidade com a Súmula 715 do STF, editada em 24.09.03. conformidade com a Súmula 715 do STF, editada em 24.09.03.
Se houver a prática de novo crime após o início de execução de pena, deve Se houver a prática de novo crime após o início de execução de pena, deve
ser feita nova unificação, com outro prazo máximo de trinta anos. Por força do ser feita nova unificação, com outro prazo máximo de trinta anos. Por força do
artigo 76, as penas mais graves são executadas primeiro. artigo 76, as penas mais graves são executadas primeiro.

7. Do crime aberrante 7. Do crime aberrante


O crime aberrante é previsto nos arts. 73 e 74. Em breves linhas, eles signi- O crime aberrante é previsto nos arts. 73 e 74. Em breves linhas, eles signi-
ficam que: ficam que:

7.1. Aberratio ictus 7.1. Aberratio ictus


Neste caso, os bens não são iguais. Não se confunde com erro acidental quanto Neste caso, os bens não são iguais. Não se confunde com erro acidental quanto
à pessoa, muito embora ambos sejam regidos pela teoria da ficção (levam-se em à pessoa, muito embora ambos sejam regidos pela teoria da ficção (levam-se em
consideração as qualidades da pessoa visada, não daquele que foi efetivamente consideração as qualidades da pessoa visada, não daquele que foi efetivamente
atingida). No erro quanto à pessoa, o agente supõe que uma pessoa é outra. No erro atingida). No erro quanto à pessoa, o agente supõe que uma pessoa é outra. No erro
Teoria geral do concurso de crimes 73 Teoria geral do concurso de crimes 73

na execução, o agente sabe exatamente quem é a sua vítima, atira e acerta pessoa na execução, o agente sabe exatamente quem é a sua vítima, atira e acerta pessoa
distinta. Se, no erro na execução, forem atingidas as duas pessoas, há concurso distinta. Se, no erro na execução, forem atingidas as duas pessoas, há concurso
ideal próprio de infrações, nos termos do artigo 73 do código. ideal próprio de infrações, nos termos do artigo 73 do código.

7.2. Resultado diverso do pretendido 7.2. Resultado diverso do pretendido


Neste caso, há um erro na execução, porém o agente lesiona bem diverso do Neste caso, há um erro na execução, porém o agente lesiona bem diverso do
que pretendia lesionar. Assim, ele pode querer lesionar uma coisa e atinge uma que pretendia lesionar. Assim, ele pode querer lesionar uma coisa e atinge uma
pessoa. Neste caso, é punido pelo crime culposo quanto à pessoa. Se o inverso pessoa. Neste caso, é punido pelo crime culposo quanto à pessoa. Se o inverso
ocorrer, quer acertar uma pessoa e acerta uma coisa, o sujeito não pode ser punido ocorrer, quer acertar uma pessoa e acerta uma coisa, o sujeito não pode ser punido
por crime culposo contra a coisa, haja vista a inexistência de crime culposo de por crime culposo contra a coisa, haja vista a inexistência de crime culposo de
dano. Restaria a possibilidade de punição pela tentativa de crime contra a pessoa, dano. Restaria a possibilidade de punição pela tentativa de crime contra a pessoa,
na modalidade incruenta. Na aberratio delicti, prevista no artigo 74, se os dois bens na modalidade incruenta. Na aberratio delicti, prevista no artigo 74, se os dois bens
forem lesionados, haverá, respeitada a legalidade, concurso formal de infrações. forem lesionados, haverá, respeitada a legalidade, concurso formal de infrações.
Encerrada a análise do crime continuado e do concurso de crimes, faremos, Encerrada a análise do crime continuado e do concurso de crimes, faremos,
brevemente considerações acerca do concursus delinquentium, consoante a ad- brevemente considerações acerca do concursus delinquentium, consoante a ad-
vertência que fizemos à fl. 02. vertência que fizemos à fl. 02.

8. Concurso de agentes 8. Concurso de agentes


O concurso de agentes – concursus delinquentium – é regido no Brasil, para- O concurso de agentes – concursus delinquentium – é regido no Brasil, para-
fraseando João Mestiéri, pela teoria monista ou unitária do concurso de pessoas23, fraseando João Mestiéri, pela teoria monista ou unitária do concurso de pessoas23,
que tem quatro elementos: que tem quatro elementos:
a) Unidade infrações; a) Unidade infrações;
b) Relevância causal de cada comportamento24; b) Relevância causal de cada comportamento24;
c) Vínculo subjetivo, não necessariamente prévio; c) Vínculo subjetivo, não necessariamente prévio;
d) Pluralidade de agentes. d) Pluralidade de agentes.
Em razão de não haver tempo suficiente para discorrermos ainda mais sobre Em razão de não haver tempo suficiente para discorrermos ainda mais sobre
este assunto, remetemos o leitor à bibliografia indicada.25 este assunto, remetemos o leitor à bibliografia indicada.25

23. Mitigada por dois motivos: primeiro, porque a identidade de infração não representa unidade de pena, 23. Mitigada por dois motivos: primeiro, porque a identidade de infração não representa unidade de pena,
pelo preceito constitucional da individualização da pena e pela regra do caput do art. 29. Era o que pelo preceito constitucional da individualização da pena e pela regra do caput do art. 29. Era o que
Latagliata chamava de síntese dialética. Ou seja, havendo vários co-delinqüentes, eles respondem Latagliata chamava de síntese dialética. Ou seja, havendo vários co-delinqüentes, eles respondem
pelo mesmo crime, com penas distintas. Em segundo lugar, a adoção foi mitigada porque há dis- pelo mesmo crime, com penas distintas. Em segundo lugar, a adoção foi mitigada porque há dis-
positivos na parte especial que cindem a unidade de crime. Assim, no abortamento provocado por positivos na parte especial que cindem a unidade de crime. Assim, no abortamento provocado por
terceiro com o consentimento da gestante, bem como nos crimes de corrupção ativa e passiva. Sobre terceiro com o consentimento da gestante, bem como nos crimes de corrupção ativa e passiva. Sobre
os crimes funcionais, recomenda-se a leitura de Paulo José da Costa Júnior e Antônio Pagliaro. os crimes funcionais, recomenda-se a leitura de Paulo José da Costa Júnior e Antônio Pagliaro.
24. Segundo Nilo Batista, o concurso de pessoas não pode se resumir à causalidade. 24. Segundo Nilo Batista, o concurso de pessoas não pode se resumir à causalidade.
25. BATISTA, Nilo. Do concurso de agentes. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 25. BATISTA, Nilo. Do concurso de agentes. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
COSTA JR., Paulo José da. Código Penal Comentado. São Paulo: DPJ, 2005. COSTA JR., Paulo José da. Código Penal Comentado. São Paulo: DPJ, 2005.
SANTOS, Gérson Pereira. Inovações na Parte Geral do Código Penal. São Paulo: Saraiva, 1986. SANTOS, Gérson Pereira. Inovações na Parte Geral do Código Penal. São Paulo: Saraiva, 1986.
74 Gamil Föppel el Hireche 74 Gamil Föppel el Hireche

9. Conclusões 9. Conclusões
À vista de tudo quanto foi exposto no ponto central, podemos concluir que: À vista de tudo quanto foi exposto no ponto central, podemos concluir que:
1) Concursus delictorum (concurso de crimes) não se confunde com concur- 1) Concursus delictorum (concurso de crimes) não se confunde com concur-
sus delinquentium (concurso de pessoas) e nem com concursus normarum sus delinquentium (concurso de pessoas) e nem com concursus normarum
(conflito aparente de normas); (conflito aparente de normas);
2) O concursus delictorum deve estar numa região transitória entre a teoria 2) O concursus delictorum deve estar numa região transitória entre a teoria
do crime e a teoria das conseqüências jurídicas do delito. Se assim não do crime e a teoria das conseqüências jurídicas do delito. Se assim não
for, a matéria deve ser tratada, como na Itália, na teoria do crime, e não for, a matéria deve ser tratada, como na Itália, na teoria do crime, e não
como se fez no Brasil; como se fez no Brasil;
3) No Brasil, adotaram-se dois critérios para o concursus delictorum, 3) No Brasil, adotaram-se dois critérios para o concursus delictorum,
quais sejam, o cúmulo material temperado (para o concurso material e o quais sejam, o cúmulo material temperado (para o concurso material e o
concurso formal impróprio) e o da exasperação (para o concurso formal concurso formal impróprio) e o da exasperação (para o concurso formal
próprio e o crime continuado). Nestas hipóteses, deve-se atentar para a próprio e o crime continuado). Nestas hipóteses, deve-se atentar para a
regra benéfica do concurso material; regra benéfica do concurso material;
4) No crime em concurso material, não se pode confundir conduta com ato, 4) No crime em concurso material, não se pode confundir conduta com ato,
nem ação com ação típica, nem ação com conduta; nem ação com ação típica, nem ação com conduta;
5) O concurso formal difere do material pelo número de condutas; 5) O concurso formal difere do material pelo número de condutas;
6) O concurso formal difere do conflito aparente pelo número de lesões a 6) O concurso formal difere do conflito aparente pelo número de lesões a
bens jurídicos, pelo número de resultados; bens jurídicos, pelo número de resultados;
7) O concurso formal próprio difere do impróprio pela quantidade de desíg- 7) O concurso formal próprio difere do impróprio pela quantidade de desíg-
nios; nios;
8) O crime continuado é uma ficção regida pela teoria objetiva; 8) O crime continuado é uma ficção regida pela teoria objetiva;
9) Aceita-se continuidade delitiva nos crimes violentos; 9) Aceita-se continuidade delitiva nos crimes violentos;
10) A expressão “mesma espécie”, no crime continuado, não é sinônima de 10) A expressão “mesma espécie”, no crime continuado, não é sinônima de
crime idêntico. Por mesma espécie entende-se crimes que lesionam o crime idêntico. Por mesma espécie entende-se crimes que lesionam o
mesmo bem de forma semelhante. mesmo bem de forma semelhante.
Capítulo V Capítulo V
A preservação da vida em face A preservação da vida em face
da Biotecnologia: inserção da Biotecnologia: inserção
de novas antinomias no Direito Penal de novas antinomias no Direito Penal

Maria Auxiliadora Minahim* Maria Auxiliadora Minahim*

1. O século vinte e um veio encontrar o Direito penal no centro de discussões 1. O século vinte e um veio encontrar o Direito penal no centro de discussões
que envolvem propostas divergentes, as quais propugnam desde a sua abolição que envolvem propostas divergentes, as quais propugnam desde a sua abolição
até o desenvolvimento de um modelo funcionalizado e expandido com metas até o desenvolvimento de um modelo funcionalizado e expandido com metas
eficientistas. Neste panorama há uma posição tida como conciliadora é represen- eficientistas. Neste panorama há uma posição tida como conciliadora é represen-
tada pela idéia que se satisfaz com um processo de reajuste deste ramo do direito tada pela idéia que se satisfaz com um processo de reajuste deste ramo do direito
para a realizar a tutela dos novos valores desvelados por ameaças sinalizadas pelo para a realizar a tutela dos novos valores desvelados por ameaças sinalizadas pelo
acelerado desenvolvimento científico. A prestação dessa tutela, embora signifique acelerado desenvolvimento científico. A prestação dessa tutela, embora signifique
uma ampliação não desejada por alguns autores1, pode ser legitimada em razão uma ampliação não desejada por alguns autores1, pode ser legitimada em razão
da potencial lesivo das ações e da qualidade dos bens e interesses que se desejam da potencial lesivo das ações e da qualidade dos bens e interesses que se desejam
preservar. Tais bens jurídicos se caracterizam, portanto por sua atualidade, são preservar. Tais bens jurídicos se caracterizam, portanto por sua atualidade, são
referidos como sendo, a inalterabilidade e intangibilidade do patrimônio genético referidos como sendo, a inalterabilidade e intangibilidade do patrimônio genético
da humanidade, a identidade e irrepetibilidade característica de todo ser humano, da humanidade, a identidade e irrepetibilidade característica de todo ser humano,
a dupla dotação genética e a sobrevivência da espécie humana2. a dupla dotação genética e a sobrevivência da espécie humana2.
As ponderações sobre a expansão do direito penal para atuar como instru- As ponderações sobre a expansão do direito penal para atuar como instru-
mento competente na prevenção dos mega-riscos, “próprios de uma sociedade mento competente na prevenção dos mega-riscos, “próprios de uma sociedade
de alta tecnologia, complexa e volátil”, como refere Regis Prado3, se bem que de alta tecnologia, complexa e volátil”, como refere Regis Prado3, se bem que
pertinentes, encontram, na outra ponta, uma demanda coletiva e continuada por pertinentes, encontram, na outra ponta, uma demanda coletiva e continuada por
mais segurança. Muitos dizem que esta demanda por proteção resulta da autopro- mais segurança. Muitos dizem que esta demanda por proteção resulta da autopro-
pulsão do medo que é utilizado como capital político que permite intervenções pulsão do medo que é utilizado como capital político que permite intervenções
espetaculares. Não haveria, assim qualquer conteúdo próprio do direito penal a espetaculares. Não haveria, assim qualquer conteúdo próprio do direito penal a
ser trabalhado, mas uma série de ações a serem desenvolvidas pelo poder público. ser trabalhado, mas uma série de ações a serem desenvolvidas pelo poder público.
A virtude está no meio. A virtude está no meio.

* Mestra pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Doutora pela UFRJ e pela Uni- * Mestra pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Doutora pela UFRJ e pela Uni-
versidade Federal do Paraná (UFPR), Professora da graduação e da pós-graduação da UFBA, versidade Federal do Paraná (UFPR), Professora da graduação e da pós-graduação da UFBA,
Coordenadora da Especialização em Ciências Criminais da UFBA, Presidente da Associação Coordenadora da Especialização em Ciências Criminais da UFBA, Presidente da Associação
Brasileira de Professores de Ciências Penais (ABPCP). Brasileira de Professores de Ciências Penais (ABPCP).
1. HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputa- 1. HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputa-
cíon en Derecho Penal. Valencia: Ed. Tirant Lê Blanch, 1999. Versión al españool de Francisco cíon en Derecho Penal. Valencia: Ed. Tirant Lê Blanch, 1999. Versión al españool de Francisco
Muñoz Conde y Maria Del Mar Díaz Pita. Passim. Muñoz Conde y Maria Del Mar Díaz Pita. Passim.
2. Enumeração feita por ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Do gene ao Direito. São Paulo: 2. Enumeração feita por ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Do gene ao Direito. São Paulo:
IBCCrim, 1999. p. 315. IBCCrim, 1999. p. 315.
3. PRADO, Luiz Regis. Direito penal do Ambiente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p.7. 3. PRADO, Luiz Regis. Direito penal do Ambiente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p.7.
76 Maria Auxiliadora Minahim 76 Maria Auxiliadora Minahim

Tais riscos são originados por ações humanas – a grande parte constituindo Tais riscos são originados por ações humanas – a grande parte constituindo
ati­vi­dades lícitas – que logram burlar pautas reguladoras para serem realizadas ati­vi­dades lícitas – que logram burlar pautas reguladoras para serem realizadas
sem as cau­telas consideradas devidas pelo poder público. Haveria nelas, desta sem as cau­telas consideradas devidas pelo poder público. Haveria nelas, desta
forma, um risco, conhecido ou não que, por sua proporções, se deseja evitar e forma, um risco, conhecido ou não que, por sua proporções, se deseja evitar e
que não pode ser suficientemente prevenido com os recursos próprios de outros que não pode ser suficientemente prevenido com os recursos próprios de outros
ramos do direito. Para realizar esta prevenção, convoca-se o direito penal. Isto ramos do direito. Para realizar esta prevenção, convoca-se o direito penal. Isto
significa, muitas vezes, intervenção jurídica antecipada, visando a impedir que significa, muitas vezes, intervenção jurídica antecipada, visando a impedir que
ações distantes, de atores às vezes anônimos, como diz Figueiredo Dias4, atinjam ações distantes, de atores às vezes anônimos, como diz Figueiredo Dias4, atinjam
vítimas também incertas, produzindo resultados de difícil determinação. vítimas também incertas, produzindo resultados de difícil determinação.
Algumas das novas figuras penais são criadas, com o objetivo de evitar, tão Algumas das novas figuras penais são criadas, com o objetivo de evitar, tão
só a mera criação de um perigo, cuja existência está mais intimamente associada a só a mera criação de um perigo, cuja existência está mais intimamente associada a
valores que se receia verem atingidos com as novas práticas do que propriamente valores que se receia verem atingidos com as novas práticas do que propriamente
à criação de um estado de perigo. Exemplo significativo, é a incriminação da à criação de um estado de perigo. Exemplo significativo, é a incriminação da
maternidade de substituição que ocorre em alguns países. Outros tipos buscam maternidade de substituição que ocorre em alguns países. Outros tipos buscam
impedir uma ameaça que, por sua dimensão qualitativa, demanda a intervenção impedir uma ameaça que, por sua dimensão qualitativa, demanda a intervenção
do direito penal. Pode-se questionar, por exemplo, a legitimidade de incrimina- do direito penal. Pode-se questionar, por exemplo, a legitimidade de incrimina-
ção de ações que têm o objetivo de gerar embriões para servirem como material ção de ações que têm o objetivo de gerar embriões para servirem como material
biológico disponível? biológico disponível?
Para cumprir adequadamente esta função de prevenção de riscos na con- Para cumprir adequadamente esta função de prevenção de riscos na con-
temporaneidade, o direito penal necessita de certa plasticidade para que possa temporaneidade, o direito penal necessita de certa plasticidade para que possa
se adequar às novas formas de criminalidade e aos novos sujeitos do crime, nem se adequar às novas formas de criminalidade e aos novos sujeitos do crime, nem
sempre determinados, como ocorria tradicionalmente. Assim, recorre-se com sempre determinados, como ocorria tradicionalmente. Assim, recorre-se com
freqüência aos tipos de perigo abstrato – cuja existência não constitui nenhuma freqüência aos tipos de perigo abstrato – cuja existência não constitui nenhuma
novidade no ordenamento jurídico – já que são por demais conhecidos os crimes novidade no ordenamento jurídico – já que são por demais conhecidos os crimes
contra a saúde pública, a incolumidade pública, o consumo5. contra a saúde pública, a incolumidade pública, o consumo5.
Neste contexto, situa-se a disciplina da biotecnologia, surgida com o desen- Neste contexto, situa-se a disciplina da biotecnologia, surgida com o desen-
volvimento e transposição para o campo da análise genética de avançadas técnicas volvimento e transposição para o campo da análise genética de avançadas técnicas
moleculares e a das novas técnicas de reprodução assistida cuja disciplina enfrenta moleculares e a das novas técnicas de reprodução assistida cuja disciplina enfrenta
outros problemas além daqueles ligados às funções e fins do direito penal. outros problemas além daqueles ligados às funções e fins do direito penal.
No que tange à nova genética, a proibição é deliberadamente antecipada por- No que tange à nova genética, a proibição é deliberadamente antecipada por-
que não é possível arcar com os ônus da produção efetiva, material de lesão que que não é possível arcar com os ônus da produção efetiva, material de lesão que
pode resultar de certas ações por sua dimensão e ofensividade. Deve-se esperar, pode resultar de certas ações por sua dimensão e ofensividade. Deve-se esperar,
v. g., o surgimento do clone para apurar-se, ex post, se tal ação atingiu ou não o v. g., o surgimento do clone para apurar-se, ex post, se tal ação atingiu ou não o
valor que se deseja preservar quanto à singularidade da pessoa humana? valor que se deseja preservar quanto à singularidade da pessoa humana?

4. DIAS, Jorge Figueiredo. O Direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade de risco”. 4. DIAS, Jorge Figueiredo. O Direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade de risco”.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 33, p. 39-65, 2001. p. 44. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 33, p. 39-65, 2001. p. 44.
5. Vide, a propósito dos crimes de perigo abstrato, GRECO, Luis. Princípio da lesividade e crimes 5. Vide, a propósito dos crimes de perigo abstrato, GRECO, Luis. Princípio da lesividade e crimes
de perigo abstrato, ou: algumas dúvidas diante de tantas certezas. Revista Brasileira de Ciências de perigo abstrato, ou: algumas dúvidas diante de tantas certezas. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo:RT, n. 49. pp 89-147. Criminais. São Paulo:RT, n. 49. pp 89-147.
A preservação da vida em face da Biotecnologia: inserção de novas antinomias no Direito Penal 77 A preservação da vida em face da Biotecnologia: inserção de novas antinomias no Direito Penal 77

O que não se pode ignorar, quando se fala em plasticidade no processo de O que não se pode ignorar, quando se fala em plasticidade no processo de
criminalização de condutas, é: criminalização de condutas, é:
1º) o papel central que a pessoa humana, delinqüente ou vítima, em suas 1º) o papel central que a pessoa humana, delinqüente ou vítima, em suas
diversas dimensões, devem ocupar, no discurso jurídico penal; diversas dimensões, devem ocupar, no discurso jurídico penal;
2º) o respeito ao princípio da subsidiariedade do direito penal; 2º) o respeito ao princípio da subsidiariedade do direito penal;
3º) o necessário suporte axiológico do bem jurídico, para que se possa limitar 3º) o necessário suporte axiológico do bem jurídico, para que se possa limitar
o arbítrio do legislador, evitando a construção de supostos bens jurídicos, o arbítrio do legislador, evitando a construção de supostos bens jurídicos,
que acabam por legitimar a expansão do direito penal. que acabam por legitimar a expansão do direito penal.
A tutela da vida contra as ameaças que estão implícitas nestes procedimentos, A tutela da vida contra as ameaças que estão implícitas nestes procedimentos,
em razão de seu ineditismo, encontra um grau expressivo de dificuldades, por em razão de seu ineditismo, encontra um grau expressivo de dificuldades, por
diversos motivos, dos quais se destacam, de logo, dois: diversos motivos, dos quais se destacam, de logo, dois:
1º) A rápida superação de estágios do conhecimento dificulta a precisão de 1º) A rápida superação de estágios do conhecimento dificulta a precisão de
certos conceitos, como vida, morte, pessoa. O uso de células-tronco, por certos conceitos, como vida, morte, pessoa. O uso de células-tronco, por
exemplo, retiradas de jovens embriões – mórulas – considerado como a exemplo, retiradas de jovens embriões – mórulas – considerado como a
técnica de ponta em biotecnologia tende a ser superado pelo emprego de técnica de ponta em biotecnologia tende a ser superado pelo emprego de
OEC (células gliais olfativas) no tratamento da esclerose múltipla. Estas OEC (células gliais olfativas) no tratamento da esclerose múltipla. Estas
células são extraídas do bulbo olfativo de fetos abortados no quarto ou células são extraídas do bulbo olfativo de fetos abortados no quarto ou
quinto mês de gravidez, cultivadas em laboratório e, posteriormente, quinto mês de gravidez, cultivadas em laboratório e, posteriormente,
injetas em pacientes (mas de um milhão por vez).6 Tudo indica, por exem- injetas em pacientes (mas de um milhão por vez).6 Tudo indica, por exem-
plo que, se os chineses forem exitosos em suas práticas com as OEC, é plo que, se os chineses forem exitosos em suas práticas com as OEC, é
possível que, em breve, fetos de 5 meses não sejam considerados ainda possível que, em breve, fetos de 5 meses não sejam considerados ainda
como integrantes da espécie humana, para que sua destruição possa ser como integrantes da espécie humana, para que sua destruição possa ser
justificada com argumentos formalmente coesos. justificada com argumentos formalmente coesos.
Não há que estarrecer, portanto se afirmamos que, em pleno terceiro milênio, Não há que estarrecer, portanto se afirmamos que, em pleno terceiro milênio,
o conceito de morte é, um conceito inacabado. Estar vivo precisa, muitas vezes o conceito de morte é, um conceito inacabado. Estar vivo precisa, muitas vezes
de ponderadas decisões judiciais a este respeito. de ponderadas decisões judiciais a este respeito.
2º) Nas sociedades contemporâneas o direito busca refletir as diferentes 2º) Nas sociedades contemporâneas o direito busca refletir as diferentes
expectativas sociais e valores dos múltiplos segmentos que integram o expectativas sociais e valores dos múltiplos segmentos que integram o
corpo social. Ou melhor, a complexidade da vida nas sociedades plurais e corpo social. Ou melhor, a complexidade da vida nas sociedades plurais e
a ruptura do monolitismo ideológico das sociedades tradicionais obrigam a ruptura do monolitismo ideológico das sociedades tradicionais obrigam
a uma visão também plural dos valores que se de­seja preservar, aban- a uma visão também plural dos valores que se de­seja preservar, aban-
donando-se assim a possibilidade de fundamentar a disciplina jurídica donando-se assim a possibilidade de fundamentar a disciplina jurídica
em valores inabaláveis, supostos absolutos, como pareciam ser os da em valores inabaláveis, supostos absolutos, como pareciam ser os da
sociedade tradicional. sociedade tradicional.

6. Dois médicos daquele país, Xiu Bo e Huang Hongyun divulgaram o êxito e, também as limitações, 6. Dois médicos daquele país, Xiu Bo e Huang Hongyun divulgaram o êxito e, também as limitações,
dos trabalhos com tais células para o tratamento de esclerose múltipla. Não se sabe, porém por dos trabalhos com tais células para o tratamento de esclerose múltipla. Não se sabe, porém por
quanto tempo os resultados do transplante se mantêm, admitindo, os mesmos médicos a possibi- quanto tempo os resultados do transplante se mantêm, admitindo, os mesmos médicos a possibi-
lidade de recorrência da enfermidade. lidade de recorrência da enfermidade.
78 Maria Auxiliadora Minahim 78 Maria Auxiliadora Minahim

Pode-se continuar a considerar como intervenção médica não arbitrária aquela Pode-se continuar a considerar como intervenção médica não arbitrária aquela
obriga a testemunha de Jeová a receber transfusões quando há experiências que obriga a testemunha de Jeová a receber transfusões quando há experiências que
atestam por uma melhor evolução do quadro na medida em que se respeita este atestam por uma melhor evolução do quadro na medida em que se respeita este
desejo? Ou a que force um Rãs-Tafari a amputar uma parte do corpo quando, para desejo? Ou a que force um Rãs-Tafari a amputar uma parte do corpo quando, para
eles, este é motivo que impede a ressurreição?7 Para alguns cientistas, destruir eles, este é motivo que impede a ressurreição?7 Para alguns cientistas, destruir
jovens embriões significa, ­apenas, usar um aglomerado de células, componentes jovens embriões significa, ­apenas, usar um aglomerado de células, componentes
disponíveis para salvar pessoas vitimadas por enfermidades degenerativas. disponíveis para salvar pessoas vitimadas por enfermidades degenerativas.
O respeito às diferenças, cada vez mais postulado por minorias que se afir- O respeito às diferenças, cada vez mais postulado por minorias que se afir-
ma, só pode ser alcançado com o respeito às crenças e valores que os distingue e ma, só pode ser alcançado com o respeito às crenças e valores que os distingue e
identifica, na medida, porém em que podem ser toleradas e absorvidas pelo grupo identifica, na medida, porém em que podem ser toleradas e absorvidas pelo grupo
social. Isto implica, todavia em maiores dificuldades da norma para expressar um social. Isto implica, todavia em maiores dificuldades da norma para expressar um
comando ou proibição com validade erga omnes. Se a norma pretende contem- comando ou proibição com validade erga omnes. Se a norma pretende contem-
plar a pluralidade em sua estrutura, a fluidez e imprecisão que a acompanharão, plar a pluralidade em sua estrutura, a fluidez e imprecisão que a acompanharão,
podem atritar com o princípio da legalidade e seus corolários, marco definitivo podem atritar com o princípio da legalidade e seus corolários, marco definitivo
do direito liberal. do direito liberal.
Por estas razões, há os que afirmam, ainda, que o direito penal não deve dis- Por estas razões, há os que afirmam, ainda, que o direito penal não deve dis-
ciplinar as situações trazidas pela biotecnologia, em razão do engessamento que ciplinar as situações trazidas pela biotecnologia, em razão do engessamento que
a norma jurídica impõe a situações cuja complexidade demanda uma criteriosa a norma jurídica impõe a situações cuja complexidade demanda uma criteriosa
diante de cada caso concreto porque, para ela, ainda não há uma solução pacífica. diante de cada caso concreto porque, para ela, ainda não há uma solução pacífica.
Com efeito, essa corrente propugna ser suficiente para o controle destes avanços Com efeito, essa corrente propugna ser suficiente para o controle destes avanços
através somente da Bioética, havendo mesmo quem afirme que “para a aparente através somente da Bioética, havendo mesmo quem afirme que “para a aparente
certeza das normas, melhor é a incerteza que permite alcançar horizontes” 8. são certeza das normas, melhor é a incerteza que permite alcançar horizontes” 8. são
freqüentes as antinomias que podem ser encontradas no ordenamento jurídico. freqüentes as antinomias que podem ser encontradas no ordenamento jurídico.
Essa posição, todavia não pode prosperar. Verifica-se a necessidade da inter- Essa posição, todavia não pode prosperar. Verifica-se a necessidade da inter-
venção penal nas situações referidas em face de um motivo relevante: os processos venção penal nas situações referidas em face de um motivo relevante: os processos
biotecnológicos, além de repercutirem sobre a vida humana, são hábeis para alterar biotecnológicos, além de repercutirem sobre a vida humana, são hábeis para alterar
o curso da própria humanidade, enquanto espécie que se reproduz. O que se notar o curso da própria humanidade, enquanto espécie que se reproduz. O que se notar
é que a própria Bioética tem imposto, ao direito, reflexões sobre os novos fatos e é que a própria Bioética tem imposto, ao direito, reflexões sobre os novos fatos e
sua disciplina, lhe convocado para novas formas de juridicidade. sua disciplina, lhe convocado para novas formas de juridicidade.
2. A intervenção do direito penal, em razão da natureza incomum das situações 2. A intervenção do direito penal, em razão da natureza incomum das situações
desveladas, não se faz com a segurança e coerência necessárias. Ao contrário, desveladas, não se faz com a segurança e coerência necessárias. Ao contrário,
apresenta inúmeras contradições que se concretizam, sobretudo no tratamento apresenta inúmeras contradições que se concretizam, sobretudo no tratamento
desigual dispensado ao mesmo bem jurídico cujo ataque é proibido em certos desigual dispensado ao mesmo bem jurídico cujo ataque é proibido em certos

7. Foi por esta razão, que, na década de 1980, Bob Marley morreu vítima de uma infecção simples 7. Foi por esta razão, que, na década de 1980, Bob Marley morreu vítima de uma infecção simples
que se complicou porque o compositor se recusou a proceder a amputação de um dedo do pé em que se complicou porque o compositor se recusou a proceder a amputação de um dedo do pé em
razão de proibições de sua religião. Destruir os jovens embriões é, para muitos cientistas, usar razão de proibições de sua religião. Destruir os jovens embriões é, para muitos cientistas, usar
um aglomerado de células, componentes disponíveis. um aglomerado de células, componentes disponíveis.
8. José Eduardo de Siqueira, em recente Mesa Redonda ocorrida no VI Congresso da Sociedade Brasileira 8. José Eduardo de Siqueira, em recente Mesa Redonda ocorrida no VI Congresso da Sociedade Brasileira
de Bioética, “Bioética, Meio Ambiente e Vida Humana”, realizado nos dias 30 a 3 de setembro de de Bioética, “Bioética, Meio Ambiente e Vida Humana”, realizado nos dias 30 a 3 de setembro de
2005, em Foz do Iguaçu. (Os Anais do evento contêm publicação parcial das intervenções). 2005, em Foz do Iguaçu. (Os Anais do evento contêm publicação parcial das intervenções).
A preservação da vida em face da Biotecnologia: inserção de novas antinomias no Direito Penal 79 A preservação da vida em face da Biotecnologia: inserção de novas antinomias no Direito Penal 79

casos e, em outros, embora a ofensa seja de igual, ou maior valor, é permitida, casos e, em outros, embora a ofensa seja de igual, ou maior valor, é permitida,
como se verá. como se verá.
O direito penal alemão fonte primeira de inspiração de teorias e institutos para O direito penal alemão fonte primeira de inspiração de teorias e institutos para
o direito penal latino americano, em razão da coesão de suas elaborações dogmá- o direito penal latino americano, em razão da coesão de suas elaborações dogmá-
ticas – ainda que nem sempre sejam as mais adequadas à experiência histórica ticas – ainda que nem sempre sejam as mais adequadas à experiência histórica
destes países – pode ser convocado para ser também o primeiro país a revelar as destes países – pode ser convocado para ser também o primeiro país a revelar as
antinomias a que se refere este trabalho. antinomias a que se refere este trabalho.
Em 1997, foi aprovada no âmbito do Conselho Europeu a chamada Convenção Em 1997, foi aprovada no âmbito do Conselho Europeu a chamada Convenção
dos Direitos do Homem e da Biomedicina que trata sobretudo da proteção e da dos Direitos do Homem e da Biomedicina que trata sobretudo da proteção e da
dignidade do ser humano relativa às aplicações da Biologia e da Medicina. Os dignidade do ser humano relativa às aplicações da Biologia e da Medicina. Os
Estado membros comprometeram-se a tomar, no seu direito interno as medidas Estado membros comprometeram-se a tomar, no seu direito interno as medidas
necessárias para dar efetividade às disposições da dita convenção. A Alemanha necessárias para dar efetividade às disposições da dita convenção. A Alemanha
não subscreveu este documento argüindo que as normas não eram suficientemente não subscreveu este documento argüindo que as normas não eram suficientemente
específicas por não haverem proibido experiências com embriões. Assim, o direito específicas por não haverem proibido experiências com embriões. Assim, o direito
interno desse país, na Lei sobre a Proteção a Embriões, incrimina a utilização interno desse país, na Lei sobre a Proteção a Embriões, incrimina a utilização
abusiva de embriões humanos, punindo a conduta com pena privativa de liberdade abusiva de embriões humanos, punindo a conduta com pena privativa de liberdade
ou multa. A norma proíbe, mais exatamente, a venda ou cessão com fim distinto ou multa. A norma proíbe, mais exatamente, a venda ou cessão com fim distinto
da procriação ou utilização de embrião humano, produzido extra-corporalmente da procriação ou utilização de embrião humano, produzido extra-corporalmente
ou extirpado de mulher antes de sua anidação definitiva no útero. ou extirpado de mulher antes de sua anidação definitiva no útero.
Em 2002, todavia foi votada naquele país a Lei de Garantia da Proteção ao Em 2002, todavia foi votada naquele país a Lei de Garantia da Proteção ao
Embrião no que tange à Importação e Utilização de Células-Tronco Embrionárias Embrião no que tange à Importação e Utilização de Células-Tronco Embrionárias
e Humanas. Esta lei é redigida com ênfase – aparente – na proibição de importação e Humanas. Esta lei é redigida com ênfase – aparente – na proibição de importação
de células tronco e suas linhagens do exterior. Abre, no entanto, de logo, a grande de células tronco e suas linhagens do exterior. Abre, no entanto, de logo, a grande
brecha que parece ser a razão de suas existência: ou seja, afirma que em casos brecha que parece ser a razão de suas existência: ou seja, afirma que em casos
excepcionais, para atender aos objetivos da ciência pura ou da medicina, pode excepcionais, para atender aos objetivos da ciência pura ou da medicina, pode
ser concedia a autorização para a importação de células-tronco embrionárias. A ser concedia a autorização para a importação de células-tronco embrionárias. A
proibição da conduta de utilização de embriões na Alemanha é, portanto, limitada a proibição da conduta de utilização de embriões na Alemanha é, portanto, limitada a
embriões alemães, i. e, gerado por cidadãos alemães. Quanto aos demais, o valor ou embriões alemães, i. e, gerado por cidadãos alemães. Quanto aos demais, o valor ou
interesse protegido neles não existe o que dificulta a identificação do bem jurídico interesse protegido neles não existe o que dificulta a identificação do bem jurídico
protegido na figura específica da Lei de Embriões. Não se trata, certamente, da protegido na figura específica da Lei de Embriões. Não se trata, certamente, da
idéia de Claus Roxin de admitir como exceção, no direito penal contemporâneo, idéia de Claus Roxin de admitir como exceção, no direito penal contemporâneo,
algumas vezes, a noção de bem jurídico como condição para a punição. O autor, algumas vezes, a noção de bem jurídico como condição para a punição. O autor,
embora inclua o uso de embrião entre as situações excepcionadas (pela impos- embora inclua o uso de embrião entre as situações excepcionadas (pela impos-
sibilidade de os interesses serem referidos a indivíduos concretos), destaca, sem sibilidade de os interesses serem referidos a indivíduos concretos), destaca, sem
ressalvas de qualquer natureza, “que sua excepcional fragilidade justifica uma ressalvas de qualquer natureza, “que sua excepcional fragilidade justifica uma
intervenção do direito penal” 9. Não foi o que entenderam os alemães quanto aos intervenção do direito penal” 9. Não foi o que entenderam os alemães quanto aos
embriões excendentários gerados por cidadãos de outros países. embriões excendentários gerados por cidadãos de outros países.

9. CF. GRECO, Luis. Princípio da lesividade e crimes de perigo abstrato, ou: algumas dúvidas diante 9. CF. GRECO, Luis. Princípio da lesividade e crimes de perigo abstrato, ou: algumas dúvidas diante
de tantas certezas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo:RT, n. 49. pp 89-147. de tantas certezas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo:RT, n. 49. pp 89-147.
p.103. p.103.
80 Maria Auxiliadora Minahim 80 Maria Auxiliadora Minahim

O direito penal espanhol agasalha, também, contradições muito próprias. Na O direito penal espanhol agasalha, também, contradições muito próprias. Na
Espanha, admite-se aborto com fins eugênicos, ou seja, quando se presume que Espanha, admite-se aborto com fins eugênicos, ou seja, quando se presume que
o feto irá nascer com grave defeito físico ou psíquico, desde que realizado até as o feto irá nascer com grave defeito físico ou psíquico, desde que realizado até as
vinte e duas primeiras semanas, ou seja, com até mais de cinco meses de gestação. vinte e duas primeiras semanas, ou seja, com até mais de cinco meses de gestação.
O artigo 159 do Código Penal Espanhol, com base nas mesmas idéias, só pune a O artigo 159 do Código Penal Espanhol, com base nas mesmas idéias, só pune a
manipulação de genes humanos quando tal manipulação se voltar para outros fins manipulação de genes humanos quando tal manipulação se voltar para outros fins
que não a eliminação ou diminuição de defeito físico. que não a eliminação ou diminuição de defeito físico.
É o mesmo ordenamento jurídico penal espanhol – que autoriza o aborto para É o mesmo ordenamento jurídico penal espanhol – que autoriza o aborto para
evitar enfermidades e defeito físicos – que pune, no entanto, no artigo 146, o aborto evitar enfermidades e defeito físicos – que pune, no entanto, no artigo 146, o aborto
culposo, e mais enfaticamente ainda, no artigo 157 do Código Penal dispõe sobre culposo, e mais enfaticamente ainda, no artigo 157 do Código Penal dispõe sobre
a punição da conduta do sujeito que causar lesões, de tal natureza, no feto que pre- a punição da conduta do sujeito que causar lesões, de tal natureza, no feto que pre-
judiquem seu desenvolvimento normal ou nele provoquem grave defeito físico ou judiquem seu desenvolvimento normal ou nele provoquem grave defeito físico ou
psíquico. A forma culposa também é prevista. Trata-se, portanto, de uma proteção psíquico. A forma culposa também é prevista. Trata-se, portanto, de uma proteção
ampla ao produto da concepção que prevê como crime não só as lesões sobre o ampla ao produto da concepção que prevê como crime não só as lesões sobre o
feto, mas também a falta de dever de cuidado da qual possa resultar interrupção feto, mas também a falta de dever de cuidado da qual possa resultar interrupção
da gravidez (aborto culposo). De outro lado, alterar material genético para curar da gravidez (aborto culposo). De outro lado, alterar material genético para curar
defeitos e destruir o produto da concepção defeituoso, ainda que no quinto mês de defeitos e destruir o produto da concepção defeituoso, ainda que no quinto mês de
gestação, constituem condutas permitidas; proibido é perturbar o desenvolvimento gestação, constituem condutas permitidas; proibido é perturbar o desenvolvimento
daquele que poderá se transformar em pessoa hígida e saudável. daquele que poderá se transformar em pessoa hígida e saudável.
Só é possível, como se vê conferir alguma harmonia jurídica na interpreta- Só é possível, como se vê conferir alguma harmonia jurídica na interpreta-
ção destes dispositivos se se entender que o direito espanhol revela uma postura ção destes dispositivos se se entender que o direito espanhol revela uma postura
eugênica, protegendo tão somente aquelas formas de vida humana que atendam eugênica, protegendo tão somente aquelas formas de vida humana que atendam
aos ideais de melhoramento da espécie. aos ideais de melhoramento da espécie.
3. No Brasil, a disciplina infraconstitucional do meio ambiente é realizada, 3. No Brasil, a disciplina infraconstitucional do meio ambiente é realizada,
pela Lei 11.105/05 que estabelece normas para uso e descarte de OGMs, dentre pela Lei 11.105/05 que estabelece normas para uso e descarte de OGMs, dentre
outras providências. Trata-se, assim, de texto referencial para análise do tratamento outras providências. Trata-se, assim, de texto referencial para análise do tratamento
legislativo dispensado pelo direito brasileiro aos novos fatos postos pela Bioética. legislativo dispensado pelo direito brasileiro aos novos fatos postos pela Bioética.
Abriga por seu turno, diversas antinomias: Abriga por seu turno, diversas antinomias:
A Lei é considerada vanguardista, sobretudo porque permite o uso de células- A Lei é considerada vanguardista, sobretudo porque permite o uso de células-
tronco embrionárias para fins terapêuticos, para fins terapêuticos, prática que se tronco embrionárias para fins terapêuticos, para fins terapêuticos, prática que se
entende possa superar a finitude humana entende possa superar a finitude humana
A questão, que envolve um debate mais amplo, em razão dos aspectos éticos A questão, que envolve um debate mais amplo, em razão dos aspectos éticos
com que guarda pertinência, foi apresentada, como inadiável para o salvamento com que guarda pertinência, foi apresentada, como inadiável para o salvamento
de vidas que, de outra forma, morreriam. Todo o problema foi reduzido a um de vidas que, de outra forma, morreriam. Todo o problema foi reduzido a um
binômio: devem ser jogados fora os embriões congelados ou ser utilizados para binômio: devem ser jogados fora os embriões congelados ou ser utilizados para
pesquisas redentoras? No bojo das pressões pela liberação legal do uso de semen- pesquisas redentoras? No bojo das pressões pela liberação legal do uso de semen-
tes geneticamente modificadas, a resposta positiva à segunda pergunta, resultou tes geneticamente modificadas, a resposta positiva à segunda pergunta, resultou
no artigo 5º da Lei que permite o uso de jovens embriões para fins terapêuticos. no artigo 5º da Lei que permite o uso de jovens embriões para fins terapêuticos.
Restringiu-se, todavia tal utilização aos embriões inviáveis e congelados há 3 Restringiu-se, todavia tal utilização aos embriões inviáveis e congelados há 3
(três) anos ou mais, na data da publicação da Lei, ou que, já congelados na data (três) anos ou mais, na data da publicação da Lei, ou que, já congelados na data
A preservação da vida em face da Biotecnologia: inserção de novas antinomias no Direito Penal 81 A preservação da vida em face da Biotecnologia: inserção de novas antinomias no Direito Penal 81

de sua publicação, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de sua publicação, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data
de congelamento. de congelamento.
Para punir as práticas realizadas em desacordo com condições por ela es- Para punir as práticas realizadas em desacordo com condições por ela es-
tabelecidas, foi criado o tipo contido no artigo 24: utilizar embrião humano em tabelecidas, foi criado o tipo contido no artigo 24: utilizar embrião humano em
desacordo com o que dispõe o art. 5º da Lei no 11.105/05. desacordo com o que dispõe o art. 5º da Lei no 11.105/05.
Um primeiro aspecto a ser apreciado, diz respeito ao tempo de congelamen- Um primeiro aspecto a ser apreciado, diz respeito ao tempo de congelamen-
to – três anos no mínimo – que legitima a intervenção sobre o jovem embrião, to – três anos no mínimo – que legitima a intervenção sobre o jovem embrião,
despertando dúvidas todavia quanto ao bem jurídico protegido pela norma. Se o despertando dúvidas todavia quanto ao bem jurídico protegido pela norma. Se o
que se tutela é a vida, ou a dignidade da vida humana, por que o prazo do conge- que se tutela é a vida, ou a dignidade da vida humana, por que o prazo do conge-
lamento é determinante para configuração do crime? Significaria que após este lamento é determinante para configuração do crime? Significaria que após este
prazo não há possibilidade de implante com êxito? O prazo estabelecido a partir prazo não há possibilidade de implante com êxito? O prazo estabelecido a partir
do relatório Warnock10 para congelamento foi de cinco anos, aleatoriamente se- do relatório Warnock10 para congelamento foi de cinco anos, aleatoriamente se-
gundo José Roberto Goldim11, porque não se fez estudos sobre a viabilidade por gundo José Roberto Goldim11, porque não se fez estudos sobre a viabilidade por
períodos mais longos. O mesmo autor noticia que, nos Estados Unidos, foram períodos mais longos. O mesmo autor noticia que, nos Estados Unidos, foram
utilizados embriões com 7 e 8 anos de congelamento respectivamente sem que utilizados embriões com 7 e 8 anos de congelamento respectivamente sem que
tenham sido evidenciados problemas no desenvolvimento das crianças, as quais tenham sido evidenciados problemas no desenvolvimento das crianças, as quais
nasceram saudáveis. nasceram saudáveis.
Por que o legislador brasileiro torna mais exíguo este prazo, se tutela, com Por que o legislador brasileiro torna mais exíguo este prazo, se tutela, com
o tipo do artigo 24, a vida cuja viabilidade seria possível por um período maior? o tipo do artigo 24, a vida cuja viabilidade seria possível por um período maior?
Estaria se criando, na Lei, um conceito normativo de vida? Qual seja, o de que Estaria se criando, na Lei, um conceito normativo de vida? Qual seja, o de que
três anos de criopreservação denotariam um “abandono” do jovem embrião de três anos de criopreservação denotariam um “abandono” do jovem embrião de
forma que, decorrido este período sem manifestação do desejo de sua implantação, forma que, decorrido este período sem manifestação do desejo de sua implantação,
eles seriam, numa perspectiva normativa, inviáveis. O conceito de inviabilidade eles seriam, numa perspectiva normativa, inviáveis. O conceito de inviabilidade
deve, porém repousar em dados biológicos que apontem no sentido de tratar-se deve, porém repousar em dados biológicos que apontem no sentido de tratar-se
de embrião que não tem condições orgânicas de desenvolver-se em processo de embrião que não tem condições orgânicas de desenvolver-se em processo
gestacional para alcançar outros estádios de formação de si mesmo. O destaque é gestacional para alcançar outros estádios de formação de si mesmo. O destaque é
cabível já que se tem estendido, como na Espanha, a compreensão do significado cabível já que se tem estendido, como na Espanha, a compreensão do significado
de inviabilidade para alcançar os embriões que não serão implantados porque não de inviabilidade para alcançar os embriões que não serão implantados porque não
há úteros disponíveis. há úteros disponíveis.
O ordenamento jurídico nacional agasalha uma antinomia, no particular, per- O ordenamento jurídico nacional agasalha uma antinomia, no particular, per-
mitindo a destruição de embriões in vitro e proibindo o aborto sob a justificativa mitindo a destruição de embriões in vitro e proibindo o aborto sob a justificativa
que aqueles, por não estarem no útero, não integram o tipo de aborto que exige que aqueles, por não estarem no útero, não integram o tipo de aborto que exige
gravidez. Esta posição parece priorizar o local onde se encontra o produto da gravidez. Esta posição parece priorizar o local onde se encontra o produto da
concepção em prejuízo do produto por si mesmo, permitindo a seguinte reflexão: concepção em prejuízo do produto por si mesmo, permitindo a seguinte reflexão:
se se criasse local apto à gestação até período de viabilidade para vida autônoma, se se criasse local apto à gestação até período de viabilidade para vida autônoma,

10. O relatório da comissão de pesquisa presidida por Mary Warnock em Londres no ano de 1984. 10. O relatório da comissão de pesquisa presidida por Mary Warnock em Londres no ano de 1984.
Vide, a propósito do tema: BOURGUET, Vincent. O ser em gestação.São Paulo: Loyola, 2002. Vide, a propósito do tema: BOURGUET, Vincent. O ser em gestação.São Paulo: Loyola, 2002.
11. GOLDIM. José Roberto. Congelamento de Embriões. Disponível em http://www.bioetica.ufrgs. 11. GOLDIM. José Roberto. Congelamento de Embriões. Disponível em http://www.bioetica.ufrgs.
br/congela.htm. Acesso em: 19 de mai 2005. br/congela.htm. Acesso em: 19 de mai 2005.
82 Maria Auxiliadora Minahim 82 Maria Auxiliadora Minahim

também não haveria incriminação na eliminação de um feto de 6, 7, 8 ou nove também não haveria incriminação na eliminação de um feto de 6, 7, 8 ou nove
meses ? É o conteúdo ou o continente que é objeto de tutela penal? meses ? É o conteúdo ou o continente que é objeto de tutela penal?
Marcus Sagre12, médico psicanalista, no que tange aos jovens embriões fetili- Marcus Sagre12, médico psicanalista, no que tange aos jovens embriões fetili-
zados in vitro e àqueles clonados, extrai-lhes qualquer traço de humanidade, por zados in vitro e àqueles clonados, extrai-lhes qualquer traço de humanidade, por
isto refere-se aos primeiros como componentes importantes para a qualidade de isto refere-se aos primeiros como componentes importantes para a qualidade de
vida de outras pessoas e, aos segundos, como “acúmulo de células”. vida de outras pessoas e, aos segundos, como “acúmulo de células”.
Ao permitir o uso de células tronco de jovens embriões, Brasil situa-se em Ao permitir o uso de células tronco de jovens embriões, Brasil situa-se em
posição de vanguarda no cenário mundial, talvez impropriamente. O uso das posição de vanguarda no cenário mundial, talvez impropriamente. O uso das
células-tronco embrionárias para fins terapêuticos e de clonagem terapêutica, células-tronco embrionárias para fins terapêuticos e de clonagem terapêutica,
por exemplo, é repudiado pela maioria dos países de forma que nosso país, lugar por exemplo, é repudiado pela maioria dos países de forma que nosso país, lugar
onde ainda se morre de tuberculose e diarréia, passou a fazer parte de um redu- onde ainda se morre de tuberculose e diarréia, passou a fazer parte de um redu-
zidíssimo time, integrado, pela Inglaterra, Japão, Finlândia, Espanha, Dinamarca zidíssimo time, integrado, pela Inglaterra, Japão, Finlândia, Espanha, Dinamarca
e Austrália (tão somente quanto ao uso de células-tronco e a Inglaterra apenas, e Austrália (tão somente quanto ao uso de células-tronco e a Inglaterra apenas,
admitindo a clonagem). Na verdade, mais de 50 países militam em favor de um admitindo a clonagem). Na verdade, mais de 50 países militam em favor de um
acordo internacional que proíba o uso de células embrionárias para clonagem sob acordo internacional que proíba o uso de células embrionárias para clonagem sob
a consideração de que este é um ser humano. a consideração de que este é um ser humano.
O artigo 25 da Lei 11.105/2005 proíbe a prática de engenharia genética ainda O artigo 25 da Lei 11.105/2005 proíbe a prática de engenharia genética ainda
que ela seja utilizada para corrigir enfermidades e doenças dos próprios embriões, que ela seja utilizada para corrigir enfermidades e doenças dos próprios embriões,
em razão do bem jurídico tutelado: inalterabilidade do patrimônio genético da em razão do bem jurídico tutelado: inalterabilidade do patrimônio genético da
humanidade. No entanto, a mesma Lei autoriza a destruição de jovens embriões humanidade. No entanto, a mesma Lei autoriza a destruição de jovens embriões
para fins terapêuticos em seres humanos já nascidos. Como se pode perceber, para fins terapêuticos em seres humanos já nascidos. Como se pode perceber,
caminha-se para o conveniente conceito normativo de que jovens embriões não caminha-se para o conveniente conceito normativo de que jovens embriões não
são, ainda, seres humanos. Com isso se constata também que, um ser tem uma não são, ainda, seres humanos. Com isso se constata também que, um ser tem uma não
uma qualidade, é ou não alguma coisa, integra ou não uma determinada categoria uma qualidade, é ou não alguma coisa, integra ou não uma determinada categoria
em razão da utilidade que dele se quer fazer, e não de suas propriedades; se o em razão da utilidade que dele se quer fazer, e não de suas propriedades; se o
embrião que não está no útero, ou que não tem sulco primitivo não é humano, ele embrião que não está no útero, ou que não tem sulco primitivo não é humano, ele
pode ser manipulado e destruído à vontade. pode ser manipulado e destruído à vontade.
A questão dos bebês anencéfalos, que tem sido objeto de inúmeras decisões A questão dos bebês anencéfalos, que tem sido objeto de inúmeras decisões
de primeiro grau, inclusive de liminar concessiva do STF, como se sabe, constitui de primeiro grau, inclusive de liminar concessiva do STF, como se sabe, constitui
outra situação que demanda um tratamento jurídico harmônico do direito penal outra situação que demanda um tratamento jurídico harmônico do direito penal
pátrio. A noção de vida e do que significa estar vivo no direito brasileiro, a partir pátrio. A noção de vida e do que significa estar vivo no direito brasileiro, a partir
da questão da anencefalia, tornou-se ainda mais complexa. Isto porque se tem da questão da anencefalia, tornou-se ainda mais complexa. Isto porque se tem
repetido, incansavelmente, que estes seres ou não estão vivos ou não são humanos, repetido, incansavelmente, que estes seres ou não estão vivos ou não são humanos,
o que merece novas reflexões. o que merece novas reflexões.
Apesar de não se tratar de um fenômeno novo, a possibilidade de identifi- Apesar de não se tratar de um fenômeno novo, a possibilidade de identifi-
cá-lo, antes do nascimento da criança, revelou, assim como ocorre com grande cá-lo, antes do nascimento da criança, revelou, assim como ocorre com grande

12. Conferência exposição feita no I Congresso de Bioética do Mercosul realizado nos dias 30 a 3 de 12. Conferência exposição feita no I Congresso de Bioética do Mercosul realizado nos dias 30 a 3 de
setembro em Foz do Iguaçu pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). setembro em Foz do Iguaçu pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB).
A preservação da vida em face da Biotecnologia: inserção de novas antinomias no Direito Penal 83 A preservação da vida em face da Biotecnologia: inserção de novas antinomias no Direito Penal 83

parte das questões introduzidas pelo avanço da biotecnologia, a insuficiência das parte das questões introduzidas pelo avanço da biotecnologia, a insuficiência das
formas tradicionais de abordagem destes fatos. Novos recursos tecnológicos têm formas tradicionais de abordagem destes fatos. Novos recursos tecnológicos têm
possibilitado o diagnóstico precoce de gravidez de fetos anencefálicos, o que tem possibilitado o diagnóstico precoce de gravidez de fetos anencefálicos, o que tem
gerado um contínuo debate sobre a legitimidade de interrupção de gestação de gerado um contínuo debate sobre a legitimidade de interrupção de gestação de
seres com tais características seres com tais características
O argumento, muitas vezes convocadas para validar a idéia, desta feita, diz O argumento, muitas vezes convocadas para validar a idéia, desta feita, diz
respeito à incapacidade para viver em plenitude: Fermin Schram, fundado em respeito à incapacidade para viver em plenitude: Fermin Schram, fundado em
argumentos bem articulados, diz que “Anencéfalo praticamente não existe, por- argumentos bem articulados, diz que “Anencéfalo praticamente não existe, por-
que esta sua vida não terá nenhuma qualidade que possa gozar, razão pela qual é que esta sua vida não terá nenhuma qualidade que possa gozar, razão pela qual é
sensato afirmar que moralmente não tem este direito” 13. sensato afirmar que moralmente não tem este direito” 13.
Nei Moreira14, a respeito dos anencéfalos, diz que são “seres sem finalidade”, Nei Moreira14, a respeito dos anencéfalos, diz que são “seres sem finalidade”,
que devem ser considerados natimortos para o aproveitamento de seus órgãos. que devem ser considerados natimortos para o aproveitamento de seus órgãos.
Por ilação, embriões congelados são produtos que devem ser postos a serviço da Por ilação, embriões congelados são produtos que devem ser postos a serviço da
sociedade. sociedade.
Em 1978 foi proclamada, em assembléia da Unesco, a Declaração Universal Em 1978 foi proclamada, em assembléia da Unesco, a Declaração Universal
dos Direitos dos Animais que, dentre outros direitos, destacou, em favor dos dos Direitos dos Animais que, dentre outros direitos, destacou, em favor dos
animais, o ­direito à existência, ao respeito, à cura, à proteção do homem e a não animais, o ­direito à existência, ao respeito, à cura, à proteção do homem e a não
ser submetido a maus-tra­-tos e atos cruéis. Sendo sua morte necessária, deverá ser submetido a maus-tra­-tos e atos cruéis. Sendo sua morte necessária, deverá
ser instantânea, sem dor ou a­ ngústia. ser instantânea, sem dor ou a­ ngústia.
Já no que tange aos anencéfalos, a idéia é de que a falta de cérebro para exer- Já no que tange aos anencéfalos, a idéia é de que a falta de cérebro para exer-
cício das funções, chamadas superiores, o reduz a uma massa informe e pulsante cício das funções, chamadas superiores, o reduz a uma massa informe e pulsante
que pode ser destruído sem os cuidados que proclamados acima. Isto porque é que pode ser destruído sem os cuidados que proclamados acima. Isto porque é
comum que a população leiga não faça a distinção entre encéfalo e cérebro ou comum que a população leiga não faça a distinção entre encéfalo e cérebro ou
que conheça as funções que desempenham no organismo humano, de forma que, que conheça as funções que desempenham no organismo humano, de forma que,
quando se anuncia que um feto sofre da falta de um dos dois hemisférios do cérebro, quando se anuncia que um feto sofre da falta de um dos dois hemisférios do cérebro,
este enunciado é associado a uma massa de tecidos disforme e pulsante. este enunciado é associado a uma massa de tecidos disforme e pulsante.
Numa perspectiva médica, a anencefalia consiste em uma patologia congênita Numa perspectiva médica, a anencefalia consiste em uma patologia congênita
que afeta a configuração encefálica e dos ossos do crânio que rodeiam a cabeça. que afeta a configuração encefálica e dos ossos do crânio que rodeiam a cabeça.
Como resultado, há um desenvolvimento mínimo do encéfalo, faltando total ou Como resultado, há um desenvolvimento mínimo do encéfalo, faltando total ou
parcialmente, o cérebro – região do encéfalo responsável pelo pensamento, a parcialmente, o cérebro – região do encéfalo responsável pelo pensamento, a
visão, audição, tato e coordenação de movimentos. A expressão sugere ausência visão, audição, tato e coordenação de movimentos. A expressão sugere ausência
de encéfalo, o que de fato não ocorre, mas sim uma formação inacabada deste. de encéfalo, o que de fato não ocorre, mas sim uma formação inacabada deste.
Esta porção de tronco encefálico existente permite que diversas funções que Esta porção de tronco encefálico existente permite que diversas funções que
lhe incubem possam ser cumpridas tais como: movimento dos olhos e da boca, lhe incubem possam ser cumpridas tais como: movimento dos olhos e da boca,
transmissão de mensagens sensórias, (inclusive dor), fome, respiração espontânea, transmissão de mensagens sensórias, (inclusive dor), fome, respiração espontânea,

13. SCHRAM, Fermín. Caso Clínico. Revista de Bioética, Conselho Federal de Medicina, v. 6, 1999. 13. SCHRAM, Fermín. Caso Clínico. Revista de Bioética, Conselho Federal de Medicina, v. 6, 1999.
Disponível em: < http://www.cfm.org.br/revista/ind2v6.htm>. Acesso em: 11 abr. 2003. Disponível em: < http://www.cfm.org.br/revista/ind2v6.htm>. Acesso em: 11 abr. 2003.
14. MOREIRA, Nei. Caso Clínico. Revista de Bioética, Conselho Federal de Medicina, v. 6, 1999. 14. MOREIRA, Nei. Caso Clínico. Revista de Bioética, Conselho Federal de Medicina, v. 6, 1999.
84 Maria Auxiliadora Minahim 84 Maria Auxiliadora Minahim

temperatura corporal, tosse, vômitos e deglutição. A permanência desses reflexos, temperatura corporal, tosse, vômitos e deglutição. A permanência desses reflexos,
ou de alguns deles, é que marca a diferença entre morte encefálica e anencefalia, ou de alguns deles, é que marca a diferença entre morte encefálica e anencefalia,
segundo os critérios médico-biológicos vigentes. segundo os critérios médico-biológicos vigentes.
O anencéfalo não tem, de fato, condições de estabelecer relações, já que ele é O anencéfalo não tem, de fato, condições de estabelecer relações, já que ele é
desprovido de capacidade de memória, de percepção, de linguagem e cognição. A desprovido de capacidade de memória, de percepção, de linguagem e cognição. A
questão que se põe é: por isso não é vivo? Começa a ganhar certo espaço a noção questão que se põe é: por isso não é vivo? Começa a ganhar certo espaço a noção
de que só há vida (concepção essencialista,) quando o cérebro superior, porção de que só há vida (concepção essencialista,) quando o cérebro superior, porção
do encéfalo tida como eixo e centro da consciência, funciona normalmente, as- do encéfalo tida como eixo e centro da consciência, funciona normalmente, as-
segurando o exercício dos aspectos essenciais da natureza humana. A vingar tal segurando o exercício dos aspectos essenciais da natureza humana. A vingar tal
estipulação em torno da morte, não só o portador de anencefalia, mas outros seres estipulação em torno da morte, não só o portador de anencefalia, mas outros seres
humanos vivos, estão mortos humanos vivos, estão mortos
O anencéfalo traz à superfície a questão da entificação: estamos ou não diante O anencéfalo traz à superfície a questão da entificação: estamos ou não diante
de um ser? Bastam, para conhecê-lo, as afirmações da ciência que, afinal, não é de um ser? Bastam, para conhecê-lo, as afirmações da ciência que, afinal, não é
tão infalível como se supôs e que se supera velozmente? E as demais dimensões tão infalível como se supôs e que se supera velozmente? E as demais dimensões
humanas? Como lembra Macio Fabri15, estar vivo e ser considerado pessoa en- humanas? Como lembra Macio Fabri15, estar vivo e ser considerado pessoa en-
volve outros padrões que devem ser considerados porque, o ser humano existe volve outros padrões que devem ser considerados porque, o ser humano existe
além de suas características biológicas. A dúvida sobre sua essência pode então além de suas características biológicas. A dúvida sobre sua essência pode então
ser suprida desde fora, (design) utilizando-se valores, porque, estes sim é que são ser suprida desde fora, (design) utilizando-se valores, porque, estes sim é que são
indispensáveis para completar o processo de conhecimento do ser com o qual indispensáveis para completar o processo de conhecimento do ser com o qual
nos confrontamos. Retornando a Fabri, o autor afirma que o processo de huma- nos confrontamos. Retornando a Fabri, o autor afirma que o processo de huma-
nização tende a ser estendido até aos animais16 de forma que, com a utilização nização tende a ser estendido até aos animais16 de forma que, com a utilização
de critérios éticos, se pode, por fim, responder se se deve ou não “humanizar um de critérios éticos, se pode, por fim, responder se se deve ou não “humanizar um
feto anencefálico ou se cabe antes abandonar tal processo devido aos inúmeros feto anencefálico ou se cabe antes abandonar tal processo devido aos inúmeros
limites de suas condições”. limites de suas condições”.
Se o anencefálo está morto, cabe por fim afirmar, também estão os pacientes Se o anencefálo está morto, cabe por fim afirmar, também estão os pacientes
em coma ultrapassado e aqueles em vida vegetativa, porque na mesma situação em coma ultrapassado e aqueles em vida vegetativa, porque na mesma situação
biológica; que se desliguem os aparelhos ou se harmonize o entendimento jurídico biológica; que se desliguem os aparelhos ou se harmonize o entendimento jurídico
sobre o fenômeno da vida e da morte. sobre o fenômeno da vida e da morte.
Tema que também merece apreciação, embora ainda não positivado em Tema que também merece apreciação, embora ainda não positivado em
norma jurídica, é o das mães de substituição. Alguns autores se levantam contra norma jurídica, é o das mães de substituição. Alguns autores se levantam contra
a possibilidade de a criança, gerada com os gametas dos próprios pais, vir a ser a possibilidade de a criança, gerada com os gametas dos próprios pais, vir a ser
gestada em útero de terceira, embora seja considerado um ato de solidariedade o gestada em útero de terceira, embora seja considerado um ato de solidariedade o

15. A citação refere-se a voto de Márcio Fabri, em KIPPER Délio, HOSSNE Williarn Saad. Caso 15. A citação refere-se a voto de Márcio Fabri, em KIPPER Délio, HOSSNE Williarn Saad. Caso
Clínico. Revista de Bioética, v. 6, n., 1998. Disponível em http://www.portalmedico.org.br/revis- Clínico. Revista de Bioética, v. 6, n., 1998. Disponível em http://www.portalmedico.org.br/revis-
ta/ind2v6.htm. Acesso em: 10 de agosto de 2004 ta/ind2v6.htm. Acesso em: 10 de agosto de 2004
16. A lei 9605/98, por seu turno, incrimina, alternativamente, a conduta de praticar ato de abuso, maus 16. A lei 9605/98, por seu turno, incrimina, alternativamente, a conduta de praticar ato de abuso, maus
tratos ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados e, no §1º, veda a realização tratos ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados e, no §1º, veda a realização
de experiência dolorosa ou cruel em anima vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, de experiência dolorosa ou cruel em anima vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos,
quando existirem recursos alternativos. quando existirem recursos alternativos.
A preservação da vida em face da Biotecnologia: inserção de novas antinomias no Direito Penal 85 A preservação da vida em face da Biotecnologia: inserção de novas antinomias no Direito Penal 85

implante, até mesmo de embrião, gerado com gametas alheios se essa implantação implante, até mesmo de embrião, gerado com gametas alheios se essa implantação
é feita por quem tem projeto de maternidade. é feita por quem tem projeto de maternidade.
Não há, no Brasil, dispositivo expresso sobre a ilicitude da conduta embora, Não há, no Brasil, dispositivo expresso sobre a ilicitude da conduta embora,
dentre os projetos de Lei que disciplinam a matéria, existam dois17 com a previsão dentre os projetos de Lei que disciplinam a matéria, existam dois17 com a previsão
de crime que tem a seguinte redação: participar da prática de útero ou barriga de de crime que tem a seguinte redação: participar da prática de útero ou barriga de
aluguel, na condição de genitora substituta. Pena de detenção de seis meses a dois aluguel, na condição de genitora substituta. Pena de detenção de seis meses a dois
anos. Também na Alemanha é punida a conduta. anos. Também na Alemanha é punida a conduta.
Há autores que entendem que as pessoas não podem, segundo as pautas Há autores que entendem que as pessoas não podem, segundo as pautas
constitucionais vigentes no Brasil, ser objeto de contrato. Assim, também, Jussara constitucionais vigentes no Brasil, ser objeto de contrato. Assim, também, Jussara
Meirelles18 para quem todo e qualquer negócio jurídico que verse sobre materni- Meirelles18 para quem todo e qualquer negócio jurídico que verse sobre materni-
dade por substituição é nulo. Mônica Aguiar19 afirma que o objetivo da realização dade por substituição é nulo. Mônica Aguiar19 afirma que o objetivo da realização
desse negócio é a obtenção de uma vida humana, seguida pela cessão dos direitos desse negócio é a obtenção de uma vida humana, seguida pela cessão dos direitos
e deveres da maternidade, que só podem ser afastados por condenação penal. e deveres da maternidade, que só podem ser afastados por condenação penal.
Na doutrina portuguesa, Albin Eser e Ana Paula Guimarães20 entendem que Na doutrina portuguesa, Albin Eser e Ana Paula Guimarães20 entendem que
existe uma degradação para a condição de objeto da criança gerada por uma mãe existe uma degradação para a condição de objeto da criança gerada por uma mãe
para ser transferida para outra, enquanto José de Oliveira Ascenção21 privilegia para ser transferida para outra, enquanto José de Oliveira Ascenção21 privilegia
os vínculos biológicos, defendendo que a pessoa de quem provêm os gametas os vínculos biológicos, defendendo que a pessoa de quem provêm os gametas
com projeto de maternidade é a verdadeira mãe, não obstante o feto não haver se com projeto de maternidade é a verdadeira mãe, não obstante o feto não haver se
desenvolvido em seu útero. desenvolvido em seu útero.
Os partidários da ilegalidade da gestação em útero de terceiras, chamadas Os partidários da ilegalidade da gestação em útero de terceiras, chamadas
mãe de substituição no direito francês, substitutas em italiano e mais propriamente mãe de substituição no direito francês, substitutas em italiano e mais propriamente
mãe gestadora ou gestacional em português, argumentam, equivocadamente, que o mãe gestadora ou gestacional em português, argumentam, equivocadamente, que o
artigo 5º da Constituição Federal, ao garantir o direito à vida, assegura sua indis- artigo 5º da Constituição Federal, ao garantir o direito à vida, assegura sua indis-
ponibilidade e, ainda, que o art. 199, §4º – que dispõe, na verdade, sobre remoção ponibilidade e, ainda, que o art. 199, §4º – que dispõe, na verdade, sobre remoção
de órgãos, tecidos e transfusão de sangue – veda sua comercialização. de órgãos, tecidos e transfusão de sangue – veda sua comercialização.
De forma mais radical, outros apóiam a criminalização da conduta porque De forma mais radical, outros apóiam a criminalização da conduta porque
entendem existir uma dupla ofensa no fato de se oferecer o útero para a gestação de entendem existir uma dupla ofensa no fato de se oferecer o útero para a gestação de
uma criança: a primeira à dignidade da mulher que mercadeja o útero e a segunda uma criança: a primeira à dignidade da mulher que mercadeja o útero e a segunda
porque, ainda que se faça uma cessão altruísta, a mulher estaria sendo instrumen- porque, ainda que se faça uma cessão altruísta, a mulher estaria sendo instrumen-
talisada como organismo sexual. Há os que tratam de uma terceira ofensa, desta talisada como organismo sexual. Há os que tratam de uma terceira ofensa, desta
feita ao recém nascido, rebaixado a uma rês comercial. feita ao recém nascido, rebaixado a uma rês comercial.

17. Projeto de Lei 3638 de 2003 , PLC 54 e o Projeto de Lei do Senado 90, em um dos seus substi- 17. Projeto de Lei 3638 de 2003 , PLC 54 e o Projeto de Lei do Senado 90, em um dos seus substi-
tutivos. tutivos.
18. MEIRELLES, Jussara. Gestação por outrem ou determinação de maternidade. Curitiba:Gênesis, 18. MEIRELLES, Jussara. Gestação por outrem ou determinação de maternidade. Curitiba:Gênesis,
1998, p. 83. 1998, p. 83.
19. Estudos e conferências feitas no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal 19. Estudos e conferências feitas no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
da Bahia no ano de 2003 na disciplina Bioética. da Bahia no ano de 2003 na disciplina Bioética.
20. GUIMARÃES, Ana Paula. Alguns Problemas Jurídico-Criminais da Procriação Medicamente 20. GUIMARÃES, Ana Paula. Alguns Problemas Jurídico-Criminais da Procriação Medicamente
Assistida. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p.105. Assistida. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p.105.
21. Idem, ibidem. 21. Idem, ibidem.
86 Maria Auxiliadora Minahim 86 Maria Auxiliadora Minahim

Os enganos desses pensamentos são inúmeros; tudo indicando que, mais uma Os enganos desses pensamentos são inúmeros; tudo indicando que, mais uma
vez, um equívoco quanto ao bem tutelado. Aqui há uma rejeição ao útero – local vez, um equívoco quanto ao bem tutelado. Aqui há uma rejeição ao útero – local
da gestação – continente e não ao conteúdo que é constituído pelos gametas e da gestação – continente e não ao conteúdo que é constituído pelos gametas e
embriões gerados com material genético de terceiros. Aceita-se, portanto que estes embriões gerados com material genético de terceiros. Aceita-se, portanto que estes
– embrião e gametas (que são o conteúdo) – sejam objeto de um negócio, mas não – embrião e gametas (que são o conteúdo) – sejam objeto de um negócio, mas não
aprovam o continente que é o útero de terceiro. Ora, é possível admitir, como faz o aprovam o continente que é o útero de terceiro. Ora, é possível admitir, como faz o
novo código civil que se pode gerar, com material genético de outra pessoa, (o que novo código civil que se pode gerar, com material genético de outra pessoa, (o que
transtorna com mais violência os princípios relativos ao parentesco, à identidade transtorna com mais violência os princípios relativos ao parentesco, à identidade
genética) e não admitir a simples gestação em outro ventre? Não seria este mais genética) e não admitir a simples gestação em outro ventre? Não seria este mais
um passo no sentido da comunhão e da solidariedade de uns com outros, assim um passo no sentido da comunhão e da solidariedade de uns com outros, assim
como tem sido com o aleitamento? como tem sido com o aleitamento?
Ou será que definitivo, no sentido de se admitir a conduta, é o fato de que Ou será que definitivo, no sentido de se admitir a conduta, é o fato de que
ela tem um suporte ético em sua intencionalidade que consiste no partilhamento ela tem um suporte ético em sua intencionalidade que consiste no partilhamento
das condições que geram a vida? Se a doação de órgãos representa um ato de so- das condições que geram a vida? Se a doação de órgãos representa um ato de so-
lidariedade, porque a cessão transitória, com os mesmos objetivos, atenta contra lidariedade, porque a cessão transitória, com os mesmos objetivos, atenta contra
a dignidade da vida? a dignidade da vida?
4. A superação das antinomias que as realizações da ciência têm introduzido no 4. A superação das antinomias que as realizações da ciência têm introduzido no
direito penal reivindica um enfrentamento mais corajoso dos temas. Isto significa direito penal reivindica um enfrentamento mais corajoso dos temas. Isto significa
que não se devem manipular temas, designando, por exemplo, o aborto do anen- que não se devem manipular temas, designando, por exemplo, o aborto do anen-
cefálico como interrupção seletiva da gravidez ou afirmar que anencéfalo não está cefálico como interrupção seletiva da gravidez ou afirmar que anencéfalo não está
vivo em franca oposição ao conceito de vida do ordenamento jurídico nacional. vivo em franca oposição ao conceito de vida do ordenamento jurídico nacional.
Se se entende que uma mãe não tem condições pessoais de gestar um filho, e se Se se entende que uma mãe não tem condições pessoais de gestar um filho, e se
se autoriza que tal gestação seja interrompida, deve-se chamar de aborto a tal ato. se autoriza que tal gestação seja interrompida, deve-se chamar de aborto a tal ato.
Da mesma forma, engendrar longos discursos a respeito da existência ou não, nos Da mesma forma, engendrar longos discursos a respeito da existência ou não, nos
jovens embriões, de características que podem conferir-lhes a qualidade de huma- jovens embriões, de características que podem conferir-lhes a qualidade de huma-
no parece pouco produtivo porque sempre possível manipular discursivamente a no parece pouco produtivo porque sempre possível manipular discursivamente a
questão, se se deseja sua destruição para salvar outra vida. Os mistérios da vida questão, se se deseja sua destruição para salvar outra vida. Os mistérios da vida
e sua intensa vulnerabilidade merecem, afinal que sua abordagem e tratamento e sua intensa vulnerabilidade merecem, afinal que sua abordagem e tratamento
sejam realizados com o respeito que, todos os seres que integram a aventura da sejam realizados com o respeito que, todos os seres que integram a aventura da
existência terrena, merecem. existência terrena, merecem.
Capítulo VI Capítulo VI
As antigas e novas facetas do fideicomisso As antigas e novas facetas do fideicomisso
e o atual Código Civil e o atual Código Civil

Nilza Reis* Nilza Reis*

Sumário • 1. Noções Introdutórias – 2. O usufruto e o fideicomisso: distinções necessárias – 3. Direitos Sumário • 1. Noções Introdutórias – 2. O usufruto e o fideicomisso: distinções necessárias – 3. Direitos
do Fiduciário e do Fideicomissário – 4. O fideicomisso no atual Código Civil: A inovação no instituto do Fiduciário e do Fideicomissário – 4. O fideicomisso no atual Código Civil: A inovação no instituto
– 5. Conclusões Necessárias – 6. Referências Bibliográficas. – 5. Conclusões Necessárias – 6. Referências Bibliográficas.

1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS 1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

No sistema do Código Civil de 1916, o fideicomisso estava previsto no No sistema do Código Civil de 1916, o fideicomisso estava previsto no
art.1.733, autorizando o testador a instituir herdeiros ou legatários através dele, art.1.733, autorizando o testador a instituir herdeiros ou legatários através dele,
mediante imposição “a um deles, o gravado ou fiduciário, a obrigação de, por sua mediante imposição “a um deles, o gravado ou fiduciário, a obrigação de, por sua
morte, a certo tempo ou sob certa condição, transmitir ao outro, que se qualifica morte, a certo tempo ou sob certa condição, transmitir ao outro, que se qualifica
de fideicomissário, a herança ou o legado”. de fideicomissário, a herança ou o legado”.

A palavra fideicomisso, bem como todos os termos que dela derivam, tem A palavra fideicomisso, bem como todos os termos que dela derivam, tem
origem no direito clássico, em cujo âmbito encontrava-se o termo fideicommissum, origem no direito clássico, em cujo âmbito encontrava-se o termo fideicommissum,
e de fideicommittere, significando confiar, entregar por fideicomisso, como tam- e de fideicommittere, significando confiar, entregar por fideicomisso, como tam-
bém fideicomissarius, vocábulo do qual procede a palavra fideicomissário, como bém fideicomissarius, vocábulo do qual procede a palavra fideicomissário, como
a herança fideicomissária do Digesto ou fideicommisaria hereditas. a herança fideicomissária do Digesto ou fideicommisaria hereditas.

Segundo os estudiosos do tema, o fideicomisso finca as suas raízes no Direito Segundo os estudiosos do tema, o fideicomisso finca as suas raízes no Direito
Romano, haja vista que, segundo LUIS PUIG FERRIOL1, “o instituto adquiriu um Romano, haja vista que, segundo LUIS PUIG FERRIOL1, “o instituto adquiriu um
amplo desenvolvimento a partir da época imperial, pois surge como algo acessível amplo desenvolvimento a partir da época imperial, pois surge como algo acessível
a todos, independentemente do requisitos do civitas, e portanto amparado pelas a todos, independentemente do requisitos do civitas, e portanto amparado pelas
normas do jus gentium”. normas do jus gentium”.

Em determinado estágio, o direito romano retirava de certas pessoas a capa- Em determinado estágio, o direito romano retirava de certas pessoas a capa-
cidade de receber por testamento, fazendo com que alguém que desejasse benefi- cidade de receber por testamento, fazendo com que alguém que desejasse benefi-
ciá-las confiasse os bens a uma outra, dotada de capacidade, rogando-lhe que os ciá-las confiasse os bens a uma outra, dotada de capacidade, rogando-lhe que os
entregassem posteriormente para quem, efetivamente, almejavam transferir, con- entregassem posteriormente para quem, efetivamente, almejavam transferir, con-
tando, então, apenas com a sua honestidade e com a confiança nela depositada,pois tando, então, apenas com a sua honestidade e com a confiança nela depositada,pois
era livre para executar ou não a vontade do instituidor. era livre para executar ou não a vontade do instituidor.

* Professora de Direito Civil da UFBA e Juíza Federal/BA * Professora de Direito Civil da UFBA e Juíza Federal/BA
1. in El heredero fiduciário, Barcelona, 1965, p, 19 – apud PINTO FERREIRA, Enciclopédia Saraiva 1. in El heredero fiduciário, Barcelona, 1965, p, 19 – apud PINTO FERREIRA, Enciclopédia Saraiva
de Direito, vol 37, p.170) de Direito, vol 37, p.170)
88 Nilza Reis 88 Nilza Reis

Na Inglaterra, em certa época, “as mulheres casadas estavam submetidas a um Na Inglaterra, em certa época, “as mulheres casadas estavam submetidas a um
regime de incapacidade absoluta com o casamento, os bens da mulher entravam regime de incapacidade absoluta com o casamento, os bens da mulher entravam
para o patrimônio do marido, daí ter-se imaginado a instituição de fideicomissos para o patrimônio do marido, daí ter-se imaginado a instituição de fideicomissos
duplos: o parente da mulher doava os bens a um terceiro, que os entregava à mulher duplos: o parente da mulher doava os bens a um terceiro, que os entregava à mulher
casada beneficiada a título de fideicomisso2, não havendo dúvida que, em qualquer casada beneficiada a título de fideicomisso2, não havendo dúvida que, em qualquer
caso, dependia, fundamentalmente, da honestidade ou da fides do sujeito que os caso, dependia, fundamentalmente, da honestidade ou da fides do sujeito que os
arrecadava inicialmente, para transmiti-los, em momento subseqüente, ao seu arrecadava inicialmente, para transmiti-los, em momento subseqüente, ao seu
verdadeiro dono: o fideicomissário. Não havia, porém, normas legais destinada à verdadeiro dono: o fideicomissário. Não havia, porém, normas legais destinada à
disciplina do instituto, daí porque o rogatus, vale dizer, aquele que recebia os bens disciplina do instituto, daí porque o rogatus, vale dizer, aquele que recebia os bens
para entregá-los ao fideicomissário, não estava vinculado à vontade do testador para entregá-los ao fideicomissário, não estava vinculado à vontade do testador
senão através da sua honestidade e fidelidade. Era, portanto, livre para cumpri-la senão através da sua honestidade e fidelidade. Era, portanto, livre para cumpri-la
ou não. Depois, em razão dos abusos, esse panorama foi sendo alterado, e, mesmo ou não. Depois, em razão dos abusos, esse panorama foi sendo alterado, e, mesmo
em Roma, chegou-se a reconhecer ao fideicomissário a possibilidade de recorrer em Roma, chegou-se a reconhecer ao fideicomissário a possibilidade de recorrer
aos cônsules, pedindo-lhes que aquele fosse obrigado a cumprir a vontade do testa- aos cônsules, pedindo-lhes que aquele fosse obrigado a cumprir a vontade do testa-
dor, nomeando-se, então, sob o império de Cláudio, um magistrado especialmente dor, nomeando-se, então, sob o império de Cláudio, um magistrado especialmente
incumbido deste mister e que era o praetor fideicommissarius. incumbido deste mister e que era o praetor fideicommissarius.
No direito medieval, o fideicomisso encontrou um vasto campo, proliferan- No direito medieval, o fideicomisso encontrou um vasto campo, proliferan-
do, juntamente com o morgado, que, por sua vez, acarretava a transferência de do, juntamente com o morgado, que, por sua vez, acarretava a transferência de
bens, por sucessão, ao filho primogênito e, assim, sucessivamente, em caráter bens, por sucessão, ao filho primogênito e, assim, sucessivamente, em caráter
perpétuo e indivisível, sem possibilidade de alienação, em homenagem “ao nome perpétuo e indivisível, sem possibilidade de alienação, em homenagem “ao nome
e esplendor da família.”3. e esplendor da família.”3.
Consagrado em Portugal e rejeitado pelo individualismo da Revolução Fran- Consagrado em Portugal e rejeitado pelo individualismo da Revolução Fran-
cesa que, todavia, não conseguiu eliminá-lo completamente, eis que o Código de cesa que, todavia, não conseguiu eliminá-lo completamente, eis que o Código de
Napoleão o prevê (art. 897), o fideicomisso passou, finalmente, ao nosso Código Napoleão o prevê (art. 897), o fideicomisso passou, finalmente, ao nosso Código
Civil de 1916, no qual era disciplinado no título III, capítulo XIV, do Livro IV, Civil de 1916, no qual era disciplinado no título III, capítulo XIV, do Livro IV,
que era destinado às substituições de herdeiros ou legatários. que era destinado às substituições de herdeiros ou legatários.
Definindo o instituto, CARLOS MAXIMILIADO afirma que o fideicomisso Definindo o instituto, CARLOS MAXIMILIADO afirma que o fideicomisso
consiste na “designação de uma pessoa para recolher herança ou legado, na falta consiste na “designação de uma pessoa para recolher herança ou legado, na falta
ou depois de outros”4 ou depois de outros”4
Considerado no direito contemporâneo uma espécie de substituição oblíqua ou Considerado no direito contemporâneo uma espécie de substituição oblíqua ou
in­direta de herdeiro ou legatário, o fideicomisso faz surgir três sujeitos distintos: in­direta de herdeiro ou legatário, o fideicomisso faz surgir três sujeitos distintos:
o testador ou instituidor, chamado, na relação, de fideicomitente; o fiduciário ou o testador ou instituidor, chamado, na relação, de fideicomitente; o fiduciário ou
gravado, que mantém consigo a herança ou o legado para, depois, efetuar a sua gravado, que mantém consigo a herança ou o legado para, depois, efetuar a sua
transmissão, segundo a vontade do primeiro, a outro herdeiro ou legatário, ao qual transmissão, segundo a vontade do primeiro, a outro herdeiro ou legatário, ao qual
se denomina fideicomissário. se denomina fideicomissário.

2. Ob. cit, p.171. 2. Ob. cit, p.171.


3. in DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário Jurídico, Vol. III, p. 1.038, São Paulo:Forense, 1979. 3. in DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário Jurídico, Vol. III, p. 1.038, São Paulo:Forense, 1979.
4. Direito das Sucessões, vol.II, 3ª edição, Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1952, p.58. 4. Direito das Sucessões, vol.II, 3ª edição, Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1952, p.58.
As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 89 As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 89

Morto o testador, o fiduciário adquire a herança ou o legado “durante toda a Morto o testador, o fiduciário adquire a herança ou o legado “durante toda a
sua vida, durante certo tempo, ou mediante determinada condição”, a depender dos sua vida, durante certo tempo, ou mediante determinada condição”, a depender dos
termos da manifestação de vontade testamentária emitida pelo fideicomitente5, para termos da manifestação de vontade testamentária emitida pelo fideicomitente5, para
transferi-lo, posteriormente, ao seu segundo sucessor, que é o fideicomissário. transferi-lo, posteriormente, ao seu segundo sucessor, que é o fideicomissário.

Há, pois, no fideicomisso, uma dupla disposição testamentária, de caráter Há, pois, no fideicomisso, uma dupla disposição testamentária, de caráter
sucessivo, traço que o distingue do usufruto instituído através de testamento, cujos sucessivo, traço que o distingue do usufruto instituído através de testamento, cujos
termos nem sempre são claros, já que a declaração de vontade manifestada pelo termos nem sempre são claros, já que a declaração de vontade manifestada pelo
testador muitas vezes contém expressões inadequadas, ambíguas e duvidosas, testador muitas vezes contém expressões inadequadas, ambíguas e duvidosas,
impondo a necessidade de interpretação, da qual pode resultar a conclusão da impondo a necessidade de interpretação, da qual pode resultar a conclusão da
existência do fideicomisso ou ao usufruto, daí a importância de apreendermos a existência do fideicomisso ou ao usufruto, daí a importância de apreendermos a
dimensão conceitual destes dois diferentes institutos jurídicos. dimensão conceitual destes dois diferentes institutos jurídicos.

2. O FIDEICOMISSO E O USUFRUTO: DINTINÇÕES NECESSÁRIAS 2. O FIDEICOMISSO E O USUFRUTO: DINTINÇÕES NECESSÁRIAS


O fideicomisso, como sabemos, é uma forma de substituição de herdeiro O fideicomisso, como sabemos, é uma forma de substituição de herdeiro
ou legatário que se concretiza na sucessividade: primeiro sucede o fiduciário ou ou legatário que se concretiza na sucessividade: primeiro sucede o fiduciário ou
gravado, e depois o fideicomissário. E aí se consolida o instituto, ante a nulidade gravado, e depois o fideicomissário. E aí se consolida o instituto, ante a nulidade
de fideicomisso que ultrapasse o segundo grau, de modo a projetar-se no futuro de fideicomisso que ultrapasse o segundo grau, de modo a projetar-se no futuro
indefinidamente. Caso não haja qualquer fato capaz de eliminar ou interromper a indefinidamente. Caso não haja qualquer fato capaz de eliminar ou interromper a
relação fideicomissária, os dois sucessores – fiduciário e fideicomissário – serão relação fideicomissária, os dois sucessores – fiduciário e fideicomissário – serão
titulares da propriedade da herança ou do legado que receberam em decorrência titulares da propriedade da herança ou do legado que receberam em decorrência
da morte do fideicomitente, embora o primeiro, que é o gravado, só a titularize em da morte do fideicomitente, embora o primeiro, que é o gravado, só a titularize em
caráter resolúvel, pois em algum momento deve transmiti-la ao segundo – também caráter resolúvel, pois em algum momento deve transmiti-la ao segundo – também
designado pelo testador. Sendo assim, cada um, a seu tempo, será proprietário da designado pelo testador. Sendo assim, cada um, a seu tempo, será proprietário da
herança ou do legado que o beneficia. herança ou do legado que o beneficia.
No usufruto tudo opera de modo diverso, porque, sendo um direito real No usufruto tudo opera de modo diverso, porque, sendo um direito real
na coisa alheia, impõe a aquisição simultânea de dois diferentes direitos pelos na coisa alheia, impõe a aquisição simultânea de dois diferentes direitos pelos
sujeitos envolvidos na relação constitutiva, que, guardando, aqui, uma certa sujeitos envolvidos na relação constitutiva, que, guardando, aqui, uma certa
correspondência com o fideicomisso, também são três, a saber: o testador que, correspondência com o fideicomisso, também são três, a saber: o testador que,
no caso, o instituiu através de negócio jurídico unilateral de última vontade; o no caso, o instituiu através de negócio jurídico unilateral de última vontade; o
sujeito a quem este transfere, por força da sucessão decorrente da sua morte, a sujeito a quem este transfere, por força da sucessão decorrente da sua morte, a
propriedade de todo o seu patrimônio ou cota parte indeterminada dos seus bens propriedade de todo o seu patrimônio ou cota parte indeterminada dos seus bens
(herança) ou de coisa determinada e certa (legado), e, afinal, a pessoa à qual busca (herança) ou de coisa determinada e certa (legado), e, afinal, a pessoa à qual busca
assegurar, primordialmente, meios por intermédio dos quais possa garantir a sua assegurar, primordialmente, meios por intermédio dos quais possa garantir a sua
sobrevivência, que é o usufrutuário. sobrevivência, que é o usufrutuário.
Diz-se, então, que o fideicomisso pode ser universal ou singular, conforme Diz-se, então, que o fideicomisso pode ser universal ou singular, conforme
incida, respectivamente, sobre a herança ou o legado. incida, respectivamente, sobre a herança ou o legado.

5. Enciclopédia Saraiva de Direito,-Pinto Ferreira,vol.37,p. 172. 5. Enciclopédia Saraiva de Direito,-Pinto Ferreira,vol.37,p. 172.
90 Nilza Reis 90 Nilza Reis

Nesse contexto, o sujeito gravado – fiduciário – passa a ser titular da proprie- Nesse contexto, o sujeito gravado – fiduciário – passa a ser titular da proprie-
dade, mas exercitará o seu direito de forma limitada, uma vez que as faculdades dade, mas exercitará o seu direito de forma limitada, uma vez que as faculdades
que lhe são inerentes serão parcialmente esvaziadas em benefício do usufrutuário, que lhe são inerentes serão parcialmente esvaziadas em benefício do usufrutuário,
a quem são transmitidos, grosso modo, o uso e a fruição (gozo) da herança ou a quem são transmitidos, grosso modo, o uso e a fruição (gozo) da herança ou
do legado, ficando aquele apenas com a faculdade de dispor, motivando a sua do legado, ficando aquele apenas com a faculdade de dispor, motivando a sua
denominação de nu-proprietário, dando lugar ao fenômeno do desdobramento, denominação de nu-proprietário, dando lugar ao fenômeno do desdobramento,
que é justificado pelo princípio da elasticidade do domínio. que é justificado pelo princípio da elasticidade do domínio.
Sendo assim, não há dúvida de que, operando diferentemente do fideicomisso, Sendo assim, não há dúvida de que, operando diferentemente do fideicomisso,
quando o testador pretende instituir o usufruto através de testamento, mas a redação da quando o testador pretende instituir o usufruto através de testamento, mas a redação da
sua declaração de última vontade suscita dúvida, o operador do direito há de buscar o sua declaração de última vontade suscita dúvida, o operador do direito há de buscar o
seu verdadeiro sentido através do manejo dos traços distintivos desses dois insti- seu verdadeiro sentido através do manejo dos traços distintivos desses dois insti-
tutos. A tarefa não é fácil, tanto que foi considerada por TEIXEIRA DE FREITAS tutos. A tarefa não é fácil, tanto que foi considerada por TEIXEIRA DE FREITAS
como “um tormento para os juristas”, concluindo que: como “um tormento para os juristas”, concluindo que:
“Em casos de dúvida, podendo ter-se constituído fideicomisso ou usufruto, entender- “Em casos de dúvida, podendo ter-se constituído fideicomisso ou usufruto, entender-
se-á a constituição de fideicomisso sempre que o constituidor ordenar passagem se-á a constituição de fideicomisso sempre que o constituidor ordenar passagem
dos bens a outrem por morte do primeiro nomeado, embora em relação a este fale dos bens a outrem por morte do primeiro nomeado, embora em relação a este fale
em usufruto.”6 em usufruto.”6

Haverá fideicomisso, então, quando uma pessoa é beneficiada com uma Haverá fideicomisso, então, quando uma pessoa é beneficiada com uma
herança ou legado para efetuar, em momento subseqüente, a sua transferência a herança ou legado para efetuar, em momento subseqüente, a sua transferência a
outro, fazendo surgir, assim, a aquisição sucessiva dos direitos conferidos por cada outro, fazendo surgir, assim, a aquisição sucessiva dos direitos conferidos por cada
um desses sujeitos. Deste modo, tem-se que entre a aquisição do primeiro e a do um desses sujeitos. Deste modo, tem-se que entre a aquisição do primeiro e a do
segundo haverá o tractus temporis, vale dizer, um lapso de tempo que medeia entre segundo haverá o tractus temporis, vale dizer, um lapso de tempo que medeia entre
a propriedade do fiduciário e a do fideicomissário. No usufruto, ao contrário, os a propriedade do fiduciário e a do fideicomissário. No usufruto, ao contrário, os
sujeitos beneficiados pelo testador, seja herdeiro ou legatário – adquirem os seus sujeitos beneficiados pelo testador, seja herdeiro ou legatário – adquirem os seus
direitos ao mesmo tempo, ou seja, simultaneamente. E mais: enquanto o fiduciário direitos ao mesmo tempo, ou seja, simultaneamente. E mais: enquanto o fiduciário
e o fideicomissário são titulares da propriedade e têm, portanto, um direito real e o fideicomissário são titulares da propriedade e têm, portanto, um direito real
sobre coisa própria, o usufruto acarreta o desmembramento de um só domínio, sobre coisa própria, o usufruto acarreta o desmembramento de um só domínio,
que é do nu-proprietário, retirando do seu conteúdo, em caráter temporário, as que é do nu-proprietário, retirando do seu conteúdo, em caráter temporário, as
faculdades de usar e fruir da coisa que integra o seu patrimônio em benefício do faculdades de usar e fruir da coisa que integra o seu patrimônio em benefício do
usufrutuário. Este, por sua vez, não é proprietário nem titular de um direito real usufrutuário. Este, por sua vez, não é proprietário nem titular de um direito real
na própria coisa, pois o seu direito incide sobre coisa alheia. na própria coisa, pois o seu direito incide sobre coisa alheia.
Assim, conclui-se que haverá usufruto quando o testador impõe a aquisição Assim, conclui-se que haverá usufruto quando o testador impõe a aquisição
dos direitos dos beneficiados de forma simultânea: o nu-proprietário e o usufru- dos direitos dos beneficiados de forma simultânea: o nu-proprietário e o usufru-
tuário exercitam concomitantemente os seus direitos. No fideicomisso, não. O tuário exercitam concomitantemente os seus direitos. No fideicomisso, não. O
fideicomissário só passa à condição de proprietário depois da extinção do direito fideicomissário só passa à condição de proprietário depois da extinção do direito
do fiduciário, havendo, no caso, uma imperiosa sucessividade no exercício dos do fiduciário, havendo, no caso, uma imperiosa sucessividade no exercício dos
seus direitos. seus direitos.

6. Ob. Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 37, p.179. 6. Ob. Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 37, p.179.
As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 91 As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 91

A par disso, as faculdades legalmente conferidas aos sujeitos da relação de usu- A par disso, as faculdades legalmente conferidas aos sujeitos da relação de usu-
fruto são totalmente distintas daquelas outorgados aos sujeitos do fideicomisso. fruto são totalmente distintas daquelas outorgados aos sujeitos do fideicomisso.
Com efeito, quando um bem é gravado de usufruto, o titular não ignora que a Com efeito, quando um bem é gravado de usufruto, o titular não ignora que a
respectiva propriedade não é sua, mas de outro: o nu-proprietário, assim chamado respectiva propriedade não é sua, mas de outro: o nu-proprietário, assim chamado
porque, no curso da duração do usufruto – que será no máximo vitalício –, fica porque, no curso da duração do usufruto – que será no máximo vitalício –, fica
destituído de importantes faculdades que integram o seu domínio. O usufrutuário, destituído de importantes faculdades que integram o seu domínio. O usufrutuário,
ao contrário do fiduciário, não é titular de um direito real na coisa própria, mas na ao contrário do fiduciário, não é titular de um direito real na coisa própria, mas na
coisa alheia. E preenchendo o conteúdo do seu direito, mantém consigo exatamente coisa alheia. E preenchendo o conteúdo do seu direito, mantém consigo exatamente
algumas faculdades que são extraídas do conteúdo da propriedade de outrem, mas algumas faculdades que são extraídas do conteúdo da propriedade de outrem, mas
que voltarão ao respectivo titular quando o seu direito for extinto, revelando, assim, que voltarão ao respectivo titular quando o seu direito for extinto, revelando, assim,
um fenômeno justificado pelo princípio da elasticidade do domínio. um fenômeno justificado pelo princípio da elasticidade do domínio.
Quando instituído através de testamento, o usufruto não é uma forma de substitui- Quando instituído através de testamento, o usufruto não é uma forma de substitui-
ção imediata ou oblíqua de herdeiro ou legatário. É simplesmente uma forma de desig- ção imediata ou oblíqua de herdeiro ou legatário. É simplesmente uma forma de desig-
nação de sucessores simultâneos, sejam herdeiros ou legatários, com direitos diversos e nação de sucessores simultâneos, sejam herdeiros ou legatários, com direitos diversos e
que serão exercitados ao mesmo tempo. Sob este ângulo, o fideicomisso também é uma que serão exercitados ao mesmo tempo. Sob este ângulo, o fideicomisso também é uma
forma de nomear herdeiros ou legatários, mas de um modo diferente, porque, neste forma de nomear herdeiros ou legatários, mas de um modo diferente, porque, neste
caso, o testador manifesta a sua vontade no sentido de beneficiar sucessivamente caso, o testador manifesta a sua vontade no sentido de beneficiar sucessivamente
dois sucessores – herdeiros ou legatários – com todo o seu patrimônio ou quota dois sucessores – herdeiros ou legatários – com todo o seu patrimônio ou quota
parte indeterminada do seu patrimônio (fideicomisso universal), ou, ainda, com parte indeterminada do seu patrimônio (fideicomisso universal), ou, ainda, com
bem certo e determinado (fideicomisso singular), conferindo-lhes, assim, um bem certo e determinado (fideicomisso singular), conferindo-lhes, assim, um
mesmo direito, que será exercitado, porém, em tempo diverso. mesmo direito, que será exercitado, porém, em tempo diverso.
Na realidade, no usufruto há o desmembramento do domínio atribuído, Na realidade, no usufruto há o desmembramento do domínio atribuído,
exclusivamente, ao nu-proprietário, mas o instituidor assegura a outro, que é o exclusivamente, ao nu-proprietário, mas o instituidor assegura a outro, que é o
usufrutuário, o direito de usar e fruir as utilidades da herança ou do legado que, usufrutuário, o direito de usar e fruir as utilidades da herança ou do legado que,
na verdade, não lhe pertence. Por isto o usufruto é um direito real na coisa alheia, na verdade, não lhe pertence. Por isto o usufruto é um direito real na coisa alheia,
já que esta integra o patrimônio do outro sujeito, qual seja, o nu-proprietário, e já que esta integra o patrimônio do outro sujeito, qual seja, o nu-proprietário, e
fica temporariamente desfalcado de algumas faculdades. No fideicomisso, in- fica temporariamente desfalcado de algumas faculdades. No fideicomisso, in-
discutivelmente, tanto o fiduciário quando o fideicomissário têm a propriedade discutivelmente, tanto o fiduciário quando o fideicomissário têm a propriedade
da herança ou do legado, embora a natureza do direito assegurado ao primeiro da herança ou do legado, embora a natureza do direito assegurado ao primeiro
esteja submetida às suas próprias contingências, tornando a sua propriedade, em esteja submetida às suas próprias contingências, tornando a sua propriedade, em
conseqüência, restrita e resolúvel, já que também é temporária, porque submetida conseqüência, restrita e resolúvel, já que também é temporária, porque submetida
à determinação do instituidor, cujo desejo é torná-la definitiva para o último be- à determinação do instituidor, cujo desejo é torná-la definitiva para o último be-
neficiado. Este, por sua vez, nem sempre certo e conhecido, eis que pode ser uma neficiado. Este, por sua vez, nem sempre certo e conhecido, eis que pode ser uma
pessoa ainda não concebida (prole eventual), diversamente do que acontece no pessoa ainda não concebida (prole eventual), diversamente do que acontece no
usufruto, no qual a dualidade simultânea dos direitos conferidos aos sucessores usufruto, no qual a dualidade simultânea dos direitos conferidos aos sucessores
– propriedade e usufruto – exige que esses existam e tenham capacidade para – propriedade e usufruto – exige que esses existam e tenham capacidade para
adquiri-los no momento da abertura da sucessão do instituidor. adquiri-los no momento da abertura da sucessão do instituidor.
A par desses aspectos, vale recordar que o usufruto tem finalidade alimen- A par desses aspectos, vale recordar que o usufruto tem finalidade alimen-
tar e, por isto, o seu titular não pode transferi-lo a outrem, fazendo com que, tar e, por isto, o seu titular não pode transferi-lo a outrem, fazendo com que,
inspirados em ENNECCERUS, alguns autores o classifiquem como um direito inspirados em ENNECCERUS, alguns autores o classifiquem como um direito
92 Nilza Reis 92 Nilza Reis

real subjetivamente pessoal, uma vez que a existência do usufrutuário reflete na real subjetivamente pessoal, uma vez que a existência do usufrutuário reflete na
continuidade ou extinção do próprio direito, diversamente do que acontece com continuidade ou extinção do próprio direito, diversamente do que acontece com
os direitos reais subjetivamente reais, tais como a servidão e a enfiteuse7. Diante os direitos reais subjetivamente reais, tais como a servidão e a enfiteuse7. Diante
disso, quando beneficia uma pessoa física e desde que não haja a fixação de outro disso, quando beneficia uma pessoa física e desde que não haja a fixação de outro
prazo de duração, o usufruto será vitalício e se extinguirá, obrigatoriamente, com prazo de duração, o usufruto será vitalício e se extinguirá, obrigatoriamente, com
a morte do titular, acarretando o retorno das faculdades que até então exercitava a morte do titular, acarretando o retorno das faculdades que até então exercitava
ao domínio do nu-proprietário. ao domínio do nu-proprietário.
No fideicomisso, as conseqüências da morte dos sucessores designados pelo No fideicomisso, as conseqüências da morte dos sucessores designados pelo
testador são completamente distintas. testador são completamente distintas.
De fato, quando o fiduciário morre antes do fideicomissário, a propriedade do De fato, quando o fiduciário morre antes do fideicomissário, a propriedade do
bem fideicomitido passa aos seus próprios sucessores, desde que este fato não seja bem fideicomitido passa aos seus próprios sucessores, desde que este fato não seja
a causa da transmissão da propriedade decorrente da vontade do fideicomitente, a causa da transmissão da propriedade decorrente da vontade do fideicomitente,
embora alguns sustentem que a situação conduz à antecipação do momento da embora alguns sustentem que a situação conduz à antecipação do momento da
aquisição do direito do segundo sucessor, mas acreditamos que os efeitos jurídicos aquisição do direito do segundo sucessor, mas acreditamos que os efeitos jurídicos
dependerão da hipótese concreta, até porque o fideicomissário pode não aceitar a dependerão da hipótese concreta, até porque o fideicomissário pode não aceitar a
herança ou ao legado que lhe foi atribuído em testamento, provocando a perma- herança ou ao legado que lhe foi atribuído em testamento, provocando a perma-
nência do domínio do primeiro beneficiado e, por consegüinte, dos seus próprios nência do domínio do primeiro beneficiado e, por consegüinte, dos seus próprios
sucessores, salvo disposição em contrário do instituidor. sucessores, salvo disposição em contrário do instituidor.

Morrendo o fideicomissário em momento anterior ao evento, termo ou condi- Morrendo o fideicomissário em momento anterior ao evento, termo ou condi-
ção prevista pelo fideicomitente para a aquisição do seu direito, este, logicamente, ção prevista pelo fideicomitente para a aquisição do seu direito, este, logicamente,
não chegou a configurar-se, fazendo com que a propriedade seja consolidada no não chegou a configurar-se, fazendo com que a propriedade seja consolidada no
fiduciário, adquirindo, então, uma qualidade diversa da que tinha até então, uma vez fiduciário, adquirindo, então, uma qualidade diversa da que tinha até então, uma vez
que originalmente era resolúvel e, em razão daquele fato, passa a ser definitiva. que originalmente era resolúvel e, em razão daquele fato, passa a ser definitiva.

3. DIREITOS DO FIDUCIÁRIO E DO FIDEICOMISSÁRIO 3. DIREITOS DO FIDUCIÁRIO E DO FIDEICOMISSÁRIO

Sendo o primeiro titular da propriedade da herança ou do legado, o fiduciário Sendo o primeiro titular da propriedade da herança ou do legado, o fiduciário
será beneficiado com a transmissão operada pelo princípio da saisine, mas deve será beneficiado com a transmissão operada pelo princípio da saisine, mas deve
promover a transcrição do título, vale dizer, a sentença que julgou a partilha, no promover a transcrição do título, vale dizer, a sentença que julgou a partilha, no
registro público competente, que será o imobiliário se o bem tem esta natureza, registro público competente, que será o imobiliário se o bem tem esta natureza,
e o de títulos e documentos se o seu objeto for bem móvel, conferindo, assim, e o de títulos e documentos se o seu objeto for bem móvel, conferindo, assim,
eficácia erga omnes ao seu direito. eficácia erga omnes ao seu direito.

Deve conservar o bem, já que deve transferi-lo ao segundo sucessor – fi- Deve conservar o bem, já que deve transferi-lo ao segundo sucessor – fi-
deicomissário –, ainda que o testamento no qual foi nomeado não faça qualquer deicomissário –, ainda que o testamento no qual foi nomeado não faça qualquer
menção a este fato. Também deve administrar com zelo o que recebeu, pois pode menção a este fato. Também deve administrar com zelo o que recebeu, pois pode
ser responsabilizado pelas deteriorações ou danos decorrentes de seu procedimento ser responsabilizado pelas deteriorações ou danos decorrentes de seu procedimento
culposo, cabendo-lhe, ainda, as obrigações de inventariar os bens fideicomitidos culposo, cabendo-lhe, ainda, as obrigações de inventariar os bens fideicomitidos

7. Orlando Gomes, Direitos Reais,7ª edição, 1980, São Paulo: Forense, p.08. 7. Orlando Gomes, Direitos Reais,7ª edição, 1980, São Paulo: Forense, p.08.
As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 93 As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 93

e de prestar caução, a qualquer tempo, neste caso último se lhe exigir o fideico- e de prestar caução, a qualquer tempo, neste caso último se lhe exigir o fideico-
missário. missário.

O fiduciário tem, ainda, o direito de consolidar o fideicomisso quando ocorrem O fiduciário tem, ainda, o direito de consolidar o fideicomisso quando ocorrem
algumas situações, entre as quais vale referir as hipóteses de renúncia, exclusão algumas situações, entre as quais vale referir as hipóteses de renúncia, exclusão
por indignidade ou deserdação, falta de legitimação ou morte do fideicomissário por indignidade ou deserdação, falta de legitimação ou morte do fideicomissário
antes da realização do evento ou do implemento da condição prevista para a antes da realização do evento ou do implemento da condição prevista para a
aquisição do seu direito, conduzindo o fideicomisso à caducidade, importando aquisição do seu direito, conduzindo o fideicomisso à caducidade, importando
recordar que estas hipóteses não têm caráter exaustivo, ante a existência de outras recordar que estas hipóteses não têm caráter exaustivo, ante a existência de outras
referidas pelos doutrinadores8. referidas pelos doutrinadores8.

Uma tormentosa questão parece aflorar em derredor da possibilidade ou não Uma tormentosa questão parece aflorar em derredor da possibilidade ou não
de o fiduciário alienar a sua propriedade, matéria na qual surgem divergências, de o fiduciário alienar a sua propriedade, matéria na qual surgem divergências,
pois enquanto alguns sustentam que o fiduciário está habilitado a transmitir o seu pois enquanto alguns sustentam que o fiduciário está habilitado a transmitir o seu
direito, “na medida em que o tem”9, outros negam esta possibilidade10. direito, “na medida em que o tem”9, outros negam esta possibilidade10.

Nos filiamos à primeira corrente, uma vez que não conseguimos entrever a Nos filiamos à primeira corrente, uma vez que não conseguimos entrever a
e­ xistência de qualquer obstáculo à transferência da propriedade pelo fiduciário e­ xistência de qualquer obstáculo à transferência da propriedade pelo fiduciário
que, logicamente, só poderá efetivá-la de acordo com a própria natureza do seu que, logicamente, só poderá efetivá-la de acordo com a própria natureza do seu
direito. Como ocorre em qualquer situação, só pode dispor, na verdade, do que direito. Como ocorre em qualquer situação, só pode dispor, na verdade, do que
tem. E o que tem é uma propriedade resolúvel e, portanto, temporária, daí porque tem. E o que tem é uma propriedade resolúvel e, portanto, temporária, daí porque
somente assim poderá transferi-la a terceiros. Se dela dispõe, quem quer que a somente assim poderá transferi-la a terceiros. Se dela dispõe, quem quer que a
tenha adquirido ficará vinculado aos termos do título constitutivo, razão pela qual, tenha adquirido ficará vinculado aos termos do título constitutivo, razão pela qual,
substituindo o fiduciário, tem a obrigação de transmiti-la ao fideicomissário quando substituindo o fiduciário, tem a obrigação de transmiti-la ao fideicomissário quando
ocorrer o evento, o termo ou a condição prevista pelo testador para a aquisição ocorrer o evento, o termo ou a condição prevista pelo testador para a aquisição
do seu domínio, uma vez que não ignora a resolubilidade inerente ao direito que do seu domínio, uma vez que não ignora a resolubilidade inerente ao direito que
lhe foi transmitido. lhe foi transmitido.
Certo é que uma das características da propriedade é sua duração ilimitada, Certo é que uma das características da propriedade é sua duração ilimitada,
a sua perpetuidade, mas não se pode negar a existência da exceção consistente a sua perpetuidade, mas não se pode negar a existência da exceção consistente
naquela dotada de natureza resolúvel e “que se configura quando, no próprio naquela dotada de natureza resolúvel e “que se configura quando, no próprio
título de sua constituição, por sua própria natureza ou pela vontade do agente ou título de sua constituição, por sua própria natureza ou pela vontade do agente ou
das partes, se contém condição resolutiva”,11 à semelhança do que acontece com das partes, se contém condição resolutiva”,11 à semelhança do que acontece com
a propriedade do fiduciário. a propriedade do fiduciário.

8. Eduardo de Oliveira Leite afirma que “o segundo requisito necessário da substituição fideicomis- 8. Eduardo de Oliveira Leite afirma que “o segundo requisito necessário da substituição fideicomis-
sária, a obrigação de conservar e restituir, está implícito na proibição de alienar, uma vez que, sária, a obrigação de conservar e restituir, está implícito na proibição de alienar, uma vez que,
é titular da herança ou legado, mas propriedade restrita e resolúvel, pois deve conservá-la para é titular da herança ou legado, mas propriedade restrita e resolúvel, pois deve conservá-la para
a transmitir oportunamente ao fideicomissário, mas, em momento subseqüente, sustenta que o a transmitir oportunamente ao fideicomissário, mas, em momento subseqüente, sustenta que o
fiduciário “pode dispor dos bens, como lhe convenha e até aliená-los, se não houver proibição fiduciário “pode dispor dos bens, como lhe convenha e até aliená-los, se não houver proibição
expressa”(pp. 610 e 611). expressa”(pp. 610 e 611).
9. ORLANDO GOMES. ob, cit., p. 295. 9. ORLANDO GOMES. ob, cit., p. 295.
10. RT 262:210-211. 10. RT 262:210-211.
11. ORLANDO GOMES, ob. cit., p. 96. 11. ORLANDO GOMES, ob. cit., p. 96.
94 Nilza Reis 94 Nilza Reis

Cremos, portanto, que, inexistindo vedação prevista pelo testador, no sentido Cremos, portanto, que, inexistindo vedação prevista pelo testador, no sentido
de fixar a inalienabilidade do objeto do fideicomisso, não há óbice à sua aliena- de fixar a inalienabilidade do objeto do fideicomisso, não há óbice à sua aliena-
ção ou oneração pelo primeiro sucessor – fiduciário –, até porque este pode ser ção ou oneração pelo primeiro sucessor – fiduciário –, até porque este pode ser
convocado pelo fideicomissário a prestar caução, com o objetivo de assegurar a convocado pelo fideicomissário a prestar caução, com o objetivo de assegurar a
efetividade do seu eventual direito à propriedade do acervo ou do bem fideicome- efetividade do seu eventual direito à propriedade do acervo ou do bem fideicome-
tido, eliminando, assim, os riscos aos quais possa eventualmente ser submetido, tido, eliminando, assim, os riscos aos quais possa eventualmente ser submetido,
em razão do comportamento negligente do fiduciário. em razão do comportamento negligente do fiduciário.
Importa recordar, ademais disso, que, em razão da sua própria natureza, o Importa recordar, ademais disso, que, em razão da sua própria natureza, o
direito do fideicomissário é eventual, porque depende “da verificação, ou reali- direito do fideicomissário é eventual, porque depende “da verificação, ou reali-
zação, dos elementos constitutivos que lhes faltam para se erigirem em direitos zação, dos elementos constitutivos que lhes faltam para se erigirem em direitos
subjetivos e, assim sendo, nitidamente se distinguem dos direitos pertencentes subjetivos e, assim sendo, nitidamente se distinguem dos direitos pertencentes
aos que podem exigir, de outrem, a prática do ato constitutivo final”12, O Direito aos que podem exigir, de outrem, a prática do ato constitutivo final”12, O Direito
e a vida dos Direitos, vol. 2, Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, anotada e e a vida dos Direitos, vol. 2, Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, anotada e
atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, p.574, São Paulo:1991. E o elemento atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, p.574, São Paulo:1991. E o elemento
constitutivo que se encontra ausente, no caso, é o evento previsto pelo testador constitutivo que se encontra ausente, no caso, é o evento previsto pelo testador
como causa eficiente da aquisição do seu direito. como causa eficiente da aquisição do seu direito.
Com a morte do fiduciário, o advento do termo ou o implemento da condição Com a morte do fiduciário, o advento do termo ou o implemento da condição
p­ revista pelo testador como elemento imprescindível à transferência da herança ou p­ revista pelo testador como elemento imprescindível à transferência da herança ou
do legado ao fideicomissário, o direito deste13, que até então era eventual, passa, do legado ao fideicomissário, o direito deste13, que até então era eventual, passa,
então, a existir, outorgando-lhe qualidade de titular da respectiva propriedade. então, a existir, outorgando-lhe qualidade de titular da respectiva propriedade.
Configura-se, aí, a substituição fideicomissária, impondo ao segundo sucessor do Configura-se, aí, a substituição fideicomissária, impondo ao segundo sucessor do
fideicomitente, ou instituidor, a obrigação de assumir os encargos remanescentes fideicomitente, ou instituidor, a obrigação de assumir os encargos remanescentes
da herança, desde que vinculados à sua qualidade. da herança, desde que vinculados à sua qualidade.

4. O FIDEICOMISSO NO ATUAL CÓDIGO CIVIL: A INOVAÇÃO NO 4. O FIDEICOMISSO NO ATUAL CÓDIGO CIVIL: A INOVAÇÃO NO
INSTITUTO INSTITUTO
No Código Civil de 2002, o instituto do fideicomisso manteve alguns dos seus No Código Civil de 2002, o instituto do fideicomisso manteve alguns dos seus
contornos antigos, como atesta o art.1.951, no qual foram introduzidas pequenas contornos antigos, como atesta o art.1.951, no qual foram introduzidas pequenas
variações de redação, mas não há dúvida de que no art. 1.952, caput e parágrafo variações de redação, mas não há dúvida de que no art. 1.952, caput e parágrafo
único, surgem novidades de grande significado, como atesta a simples leitura do único, surgem novidades de grande significado, como atesta a simples leitura do
seu texto, in verbis: seu texto, in verbis:
“Art. 1.952. A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não “Art. 1.952. A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não
concebidos ao tempo da morte do testador. concebidos ao tempo da morte do testador.
Parágrafo único – Se, ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideico- Parágrafo único – Se, ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideico-
missário, adquirirá este a propriedade dos bens fideicomitidos, convertendo-se em missário, adquirirá este a propriedade dos bens fideicomitidos, convertendo-se em
usufruto o direito do fiduciário.” usufruto o direito do fiduciário.”

12. VICENTE RAO 12. VICENTE RAO


13. Sobre os direitos do fiduciários e do fideicomissário recomendamos a análise da obra de Maria 13. Sobre os direitos do fiduciários e do fideicomissário recomendamos a análise da obra de Maria
Helena Diniz (Curso de Direito Civil Brasileiro, 21ª edição, revista e atualizada, Editora Sarai- Helena Diniz (Curso de Direito Civil Brasileiro, 21ª edição, revista e atualizada, Editora Sarai-
va,2007, pp. 344/348) va,2007, pp. 344/348)
As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 95 As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 95

Qual será o verdadeiro sentido dessas normas? É o que temos buscado alcançar, Qual será o verdadeiro sentido dessas normas? É o que temos buscado alcançar,
meditando sobre o conteúdo dos preceitos contidos no atual Código Civil, que meditando sobre o conteúdo dos preceitos contidos no atual Código Civil, que
alteram, de forma substancial, a dimensão conceitual do fideicomisso disciplinado alteram, de forma substancial, a dimensão conceitual do fideicomisso disciplinado
no sistema anterior. no sistema anterior.
Com efeito, admitindo que o testador possa “instituir herdeiros ou legatários, Com efeito, admitindo que o testador possa “instituir herdeiros ou legatários,
estabelecendo que, por ocasião da sua morte, a herança ou o legado se transmita estabelecendo que, por ocasião da sua morte, a herança ou o legado se transmita
ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste, por sua morte, a certo tempo ou sob ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste, por sua morte, a certo tempo ou sob
certa condição, em favor de outrem, que se qualifica de fideicomissário”, nos certa condição, em favor de outrem, que se qualifica de fideicomissário”, nos
termos do art. 1.951, o atual Código Civil traz ao cenário jurídico nacional uma termos do art. 1.951, o atual Código Civil traz ao cenário jurídico nacional uma
nova regra legal que impõe a sua constituição apenas em favor de pessoa ainda nova regra legal que impõe a sua constituição apenas em favor de pessoa ainda
não concebida no momento da morte do instituidor. Indo mais além, determina não concebida no momento da morte do instituidor. Indo mais além, determina
que, se, nesta ocasião, o beneficiado já houver nascido, o fideicomisso desapa- que, se, nesta ocasião, o beneficiado já houver nascido, o fideicomisso desapa-
rece, surgindo, em seu lugar, o usufruto para o primeiro sucessor e o direito de rece, surgindo, em seu lugar, o usufruto para o primeiro sucessor e o direito de
propriedade para o segundo. propriedade para o segundo.
Entendemos que, a partir de duas situações, as determinações contidas no Entendemos que, a partir de duas situações, as determinações contidas no
art. 1.952 do Código Civil conduzem o intérprete a dois diferentes destinos, isto art. 1.952 do Código Civil conduzem o intérprete a dois diferentes destinos, isto
porque, no momento da abertura da sucessão do instituidor do fideicomisso, deve porque, no momento da abertura da sucessão do instituidor do fideicomisso, deve
verificar se o segundo herdeiro ou legatário, que é o fideicomissário, já nasceu verificar se o segundo herdeiro ou legatário, que é o fideicomissário, já nasceu
ou não, uma vez que as soluções oferecidas para estas hipóteses serão totalmente ou não, uma vez que as soluções oferecidas para estas hipóteses serão totalmente
distintas. Sim, porque, se o fideicomissário já houver nascido ao tempo da morte distintas. Sim, porque, se o fideicomissário já houver nascido ao tempo da morte
do testador não haverá fideicomisso, pois ele terá direito à propriedade da herança do testador não haverá fideicomisso, pois ele terá direito à propriedade da herança
ou do legado, conferindo-se, em conseqüência, ao primeiro indicado, antes qua- ou do legado, conferindo-se, em conseqüência, ao primeiro indicado, antes qua-
lificado de fiduciário ou gravado, apenas o direito ao respectivo usufruto, do que lificado de fiduciário ou gravado, apenas o direito ao respectivo usufruto, do que
resulta, imediatamente, a eliminação da aquisição sucessiva dos direitos referidos resulta, imediatamente, a eliminação da aquisição sucessiva dos direitos referidos
no testamento. Neste caso haverá, portanto, a aquisição e o exercício simultâneos no testamento. Neste caso haverá, portanto, a aquisição e o exercício simultâneos
de diferentes direitos pelos herdeiros ou legatários do testador: um, na qualidade de diferentes direitos pelos herdeiros ou legatários do testador: um, na qualidade
de proprietário; outro, de usufrutuário, remetendo a matéria à esfera dos direitos de proprietário; outro, de usufrutuário, remetendo a matéria à esfera dos direitos
reais, na coisa própria e na coisa alheia. reais, na coisa própria e na coisa alheia.

Analisando o tema, Eduardo de Oliveira Leite14 ressalta, com percuciência, Analisando o tema, Eduardo de Oliveira Leite14 ressalta, com percuciência,
que a possibilidade da prole eventual de uma pessoa ser beneficiada na sucessão que a possibilidade da prole eventual de uma pessoa ser beneficiada na sucessão
testamentária já era prevista no Código Civil anterior (art. 1.718), concluindo que testamentária já era prevista no Código Civil anterior (art. 1.718), concluindo que
a novidade é a sua inserção na seara das substituições.Ilustra o seu entendimento a novidade é a sua inserção na seara das substituições.Ilustra o seu entendimento
com a doutrina de PONTES DE MIRANDA que, ao comentar o dispositivo, com a doutrina de PONTES DE MIRANDA que, ao comentar o dispositivo,
sustentou: “Quando o testador instituiu pessoa por ser concebida (art. 1.718) em sustentou: “Quando o testador instituiu pessoa por ser concebida (art. 1.718) em
fideicomisso e dá substituto, esse só sucede, demonstrada a ineficácia da verba fideicomisso e dá substituto, esse só sucede, demonstrada a ineficácia da verba
da instituição, e.g., se a pessoa designada, cuja prole foi contemplada, já morreu da instituição, e.g., se a pessoa designada, cuja prole foi contemplada, já morreu
ou não pode ter filhos”. ou não pode ter filhos”.

14. in Comentários ao Novo Código Civil, 2ª edição, Do Direito das Sucessões,Vol. XXI, pp. 612/613, 14. in Comentários ao Novo Código Civil, 2ª edição, Do Direito das Sucessões,Vol. XXI, pp. 612/613,
Editora Forense, 2003) Editora Forense, 2003)
96 Nilza Reis 96 Nilza Reis

A citação, cujos grifos são originais, serve ainda hoje à hipótese de fideico- A citação, cujos grifos são originais, serve ainda hoje à hipótese de fideico-
misso, que, como vimos, só pode ser instituído em benefício da prole eventual misso, que, como vimos, só pode ser instituído em benefício da prole eventual
de uma pessoa, valendo recordar, todavia, que a menção à impossibilidade de a de uma pessoa, valendo recordar, todavia, que a menção à impossibilidade de a
pessoa indicada ter filhos não absorve aqueles que provêm dos liames civis (filhos pessoa indicada ter filhos não absorve aqueles que provêm dos liames civis (filhos
adotivos), salvo se o testador de logo os excluiu. adotivos), salvo se o testador de logo os excluiu.
Tudo será diferente, porém, quando aquele que foi indicado como segundo Tudo será diferente, porém, quando aquele que foi indicado como segundo
sucessor e, por conseguinte, na qualidade de fideicomissário, ainda não houver sucessor e, por conseguinte, na qualidade de fideicomissário, ainda não houver
nascido no momento da morte do instituidor, situação na qual o fideicomisso nascido no momento da morte do instituidor, situação na qual o fideicomisso
produz os seus efeitos, seguindo os seus antigos contornos e tornando necessária produz os seus efeitos, seguindo os seus antigos contornos e tornando necessária
a adaptação das normas estabelecidas no Código Civil ao caso concreto. Agora, a a adaptação das normas estabelecidas no Código Civil ao caso concreto. Agora, a
herança ou o legado passa ao fiduciário, o primeiro sucessor designado no testa- herança ou o legado passa ao fiduciário, o primeiro sucessor designado no testa-
mento, que será, então, titular de uma propriedade de natureza restrita e resolúvel, mento, que será, então, titular de uma propriedade de natureza restrita e resolúvel,
nos moldes explicitados anteriormente, aplicando-se à hipótese, e somente nela, nos moldes explicitados anteriormente, aplicando-se à hipótese, e somente nela,
os preceitos contidos nos arts. 1.953/1.957 do Código Civil. os preceitos contidos nos arts. 1.953/1.957 do Código Civil.
Entre esses dispositivos existem três que, em nossa compreensão, merecem Entre esses dispositivos existem três que, em nossa compreensão, merecem
um exame detalhado. São os arts. 1.955, 1.957 e 1.958, cujos termos seguem um exame detalhado. São os arts. 1.955, 1.957 e 1.958, cujos termos seguem
transcritos: transcritos:
“Art. 1.955. O fideicomissário pode renunciar a herança ou o legado, e, neste caso, “Art. 1.955. O fideicomissário pode renunciar a herança ou o legado, e, neste caso,
o fideicomisso caduca, deixando de ser resolúvel a propriedade do fiduciário, se o fideicomisso caduca, deixando de ser resolúvel a propriedade do fiduciário, se
não houver disposição contrária do testador.” não houver disposição contrária do testador.”

“Art. 1.957. Ao sobrevir a sucessão, o fideicomissário responde pelos encargos da “Art. 1.957. Ao sobrevir a sucessão, o fideicomissário responde pelos encargos da
herança que ainda restarem”. herança que ainda restarem”.

“Art. 1.958. Caduca o fideicomisso se o fideicomissário morrer antes do fiduciário, “Art. 1.958. Caduca o fideicomisso se o fideicomissário morrer antes do fiduciário,
ou antes de realizar-se a condição resolutiva do direito deste último; nesse caso, a ou antes de realizar-se a condição resolutiva do direito deste último; nesse caso, a
propriedade consolida-se no fiduciário, nos termos do art. 1.955.” propriedade consolida-se no fiduciário, nos termos do art. 1.955.”

Quanto ao primeiro, entendemos ser importante observar que a exceção contida Quanto ao primeiro, entendemos ser importante observar que a exceção contida
no final do preceito – se não houver disposição contrária do testador – pode ser no final do preceito – se não houver disposição contrária do testador – pode ser
absorvida na hipótese em que existem vários fideicomissários nomeados conjun- absorvida na hipótese em que existem vários fideicomissários nomeados conjun-
tamente, mas apenas um ou alguns renunciam, jamais como a possibilidade de tamente, mas apenas um ou alguns renunciam, jamais como a possibilidade de
transmissão da herança ou do legado a um terceiro, uma vez que esta interpretação transmissão da herança ou do legado a um terceiro, uma vez que esta interpretação
esbarra na proibição contida no art.1.959, do mesmo diploma legal, que veda a esbarra na proibição contida no art.1.959, do mesmo diploma legal, que veda a
instituição de fideicomisso além do segundo grau. instituição de fideicomisso além do segundo grau.
Orientação similar deve ser adotada quando o testador designar um ou vários Orientação similar deve ser adotada quando o testador designar um ou vários
substitutos para o fideicomissário e este renunciar, caso em que o efeito retroativo substitutos para o fideicomissário e este renunciar, caso em que o efeito retroativo
da sua manifestação de vontade abdicativa colocará o primeiro substituto no seu da sua manifestação de vontade abdicativa colocará o primeiro substituto no seu
lugar, e, assim, sucessivamente, mantendo a restrição legal estabelecida pelo art. lugar, e, assim, sucessivamente, mantendo a restrição legal estabelecida pelo art.
1,959, do Código Civil, “uma vez que o fideicomissário, que estava no segundo 1,959, do Código Civil, “uma vez que o fideicomissário, que estava no segundo
grau, desaparece, e seu substituto ocupará a mesma posição; logo, não há um grau, desaparece, e seu substituto ocupará a mesma posição; logo, não há um
As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 97 As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 97

terceiro grau de substituição”15,desde que, sendo vários os substitutos, ao final, terceiro grau de substituição”15,desde que, sendo vários os substitutos, ao final,
logicamente, apenas um deles aceita a herança ou o legado. logicamente, apenas um deles aceita a herança ou o legado.
No que se refere ao segundo dispositivo – art. 1.957 –, cremos que a expres- No que se refere ao segundo dispositivo – art. 1.957 –, cremos que a expres-
são “ao sobrevir a sucessão” refere-se, naturalmente, àquela que foi deferida pelo são “ao sobrevir a sucessão” refere-se, naturalmente, àquela que foi deferida pelo
testador ao segundo herdeiro ou legatário, vale dizer, a sucessão fideicomissária, testador ao segundo herdeiro ou legatário, vale dizer, a sucessão fideicomissária,
que somente ocorrerá com a morte do primeiro – fiduciário – ou com o advento que somente ocorrerá com a morte do primeiro – fiduciário – ou com o advento
do termo ou o implemento da condição indicada pelo instituidor, que opera como do termo ou o implemento da condição indicada pelo instituidor, que opera como
fato gerador da aquisição do seu direito subjetivo. Sendo assim, o direito do fato gerador da aquisição do seu direito subjetivo. Sendo assim, o direito do
último beneficiado surge, inicialmente, apenas em caráter eventual, como antes último beneficiado surge, inicialmente, apenas em caráter eventual, como antes
mencionado, pois ainda depende da configuração do evento referido pelo testador. mencionado, pois ainda depende da configuração do evento referido pelo testador.
No momento em que este se verifica, portanto, buscará a adoção das providências No momento em que este se verifica, portanto, buscará a adoção das providências
legais necessárias à regularização da sua qualidade de proprietário definitivo da legais necessárias à regularização da sua qualidade de proprietário definitivo da
herança ou do legado que recebeu, em decorrência da morte do instituidor, entre as herança ou do legado que recebeu, em decorrência da morte do instituidor, entre as
quais está o pagamento do imposto de transmissão e das despesas imprescindíveis quais está o pagamento do imposto de transmissão e das despesas imprescindíveis
à concretização jurídica da sua nova qualidade, das quais poderá ter sido eximido, à concretização jurídica da sua nova qualidade, das quais poderá ter sido eximido,
se assim foi ordenado pelo testador. se assim foi ordenado pelo testador.
Certo, porém, é que, se não foi beneficiado com a dispensa do pagamento Certo, porém, é que, se não foi beneficiado com a dispensa do pagamento
dessas verbas, não poderá ser compelido ao adimplemento de remanescente devido dessas verbas, não poderá ser compelido ao adimplemento de remanescente devido
por outrem, salvo se a exigência aparece no testamento como um encargo, embora por outrem, salvo se a exigência aparece no testamento como um encargo, embora
haja quem pense de modo contrário, admitindo, inclusive, que o segundo herdeiro haja quem pense de modo contrário, admitindo, inclusive, que o segundo herdeiro
ou legatário responda pelas despesas que o fiduciário não pôde satisfazer16. ou legatário responda pelas despesas que o fiduciário não pôde satisfazer16.
Pensamos, todavia, que, salvo disposição testamentária em sentido contrário, Pensamos, todavia, que, salvo disposição testamentária em sentido contrário,
o fideicomissário só deve responder pelas despesas remanescentes da herança ou o fideicomissário só deve responder pelas despesas remanescentes da herança ou
do legado quando guardam vinculação e compatibilidade com a sua qualidade de do legado quando guardam vinculação e compatibilidade com a sua qualidade de
proprietário dos bens fideicomitidos. proprietário dos bens fideicomitidos.
Finalmente, quanto ao art. 1.958, vê-se que o legislador fez uma opção que, Finalmente, quanto ao art. 1.958, vê-se que o legislador fez uma opção que,
além da hipótese prevista no art. 1.955, também provoca a caducidade do fideico- além da hipótese prevista no art. 1.955, também provoca a caducidade do fideico-
misso quando o segundo sucessor morre antes do fiduciário ou do implemento da misso quando o segundo sucessor morre antes do fiduciário ou do implemento da
condição resolutória imposta ao seu direito, eliminando, assim, as controvérsias condição resolutória imposta ao seu direito, eliminando, assim, as controvérsias
existentes acerca da possibilidade ou não de transmissão dos bens fideicomitidos existentes acerca da possibilidade ou não de transmissão dos bens fideicomitidos
aos sucessores do primeiro herdeiro ou legatário (fiduciário), quando este falece aos sucessores do primeiro herdeiro ou legatário (fiduciário), quando este falece
antes do fideicomissário. antes do fideicomissário.

5. CONCLUSÕES NECESSÁRIAS 5. CONCLUSÕES NECESSÁRIAS


Nessa breve análise do fideicomisso, pode-se verificar a possibilidade do seu Nessa breve análise do fideicomisso, pode-se verificar a possibilidade do seu
surgimento de acordo com os antigos contornos que sinalizam a sua existência, o surgimento de acordo com os antigos contornos que sinalizam a sua existência, o

15. Diniz, Maria Helena. ob.cit., p. 348. 15. Diniz, Maria Helena. ob.cit., p. 348.
16. Maria Helena Diniz, referindo Itabaiana de Oliveira, ob, cit, p. 348. 16. Maria Helena Diniz, referindo Itabaiana de Oliveira, ob, cit, p. 348.
98 Nilza Reis 98 Nilza Reis

que somente ocorrerá quando aquele que o instituiu desejou e, ao final, conseguiu que somente ocorrerá quando aquele que o instituiu desejou e, ao final, conseguiu
beneficiar prole eventual de pessoa viva no momento da abertura da sua sucessão. beneficiar prole eventual de pessoa viva no momento da abertura da sua sucessão.
Do contrário, ou seja, quando o herdeiro ou legatário indicado como segundo Do contrário, ou seja, quando o herdeiro ou legatário indicado como segundo
sucessor já houver nascido no tempo decorrido entre a feitura do testamento, no sucessor já houver nascido no tempo decorrido entre a feitura do testamento, no
qual foi designado, e a sua morte, não há que se falar no fideicomisso, uma vez qual foi designado, e a sua morte, não há que se falar no fideicomisso, uma vez
que, nesta hipótese, confirmando a determinação no sentido de que o instituto só que, nesta hipótese, confirmando a determinação no sentido de que o instituto só
pode ser utilizado para beneficiar prole eventual, o sistema jurídico pátrio faz surgir pode ser utilizado para beneficiar prole eventual, o sistema jurídico pátrio faz surgir
em seu lugar dois direitos totalmente distintos: um direito real na coisa alheia para em seu lugar dois direitos totalmente distintos: um direito real na coisa alheia para
o primeiro sucessor (usufruto), e um direito real na coisa própria para o segundo o primeiro sucessor (usufruto), e um direito real na coisa própria para o segundo
(propriedade). Nesta situação, que é nova, o fideicomisso desaparece, surgindo (propriedade). Nesta situação, que é nova, o fideicomisso desaparece, surgindo
em seu lugar, por força de lei, esses dois diferentes direitos, que são adquiridos e em seu lugar, por força de lei, esses dois diferentes direitos, que são adquiridos e
exercitados de forma simultânea. exercitados de forma simultânea.

Finalmente, peço permissão aos leitores para dedicar este artigo aos meus Finalmente, peço permissão aos leitores para dedicar este artigo aos meus
queridos alunos da Faculdade de Direito da UFBa., Direito das Sucessões, Turma queridos alunos da Faculdade de Direito da UFBa., Direito das Sucessões, Turma
01, dos semestres 2007.1 e 2007.2, com os quais aprendi e venho compreendendo, 01, dos semestres 2007.1 e 2007.2, com os quais aprendi e venho compreendendo,
a cada dia, a grandeza do horizonte ao qual as suas indagações e reflexões nos a cada dia, a grandeza do horizonte ao qual as suas indagações e reflexões nos
podem conduzir. podem conduzir.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AZEVEDO, Armando Dias de, O fideicomisso no direito pátrio:doutrina, legislação, AZEVEDO, Armando Dias de, O fideicomisso no direito pátrio:doutrina, legislação,
jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1973. jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1973.

DINIZ, maria helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 6. Direito das Sucessões. 21ª DINIZ, maria helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 6. Direito das Sucessões. 21ª
edição, revista e atualizada de acordo com a Reforma do CPC. Editora Saraiva.São edição, revista e atualizada de acordo com a Reforma do CPC. Editora Saraiva.São
Paulo: 2007. Paulo: 2007.

GOMES, Orlando. Direitos Reais, 7ª edição, São Paulo: Saraiva,1980. GOMES, Orlando. Direitos Reais, 7ª edição, São Paulo: Saraiva,1980.

FERREIRA, Pinto. Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 37, pp.169/183, Editora Saraiva, FERREIRA, Pinto. Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 37, pp.169/183, Editora Saraiva,
São Paulo: São Paulo:

LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil, Vol.XXI, Direito das LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil, Vol.XXI, Direito das
Sucessões, Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Editora Forense, Rio de Janeiro: Sucessões, Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Editora Forense, Rio de Janeiro:
2003. 2003.

MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões, vol II, 3ª edição, Rio de Janeiro Edit. MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões, vol II, 3ª edição, Rio de Janeiro Edit.
Freitas Bastos, 1952, Freitas Bastos, 1952,

RAO, Vicente. O Direito e a vida dos Direitos, vol. 2, Editora Revista dos Tribunais, 3ª RAO, Vicente. O Direito e a vida dos Direitos, vol. 2, Editora Revista dos Tribunais, 3ª
edição, anotada e atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, p. 574, São Paulo: edição, anotada e atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, p. 574, São Paulo:
1991. 1991.

RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil, Atualizado por Paulo Roberto RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil, Atualizado por Paulo Roberto
Benasse, vol 3, Bookseller Editora e Distribuidora.Campinas, SP: 1999. Benasse, vol 3, Bookseller Editora e Distribuidora.Campinas, SP: 1999.
As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 99 As antigas e novas facetas do fideicomisso e o atual Código Civil 99

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, Vol. III, São Paulo: Forense, 1979 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, Vol. III, São Paulo: Forense, 1979

VELOSO, Zeno. Comentários ao Código Civil, Parte Especial. Direito das Sucessões. Da VELOSO, Zeno. Comentários ao Código Civil, Parte Especial. Direito das Sucessões. Da
sucessão Testamentária; do inventário e da partilha (arts. 1.857 a 2.027), vol. 21, sucessão Testamentária; do inventário e da partilha (arts. 1.857 a 2.027), vol. 21,
Coord. Antônio Junqueira de Azevedo, Editora Saraiva, São Paulo: 2003. Coord. Antônio Junqueira de Azevedo, Editora Saraiva, São Paulo: 2003.

VENOSA, Silvo de Salvo. Direito Civil. Vol 7, Direito das Sucessões. 7ª edição, Editora VENOSA, Silvo de Salvo. Direito Civil. Vol 7, Direito das Sucessões. 7ª edição, Editora
Atlas, São Paulo: 2007. Atlas, São Paulo: 2007.
Capítulo VII Capítulo VII
A súmula com efeito vinculante A súmula com efeito vinculante
na Lei nº 11.417/2006 na Lei nº 11.417/2006

Paulo Roberto Lyrio Pimenta* Paulo Roberto Lyrio Pimenta*

Sumário • 1. Introdução – 2. Eficácia da norma veiculada pelo art.103-A da CF – 3. Modalidades de Sumário • 1. Introdução – 2. Eficácia da norma veiculada pelo art.103-A da CF – 3. Modalidades de
procedimento – 4. Aspectos subjetivos – 5. Eficácia da súmula com efeito vinculante – 6. Meios de procedimento – 4. Aspectos subjetivos – 5. Eficácia da súmula com efeito vinculante – 6. Meios de
impugnação da decisão contrária à súmula – 7. Alterações no processo administrativo – 8. Aplicação impugnação da decisão contrária à súmula – 7. Alterações no processo administrativo – 8. Aplicação
subsidiária do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal – 9. Conclusões. subsidiária do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal – 9. Conclusões.

1. Introdução 1. Introdução

A súmula com efeito vinculante foi inserida em nosso ordenamento com a A súmula com efeito vinculante foi inserida em nosso ordenamento com a
promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que incluiu o art. 103-A no promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que incluiu o art. 103-A no
Texto Magno. Texto Magno.

Visando dar aplicabilidade a esse novo dispositivo constitucional, que previu Visando dar aplicabilidade a esse novo dispositivo constitucional, que previu
a necessidade de regulamentação por meio de lei do procedimento destinado à a necessidade de regulamentação por meio de lei do procedimento destinado à
elaboração, cancelamento ou revisão da Súmula, editou-se em 19 de dezembro elaboração, cancelamento ou revisão da Súmula, editou-se em 19 de dezembro
de 2006 a Lei nº 11.417, dispondo sobre esta matéria. de 2006 a Lei nº 11.417, dispondo sobre esta matéria.

O presente estudo destina-se a examinar as inovações veiculadas nesse diploma O presente estudo destina-se a examinar as inovações veiculadas nesse diploma
normativo, confrontando-as com o perfil constitucional do instituto, numa tentativa normativo, confrontando-as com o perfil constitucional do instituto, numa tentativa
de discussão de um tema de grande repercussão na vida dos administrados. de discussão de um tema de grande repercussão na vida dos administrados.

2. Eficácia da norma veiculada pelo art.103-A da CF 2. Eficácia da norma veiculada pelo art.103-A da CF

A súmula com efeito vinculante foi inserida no ordenamento brasileiro pela A súmula com efeito vinculante foi inserida no ordenamento brasileiro pela
Emenda Constitucional nº 45/2004, a qual introduziu o art.103-A na Constituição Emenda Constitucional nº 45/2004, a qual introduziu o art.103-A na Constituição
Federal, prescrevendo o seguinte: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofí- Federal, prescrevendo o seguinte: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofí-
cio ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após cio ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após
reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de
sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais
órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esfera órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esfera

* Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e Mestre em Direito pela Universidade Federal da * Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e Mestre em Direito pela Universidade Federal da
Bahia, onde leciona como Professor Adjunto II nos cursos de Doutorado, Mestrado e de Graduação. Bahia, onde leciona como Professor Adjunto II nos cursos de Doutorado, Mestrado e de Graduação.
Juiz Federal na Bahia. Juiz Federal na Bahia.
102 Paulo Roberto Lyrio Pimenta 102 Paulo Roberto Lyrio Pimenta

federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento,
na forma estabelecida em lei”. na forma estabelecida em lei”.

A exegese desse dispositivo demonstra tratar-se de enunciado que veicula A exegese desse dispositivo demonstra tratar-se de enunciado que veicula
norma constitucional de eficácia contível,1 posto que, ao regular a matéria, o norma constitucional de eficácia contível,1 posto que, ao regular a matéria, o
órgão com competência reformadora (Congresso Nacional) deixou margem de órgão com competência reformadora (Congresso Nacional) deixou margem de
atuação restritiva ao legislador ordinário.A previsão da regulamentação por lei atuação restritiva ao legislador ordinário.A previsão da regulamentação por lei
ordinária do procedimento de elaboração, revisão e cancelamento da súmula em ordinária do procedimento de elaboração, revisão e cancelamento da súmula em
tela, conferiu ao legislador a possibilidade de restringir a eficácia da norma de tela, conferiu ao legislador a possibilidade de restringir a eficácia da norma de
outorga de competência inserida no sistema por meio da emenda constitucional outorga de competência inserida no sistema por meio da emenda constitucional
referenciada. referenciada.

É imprescindível fixar essa premissa para interpretar o texto normativo em É imprescindível fixar essa premissa para interpretar o texto normativo em
pauta, a fim de compreender as limitações por este veiculadas ao exercício de tal pauta, a fim de compreender as limitações por este veiculadas ao exercício de tal
competência pelo Supremo Tribunal Federal. competência pelo Supremo Tribunal Federal.

3. Modalidades de procedimento 3. Modalidades de procedimento

A Lei nº11.417/06 prescreveu duas modalidades de procedimento destinados A Lei nº11.417/06 prescreveu duas modalidades de procedimento destinados
à elaboração da súmula com efeito vinculante, sendo irrelevante o escopo visado, à elaboração da súmula com efeito vinculante, sendo irrelevante o escopo visado,
ou seja, elaboração, revisão ou cancelamento deste ato normativo. ou seja, elaboração, revisão ou cancelamento deste ato normativo.

O primeiro consiste em procedimento autônomo, desvinculado, portanto, de O primeiro consiste em procedimento autônomo, desvinculado, portanto, de
qualquer processo jurisdicional. Tal procedimento de edição, cancelamento ou qualquer processo jurisdicional. Tal procedimento de edição, cancelamento ou
revisão é deflagrado de ofício ou por provocação dos sujeitos legitimados. Distri- revisão é deflagrado de ofício ou por provocação dos sujeitos legitimados. Distri-
buído o feito para um Ministro Relator, este abrirá vista dos autos ao Procurador buído o feito para um Ministro Relator, este abrirá vista dos autos ao Procurador
Geral da República, que atuará como custos legis,após o que o processo poderá Geral da República, que atuará como custos legis,após o que o processo poderá
ser incluído na pauta de julgamento do Tribunal Pleno. ser incluído na pauta de julgamento do Tribunal Pleno.

Já o segundo trata-se de um incidente, suscitado pelo ente municipal, no curso Já o segundo trata-se de um incidente, suscitado pelo ente municipal, no curso
de processo, como lhe faculta o art.3º, § 1º da Lei nº 11.417/2006: “o Município de processo, como lhe faculta o art.3º, § 1º da Lei nº 11.417/2006: “o Município
poderá propor, incidentalmente ao curso de processo em que seja parte, a edição, a poderá propor, incidentalmente ao curso de processo em que seja parte, a edição, a
revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante, o que não autoriza revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante, o que não autoriza
a suspensão do processo”. a suspensão do processo”.

1. Na abalizada doutrina de José Afonso da Silva, as normas de eficácia contida são “aquelas em que 1. Na abalizada doutrina de José Afonso da Silva, as normas de eficácia contida são “aquelas em que
o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria,
mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público,
nos termos em que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados” (Aplica- nos termos em que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados” (Aplica-
bilidade das Normas Constitucionais, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1998, p.116). Ao nosso ver, bilidade das Normas Constitucionais, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1998, p.116). Ao nosso ver,
como se trata de mera possibilidade de restrição de efeitos, é melhor falar em normas de eficácia como se trata de mera possibilidade de restrição de efeitos, é melhor falar em normas de eficácia
“contível”, ou restringível, como sugere Michel Temer (Elementos de Direito Constitucional, 7ª “contível”, ou restringível, como sugere Michel Temer (Elementos de Direito Constitucional, 7ª
ed., São Paulo, RT, 1990, p.27). ed., São Paulo, RT, 1990, p.27).
A súmula com efeito vinculante na Lei nº 11.417/2006 103 A súmula com efeito vinculante na Lei nº 11.417/2006 103

Por força desse dispositivo legal, em qualquer tipo de processo jurisdicional, Por força desse dispositivo legal, em qualquer tipo de processo jurisdicional,
inclusive nos procedimentos que se destinam à tutela de direito subjetivo, poderá inclusive nos procedimentos que se destinam à tutela de direito subjetivo, poderá
o Município, uma vez presentes os pressupostos constitucionais, postular a ela- o Município, uma vez presentes os pressupostos constitucionais, postular a ela-
boração de uma súmula vinculante perante o STF, como um incidente. O interes- boração de uma súmula vinculante perante o STF, como um incidente. O interes-
sado, em tal situação, deverá suscita-lo diretamente perante o Pretório Excelso, sado, em tal situação, deverá suscita-lo diretamente perante o Pretório Excelso,
informando, porém, esse fato ao juízo do feito com o qual se relaciona. informando, porém, esse fato ao juízo do feito com o qual se relaciona.
A lei estabelece que o simples ajuizamento do incidente “não autoriza a suspensão A lei estabelece que o simples ajuizamento do incidente “não autoriza a suspensão
do processo”. Ao nosso ver, essa determinação tem que ser interpretada com as do processo”. Ao nosso ver, essa determinação tem que ser interpretada com as
devidas caute­las. O que o legislador vedou foi a suspensão imediata e automática devidas caute­las. O que o legislador vedou foi a suspensão imediata e automática
do processo por força do ajuizamento do incidente, porém, nada impede que, em do processo por força do ajuizamento do incidente, porém, nada impede que, em
vista das circunstâncias do caso, possa o juiz do feito principal suspender o seu vista das circunstâncias do caso, possa o juiz do feito principal suspender o seu
andamento até que o STF elabore a súmula com efeito vinculante. Isto porque, em andamento até que o STF elabore a súmula com efeito vinculante. Isto porque, em
algumas situações, o processamento simul­tâ­­neo do feito principal com o incidente algumas situações, o processamento simul­tâ­­neo do feito principal com o incidente
processual poderá gerar situações fáticas extrema­mente complexas, as quais po- processual poderá gerar situações fáticas extrema­mente complexas, as quais po-
dem, inclusive, comprometer a segurança jurídica e até mesmo outros princípios dem, inclusive, comprometer a segurança jurídica e até mesmo outros princípios
ou valores do ordenamento jurídico (ex: unidade, coerência, etc). ou valores do ordenamento jurídico (ex: unidade, coerência, etc).
Exemplifiquemos: determinado contribuinte impetra Mandado de Segurança Exemplifiquemos: determinado contribuinte impetra Mandado de Segurança
alegando a inconstitucionalidade da lei que institui o IPTU. Caso o Município alegando a inconstitucionalidade da lei que institui o IPTU. Caso o Município
suscite o incidente de súmula vinculante nos autos desse processo, convém que suscite o incidente de súmula vinculante nos autos desse processo, convém que
o juiz de primeiro grau suspenda o andamento do procedimento mandamental. o juiz de primeiro grau suspenda o andamento do procedimento mandamental.
Com efeito, considerando que tal súmula tem eficácia erga omnes,o seu conteúdo Com efeito, considerando que tal súmula tem eficácia erga omnes,o seu conteúdo
poderá repercutir na decisão de primeiro grau que vier a ser proferida, razão pela poderá repercutir na decisão de primeiro grau que vier a ser proferida, razão pela
qual deve o juiz atuar cautelosamente, aguardando o desfecho do incidente para qual deve o juiz atuar cautelosamente, aguardando o desfecho do incidente para
dar continuidade ao processo principal. Por tal motivo, é de todo conveniente que dar continuidade ao processo principal. Por tal motivo, é de todo conveniente que
o Município dirija petição ao juiz informando e comprovando a deflagração desse o Município dirija petição ao juiz informando e comprovando a deflagração desse
incidente. Destarte, parece-nos que, em face das circunstâncias do caso concreto, incidente. Destarte, parece-nos que, em face das circunstâncias do caso concreto,
esse procedimento incidental de súmula vinculante poderá importar na suspensão esse procedimento incidental de súmula vinculante poderá importar na suspensão
do processo principal. do processo principal.
Ressalte-se, por oportuno, que ambas as modalidades de procedimento de Ressalte-se, por oportuno, que ambas as modalidades de procedimento de
súmula têm natureza de processo objetivo, pois não se destinam à satisfação de súmula têm natureza de processo objetivo, pois não se destinam à satisfação de
interesse subjetivo, e sim à elaboração de ato normativo. O que se busca com a sua interesse subjetivo, e sim à elaboração de ato normativo. O que se busca com a sua
elaboração é a uniformização da interpretação de texto normativo, sobre matéria elaboração é a uniformização da interpretação de texto normativo, sobre matéria
constitucional, que acarrete grave insegurança jurídica ou relevante multiplicação constitucional, que acarrete grave insegurança jurídica ou relevante multiplicação
de processos sobre questão idêntica (CF, art. 103-A) Isso nada tem a ver com de processos sobre questão idêntica (CF, art. 103-A) Isso nada tem a ver com
interesse subjetivo. interesse subjetivo.
Todavia, tais procedimentos objetivos não se inserem no bojo do controle Todavia, tais procedimentos objetivos não se inserem no bojo do controle
abstrato de constitucionalidade das leis, uma vez que não objetivam certificar abstrato de constitucionalidade das leis, uma vez que não objetivam certificar
validade de ato normativo, muito menos expurgá-lo do ordenamento jurídico. O validade de ato normativo, muito menos expurgá-lo do ordenamento jurídico. O
escopo visado, conforme acima exposto, é o de uniformização de interpretação, escopo visado, conforme acima exposto, é o de uniformização de interpretação,
104 Paulo Roberto Lyrio Pimenta 104 Paulo Roberto Lyrio Pimenta

assemelhando-se à representação interpretativa outrora existente na Carta de assemelhando-se à representação interpretativa outrora existente na Carta de
1969.2 1969.2
Disso se infere que os procedimentos de súmula vinculante são de caráter Disso se infere que os procedimentos de súmula vinculante são de caráter
objetivo. objetivo.

4. Aspectos subjetivos 4. Aspectos subjetivos


A legitimidade ativa para os procedimentos de súmula vinculante é regulada A legitimidade ativa para os procedimentos de súmula vinculante é regulada
pelo art. 3º da Lei nº 11.417/2006, que repete a enumeração prevista pelo art.103 pelo art. 3º da Lei nº 11.417/2006, que repete a enumeração prevista pelo art.103
da Carta Magna, acrescendo, todavia, o “Defensor Público-Geral da União”, os da Carta Magna, acrescendo, todavia, o “Defensor Público-Geral da União”, os
“Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e “Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e
Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho,
os Tribunais Regionais Eleitorais, os Tribunais Militares” e o Município, este os Tribunais Regionais Eleitorais, os Tribunais Militares” e o Município, este
apenas incidentalmente, como salientado anteriormente. apenas incidentalmente, como salientado anteriormente.
Tais inovações são compatíveis com a regra do art. 103-A, § 2º da CF, que Tais inovações são compatíveis com a regra do art. 103-A, § 2º da CF, que
previu a possibilidade de ampliação da legitimidade por meio de lei ordinária. previu a possibilidade de ampliação da legitimidade por meio de lei ordinária.
Ademais, há evidente compatibilidade entre as funções exercidas por tais entidades Ademais, há evidente compatibilidade entre as funções exercidas por tais entidades
e os objetivos visados com a elaboração da súmula. e os objetivos visados com a elaboração da súmula.
Neste particular, convém pontuar que a lei não previu um procedimen- Neste particular, convém pontuar que a lei não previu um procedimen-
to a ser observado pelos Tribunais para a deflagração do procedimento de to a ser observado pelos Tribunais para a deflagração do procedimento de
súmula vinculante, o que deverá ser objeto de regulação pelos respectivos súmula vinculante, o que deverá ser objeto de regulação pelos respectivos
regimentos internos.Convém observar que assim como órgão isolado (Câ- regimentos internos.Convém observar que assim como órgão isolado (Câ-
mara ou Turma) não pode declarar a inconstitucionalidade de lei, por força mara ou Turma) não pode declarar a inconstitucionalidade de lei, por força
da cláusula de reserva (CF, art. 97), também não poderá deflagrar o proce- da cláusula de reserva (CF, art. 97), também não poderá deflagrar o proce-
dimento de súmula, tendo em vista as conseqüências dele resultantes. Logo, dimento de súmula, tendo em vista as conseqüências dele resultantes. Logo,
a decisão deverá caber ao Pleno, ou ao órgão especial. Assim, caberá ao Regi- a decisão deverá caber ao Pleno, ou ao órgão especial. Assim, caberá ao Regi-
mento Interno regular os demais aspectos procedimentais, como, por exemplo, a mento Interno regular os demais aspectos procedimentais, como, por exemplo, a
necessidade de oitiva do órgão do Ministério Público, suspensão do processo que necessidade de oitiva do órgão do Ministério Público, suspensão do processo que
gerou o procedimento, etc. gerou o procedimento, etc.
A lei previu, também, em seu art. 2º, § 2º, a necessidade de prévia oitiva do A lei previu, também, em seu art. 2º, § 2º, a necessidade de prévia oitiva do
Procurador-Geral da República nos procedimentos de edição, revisão ou cance- Procurador-Geral da República nos procedimentos de edição, revisão ou cance-
lamento de enunciado de súmula vinculante, como mencionado anteriormente, lamento de enunciado de súmula vinculante, como mencionado anteriormente,
salvo na hipótese desse órgão ter formulado a proposta. salvo na hipótese desse órgão ter formulado a proposta.
Seguindo o exemplo do disposto no art.7º, § 2º da Lei nº 9.868/99, que regula Seguindo o exemplo do disposto no art.7º, § 2º da Lei nº 9.868/99, que regula
o procedimento da ADIN e da ADPF, admitiu-se, também, o art. 3º, §2º da Lei o procedimento da ADIN e da ADPF, admitiu-se, também, o art. 3º, §2º da Lei

2. A representação interpretativa foi inserida no ordenamento pátrio pela Emenda Constitucional nº 2. A representação interpretativa foi inserida no ordenamento pátrio pela Emenda Constitucional nº
07/77, a qual previu no art. 119, I, “l” a competência do STF para processar e julgar “a represen- 07/77, a qual previu no art. 119, I, “l” a competência do STF para processar e julgar “a represen-
tação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade ou para interpretação de lei tação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade ou para interpretação de lei
ou do ato normativo federal ou estadual”. ou do ato normativo federal ou estadual”.
A súmula com efeito vinculante na Lei nº 11.417/2006 105 A súmula com efeito vinculante na Lei nº 11.417/2006 105

nº11.417/2006 admitiu também, na elaboração do ato normativo em epígrafe, a nº11.417/2006 admitiu também, na elaboração do ato normativo em epígrafe, a
manifestação de terceiros, hipótese conhecida como animus curiae,3 numa tentativa manifestação de terceiros, hipótese conhecida como animus curiae,3 numa tentativa
de ampliação do debate do tema relacionado com a edição da súmula. de ampliação do debate do tema relacionado com a edição da súmula.

5. Eficácia da súmula com efeito vinculante 5. Eficácia da súmula com efeito vinculante
O legislador preocupou-se, acertadamente, com a eficácia da súmula com O legislador preocupou-se, acertadamente, com a eficácia da súmula com
efeito vinculante. Como se trata de verdadeiro ato normativo, previu-se (art. 2º, § efeito vinculante. Como se trata de verdadeiro ato normativo, previu-se (art. 2º, §
4º) a necessidade de dupla publicação, no órgão que veicula as decisões do STF 4º) a necessidade de dupla publicação, no órgão que veicula as decisões do STF
e no Diário Oficial da União, que veicula os demais atos normativos expedidos e no Diário Oficial da União, que veicula os demais atos normativos expedidos
pelo Poder Legislativo e pelo Executivo, ambas no prazo de dez dias após a re- pelo Poder Legislativo e pelo Executivo, ambas no prazo de dez dias após a re-
alização da seção, e não da lavratura do acórdão que deliberar pela elaboração, alização da seção, e não da lavratura do acórdão que deliberar pela elaboração,
cancelamento ou revisão da súmula.Repete-se, neste particular, a regra do art.28 cancelamento ou revisão da súmula.Repete-se, neste particular, a regra do art.28
da Lei 9.868/99, que obriga idêntica publicação, em igual prazo, após o trânsito da Lei 9.868/99, que obriga idêntica publicação, em igual prazo, após o trânsito
em julgado da decisão final da ADIN ou da ADC. Busca-se, com isso, dar ampla em julgado da decisão final da ADIN ou da ADC. Busca-se, com isso, dar ampla
publicidade ao ato normativo, tendo em vista a sua eficácia subjetiva. publicidade ao ato normativo, tendo em vista a sua eficácia subjetiva.
A eficácia no tempo da súmula vinculante também foi objeto de preocupação A eficácia no tempo da súmula vinculante também foi objeto de preocupação
do legislador, que regulou o tema no art. 4º da lei em exame: “Art. 4º. A súmula do legislador, que regulou o tema no art. 4º da lei em exame: “Art. 4º. A súmula
com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas o Supremo Tribunal Federal, com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas o Supremo Tribunal Federal,
por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus membros, poderá restringir os efeitos por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus membros, poderá restringir os efeitos
vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em
vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público”. vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público”.
A exegese desse dispositivo deve ser realizada com bastante cuidado, tendo A exegese desse dispositivo deve ser realizada com bastante cuidado, tendo
em vista que este dispõe sobre vários aspectos da eficácia da decisão relativa aos em vista que este dispõe sobre vários aspectos da eficácia da decisão relativa aos
procedimentos em estudo. procedimentos em estudo.
Em primeiro lugar, é importante observar que a “eficácia imediata” a que se Em primeiro lugar, é importante observar que a “eficácia imediata” a que se
refere o enunciado só poderá ocorrer após a dupla publicação do enunciado da refere o enunciado só poderá ocorrer após a dupla publicação do enunciado da
Súmula no Diário de Justiça e no Diário Oficial da União, como exigido pelo art. Súmula no Diário de Justiça e no Diário Oficial da União, como exigido pelo art.
2º, § 4º, supra-analisado. Sendo assim, antes de decorrido o prazo de dez dias da 2º, § 4º, supra-analisado. Sendo assim, antes de decorrido o prazo de dez dias da
sessão do STF, exigido pela lei para que seja dada publicidade à decisão, a Súmula sessão do STF, exigido pela lei para que seja dada publicidade à decisão, a Súmula
não produzirá qualquer efeito. não produzirá qualquer efeito.
O dispositivo permite também que o STF possa “restringir os efeitos vin- O dispositivo permite também que o STF possa “restringir os efeitos vin-
culantes”. Qual o significado dessa restrição? Seria possível determinar que a culantes”. Qual o significado dessa restrição? Seria possível determinar que a
vinculação dos efeitos será parcial, que atingirá apenas determinadas situações vinculação dos efeitos será parcial, que atingirá apenas determinadas situações
subjetivas, por exemplo? subjetivas, por exemplo?

3. O animus curiae é um auxiliar do juízo, que intervém no feito por determinação do Juiz ou a 3. O animus curiae é um auxiliar do juízo, que intervém no feito por determinação do Juiz ou a
requerimento do próprio sujeito auxiliar, visando pluralizar os debates das decisões do Poder requerimento do próprio sujeito auxiliar, visando pluralizar os debates das decisões do Poder
Judiciário, pelo oferecimento de apoio técnico. Judiciário, pelo oferecimento de apoio técnico.
106 Paulo Roberto Lyrio Pimenta 106 Paulo Roberto Lyrio Pimenta

O efeito vinculante da súmula importa na atribuição de natureza normativa ao O efeito vinculante da súmula importa na atribuição de natureza normativa ao
ato do Supermo Tribunal Federal, ao contrário das demais súmulas, desprovidas ato do Supermo Tribunal Federal, ao contrário das demais súmulas, desprovidas
desse efeito, que servem tão somente de critério de interpretação. Logo, não há desse efeito, que servem tão somente de critério de interpretação. Logo, não há
efeito vinculante parcial, pois ao Pretório Excelso não é dado elaborar uma súmula efeito vinculante parcial, pois ao Pretório Excelso não é dado elaborar uma súmula
afirmando que apenas parte do seu conteúdo tem eficácia vinculante.Não há pre- afirmando que apenas parte do seu conteúdo tem eficácia vinculante.Não há pre-
visão constitucional para a prática dessa conduta. Ou a Corte exerce plenamente visão constitucional para a prática dessa conduta. Ou a Corte exerce plenamente
a competência prevista no art. 103-A e edita a súmula com efeito vinculante, ou a competência prevista no art. 103-A e edita a súmula com efeito vinculante, ou
elabora a súmula sem esta eficácia, como é facultado aos demais Tribunais. Ao elabora a súmula sem esta eficácia, como é facultado aos demais Tribunais. Ao
exercer a competência do art. 103-A, conferirá ao ato efeito normativo, ou seja, exercer a competência do art. 103-A, conferirá ao ato efeito normativo, ou seja,
natureza de ato geral e abstrato. natureza de ato geral e abstrato.
Como entender, desse modo, a restrição a que se refere a lei? Ao nosso sentir, Como entender, desse modo, a restrição a que se refere a lei? Ao nosso sentir,
tra­ta-se de restrição de um dos âmbitos de eficácia da súmula. Consoante ensi- tra­ta-se de restrição de um dos âmbitos de eficácia da súmula. Consoante ensi-
namento de Hans Kelsen,4 o ato normativo apresenta quatro âmbitos(domínios) namento de Hans Kelsen,4 o ato normativo apresenta quatro âmbitos(domínios)
de eficácia, também chamados de âmbitos de validade ou de vigência: material, de eficácia, também chamados de âmbitos de validade ou de vigência: material,
espacial, temporal e subjetivo. A lei em comento autoriza o STF limitar os âmbitos espacial, temporal e subjetivo. A lei em comento autoriza o STF limitar os âmbitos
de eficácia da súmula, que significa estabelecer que o critério por ela fixado só po- de eficácia da súmula, que significa estabelecer que o critério por ela fixado só po-
derá ser aplicado a determinados sujeitos, determinada conduta ou em determinado derá ser aplicado a determinados sujeitos, determinada conduta ou em determinado
período de tempo ou de lugar. Assim, por exemplo, o Tribunal pode afirmar que o período de tempo ou de lugar. Assim, por exemplo, o Tribunal pode afirmar que o
critério de correção do contrato “x” só poderá ser aplicado a determinada catego- critério de correção do contrato “x” só poderá ser aplicado a determinada catego-
ria de sujeitos, conforme interpretação da CF.Tal limitação deverá ser veiculada ria de sujeitos, conforme interpretação da CF.Tal limitação deverá ser veiculada
expressamente pelo ato normativo. É a essa restrição que a lei se refere. expressamente pelo ato normativo. É a essa restrição que a lei se refere.
A lei, no entanto, foi mais além ao regular tal restrição, estabelecendo que em A lei, no entanto, foi mais além ao regular tal restrição, estabelecendo que em
relação aos efeitos no tempo, estes poderão ser limitados no passado ou apresentar relação aos efeitos no tempo, estes poderão ser limitados no passado ou apresentar
eficácia apenas para o futuro (eficácia prospectiva). Repetindo a norma veicula- eficácia apenas para o futuro (eficácia prospectiva). Repetindo a norma veicula-
da pelo art. 27 da Lei nº 9.868/99 e art.11 da Lei nº 9.882/99, o art. 4º da Lei nº da pelo art. 27 da Lei nº 9.868/99 e art.11 da Lei nº 9.882/99, o art. 4º da Lei nº
11.417 estabelece que “a súmula com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas 11.417 estabelece que “a súmula com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas
o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus membros, o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus membros,
poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir
de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional
interesse público”. interesse público”.
Como se vê, a legislação permite que os efeitos no tempo da súmula com Como se vê, a legislação permite que os efeitos no tempo da súmula com
efeito vinculante sejam fixados em cada caso concreto, com base num processo efeito vinculante sejam fixados em cada caso concreto, com base num processo
de ponderação de bens e interesses envolvidos. Apenas diante da existência dos de ponderação de bens e interesses envolvidos. Apenas diante da existência dos
motivos elencados pela lei (segurança jurídica e excepcional interesse público) é motivos elencados pela lei (segurança jurídica e excepcional interesse público) é
que a Corte Maior poderá limitar no tempo os efeitos da súmula vinculante. Como que a Corte Maior poderá limitar no tempo os efeitos da súmula vinculante. Como
o legislador utilizou conceito jurídico indeterminado para conferir tal competência o legislador utilizou conceito jurídico indeterminado para conferir tal competência
ao Supremo Tribunal Federal, este acaba gozando de ampla discricionariedade no ao Supremo Tribunal Federal, este acaba gozando de ampla discricionariedade no
exercício desta faculdade. exercício desta faculdade.

4. Teoria Pura do Direito, 6ªed., São Paulo, Martins Fontes, p.11-16. 4. Teoria Pura do Direito, 6ªed., São Paulo, Martins Fontes, p.11-16.
A súmula com efeito vinculante na Lei nº 11.417/2006 107 A súmula com efeito vinculante na Lei nº 11.417/2006 107

É importante notar, por fim, que o quorum previsto para a adoção desse É importante notar, por fim, que o quorum previsto para a adoção desse
procedimento é o mesmo estabelecido para a elaboração da súmula sob exame. procedimento é o mesmo estabelecido para a elaboração da súmula sob exame.
E nem poderia ser diferente – como ocorreu, por exemplo, em relação à manipu- E nem poderia ser diferente – como ocorreu, por exemplo, em relação à manipu-
lação dos efeitos no tempo da decisão final da ADIN – pois os efeitos no tempo lação dos efeitos no tempo da decisão final da ADIN – pois os efeitos no tempo
da súmula representam o âmbito de validade temporal deste ato normativo, cuja da súmula representam o âmbito de validade temporal deste ato normativo, cuja
fixação é estabelecida no próprio momento da produção da norma, razão pela fixação é estabelecida no próprio momento da produção da norma, razão pela
qual o quorum necessariamente deve ser o mesmo. Neste particular, incensurável qual o quorum necessariamente deve ser o mesmo. Neste particular, incensurável
a conduta do legislador. a conduta do legislador.

6. Meios de impugnação da decisão contrária à súmula 6. Meios de impugnação da decisão contrária à súmula
O §3º do art.103-A da CF estabeleceu hipótese de cabimento da reclamação O §3º do art.103-A da CF estabeleceu hipótese de cabimento da reclamação
constitucional contra o ato administrativo ou decisão judicial “que contrariar a constitucional contra o ato administrativo ou decisão judicial “que contrariar a
súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar”. súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar”.
A lei em exame ampliou o leque dos remédios jurídicos cabíveis em tal si- A lei em exame ampliou o leque dos remédios jurídicos cabíveis em tal si-
tuação, admitindo em seu art. 7º a hipótese de utilização de recursos “ou outros tuação, admitindo em seu art. 7º a hipótese de utilização de recursos “ou outros
meios admissíveis de impugnação”. Poderia a lei ordinária ampliar a utilização de meios admissíveis de impugnação”. Poderia a lei ordinária ampliar a utilização de
outros remédios jurídicos, em detrimento da previsão constitucional de utilização outros remédios jurídicos, em detrimento da previsão constitucional de utilização
da reclamação constitucional? da reclamação constitucional?
Ao nosso sentir, a resposta é positiva, porque o enunciado constitucional li- Ao nosso sentir, a resposta é positiva, porque o enunciado constitucional li-
mitou-se em admitir o cabimento da reclamação, sem vedar, no entanto, o uso de mitou-se em admitir o cabimento da reclamação, sem vedar, no entanto, o uso de
outros remédios jurídicos. Observe-se que o dispositivo referenciado (art. 103-A, § outros remédios jurídicos. Observe-se que o dispositivo referenciado (art. 103-A, §
3º) não estabeleceu “somente” o cabimento da reclamação, vale dizer, a linguagem 3º) não estabeleceu “somente” o cabimento da reclamação, vale dizer, a linguagem
utilizada pelo ente reformador, ao elaborar a Emenda Constitucional nº 45/2004, utilizada pelo ente reformador, ao elaborar a Emenda Constitucional nº 45/2004,
inclinou-se por uma enumeração exemplificativa, e não taxativa. inclinou-se por uma enumeração exemplificativa, e não taxativa.
Quais os recursos ou outros meios de impugnação que poderão, desse modo, Quais os recursos ou outros meios de impugnação que poderão, desse modo,
ser utilizados? Tudo depende do caso concreto, ou seja, da presença na situação ser utilizados? Tudo depende do caso concreto, ou seja, da presença na situação
fática dos pressupostos de admissibilidade de determinado recurso ou meio de fática dos pressupostos de admissibilidade de determinado recurso ou meio de
impugnação. Nada impede, pois, que em face de sentença que negar a aplicação impugnação. Nada impede, pois, que em face de sentença que negar a aplicação
a súmula vinculante a parte prejudicada utilize o recurso de apelação. Quando a súmula vinculante a parte prejudicada utilize o recurso de apelação. Quando
se tratar de decisão judicial transitada em julgado, a ação rescisória poderá ser se tratar de decisão judicial transitada em julgado, a ação rescisória poderá ser
utilizada, com fundamento, neste caso, no art. 485, V do CPC. De igual modo, o utilizada, com fundamento, neste caso, no art. 485, V do CPC. De igual modo, o
mandado de segurança também poderá ser impetrado contra ato administrativo mandado de segurança também poderá ser impetrado contra ato administrativo
que negar aplicação à súmula em tela. que negar aplicação à súmula em tela.
Com relação ao uso da reclamação constitucional, a lei restringiu esta possibi- Com relação ao uso da reclamação constitucional, a lei restringiu esta possibi-
lidade, estabelecendo no § 1º do art. 7º a seguinte regra: “contra omissão ou ato da lidade, estabelecendo no § 1º do art. 7º a seguinte regra: “contra omissão ou ato da
administração pública, o uso da reclamação só será admitido após o esgotamento administração pública, o uso da reclamação só será admitido após o esgotamento
das vias administrativas”. Poderia o legislador estabelecer tal restrição? das vias administrativas”. Poderia o legislador estabelecer tal restrição?
Parece-nos que nada obsta a adoção de tal conduta, posto que os pressupostos Parece-nos que nada obsta a adoção de tal conduta, posto que os pressupostos
de admissibilidade desse remédio jurídico, na hipótese em comento, não haviam de admissibilidade desse remédio jurídico, na hipótese em comento, não haviam
108 Paulo Roberto Lyrio Pimenta 108 Paulo Roberto Lyrio Pimenta

sido fixados por completo no texto do art. 103-A da CF. Ademais, a norma constitu- sido fixados por completo no texto do art. 103-A da CF. Ademais, a norma constitu-
cional em pauta tem eficácia contível, conforme outrora assinalado, razão pela qual cional em pauta tem eficácia contível, conforme outrora assinalado, razão pela qual
pode ter os seus efeitos restringidos pela atuação do legislador infraconstitucional. pode ter os seus efeitos restringidos pela atuação do legislador infraconstitucional.
Não há, dessa forma, qualquer inconstitucionalidade em tal dispositivo legal. Não há, dessa forma, qualquer inconstitucionalidade em tal dispositivo legal.
É importante frisar, de outro lado, que a restrição atinge apenas a reclamação É importante frisar, de outro lado, que a restrição atinge apenas a reclamação
utilizada contra ato ou omissão administrativa, e não contra decisão judicial. A utilizada contra ato ou omissão administrativa, e não contra decisão judicial. A
necessidade de prévio esgotamento das vias administrativas visa evitar uma enxur- necessidade de prévio esgotamento das vias administrativas visa evitar uma enxur-
rada de reclamações perante o STF, o que certamente inviabilizaria o trabalho da rada de reclamações perante o STF, o que certamente inviabilizaria o trabalho da
Corte, bem como estabelecer um sistema coerente com as modificações efetuadas Corte, bem como estabelecer um sistema coerente com as modificações efetuadas
no processo administrativo, a seguir analisadas, as quais obrigam a Administração no processo administrativo, a seguir analisadas, as quais obrigam a Administração
Pública, dentre outras inovações, a motivar o ato que negou aplicação à súmula Pública, dentre outras inovações, a motivar o ato que negou aplicação à súmula
vinculante. vinculante.

7. Alterações no processo administrativo 7. Alterações no processo administrativo


A Lei nº 11.417/2006 estabeleceu algumas modificações no processo admi- A Lei nº 11.417/2006 estabeleceu algumas modificações no processo admi-
nistrativo, elencando uma série de regras que deverão ser observadas na hipótese nistrativo, elencando uma série de regras que deverão ser observadas na hipótese
de utilização de recurso administrativo contra decisão administrativa que negar de utilização de recurso administrativo contra decisão administrativa que negar
aplicação à súmula com efeito vinculante. aplicação à súmula com efeito vinculante.
A primeira das inovações é a necessidade de a autoridade administrativa A primeira das inovações é a necessidade de a autoridade administrativa
motivar a decisão que deixar de reconsiderar o ato administrativo, na hipótese motivar a decisão que deixar de reconsiderar o ato administrativo, na hipótese
em discussão. Nesse sentido, inseriu-se um novo parágrafo ao art. 56 da Lei nº em discussão. Nesse sentido, inseriu-se um novo parágrafo ao art. 56 da Lei nº
9.784/99, estabelecendo o seguinte: “Se o recorrente alegar que a decisão admi- 9.784/99, estabelecendo o seguinte: “Se o recorrente alegar que a decisão admi-
nistrativa contraria enunciado da súmula vinculante, caberá à autoridade prolatora nistrativa contraria enunciado da súmula vinculante, caberá à autoridade prolatora
da decisão impugnada, se não a reconsiderar, explicitar, antes de encaminhar o da decisão impugnada, se não a reconsiderar, explicitar, antes de encaminhar o
recurso à autoridade superior, as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da recurso à autoridade superior, as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da
súmula, conforme o caso”. súmula, conforme o caso”.
Com relação ao julgamento do recurso administrativo, quando a matéria Com relação ao julgamento do recurso administrativo, quando a matéria
discutida se referir à súmula vinculante, a lei previu a obrigatoriedade de o órgão discutida se referir à súmula vinculante, a lei previu a obrigatoriedade de o órgão
administrativo julgador indicar expressamente as razões de aplicabilidade ou administrativo julgador indicar expressamente as razões de aplicabilidade ou
inaplicabilidade da súmula, inserindo tal regra no art. 64 da Lei 9.784/99, que se inaplicabilidade da súmula, inserindo tal regra no art. 64 da Lei 9.784/99, que se
compatibiliza com a exigência de motivação prevista no art.50, VII desse diploma compatibiliza com a exigência de motivação prevista no art.50, VII desse diploma
normativo.5 normativo.5
A última inovação relacionada ao ato administrativo que nega aplicação à sú- A última inovação relacionada ao ato administrativo que nega aplicação à sú-
mula foi a necessidade de o STF, acolhendo a reclamação constitucional interposta, mula foi a necessidade de o STF, acolhendo a reclamação constitucional interposta,
cientificar o órgão administrativo e a autoridade administrativa que decidiriam cientificar o órgão administrativo e a autoridade administrativa que decidiriam

5. O art. 50, VII da Lei nº 9.784/99 prevê a obrigação de motivação do ato administrativo, com in- 5. O art. 50, VII da Lei nº 9.784/99 prevê a obrigação de motivação do ato administrativo, com in-
dicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos,quando “deixem de aplicar jurisprudência firmada dicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos,quando “deixem de aplicar jurisprudência firmada
sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais”. sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais”.
A súmula com efeito vinculante na Lei nº 11.417/2006 109 A súmula com efeito vinculante na Lei nº 11.417/2006 109

contra o enunciado da súmula, a fim de que estes adotem o entendimento, estabe- contra o enunciado da súmula, a fim de que estes adotem o entendimento, estabe-
lecido pelo Pretório Excelso no julgamento da reclamação, em futuras decisões lecido pelo Pretório Excelso no julgamento da reclamação, em futuras decisões
sobre casos semelhantes, ficando sujeitos à responsabilização cível, administrativa sobre casos semelhantes, ficando sujeitos à responsabilização cível, administrativa
e penal em caso de descumprimento.6 Convém observar, a propósito, que deverá e penal em caso de descumprimento.6 Convém observar, a propósito, que deverá
incidir, neste particular, o disposto no art. 2º, XIII da Lei 9.784/99, o qual veda a incidir, neste particular, o disposto no art. 2º, XIII da Lei 9.784/99, o qual veda a
“aplicação retroativa de nova interpretação”. “aplicação retroativa de nova interpretação”.
No que se refere à responsabilidade administrativa e penal, por se tratar de No que se refere à responsabilidade administrativa e penal, por se tratar de
hipóteses de responsabilidade pessoal, a inovação não cria grandes embaraços, hipóteses de responsabilidade pessoal, a inovação não cria grandes embaraços,
tendo em vista o sistema atualmente em vigor em nosso ordenamento. tendo em vista o sistema atualmente em vigor em nosso ordenamento.
Já em relação à responsabilidade civil, por força da previsão do art. 37, § 6º Já em relação à responsabilidade civil, por força da previsão do art. 37, § 6º
da CF, o ente público é quem responde pelos danos causados por seus agentes da CF, o ente público é quem responde pelos danos causados por seus agentes
aos administrados. A responsabilização pessoal do servidor deverá ser apurada aos administrados. A responsabilização pessoal do servidor deverá ser apurada
em ação regressiva. Sendo assim, não se pode interpretar a inovação legal contra em ação regressiva. Sendo assim, não se pode interpretar a inovação legal contra
a Constituição. Para evitar o vício da inconstitucionalidade, deve ser dado ao art. a Constituição. Para evitar o vício da inconstitucionalidade, deve ser dado ao art.
64-B da Lei nº 9.784/99, que veicula tal inovação, uma interpretação conforme 64-B da Lei nº 9.784/99, que veicula tal inovação, uma interpretação conforme
a Constituição, para reconhecer que a responsabilização na órbita cível da au- a Constituição, para reconhecer que a responsabilização na órbita cível da au-
toridade administrativa que negar aplicação à súmula vinculante dependerá do toridade administrativa que negar aplicação à súmula vinculante dependerá do
reconhecimento da responsabilidade do ente que a representa em ação movida reconhecimento da responsabilidade do ente que a representa em ação movida
pelo prejudicado, sendo imprescindível, portanto, o uso da ação regressiva nesta pelo prejudicado, sendo imprescindível, portanto, o uso da ação regressiva nesta
situação para apurar o dolo ou culpa do servidor. situação para apurar o dolo ou culpa do servidor.
Outras questões relacionadas ao processo administrativo, quando estiver em Outras questões relacionadas ao processo administrativo, quando estiver em
discussão enunciado de súmula vinculante, não foram reguladas pela lei em estudo, discussão enunciado de súmula vinculante, não foram reguladas pela lei em estudo,
de modo que deverão ser objeto de definição pela jurisprudência da Corte Maior. de modo que deverão ser objeto de definição pela jurisprudência da Corte Maior.
Como o uso da reclamação constitucional contra ato ou omissão administrativa Como o uso da reclamação constitucional contra ato ou omissão administrativa
depende do esgotamento da via administrativa, é preciso o estabelecimento de depende do esgotamento da via administrativa, é preciso o estabelecimento de
um prazo para que a autoridade administrativa se pronuncie, a fim de que a sua um prazo para que a autoridade administrativa se pronuncie, a fim de que a sua
inércia configure omissão, visto que o administrado não pode ficar indefinida- inércia configure omissão, visto que o administrado não pode ficar indefinida-
mente aguardando tal pronunciamento, sob pena inclusive de perda do direito mente aguardando tal pronunciamento, sob pena inclusive de perda do direito
reconhecido na súmula pela prescrição ou pela decadência. Parece-nos que deve reconhecido na súmula pela prescrição ou pela decadência. Parece-nos que deve
se aplicada, diante da omissão da Lei nº 11.417/2006, a regra do art.49 da Lei se aplicada, diante da omissão da Lei nº 11.417/2006, a regra do art.49 da Lei
9.784/99, que estabelece o prazo de trinta dias para a autoridade administrativa 9.784/99, que estabelece o prazo de trinta dias para a autoridade administrativa
decidir, o qual será contado de acordo com os critérios previstos no art. 66 desse decidir, o qual será contado de acordo com os critérios previstos no art. 66 desse
documento normativo. documento normativo.

6. Inseriu-se o art.64-B na Lei nº 9.784/99, prevendo o seguinte: “Acolhida pelo Supremo Tribunal 6. Inseriu-se o art.64-B na Lei nº 9.784/99, prevendo o seguinte: “Acolhida pelo Supremo Tribunal
Federal a reclamação fundada em violação de enunciado da súmula vinculante, dar-se-á ciência Federal a reclamação fundada em violação de enunciado da súmula vinculante, dar-se-á ciência
à autoridade prolatora e ao órgão competente para o julgamento do recurso, que deverão adequar à autoridade prolatora e ao órgão competente para o julgamento do recurso, que deverão adequar
as futuras decisões administrativas em casos semelhantes, sob pena de responsabilização pessoal as futuras decisões administrativas em casos semelhantes, sob pena de responsabilização pessoal
nas esferas cível, administrativa e penal”. nas esferas cível, administrativa e penal”.
110 Paulo Roberto Lyrio Pimenta 110 Paulo Roberto Lyrio Pimenta

8. Aplicação subsidiária do Regimento Interno do Supre- 8. Aplicação subsidiária do Regimento Interno do Supre-
mo Tribunal Federal mo Tribunal Federal
O art. 10 da Lei nº 11.417/2006 prevê a aplicação subsidiária do disposto O art. 10 da Lei nº 11.417/2006 prevê a aplicação subsidiária do disposto
no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, diploma que, dessa forma, no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, diploma que, dessa forma,
integrará as lacunas existentes na lei acerca do procedimento em exame. integrará as lacunas existentes na lei acerca do procedimento em exame.
Diante da omissão existente no atual Regimento da Corte, convém que esta Diante da omissão existente no atual Regimento da Corte, convém que esta
elabore emenda regimental adaptando os procedimentos da Lei nº 11.417/2006 elabore emenda regimental adaptando os procedimentos da Lei nº 11.417/2006
às normas que regulam o funcionamento do Tribunal. às normas que regulam o funcionamento do Tribunal.
Todavia, há uma série de regras em vigor que poderão ser aplicadas por ana- Todavia, há uma série de regras em vigor que poderão ser aplicadas por ana-
logia aos mencionados procedimentos, eis que se relacionam com a elaboração logia aos mencionados procedimentos, eis que se relacionam com a elaboração
de súmula destituída do efeito vinculante, com a reclamação constitucional ou de súmula destituída do efeito vinculante, com a reclamação constitucional ou
versam sobre os aspectos procedimentais de todos os feitos de competência do versam sobre os aspectos procedimentais de todos os feitos de competência do
Pretório Excelso. Pretório Excelso.
Exemplifiquemos: a competência para julgar os procedimentos estabelecidos Exemplifiquemos: a competência para julgar os procedimentos estabelecidos
pela Lei nº 11.417/2006 será do Tribunal Pleno, por força do disposto no art. 7º, pela Lei nº 11.417/2006 será do Tribunal Pleno, por força do disposto no art. 7º,
VII do RISTF, bem como em razão do quorum previsto no art. 103-A da CF. VII do RISTF, bem como em razão do quorum previsto no art. 103-A da CF.
Aplicar-se-á, também, a regra do art. 11, II do RISTF, que prevê a remessa do Aplicar-se-á, também, a regra do art. 11, II do RISTF, que prevê a remessa do
feito ao Pleno quando algum Ministro propuser a revisão da Súmula. feito ao Pleno quando algum Ministro propuser a revisão da Súmula.
De igual modo, as normas veiculadas pelos arts. 57 e 66 do Regimento, De igual modo, as normas veiculadas pelos arts. 57 e 66 do Regimento,
que regulam o preparo e a distribuição dos feitos, respectivamente, deverão ser que regulam o preparo e a distribuição dos feitos, respectivamente, deverão ser
aplicadas aos procedimentos em pauta, a exemplo do art. 6º, I, “g”, que regula a aplicadas aos procedimentos em pauta, a exemplo do art. 6º, I, “g”, que regula a
competência do Pleno para julgar reclamação constitucional. competência do Pleno para julgar reclamação constitucional.
Os exemplos trazidos à colação comprovam, destarte, a assertiva de plena Os exemplos trazidos à colação comprovam, destarte, a assertiva de plena
utilização das regras atuais do Regimento Interno do STF, no que couber, aos utilização das regras atuais do Regimento Interno do STF, no que couber, aos
procedimentos regulados pela Lei 11.417/2006, o que não afasta, como salien- procedimentos regulados pela Lei 11.417/2006, o que não afasta, como salien-
tado, a necessidade de elaboração de emenda regimental para evitar ou eliminar tado, a necessidade de elaboração de emenda regimental para evitar ou eliminar
divergências oriundas da possibilidade de aplicação analógica. divergências oriundas da possibilidade de aplicação analógica.

9. Conclusões 9. Conclusões
1) A Lei nº 11.417/2006 estabeleceu duas modalidades de procedimentos 1) A Lei nº 11.417/2006 estabeleceu duas modalidades de procedimentos
destinados à elaboração da súmula com efeito vinculante, ambos com destinados à elaboração da súmula com efeito vinculante, ambos com
natureza de processo objetivo, semelhante à antiga representação inter- natureza de processo objetivo, semelhante à antiga representação inter-
pretativa; pretativa;
2) A legitimidade ativa prevista pelo art. 103-A da CF foi ampliada pela Lei 2) A legitimidade ativa prevista pelo art. 103-A da CF foi ampliada pela Lei
nº 11.417/2006, que também previu a possibilidade de atuação do animus nº 11.417/2006, que também previu a possibilidade de atuação do animus
curiae e necessidade e prévia oitiva do Procurador-Geral da República; curiae e necessidade e prévia oitiva do Procurador-Geral da República;
A súmula com efeito vinculante na Lei nº 11.417/2006 111 A súmula com efeito vinculante na Lei nº 11.417/2006 111

3) Inexiste efeito vinculante parcial, pois ao Pretório Excelso não é dado 3) Inexiste efeito vinculante parcial, pois ao Pretório Excelso não é dado
elaborar uma súmula afirmando que apenas parte do seu conteúdo tem elaborar uma súmula afirmando que apenas parte do seu conteúdo tem
este tipo de eficácia.É possível, no entanto, restringir um dos âmbitos de este tipo de eficácia.É possível, no entanto, restringir um dos âmbitos de
validade do ato normativo; validade do ato normativo;
4) Contra ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula vin- 4) Contra ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula vin-
culante ou que indevidamente a aplicar caberá a utilização da reclamação culante ou que indevidamente a aplicar caberá a utilização da reclamação
constitucional e de outros remédios jurídicos (ex: apelação, mandado de constitucional e de outros remédios jurídicos (ex: apelação, mandado de
segurança, etc.) e meios de impugnação (ex: ação rescisória), dependen- segurança, etc.) e meios de impugnação (ex: ação rescisória), dependen-
do da presença dos respectivos pressupostos de admissibilidade no caso do da presença dos respectivos pressupostos de admissibilidade no caso
concreto; concreto;
5) A responsabilidade civil da autoridade administrativa que negar aplicação 5) A responsabilidade civil da autoridade administrativa que negar aplicação
à súmula vinculante, prevista pelo art.64-B da Lei nº 9.784/99, inserido à súmula vinculante, prevista pelo art.64-B da Lei nº 9.784/99, inserido
pela Lei nº 11.417/2006; dependerá da certificação da responsabilidade pela Lei nº 11.417/2006; dependerá da certificação da responsabilidade
do ente público em ação movida pelo interessado, consoante determina o do ente público em ação movida pelo interessado, consoante determina o
art. 37,§ 6º da Constituição Federal, sendo imprescindível o uso da ação art. 37,§ 6º da Constituição Federal, sendo imprescindível o uso da ação
regressiva para apurar o dolo ou culpa do servidor; regressiva para apurar o dolo ou culpa do servidor;
6) As atuais regras do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal po- 6) As atuais regras do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal po-
derão ser aplicadas, por analogia, aos novos procedimentos previstos na derão ser aplicadas, por analogia, aos novos procedimentos previstos na
Lei 11.417/2006, o que não afasta a necessidade de elaboração de emenda Lei 11.417/2006, o que não afasta a necessidade de elaboração de emenda
regimental para adaptar as inovações legais às normas que regulam o regimental para adaptar as inovações legais às normas que regulam o
funcionamento da Corte. funcionamento da Corte.
Capítulo VIII Capítulo VIII
Justiça do Trabalho e competência penal Justiça do Trabalho e competência penal
De lege lata e de lege ferenda De lege lata e de lege ferenda

Rodolfo Pamplona Filho* Rodolfo Pamplona Filho*


Sérgio Waly Pirajá Bispo** Sérgio Waly Pirajá Bispo**

Sumário • 1. Introdução – 2. Origem, evolução e vocação da Justiça do Trabalho – 3. Uma questão de ade­ Sumário • 1. Introdução – 2. Origem, evolução e vocação da Justiça do Trabalho – 3. Uma questão de ade­
quação e efetividade – 4. O juiz do trabalho e a ação penal – 5. Operacionalização da nova competência: 5.1. quação e efetividade – 4. O juiz do trabalho e a ação penal – 5. Operacionalização da nova competência: 5.1.
Modificações legislativas necessárias; 5.2. Processo penal x processo do trabalho; 5.3. Aumento de com- Modificações legislativas necessárias; 5.2. Processo penal x processo do trabalho; 5.3. Aumento de com-
petência e estrutura da Justiça do Trabalho; 5.4. O Ministério Público do Trabalho e a Defensoria da União petência e estrutura da Justiça do Trabalho; 5.4. O Ministério Público do Trabalho e a Defensoria da União
– 6. Considerações finais – Referências. – 6. Considerações finais – Referências.

1. Introdução 1. Introdução
Num primeiro momento, a opção do legislador constituinte brasileiro foi no Num primeiro momento, a opção do legislador constituinte brasileiro foi no
sentido de limitar a competência da Justiça Especializada do Trabalho às questões sentido de limitar a competência da Justiça Especializada do Trabalho às questões
relativas ao Direito do Trabalho, destinando outras querelas civis e as penais, relativas ao Direito do Trabalho, destinando outras querelas civis e as penais,
ainda que decorrentes de relações de trabalho, à justiça Comum, Estadual ou Fe- ainda que decorrentes de relações de trabalho, à justiça Comum, Estadual ou Fe-
deral, conforme seu entendimento. A recente Emenda Constitucional n. 45/2004, deral, conforme seu entendimento. A recente Emenda Constitucional n. 45/2004,
adicionou, dentre outros, o inciso VI ao art. 114 da Carta Magna, admitindo a adicionou, dentre outros, o inciso VI ao art. 114 da Carta Magna, admitindo a
competência da Justiça do Trabalho para ações de indenização por dano moral competência da Justiça do Trabalho para ações de indenização por dano moral
ou patrimonial decorrentes da relação de Trabalho. ou patrimonial decorrentes da relação de Trabalho.
Com isto, forjada na necessidade de oferecer uma prestação mais completa Com isto, forjada na necessidade de oferecer uma prestação mais completa
ao cidadão, vem à baila uma antiga reivindicação dos juízes trabalhistas: a com- ao cidadão, vem à baila uma antiga reivindicação dos juízes trabalhistas: a com-
petência penal da Justiça do Trabalho. Sem embargo de posições divergentes, petência penal da Justiça do Trabalho. Sem embargo de posições divergentes,
argumenta-se que a tradicional presteza jurisdicional inerente àquela Justiça argumenta-se que a tradicional presteza jurisdicional inerente àquela Justiça

* Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Salvador/BA (Tribunal Regional do Trabalho da Quinta * Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Salvador/BA (Tribunal Regional do Trabalho da Quinta
Região). Professor Titular de Direito Civil e Direito Processual do Trabalho da Universidade Região). Professor Titular de Direito Civil e Direito Processual do Trabalho da Universidade
Salvador – UNIFACS. Professor (licenciado) do Programa de Pós-Graduação em Direito da UC- Salvador – UNIFACS. Professor (licenciado) do Programa de Pós-Graduação em Direito da UC-
SAL – Universidade Católica de Salvador. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFBA SAL – Universidade Católica de Salvador. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFBA
– Universidade Federal da Bahia. Professor da Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) – Universidade Federal da Bahia. Professor da Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado)
da UFBA. Coordenador do Curso de Especialização em Direito e Processo do Trabalho do Jus- da UFBA. Coordenador do Curso de Especialização em Direito e Processo do Trabalho do Jus-
Podivm/BA. Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Podivm/BA. Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia. Membro São Paulo. Especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia. Membro
da Academia Nacional de Direito do Trabalho (Cadeira 58) e da Academia de Letras Jurídicas da da Academia Nacional de Direito do Trabalho (Cadeira 58) e da Academia de Letras Jurídicas da
Bahia (Cadeira 27). Autor de diversas Obras Jurídicas. Bahia (Cadeira 27). Autor de diversas Obras Jurídicas.
** Bacharel em Direito pela Universidade Salvador – UNIFACS. Pós-Graduando em Direito do Estado ** Bacharel em Direito pela Universidade Salvador – UNIFACS. Pós-Graduando em Direito do Estado
pelo Curso Jus Podivm e Instituto de Educação Superior Unyahna. Autor do livro: Competência pelo Curso Jus Podivm e Instituto de Educação Superior Unyahna. Autor do livro: Competência
Penal da Justiça do Trabalho (no prelo). Penal da Justiça do Trabalho (no prelo).
114 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 114 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

Especializada poderia ser aplicada no julgamento de crimes contra a organização Especializada poderia ser aplicada no julgamento de crimes contra a organi-
do trabalho, contra a administração da Justiça do Trabalho, além de outros asso- zação do trabalho, contra a administração da Justiça do Trabalho, além de outros
ciados às relações de trabalho, como a redução à condição análoga à de escravo associados às relações de trabalho, como a redução à condição análoga à de
e o assédio sexual. escravo e o assédio sexual.
Considera-se, aqui, portanto, que o juiz do trabalho deveria estar munido de Considera-se, aqui, portanto, que o juiz do trabalho deveria estar munido de
competência plena para julgar quaisquer ações oriundas de toda relação laboral. competência plena para julgar quaisquer ações oriundas de toda relação laboral.
Assim, ilícitos civis e penais provenientes de relações de trabalho deveriam estar Assim, ilícitos civis e penais provenientes de relações de trabalho deveriam estar
legalmente submetidos à competência do juízo trabalhista. legalmente submetidos à competência do juízo trabalhista.
A proposta acima explicitada busca, antes de tudo, promover uma proporcional A proposta acima explicitada busca, antes de tudo, promover uma proporcional
adequação material entre as justiças ditas federais. Observa-se que a especialização adequação material entre as justiças ditas federais. Observa-se que a especialização
pela matéria foi a origem de sua criação. Nada mais lógico, sensato, oportuno e pela matéria foi a origem de sua criação. Nada mais lógico, sensato, oportuno e
adequado que imputar a todas elas o julgamento de ações (civis e penais) direta- adequado que imputar a todas elas o julgamento de ações (civis e penais) direta-
mente relacionadas ao seu objeto material. mente relacionadas ao seu objeto material.
Especificamente, observa-se que à Justiça Militar e à Eleitoral compete o Especificamente, observa-se que à Justiça Militar e à Eleitoral compete o
julgamento de crimes militares e eleitorais, respectivamente. Por que a Justiça do julgamento de crimes militares e eleitorais, respectivamente. Por que a Justiça do
Trabalho não é competente para apreciar crimes relacionados ao trabalho? Trabalho não é competente para apreciar crimes relacionados ao trabalho?
Neste trabalho, pretende-se denunciar a necessidade de se corrigir os desvios Neste trabalho, pretende-se denunciar a necessidade de se corrigir os desvios
da competência penal-trabalhista no Brasil, buscando-se, sobretudo, o rumo da da competência penal-trabalhista no Brasil, buscando-se, sobretudo, o rumo da
prestação jurisdicional mais adequada. prestação jurisdicional mais adequada.

2. Origem, evolução e vocação da Justiça do Trabalho 2. Origem, evolução e vocação da Justiça do Trabalho
A evolução da sociedade humana de feudalista para capitalista trouxe, como A evolução da sociedade humana de feudalista para capitalista trouxe, como
conseqüência, o surgimento de uma inovadora classe de conflitos – os chamados conseqüência, o surgimento de uma inovadora classe de conflitos – os chamados
conflitos do trabalho. conflitos do trabalho.
O assentamento de trabalhadores em burgos localizados nas imediações das O assentamento de trabalhadores em burgos localizados nas imediações das
unidades produtivas industriais, com vistas a facilitar-lhes o acesso ao ambiente unidades produtivas industriais, com vistas a facilitar-lhes o acesso ao ambiente
de trabalho, possibilitou sua organização e conscientização coletiva em relação de trabalho, possibilitou sua organização e conscientização coletiva em relação
às suas reais condições laborais e qualidade de vida. às suas reais condições laborais e qualidade de vida.
Isso tinha de ocorrer, porque a Revolução Industrial trouxe consigo a concentração Isso tinha de ocorrer, porque a Revolução Industrial trouxe consigo a concentração
dos trabalhadores nas cidades, a melhoria dos transportes e comunicações, essencial dos trabalhadores nas cidades, a melhoria dos transportes e comunicações, essencial
a uma organização nacional, e as condições que fizeram tão necessário o movimento a uma organização nacional, e as condições que fizeram tão necessário o movimento
trabalhista. A organização da classe trabalhadora cresceu com o capitalismo, que trabalhista. A organização da classe trabalhadora cresceu com o capitalismo, que
produziu a classe, o sentimento de classe e o meio físico de cooperação e comuni- produziu a classe, o sentimento de classe e o meio físico de cooperação e comuni-
cação. (HUBERMAN, 1980, p. 202). cação. (HUBERMAN, 1980, p. 202).

Portanto, a Revolução Industrial marca o início dos movimentos paredistas Portanto, a Revolução Industrial marca o início dos movimentos paredistas
de trabalhadores em contraposição aos privilégios da classe detentora do capital de trabalhadores em contraposição aos privilégios da classe detentora do capital
(DÁLIA FILHO, 2005, p. 2). (DÁLIA FILHO, 2005, p. 2).
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 115 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 115

Como espécie do gênero conflitos sociais, os conflitos trabalhistas também Como espécie do gênero conflitos sociais, os conflitos trabalhistas também
encontram sua satisfação na utilização de técnicas que vão da autodefesa à hete- encontram sua satisfação na utilização de técnicas que vão da autodefesa à hete-
rocomposição. rocomposição.
Sendo difícil precisar as origens da jurisdição trabalhista em cada país, certo Sendo difícil precisar as origens da jurisdição trabalhista em cada país, certo
é que, antes de o Estado se ocupar destas questões, empregados e empregadores é que, antes de o Estado se ocupar destas questões, empregados e empregadores
valiam-se de técnicas autodefensivas, autocompositivas e órgãos de conciliação valiam-se de técnicas autodefensivas, autocompositivas e órgãos de conciliação
para dirimir querelas relativas ao trabalho. para dirimir querelas relativas ao trabalho.
A jurisdição, principal forma heterônoma de composição de conflitos, traduz a A jurisdição, principal forma heterônoma de composição de conflitos, traduz a
evolução da ação física (autodefesa) para a ação jurídica (processo judicial), onde evolução da ação física (autodefesa) para a ação jurídica (processo judicial), onde
há maior possibilidade de pacificação das lides, ante a presença do Estado como há maior possibilidade de pacificação das lides, ante a presença do Estado como
poder sancionador constituído e legitimado (NASCIMENTO, 2002, p. 3-31). poder sancionador constituído e legitimado (NASCIMENTO, 2002, p. 3-31).
No Brasil Império, as causas relativas à prestação de serviços eram apreciadas No Brasil Império, as causas relativas à prestação de serviços eram apreciadas
pela Justiça Comum; e as causas trabalhistas no âmbito rural, pelos juízes de paz. pela Justiça Comum; e as causas trabalhistas no âmbito rural, pelos juízes de paz.
Obviamente, as questões “trabalhistas” aqui mencionadas têm um sentido bem di- Obviamente, as questões “trabalhistas” aqui mencionadas têm um sentido bem di-
ferente do hoje vigente, uma vez que o país ainda vivia o período escravocrata. ferente do hoje vigente, uma vez que o país ainda vivia o período escravocrata.
Mais tarde, já na fase republicana, mais precisamente em 1907, foram criados Mais tarde, já na fase republicana, mais precisamente em 1907, foram criados
os Conselhos Permanentes de Conciliação e Arbitragem, que não chegaram a os Conselhos Permanentes de Conciliação e Arbitragem, que não chegaram a
funcionar a contento. funcionar a contento.
Em 1911, no Estado de São Paulo, foi instituído o Patronato Agrícola para Em 1911, no Estado de São Paulo, foi instituído o Patronato Agrícola para
prestar assistência judiciária aos trabalhadores rurais na cobrança de salários. prestar assistência judiciária aos trabalhadores rurais na cobrança de salários.
Em 1922, também em São Paulo, foram criados os Tribunais Rurais para Em 1922, também em São Paulo, foram criados os Tribunais Rurais para
apreciar as questões relativas aos contratos de locação de serviços rurais com apreciar as questões relativas aos contratos de locação de serviços rurais com
imigrantes estrangeiros (MARTINS FILHO, 2005, p. 16). imigrantes estrangeiros (MARTINS FILHO, 2005, p. 16).
Uma economia voltada quase que exclusivamente à produção agrícola, desenvolvida Uma economia voltada quase que exclusivamente à produção agrícola, desenvolvida
por colonos de origem estrangeira, principalmente, ensejava inúmeras demandas, por colonos de origem estrangeira, principalmente, ensejava inúmeras demandas,
às quais o Poder Judiciário de então não possuía instrumentos para rapidamente às quais o Poder Judiciário de então não possuía instrumentos para rapidamente
solucionar. solucionar.
Esta realidade determinou a necessidade do governo criar e instalar os tribunais Esta realidade determinou a necessidade do governo criar e instalar os tribunais
rurais. (MANUS, 2005, p. 1). rurais. (MANUS, 2005, p. 1).

Em 1923, no âmbito do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, Em 1923, no âmbito do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio,
foi criado o Conselho Nacional do Trabalho (núcleo básico da futura Justiça do foi criado o Conselho Nacional do Trabalho (núcleo básico da futura Justiça do
Trabalho), órgão consultivo em matéria laboral e instância recursal em matéria Trabalho), órgão consultivo em matéria laboral e instância recursal em matéria
previdenciária e trabalhista em relação às demissões de empregados de empresas previdenciária e trabalhista em relação às demissões de empregados de empresas
públicas (MARTINS FILHO, 2005, p. 16). públicas (MARTINS FILHO, 2005, p. 16).
Em 1932, são criadas as Convenções Coletivas de Trabalho, “como forma de Em 1932, são criadas as Convenções Coletivas de Trabalho, “como forma de
composição de interesses entre trabalhadores e empregadores, como reflexo da composição de interesses entre trabalhadores e empregadores, como reflexo da
forte influência italiana entre nós, estimulada pela grande imigração de europeus, forte influência italiana entre nós, estimulada pela grande imigração de europeus,
116 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 116 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

daí derivando a necessidade de um órgão com competência para conhecer e dirimir daí derivando a necessidade de um órgão com competência para conhecer e dirimir
eventuais conflitos decorrentes desta prática coletiva.” (MANUS, 2005, p.1). eventuais conflitos decorrentes desta prática coletiva.” (MANUS, 2005, p.1).
Surgem, então, neste mesmo ano, as Comissões Mistas de Conciliação, para Surgem, então, neste mesmo ano, as Comissões Mistas de Conciliação, para
solução de conflitos coletivos de trabalhadores; e as Juntas de Conciliação e Jul- solução de conflitos coletivos de trabalhadores; e as Juntas de Conciliação e Jul-
gamento, para dirimir os conflitos individuais de trabalho. gamento, para dirimir os conflitos individuais de trabalho.
A Constituição de 1934 foi a primeira a prever expressamente a existência da A Constituição de 1934 foi a primeira a prever expressamente a existência da
Justiça do Trabalho, mas fora do Poder Judiciário. Justiça do Trabalho, mas fora do Poder Judiciário.
A Constituição de 1937 adotou o modelo da Justiça do Trabalho; mas ainda A Constituição de 1937 adotou o modelo da Justiça do Trabalho; mas ainda
com caráter administrativo (MARTINS FILHO, 2005, p. 16). com caráter administrativo (MARTINS FILHO, 2005, p. 16).
O Decreto Legislativo 1237/39 deu, ainda que pela via infraconstitucional, O Decreto Legislativo 1237/39 deu, ainda que pela via infraconstitucional,
uma nova feição àquele órgão administrativo, uma vez que estruturou o sistema uma nova feição àquele órgão administrativo, uma vez que estruturou o sistema
em instância, previu recursos e – o que é mais importante – outorgou poder para em instância, previu recursos e – o que é mais importante – outorgou poder para
execução de suas decisões, motivo pelo qual já é possível se vislumbrar, aí, a execução de suas decisões, motivo pelo qual já é possível se vislumbrar, aí, a
feição judicial stricto sensu da “Justiça do Trabalho” (ainda administrativa por feição judicial stricto sensu da “Justiça do Trabalho” (ainda administrativa por
força da norma constitucional vigente à época). força da norma constitucional vigente à época).
A CLT – Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio A CLT – Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio
de 1941), absorvendo a estrutura já definida infraconstitucionalmente, reconhe- de 1941), absorvendo a estrutura já definida infraconstitucionalmente, reconhe-
ceu a organização da Justiça do Trabalho em três níveis: Juntas de Conciliação e ceu a organização da Justiça do Trabalho em três níveis: Juntas de Conciliação e
Julgamento, Conselhos Regionais do Trabalho e Conselho Nacional do Trabalho, Julgamento, Conselhos Regionais do Trabalho e Conselho Nacional do Trabalho,
além de admitir a sua função jurisdicional, apesar de, como visto, ainda não estar além de admitir a sua função jurisdicional, apesar de, como visto, ainda não estar
incluida no Poder Judiciário (NASCIMENTO, 2002, p. 46-47). incluida no Poder Judiciário (NASCIMENTO, 2002, p. 46-47).
Isto só veio a acontecer com a Constituição de 1946, que “promoveu a in- Isto só veio a acontecer com a Constituição de 1946, que “promoveu a in-
tegração da Justiça do trabalho dentro do Poder Judiciário (art. 94, V), transfor- tegração da Justiça do trabalho dentro do Poder Judiciário (art. 94, V), transfor-
mando o Conselho Nacional do Trabalho em Tribunal Superior do Trabalho e os mando o Conselho Nacional do Trabalho em Tribunal Superior do Trabalho e os
Conselhos Regionais em Tribunais Regionais do Trabalho (art. 122).” (MARTINS Conselhos Regionais em Tribunais Regionais do Trabalho (art. 122).” (MARTINS
FILHO, 2005, p. 17), o que foi mantido na Constituição de 1967 e na Emenda FILHO, 2005, p. 17), o que foi mantido na Constituição de 1967 e na Emenda
nº 01/1969. nº 01/1969.
A Constituição Federal de 1988 ampliou ainda mais esta estrutura, quando A Constituição Federal de 1988 ampliou ainda mais esta estrutura, quando
previu a criação de, no mínimo, um TRT por Estado. previu a criação de, no mínimo, um TRT por Estado.
A Emenda Constitucional 24/1999 acabou com a representação classista na A Emenda Constitucional 24/1999 acabou com a representação classista na
Justiça do Trabalho, transformando as Juntas de Conciliação e Julgamento em Justiça do Trabalho, transformando as Juntas de Conciliação e Julgamento em
Varas do Trabalho. Varas do Trabalho.
A recente Emenda Constitucional 45/2004 introduziu significativas modifi- A recente Emenda Constitucional 45/2004 introduziu significativas modifi-
cações na competência da Justiça do Trabalho. Veja-se: cações na competência da Justiça do Trabalho. Veja-se:
Inúmeras matérias que até então eram da competência da Justiça Estadual, como Inúmeras matérias que até então eram da competência da Justiça Estadual, como
as ações que envolviam a representação sindical, as ações que versavam sobre a as ações que envolviam a representação sindical, as ações que versavam sobre a
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 117 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 117

relação de trabalho e matérias a ela conexas, agora fazem parte da Justiça do Tra- relação de trabalho e matérias a ela conexas, agora fazem parte da Justiça do Tra-
balho. Questões processadas na Justiça Federal comum passam para a Justiça do balho. Questões processadas na Justiça Federal comum passam para a Justiça do
Trabalho, como as execuções fiscais trabalhistas, seus mandados de segurança e as Trabalho, como as execuções fiscais trabalhistas, seus mandados de segurança e as
ações declaratórias de negação do débito. (MENEZES; BORGES, 2005, p. 40). ações declaratórias de negação do débito. (MENEZES; BORGES, 2005, p. 40).

Mesmo antes do advento da Reforma do Poder Judiciário, implementada Mesmo antes do advento da Reforma do Poder Judiciário, implementada
através da EC 45/2004, já se observava a ocorrência gradativa de ampliação da através da EC 45/2004, já se observava a ocorrência gradativa de ampliação da
competência da Justiça do Trabalho através de interpretação doutrinária e apli- competência da Justiça do Trabalho através de interpretação doutrinária e apli-
cação jurisprudencial. Exemplo disso são os Enunciados1 de número 19 (quadro cação jurisprudencial. Exemplo disso são os Enunciados1 de número 19 (quadro
de carreira); o 189 (abusividade de greve); o 300 (cadastramento de PIS); e as de carreira); o 189 (abusividade de greve); o 300 (cadastramento de PIS); e as
Orientações Jurisprudenciais n. 141 (descontos previdenciários e fiscais); a n. 210 Orientações Jurisprudenciais n. 141 (descontos previdenciários e fiscais); a n. 210
(seguro-desemprego); a n. 327 (dano moral), só para citar algumas (MENEZES; (seguro-desemprego); a n. 327 (dano moral), só para citar algumas (MENEZES;
BORGES, 2005, p. 39). BORGES, 2005, p. 39).
Verifica-se, portanto, que o Direito do trabalho, e conseqüentemente a Justiça Verifica-se, portanto, que o Direito do trabalho, e conseqüentemente a Justiça
do Trabalho, caminham paralelamente à evolução das questões transformadoras do Trabalho, caminham paralelamente à evolução das questões transformadoras
da sociedade. da sociedade.
Assim, quando a Justiça do trabalho foi criada, a realidade das relações Assim, quando a Justiça do trabalho foi criada, a realidade das relações
laborais era bem distinta da atual. Bastava a simples observância da CLT para laborais era bem distinta da atual. Bastava a simples observância da CLT para
assegurar justiça a um expressivo número de trabalhadores (COUTINHO, 2005 assegurar justiça a um expressivo número de trabalhadores (COUTINHO, 2005
b, p. 132). b, p. 132).
Hoje, para fazer frente às novas modalidades de contratação, para coibir ve- Hoje, para fazer frente às novas modalidades de contratação, para coibir ve-
lhas e novas fraudes, abusos e crimes nas relações de trabalho, a Justiça Obreira lhas e novas fraudes, abusos e crimes nas relações de trabalho, a Justiça Obreira
reclama avanços de sua competência para alem da simples relação de emprego. reclama avanços de sua competência para alem da simples relação de emprego.
Neste sentido: Neste sentido:
Falamos de um mundo do trabalho sensivelmente transformado pela implementação Falamos de um mundo do trabalho sensivelmente transformado pela implementação
de novos padrões produtivos, que impuseram mutações no tradicional paradigma de novos padrões produtivos, que impuseram mutações no tradicional paradigma
trabalhista até então conhecido. Segundo o DIEESE, esse novo ambiente de trabalho trabalhista até então conhecido. Segundo o DIEESE, esse novo ambiente de trabalho
é caracterizado pela alta rotatividade, instabilidade, pouco dinamismo na geração é caracterizado pela alta rotatividade, instabilidade, pouco dinamismo na geração
de novas vagas, descontinuidade da trajetória profissional e, em especial, preca- de novas vagas, descontinuidade da trajetória profissional e, em especial, preca-
rização das formas de contratação de mão-de-obra, fazendo recrudescer, assim, a rização das formas de contratação de mão-de-obra, fazendo recrudescer, assim, a
informalidade. Dados oficiais do IBGE (Pesquisa Mensal de Emprego – PME, de informalidade. Dados oficiais do IBGE (Pesquisa Mensal de Emprego – PME, de
dezembro de 2003) dão conta de que mais de 40 milhões de brasileiros trabalham dezembro de 2003) dão conta de que mais de 40 milhões de brasileiros trabalham
sem qualquer vínculo formal de emprego. (...) sem qualquer vínculo formal de emprego. (...)
O resultado disso é a exclusão desses milhões de trabalhadores, vinculados à deno- O resultado disso é a exclusão desses milhões de trabalhadores, vinculados à deno-
minada “economia informal”, do sistema de proteção social (trabalhista, previden- minada “economia informal”, do sistema de proteção social (trabalhista, previden-
ciário e de seguridade social), inclusive quanto ao acesso à Justiça do Trabalho. ciário e de seguridade social), inclusive quanto ao acesso à Justiça do Trabalho.
Isso porque a justiça Especializada do Trabalho é formal e historicamente vincu- Isso porque a justiça Especializada do Trabalho é formal e historicamente vincu-
lada aos contratos de trabalho celebrados e regidos pela Consolidação das Leis do lada aos contratos de trabalho celebrados e regidos pela Consolidação das Leis do

1. Atualmente Súmulas. 1. Atualmente Súmulas.


118 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 118 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

Trabalho – CLT, ou seja, aos contratos formais de emprego, nunca lhe tendo sido Trabalho – CLT, ou seja, aos contratos formais de emprego, nunca lhe tendo sido
atribuída ampla competência para julgar as querelas oriundas de outras modalidades atribuída ampla competência para julgar as querelas oriundas de outras modalidades
de trabalho, até o surgimento da Emenda Constitucional n. 45/04. (COUTINHO, de trabalho, até o surgimento da Emenda Constitucional n. 45/04. (COUTINHO,
2005 b, p. 131). 2005 b, p. 131).

Nada mais coerente, portanto, que, diante das modificações surgidas com a Nada mais coerente, portanto, que, diante das modificações surgidas com a
evolu-ção das técnicas produtivas, padrões de comportamento e relações comer- evolu-ção das técnicas produtivas, padrões de comportamento e relações comer-
ciais e contratuais, a Justiça Especializada Trabalhista venha a ter ampliada a sua ciais e contratuais, a Justiça Especializada Trabalhista venha a ter ampliada a sua
esfera de atuação, sendo preparada para exercer jurisdição em qualquer seara esfera de atuação, sendo preparada para exercer jurisdição em qualquer seara
relacionada com o trabalho humano. relacionada com o trabalho humano.
E foi justamente isso que aconteceu! E foi justamente isso que aconteceu!
De fato, dispunha o caput do art. 114 original da Constituição Federal de De fato, dispunha o caput do art. 114 original da Constituição Federal de
1988, in verbis: 1988, in verbis:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais
e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito
público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do
Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias
decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no
cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.” cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.”

A análise cuidadosa desse dispositivo nos levou a concluir que, em verdade, o A análise cuidadosa desse dispositivo nos levou a concluir que, em verdade, o
texto constitucional encerrava uma “regra trina”. (PAMPLONA FILHO, 1998). texto constitucional encerrava uma “regra trina”. (PAMPLONA FILHO, 1998).
Com efeito, a norma básica de competência material da Justiça do Trabalho Com efeito, a norma básica de competência material da Justiça do Trabalho
se desdobrava em três regras constitucionais de competência material, assim se desdobrava em três regras constitucionais de competência material, assim
sistematizadas: sistematizadas:
a) Competência material natural, originária ou específica; a) Competência material natural, originária ou específica;
b) Competência material legal ou decorrente; b) Competência material legal ou decorrente;
c) Competência material executória. c) Competência material executória.
Compreendamos, ainda que rapidamente, tais regras: Compreendamos, ainda que rapidamente, tais regras:
A competência material natural, também conhecida como originária ou espe- A competência material natural, também conhecida como originária ou espe-
cífica, nada mais era do que a atribuição da Justiça do Trabalho para conhecer e cífica, nada mais era do que a atribuição da Justiça do Trabalho para conhecer e
julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores. julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores.
Ante a inviabilidade de falar-se em empregador como um dos pólos de uma Ante a inviabilidade de falar-se em empregador como um dos pólos de uma
relação jurídica sem que no outro pólo o sujeito que se apresenta seja o empregado, relação jurídica sem que no outro pólo o sujeito que se apresenta seja o empregado,
interpretava-se por ‘trabalhador’ a figura do empregado. interpretava-se por ‘trabalhador’ a figura do empregado.
Assim, de acordo com essa regra da competência material natural, era a Justiça Assim, de acordo com essa regra da competência material natural, era a Justiça
do Trabalho o ramo do Poder Judiciário competente para decidir todas as questões do Trabalho o ramo do Poder Judiciário competente para decidir todas as questões
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 119 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 119

entre empregados e empregadores, os quais se acham envolvidos, a esse título (ou entre empregados e empregadores, os quais se acham envolvidos, a esse título (ou
seja, com essa qualificação jurídica), numa relação jurídica de emprego. seja, com essa qualificação jurídica), numa relação jurídica de emprego.
Ou seja, o que importava era a qualificação jurídica de “empregado” e “em- Ou seja, o que importava era a qualificação jurídica de “empregado” e “em-
pregador” para se delimitar a competência. Nessa linha, havia até mesmo quem pregador” para se delimitar a competência. Nessa linha, havia até mesmo quem
defendesse que a regra de competência da Justiça do Trabalho fosse mais de defendesse que a regra de competência da Justiça do Trabalho fosse mais de
natureza pessoal do que material. natureza pessoal do que material.
Assim, não haveria necessidade de nenhuma outra autorização legal para que Assim, não haveria necessidade de nenhuma outra autorização legal para que
ao Judiciário Trabalhista viesse a ser confiada a solução de uma lide entre esses ao Judiciário Trabalhista viesse a ser confiada a solução de uma lide entre esses
dois sujeitos, pois a previsão constitucional bastava por si mesma. dois sujeitos, pois a previsão constitucional bastava por si mesma.
Registre-se, inclusive, que pouco importava o tipo de relação de emprego (aqui Registre-se, inclusive, que pouco importava o tipo de relação de emprego (aqui
abrangendo-se relações empregatícias urbanas, rurais, domésticas, temporárias, abrangendo-se relações empregatícias urbanas, rurais, domésticas, temporárias,
a domicílio, entre outras). Bastava estar-se diante de relação empregatícia para a domicílio, entre outras). Bastava estar-se diante de relação empregatícia para
a questão situar-se no âmbito de competência material da Justiça do Trabalho, a questão situar-se no âmbito de competência material da Justiça do Trabalho,
independentemente de lei. independentemente de lei.
Já a regra de competência legal ou decorrente era entendida da seguinte forma: Já a regra de competência legal ou decorrente era entendida da seguinte forma:
para solucionar controvérsias decorrentes de outras relações jurídicas diversas para solucionar controvérsias decorrentes de outras relações jurídicas diversas
das relações de emprego, a Justiça do Trabalho só seria competente se presentes das relações de emprego, a Justiça do Trabalho só seria competente se presentes
dois requisitos: a expressa previsão de uma lei atributiva dessa competência e se dois requisitos: a expressa previsão de uma lei atributiva dessa competência e se
a relação jurídica derivar de uma relação de trabalho. a relação jurídica derivar de uma relação de trabalho.
Esse princípio encontrava fundamento na parte final do art. 114 da Consti- Esse princípio encontrava fundamento na parte final do art. 114 da Consti-
tuição da República, que, depois de situar, na esfera da competência da Justiça tuição da República, que, depois de situar, na esfera da competência da Justiça
do Trabalho, os dissídios entre empregados e empregadores, o fazia, também, na do Trabalho, os dissídios entre empregados e empregadores, o fazia, também, na
forma da lei, para outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. forma da lei, para outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho.
A correta interpretação desse segundo princípio nos leva à conclusão que vi- A correta interpretação desse segundo princípio nos leva à conclusão que vi-
sava o mesmo à previsão de possibilidade de competência da Justiça do Trabalho sava o mesmo à previsão de possibilidade de competência da Justiça do Trabalho
para controvérsias trabalhistas entre sujeitos que não se enquadrem na qualificação para controvérsias trabalhistas entre sujeitos que não se enquadrem na qualificação
jurídica de “trabalhadores” e/ou “empregadores”. jurídica de “trabalhadores” e/ou “empregadores”.
Assim, quando o art. 114 da C.F./88 se referia à competência para julgar Assim, quando o art. 114 da C.F./88 se referia à competência para julgar
“na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”, não “na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”, não
estava se referindo a controvérsias não previstas nas normas trabalhistas entre estava se referindo a controvérsias não previstas nas normas trabalhistas entre
empregadores e empregados, mas sim a litígios em que figurassem, em um ou empregadores e empregados, mas sim a litígios em que figurassem, em um ou
nos dois pólos da relação, sujeitos distintos das figuras citadas (afinal, os conflitos nos dois pólos da relação, sujeitos distintos das figuras citadas (afinal, os conflitos
entre eles eram de sua competência material natural), embora a controvérsia fosse entre eles eram de sua competência material natural), embora a controvérsia fosse
decorrente de uma relação de trabalho. decorrente de uma relação de trabalho.
Observe-se, porém, que não estávamos a afirmar, naquele momento históri- Observe-se, porém, que não estávamos a afirmar, naquele momento históri-
co, que toda e qualquer controvérsia oriunda de relações de trabalho poderia ser co, que toda e qualquer controvérsia oriunda de relações de trabalho poderia ser
decidida pelo Judiciário Trabalhista. decidida pelo Judiciário Trabalhista.
120 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 120 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

O que inferimos da regra constitucional original é que era possível a existên- O que inferimos da regra constitucional original é que era possível a existên-
cia de competência da Justiça do Trabalho para apreciar lides de outros sujeitos cia de competência da Justiça do Trabalho para apreciar lides de outros sujeitos
distintos dos previstos na sua regra de competência material natural, desde que distintos dos previstos na sua regra de competência material natural, desde que
houvesse lei específica que preveja tal hipótese. houvesse lei específica que preveja tal hipótese.
Era o caso, por exemplo, dos “dissídios resultantes de contratos de empreitadas Era o caso, por exemplo, dos “dissídios resultantes de contratos de empreitadas
em que o empreiteiro seja operário ou artífice” (art. 652, III, CLT) ou das “ações em que o empreiteiro seja operário ou artífice” (art. 652, III, CLT) ou das “ações
entre trabalhadores portuários e os operadores portuários ou o Órgão Gestor de entre trabalhadores portuários e os operadores portuários ou o Órgão Gestor de
Mão-de-Obra – OGMO decorrentes da relação de trabalho” (art. 652, V, CLT). Em Mão-de-Obra – OGMO decorrentes da relação de trabalho” (art. 652, V, CLT). Em
ambas as situações, não há vínculo empregatício, mas, sim, relações de trabalho ambas as situações, não há vínculo empregatício, mas, sim, relações de trabalho
que eram submetidas, por norma infraconstitucional, à Justiça do Trabalho. que eram submetidas, por norma infraconstitucional, à Justiça do Trabalho.
Outro bom exemplo constava da Lei 8.984/95, que, em seu art. 1º, declarava Outro bom exemplo constava da Lei 8.984/95, que, em seu art. 1º, declarava
que “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios que tenham que “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios que tenham
origem no cumprimento de convenções coletivas de trabalho ou acordos coleti- origem no cumprimento de convenções coletivas de trabalho ou acordos coleti-
vos de trabalho, mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sindicatos de vos de trabalho, mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sindicatos de
trabalhadores e empregador.” trabalhadores e empregador.”
Esta última situação, inclusive, pode ser considerada extremamente didática, Esta última situação, inclusive, pode ser considerada extremamente didática,
haja vista ser uma lide que, de forma evidente, decorre de relações de emprego, haja vista ser uma lide que, de forma evidente, decorre de relações de emprego,
mas cujos sujeitos demandantes não estão, definitivamente, na qualificação jurí- mas cujos sujeitos demandantes não estão, definitivamente, na qualificação jurí-
dica de “­empregados” e “empregadores”. Tais ações, inclusive, eram ajuizadas dica de “­empregados” e “empregadores”. Tais ações, inclusive, eram ajuizadas
na Justiça comum2, somente passando para o âmbito da competência da Justiça na Justiça comum2, somente passando para o âmbito da competência da Justiça
do Trabalho, após a autorização l­egal3. do Trabalho, após a autorização l­egal3.

2. “Litígio entre sindicato de trabalhadores e empregador que tem origem no cumprimento de con- 2. “Litígio entre sindicato de trabalhadores e empregador que tem origem no cumprimento de con-
venção coletiva de trabalho ou acordo coletivo de trabalho. Pela jurisprudência desta Corte (assim venção coletiva de trabalho ou acordo coletivo de trabalho. Pela jurisprudência desta Corte (assim
se decidiu no RE 130.555), não havendo lei que atribua competência a Justiça Trabalhista para se decidiu no RE 130.555), não havendo lei que atribua competência a Justiça Trabalhista para
julgar relações jurídicas como a em causa, e competente para julgá-la a Justiça Comum. Sucede, julgar relações jurídicas como a em causa, e competente para julgá-la a Justiça Comum. Sucede,
porém, que, depois da interposição do presente recurso extraordinário, foi editada a Lei 8.984, porém, que, depois da interposição do presente recurso extraordinário, foi editada a Lei 8.984,
de 07/02/95, que afastou a premissa de que partiu o entendimento deste Tribunal ao julgar o RE de 07/02/95, que afastou a premissa de que partiu o entendimento deste Tribunal ao julgar o RE
130.555, porquanto o artigo 1º da referida lei dispõe que ‘compete à Justiça do Trabalho conciliar 130.555, porquanto o artigo 1º da referida lei dispõe que ‘compete à Justiça do Trabalho conciliar
e julgar os dissídios que tenham origem no cumprimento de convenções coletivas de trabalho e julgar os dissídios que tenham origem no cumprimento de convenções coletivas de trabalho
e acordos coletivos de trabalho, mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sindicato de e acordos coletivos de trabalho, mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sindicato de
trabalhadores e empregador’. E, em se tratando de recurso extraordinário interposto contra acórdão trabalhadores e empregador’. E, em se tratando de recurso extraordinário interposto contra acórdão
que julgou conflito de competência, não tem sentido que se deixe de aplicar a lei superveniente a que julgou conflito de competência, não tem sentido que se deixe de aplicar a lei superveniente a
interposição desse recurso, para dar-se como competente Juízo que o era antes da citada Lei, mas interposição desse recurso, para dar-se como competente Juízo que o era antes da citada Lei, mas
que deixou de sê-lo com o advento dela.” (RE 131.096, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 29/09/95). que deixou de sê-lo com o advento dela.” (RE 131.096, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 29/09/95).
3. “Ação contra sindicato pleiteando a desoneração do pagamento de contribuição confederativa 3. “Ação contra sindicato pleiteando a desoneração do pagamento de contribuição confederativa
estipulada em cláusula de acordo coletivo de trabalho. Artigo 114 da Constituição Federal. Lei estipulada em cláusula de acordo coletivo de trabalho. Artigo 114 da Constituição Federal. Lei
nº 8.984/95. Não é caso de incidência da Lei nº 8.984/95, editada com base no art. 114 da Cons- nº 8.984/95. Não é caso de incidência da Lei nº 8.984/95, editada com base no art. 114 da Cons-
tituição Federal, que retirou do âmbito residual deixado à Justiça Comum dos Estados a ação tituição Federal, que retirou do âmbito residual deixado à Justiça Comum dos Estados a ação
tendo por objeto o adimplemento de obrigação assumida em convenções ou acordos coletivos tendo por objeto o adimplemento de obrigação assumida em convenções ou acordos coletivos
de trabalho, incluindo-se na órbita da Justiça Trabalhista, tendo em vista que tanto a sentença de de trabalho, incluindo-se na órbita da Justiça Trabalhista, tendo em vista que tanto a sentença de
primeiro grau como o acórdão recorrido foram prolatados muito antes da vigência da referida lei, primeiro grau como o acórdão recorrido foram prolatados muito antes da vigência da referida lei,
quando era competente a Justiça Comum dos Estados.” (RE 204.194, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ quando era competente a Justiça Comum dos Estados.” (RE 204.194, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ
06/02/98). 06/02/98).
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 121 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 121

Por fim, a terceira regra manifestava-se pela competência executória das Por fim, a terceira regra manifestava-se pela competência executória das
próprias sentenças, o que, obviamente, é uma conseqüência natural da atuação próprias sentenças, o que, obviamente, é uma conseqüência natural da atuação
estatal na jurisdição trabalhista. estatal na jurisdição trabalhista.
Sua importância é histórica, pois, antes do Decreto-lei nº. 1.237, de 02-05- Sua importância é histórica, pois, antes do Decreto-lei nº. 1.237, de 02-05-
39, a Justiça do Trabalho não tinha poder para executar suas próprias sentenças, 39, a Justiça do Trabalho não tinha poder para executar suas próprias sentenças,
somente podendo ser considerada parte, de fato, do Poder Judiciário, a partir somente podendo ser considerada parte, de fato, do Poder Judiciário, a partir
deste momento (embora ainda prevista no Capítulo da Ordem Econômica e Social deste momento (embora ainda prevista no Capítulo da Ordem Econômica e Social
pela Carta de 1937, uma vez que, constitucionalmente, a incorporação ao Poder pela Carta de 1937, uma vez que, constitucionalmente, a incorporação ao Poder
Judiciário apenas tenha se dado com a Constituição de 1946). Judiciário apenas tenha se dado com a Constituição de 1946).
Além disso, vale destacar que, em matéria de execução de sentença, os Juízes Além disso, vale destacar que, em matéria de execução de sentença, os Juízes
do Trabalho aplicam quase todos os ramos do Direito, e não somente o que se do Trabalho aplicam quase todos os ramos do Direito, e não somente o que se
convencionou chamar de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho. convencionou chamar de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho.
Nas lapidares palavras do mestre Amauri Mascaro Nascimento, abre-se, aqui, Nas lapidares palavras do mestre Amauri Mascaro Nascimento, abre-se, aqui,
“uma perspectiva larga, sabendo-se que, na execução de sentenças, a Justiça do “uma perspectiva larga, sabendo-se que, na execução de sentenças, a Justiça do
Trabalho vê-se diante de questões que envolvem a aplicação do Direito Comercial, Trabalho vê-se diante de questões que envolvem a aplicação do Direito Comercial,
Civil, Administrativo, e outros setores do Direito positivo, porque da penhora Civil, Administrativo, e outros setores do Direito positivo, porque da penhora
de bens pode resultar inúmeras questões de natureza patrimonial. A penhora é o de bens pode resultar inúmeras questões de natureza patrimonial. A penhora é o
momento em que, diante da atuação da lei no mundo físico, surgem problemas momento em que, diante da atuação da lei no mundo físico, surgem problemas
sobre as condições em que se encontram os bens penhorados, alguns onerados sobre as condições em que se encontram os bens penhorados, alguns onerados
com hipoteca, penhor, alienação fiduciária, responsabilidade dos sócios, sucessão, com hipoteca, penhor, alienação fiduciária, responsabilidade dos sócios, sucessão,
arrematação, adjudicação, remição etc., questões que o Juiz do Trabalho terá de arrematação, adjudicação, remição etc., questões que o Juiz do Trabalho terá de
resolver, e para as quais é competente para executar as sentenças da Justiça do resolver, e para as quais é competente para executar as sentenças da Justiça do
Trabalho.” (NASCIMENTO, p. 101) Trabalho.” (NASCIMENTO, p. 101)
Como se não bastasse, tal competência executória foi substancialmente Como se não bastasse, tal competência executória foi substancialmente
ampliada, antes mesmo da Reforma do Judiciário, com o advento da Emenda ampliada, antes mesmo da Reforma do Judiciário, com o advento da Emenda
Constitucional nº 20/98, que inseriu o § 3° ao original art. 114, estabelecendo Constitucional nº 20/98, que inseriu o § 3° ao original art. 114, estabelecendo
que “Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições que “Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições
sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das
sentenças que proferir”. sentenças que proferir”.
Revistas as regras de competência material da Justiça do Trabalho antes da Revistas as regras de competência material da Justiça do Trabalho antes da
Reforma do Judiciário, vem à mente a pergunta que não quer calar: e como ficou Reforma do Judiciário, vem à mente a pergunta que não quer calar: e como ficou
depois disso? depois disso?
A Emenda Constitucional nº 45, de 31 de dezembro de 2004, modificou subs- A Emenda Constitucional nº 45, de 31 de dezembro de 2004, modificou subs-
tancialmente as regras básicas de competência da Justiça do Trabalho. tancialmente as regras básicas de competência da Justiça do Trabalho.
Com efeito, destrinchou o prolixo caput do art. 114, “enxugando-o” e deixando Com efeito, destrinchou o prolixo caput do art. 114, “enxugando-o” e deixando
para nove incisos a tarefa de especificar qual é a nova competência trabalhista. para nove incisos a tarefa de especificar qual é a nova competência trabalhista.
É claro que, até mesmo pelo número e extensão dos incisos, não há como se É claro que, até mesmo pelo número e extensão dos incisos, não há como se
negar que a atuação da Justiça do Trabalho foi visivelmente ampliada. negar que a atuação da Justiça do Trabalho foi visivelmente ampliada.
122 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 122 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

É justamente a medida desta ampliação que tem sido discutida e gerado É justamente a medida desta ampliação que tem sido discutida e gerado
acirrados debates. acirrados debates.
Para aqueles mais conservadores, tal modificação não teria vindo em benefício Para aqueles mais conservadores, tal modificação não teria vindo em benefício
da sociedade, pois influenciaria negativamente na celeridade processual, tão pres- da sociedade, pois influenciaria negativamente na celeridade processual, tão pres-
tigiada no processo trabalhista, uma vez que a ampliação da atuação jurisdicional tigiada no processo trabalhista, uma vez que a ampliação da atuação jurisdicional
impediria que os magistrados pudessem se dedicar da mesma forma de outrora impediria que os magistrados pudessem se dedicar da mesma forma de outrora
à solução das lides. à solução das lides.
Nesse mesmo diapasão, ouve-se, com certa freqüência, a afirmação de que Nesse mesmo diapasão, ouve-se, com certa freqüência, a afirmação de que
tal ampliação desvirtuaria o próprio sentido da Justiça do Trabalho, que tradicio- tal ampliação desvirtuaria o próprio sentido da Justiça do Trabalho, que tradicio-
nalmente sempre foi de proteção ao trabalhador subordinado, hipossuficiente de nalmente sempre foi de proteção ao trabalhador subordinado, hipossuficiente de
uma desigual relação jurídica. uma desigual relação jurídica.
Definitivamente, repudiamos tal raciocínio. Definitivamente, repudiamos tal raciocínio.
Com efeito, “já vimos este filme” outras vezes! Com efeito, “já vimos este filme” outras vezes!
De fato, quantas “trombetas do apocalipse” não soaram, propugnando pela De fato, quantas “trombetas do apocalipse” não soaram, propugnando pela
inviabilidade e/ou perda da identidade da Justiça Laboral, quando houve a am- inviabilidade e/ou perda da identidade da Justiça Laboral, quando houve a am-
pliação da competência para execução, de ofício, de contribuições previdenciárias pliação da competência para execução, de ofício, de contribuições previdenciárias
(EC 20/98)? Ou a Lei do Rito Sumaríssimo (Lei 9957/2000)? Ou, até mesmo, o (EC 20/98)? Ou a Lei do Rito Sumaríssimo (Lei 9957/2000)? Ou, até mesmo, o
fim da malfadada representação classista (EC 24/99)? fim da malfadada representação classista (EC 24/99)?
Entusiasmados (mas não deslumbrados), vejamos como ficou a nova redação Entusiasmados (mas não deslumbrados), vejamos como ficou a nova redação
do art. 114 da Constituição Federal: do art. 114 da Constituição Federal:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público
externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios; Distrito Federal e dos Municípios;

II – as ações que envolvam exercício do direito de greve; II – as ações que envolvam exercício do direito de greve;

III – as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e III – as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e
trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores; trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;

IV – os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data , quando o ato ques- IV – os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data , quando o ato ques-
tionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição; tionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;

V – os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado V – os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado
o disposto no art. 102, I, o; o disposto no art. 102, I, o;

VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação
de trabalho; de trabalho;

VII – as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores VII – as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores
pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho; pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 123 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 123

VIII – a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a , e VIII – a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a , e
II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir; II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;
IX – outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. IX – outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
§ 1º. Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros. § 1º. Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.
§ 2º. Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, § 2º. Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem,
é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza
econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as dis- econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as dis-
posições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas posições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas
anteriormente. anteriormente.
§ 3º. Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do inte- § 3º. Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do inte-
resse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, resse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo,
competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito.” competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito.”

Note-se, portanto, que a competência da Justiça do Trabalho foi sensivelmente Note-se, portanto, que a competência da Justiça do Trabalho foi sensivelmente
amplia­da, o que pode ser constatado por um simples cotejo entre a norma anterior amplia­da, o que pode ser constatado por um simples cotejo entre a norma anterior
e a vigente. e a vigente.
Todavia, de lege lata, não houve qualquer menção à competência criminal Todavia, de lege lata, não houve qualquer menção à competência criminal
da Justiça do Trabalho, motivo pelo qual qualquer decisão, neste momento legis- da Justiça do Trabalho, motivo pelo qual qualquer decisão, neste momento legis-
lativo, que reconhe­cesse tal extensão competencial, estaria fadada à declaração lativo, que reconhe­cesse tal extensão competencial, estaria fadada à declaração
de inconstitucionalidade4. de inconstitucionalidade4.

4. “Justiça do Trabalho não pode julgar ações penais 4. “Justiça do Trabalho não pode julgar ações penais
O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que a Justiça do Trabalho não tem competência O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que a Justiça do Trabalho não tem competência
para julgar ações criminais, ainda que sejam decorrentes de relações de trabalho. A decisão foi para julgar ações criminais, ainda que sejam decorrentes de relações de trabalho. A decisão foi
tomada por unanimidade nesta quinta-feira (1/2), primeira sessão do ano do Supremo. A liminar tomada por unanimidade nesta quinta-feira (1/2), primeira sessão do ano do Supremo. A liminar
vale até que o os ministros julguem o mérito da questão. vale até que o os ministros julguem o mérito da questão.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi proposta pela Procuradoria-Geral da República contra A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi proposta pela Procuradoria-Geral da República contra
os incisos I, IV e IX do artigo 114 da Constituição Federal, introduzidos pela Emenda Constitu- os incisos I, IV e IX do artigo 114 da Constituição Federal, introduzidos pela Emenda Constitu-
cional 45/04. Esses dispositivos ampliaram a competência da Justiça do Trabalho, permitindo que cional 45/04. Esses dispositivos ampliaram a competência da Justiça do Trabalho, permitindo que
resolvesse questões criminais. A PGR alega que o texto da reforma do Judiciário aprovado pela resolvesse questões criminais. A PGR alega que o texto da reforma do Judiciário aprovado pela
Câmara dos Deputados foi alterado posteriormente no Senado. Portanto, deveria ter retornado à Câmara dos Deputados foi alterado posteriormente no Senado. Portanto, deveria ter retornado à
Câmara, o que não ocorreu. Câmara, o que não ocorreu.
Segundo a Procuradoria, desde que foi aprovada a EC 45/04, o Ministério Público do Trabalho e Segundo a Procuradoria, desde que foi aprovada a EC 45/04, o Ministério Público do Trabalho e
a Justiça do Trabalho estão praticando atos relativos a matéria penal. a Justiça do Trabalho estão praticando atos relativos a matéria penal.
O relator, ministro Cezar Peluso, afirmou que o inciso IV do artigo 114 da Constituição Federal O relator, ministro Cezar Peluso, afirmou que o inciso IV do artigo 114 da Constituição Federal
determina a competência da Justiça do Trabalho para julgar pedido de Habeas Corpus, Habeas determina a competência da Justiça do Trabalho para julgar pedido de Habeas Corpus, Habeas
Data e Mandados de Segurança, “quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua juris- Data e Mandados de Segurança, “quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua juris-
dição”. dição”.
Ele lembra, porém, que o pedido de HC pode ser usado “contra atos ou omissões praticados no Ele lembra, porém, que o pedido de HC pode ser usado “contra atos ou omissões praticados no
curso de processos de qualquer natureza”, e não apenas em ações penais. Se fosse a intenção da curso de processos de qualquer natureza”, e não apenas em ações penais. Se fosse a intenção da
Constituição outorgar à Justiça Trabalhista competência criminal ampla e inespecífica, não seria Constituição outorgar à Justiça Trabalhista competência criminal ampla e inespecífica, não seria
preciso prever, textualmente, competência para apreciar pedido de HC. preciso prever, textualmente, competência para apreciar pedido de HC.
Para o ministro, a Constituição “circunscreve o objeto inequívoco da competência penal gené- Para o ministro, a Constituição “circunscreve o objeto inequívoco da competência penal gené-
rica”, mediante o uso dos vocábulos “infrações penais” e “crimes”. No entanto, a competência rica”, mediante o uso dos vocábulos “infrações penais” e “crimes”. No entanto, a competência
da Justiça do Trabalho para o processo e julgamento de ações oriundas da relação trabalhista se da Justiça do Trabalho para o processo e julgamento de ações oriundas da relação trabalhista se
124 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 124 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

Isso, porém, não nos impede de continuar refletindo sobre esta ampliação, Isso, porém, não nos impede de continuar refletindo sobre esta ampliação,
como uma política legislativa a ser implementada. como uma política legislativa a ser implementada.
Assim, até mesmo pela busca de uma compreensão sistematizada da matéria, é Assim, até mesmo pela busca de uma compreensão sistematizada da matéria, é
preciso raciocionar de lege ferenda, para obtenção de uma prestação jurisdicional preciso raciocionar de lege ferenda, para obtenção de uma prestação jurisdicional
mais adequada e efetiva. mais adequada e efetiva.
E como isso se daria? E como isso se daria?
É o que veremos no próximo tópico! É o que veremos no próximo tópico!

3. Uma questão de adequação e efetividade 3. Uma questão de adequação e efetividade


Quando se reivindica competência penal para a Justiça Especializada Trabalhis- Quando se reivindica competência penal para a Justiça Especializada Trabalhis-
ta, parece-nos óbvio que tal competência deve estar restrita àqueles crimes que ta, parece-nos óbvio que tal competência deve estar restrita àqueles crimes que
tutelam bens jurídicos relacionados ao mundo do trabalho humano, além daqueles tutelam bens jurídicos relacionados ao mundo do trabalho humano, além daqueles
que dizem respeito à própria administração da Justiça do Trabalho pelas razões que dizem respeito à própria administração da Justiça do Trabalho pelas razões
que adiante se explicitará. que adiante se explicitará.

Em relação aos primeiros, compreendidos como delitos penal-trabalhistas, Em relação aos primeiros, compreendidos como delitos penal-trabalhistas,
adota-se aqui a definição cuja autoria é atribuída ao Juiz do Trabalho José Eduardo adota-se aqui a definição cuja autoria é atribuída ao Juiz do Trabalho José Eduardo
de Rezende Chaves Júnior: “Delito penal-trabalhista é aquele cuja elementar do de Rezende Chaves Júnior: “Delito penal-trabalhista é aquele cuja elementar do
tipo penal seja com­pos­ta pela relação de trabalho (v. g. crimes contra a organi- tipo penal seja com­pos­ta pela relação de trabalho (v. g. crimes contra a organi-
zação do trabalho, redução a condição análoga à de escravo e assédio sexual).” zação do trabalho, redução a condição análoga à de escravo e assédio sexual).”
(RODRIGUES; RODRIGUES, 2005, p. 1). (RODRIGUES; RODRIGUES, 2005, p. 1).

Com efeito, observa-se nestes tipos a presença de elementos normativos de- Com efeito, observa-se nestes tipos a presença de elementos normativos de-
nunciadores do bem jurídico que tutelam. Em todos eles, é o valor trabalho que nunciadores do bem jurídico que tutelam. Em todos eles, é o valor trabalho que
se encontra de alguma forma atacado, ofendido ou violado. se encontra de alguma forma atacado, ofendido ou violado.

Não se poderia cogitar, portanto, de que um crime qualquer, apenas por en- Não se poderia cogitar, portanto, de que um crime qualquer, apenas por en-
volver as partes em um contrato de trabalho ou ser praticado no ambiente laboral, volver as partes em um contrato de trabalho ou ser praticado no ambiente laboral,
pudesse ser considerado um delito penal-trabalhista. Antes, se faz necessário que pudesse ser considerado um delito penal-trabalhista. Antes, se faz necessário que
o tipo encerre elementos específicos relacionados ao trabalho. o tipo encerre elementos específicos relacionados ao trabalho.

restringe apenas às ações destituídas de natureza penal. Ele diz que a aplicação do entendimento restringe apenas às ações destituídas de natureza penal. Ele diz que a aplicação do entendimento
que se pretende alterar violaria frontalmente o princípio do juiz natural, uma vez que, segundo a que se pretende alterar violaria frontalmente o princípio do juiz natural, uma vez que, segundo a
norma constitucional, cabe à Justiça Comum, dentro de suas respectivas competências, julgar e norma constitucional, cabe à Justiça Comum, dentro de suas respectivas competências, julgar e
processar matéria criminal. processar matéria criminal.
Quanto à alegada inconstitucionalidade formal, Peluso argumenta que a alteração no texto da Quanto à alegada inconstitucionalidade formal, Peluso argumenta que a alteração no texto da
EC 45, durante sua tramitação no Legislativo, “em nada alterou o âmbito semântico do texto EC 45, durante sua tramitação no Legislativo, “em nada alterou o âmbito semântico do texto
definitivo”, por isso não haveria a violação à Constituição. definitivo”, por isso não haveria a violação à Constituição.
Assim, por unanimidade, foi deferida a liminar na ADI, com efeitos ex tunc (retroativo), para Assim, por unanimidade, foi deferida a liminar na ADI, com efeitos ex tunc (retroativo), para
atribuir interpretação conforme a Constituição aos incisos I, IV e IX de seu artigo 114, declarando atribuir interpretação conforme a Constituição aos incisos I, IV e IX de seu artigo 114, declarando
que, no âmbito da jurisdição da Justiça do Trabalho, não está incluída competência para processar que, no âmbito da jurisdição da Justiça do Trabalho, não está incluída competência para processar
e julgar ações penais. ADI 3.684” (Revista Consultor Jurídico, 2 de fevereiro de 2007) e julgar ações penais. ADI 3.684” (Revista Consultor Jurídico, 2 de fevereiro de 2007)
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 125 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 125

Veja-se: Veja-se:
Assim, o homicídio ocorrido em razão de desentendimento quanto à execução dos Assim, o homicídio ocorrido em razão de desentendimento quanto à execução dos
meios de trabalho não se desloca para a competência trabalhista, porque o tipo penal meios de trabalho não se desloca para a competência trabalhista, porque o tipo penal
homicídio se aperfeiçoa, do ponto de vista hipotético e formal, independentemente homicídio se aperfeiçoa, do ponto de vista hipotético e formal, independentemente
da noção de relação jurídica de trabalho. A relação de trabalho pode apenas ou não, da noção de relação jurídica de trabalho. A relação de trabalho pode apenas ou não,
dependendo da hipótese, ser circunstância de aumento de pena, na forma do art. dependendo da hipótese, ser circunstância de aumento de pena, na forma do art.
226, II, do Código Penal. 226, II, do Código Penal.
Por outro lado, os crimes contra a organização do trabalho, previstos nos artigos Por outro lado, os crimes contra a organização do trabalho, previstos nos artigos
197 a 207 do Código Penal, bem assim o crime de redução à condição análoga à 197 a 207 do Código Penal, bem assim o crime de redução à condição análoga à
de escravo (Código Penal, art. 149) dependem, na qüididade de sua configuração de escravo (Código Penal, art. 149) dependem, na qüididade de sua configuração
formal, da noção jurídica da relação de trabalho subordinado, ou seja, sem a noção formal, da noção jurídica da relação de trabalho subordinado, ou seja, sem a noção
de subordinação econômica do trabalho, tais crimes sequer se configurariam em tese. de subordinação econômica do trabalho, tais crimes sequer se configurariam em tese.
(...) (...)
O crime de assédio sexual, portanto, previsto pelo artigo 216-A do Código Penal, O crime de assédio sexual, portanto, previsto pelo artigo 216-A do Código Penal,
também é da competência da Justiça do Trabalho, já que a subordinação decorrente também é da competência da Justiça do Trabalho, já que a subordinação decorrente
da relação de trabalho é o elemento específico do tipo. (CHAVES JÚNIOR, 2005, da relação de trabalho é o elemento específico do tipo. (CHAVES JÚNIOR, 2005,
p. 232-233). p. 232-233).

Começa a se vislumbrar, assim, “as bases para a construção metódica e cien- Começa a se vislumbrar, assim, “as bases para a construção metódica e cien-
tífica de um Direito Penal do Trabalho” (FELICIANO, 2005, p. 9). tífica de um Direito Penal do Trabalho” (FELICIANO, 2005, p. 9).
Originado entre as fronteiras do Direito Penal e do Direito do Trabalho, o Originado entre as fronteiras do Direito Penal e do Direito do Trabalho, o
Direito Penal do Trabalho é definido como: Direito Penal do Trabalho é definido como:
“(...) o ramo do Direito Público que tem por objeto um conjunto de normas, prin- “(...) o ramo do Direito Público que tem por objeto um conjunto de normas, prin-
cípios e regras de conviviologia entre os sujeitos da relação de emprego, definindo cípios e regras de conviviologia entre os sujeitos da relação de emprego, definindo
os delitos, as penas, as conseqüências e repercussões vinculares decorrentes do os delitos, as penas, as conseqüências e repercussões vinculares decorrentes do
contrato de trabalho subordinado.” (SANTOS, 1997, p. 324). contrato de trabalho subordinado.” (SANTOS, 1997, p. 324).

Enquanto no Brasil, “à luz do ordenamento vigente, não passa de uma tênue Enquanto no Brasil, “à luz do ordenamento vigente, não passa de uma tênue
aspiração dos aficcionados pelos híbridos desdobramentos da questio iuris penal- aspiração dos aficcionados pelos híbridos desdobramentos da questio iuris penal-
trabalhista” (FELICIANO, 2005, p. 9), este novo ramo do Direito é consagrado no trabalhista” (FELICIANO, 2005, p. 9), este novo ramo do Direito é consagrado no
Código Penal do Trabalho francês, desde 1994, no qual encontram-se punições, Código Penal do Trabalho francês, desde 1994, no qual encontram-se punições,
inclusive para as pessoas morais (ou jurídicas), que podem ir de multas até a sua inclusive para as pessoas morais (ou jurídicas), que podem ir de multas até a sua
dissolução (SANTOS, 1997, p. 1253-1255). dissolução (SANTOS, 1997, p. 1253-1255).
Não se trata aqui de defender a criação de um Código Penal do Trabalho para o Não se trata aqui de defender a criação de um Código Penal do Trabalho para o
Brasil5, nem mesmo de propor a criminalização de ilícitos trabalhistas, até porque, Brasil5, nem mesmo de propor a criminalização de ilícitos trabalhistas, até porque,
de acordo com a Teoria Minimalista do Direito Penal, “para que o sistema penal de acordo com a Teoria Minimalista do Direito Penal, “para que o sistema penal
seja eficiente, é preciso que apenas poucas condutas sejam tidas como crime.” seja eficiente, é preciso que apenas poucas condutas sejam tidas como crime.”
(HIRECHE, 2004, p. 129). (HIRECHE, 2004, p. 129).

5. Ao contrário, entende-se que a reunião dos tipos penais em um só diploma legal garante maior 5. Ao contrário, entende-se que a reunião dos tipos penais em um só diploma legal garante maior
segurança aos jurisdicionados, e para tanto já existe o Código Penal brasileiro. segurança aos jurisdicionados, e para tanto já existe o Código Penal brasileiro.
126 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 126 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

Apenas se pretende, com o levantamento destas questões, argumentar acerca Apenas se pretende, com o levantamento destas questões, argumentar acerca
da adequação de se alocar na Justiça do Trabalho a competência para processar e da adequação de se alocar na Justiça do Trabalho a competência para processar e
julgar ilícitos penal-trabalhistas já existentes (portanto, já ilícitos penais na ordem julgar ilícitos penal-trabalhistas já existentes (portanto, já ilícitos penais na ordem
jurídica vigente). jurídica vigente).
Uma vez que a conduta já está tipificada e contém elementos que a definem Uma vez que a conduta já está tipificada e contém elementos que a definem
como delito penal-trabalhista, não se entende porque o seu processamento não é como delito penal-trabalhista, não se entende porque o seu processamento não é
da competência da Justiça do Trabalho. Veja-se que os crimes militares e eleitorais da competência da Justiça do Trabalho. Veja-se que os crimes militares e eleitorais
são processados nas respectivas Justiças Federais Especializadas. são processados nas respectivas Justiças Federais Especializadas.
Nesta ordem de idéias: Nesta ordem de idéias:
E por que a Justiça do trabalho pretende ter a competência para a matéria penal? Em E por que a Justiça do trabalho pretende ter a competência para a matéria penal? Em
primeiro lugar, a Justiça do Trabalho é tão federal quanto a outra. Depois disso, é de primeiro lugar, a Justiça do Trabalho é tão federal quanto a outra. Depois disso, é de
sua competência cominar a sanção trabalhista e, decorrente da relação de emprego, sua competência cominar a sanção trabalhista e, decorrente da relação de emprego,
a indenização por dano moral, que também é um crime contra a humanidade das a indenização por dano moral, que também é um crime contra a humanidade das
pessoas. (FAUSTO, 2005, p. 2). pessoas. (FAUSTO, 2005, p. 2).
O ideal seria concentrar todas essas demandas na Justiça do Trabalho. Por isso O ideal seria concentrar todas essas demandas na Justiça do Trabalho. Por isso
mesmo, propugno pela competência criminal da Justiça do Trabalho quanto ao mesmo, propugno pela competência criminal da Justiça do Trabalho quanto ao
julgamento de questões correlatas e imediatamente resultantes do ilícito civil-tra- julgamento de questões correlatas e imediatamente resultantes do ilícito civil-tra-
balhista, sobretudo quanto aos crimes contra a organização do trabalho e a prática balhista, sobretudo quanto aos crimes contra a organização do trabalho e a prática
do trabalho escravo, a fim de preservar a unidade da jurisprudência sobre todos os do trabalho escravo, a fim de preservar a unidade da jurisprudência sobre todos os
aspectos jurídicos da questão. (FONSECA, 2005, p. 383). aspectos jurídicos da questão. (FONSECA, 2005, p. 383).

É que, como se observa, o ilícito penal-trabalhista carrega em si uma carga É que, como se observa, o ilícito penal-trabalhista carrega em si uma carga
simultânea de ilícito trabalhista, civil e penal. O crime de redução a condição simultânea de ilícito trabalhista, civil e penal. O crime de redução a condição
análoga à de escravo, por exemplo, enseja o pagamento das verbas trabalhistas; análoga à de escravo, por exemplo, enseja o pagamento das verbas trabalhistas;
a indenização civil por danos materiais e morais; e a aplicação da sanção penal a indenização civil por danos materiais e morais; e a aplicação da sanção penal
correspondente. Se a Justiça do Trabalho é competente para as duas primeiras correspondente. Se a Justiça do Trabalho é competente para as duas primeiras
ações6, seria adequado que conhecesse também das questões penais relacionadas ações6, seria adequado que conhecesse também das questões penais relacionadas
ao tipo. O mesmo se aplica ao crime de assédio sexual, e assim por diante. ao tipo. O mesmo se aplica ao crime de assédio sexual, e assim por diante.
Estas razões de ordem técnica visam a sanear distorções na distribuição de Estas razões de ordem técnica visam a sanear distorções na distribuição de
competências entre as Justiças, racionalizando o sistema. Entretanto, razões de competências entre as Justiças, racionalizando o sistema. Entretanto, razões de
natureza sociológica também impulsionam a necessidade de ampliação da compe- natureza sociológica também impulsionam a necessidade de ampliação da compe-
tência da Justiça do Trabalho para fazer frente aos novos paradigmas das relações tência da Justiça do Trabalho para fazer frente aos novos paradigmas das relações
laborais ultramodernas (MELHADO, 2005, p. 310). laborais ultramodernas (MELHADO, 2005, p. 310).
As várias transformações nas relações contratuais da era globalizada pro- As várias transformações nas relações contratuais da era globalizada pro-
duziram um campo fértil à prática de crimes contra a organização do trabalho, duziram um campo fértil à prática de crimes contra a organização do trabalho,
que podem passar despercebidos diante de uma Justiça não especializada nestas que podem passar despercebidos diante de uma Justiça não especializada nestas
questões sociais. questões sociais.

6. O inciso VI do novel art. 114 da CF, após a EC 45/2004, já transcrito, sepultou a controvérsia 6. O inciso VI do novel art. 114 da CF, após a EC 45/2004, já transcrito, sepultou a controvérsia
quanto a competência da Justiça do Trabalho para ações de indenização por dano moral ou patri- quanto a competência da Justiça do Trabalho para ações de indenização por dano moral ou patri-
monial decorrentes da relação de trabalho. monial decorrentes da relação de trabalho.
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 127 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 127

Além disso, ainda que isso se caracterize como uma mera circunstância de fato, Além disso, ainda que isso se caracterize como uma mera circunstância de fato,
sabe-se que a Justiça do Trabalho está disseminada por todo o território brasileiro, sabe-se que a Justiça do Trabalho está disseminada por todo o território brasileiro,
levando aos mais longínquos municípios a sua prestação jurisdicional, justamente levando aos mais longínquos municípios a sua prestação jurisdicional, justamente
onde a “falta da Lei” permite uma miríade de abusos contra os hipossuficientes onde a “falta da Lei” permite uma miríade de abusos contra os hipossuficientes
da relação capital-trabalho. da relação capital-trabalho.
Isto deixa em desvantagem a Justiça Comum Federal que, com seu reduzido Isto deixa em desvantagem a Justiça Comum Federal que, com seu reduzido
número de Varas, não atende, no aspecto geográfico, a demanda penal-trabalhista número de Varas, não atende, no aspecto geográfico, a demanda penal-trabalhista
que se imagina reprimida nos rincões mais distantes do país. que se imagina reprimida nos rincões mais distantes do país.
A Justiça do Trabalho também se sobrepõe à Justiça Comum dos Estados A Justiça do Trabalho também se sobrepõe à Justiça Comum dos Estados
quanto ao aparelhamento logístico e técnico especializado, além do que, esta quanto ao aparelhamento logístico e técnico especializado, além do que, esta
última encontra-se sufocada por um número absurdo de processos das mais va- última encontra-se sufocada por um número absurdo de processos das mais va-
riadas espécies. riadas espécies.
Neste contexto, a Justiça do Trabalho substituiria com vantagem a atuação da Neste contexto, a Justiça do Trabalho substituiria com vantagem a atuação da
Justiça Comum, Federal ou Estadual, no processamento da ação penal contra os Justiça Comum, Federal ou Estadual, no processamento da ação penal contra os
crimes relacionados ao trabalho, trazendo maior efetividade à jurisdição penal- crimes relacionados ao trabalho, trazendo maior efetividade à jurisdição penal-
trabalhista. trabalhista.

4. O juiz do trabalho e a ação penal 4. O juiz do trabalho e a ação penal


Há quem considere como entrave à alocação de competência penal na Justiça Há quem considere como entrave à alocação de competência penal na Justiça
do Trabalho o fato de os magistrados trabalhistas serem especialistas nas ques- do Trabalho o fato de os magistrados trabalhistas serem especialistas nas ques-
tões laborais e, conforme argumentam, não terem intimidade com o Direito e o tões laborais e, conforme argumentam, não terem intimidade com o Direito e o
Processo Penal. Processo Penal.
Com a devida vênia aos que assim entendem, o juiz do trabalho é, antes de Com a devida vênia aos que assim entendem, o juiz do trabalho é, antes de
tudo, um magistrado como outro qualquer, sendo regra assente no ordenamento tudo, um magistrado como outro qualquer, sendo regra assente no ordenamento
jurídico brasileiro a concepção de que a jurisdição é una. Assim, sua distribuição jurídico brasileiro a concepção de que a jurisdição é una. Assim, sua distribuição
em competências é apenas facilitadora na divisão dos trabalhos de que se incumbe em competências é apenas facilitadora na divisão dos trabalhos de que se incumbe
o Poder Judiciário. o Poder Judiciário.
Para ser juiz, o juiz do trabalho, como todos os outros, forma-se em Direito e Para ser juiz, o juiz do trabalho, como todos os outros, forma-se em Direito e
presta concurso público no qual é avaliado também sobre a matéria penal. presta concurso público no qual é avaliado também sobre a matéria penal.
Claro e lógico que, conforme se ocupa de um ramo especializado do Direito, Claro e lógico que, conforme se ocupa de um ramo especializado do Direito,
torna-se um especialista e, como se sabe, a especialização limita e aprofunda. O torna-se um especialista e, como se sabe, a especialização limita e aprofunda. O
juiz do trabalho é especialista em sua matéria, não resta dúvida. Mas isso não juiz do trabalho é especialista em sua matéria, não resta dúvida. Mas isso não
impede que possa aumentar os limites de sua competência, nem de que lhe sejam impede que possa aumentar os limites de sua competência, nem de que lhe sejam
exigidos, em concursos vindouros, novos e aprofundados conhecimentos. exigidos, em concursos vindouros, novos e aprofundados conhecimentos.
Ora, se o que se propõe é a competência penal-trabalhista, o juiz que dela se Ora, se o que se propõe é a competência penal-trabalhista, o juiz que dela se
ocupar, especializado se tornará também nesta seara. Mais ainda que o juiz penal ocupar, especializado se tornará também nesta seara. Mais ainda que o juiz penal
que julga todo tipo de crime. que julga todo tipo de crime.
128 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 128 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

Se não for esse o entendimento, o que se dirá do juiz de direito de uma cidade Se não for esse o entendimento, o que se dirá do juiz de direito de uma cidade
do interior do Brasil ainda não abrangida pela jurisdição trabalhista? Não será ele o do interior do Brasil ainda não abrangida pela jurisdição trabalhista? Não será ele o
juiz de todas as causas? Se for considerado incompetente para as matérias nas quais juiz de todas as causas? Se for considerado incompetente para as matérias nas quais
não é especialista, não será competente para nada, posto que é um generalista. não é especialista, não será competente para nada, posto que é um generalista.
Justamente por isso, consideram alguns, aí residem maiores probabilidades Justamente por isso, consideram alguns, aí residem maiores probabilidades
de erros. Então volta-se ao começo: especializar o juiz trabalhista em questões de erros. Então volta-se ao começo: especializar o juiz trabalhista em questões
penais relacionadas ao trabalho é, novamente, especializá-lo, tornando-o um penais relacionadas ao trabalho é, novamente, especializá-lo, tornando-o um
expert no assunto. Seria possível, então, haver então juízes do trabalho responsá- expert no assunto. Seria possível, então, haver então juízes do trabalho responsá-
veis por Varas Trabalhistas Criminais, como, hoje, já se propugna, em iniciativas veis por Varas Trabalhistas Criminais, como, hoje, já se propugna, em iniciativas
administrativas, por especializações de juízes do trabalho em varas de execução administrativas, por especializações de juízes do trabalho em varas de execução
ou em varas de acidente do trabalho. ou em varas de acidente do trabalho.
Além do mais, observa-se que os crimes contra a organização do trabalho Além do mais, observa-se que os crimes contra a organização do trabalho
“exigem dose de sociologia do ambiente de trabalho para a aplicação das penas “exigem dose de sociologia do ambiente de trabalho para a aplicação das penas
próprias, campo mais adequado à atuação do juiz do trabalho, já cotidianamente próprias, campo mais adequado à atuação do juiz do trabalho, já cotidianamente
afeto às discussões entre o capital-trabalho” (ZAHLOUTH JÚNIOR, 2005, p. 3). afeto às discussões entre o capital-trabalho” (ZAHLOUTH JÚNIOR, 2005, p. 3).
E em sendo assim, ninguém melhor que o juiz do trabalho para apreciar o caso E em sendo assim, ninguém melhor que o juiz do trabalho para apreciar o caso
concreto envolto num desses tipos penais, dada à sua especialização, sua formação concreto envolto num desses tipos penais, dada à sua especialização, sua formação
voltada ao conhecimento mais íntimo das questões principiológicas e sociológicas voltada ao conhecimento mais íntimo das questões principiológicas e sociológicas
afetas ao labor, sua atuação diária no espaço do ambiente obreiro. afetas ao labor, sua atuação diária no espaço do ambiente obreiro.
Outro não é o posicionamento da Associação Nacional dos Magistrados da Outro não é o posicionamento da Associação Nacional dos Magistrados da
Justiça do trabalho – ANAMATRA: Justiça do trabalho – ANAMATRA:
A ANAMATRA entende, como deliberado em seu Congresso Nacional, na A ANAMATRA entende, como deliberado em seu Congresso Nacional, na
forma da proposta do juiz Guilherme Guimarães Feliciano, da 15ª Região, “que o forma da proposta do juiz Guilherme Guimarães Feliciano, da 15ª Região, “que o
juiz do trabalho está mais afeito aos problemas usuais do obreiro em seu ambiente juiz do trabalho está mais afeito aos problemas usuais do obreiro em seu ambiente
de trabalho, detém, pois, maior especialização em tal seara se comparado ao juiz de trabalho, detém, pois, maior especialização em tal seara se comparado ao juiz
estadual ou ao juiz federal comum. Dessume, pois, que sua formação jurídica e estadual ou ao juiz federal comum. Dessume, pois, que sua formação jurídica e
sociológica o habilita julgar com maior conhecimento de causa as lides penais sociológica o habilita julgar com maior conhecimento de causa as lides penais
relativas à organização do trabalho. O juiz do trabalho, conhecedor dos institutos relativas à organização do trabalho. O juiz do trabalho, conhecedor dos institutos
de Direito do Trabalho e de seus desdobramentos doutrinários e jurisprudenciais, de Direito do Trabalho e de seus desdobramentos doutrinários e jurisprudenciais,
poderá aferir se, no caso concreto, o nomen juris dado a um certo documento poderá aferir se, no caso concreto, o nomen juris dado a um certo documento
consubstancia fraude tendente a frustrar direito trabalhista (art. 203 do Código consubstancia fraude tendente a frustrar direito trabalhista (art. 203 do Código
Penal).”É interessante notar que nos tipos penais no título DOS CRIMES CONTRA Penal).”É interessante notar que nos tipos penais no título DOS CRIMES CONTRA
A ORGANIZAÇÂO DO TRABALHO há, quase sempre, transgressão de norma A ORGANIZAÇÂO DO TRABALHO há, quase sempre, transgressão de norma
contratual trabalhista, matéria do contato diário do juiz do trabalho. (COUTINHO, contratual trabalhista, matéria do contato diário do juiz do trabalho. (COUTINHO,
2005 a, p.7-8). 2005 a, p.7-8).
Há, ainda, os que argumentam que alguns juízes do trabalho oferecem trata- Há, ainda, os que argumentam que alguns juízes do trabalho oferecem trata-
mento paternalista em relação ao empregado, movidos por convicções ideológicas. mento paternalista em relação ao empregado, movidos por convicções ideológicas.
Sobre esta suposta parcialidade dos juízes, pode-se contra-argumentar que são Sobre esta suposta parcialidade dos juízes, pode-se contra-argumentar que são
peculiares ao Direito do Trabalho princípios protetores ao hipossuficiente, os peculiares ao Direito do Trabalho princípios protetores ao hipossuficiente, os
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 129 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 129

quais não poderão ser levados em conta quando a matéria julgada for diversa da quais não poderão ser levados em conta quando a matéria julgada for diversa da
trabalhista. Assim, no julgamento de um crime serão observados os princípios trabalhista. Assim, no julgamento de um crime serão observados os princípios
aplicáveis ao Direito Penal. aplicáveis ao Direito Penal.
Nesta esteira: Nesta esteira:
(...) está na origem da Justiça do Trabalho ser ela integrada por magistrados na- (...) está na origem da Justiça do Trabalho ser ela integrada por magistrados na-
turalmente mais sensíveis às questões sociais, que não raro requerem soluções turalmente mais sensíveis às questões sociais, que não raro requerem soluções
fundadas no juízo de eqüidade, característica que importa na interpretação criativa fundadas no juízo de eqüidade, característica que importa na interpretação criativa
da realidade social, e não a mera aplicação automática e fria das normas jurídicas. da realidade social, e não a mera aplicação automática e fria das normas jurídicas.
Isso não significa, entretanto, que os Juízes do Trabalho seriam levados a proferir Isso não significa, entretanto, que os Juízes do Trabalho seriam levados a proferir
decisões fundadas no seu sentimento pessoal, emotivo e irresponsável. (FONSECA, decisões fundadas no seu sentimento pessoal, emotivo e irresponsável. (FONSECA,
2005, p. 378). 2005, p. 378).

Diante do acima exposto, não resta argumentação que pretenda desqualificar Diante do acima exposto, não resta argumentação que pretenda desqualificar
a atuação do juiz do trabalho na esfera penal-trabalhista. a atuação do juiz do trabalho na esfera penal-trabalhista.

5. Operacionalização da nova competência 5. Operacionalização da nova competência


A mudança do modelo básico da Justiça Laboral para uma configuração mais A mudança do modelo básico da Justiça Laboral para uma configuração mais
abrangente, onde a tônica seja a proteção do valor trabalho humano em qualquer abrangente, onde a tônica seja a proteção do valor trabalho humano em qualquer
perspectiva que se apresente, inclusive na seara criminal, infalivelmente motivará perspectiva que se apresente, inclusive na seara criminal, infalivelmente motivará
alterações diversas, seja na parte do ordenamento jurídico relacionada ao direito alterações diversas, seja na parte do ordenamento jurídico relacionada ao direito
material e processual em tela, seja nas estruturas das instituições envolvidas. material e processual em tela, seja nas estruturas das instituições envolvidas.
Neste tópico, se procurará identificar, ainda que de maneira resumida, as Neste tópico, se procurará identificar, ainda que de maneira resumida, as
primeiras modificações legislativas e institucionais necessárias ao abrigo da nova primeiras modificações legislativas e institucionais necessárias ao abrigo da nova
competência desejada. competência desejada.

5.1. Modificações legislativas necessárias 5.1. Modificações legislativas necessárias


Dilatar-se a competência da Justiça do Trabalho para o processamento e Dilatar-se a competência da Justiça do Trabalho para o processamento e
julgamento de delitos penal-trabalhistas exigiria algumas modificações legisla- julgamento de delitos penal-trabalhistas exigiria algumas modificações legisla-
tivas. Relacionam-se, em seguida, aquelas que despontam logo à primeira vista, tivas. Relacionam-se, em seguida, aquelas que despontam logo à primeira vista,
sabendo-se que o quotidiano da prática penal na esfera trabalhista, poderá suscitar sabendo-se que o quotidiano da prática penal na esfera trabalhista, poderá suscitar
outras inovações. outras inovações.
Partindo-se da Constituição Federal, obviamente através de Emenda Consti- Partindo-se da Constituição Federal, obviamente através de Emenda Consti-
tucional, seriam necessárias, no mínimo, as seguintes alterações: tucional, seriam necessárias, no mínimo, as seguintes alterações:
a) art. 109, inciso IV: para incluir na ressalva a competência da Justiça do a) art. 109, inciso IV: para incluir na ressalva a competência da Justiça do
Trabalho, que assim passaria a processar os crimes contra a administração Trabalho, que assim passaria a processar os crimes contra a administração
da própria Justiça, como acontece com a Justiça Militar e a Eleitoral; da própria Justiça, como acontece com a Justiça Militar e a Eleitoral;
b) art. 109, inciso VI: para excluir da competência da Justiça Federal o b) art. 109, inciso VI: para excluir da competência da Justiça Federal o
julgamento dos crimes contra a organização do trabalho; julgamento dos crimes contra a organização do trabalho;
130 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 130 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

c) art. 114: para incluir um inciso explicitando a competência penal da c) art. 114: para incluir um inciso explicitando a competência penal da
Justiça do Trabalho para os crimes penal-trabalhistas, assim entendidos Justiça do Trabalho para os crimes penal-trabalhistas, assim entendidos
aqueles cujo bem jurídico tutelado esteja relacionado com o valor trabalho aqueles cujo bem jurídico tutelado esteja relacionado com o valor trabalho
(crimes contra a organização do trabalho, redução a condição análoga à (crimes contra a organização do trabalho, redução a condição análoga à
de escravo e assédio sexual). de escravo e assédio sexual).

No âmbito infraconstitucional, entende-se que os diplomas legais a serem No âmbito infraconstitucional, entende-se que os diplomas legais a serem
aplicados diretamente na condução de uma ação penal, quais sejam o Código Penal aplicados diretamente na condução de uma ação penal, quais sejam o Código Penal
e o Código de Processo Penal, não careceriam de modificações, uma vez que os e o Código de Processo Penal, não careceriam de modificações, uma vez que os
delitos em questão e o seu processamento em nada seriam alterados. delitos em questão e o seu processamento em nada seriam alterados.

Contudo, a Lei de execuções penais, Lei n. 7.210/84, passaria também a ser aplica- Contudo, a Lei de execuções penais, Lei n. 7.210/84, passaria também a ser aplica-
da ao condenado pela Justiça do Trabalho, quando recolhido a estabelecimento sujeito da ao condenado pela Justiça do Trabalho, quando recolhido a estabelecimento sujeito
à jurisdição comum, como ocorre com os condenados pela Justiça Eleitoral e à jurisdição comum, como ocorre com os condenados pela Justiça Eleitoral e
Militar. Para tanto, bastaria inserir a Justiça do Trabalho no parágrafo único do Militar. Para tanto, bastaria inserir a Justiça do Trabalho no parágrafo único do
art. 2º da referida Lei. art. 2º da referida Lei.

A Lei Complementar Federal n. 75, de 20 de maio de 1993, Estatuto do A Lei Complementar Federal n. 75, de 20 de maio de 1993, Estatuto do
Ministério Público da União, por sua vez, deveria merecer alteração no seu art. Ministério Público da União, por sua vez, deveria merecer alteração no seu art.
83, para ampliar o rol de atribuições do Ministério Público do Trabalho quanto 83, para ampliar o rol de atribuições do Ministério Público do Trabalho quanto
à ação penal. à ação penal.

5.2. Processo penal x processo do trabalho 5.2. Processo penal x processo do trabalho

Os críticos à proposta aqui apresentada, qual seja a de tornar competente a Os críticos à proposta aqui apresentada, qual seja a de tornar competente a
Justiça Obreira para apreciar os crimes relacionados ao trabalho, levantam questões Justiça Obreira para apreciar os crimes relacionados ao trabalho, levantam questões
aparentemente difíceis de apaziguamento. Dizem, por exemplo, que não há como aparentemente difíceis de apaziguamento. Dizem, por exemplo, que não há como
processar na Justiça do Trabalho uma ação penal porque haveria incompatibilidade processar na Justiça do Trabalho uma ação penal porque haveria incompatibilidade
de ritos, de prazos, de representação e de princípios. de ritos, de prazos, de representação e de princípios.

Com efeito, só aparentemente é que tais problemas se revelam de difícil so- Com efeito, só aparentemente é que tais problemas se revelam de difícil so-
lução. Afastando-se as brumas do preconceito, consegue-se ver com clareza que lução. Afastando-se as brumas do preconceito, consegue-se ver com clareza que
a Justiça do Trabalho, aliás, qualquer Justiça, não tem ritos, prazos ou princípios a Justiça do Trabalho, aliás, qualquer Justiça, não tem ritos, prazos ou princípios
próprios. Estes pertencem ao processo, e divergem conforme ele seja trabalhista, próprios. Estes pertencem ao processo, e divergem conforme ele seja trabalhista,
civil ou penal. civil ou penal.

Quando a Justiça do Trabalho processa uma ação tradicionalmente compre- Quando a Justiça do Trabalho processa uma ação tradicionalmente compre-
endida como “civil” (v. g. procedimentos especiais previstos no CPC), aplica as endida como “civil” (v. g. procedimentos especiais previstos no CPC), aplica as
regras do processo civil. Veja-se: regras do processo civil. Veja-se:
Esse já é o mecanismo utilizado pelos juízes do Estado quando no exercício da Esse já é o mecanismo utilizado pelos juízes do Estado quando no exercício da
jurisdição trabalhista. (...) Ora, é plenamente lógico e racional que eles exerçam a jurisdição trabalhista. (...) Ora, é plenamente lógico e racional que eles exerçam a
jurisdição trabalhista aplicando a CLT e exerçam a jurisdição civil aplicando o CPC. jurisdição trabalhista aplicando a CLT e exerçam a jurisdição civil aplicando o CPC.
Qual a dificuldade? Qual o mistério? Mutatis mutandis o raciocínio é o mesmo. Qual a dificuldade? Qual o mistério? Mutatis mutandis o raciocínio é o mesmo.
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 131 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 131

Haveremos de continuar utilizando a CLT, para os casos regulados por ela e o CPC, Haveremos de continuar utilizando a CLT, para os casos regulados por ela e o CPC,
para as ações cíveis. (MENEZES; BORGES, 2005, p. 42). para as ações cíveis. (MENEZES; BORGES, 2005, p. 42).
Em suma, são os valores inerentes à relação de emprego que justificam o rito da Em suma, são os valores inerentes à relação de emprego que justificam o rito da
ação trabalhista. Incorreto pensar, portanto, que o rito se justifica em face do órgão ação trabalhista. Incorreto pensar, portanto, que o rito se justifica em face do órgão
julgador (porque na JT, deve ser o rito da CLT). Não à toa que perante o juiz de julgador (porque na JT, deve ser o rito da CLT). Não à toa que perante o juiz de
direito, no exercício a jurisdição trabalhista, é adotado o rito da CLT nas reclamações direito, no exercício a jurisdição trabalhista, é adotado o rito da CLT nas reclamações
trabalhistas (...) (MEIRELES, 2005, p. 77). trabalhistas (...) (MEIRELES, 2005, p. 77).
Permitindo-nos um trocadilho, é preciso lembrar que a justiça é do Trabalho e Permitindo-nos um trocadilho, é preciso lembrar que a justiça é do Trabalho e
não da C.L.T.! Se não for superada a mentalidade retrógrada que pretende ser do não da C.L.T.! Se não for superada a mentalidade retrógrada que pretende ser do
Poder Judiciário laboral somente dissídios previstos na Consolidação das Leis do Poder Judiciário laboral somente dissídios previstos na Consolidação das Leis do
Trabalho, dever-se-ia negar, logo, o cabimento de ações de procedimentos especiais Trabalho, dever-se-ia negar, logo, o cabimento de ações de procedimentos especiais
na Justiça do Trabalho, como, por exemplo, a consignação em pagamento, eis que na Justiça do Trabalho, como, por exemplo, a consignação em pagamento, eis que
está prevista somente nos arts. 972/984 do Código Civil e 890/900 do Código de está prevista somente nos arts. 972/984 do Código Civil e 890/900 do Código de
Processo Civil, sem qualquer norma específica no texto consolidado. (PAMPLONA Processo Civil, sem qualquer norma específica no texto consolidado. (PAMPLONA
FILHO, 2005, p. 5). FILHO, 2005, p. 5).

Logo, se a Justiça do Trabalho, como se espera, vier a ter competência para Logo, se a Justiça do Trabalho, como se espera, vier a ter competência para
processar a ação penal, esta obedecerá, como é lógico, aos ritos, prazos e prin- processar a ação penal, esta obedecerá, como é lógico, aos ritos, prazos e prin-
cípios do processo penal, bastando apenas que isto seja explicitado na norma cípios do processo penal, bastando apenas que isto seja explicitado na norma
correspondente. correspondente.
Em relação ao jus postulandi, por exemplo, veja-se: Em relação ao jus postulandi, por exemplo, veja-se:
Releva destacar que o artigo 791 da CLT não estende a capacidade postulatória para Releva destacar que o artigo 791 da CLT não estende a capacidade postulatória para
as partes no âmbito da Justiça do Trabalho, mas apenas ao empregado e ao empre- as partes no âmbito da Justiça do Trabalho, mas apenas ao empregado e ao empre-
gador. Para as demandas estranhas às relações de emprego, não há que se falar em gador. Para as demandas estranhas às relações de emprego, não há que se falar em
incidência desta norma, na medida em que não há empregado ou empregador. incidência desta norma, na medida em que não há empregado ou empregador.
(...) (...)
Como corolário, para as demandas submetidas à nova competência do Judiciário Como corolário, para as demandas submetidas à nova competência do Judiciário
Trabalhista que não estejam embasadas em uma relação de emprego, imprescindível Trabalhista que não estejam embasadas em uma relação de emprego, imprescindível
será a contratação do advogado (...) (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 249). será a contratação do advogado (...) (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 249).

Além do que, na seara penal, o suposto direito de postular da parte seria Além do que, na seara penal, o suposto direito de postular da parte seria
inconstitucional, ex vi do art. 5º, LV da CF, posto que a doutrina considera como inconstitucional, ex vi do art. 5º, LV da CF, posto que a doutrina considera como
meio de ampla defesa, dentre outros, a defesa técnica por advogado (FELICIANO, meio de ampla defesa, dentre outros, a defesa técnica por advogado (FELICIANO,
2005, p. 5-6). 2005, p. 5-6).
Assim, não há que se falar em jus postulandi da parte no processo penal-tra- Assim, não há que se falar em jus postulandi da parte no processo penal-tra-
balhista, à exceção do habeas corpus ou quando a parte for habilitada, nos termos balhista, à exceção do habeas corpus ou quando a parte for habilitada, nos termos
do art. 263 do CPP. do art. 263 do CPP.
No tocante ao princípio da proteção ao trabalhador, mais conhecido sob a No tocante ao princípio da proteção ao trabalhador, mais conhecido sob a
forma in dubio pro operario (MARTINS, 2001, p. 76), conforme a lógica acima forma in dubio pro operario (MARTINS, 2001, p. 76), conforme a lógica acima
estabelecida, por óbvio também não poderá ser aplicado ao processo penal-traba- estabelecida, por óbvio também não poderá ser aplicado ao processo penal-traba-
lhista, haja vista tratar-se de um princípio do Direito do Trabalho. lhista, haja vista tratar-se de um princípio do Direito do Trabalho.
132 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 132 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

Contudo, não se pode ignorar que, naturalmente, problemas de ordem ope- Contudo, não se pode ignorar que, naturalmente, problemas de ordem ope-
racional surgirão. Seria imaturo querer sublimá-los na ânsia de fazer-se impor racional surgirão. Seria imaturo querer sublimá-los na ânsia de fazer-se impor
a tese almejada. Também é verdade que não se tem resposta para tudo e que as a tese almejada. Também é verdade que não se tem resposta para tudo e que as
soluções sobrevirão aos problemas, porque sempre foi assim. O que não se deve soluções sobrevirão aos problemas, porque sempre foi assim. O que não se deve
– acredita-se! – é deixar de propor o novo por apego ao velho, notadamente quan- – acredita-se! – é deixar de propor o novo por apego ao velho, notadamente quan-
do o novo acena com melhores possibilidades. Pensar o contrário seria repetir a do o novo acena com melhores possibilidades. Pensar o contrário seria repetir a
postura criticada poeticamente por Caetano, de “que Narciso acha feio o que não postura criticada poeticamente por Caetano, de “que Narciso acha feio o que não
é espelho; e a mente apavora o que ainda não é mesmo velho; nada do que não é espelho; e a mente apavora o que ainda não é mesmo velho; nada do que não
era antes quando não somos mutantes”... era antes quando não somos mutantes”...

5.3. Aumento de competência e estrutura da Justiça do Trabalho 5.3. Aumento de competência e estrutura da Justiça do Trabalho
O reconhecimento de que a Justiça do Trabalho, como todos os outros ramos O reconhecimento de que a Justiça do Trabalho, como todos os outros ramos
do Judiciário nacional, deve ter competência para a matéria penal relacionada ao do Judiciário nacional, deve ter competência para a matéria penal relacionada ao
campo de sua atuação, além de corrigir uma distorção técnica e proporcionar aos campo de sua atuação, além de corrigir uma distorção técnica e proporcionar aos
jurisdicionados uma melhor assistência nestas questões, também promoverá um jurisdicionados uma melhor assistência nestas questões, também promoverá um
desafogamento das outras Justiças, recalibrando o sistema com mais eficiência e desafogamento das outras Justiças, recalibrando o sistema com mais eficiência e
produtividade. Confira-se: produtividade. Confira-se:
(...) a redistribuição de competência, a par da racionalidade sociológico-política, também (...) a redistribuição de competência, a par da racionalidade sociológico-política, também
confere racionalidade técnico-econômica ao sistema judiciário nacional, confluindo, confere racionalidade técnico-econômica ao sistema judiciário nacional, confluindo,
assim, no sentido dos anseios nacionais de modernização do Poder Judiciário, na assim, no sentido dos anseios nacionais de modernização do Poder Judiciário, na
medida em que será determinante de maior celeridade, eficiência e efetividade da medida em que será determinante de maior celeridade, eficiência e efetividade da
prestação jurisdicional. (COUTINHO, 2005 b, p. 147). prestação jurisdicional. (COUTINHO, 2005 b, p. 147).

Entretanto, esta reorganização judiciária implicará, por certo, num aumento Entretanto, esta reorganização judiciária implicará, por certo, num aumento
de demanda para a Justiça Obreira, o que, aliás, já vem ocorrendo a partir da EC de demanda para a Justiça Obreira, o que, aliás, já vem ocorrendo a partir da EC
45/2004. Daí decorre a necessidade de se promoverem os meios adequados para 45/2004. Daí decorre a necessidade de se promoverem os meios adequados para
a absorção das novas ações doravante endereçadas ao juízo trabalhista. a absorção das novas ações doravante endereçadas ao juízo trabalhista.
É evidente que a ampliação da competência da Justiça do Trabalho implicará É evidente que a ampliação da competência da Justiça do Trabalho implicará
em aumento de processos, por conseguinte em necessidade de expansão de seus em aumento de processos, por conseguinte em necessidade de expansão de seus
órgãos, inclusive com a instituição de câmaras ou turmas ou varas especializadas órgãos, inclusive com a instituição de câmaras ou turmas ou varas especializadas
para o julgamento de questões diversificadas, em todos os graus de jurisdição. O para o julgamento de questões diversificadas, em todos os graus de jurisdição. O
alcance de qualquer finalidade exige os meios capazes de implementar a medida. alcance de qualquer finalidade exige os meios capazes de implementar a medida.
(FONSECA, 2005, p. 390). (FONSECA, 2005, p. 390).

Especificamente em relação às ações penal-trabalhistas, entende-se que devam Especificamente em relação às ações penal-trabalhistas, entende-se que devam
ser processadas em varas especializadas para este fim, criadas por lei de organização ser processadas em varas especializadas para este fim, criadas por lei de organização
judiciária federal ou provimentos dos próprios Tribunais Regionais do Trabalho. judiciária federal ou provimentos dos próprios Tribunais Regionais do Trabalho.
Para elas, “se habilitarão os juízes – titulares e substitutos – interessados em de- Para elas, “se habilitarão os juízes – titulares e substitutos – interessados em de-
sempenhar efetivamente a nova competência.” (FELICIANO, 2005, p. 4). sempenhar efetivamente a nova competência.” (FELICIANO, 2005, p. 4).
Considera-se, entretanto, que a simples competência penal desejada não Considera-se, entretanto, que a simples competência penal desejada não
causaria, por si só, grande alteração na estrutura da Justiça Trabalhista, além causaria, por si só, grande alteração na estrutura da Justiça Trabalhista, além
das Varas Criminais do Trabalho e seus juízes especializados. Observe-se que das Varas Criminais do Trabalho e seus juízes especializados. Observe-se que
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 133 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 133

os limites do Direito Penal-Trabalhista encerram-se, como se disse, nos crimes os limites do Direito Penal-Trabalhista encerram-se, como se disse, nos crimes
contra a organização do trabalho, na redução a condição análoga à de escravo e contra a organização do trabalho, na redução a condição análoga à de escravo e
no assédio sexual, além dos crimes contra a administração da Justiça do Trabalho. no assédio sexual, além dos crimes contra a administração da Justiça do Trabalho.
Certamente, maior demanda já foi deflagrada com a reforma implementada pela Certamente, maior demanda já foi deflagrada com a reforma implementada pela
EC 45/2004 e não se viu o apocalipse por causa disso... EC 45/2004 e não se viu o apocalipse por causa disso...
De toda sorte, não se entenderá qualquer aumento de demanda sem o devido De toda sorte, não se entenderá qualquer aumento de demanda sem o devido
acompanhamento da necessária estrutura material e funcional. acompanhamento da necessária estrutura material e funcional.
“Tudo deverá ser devidamente adaptado e preparado, inclusive os próprios magis- “Tudo deverá ser devidamente adaptado e preparado, inclusive os próprios magis-
trados. Tudo faz parte da nova Justiça do Trabalho. São os novos tempos. Não há trados. Tudo faz parte da nova Justiça do Trabalho. São os novos tempos. Não há
como fugir da realidade. Somente recepcioná-la.” (MENEZES; BORGES, 2005, como fugir da realidade. Somente recepcioná-la.” (MENEZES; BORGES, 2005,
p. 43). p. 43).

5.4. O Ministério Público do Trabalho e a Defensoria da União 5.4. O Ministério Público do Trabalho e a Defensoria da União
Como órgão do Ministério Público da União, o Ministério Público do Traba- Como órgão do Ministério Público da União, o Ministério Público do Traba-
lho tem sua atuação regulada pela Lei Complementar Federal n. 75/93 – Estatuto lho tem sua atuação regulada pela Lei Complementar Federal n. 75/93 – Estatuto
do Ministério Público da União. Lá, no art. 83, pode-se observar que, dentre as do Ministério Público da União. Lá, no art. 83, pode-se observar que, dentre as
atribuições deste ramo do Ministério Público, não se encontra a propositura da atribuições deste ramo do Ministério Público, não se encontra a propositura da
ação penal, haja vista que, para atuar perante a Justiça do Trabalho, como hoje ação penal, haja vista que, para atuar perante a Justiça do Trabalho, como hoje
instituída, não há espaço para tanto. instituída, não há espaço para tanto.
Assim, ao detectar ilícitos penais relacionados ao trabalho, o Ministério Pú- Assim, ao detectar ilícitos penais relacionados ao trabalho, o Ministério Pú-
blico do Trabalho não pode atuar de pronto, mas apenas informar ao Ministério blico do Trabalho não pode atuar de pronto, mas apenas informar ao Ministério
Público Federal ou ao dos Estados, conforme o crime seja da esfera de competência Público Federal ou ao dos Estados, conforme o crime seja da esfera de competência
da Justiça Comum Federal ou Estadual, para a competente ação penal. Veja-se: da Justiça Comum Federal ou Estadual, para a competente ação penal. Veja-se:
É esse ramo do Parquet quem, por força da própria natureza de sua atividade, É esse ramo do Parquet quem, por força da própria natureza de sua atividade,
quotidianamente identifica as violações de ordem penal relacionadas ao mundo quotidianamente identifica as violações de ordem penal relacionadas ao mundo
do trabalho, sendo contraproducente que a titularidade das correspondentes ações do trabalho, sendo contraproducente que a titularidade das correspondentes ações
penais tenha que ser repassada a outros ramos do Ministério Público, extremamente penais tenha que ser repassada a outros ramos do Ministério Público, extremamente
assoberbados com uma enorme pletora de figuras criminais, muitas delas de enorme assoberbados com uma enorme pletora de figuras criminais, muitas delas de enorme
potencial ofensivo e complexidade. (RODRIGUES; RODRIGUES, 2005, p. 4). potencial ofensivo e complexidade. (RODRIGUES; RODRIGUES, 2005, p. 4).

Certamente, a competência penal da Justiça do Trabalho viria corrigir mais Certamente, a competência penal da Justiça do Trabalho viria corrigir mais
este equívoco, criando paralelamente a atribuição penal do Ministério Público do este equívoco, criando paralelamente a atribuição penal do Ministério Público do
Trabalho, para, por exemplo, a promoção de ação penal pública mediante denúncia Trabalho, para, por exemplo, a promoção de ação penal pública mediante denúncia
(FELICIANO, 2005, p. 8). (FELICIANO, 2005, p. 8).
Neste sentido: Neste sentido:
A proposta, ao visar trazer tal competência para a órbita da Justiça do Trabalho, A proposta, ao visar trazer tal competência para a órbita da Justiça do Trabalho,
pretende ainda dinamizar a atuação do Ministério Público do Trabalho, igualmente, pretende ainda dinamizar a atuação do Ministério Público do Trabalho, igualmente,
único segmento do Parquet nacional a quem é negada atribuição na esfera penal. único segmento do Parquet nacional a quem é negada atribuição na esfera penal.
Esse ramo Ministerial, com toda certeza, conseguirá agir com maior rapidez na pro- Esse ramo Ministerial, com toda certeza, conseguirá agir com maior rapidez na pro-
positura da ação penal e atuará mais eficazmente no sentido de se obter julgamentos positura da ação penal e atuará mais eficazmente no sentido de se obter julgamentos
134 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 134 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

mais céleres e eficazes pelos Juízes e Tribunais mais afinados com as controvérsias mais céleres e eficazes pelos Juízes e Tribunais mais afinados com as controvérsias
relacionadas ao ambiente do trabalho ou tendentes à sua perturbação: os Juízes e relacionadas ao ambiente do trabalho ou tendentes à sua perturbação: os Juízes e
Tribunais do Trabalho. (RODRIGUES; RODRIGUES, 2005, p. 3). Tribunais do Trabalho. (RODRIGUES; RODRIGUES, 2005, p. 3).

Relativamente à defesa do acusado, com base nos art. 5º, LXXIV e 134 da Relativamente à defesa do acusado, com base nos art. 5º, LXXIV e 134 da
Constituição Federal e art. 261 e parágrafo único do Código de Processo Penal, a Constituição Federal e art. 261 e parágrafo único do Código de Processo Penal, a
Defensoria Pública está encarregada de promover a orientação jurídica e a defesa, Defensoria Pública está encarregada de promover a orientação jurídica e a defesa,
em todos os graus, dos necessitados. em todos os graus, dos necessitados.
Ante a perspectiva do cometimento de competência penal à Justiça do Tra- Ante a perspectiva do cometimento de competência penal à Justiça do Tra-
balho, a Defensoria Pública da União continuará a desenvolver o seu mister, no balho, a Defensoria Pública da União continuará a desenvolver o seu mister, no
tocante à ação penal, agora perante o juízo trabalhista, sempre que seus serviços tocante à ação penal, agora perante o juízo trabalhista, sempre que seus serviços
sejam requisitados. sejam requisitados.

6. Considerações finais 6. Considerações finais


A Justiça do Trabalho, já reconhecida pela habitual celeridade na condução A Justiça do Trabalho, já reconhecida pela habitual celeridade na condução
dos atos que atendem às demandas a ela submetidas, recebeu recentemente do dos atos que atendem às demandas a ela submetidas, recebeu recentemente do
legislador constituinte derivado uma ampliação de sua competência, nos termos legislador constituinte derivado uma ampliação de sua competência, nos termos
do novo art. 114 da Constituição Federal, introduzido com a Emenda Constitu- do novo art. 114 da Constituição Federal, introduzido com a Emenda Constitu-
cional 45/2004. cional 45/2004.
Entretanto, tal ampliação não alcançou, ainda, o estágio desejado. Entretanto, tal ampliação não alcançou, ainda, o estágio desejado.
Em outra frente, o combate permanece. Continua em tramitação na Câmara Em outra frente, o combate permanece. Continua em tramitação na Câmara
dos Deputados a fase seguinte da PEC 358/2005 (PEC paralela da reforma do Ju- dos Deputados a fase seguinte da PEC 358/2005 (PEC paralela da reforma do Ju-
diciário), pela qual se busca corrigir tal distorção, atribuindo, formal e finalmente, diciário), pela qual se busca corrigir tal distorção, atribuindo, formal e finalmente,
a competência penal à Justiça do Trabalho. a competência penal à Justiça do Trabalho.
Por todas as razões de ordem técnica aqui deduzidas, não temos a menor dú- Por todas as razões de ordem técnica aqui deduzidas, não temos a menor dú-
vida que, até do ponto de vista prático, dotar a Justiça do Trabalho de competência vida que, até do ponto de vista prático, dotar a Justiça do Trabalho de competência
para julgar crimes relacionados ao trabalho é assegurar às partes o conhecimento para julgar crimes relacionados ao trabalho é assegurar às partes o conhecimento
prévio do único e exclusivo órgão judiciário a que se deve recorrer em questões prévio do único e exclusivo órgão judiciário a que se deve recorrer em questões
oriundas das relações de trabalho, mesmo que de índole criminal. Assim o é nas oriundas das relações de trabalho, mesmo que de índole criminal. Assim o é nas
Justiças Especializadas Militar e Eleitoral. Como está em Mt. 22: 21, “...dai pois Justiças Especializadas Militar e Eleitoral. Como está em Mt. 22: 21, “...dai pois
a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”
Estando a Justiça do Trabalho mais capilarizada pelo interior do Brasil que a Estando a Justiça do Trabalho mais capilarizada pelo interior do Brasil que a
Justiça Federal, e mais aparelhada e bem servida de juízes e serventuários que a Justiça Federal, e mais aparelhada e bem servida de juízes e serventuários que a
Justiça Comum dos Estados, certamente o grau de satisfação com a sua prestação Justiça Comum dos Estados, certamente o grau de satisfação com a sua prestação
jurisdicional no julgamento dos crimes a ela relacionados fomentaria o acesso à jurisdicional no julgamento dos crimes a ela relacionados fomentaria o acesso à
justiça e em muito contribuiria para a paz social. justiça e em muito contribuiria para a paz social.

7. Referências 7. Referências

ANGHER, A. J. Código penal. 4 ed. São Paulo: Rideel, 2004. ANGHER, A. J. Código penal. 4 ed. São Paulo: Rideel, 2004.
Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 135 Justiça do Trabalho e competência penal: De lege lata e de lege ferenda 135

CHAVES JÚNIOR, J. E. de R. A emenda constitucional n. 45/2004 e a competência penal CHAVES JÚNIOR, J. E. de R. A emenda constitucional n. 45/2004 e a competência penal
da justiça do trabalho. In: COUTINHO, G. F.; FAVA, M. N. (Coord.) Nova competência da justiça do trabalho. In: COUTINHO, G. F.; FAVA, M. N. (Coord.) Nova competência
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136 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 136 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

MENEZES, C. A. C. de; BORGES, L. D. Algumas questões relativas à nova competência MENEZES, C. A. C. de; BORGES, L. D. Algumas questões relativas à nova competência
material da Justiça do Trabalho. In: COUTINHO, G. F.; FAVA, M. N. (Coord.) Nova material da Justiça do Trabalho. In: COUTINHO, G. F.; FAVA, M. N. (Coord.) Nova
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______. Interpretando o art. 114 da Constituição Federal de 1988. In: Revista Ciência Ju- ______. Interpretando o art. 114 da Constituição Federal de 1988. In: Revista Ciência Ju-
rídica do Trabalho. ano I, n. 04, abril/1998, Belo Horizonte, Nova Alvorada Edições rídica do Trabalho. ano I, n. 04, abril/1998, Belo Horizonte, Nova Alvorada Edições
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SANTOS, A. J. dos Direito Penal do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997. SANTOS, A. J. dos Direito Penal do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997.
ZAHLOUTH JÚNIOR, C. Competência da Justiça do Trabalho: os juízes discutem e o ZAHLOUTH JÚNIOR, C. Competência da Justiça do Trabalho: os juízes discutem e o
trabalhador sofre nos rincões. A triste sina do povo brasileiro. Disponível em: < http:// trabalhador sofre nos rincões. A triste sina do povo brasileiro. Disponível em: < http://
www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3708 >. Acesso em: 13 mar. 2005. www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3708 >. Acesso em: 13 mar. 2005.
Capítulo IX Capítulo IX
O Mercosul e seus projetos O Mercosul e seus projetos
institucionais institucionais

Saulo José Casali Bahia* Saulo José Casali Bahia*

Sumário • 1. As razões para a integração econômica e política na América do Sul – 2. O modelo Sumário • 1. As razões para a integração econômica e política na América do Sul – 2. O modelo
institucional do Mercosul: entre o interestatismo e o supranacionalismo – 3. Histórico de criação e institucional do Mercosul: entre o interestatismo e o supranacionalismo – 3. Histórico de criação e
quadro institucional do Mercosul – 4. O Mercosul Invisível – 5. O Futuro do Mercosul quadro institucional do Mercosul – 4. O Mercosul Invisível – 5. O Futuro do Mercosul

1. As razões para a integração econômica e política na 1. As razões para a integração econômica e política na
América do Sul América do Sul
Como se costuma falar quando se escreve sobre blocos de integração eco- Como se costuma falar quando se escreve sobre blocos de integração eco-
nômica e política, atualmente a economia internacional se articula em torno de nômica e política, atualmente a economia internacional se articula em torno de
trocas comerciais não mais apenas entre Estados, mas também envolvendo grupos trocas comerciais não mais apenas entre Estados, mas também envolvendo grupos
de Estados. de Estados.
Trata-se de uma ação que se tornou necessária aos Estados dantes isolados, Trata-se de uma ação que se tornou necessária aos Estados dantes isolados,
por diversas razões, e tanto não é diferente quando se pensa na América do Sul. por diversas razões, e tanto não é diferente quando se pensa na América do Sul.
Inicialmente, pode-se apontar que a negociação em bloco (grupo de Estados) Inicialmente, pode-se apontar que a negociação em bloco (grupo de Estados)
permite aos Estados então reunidos resistir aos outros blocos ou aos grandes permite aos Estados então reunidos resistir aos outros blocos ou aos grandes
Estados (Japão, USA). A afirmação de interesses na esfera internacional de Estados (Japão, USA). A afirmação de interesses na esfera internacional de
modo organizado e coletivo costuma aumentar o poder de barganha dos Estados modo organizado e coletivo costuma aumentar o poder de barganha dos Estados
agrupados. agrupados.
A formação do bloco econômico também permite otimizar a própria economia A formação do bloco econômico também permite otimizar a própria economia
de cada um dos Estados envolvidos. Neste último caso, ao se associarem em entes de cada um dos Estados envolvidos. Neste último caso, ao se associarem em entes
de integração, os Estados garantem o aumento do mercado para as suas indústrias, de integração, os Estados garantem o aumento do mercado para as suas indústrias,
o que permite aumentar o ganho em termos absolutos e fazer nascer o ganho em o que permite aumentar o ganho em termos absolutos e fazer nascer o ganho em
escala, impróprio diante de pequenos grupos consumidores. escala, impróprio diante de pequenos grupos consumidores.
Este não é o único fenômeno produzido. A concorrência leva ao estabeleci- Este não é o único fenômeno produzido. A concorrência leva ao estabeleci-
mento de especializações produtivas e de prestígio às soluções tecnologicamente mento de especializações produtivas e de prestígio às soluções tecnologicamente
mais rentáveis, eliminando o desperdício. A busca de ganho tecnológico passa a mais rentáveis, eliminando o desperdício. A busca de ganho tecnológico passa a
ser uma constante. ser uma constante.

* Juiz Federal (SJBA) e Professor Adjunto (UFBA). Doutor em Direito (PUC-SP). * Juiz Federal (SJBA) e Professor Adjunto (UFBA). Doutor em Direito (PUC-SP).
138 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 138 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

Por outro lado, o processo de integração exige que sejam adotadas medidas Por outro lado, o processo de integração exige que sejam adotadas medidas
que podem ser reputadas como infraestruturais, já que a circulação física e jurídica que podem ser reputadas como infraestruturais, já que a circulação física e jurídica
de bens, de pessoas e de capitais, além do livre estabelecimento e da livre con- de bens, de pessoas e de capitais, além do livre estabelecimento e da livre con-
corrência, dependem de caminhos fisica e juridicamente desimpedidos. A criação corrência, dependem de caminhos fisica e juridicamente desimpedidos. A criação
de infra-estrutura física (portos, aeroportos, estradas, ferrovias etc) e jurídicas de infra-estrutura física (portos, aeroportos, estradas, ferrovias etc) e jurídicas
(harmonização legislativa, criação de cortes supranacionais etc) determina um (harmonização legislativa, criação de cortes supranacionais etc) determina um
inegável efeito sinérgico para o desenvolvimento. inegável efeito sinérgico para o desenvolvimento.

Por outro lado, o crescimento do volume de comércio é condição para a geração Por outro lado, o crescimento do volume de comércio é condição para a geração
de riquezas que terminam por permitir a sua redistribuição, desde que os Estados de riquezas que terminam por permitir a sua redistribuição, desde que os Estados
ado­-tem políticas nesse sentido. Parece óbvio que se não há o que repartir, nada ado­-tem políticas nesse sentido. Parece óbvio que se não há o que repartir, nada
será repartido, e pouco poderá o Estado atuar no sentido de promover a justiça e será repartido, e pouco poderá o Estado atuar no sentido de promover a justiça e
o desenvolvimento s­ ociais. o desenvolvimento s­ ociais.

Quanto à autoridade supranacional, que por vezes surge do modelo de integração Quanto à autoridade supranacional, que por vezes surge do modelo de integração
adotado (e sua adoção no Mercosul, no futuro, nunca foi descartada), sua atuação pode adotado (e sua adoção no Mercosul, no futuro, nunca foi descartada), sua atuação pode
permitir vencer certas dificuldades locais, já que por vezes Estados isolados resistem permitir vencer certas dificuldades locais, já que por vezes Estados isolados resistem
em concretizar medidas protetivas ao meio ambiente, ou insistem em desenvolver po­ em concretizar medidas protetivas ao meio ambiente, ou insistem em desenvolver po­
líticas internas que inviabilizam o alcance de melhores condições de vida à população líticas internas que inviabilizam o alcance de melhores condições de vida à população
ou a grupos da população, muitas vezes em razão da manutenção de estruturas ou a grupos da população, muitas vezes em razão da manutenção de estruturas
sociais ar­caicas e de preconceitos ainda renitentes. A uniformização de tratamento sociais ar­caicas e de preconceitos ainda renitentes. A uniformização de tratamento
exige a consolidação de standarts mínimos a ser implementados em cada país, exige a consolidação de standarts mínimos a ser implementados em cada país,
nas mais diferentes áreas, o que faz com que todos os Estados que se mantinham nas mais diferentes áreas, o que faz com que todos os Estados que se mantinham
abaixo dos níveis exigidos devam evoluir para a adoção de novos e superiores abaixo dos níveis exigidos devam evoluir para a adoção de novos e superiores
níveis de intervenção ou de pres­tação. níveis de intervenção ou de pres­tação.

Inegavelmente, processos de integração podem também se tornar inegáveis Inegavelmente, processos de integração podem também se tornar inegáveis
instrumentos para a construção da paz na esfera interna e internacional, ao exigirem, instrumentos para a construção da paz na esfera interna e internacional, ao exigirem,
para o seu desenvolvimento, a convivência e o diálogo como modo de solução de para o seu desenvolvimento, a convivência e o diálogo como modo de solução de
lítigios e para a adoção de decisões. lítigios e para a adoção de decisões.

É óbvio que até aqui somente foram expostas consequências positivas da É óbvio que até aqui somente foram expostas consequências positivas da
integração. Há uma série de consequências negativas, que vão desde a desinte- integração. Há uma série de consequências negativas, que vão desde a desinte-
gração de culturas e o risco de inversões econômicas mal-sucedidas, até a centra- gração de culturas e o risco de inversões econômicas mal-sucedidas, até a centra-
lização agressiva e o surgimento de deficit democrático no processo de tomada lização agressiva e o surgimento de deficit democrático no processo de tomada
de decisões. de decisões.

De qualquer modo, com ou sem percalços e problemas, a integração eco- De qualquer modo, com ou sem percalços e problemas, a integração eco-
nômica e política se tornou um processo inevitável e arrebatador, diante do qual nômica e política se tornou um processo inevitável e arrebatador, diante do qual
nada mais pode ser feito senão produzir retardos em seu ritmo ou correções no nada mais pode ser feito senão produzir retardos em seu ritmo ou correções no
caminho que deve tomar. caminho que deve tomar.

Dentro deste processo de surgimento de blocos econômicos eclode o Mercosul Dentro deste processo de surgimento de blocos econômicos eclode o Mercosul
(Mercado Comum do Sul, reunindo Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), pois a (Mercado Comum do Sul, reunindo Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), pois a
O Mercosul e seus Projetos Institucionais 139 O Mercosul e seus Projetos Institucionais 139

integração entre países parece ainda reclamar o preço da geografia e da similitude integração entre países parece ainda reclamar o preço da geografia e da similitude
de aspectos que a proximidade física promove. de aspectos que a proximidade física promove.

De um comércio de pouco mais de cinco bilhões de dólares em 1991, o Mer- De um comércio de pouco mais de cinco bilhões de dólares em 1991, o Mer-
cosul passou a girar 20 bilhões entre seus membros, em 1998. Com a prevista cosul passou a girar 20 bilhões entre seus membros, em 1998. Com a prevista
entrada da Venezuela, primeira expansão do Mercosul desde a sua criação há 15 entrada da Venezuela, primeira expansão do Mercosul desde a sua criação há 15
anos, e que ainda depende da aprovação parlamentar de alguns dos membros, o anos, e que ainda depende da aprovação parlamentar de alguns dos membros, o
bloco tem agora mais de 250 milhões de habitantes, um PIB de mais de 1 trilhão bloco tem agora mais de 250 milhões de habitantes, um PIB de mais de 1 trilhão
de dólares e um comércio global superior a 320 bilhões de dólares. de dólares e um comércio global superior a 320 bilhões de dólares.

2. O modelo institucional do Mercosul: entre o interes- 2. O modelo institucional do Mercosul: entre o interes-
tatismo e o supranacionalismo tatismo e o supranacionalismo
Desde o início, segue o Mercosul um modelo de integração pouco arrojado. Ao Desde o início, segue o Mercosul um modelo de integração pouco arrojado. Ao
invés de seguir o modelo supranacional (exemplo europeu atual), preferiu seguir invés de seguir o modelo supranacional (exemplo europeu atual), preferiu seguir
o modelo interestatal. Quando o momento previsto no tratado de criação (Tratado o modelo interestatal. Quando o momento previsto no tratado de criação (Tratado
de Assunção, 1991) chegou, ao final do período de transição, para a definição de Assunção, 1991) chegou, ao final do período de transição, para a definição
da estrutura definitiva do Mercosul, não se fez com o Protocolo de Ouro Preto da estrutura definitiva do Mercosul, não se fez com o Protocolo de Ouro Preto
(dezembro, 1994), o rompimento com o modelo interestatal. Neste último tratado (dezembro, 1994), o rompimento com o modelo interestatal. Neste último tratado
continuou a ser dito que “as decisões dos orgãos do Mercosul devem ser adotadas continuou a ser dito que “as decisões dos orgãos do Mercosul devem ser adotadas
pelo consentimento e com a presença de todos os estados membros”. pelo consentimento e com a presença de todos os estados membros”.
O processo de adoção das decisões segue os seguintes passos, de acordo com O processo de adoção das decisões segue os seguintes passos, de acordo com
o artigo 40 do Protocolo de Ouro Preto: o artigo 40 do Protocolo de Ouro Preto:
a) aprovada a norma, os Estados-Partes devem adotar as medidas necessárias a) aprovada a norma, os Estados-Partes devem adotar as medidas necessárias
para a sua incorporação ao ordenamento jurídico interno (por emendas para a sua incorporação ao ordenamento jurídico interno (por emendas
constitucionais, leis, decretos etc); constitucionais, leis, decretos etc);
b) as medidas adotadas são então comunicadas à Secretaria Administrativa b) as medidas adotadas são então comunicadas à Secretaria Administrativa
do Mercosul; do Mercosul;
c) após esta Secretaria haver recebido as comunicações sobre as medidas c) após esta Secretaria haver recebido as comunicações sobre as medidas
adotadas pelos Estados-Partes, é feita a comunicação dessa circunstância adotadas pelos Estados-Partes, é feita a comunicação dessa circunstância
a todos os mesmos; a todos os mesmos;
d) decorridos trinta dias desta última comunicação (pela SAM), a norma d) decorridos trinta dias desta última comunicação (pela SAM), a norma
entra em vigor simultaneamente para todos os Estados-Partes, que ainda entra em vigor simultaneamente para todos os Estados-Partes, que ainda
têm o dever de comunicar internamente o início de vigência da norma. têm o dever de comunicar internamente o início de vigência da norma.
O Governo brasileiro tem destacado que a condução do Mercosul segue os O Governo brasileiro tem destacado que a condução do Mercosul segue os
princípios do pragmatismo, do realismo e do gradualismo, e com isto evitado a princípios do pragmatismo, do realismo e do gradualismo, e com isto evitado a
adoção do modelo supranacional. adoção do modelo supranacional.
Há vários motivos para isto, podendo-se destacar as assimetrias existentes entre Há vários motivos para isto, podendo-se destacar as assimetrias existentes entre
os Estados-Partes (pois há inegáveis diferenças de ritmos e de graus de abertura os Estados-Partes (pois há inegáveis diferenças de ritmos e de graus de abertura
140 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 140 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

comercial), as divergências de política interna, a agilidade que o modelo inter- comercial), as divergências de política interna, a agilidade que o modelo inter-
governamental pode proporcionar, não se desprezando que, em um momento governamental pode proporcionar, não se desprezando que, em um momento
posterior, com a convergência estabelecida em um patamar satisfatório, possa posterior, com a convergência estabelecida em um patamar satisfatório, possa
haver a adoção do supranacionalismo. haver a adoção do supranacionalismo.
Trata-se, para o governo brasileiro, de atuar com prudência, fazendo prevalecer, Trata-se, para o governo brasileiro, de atuar com prudência, fazendo prevalecer,
com a necessidade do consenso, que a posição brasileira jamais possa ser submetida com a necessidade do consenso, que a posição brasileira jamais possa ser submetida
à vontade exclusiva dos demais membros. Tem-se, pois, de alguma forma, a garan- à vontade exclusiva dos demais membros. Tem-se, pois, de alguma forma, a garan-
tia da posição brasileira no processo, consetânea ao seu peso econômico e político tia da posição brasileira no processo, consetânea ao seu peso econômico e político
na região, e que poderia ficar prejudicada com a fórmula de decisão por maioria. na região, e que poderia ficar prejudicada com a fórmula de decisão por maioria.
Sem contar com a Venezuela, o Brasil possui 82% do PIB do Mercosul e 79% da Sem contar com a Venezuela, o Brasil possui 82% do PIB do Mercosul e 79% da
sua população. E lembram muitos diplomatas brasileiros que, em um primeiro sua população. E lembram muitos diplomatas brasileiros que, em um primeiro
momento, a própria União Européia não quis arriscar tanto em termos de figurino momento, a própria União Européia não quis arriscar tanto em termos de figurino
institucional (ao adotar inicialmente o modelo BENELUX), falando-se, com menção institucional (ao adotar inicialmente o modelo BENELUX), falando-se, com menção
a um provébio popular, que “nunca se deve colocar o carro adiante dos bois”. a um provébio popular, que “nunca se deve colocar o carro adiante dos bois”.
É óbvio que estes argumentos sofrem ferozes críticas por todos aqueles que É óbvio que estes argumentos sofrem ferozes críticas por todos aqueles que
prefeririam ver a adoção imediata do modelo supranacional nas instituições prefeririam ver a adoção imediata do modelo supranacional nas instituições
Mercosulinas. Mercosulinas.
Com respeito às assimetrias, lembram que apenas a intervenção de um órgão Com respeito às assimetrias, lembram que apenas a intervenção de um órgão
central poderia corrigi-las, órgão este que exerça certo poder derivado de parcelas central poderia corrigi-las, órgão este que exerça certo poder derivado de parcelas
de soberania transferidas pelos Estados-Partes. de soberania transferidas pelos Estados-Partes.
As divergências de política interna, na medida em que não sejam unificados As divergências de política interna, na medida em que não sejam unificados
os órgãos detentores do poder político, viria causando uma verdadeira paralisia os órgãos detentores do poder político, viria causando uma verdadeira paralisia
no processo de convergência necessário, o que retiraria qualquer pretensão de agi- no processo de convergência necessário, o que retiraria qualquer pretensão de agi-
lidade e de sucesso no processo integrativo. O modelo interestatal, assim, apenas lidade e de sucesso no processo integrativo. O modelo interestatal, assim, apenas
estaria a promover um absoluto impasse ao processo de criação do Mercado Comum. estaria a promover um absoluto impasse ao processo de criação do Mercado Comum.
Forma-se, como muitos apontam, cada dia mais um contencioso dissimulado, Forma-se, como muitos apontam, cada dia mais um contencioso dissimulado,
pois o incremento das trocas comerciais e da circulação de pessoas, progressos que pois o incremento das trocas comerciais e da circulação de pessoas, progressos que
de alguma forma vem ocorrendo, gera toda uma sorte de litígios que não encontram de alguma forma vem ocorrendo, gera toda uma sorte de litígios que não encontram
nas instituições existentes um ambiente propício para a solução rápida e segura, nas instituições existentes um ambiente propício para a solução rápida e segura,
com livre e fácil acesso aos particulares interessados. As soluções, muitas vezes, com livre e fácil acesso aos particulares interessados. As soluções, muitas vezes,
dependem como que da boa vontade e da proteção diplomática do Estado-Parte. dependem como que da boa vontade e da proteção diplomática do Estado-Parte.
Antes de falar sobre o futuro do Mercosul diante desta situação, cumpre tratar Antes de falar sobre o futuro do Mercosul diante desta situação, cumpre tratar
das origens do Mercosul e do seu quadro institucional atual. das origens do Mercosul e do seu quadro institucional atual.

3. Histórico de criação e quadro institucional do Mer- 3. Histórico de criação e quadro institucional do Mer-
cosul cosul
Não deve haver dúvidas de que o Mercosul tem sua origem nas relações Não deve haver dúvidas de que o Mercosul tem sua origem nas relações
envolvendo o Brasil e a Argentina, que desde 1940 tencionaram criar uma União envolvendo o Brasil e a Argentina, que desde 1940 tencionaram criar uma União
Aduaneira entre eles. Aduaneira entre eles.
O Mercosul e seus Projetos Institucionais 141 O Mercosul e seus Projetos Institucionais 141

Esta história das relações bilaterais entre Brasil e Argentina foi pontuada Esta história das relações bilaterais entre Brasil e Argentina foi pontuada
pela atividade da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), criada pela atividade da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), criada
em 1948, pela ONU, dentro da linha de cooperação econômica para o desenvol- em 1948, pela ONU, dentro da linha de cooperação econômica para o desenvol-
vimento, com o objetivo declarado de obter melhorias para o Estado através do vimento, com o objetivo declarado de obter melhorias para o Estado através do
aumento do mercado. aumento do mercado.
Alguns anos depois (1960), a iniciativa dos próprios países da Região levou Alguns anos depois (1960), a iniciativa dos próprios países da Região levou
à criação da ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio), pelo à criação da ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio), pelo
Tratado de Montevideo. Em verdade, a ALALC foi um projeto da CEPAL, e a Tratado de Montevideo. Em verdade, a ALALC foi um projeto da CEPAL, e a
estratégia possuída foi a do multilateralismo. Esta estratégia efetivamente resul- estratégia possuída foi a do multilateralismo. Esta estratégia efetivamente resul-
tou no incremento de 100% nas trocas comerciais entre 1962-1967, e envolveu a tou no incremento de 100% nas trocas comerciais entre 1962-1967, e envolveu a
pretensão da criação de um Mercado Comum regional em 12 anos, com imediata pretensão da criação de um Mercado Comum regional em 12 anos, com imediata
disseminação de um sistema de preferências comerciais. disseminação de um sistema de preferências comerciais.
Os anos 1960-1980 assistiram, todavia, à desastrosa política de substituição de Os anos 1960-1980 assistiram, todavia, à desastrosa política de substituição de
exportações, com um retorno ao protecionismo. Na ALALC, as listas comuns exportações, com um retorno ao protecionismo. Na ALALC, as listas comuns
foram paralisadas, e houve un recuo das trocas comerciais no interior da zona. foram paralisadas, e houve un recuo das trocas comerciais no interior da zona.
O multilateralismo exigia um preço ou condições que os Estados não estavam O multilateralismo exigia um preço ou condições que os Estados não estavam
preparados a pagar ou a satisfazer, diante da heterogeneidade e do peso econômico preparados a pagar ou a satisfazer, diante da heterogeneidade e do peso econômico
dos mesmos, ocorrendo uma agravação dos desequilíbrios comerciais. Inobstante dos mesmos, ocorrendo uma agravação dos desequilíbrios comerciais. Inobstante
os sinais pessimistas no ar, em 1967 foi realizada a Conferência de Punta del Este, os sinais pessimistas no ar, em 1967 foi realizada a Conferência de Punta del Este,
onde a idéia do Mercado Comum Latino Americano foi pensada para 1985. onde a idéia do Mercado Comum Latino Americano foi pensada para 1985.
Antes disto, o realismo e o pragmatismo fizeram com que as pretensões Antes disto, o realismo e o pragmatismo fizeram com que as pretensões
exageradas da ALALC fossem deixadas de lado com a sua substituição pela exageradas da ALALC fossem deixadas de lado com a sua substituição pela
ALADI (Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração), em ALADI (Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração), em
1980, que promoveu o abandono de marcos tão rígidos, e substituiu a estratégia 1980, que promoveu o abandono de marcos tão rígidos, e substituiu a estratégia
do multilateralismo, que exigia certa harmonia faticamente improvável, mesmo do multilateralismo, que exigia certa harmonia faticamente improvável, mesmo
inexistente, pelo bilateralismo. Foram pensadas zonas de preferências tarifárias, inexistente, pelo bilateralismo. Foram pensadas zonas de preferências tarifárias,
revisado os limites da estratégia de substituição das exportações, e imaginado um revisado os limites da estratégia de substituição das exportações, e imaginado um
forte intervencionismo estatal. forte intervencionismo estatal.
A estratégia bilateralista resultou em vários frutos no cone sul-americano, já A estratégia bilateralista resultou em vários frutos no cone sul-americano, já
que esforços bilaterais podiam ser muito mais aprofundados e exitosos que aqueles que esforços bilaterais podiam ser muito mais aprofundados e exitosos que aqueles
qe demandassem o acordo de maior número de países. qe demandassem o acordo de maior número de países.
Dai, em 1985, foi celebrada a Convenção Argentino/Uruguaia de Comércio Dai, em 1985, foi celebrada a Convenção Argentino/Uruguaia de Comércio
Exterior (CAUCE). Em 1988 o PCE foi assinado entre o Brasil e a Argentina, e Exterior (CAUCE). Em 1988 o PCE foi assinado entre o Brasil e a Argentina, e
apenas entre estes dois Estados foi imaginada a criação de um Mercado Comum apenas entre estes dois Estados foi imaginada a criação de um Mercado Comum
em 10 anos. Esta idéia foi reforçada em 1990 com a assinatura do ACE Brasil/Ar- em 10 anos. Esta idéia foi reforçada em 1990 com a assinatura do ACE Brasil/
gentina. Houve a antecipação do Mercado Comum em 4 anos. Uruguai e Paraguai, Argentina. Houve a antecipação do Mercado Comum em 4 anos. Uruguai e Para-
países cujas economias possuem forte ligação ou dependência da brasileira e da guai, países cujas economias possuem forte ligação ou dependência da brasileira
argentina, apressaram-se em participar do processo, e o resultado disto foi a as- e da argentina, apressaram-se em participar do processo, e o resultado disto foi a
sinatura, em 1991, do Tratado de Assunção, que previu a criação de um Mercado assinatura, em 1991, do Tratado de Assunção, que previu a criação de um Mercado
142 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 142 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

Comum até 31/12/94. De 1991 a 1994, haveria, portanto, um período de transição, Comum até 31/12/94. De 1991 a 1994, haveria, portanto, um período de transição,
com instituições provisórias, que seriam substituidas e reformuladas com a adoção com instituições provisórias, que seriam substituidas e reformuladas com a adoção
da estrutura institucional definitiva em 1994. da estrutura institucional definitiva em 1994.
Para o período de transição, foi previsto um PLC – Programa de Libera- Para o período de transição, foi previsto um PLC – Programa de Libera-
lisação Comercial, reduções tarifárias progressivas, lineares e automáticas, lisação Comercial, reduções tarifárias progressivas, lineares e automáticas,
eliminação das barreiras não tarifárias (com cronograma sucessivamente adiado eliminação das barreiras não tarifárias (com cronograma sucessivamente adiado
para 1996, 1998, 2002, 2007 etc), uma TEC – Tarifa Externa Comum, a adoção para 1996, 1998, 2002, 2007 etc), uma TEC – Tarifa Externa Comum, a adoção
de uma política exterior comum com repsito a terceiros estados, a coordenação de uma política exterior comum com repsito a terceiros estados, a coordenação
das políticas econômicas e comerciais dos estados membros, para assegurar as das políticas econômicas e comerciais dos estados membros, para assegurar as
condições adequadas em matéria de concorrência, acordos setoriais, e políticas condições adequadas em matéria de concorrência, acordos setoriais, e políticas
macro-econômicas comuns. macro-econômicas comuns.
Para o período de transição, foram criados os seguintes órgãos: Para o período de transição, foram criados os seguintes órgãos:
a) CMC (Conselho do Mercado Comum), órgão superior de gestão política a) CMC (Conselho do Mercado Comum), órgão superior de gestão política
(formado pelos Ministros des Relações Exteriores e de Economia), que (formado pelos Ministros des Relações Exteriores e de Economia), que
deve se reunir pelo menos uma vez por ano com os presidentes dos países, deve se reunir pelo menos uma vez por ano com os presidentes dos países,
sendo a presidência semestral e rotativa; sendo a presidência semestral e rotativa;
b) GMC – Grupo Mercado Comum, com 4 membros titulares e 4 membros b) GMC – Grupo Mercado Comum, com 4 membros titulares e 4 membros
suplentes por país. O GMC pode ter grupos e sub-grupos de trabalho; suplentes por país. O GMC pode ter grupos e sub-grupos de trabalho;
c) CPC (Comissão Parlamentar Conjunta), com hoje 64 parlamentares (in- c) CPC (Comissão Parlamentar Conjunta), com hoje 64 parlamentares (in-
dicados pelos parlamentos dos respectivos países, para um período de 2 dicados pelos parlamentos dos respectivos países, para um período de 2
anos, sendo 16 por cada Estado); anos, sendo 16 por cada Estado);
d) Secretariado Administrativo, com funções burocráticas. d) Secretariado Administrativo, com funções burocráticas.
Como o Tratado de Assunção previu um modo de solução de controvérsias Como o Tratado de Assunção previu um modo de solução de controvérsias
bastante precário e transitório, houve a adoção, em 1991, do Protocolo de Brasilia, bastante precário e transitório, houve a adoção, em 1991, do Protocolo de Brasilia,
que foi substituído em julho de 1992 pelo Protocolo de Las Leñas. que foi substituído em julho de 1992 pelo Protocolo de Las Leñas.
As dificuldades do processo de implementação do Mercosul foram evidentes As dificuldades do processo de implementação do Mercosul foram evidentes
durante o encontro de janeiro de 1994 (Cúpula de Colônia, Uruguai). durante o encontro de janeiro de 1994 (Cúpula de Colônia, Uruguai).
Uma nova fase marcada por bastante expectativa segue de janeiro de 1994 Uma nova fase marcada por bastante expectativa segue de janeiro de 1994
(Cúpula de Colônia) até 31.12.94 (com o Protocolo de Ouro Preto e o início da (Cúpula de Colônia) até 31.12.94 (com o Protocolo de Ouro Preto e o início da
união aduaneira). Nesta fase, viram-se as primeiras dificuldades para o avanço da união aduaneira). Nesta fase, viram-se as primeiras dificuldades para o avanço da
integração econômica, pois os setores produtivos que se sentiam ameaçados, no integração econômica, pois os setores produtivos que se sentiam ameaçados, no
curto prazo, passaram a pressionar os seus governos por uma desaceleração das ne- curto prazo, passaram a pressionar os seus governos por uma desaceleração das ne-
gociações e do programa de desgravação tarifária ou da liberalização comercial. gociações e do programa de desgravação tarifária ou da liberalização comercial.
Todavia, a Cúpula de Ouro Preto representou uma profunda frustração a Todavia, a Cúpula de Ouro Preto representou uma profunda frustração a
todos aqueles que imaginaram poder o Mercosul, naquele momento, adotar uma todos aqueles que imaginaram poder o Mercosul, naquele momento, adotar uma
estrutura institucional mais arrojada, sobretudo com a adoção de meios suprana- estrutura institucional mais arrojada, sobretudo com a adoção de meios suprana-
cionais de decisão. cionais de decisão.
O Mercosul e seus Projetos Institucionais 143 O Mercosul e seus Projetos Institucionais 143

Naquele momento, os avanços foram bastante limitados, e mantidos os órgãos Naquele momento, os avanços foram bastante limitados, e mantidos os órgãos
criados. criados.
Foi criada, entretanto, a Comissão de Comércio, com a função de assistir o Foi criada, entretanto, a Comissão de Comércio, com a função de assistir o
GMC na aplicação dos principais instrumentos de política comercial comum. GMC na aplicação dos principais instrumentos de política comercial comum.
Também foi criado o Forum Consultivo Econômico e Social, com função con- Também foi criado o Forum Consultivo Econômico e Social, com função con-
sultiva, e o Conselho de Cooperação Macro-Econômica (órgão não-formal). A sultiva, e o Conselho de Cooperação Macro-Econômica (órgão não-formal). A
partir de 1994, o Mercosul ficou indiscutivelmente investido de personalidade de partir de 1994, o Mercosul ficou indiscutivelmente investido de personalidade de
direito internacional. direito internacional.
Uma quarta fase foi aberta em 01.01.95 (a União Aduaneira) até fevereiro Uma quarta fase foi aberta em 01.01.95 (a União Aduaneira) até fevereiro
de 2002 (com a assinatura do Protocolo de Olivos), que cria uma Corte Perma- de 2002 (com a assinatura do Protocolo de Olivos), que cria uma Corte Perma-
nente de Revisão (instalada em agosto de 2004), que também pode ser acessada nente de Revisão (instalada em agosto de 2004), que também pode ser acessada
diretamente. diretamente.
Também foi criada a Corte Administrativa do Mercosul, em razão do cresci- Também foi criada a Corte Administrativa do Mercosul, em razão do cresci-
mento das atividades administrativas do órgão e o Forum Consultivo das Muni- mento das atividades administrativas do órgão e o Forum Consultivo das Muni-
cipalidades e Provincias do Mercosul. cipalidades e Provincias do Mercosul.
A partir daí, uma quinta fase pode ser identificada desde fevereiro de 2002 A partir daí, uma quinta fase pode ser identificada desde fevereiro de 2002
(Protocolo de Olivos) até a adoção do Programa de Trabalho 2004-2006. (Protocolo de Olivos) até a adoção do Programa de Trabalho 2004-2006.
Em resumo, o Mercosul se compõe, hoje, dos seguintes órgãos: Em resumo, o Mercosul se compõe, hoje, dos seguintes órgãos:
a) CMC (Conselho do Mercado Comum), que vincula as Reuniões de Mi- a) CMC (Conselho do Mercado Comum), que vincula as Reuniões de Mi-
nistros (14 áreas), Grupos de Alto Nível, de Trabalho e ad hoc (7 áreas), nistros (14 áreas), Grupos de Alto Nível, de Trabalho e ad hoc (7 áreas),
o Foro de Consulta e Concertação Política, a Comissão de Representantes o Foro de Consulta e Concertação Política, a Comissão de Representantes
Permanentes do Mercosul, a ­Reunião de Altas autoridades de Direitos Permanentes do Mercosul, a ­Reunião de Altas autoridades de Direitos
Humanos do Mercosul e o Forum Consultivo das Municipalidades e Humanos do Mercosul e o Forum Consultivo das Municipalidades e
Províncias do Mercosul; Províncias do Mercosul;
b) GMC – Grupo Mercado Comum, que vincula Subgrupos de trabalho b) GMC – Grupo Mercado Comum, que vincula Subgrupos de trabalho
(15 áreas), Reuniões especializadas (14 áreas), Grupos ad hoc (9 áreas), (15 áreas), Reuniões especializadas (14 áreas), Grupos ad hoc (9 áreas),
Grupos (de Aperfeiçoamento do Sistema de Soluções de Controvérsias, Grupos (de Aperfeiçoamento do Sistema de Soluções de Controvérsias,
de Serviços, de Contratações Públicas e de Assuntos Orçamentários), de Serviços, de Contratações Públicas e de Assuntos Orçamentários),
Comitês (de Cooperação Técnica, de Diretores de Aduana, de Sanidade Comitês (de Cooperação Técnica, de Diretores de Aduana, de Sanidade
Animal e Vegetal, e Automotivo), a Reunião Técnica de Incorporação da Animal e Vegetal, e Automotivo), a Reunião Técnica de Incorporação da
Normativa Mercosul e a Comissão Socio-laboral do Mercosul; Normativa Mercosul e a Comissão Socio-laboral do Mercosul;
c) Comissão de Comércio do Mercosul, que vincula Comitês Técnicos (7 c) Comissão de Comércio do Mercosul, que vincula Comitês Técnicos (7
áreas); áreas);
d) CPC (Comissão Parlamentar Conjunta); d) CPC (Comissão Parlamentar Conjunta);
e) Foro Consultivo Econômico e Social; e) Foro Consultivo Econômico e Social;
f) Corte Administrativa do Mercosul; f) Corte Administrativa do Mercosul;
144 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 144 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

g) Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul; g) Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul;


h) Centro Mercosul de Promoção do Estado de Direito; h) Centro Mercosul de Promoção do Estado de Direito;
i) Secretaria Administrativa. i) Secretaria Administrativa.

4. O Mercosul Invisível 4. O Mercosul Invisível


O Mercosul é considerado, hoje, uma união aduaneira imperfeita, uma zona O Mercosul é considerado, hoje, uma união aduaneira imperfeita, uma zona
de livre comércio ainda não instalada totalmente e um mercado comum ainda em de livre comércio ainda não instalada totalmente e um mercado comum ainda em
projeto. Para qualquer um que se dedique a analisar o funcionamento e a realidade projeto. Para qualquer um que se dedique a analisar o funcionamento e a realidade
deste bloco econômico, pode-se verificar a presença de um elevado e pretensioso deste bloco econômico, pode-se verificar a presença de um elevado e pretensioso
objetivo previsto, que por não haver sido executado tal como imaginado, faz con- objetivo previsto, que por não haver sido executado tal como imaginado, faz con-
viver o otimismo daqueles que imaginam ver o objetivo alcançado um dia, com viver o otimismo daqueles que imaginam ver o objetivo alcançado um dia, com
o ceticismo ou pessimismo dos que apenas têm a frustração de ver a imaginação o ceticismo ou pessimismo dos que apenas têm a frustração de ver a imaginação
superado a realidade. superado a realidade.
O esforço da construção do Mercosul, assim, divide a todos entre céticos e O esforço da construção do Mercosul, assim, divide a todos entre céticos e
entu­siastas. entu­siastas.
Entretanto, alguns avanços foram até até agora inegáveis. Entretanto, alguns avanços foram até até agora inegáveis.
A tarifa aduaneira zero se aplica a 95% do comércio intra-regional, e a TEC A tarifa aduaneira zero se aplica a 95% do comércio intra-regional, e a TEC
cobre 85% das atividades. cobre 85% das atividades.
Mas pouco além disto foi conseguido. Mas pouco além disto foi conseguido.
A harmonização legislativa, ainda inteiramente dependente do esforço in- A harmonização legislativa, ainda inteiramente dependente do esforço in-
dividual de cada Estado membro, evoluiu muito pouco. O fato da instituciona- dividual de cada Estado membro, evoluiu muito pouco. O fato da instituciona-
lização do Mercosul haver ocorrido apenas no plano intergovernamental e não lização do Mercosul haver ocorrido apenas no plano intergovernamental e não
supranacional faz do Mercosul um ente de existência meramente diplomática. supranacional faz do Mercosul um ente de existência meramente diplomática.
Inexiste controle político direto (deputados Mercosulinos eleitos diretamente), Inexiste controle político direto (deputados Mercosulinos eleitos diretamente),
faltando no processo, por completo, a participação da sociedade civil. O Estado é faltando no processo, por completo, a participação da sociedade civil. O Estado é
o único interlocutor, e a todo tempo é lembrada a importância de manter intocada o único interlocutor, e a todo tempo é lembrada a importância de manter intocada
a soberania de cada parte. a soberania de cada parte.
O modo intergovernamental de tomada de decisões faz com que inexista, no O modo intergovernamental de tomada de decisões faz com que inexista, no
dia a dia, a presença do Mercosul na vida dos habitantes. Por vezes, certas medidas dia a dia, a presença do Mercosul na vida dos habitantes. Por vezes, certas medidas
decididas no âmbito do Conselho do Mercado Comum, por deverem ser intro- decididas no âmbito do Conselho do Mercado Comum, por deverem ser intro-
duzidas pelo Legislativo e/ou Executivo de cada país, são sentidas e conhecidas duzidas pelo Legislativo e/ou Executivo de cada país, são sentidas e conhecidas
como medidas nacionais, e não comunitárias. Por exemplo, a alteração do Código como medidas nacionais, e não comunitárias. Por exemplo, a alteração do Código
de Defesa do Consumidor da Argentina tende a ser vista como uma alteração le- de Defesa do Consumidor da Argentina tende a ser vista como uma alteração le-
gislativa decidida pelo Parlamento argentino, buscando atualizar a normatização gislativa decidida pelo Parlamento argentino, buscando atualizar a normatização
neste campo jurídico, e não como um esforço de harmonização legislativa iniciado neste campo jurídico, e não como um esforço de harmonização legislativa iniciado
por resolução do CMC, buscando aproximar o direito consumidor argentino do por resolução do CMC, buscando aproximar o direito consumidor argentino do
brasileiro, atualizado alguns anos antes. brasileiro, atualizado alguns anos antes.
O Mercosul e seus Projetos Institucionais 145 O Mercosul e seus Projetos Institucionais 145

A ausência de órgãos supranacionais impede, por exemplo, que normas A ausência de órgãos supranacionais impede, por exemplo, que normas
consumeiristas possam advir diretamente do Parlamento ou do Executivo Mer- consumeiristas possam advir diretamente do Parlamento ou do Executivo Mer-
cosulinos. A ação é indireta, e o Mercosul se torna invisível aos olhos de todos, o cosulinos. A ação é indireta, e o Mercosul se torna invisível aos olhos de todos, o
que aumenta ainda mais a sensação de inação e de inexistência entre os habitantes que aumenta ainda mais a sensação de inação e de inexistência entre os habitantes
dos países-membros, e ainda que a atuação do CMC seja extenuante e finde por dos países-membros, e ainda que a atuação do CMC seja extenuante e finde por
lograr sucesso com a adoção de medidas internas por cada país, justamente o fato lograr sucesso com a adoção de medidas internas por cada país, justamente o fato
de apenas se perceber a adoção de medidas nacionais, quase sempre sem qualquer de apenas se perceber a adoção de medidas nacionais, quase sempre sem qualquer
referência à origem e à iniciativa das mudanças, fornece combustível para os referência à origem e à iniciativa das mudanças, fornece combustível para os
céticos. O Mercosul continua invisível, embora atuante. céticos. O Mercosul continua invisível, embora atuante.

O Judiciário Mercosulino inexiste como órgão supranacional, exceto como O Judiciário Mercosulino inexiste como órgão supranacional, exceto como
arbitragem, instituto muito mais acessível a Estados do que a indivíduos e em- arbitragem, instituto muito mais acessível a Estados do que a indivíduos e em-
presas, pelos custos e modo de funcionamento. presas, pelos custos e modo de funcionamento.

Pesa enormemente contra a efetiva concreção da integração a existência Pesa enormemente contra a efetiva concreção da integração a existência
de meca­nismos de salvaguarda em grande número (Mecanismos de Adaptação de meca­nismos de salvaguarda em grande número (Mecanismos de Adaptação
Competitiva), onde um ramo da indústria propõe uma reclamação formal, e uma Competitiva), onde um ramo da indústria propõe uma reclamação formal, e uma
Comissão Bilateral ouve setores privados realizando uma investigação, afastando Comissão Bilateral ouve setores privados realizando uma investigação, afastando
a aplicação da regra comunitária. a aplicação da regra comunitária.

5. O Futuro do Mercosul 5. O Futuro do Mercosul

No plano econômico e comercial, fala-se em resolver e aperfeiçoar problemas No plano econômico e comercial, fala-se em resolver e aperfeiçoar problemas
aduaneiros e da Tarifa Externa Comum, assim como das Zonas Especiais (Manaus, aduaneiros e da Tarifa Externa Comum, assim como das Zonas Especiais (Manaus,
Terra do Fogo), da Concorrência, da integração dos setores produtivos (seguir o Terra do Fogo), da Concorrência, da integração dos setores produtivos (seguir o
exemplo dos móveis e da madeira), os custos de cooperação com o Paraguai, a exemplo dos móveis e da madeira), os custos de cooperação com o Paraguai, a
aliaça com empresas, a criação de fundos estruturais, a promoção conjunta das aliaça com empresas, a criação de fundos estruturais, a promoção conjunta das
exportações (exemplo do México e RSA), a realização de missões comerciais exportações (exemplo do México e RSA), a realização de missões comerciais
conjuntas, a adoção des normas técnicas, a revisão de incentivos, a harmonização conjuntas, a adoção des normas técnicas, a revisão de incentivos, a harmonização
tributária. Busca-se devenvolver e fortificar o Grupo de Monitoramento Macro- tributária. Busca-se devenvolver e fortificar o Grupo de Monitoramento Macro-
econômico (GMM), a criação de um Mercado Regional de Bolsas de Valores, econômico (GMM), a criação de um Mercado Regional de Bolsas de Valores,
fomentar a política agrícola, a Criação de um Grupo ad hoc de biotecnologia, fomentar a política agrícola, a Criação de um Grupo ad hoc de biotecnologia,
estimular a criação de empresas e implementar o Protocolo de Licitações Públicas estimular a criação de empresas e implementar o Protocolo de Licitações Públicas
do Mercosul. Recentemente, vem sendo feitos importantes trabalhos em torno da do Mercosul. Recentemente, vem sendo feitos importantes trabalhos em torno da
implementação da primeira etapa da eliminação da dupla cobrança da tarifa externa implementação da primeira etapa da eliminação da dupla cobrança da tarifa externa
comum, asim como a definição dos lineamentos do Código Aduaneiro e das tarefas comum, asim como a definição dos lineamentos do Código Aduaneiro e das tarefas
relacionadas com o mecanismo de distribuição da renda aduaneira. relacionadas com o mecanismo de distribuição da renda aduaneira.
No plano social, os objetivos correspondem a ampliar a participação da so- No plano social, os objetivos correspondem a ampliar a participação da so-
ciedade civil, a discussão de temas sociais, a promoção cultural e desportiva do ciedade civil, a discussão de temas sociais, a promoção cultural e desportiva do
Mercosul e a implementação de um Forum de Consultas e de Concertação Política. Mercosul e a implementação de um Forum de Consultas e de Concertação Política.
Busca-se aumentar a cooperação judiciária, a consolidação das normas de circu- Busca-se aumentar a cooperação judiciária, a consolidação das normas de circu-
lação de empregados, a avaliação sobre a aplicação das normas do Mercosul para lação de empregados, a avaliação sobre a aplicação das normas do Mercosul para
146 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo 146 Rodolfo Pamplona Filho | Sérgio Waly Pirajá Bispo

os trabalhadores, a difusão do português e do espanhol, e fomentar as atividades os trabalhadores, a difusão do português e do espanhol, e fomentar as atividades
do Grupo ad hoc para a Promoção dos Direitos Humanos. do Grupo ad hoc para a Promoção dos Direitos Humanos.
No plano institucional, há a idéia da criação e funcionamento do Parlamento do No plano institucional, há a idéia da criação e funcionamento do Parlamento do
Mercosul, da implementação do Protocolo de Olivos (solução de controvérsias), a Mercosul, da implementação do Protocolo de Olivos (solução de controvérsias), a
implementação do Centro Mercosul para a Promoção do Estado de Direito, a real implementação do Centro Mercosul para a Promoção do Estado de Direito, a real
participação do setor privado no sistema de solução de controvérsias, a promoção participação do setor privado no sistema de solução de controvérsias, a promoção
da implementação imediata das normas do Mercosul (sem necessidade de prévia da implementação imediata das normas do Mercosul (sem necessidade de prévia
aprovação parlamentar), reforçar o papel da Agência especializada para a Ciência aprovação parlamentar), reforçar o papel da Agência especializada para a Ciência
e Tecnologia, da Agência de Infra-estrutura Regional Sulamericana, o acesso de e Tecnologia, da Agência de Infra-estrutura Regional Sulamericana, o acesso de
outros Estados da Região (como a Bolívia), como membros plenos, ampliar o outros Estados da Região (como a Bolívia), como membros plenos, ampliar o
poder dos órgãos consultivos, e institucionalizar a Rede Mercocidades e a Reunião poder dos órgãos consultivos, e institucionalizar a Rede Mercocidades e a Reunião
especializada das Municipalidades. especializada das Municipalidades.
Fala-se que a integração deve possuir simultaneamente um caráter negativo e Fala-se que a integração deve possuir simultaneamente um caráter negativo e
outro positivo. Como integração negativa, é necessária a supressão das barreiras. outro positivo. Como integração negativa, é necessária a supressão das barreiras.
Como integração positiva, é necessário a adoção de um conjunto de políticas Como integração positiva, é necessário a adoção de um conjunto de políticas
comuns para estabelecer um equilíbrio. comuns para estabelecer um equilíbrio.
Capítulo X Capítulo X
Acesso à Justiça e problemas Acesso à Justiça e problemas
processuais em torno do Princípio processuais em torno do Princípio
da Igualdade no Direito Brasileiro da Igualdade no Direito Brasileiro

Wilson Alves de Souza* Wilson Alves de Souza*

Sumário • 1. Introdução – 2. Lei que concede privilégio de prazo em caso de litisconsórcio com Sumário • 1. Introdução – 2. Lei que concede privilégio de prazo em caso de litisconsórcio com
­procuradores diferentes – 3. Lei que concede privilégio de prazo aos titulares do direito à justiça ­procuradores diferentes – 3. Lei que concede privilégio de prazo aos titulares do direito à justiça
gratuita – 4. Lei que concede privilégio de prazo à Fazenda Pública e ao ministério público – 5. Lei gratuita – 4. Lei que concede privilégio de prazo à Fazenda Pública e ao ministério público – 5. Lei
que concede privilégio de intimação pessoal aos defensores públicos – 6. Lei que concede privilégio que concede privilégio de intimação pessoal aos defensores públicos – 6. Lei que concede privilégio
de intimação pessoal aos procuradores de Estado e membros do ministério público – 7. Lei que con- de intimação pessoal aos procuradores de Estado e membros do ministério público – 7. Lei que con-
cede prioridade de julgamento nos processos em que o idoso figure como parte – 8. Lei que concede cede prioridade de julgamento nos processos em que o idoso figure como parte – 8. Lei que concede
tratamento diferenciado em favor do Estado em caso de condenação em honorários de advogado tratamento diferenciado em favor do Estado em caso de condenação em honorários de advogado
– 9. Lei que concede tratamento diferenciado em favor dos necessitados em caso de condenação – 9. Lei que concede tratamento diferenciado em favor dos necessitados em caso de condenação
em honorários de advogado – 10. Lei que concede tratamento diferenciado em favor da Fazenda em honorários de advogado – 10. Lei que concede tratamento diferenciado em favor da Fazenda
Pública e do ministério público com relação a adiantamento de despesas processuais – 11. Lei que Pública e do ministério público com relação a adiantamento de despesas processuais – 11. Lei que
concede privilégio ao necessitado com relação às custas e despesas processuais – 12. Lei que isenta concede privilégio ao necessitado com relação às custas e despesas processuais – 12. Lei que isenta
o autor de adiantamento de despesas processuais e do ônus da sucumbência no caso de ação popular o autor de adiantamento de despesas processuais e do ônus da sucumbência no caso de ação popular
e ação civil pública – 13. Tratamento diferenciado entre réus com relação ao efeito da revelia – e ação civil pública – 13. Tratamento diferenciado entre réus com relação ao efeito da revelia –
14. Lei que concede privilégio do duplo grau obrigatório de jurisdição em favor de determinados entes 14. Lei que concede privilégio do duplo grau obrigatório de jurisdição em favor de determinados entes
estatais – 15. Lei que concede privilégio de inversão do ônus da prova em favor do consumidor –16. estatais – 15. Lei que concede privilégio de inversão do ônus da prova em favor do consumidor –16.
Conclusões – 17. Referências bibliográficas. Conclusões – 17. Referências bibliográficas.

1. Introdução 1. Introdução
O princípio da igualdade é um princípio geral do direito, porque aplicável O princípio da igualdade é um princípio geral do direito, porque aplicável
em qualquer relação, estado ou situação jurídica; de conotação constitucional, em qualquer relação, estado ou situação jurídica; de conotação constitucional,
porque sua fonte direta é a própria constituição; com forte ligação com o princípio porque sua fonte direta é a própria constituição; com forte ligação com o princípio
democrático; e que se caracteriza como um direito fundamental.1 democrático; e que se caracteriza como um direito fundamental.1
Sendo assim, o princípio da igualdade não é um princípio de direito processual, Sendo assim, o princípio da igualdade não é um princípio de direito processual,
mas evidentemente que, por ser geral, também se aplica ao direito processual, de mas evidentemente que, por ser geral, também se aplica ao direito processual, de
modo que teremos, seguramente, que enfrentar muitos problemas processuais modo que teremos, seguramente, que enfrentar muitos problemas processuais
práticos relacionados com tal princípio.2 práticos relacionados com tal princípio.2

* Mestre (UFBA) Doutor (UMSA-Buenos Aires) e Pós-Doutor (Universidade de Coimbra) em Di- * Mestre (UFBA) Doutor (UMSA-Buenos Aires) e Pós-Doutor (Universidade de Coimbra) em Di-
reito. Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Graduação, reito. Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Graduação,
Mestrado e Doutorado). Juiz Federal. Mestrado e Doutorado). Juiz Federal.
1. O princípio da igualdade está expressamente consagrado como direito fundamental na Constituição 1. O princípio da igualdade está expressamente consagrado como direito fundamental na Constituição
brasileira (art. 5º e inciso I). brasileira (art. 5º e inciso I).
2. Conferir adiante capítulo específico sobre o assunto. 2. Conferir adiante capítulo específico sobre o assunto.
148 Wilson Alves de Souza 148 Wilson Alves de Souza

As raízes históricas do princípio da igualdade estão na Revolução francesa As raízes históricas do princípio da igualdade estão na Revolução francesa
cujo marco ideológico de fundo liberal está na trilogia liberdade, igualdade, cujo marco ideológico de fundo liberal está na trilogia liberdade, igualdade,
fraternidade. fraternidade.
De início, necessário se faz advertir que a clássica fórmula “todos são iguais De início, necessário se faz advertir que a clássica fórmula “todos são iguais
perante a lei” mostra-se insuficiente, de maneira que o princípio da igualdade perante a lei” mostra-se insuficiente, de maneira que o princípio da igualdade
se dirige em primeiro lugar ao legislador no sentido de que não pode o mesmo se dirige em primeiro lugar ao legislador no sentido de que não pode o mesmo
estabelecer tratamento diferenciado entre as pessoas, salvo, como se verá abaixo, estabelecer tratamento diferenciado entre as pessoas, salvo, como se verá abaixo,
para tentar uma igualdade real onde existam situações de desigualdade.3 para tentar uma igualdade real onde existam situações de desigualdade.3
Com efeito, se fosse possível dar guarida à fórmula “todos são iguais perante Com efeito, se fosse possível dar guarida à fórmula “todos são iguais perante
a lei” no seu sentido literal o legislador teria margem livre de atuação, restando a lei” no seu sentido literal o legislador teria margem livre de atuação, restando
ao aplicador do direito, particularmente aqueles que integram os órgãos admi- ao aplicador do direito, particularmente aqueles que integram os órgãos admi-
nistrativos e jurisdicionais, tratar a todos igualmente conforme prescrito na lei. nistrativos e jurisdicionais, tratar a todos igualmente conforme prescrito na lei.
Aplicado o princípio com a devida correção de rumos não é permitido ao legislador Aplicado o princípio com a devida correção de rumos não é permitido ao legislador
estabelecer desigualdades fora de critérios razoáveis, de maneira que a fórmula estabelecer desigualdades fora de critérios razoáveis, de maneira que a fórmula
correta, no particular, seria, “todos são iguais na própria lei”, e não “todos são correta, no particular, seria, “todos são iguais na própria lei”, e não “todos são
iguais perante a lei”. iguais perante a lei”.
Ocorre que, em primeiro lugar, a desigualdade é da própria condição huma- Ocorre que, em primeiro lugar, a desigualdade é da própria condição huma-
na. Nós, os humanos, na realidade, somos todos semelhantes, mas, na verdade, na. Nós, os humanos, na realidade, somos todos semelhantes, mas, na verdade,
somos, ao mesmo tempo, em maior ou menor grau, desiguais, no radical sentido somos, ao mesmo tempo, em maior ou menor grau, desiguais, no radical sentido
da palavra. Nesse sentido, pode-se dizer que todos os homens que viveram, que da palavra. Nesse sentido, pode-se dizer que todos os homens que viveram, que
estão a viver ou que viverão na face da terra, sem exceção, foram, são e serão estão a viver ou que viverão na face da terra, sem exceção, foram, são e serão
diferentes, isto é, cada um de nós tem sua identidade e seu modo de ser irrepetíveis, diferentes, isto é, cada um de nós tem sua identidade e seu modo de ser irrepetíveis,
isto é, nunca existiram, não existem e jamais existirão duas pessoas rigorosamente isto é, nunca existiram, não existem e jamais existirão duas pessoas rigorosamente
iguais, sob qualquer aspecto, mesmo que seja quanto ao que mais nos aproxima, iguais, sob qualquer aspecto, mesmo que seja quanto ao que mais nos aproxima,
que é o aspecto biológico. Aliás, um dos aspectos mais belos da vida humana está que é o aspecto biológico. Aliás, um dos aspectos mais belos da vida humana está
precisamente na nossa semelhança e, ao mesmo tempo, na nossa diferença, o que precisamente na nossa semelhança e, ao mesmo tempo, na nossa diferença, o que
exige de todos nós tolerância e respeito recíprocos ante essas diferenças. exige de todos nós tolerância e respeito recíprocos ante essas diferenças.
Se os homens são desiguais por natureza, a exemplo da cor da pele, essa desi- Se os homens são desiguais por natureza, a exemplo da cor da pele, essa desi-
gualdade é aprofundada pelos próprios homens no plano cultural, no plano educa- gualdade é aprofundada pelos próprios homens no plano cultural, no plano educa-
cional, no plano religioso, no plano social, no plano ideológico, no plano político, cional, no plano religioso, no plano social, no plano ideológico, no plano político,
no plano econômico, etc. Ao mesmo tempo, essas desigualdades se apresentam bem no plano econômico, etc. Ao mesmo tempo, essas desigualdades se apresentam bem
reduzidas ou com grau de muita proximidade. Assim, existem entre os homens, reduzidas ou com grau de muita proximidade. Assim, existem entre os homens,

3. Como percebido por Castanheira Neves, “a igualdade perante a lei oferecerá uma garantia bem 3. Como percebido por Castanheira Neves, “a igualdade perante a lei oferecerá uma garantia bem
insuficiente se não for acompanhada (ou não tiver também a natureza) de uma igualdade na pró- insuficiente se não for acompanhada (ou não tiver também a natureza) de uma igualdade na pró-
pria lei, i. é, exigida ao próprio legislador relativamente ao conteúdo da lei. Não só leis aplicadas pria lei, i. é, exigida ao próprio legislador relativamente ao conteúdo da lei. Não só leis aplicadas
igualmente a todos, mas também leis iguais para todos”. NEVES, A. Castanheira. O instituto igualmente a todos, mas também leis iguais para todos”. NEVES, A. Castanheira. O instituto
dos «assentos» e a função jurídica dos supremos tribunais. Coimbra: Coimbra Editora, 1983, p. dos «assentos» e a função jurídica dos supremos tribunais. Coimbra: Coimbra Editora, 1983, p.
166. No mesmo sentido, CANOTILHO J. J. Gomes. Direito constitucional…, cit., pp 426-427; 166. No mesmo sentido, CANOTILHO J. J. Gomes. Direito constitucional…, cit., pp 426-427;
Constituição dirigente. Coimbra: Coimbra, 1982, p. 381. Constituição dirigente. Coimbra: Coimbra, 1982, p. 381.
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 149 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 149

para não sairmos desses enfoques, níveis bem próximos de semelhança, mas num para não sairmos desses enfoques, níveis bem próximos de semelhança, mas num
ou noutro desses aspectos existem entre os homens profundas diferenças. ou noutro desses aspectos existem entre os homens profundas diferenças.
Saindo do âmbito da pessoa humana, sabe-se que, ao lado disso, o direito cria Saindo do âmbito da pessoa humana, sabe-se que, ao lado disso, o direito cria
diferenças maiores ao personificar determinados entes ideais que figuram como diferenças maiores ao personificar determinados entes ideais que figuram como
sujeitos de direito, ou seja, titulares de direitos e deveres (o Estado, as associações, sujeitos de direito, ou seja, titulares de direitos e deveres (o Estado, as associações,
as sociedades civis e comerciais, etc.). as sociedades civis e comerciais, etc.).
Se é assim, o conceito de igualdade meramente formal não passa de um ponto Se é assim, o conceito de igualdade meramente formal não passa de um ponto
de partida e pressupõe uma igualdade material entre as pessoas, igualdade essa de partida e pressupõe uma igualdade material entre as pessoas, igualdade essa
que, como visto, se dá sempre por aproximação. que, como visto, se dá sempre por aproximação.
Deste modo, a observância do princípio da igualdade que se exige do legislador Deste modo, a observância do princípio da igualdade que se exige do legislador
tem que transbordar do plano formal para o plano material, vale dizer, há que se tem que transbordar do plano formal para o plano material, vale dizer, há que se
tratar igualmente os iguais, e tratar desigualmente os desiguais na medida dessa tratar igualmente os iguais, e tratar desigualmente os desiguais na medida dessa
desigualdade para se tentar a igualdade real.4 desigualdade para se tentar a igualdade real.4
Sendo assim, há que se comparar as diferenças e semelhanças entre as pessoas Sendo assim, há que se comparar as diferenças e semelhanças entre as pessoas
ante as situações e até mesmo as circunstâncias em que elas estão envolvidas para ante as situações e até mesmo as circunstâncias em que elas estão envolvidas para
que se possa aplicar corretamente o princípio da igualdade.5 que se possa aplicar corretamente o princípio da igualdade.5
No entanto, apesar de sermos todos diferentes e da necessidade de o legislador No entanto, apesar de sermos todos diferentes e da necessidade de o legislador
ter que tratar em muitas situações as pessoas desigualmente, isso não pode ser ter que tratar em muitas situações as pessoas desigualmente, isso não pode ser
levado às últimas consequências, na medida em que a igualdade absoluta entre os levado às últimas consequências, na medida em que a igualdade absoluta entre os
indivíduos jamais seria alcançada, de maneira que estar-se-ia a dar ao legislador indivíduos jamais seria alcançada, de maneira que estar-se-ia a dar ao legislador
uma liberdade absoluta que acabaria por atingir a liberdade das pessoas numa uma liberdade absoluta que acabaria por atingir a liberdade das pessoas numa
completa disfuncionalidade do sistema.6 completa disfuncionalidade do sistema.6

4. Como expressado por Ruy Barbosa na oração de paraninfia aos bacharelandos de 1920 da 4. Como expressado por Ruy Barbosa na oração de paraninfia aos bacharelandos de 1920 da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, “a regra da igualdade não consiste senão Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, “a regra da igualdade não consiste senão
em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade
social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais
são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais ou desiguais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais ou desiguais
com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. BARBOSA, Rui. Oração aos com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. BARBOSA, Rui. Oração aos
moços. Cit., p. 39. moços. Cit., p. 39.
5. Como anotado por J. J. Gomes Canotilho, com muita precisão, “diferentemente da estrutura 5. Como anotado por J. J. Gomes Canotilho, com muita precisão, “diferentemente da estrutura
lógica formal de identidade, a igualdade pressupõe diferenciações. A igualdade designa uma lógica formal de identidade, a igualdade pressupõe diferenciações. A igualdade designa uma
relação entre diversas pessoas e coisas. Reconduz-se, assim, a uma igualdade relacional, pois ela relação entre diversas pessoas e coisas. Reconduz-se, assim, a uma igualdade relacional, pois ela
pressupõe uma relação tripolar (Podlech): o indivíduo a é igual ao indivíduo b, tendo em conta pressupõe uma relação tripolar (Podlech): o indivíduo a é igual ao indivíduo b, tendo em conta
determinadas características”. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional…, cit., p. 428. determinadas características”. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional…, cit., p. 428.
6. Como percebido por Jónatas Machado, “esta situação de igualdade intencionalmente extremada, 6. Como percebido por Jónatas Machado, “esta situação de igualdade intencionalmente extremada,
exprime, ao menos, no contexto actual de uma sociedade aberta e pluralista, que um princípio exprime, ao menos, no contexto actual de uma sociedade aberta e pluralista, que um princípio
jurídico de igualdade onde esta fosse entendida com o significado estrito de total igualdade, ou jurídico de igualdade onde esta fosse entendida com o significado estrito de total igualdade, ou
identidade (sameness), seria, irremediavelmente, um princípio inimigo da liberdade, pois que identidade (sameness), seria, irremediavelmente, um princípio inimigo da liberdade, pois que
bastaria a alegação de uma pequena dissemelhança entro dois fenómenos, para justificar o seu bastaria a alegação de uma pequena dissemelhança entro dois fenómenos, para justificar o seu
tratamento jurídico diferenciado”. MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa tratamento jurídico diferenciado”. MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa
numa comunidade constitucional inclusiva. Perspectiva jurídico-constitucional. Dissertação numa comunidade constitucional inclusiva. Perspectiva jurídico-constitucional. Dissertação
150 Wilson Alves de Souza 150 Wilson Alves de Souza

Com efeito, o problema que fica a resolver está exatamente em se saber quando Com efeito, o problema que fica a resolver está exatamente em se saber quando
o legislador agiu em desconformidade com o princípio da igualdade porque tratou o legislador agiu em desconformidade com o princípio da igualdade porque tratou
igualmente o que merecia tratamento desigual (erro por omissão ou por conduta igualmente o que merecia tratamento desigual (erro por omissão ou por conduta
negativa), ou porque tratou desigualmente o que merecia tratamento igual ou negativa), ou porque tratou desigualmente o que merecia tratamento igual ou
exagerou nos critérios quanto aos níveis de desigualdade prescritos (erro por ação exagerou nos critérios quanto aos níveis de desigualdade prescritos (erro por ação
ou por conduta positiva), vale dizer, o que importa saber na busca ao atendimento ou por conduta positiva), vale dizer, o que importa saber na busca ao atendimento
do princípio da igualdade é se a conduta do legislador (por ação ou omissão) foi do princípio da igualdade é se a conduta do legislador (por ação ou omissão) foi
justa ou injusta. E quando o legislador discrimina por ação há que se verificar a justa ou injusta. E quando o legislador discrimina por ação há que se verificar a
razoabilidade da prescrição de diferenciação de tratamento, cabendo ao aplicador razoabilidade da prescrição de diferenciação de tratamento, cabendo ao aplicador
do direito verificar se as circunstâncias do caso exigem tratamento diferenciado do direito verificar se as circunstâncias do caso exigem tratamento diferenciado
segundo o que se encontra genericamente previsto em lei e em conformidade segundo o que se encontra genericamente previsto em lei e em conformidade
com a constituição.7 com a constituição.7
Evidentemente que estamos no campo do juízo de valor ante talvez o mais Evidentemente que estamos no campo do juízo de valor ante talvez o mais
complexo e o mais indeterminado dos conceitos, qual seja o conceito justiça. E complexo e o mais indeterminado dos conceitos, qual seja o conceito justiça. E
se assim é, a depender dos critérios valorativos de cada um, o mesmo dispositivo se assim é, a depender dos critérios valorativos de cada um, o mesmo dispositivo
legal poderá para alguns ser qualificado como cumpridor do princípio da igualdade legal poderá para alguns ser qualificado como cumpridor do princípio da igualdade
e, assim, justo, mas outros poderão ter ponto de vista inverso. Na busca de um e, assim, justo, mas outros poderão ter ponto de vista inverso. Na busca de um
mínimo de consenso, é certo que há que fazer uma ponderação a partir das idéias mínimo de consenso, é certo que há que fazer uma ponderação a partir das idéias
de proporcionalidade e de razoabilidade, o que significa dizer vedação ao arbítrio, de proporcionalidade e de razoabilidade, o que significa dizer vedação ao arbítrio,
somada à necessidade de investigação dos motivos do tratamento diferenciado somada à necessidade de investigação dos motivos do tratamento diferenciado
estabelecido pela lei.8 estabelecido pela lei.8
Quando o legislador se omite, isto é, não prescreve tratamento diferenciado Quando o legislador se omite, isto é, não prescreve tratamento diferenciado
numa situação que o exigia, não existem os motivos de tal conduta, de maneira numa situação que o exigia, não existem os motivos de tal conduta, de maneira
que quando alguém se sente injustiçado ante tal conduta omissiva do legislador, que quando alguém se sente injustiçado ante tal conduta omissiva do legislador,
resta ao juiz, ao aplicar o direito no caso concreto, buscar os fundamentos de resta ao juiz, ao aplicar o direito no caso concreto, buscar os fundamentos de
maneira invertida e abstrata, isto é, apresentar os motivos da sua decisão como se maneira invertida e abstrata, isto é, apresentar os motivos da sua decisão como se

para o Mestrado da Faculdade de Direito de Coimbra. Coimbra: 1991, pp. 502-503. Em idêntico para o Mestrado da Faculdade de Direito de Coimbra. Coimbra: 1991, pp. 502-503. Em idêntico
sentido, MIRANDA, Jorge, que afirma: “Há três pontos firmes, acolhidos quase unanimemente sentido, MIRANDA, Jorge, que afirma: “Há três pontos firmes, acolhidos quase unanimemente
pela doutrina e pela jurisprudência: que igualdade não é identidade e que igualdade jurídica não é pela doutrina e pela jurisprudência: que igualdade não é identidade e que igualdade jurídica não é
igualdade natural ou naturalística; que igualdade significa intenção de racionalidade e, em último igualdade natural ou naturalística; que igualdade significa intenção de racionalidade e, em último
termo, de justiça; e que igualdade não é uma «ilha», encontra-se conexa com outros princípios, tem termo, de justiça; e que igualdade não é uma «ilha», encontra-se conexa com outros princípios, tem
de ser entendida – também ela – no plano global dos valores, critérios e opções da Constituição de ser entendida – também ela – no plano global dos valores, critérios e opções da Constituição
material”. Igualdade e participação política da mulher. In O Direito. Lisboa, Editora Internacional, material”. Igualdade e participação política da mulher. In O Direito. Lisboa, Editora Internacional,
ano 130, 1998, I-II, jan/jun, p. 32. ano 130, 1998, I-II, jan/jun, p. 32.
7. Como observado por Celso Antônio Bandeira de Mello, “tem-se que investigar, de um lado, 7. Como observado por Celso Antônio Bandeira de Mello, “tem-se que investigar, de um lado,
aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justifi- aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justifi-
cativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir cativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir
o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente,
impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto,
afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou
não harmonia com eles”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio não harmonia com eles”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio
da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 21-22. da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 21-22.
8. Nesse sentido, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional…, cit., pp. 428-430. 8. Nesse sentido, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional…, cit., pp. 428-430.
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 151 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 151

o legislador estivesse obrigado a explicitar aquela determinada conduta omissi- o legislador estivesse obrigado a explicitar aquela determinada conduta omissi-
va, para que, assim, se possa ter o princípio da igualdade como atendido ou não va, para que, assim, se possa ter o princípio da igualdade como atendido ou não
atendido, na medida em que não pode ele decidir por omissão e terá, ademais, atendido, na medida em que não pode ele decidir por omissão e terá, ademais,
que fundamentar suas decisões. que fundamentar suas decisões.
O legislador, conforme se verificou acima, terá que se ocupar com o princípio O legislador, conforme se verificou acima, terá que se ocupar com o princípio
da igualdade tanto no plano do direito material como no plano do direito processual. da igualdade tanto no plano do direito material como no plano do direito processual.
Aliás, tendo em vista que a tutela dos direitos, não raro, terá que ser realizada pela Aliás, tendo em vista que a tutela dos direitos, não raro, terá que ser realizada pela
via jurisdicional, quando o legislador se preocupa em dar tratamento diferenciado via jurisdicional, quando o legislador se preocupa em dar tratamento diferenciado
entre as pessoas, situações ou coisas no plano material terá que, muitas vezes, entre as pessoas, situações ou coisas no plano material terá que, muitas vezes,
dar esse mesmo tratamento no plano processual (princípio da adaptação). É exa- dar esse mesmo tratamento no plano processual (princípio da adaptação). É exa-
tamente essa circunstância que justifica, em grande medida, a previsão legal de tamente essa circunstância que justifica, em grande medida, a previsão legal de
procedimentos especiais em substituição ao procedimento ordinário. procedimentos especiais em substituição ao procedimento ordinário.
Conforme visto acima, o princípio da igualdade também se dirige ao aplicador Conforme visto acima, o princípio da igualdade também se dirige ao aplicador
do direito (órgãos administrativos e jurisdicionais). No entanto, os agentes dos do direito (órgãos administrativos e jurisdicionais). No entanto, os agentes dos
órgãos ­administrativos e jurisdicionais, os últimos principalmente, não se limitam, órgãos ­administrativos e jurisdicionais, os últimos principalmente, não se limitam,
­evidentemente, a atuar apenas nos casos em a parte ou interessado alegue injustiça ­evidentemente, a atuar apenas nos casos em a parte ou interessado alegue injustiça
por merecer tratamento diferenciado e o legislador manteve-se inerte, mas sim, por merecer tratamento diferenciado e o legislador manteve-se inerte, mas sim,
sobretudo, também devem tais agentes controlar a lei em que o legislador atuou sobretudo, também devem tais agentes controlar a lei em que o legislador atuou
positivamente no sentido de prescrever tratamento diferenciado em relação à positivamente no sentido de prescrever tratamento diferenciado em relação à
pessoas, situações ou coisas e a parte ou interessado alegue injustiça da lei por pessoas, situações ou coisas e a parte ou interessado alegue injustiça da lei por
não ser o caso de se prescrever esse tratamento d­ iferenciado. não ser o caso de se prescrever esse tratamento d­ iferenciado.
Na linha do acima exposto, se o juiz não observa o princípio da igualdade Na linha do acima exposto, se o juiz não observa o princípio da igualdade
também não estará garantindo efetivo acesso à justiça, de maneira que evidenciada também não estará garantindo efetivo acesso à justiça, de maneira que evidenciada
está a relação entre tais princípios. está a relação entre tais princípios.
Nessa perspectiva, passaremos a analisar alguns dispositivos legais, no direito Nessa perspectiva, passaremos a analisar alguns dispositivos legais, no direito
brasileiro, que consagram tratamento privilegiado a uma das partes em detrimento brasileiro, que consagram tratamento privilegiado a uma das partes em detrimento
da outra, tudo tendo em conta determinadas circunstâncias nos casos concretos. da outra, tudo tendo em conta determinadas circunstâncias nos casos concretos.

2. Lei que concede privilégio de prazo em caso de litis- 2. Lei que concede privilégio de prazo em caso de litis-
consórcio com procuradores diferentes consórcio com procuradores diferentes
Determinados ordenamentos jurídicos concedem prazo maior aos advogados Determinados ordenamentos jurídicos concedem prazo maior aos advogados
de parte quando no processo existem litisconsortes com procuradores diferentes.9 de parte quando no processo existem litisconsortes com procuradores diferentes.9
O fundamento deste dispositivo legal está em que haveria uma vantagem da O fundamento deste dispositivo legal está em que haveria uma vantagem da
parte que não formou litisconsórcio ou, se litisconsórcio há, só existe um procurador parte que não formou litisconsórcio ou, se litisconsórcio há, só existe um procurador
para todos os litisconsortes, procurador esse que teria acesso aos autos do processo para todos os litisconsortes, procurador esse que teria acesso aos autos do processo

9. No direito brasileiro o CPC dispõe sobre o assunto. Assim: “Quando os litisconsortes tiverem 9. No direito brasileiro o CPC dispõe sobre o assunto. Assim: “Quando os litisconsortes tiverem
diferentes procuradores, ser-lhes-ão contados os prazos em dobro para contestar, para recorrer e, diferentes procuradores, ser-lhes-ão contados os prazos em dobro para contestar, para recorrer e,
de modo geral, para falar nos autos” (art. 191). de modo geral, para falar nos autos” (art. 191).
152 Wilson Alves de Souza 152 Wilson Alves de Souza

com prazo integral, enquanto os diversos advogados dos diversos litisconsortes com prazo integral, enquanto os diversos advogados dos diversos litisconsortes
do lado oposto da relação processual sofreriam, na prática, redução de prazo, na do lado oposto da relação processual sofreriam, na prática, redução de prazo, na
medida em que teriam que dividir o tempo de acesso aos autos do processo. medida em que teriam que dividir o tempo de acesso aos autos do processo.
Deste modo, é de ter-se como razoável o tratamento diferenciado concedido Deste modo, é de ter-se como razoável o tratamento diferenciado concedido
pelo legislador para o fim de atender ao princípio da igualdade, mas tal tipo legal pelo legislador para o fim de atender ao princípio da igualdade, mas tal tipo legal
não pode ser aplicado para todos os casos. Assim, se o prazo aproveita apenas a não pode ser aplicado para todos os casos. Assim, se o prazo aproveita apenas a
um dos litisconsortes faltou a motivação que justifica o tratamento diferenciado, a um dos litisconsortes faltou a motivação que justifica o tratamento diferenciado, a
exemplo do fato de as intimações dos litisconsortes terem ocorrido em momentos exemplo do fato de as intimações dos litisconsortes terem ocorrido em momentos
diferentes a ponto tal que não houve qualquer situação de paralelismo no decurso diferentes a ponto tal que não houve qualquer situação de paralelismo no decurso
do prazo. Se em tal exemplo apenas um dos litisconsortes se encontra na situação do prazo. Se em tal exemplo apenas um dos litisconsortes se encontra na situação
de ter o direito de acesso aos autos do processo no decurso integral do prazo, a de ter o direito de acesso aos autos do processo no decurso integral do prazo, a
ele não deve ser concedido o tratamento diferenciado. Do mesmo modo, pela ele não deve ser concedido o tratamento diferenciado. Do mesmo modo, pela
mesma razão jurídica, não deve ser concedido tratamento diferenciado se o ato a mesma razão jurídica, não deve ser concedido tratamento diferenciado se o ato a
ser praticado é do interesse de apenas um dos litisconsortes, a exemplo da hipótese ser praticado é do interesse de apenas um dos litisconsortes, a exemplo da hipótese
em que só um dos litisconsortes tem interesse em recorrer.10 em que só um dos litisconsortes tem interesse em recorrer.10
O tratamento diferenciado também não deve ser concedido se ficar apurado O tratamento diferenciado também não deve ser concedido se ficar apurado
no processo que os litisconsortes usaram de tal expediente de má-fé para, assim, no processo que os litisconsortes usaram de tal expediente de má-fé para, assim,
obterem tal vantagem processual indevidamente. O problema que fica aqui a obterem tal vantagem processual indevidamente. O problema que fica aqui a
resolver é a prova da litigância de má-fé. Algumas circunstâncias são indícios resolver é a prova da litigância de má-fé. Algumas circunstâncias são indícios
veementes de tal conduta, a exemplo de marido e mulher se apresentarem do veementes de tal conduta, a exemplo de marido e mulher se apresentarem do
mesmo lado da relação processual como litisconsortes com advogados diferentes mesmo lado da relação processual como litisconsortes com advogados diferentes
do mesmo escritório. No entanto, isso não quer dizer que tais circunstâncias con- do mesmo escritório. No entanto, isso não quer dizer que tais circunstâncias con-
duzirão necessariamente à conclusão de que a fraude está caracterizada, na medida duzirão necessariamente à conclusão de que a fraude está caracterizada, na medida
em que marido e mulher podem se encontrar separados de fato, como também em que marido e mulher podem se encontrar separados de fato, como também
podem divergir sobre o advogado a contratar, e apesar de os advogados serem do podem divergir sobre o advogado a contratar, e apesar de os advogados serem do
mesmo escritório pode ocorrer que cada um dos cônjuges tinha confiança apenas mesmo escritório pode ocorrer que cada um dos cônjuges tinha confiança apenas
no profissional que escolheu. no profissional que escolheu.
A concessão de prazo diferenciado em caso de litisconsórcio com procuradores A concessão de prazo diferenciado em caso de litisconsórcio com procuradores
diferentes exige análise quanto à suficiência do prazo concedido para o fim de diferentes exige análise quanto à suficiência do prazo concedido para o fim de
atendimento ao princípio da igualdade. Se o ordenamento jurídico prevê prazo em atendimento ao princípio da igualdade. Se o ordenamento jurídico prevê prazo em
dobro a igualdade, a rigor, só se verifica se existirem dois advogados diferentes dobro a igualdade, a rigor, só se verifica se existirem dois advogados diferentes
para os litisconsortes. Se existirem mais de dois advogados, com a fixação de prazo para os litisconsortes. Se existirem mais de dois advogados, com a fixação de prazo
em dobro a igualdade já não mais subsiste, e essa desigualdade se aprofunda cada em dobro a igualdade já não mais subsiste, e essa desigualdade se aprofunda cada
vez mais na proporção em que aumentar o número de litisconsortes e o número de vez mais na proporção em que aumentar o número de litisconsortes e o número de
advogados diferentes. Podemos chegar a uma situação que na prática nenhum deles advogados diferentes. Podemos chegar a uma situação que na prática nenhum deles
terá condições de ter acesso aos autos do processo. De outro lado, em situações terá condições de ter acesso aos autos do processo. De outro lado, em situações
assim, se o tratamento fosse diferenciado para cada advogado de cada litisconsorte assim, se o tratamento fosse diferenciado para cada advogado de cada litisconsorte

10. Ao propósito, o Supremo Tribunal Federal editou sobre o assunto, com inegável acerto, a súmula 10. Ao propósito, o Supremo Tribunal Federal editou sobre o assunto, com inegável acerto, a súmula
nº 641, que tem o seguinte teor: “Não se conta em dobro o prazo para recorrer, quando um dos nº 641, que tem o seguinte teor: “Não se conta em dobro o prazo para recorrer, quando um dos
litisconsortes haja sucumbido”. litisconsortes haja sucumbido”.
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 153 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 153

ter seu prazo específico, comprometidos estariam os princípios da celeridade e do ter seu prazo específico, comprometidos estariam os princípios da celeridade e do
processo em tempo razoável. De toda maneira, o correto é examinar caso a caso processo em tempo razoável. De toda maneira, o correto é examinar caso a caso
para o fim de, quando necessário, quebrar a aplicação literal da norma, de modo para o fim de, quando necessário, quebrar a aplicação literal da norma, de modo
a conciliar todos os princípios envolvidos em torno do problema.11 a conciliar todos os princípios envolvidos em torno do problema.11
Pode ocorrer a circunstância de existir no processo litisconsórcio misto tendo Pode ocorrer a circunstância de existir no processo litisconsórcio misto tendo
os litisconsortes de ambos os polos da relação processual advogados diferentes. os litisconsortes de ambos os polos da relação processual advogados diferentes.
Nesse caso, apesar da igualdade da situação entre a parte ativa e a parte passiva Nesse caso, apesar da igualdade da situação entre a parte ativa e a parte passiva
da relação processual, o prazo diferenciado deve ser concedido a todos os litiscon- da relação processual, o prazo diferenciado deve ser concedido a todos os litiscon-
sortes porque o dispositivo legal em discussão também tem por objetivo garantir a sortes porque o dispositivo legal em discussão também tem por objetivo garantir a
ampla defesa, que ficaria comprometida se o tema merecesse outro tratamento. ampla defesa, que ficaria comprometida se o tema merecesse outro tratamento.
Em resumo, o dispositivo legal que prescreve privilégio de prazo em caso de Em resumo, o dispositivo legal que prescreve privilégio de prazo em caso de
litisconsórcio com procuradores diferentes é constitucional, mas a aplicação de litisconsórcio com procuradores diferentes é constitucional, mas a aplicação de
tal dispositivo deve ter em conta as circunstâncias do caso concreto. tal dispositivo deve ter em conta as circunstâncias do caso concreto.

3. Lei que concede privilégio de prazo aos titulares do 3. Lei que concede privilégio de prazo aos titulares do
direito à justiça gratuita direito à justiça gratuita
Determinados ordenamentos jurídicos concedem prazos diferenciados em Determinados ordenamentos jurídicos concedem prazos diferenciados em
favor dos beneficiários da justiça gratuita.12 favor dos beneficiários da justiça gratuita.12
Normalmente os serviços de assistência judiciária são prestados por órgãos Normalmente os serviços de assistência judiciária são prestados por órgãos
do próprio Estado (Defensoria Pública, Procuradorias, Ministério Público, etc.). do próprio Estado (Defensoria Pública, Procuradorias, Ministério Público, etc.).
Outras vezes tais serviços são prestados por entidades da sociedade civil (ordem Outras vezes tais serviços são prestados por entidades da sociedade civil (ordem
dos advogados ou associações civis), diretamente ou mediante convênio com o dos advogados ou associações civis), diretamente ou mediante convênio com o
próprio Estado ou mesmo por advogados individualmente designados por juízes próprio Estado ou mesmo por advogados individualmente designados por juízes
ou por iniciativa própria. ou por iniciativa própria.
Como normalmente o Estado não presta um bom serviço de assistência judici- Como normalmente o Estado não presta um bom serviço de assistência judici-
ária a lei que assegura prazo diferenciado em favor do necessitado é um mecanismo ária a lei que assegura prazo diferenciado em favor do necessitado é um mecanismo
compensador de tal situação, circunstância que se junta ao fato, quando for o caso, compensador de tal situação, circunstância que se junta ao fato, quando for o caso,
de diferença econômico-social entre as partes. Por isso mesmo, ainda que as duas de diferença econômico-social entre as partes. Por isso mesmo, ainda que as duas
partes sejam titulares do direito a assistência judiciária o privilégio de prazo deve partes sejam titulares do direito a assistência judiciária o privilégio de prazo deve
ser observado em favor de ambas, apesar de que tal tratamento diferenciado fica ser observado em favor de ambas, apesar de que tal tratamento diferenciado fica
mais claro quando apenas uma das partes é titular de tal direito. mais claro quando apenas uma das partes é titular de tal direito.

11. Parcialmente de acordo, DALL’AGNOL, Antonio. Comentários ao código de processo civil. São 11. Parcialmente de acordo, DALL’AGNOL, Antonio. Comentários ao código de processo civil. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, vol. 2, pp. 395-396. Em sentido contrário, TUCCI, Rogério Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, vol. 2, pp. 395-396. Em sentido contrário, TUCCI, Rogério
Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e processo. São Paulo: Saraiva, 1989, Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e processo. São Paulo: Saraiva, 1989,
pp. 44-45. pp. 44-45.
12. No direito brasileiro o parágrafo 5º do art. 5º da Lei nº 1.060/1950 (redação dada pela Lei nº 12. No direito brasileiro o parágrafo 5º do art. 5º da Lei nº 1.060/1950 (redação dada pela Lei nº
7.871/1989) dispõe o seguinte: “Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por 7.871/1989) dispõe o seguinte: “Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por
eles mantida o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente eles mantida o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente
de todos os atos do processo, em ambas as instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos”. de todos os atos do processo, em ambas as instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos”.
154 Wilson Alves de Souza 154 Wilson Alves de Souza

Sendo assim, o privilégio de prazo deve ser concedido ao titular do direito Sendo assim, o privilégio de prazo deve ser concedido ao titular do direito
à assistência judiciária quando esta for prestada por entidade da sociedade civil, à assistência judiciária quando esta for prestada por entidade da sociedade civil,
ainda que não exista convênio com o Estado, ou por advogado individualmente, ainda que não exista convênio com o Estado, ou por advogado individualmente,
seja quando designado pelo juiz, seja quando esteja a atuar no processo por ini- seja quando designado pelo juiz, seja quando esteja a atuar no processo por ini-
ciativa própria.13 ciativa própria.13
Renove-se a advertência de que, no caso, o privilégio de prazo está posto Renove-se a advertência de que, no caso, o privilégio de prazo está posto
em favor da própria parte, e não do defensor público ou de quem substitua suas em favor da própria parte, e não do defensor público ou de quem substitua suas
atribuições. atribuições.

4. Lei que concede privilégio de prazo à Fazenda Pública 4. Lei que concede privilégio de prazo à Fazenda Pública
e ao ministério público e ao ministério público
Determinados ordenamentos jurídicos estabelecem privilégio de prazo em Determinados ordenamentos jurídicos estabelecem privilégio de prazo em
favor da Fazenda Pública e do Ministério Público.14 favor da Fazenda Pública e do Ministério Público.14
Alguns autores sustentam a constitucionalidade de tal tipo de dispositivo Alguns autores sustentam a constitucionalidade de tal tipo de dispositivo
afirmando que o caso não é de privilégio mas sim de prerrogativa.15 Trata-se, afirmando que o caso não é de privilégio mas sim de prerrogativa.15 Trata-se,

13. Não reputamos correta a tese sustentada por alguns autores no sentido de que não deve ser 13. Não reputamos correta a tese sustentada por alguns autores no sentido de que não deve ser
considerado prestador de assistência judiciária advogado ou escritório de advocacia que apenas considerado prestador de assistência judiciária advogado ou escritório de advocacia que apenas
eventualmente atende gratuitamente alguém (cf., por exemplo, MARCACINI, Augusto Tavares eventualmente atende gratuitamente alguém (cf., por exemplo, MARCACINI, Augusto Tavares
Rosa. Assistência judiciária…, cit., p. 31; ALVES, Cleber Francisco e PIMENTA, Marilia Gon- Rosa. Assistência judiciária…, cit., p. 31; ALVES, Cleber Francisco e PIMENTA, Marilia Gon-
çalves. Acesso…, cit., pp.102-103). Não há razão jurídica aceitável para tal afirmativa, a qual, a çalves. Acesso…, cit., pp.102-103). Não há razão jurídica aceitável para tal afirmativa, a qual, a
ser seguida, teria consequências jurídicas quanto ao tratamento diferenciado de prazo, de maneira ser seguida, teria consequências jurídicas quanto ao tratamento diferenciado de prazo, de maneira
que o necessitado que fosse atendido por advogado que esteja a atuar no processo não teria tal que o necessitado que fosse atendido por advogado que esteja a atuar no processo não teria tal
vantagem. Ora, tratar dois necessitados desigualmente é ferir o princípio da igualdade. O que vantagem. Ora, tratar dois necessitados desigualmente é ferir o princípio da igualdade. O que
importa é a realidade fática de que o advogado, nomeado ou não pelo juiz, aumenta sua carga de importa é a realidade fática de que o advogado, nomeado ou não pelo juiz, aumenta sua carga de
trabalho regular com evidentes dificuldades para atender aos prazos nos processos da sua clientela trabalho regular com evidentes dificuldades para atender aos prazos nos processos da sua clientela
que paga pela prestação do seu serviço profissional em função da prestação de um serviço gratuito que paga pela prestação do seu serviço profissional em função da prestação de um serviço gratuito
a um necessitado, serviço esse que deveria ser prestado pelo Estado, que, como se sabe, costuma a um necessitado, serviço esse que deveria ser prestado pelo Estado, que, como se sabe, costuma
ser deficiente quanto a esta sua incumbência. O que não se pode tolerar, no entanto, é o fato de ser deficiente quanto a esta sua incumbência. O que não se pode tolerar, no entanto, é o fato de
o advogado, em casos assim, requerer gratuidade da justiça em favor de pessoa verdadeiramente o advogado, em casos assim, requerer gratuidade da justiça em favor de pessoa verdadeiramente
necessitada e cobrar honorários à parte para atuar em juízo. Isso, na verdade, é um desvio ético a necessitada e cobrar honorários à parte para atuar em juízo. Isso, na verdade, é um desvio ético a
ser resolvido pelo seu órgão de classe. Também não se pode tolerar o fato de o advogado reque- ser resolvido pelo seu órgão de classe. Também não se pode tolerar o fato de o advogado reque-
rer gratuidade da justiça em favor de quem sabe não ser necessitado, caso em que cabe à parte rer gratuidade da justiça em favor de quem sabe não ser necessitado, caso em que cabe à parte
contrária apresentar a devida impugnação, como cabe ao juiz, de ofício, não admitir tal tipo de contrária apresentar a devida impugnação, como cabe ao juiz, de ofício, não admitir tal tipo de
postulação, ao menos quando a situação for de evidência. postulação, ao menos quando a situação for de evidência.
14. No direito brasileiro assim dispõe o art. 188, do CPC: “Computar-se-á em quádruplo o prazo 14. No direito brasileiro assim dispõe o art. 188, do CPC: “Computar-se-á em quádruplo o prazo
para contestar e em dobro para recorrer quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério para contestar e em dobro para recorrer quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério
Público”. Público”.
15. Assim, por exemplo, inclusive para sustentar a tese da constitucionalidade do dispositivo de lei 15. Assim, por exemplo, inclusive para sustentar a tese da constitucionalidade do dispositivo de lei
que garante tal “prerrogativa”, NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na consti- que garante tal “prerrogativa”, NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na consti-
tuição federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, pp. 40-49; idem O benefício da dilatação tuição federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, pp. 40-49; idem O benefício da dilatação
do prazo para o ministério público no direito processual civil brasileiro. In Revista de Processo. do prazo para o ministério público no direito processual civil brasileiro. In Revista de Processo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, nº 30, pp. 109-126; DALL’AGNOL, Antonio. Comentá- São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, nº 30, pp. 109-126; DALL’AGNOL, Antonio. Comentá-
rios…, cit., pp. 374-378. Em idêntico sentido, mas ressaltando que é inconstitucional o art. 188, rios…, cit., pp. 374-378. Em idêntico sentido, mas ressaltando que é inconstitucional o art. 188,
do CPC brasileiro por conceder um excessiva dilatação de prazo tanto à Fazenda Pública quanto do CPC brasileiro por conceder um excessiva dilatação de prazo tanto à Fazenda Pública quanto
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 155 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 155

como se vê, de um eufemismo porque tratar as pessoas desigualmente – o que como se vê, de um eufemismo porque tratar as pessoas desigualmente – o que
com clareza solar é o caso – só pode ser privilégio, uma vez que prerrogativa é com clareza solar é o caso – só pode ser privilégio, uma vez que prerrogativa é
palavra que diz mais respeito a poderes, atribuições ou competências, o que, com palavra que diz mais respeito a poderes, atribuições ou competências, o que, com
a mesma clareza, não é o caso, uma vez que seria correto igualmente dizer que a mesma clareza, não é o caso, uma vez que seria correto igualmente dizer que
quando se concede privilégio processual a um particular este teria prerrogativa. quando se concede privilégio processual a um particular este teria prerrogativa.
O simples fato de o Estado ser parte no processo não autoriza dizer que os privi- O simples fato de o Estado ser parte no processo não autoriza dizer que os privi-
légios concedidos por lei sejam considerados prerrogativas. Há que se enfrentar légios concedidos por lei sejam considerados prerrogativas. Há que se enfrentar
o problema diretamente e verificar se o privilégio concedido pela lei é justo ou o problema diretamente e verificar se o privilégio concedido pela lei é justo ou
injusto, ou seja, constitucional ou inconstitucional. injusto, ou seja, constitucional ou inconstitucional.
Não há como negar que os direitos do Estado são direitos da coletividade. Não há como negar que os direitos do Estado são direitos da coletividade.
Daí ser correto afirmar que quando o Estado perde uma causa todos os membros Daí ser correto afirmar que quando o Estado perde uma causa todos os membros
da coletividade, como contribuintes que são, perdem alguma coisa. da coletividade, como contribuintes que são, perdem alguma coisa.
Sob outro ângulo, também é preciso convir, sob todos os aspectos, que quando Sob outro ângulo, também é preciso convir, sob todos os aspectos, que quando
o Estado está a litigar com alguém apresenta-se, em geral, como a parte mais forte o Estado está a litigar com alguém apresenta-se, em geral, como a parte mais forte
da relação jurídica, ante todo o aparato e poderes de que dispõe fora e antes do da relação jurídica, ante todo o aparato e poderes de que dispõe fora e antes do
processo, sem contar os abusos que seus agentes, não raro, cometem. Do mesmo processo, sem contar os abusos que seus agentes, não raro, cometem. Do mesmo
modo, não muito raro, o cidadão tem dificuldades em enfrentar o Estado como modo, não muito raro, o cidadão tem dificuldades em enfrentar o Estado como
litigante, vez que tal ente é, normalmente, a parte mais forte dessa relação, inclusive litigante, vez que tal ente é, normalmente, a parte mais forte dessa relação, inclusive
por ser um litigante habitual, que dispõe, em geral, de procuradores especializados por ser um litigante habitual, que dispõe, em geral, de procuradores especializados
segundo a matéria discutida em cada tipo de causa, e que mais frequentemente segundo a matéria discutida em cada tipo de causa, e que mais frequentemente
enfrenta litigantes não habituais.16 enfrenta litigantes não habituais.16
Nesse confronto de situações pensamos que há que sopesar todos os fatores Nesse confronto de situações pensamos que há que sopesar todos os fatores
envolvidos no problema e chegar a uma solução mais justa, que certamente não envolvidos no problema e chegar a uma solução mais justa, que certamente não
é o privilégio de prazo em favor da Fazenda Pública. é o privilégio de prazo em favor da Fazenda Pública.
Em primeiro lugar, os agentes da Administração Pública devem nas suas Em primeiro lugar, os agentes da Administração Pública devem nas suas
relações jurídicas com o cidadão observar os direitos que o ordenamento garante relações jurídicas com o cidadão observar os direitos que o ordenamento garante
a este, evitando, assim, demandas desnecessárias. No entanto, fica fácil perceber, a este, evitando, assim, demandas desnecessárias. No entanto, fica fácil perceber,
sem necessidade de se recorrer a estatísticas, que o Estado normalmente é réu nos sem necessidade de se recorrer a estatísticas, que o Estado normalmente é réu nos
processos, do mesmo modo que, no campo processual civil, há uma forte tendên- processos, do mesmo modo que, no campo processual civil, há uma forte tendên-
cia de o autor ser a parte vencedora, de maneira que essa conduta administrativa cia de o autor ser a parte vencedora, de maneira que essa conduta administrativa
de desrespeitar direitos dos cidadãos ­acarreta prejuízos maiores à coletividade, de desrespeitar direitos dos cidadãos ­acarreta prejuízos maiores à coletividade,
particularmente quando, como parte vencida, o Estado tem que pagar as despesas particularmente quando, como parte vencida, o Estado tem que pagar as despesas
processuais adiantadas pelo autor e, nos sistemas jurídicos que seguem o sistema processuais adiantadas pelo autor e, nos sistemas jurídicos que seguem o sistema
de ônus total da sucumbência, pagar honorários de advogado à parte adversária.17 de ônus total da sucumbência, pagar honorários de advogado à parte adversária.17

ao Ministério Público, GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o código de ao Ministério Público, GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o código de
processo civil. São Paulo: José Bushatsky, 1977, pp. 30-34 e 54-55; idem Benefício de prazo. In processo civil. São Paulo: José Bushatsky, 1977, pp. 30-34 e 54-55; idem Benefício de prazo. In
Revista Brasileira de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense, 1979, nº 19, pp. 16-19. Revista Brasileira de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense, 1979, nº 19, pp. 16-19.
16. Sobre a vantagem que os litigantes habituais têm sobre os litigantes não habituais, consulte-se 16. Sobre a vantagem que os litigantes habituais têm sobre os litigantes não habituais, consulte-se
CAPPELLETTI, Mauro e Bryant Garth. Acesso…, cit., pp. 25-26. CAPPELLETTI, Mauro e Bryant Garth. Acesso…, cit., pp. 25-26.
156 Wilson Alves de Souza 156 Wilson Alves de Souza

É certo que o Estado pode ter um ganho financeiro com tal tipo de conduta, na É certo que o Estado pode ter um ganho financeiro com tal tipo de conduta, na
medida em que na massa de pessoas com direitos violados grande parcela pode medida em que na massa de pessoas com direitos violados grande parcela pode
renunciar a seus direitos deixando de demandar perante os tribunais. No entanto, renunciar a seus direitos deixando de demandar perante os tribunais. No entanto,
esse tipo de ganho, seja pela ilicitude jurídica, seja pelos desvios éticos da conduta esse tipo de ganho, seja pela ilicitude jurídica, seja pelos desvios éticos da conduta
dos agentes políticos e administrativos do Estado, só deve merecer a repulsa da dos agentes políticos e administrativos do Estado, só deve merecer a repulsa da
sociedade civil. sociedade civil.
Em segundo lugar, é dever dos agentes políticos preverem e proverem os Em segundo lugar, é dever dos agentes políticos preverem e proverem os
cargos de procuradores em número suficiente para a orientação jurídica aos demais cargos de procuradores em número suficiente para a orientação jurídica aos demais
agentes da Administração e defesa dos interesses do Estado. agentes da Administração e defesa dos interesses do Estado.
De outro lado, há que se responsabilizar civilmente os procuradores de Estado De outro lado, há que se responsabilizar civilmente os procuradores de Estado
que perdem prazos em processos judiciais sem motivo aceitável. que perdem prazos em processos judiciais sem motivo aceitável.
Deve-se, no entanto, reconhecer que a burocracia administrativa muitas vezes Deve-se, no entanto, reconhecer que a burocracia administrativa muitas vezes
gera dificuldades para a atuação processual dos procuradores de Estado no que gera dificuldades para a atuação processual dos procuradores de Estado no que
se refere a informações a respeito de fatos, dados e apresentação de documentos, se refere a informações a respeito de fatos, dados e apresentação de documentos,
principalmente em processos em que o Estado é réu e enfrenta muitos autores principalmente em processos em que o Estado é réu e enfrenta muitos autores
em litisconsórcio e quanto está a praticar o mais importante ato de defesa, que em litisconsórcio e quanto está a praticar o mais importante ato de defesa, que
é a contestação. Ocorre que como o direito do Estado, por ser da coletividade, é é a contestação. Ocorre que como o direito do Estado, por ser da coletividade, é
indisponível, a falta de contestação não pode resultar no efeito da revelia quanto indisponível, a falta de contestação não pode resultar no efeito da revelia quanto
aos fatos (presunção de que os fatos alegados pelo autor são verdadeiros), de aos fatos (presunção de que os fatos alegados pelo autor são verdadeiros), de
modo que, em princípio, o autor continua com o ônus da prova e o procurador de modo que, em princípio, o autor continua com o ônus da prova e o procurador de
Estado bem pode apresentar defesa quanto a matéria de direito. Apesar disso, como Estado bem pode apresentar defesa quanto a matéria de direito. Apesar disso, como
a falta de contestação quanto aos fatos tende, na prática, a gerar algum prejuízo, a falta de contestação quanto aos fatos tende, na prática, a gerar algum prejuízo,
a solução mais justa está em que, caso a caso, o procurador de Estado requeira a solução mais justa está em que, caso a caso, o procurador de Estado requeira
ao juiz a prorrogação de prazo razoável para contestar, alegando e provando as ao juiz a prorrogação de prazo razoável para contestar, alegando e provando as
circunstâncias pelas quais não foi possível atender ao prazo previsto em lei. Se o circunstâncias pelas quais não foi possível atender ao prazo previsto em lei. Se o
problema da dificuldade para contestar teve como causa o excesso de litisconsortes problema da dificuldade para contestar teve como causa o excesso de litisconsortes
ativos (litisconsórcio multitudinário) a solução é requerer ao juiz a limitação do ativos (litisconsórcio multitudinário) a solução é requerer ao juiz a limitação do
litisconsórcio com a providência do desdobramento de processos para um número litisconsórcio com a providência do desdobramento de processos para um número
que permita o direito a ampla defesa.18 que permita o direito a ampla defesa.18

18. No direito brasileiro o parágrafo único do art. 46, do CPC consagra expressamente tal providên- 18. No direito brasileiro o parágrafo único do art. 46, do CPC consagra expressamente tal providên-
cia ao dispor o seguinte: “O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de cia ao dispor o seguinte: “O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de
litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. O pedido litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. O pedido
de limitação interrompe o prazo para resposta, que recomeça da intimação da decisão”. Apesar de limitação interrompe o prazo para resposta, que recomeça da intimação da decisão”. Apesar
do dispositivo ora referido não ser expresso quando ao procedimento que o juiz deve seguir ao do dispositivo ora referido não ser expresso quando ao procedimento que o juiz deve seguir ao
decidir pela limitação do litisconsórcio, pensamos que tal limitação não significa que o processo decidir pela limitação do litisconsórcio, pensamos que tal limitação não significa que o processo
será extinto sem apreciação do mérito, nem exclusão de alguns litisconsortes, como quer parte da será extinto sem apreciação do mérito, nem exclusão de alguns litisconsortes, como quer parte da
doutrina, mas sim desmembramento do processo em tantos quantos sejam necessários mediante doutrina, mas sim desmembramento do processo em tantos quantos sejam necessários mediante
as respectivas cópias da petição inicial e documentos, ficando o custo de tal providência com os as respectivas cópias da petição inicial e documentos, ficando o custo de tal providência com os
demandantes. No sentido do nosso ponto de vista, cf: PASSOS, J. J. Calmon de, in Inovações no demandantes. No sentido do nosso ponto de vista, cf: PASSOS, J. J. Calmon de, in Inovações no
código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 78; FORNACIARI JÚNIOR, Clito, código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 78; FORNACIARI JÚNIOR, Clito,
in A reforma processual civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 12. Em sentido contrário, SILVA, in A reforma processual civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 12. Em sentido contrário, SILVA,
Ovídio A. Baptista da. Escreve o ora referido autor que “esta hipótese, que nos parece de evidente Ovídio A. Baptista da. Escreve o ora referido autor que “esta hipótese, que nos parece de evidente
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 157 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 157

Com relação ao ministério público há que distinguir os casos em que tal ins- Com relação ao ministério público há que distinguir os casos em que tal ins-
tituição está a agir no processo como parte dos casos em que está a atuar como tituição está a agir no processo como parte dos casos em que está a atuar como
“fiscal da lei”. Não se discute, ao menos não cabe discutir aqui, o privilégio de “fiscal da lei”. Não se discute, ao menos não cabe discutir aqui, o privilégio de
prazo conferido pelos ordenamentos jurídicos ao ministério público como “fiscal prazo conferido pelos ordenamentos jurídicos ao ministério público como “fiscal
da lei”. Mas quando o ministério público está a atuar nos processos como parte da lei”. Mas quando o ministério público está a atuar nos processos como parte
há que se aplicar, como regra, o princípio da igualdade. há que se aplicar, como regra, o princípio da igualdade.
O ministério público, apesar de ser uma instituição estatal, defende os O ministério público, apesar de ser uma instituição estatal, defende os
interesses da coletividade mais diretamente, agindo em juízo, não raro, contra interesses da coletividade mais diretamente, agindo em juízo, não raro, contra
agentes da Administração e contra o próprio Estado, mas também atua contra os agentes da Administração e contra o próprio Estado, mas também atua contra os
particulares. particulares.
Seja como for, tudo quanto acima dissemos quanto aos procuradores de Estado Seja como for, tudo quanto acima dissemos quanto aos procuradores de Estado
vale, no que couber, para os agentes do ministério público quando tal instituição vale, no que couber, para os agentes do ministério público quando tal instituição
agir como parte. agir como parte.
Deste modo, não há razão aceitável para se ter como constitucional a lei que Deste modo, não há razão aceitável para se ter como constitucional a lei que
estabelece privilégio de prazo à Fazenda Pública e ao ministério público, quando estabelece privilégio de prazo à Fazenda Pública e ao ministério público, quando
este estiver a atuar como parte, sendo aceitável, no entanto, a lei que autorize ao este estiver a atuar como parte, sendo aceitável, no entanto, a lei que autorize ao
juiz, caso a caso, conceder prorrogação de prazo sempre que as circunstâncias do juiz, caso a caso, conceder prorrogação de prazo sempre que as circunstâncias do
caso concreto justificarem tal providência.19 caso concreto justificarem tal providência.19

interesse e legitimidade, imporia que o juiz ordenasse o desmembramento do eventual litiscon- interesse e legitimidade, imporia que o juiz ordenasse o desmembramento do eventual litiscon-
sórcio formado através da petição inicial, para que os autores promovessem separadamente suas sórcio formado através da petição inicial, para que os autores promovessem separadamente suas
respectivas demandas, formando cumulações subjetivas menos numerosas (in Comentários ao respectivas demandas, formando cumulações subjetivas menos numerosas (in Comentários ao
código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, vol. 1, p. 206). código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, vol. 1, p. 206).
19. Nesse sentido, o art. 486.º, 4, do Código de Processo Civil português, dispõe, verbis: “Ao Mi- 19. Nesse sentido, o art. 486.º, 4, do Código de Processo Civil português, dispõe, verbis: “Ao Mi-
nistério Público é concedida prorrogação de prazo quando careça de informações que não possa nistério Público é concedida prorrogação de prazo quando careça de informações que não possa
obter dentro dele ou quando tenha de aguardar resposta a consulta feita a instância superior; o obter dentro dele ou quando tenha de aguardar resposta a consulta feita a instância superior; o
pedido deve ser fundamentado e a prorrogação não pode, em caso algum, ir além de 30 dias”. pedido deve ser fundamentado e a prorrogação não pode, em caso algum, ir além de 30 dias”.
Ressalte-se que em Portugal o ministério público também tem a atribuição de representar o Estado Ressalte-se que em Portugal o ministério público também tem a atribuição de representar o Estado
(CRP, art. 219º e CPC, art. 20º). Já passou o tempo de se acabar com essa tradição consagrada (CRP, art. 219º e CPC, art. 20º). Já passou o tempo de se acabar com essa tradição consagrada
pelas leis processuais brasileiras, com o beneplácito da doutrina e da jurisprudência esmagadoras pelas leis processuais brasileiras, com o beneplácito da doutrina e da jurisprudência esmagadoras
sem maior reflexão em torno do problema, esquecendo-se de que tanto privilégio injustificável sem maior reflexão em torno do problema, esquecendo-se de que tanto privilégio injustificável
compromete o princípio do processo em tempo razoável. Tome-se o exemplo de um processo em compromete o princípio do processo em tempo razoável. Tome-se o exemplo de um processo em
que um Estado-membro é réu em litisconsórcio passivo com um Município. Como os procuradores que um Estado-membro é réu em litisconsórcio passivo com um Município. Como os procuradores
dos réus são necessariamente diferentes, somando o privilégio de prazo (60 dias) concedido aos dos réus são necessariamente diferentes, somando o privilégio de prazo (60 dias) concedido aos
réus pelo fato de ambos serem entes qualificados como Fazenda Pública com o privilégio pelo réus pelo fato de ambos serem entes qualificados como Fazenda Pública com o privilégio pelo
fato de terem os mesmos procuradores diferentes (prazo em dobro), teriam todos um prazo de fato de terem os mesmos procuradores diferentes (prazo em dobro), teriam todos um prazo de
120 dias para contestar, o que é evidentemente um exagero injustificável. A Lei nº 10.259/2001 120 dias para contestar, o que é evidentemente um exagero injustificável. A Lei nº 10.259/2001
não admite privilégio de prazo nos processos dos juizados especiais federais (cf. art. 9º), e até o não admite privilégio de prazo nos processos dos juizados especiais federais (cf. art. 9º), e até o
momento não foi questionada. Por quê a Fazenda Pública não precisaria de prazos legais gerais momento não foi questionada. Por quê a Fazenda Pública não precisaria de prazos legais gerais
privilegiados nos juizados especiais e precisaria nos demais processos? A diferença não faz sentido, privilegiados nos juizados especiais e precisaria nos demais processos? A diferença não faz sentido,
impondo-se solução uniforme na linha do quanto consta na Lei dos Juizados Especiais, ressalvada, impondo-se solução uniforme na linha do quanto consta na Lei dos Juizados Especiais, ressalvada,
a possibilidade de prorrogação de prazo pelo juiz caso a caso. Na doutrina, no sentido da tese a possibilidade de prorrogação de prazo pelo juiz caso a caso. Na doutrina, no sentido da tese
aqui defendida, cf. TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição… cit., aqui defendida, cf. TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição… cit.,
p. 43-44. p. 43-44.
158 Wilson Alves de Souza 158 Wilson Alves de Souza

Ad argumentandum, a ser tida tal tipo de norma como constitucional há que Ad argumentandum, a ser tida tal tipo de norma como constitucional há que
se dar interpretação restritiva à mesma, não se devendo alargar a aplicação do se dar interpretação restritiva à mesma, não se devendo alargar a aplicação do
dispositivo em tela para hipóteses que não se ajustem ao texto legal, como quer dispositivo em tela para hipóteses que não se ajustem ao texto legal, como quer
parte da doutrina.20 parte da doutrina.20

5. Lei que concede privilégio de intimação pessoal aos 5. Lei que concede privilégio de intimação pessoal aos
defensores públicos defensores públicos
Há uma tendência no sentido de modernizar as intimações dos advogados Há uma tendência no sentido de modernizar as intimações dos advogados
das partes utilizando-se os meios oferecidos pela informática. Enquanto isso não das partes utilizando-se os meios oferecidos pela informática. Enquanto isso não
ocorre de maneira completa a intimação dos atos processuais se dá, em geral, em ocorre de maneira completa a intimação dos atos processuais se dá, em geral, em
cartório, pelo correio ou por agentes do próprio poder judiciário (oficiais de justiça) cartório, pelo correio ou por agentes do próprio poder judiciário (oficiais de justiça)
ou por meio de publicações em jornal oficial, caso no lugar haja circulação do ou por meio de publicações em jornal oficial, caso no lugar haja circulação do
mesmo. Como se percebe, no primeiro caso a intimação é pessoal (real), enquanto mesmo. Como se percebe, no primeiro caso a intimação é pessoal (real), enquanto
no segundo caso a intimação é ficta. no segundo caso a intimação é ficta.
Se no lugar não circula jornal oficial os advogados de ambas as partes são Se no lugar não circula jornal oficial os advogados de ambas as partes são
intimados pessoalmente, prevalecendo o princípio da igualdade por força das intimados pessoalmente, prevalecendo o princípio da igualdade por força das
circunstâncias. Ocorre que determinados ordenamentos jurídicos prescrevem que circunstâncias. Ocorre que determinados ordenamentos jurídicos prescrevem que
os defensores públicos, ou quem esteja a exercer as suas funções, devem sempre os defensores públicos, ou quem esteja a exercer as suas funções, devem sempre
ser intimados pessoalmente dos atos processuais, ainda que no lugar circule jor- ser intimados pessoalmente dos atos processuais, ainda que no lugar circule jor-
nal oficial.21 Como a outra parte é intimada pelo jornal oficial (intimação ficta), nal oficial.21 Como a outra parte é intimada pelo jornal oficial (intimação ficta),
é evidente o tratamento privilegiado em favor de uma das partes, na medida em é evidente o tratamento privilegiado em favor de uma das partes, na medida em
que há possibilidade de o advogado não ficar atento às publicações e, assim, dei- que há possibilidade de o advogado não ficar atento às publicações e, assim, dei-
xar de praticar atos processuais, o que significa possibilidade de a parte por ele xar de praticar atos processuais, o que significa possibilidade de a parte por ele
patrocinada perder direitos por força da preclusão, bastando imaginar o decurso patrocinada perder direitos por força da preclusão, bastando imaginar o decurso
do prazo para recorrer quando o recurso poderia reverter o resultado de um jul- do prazo para recorrer quando o recurso poderia reverter o resultado de um jul-
gamento que lhe foi desfavorável. gamento que lhe foi desfavorável.
Conforme visto acima, o privilégio de intimação pessoal não está posto em Conforme visto acima, o privilégio de intimação pessoal não está posto em
favor do defensor público ou de quem esteja a exercer as suas funções, mas sim favor do defensor público ou de quem esteja a exercer as suas funções, mas sim

20. Assim, por exemplo, se a lei diz que o privilégio de prazo é para contestar, como é o caso do CPC 20. Assim, por exemplo, se a lei diz que o privilégio de prazo é para contestar, como é o caso do CPC
brasileiro, não se deve estender tal privilégio para atos assemelhados, mas que não se caracterizam brasileiro, não se deve estender tal privilégio para atos assemelhados, mas que não se caracterizam
como contestação, como as exceções, a reconvenção e os embargos à execução, uma vez que como contestação, como as exceções, a reconvenção e os embargos à execução, uma vez que
as primeiras não justificam em nada o excesso de prazo, enquanto em relação aos últimos, por as primeiras não justificam em nada o excesso de prazo, enquanto em relação aos últimos, por
terem natureza de ação, continua a Fazenda Pública ou o ministério público com o direito de ação terem natureza de ação, continua a Fazenda Pública ou o ministério público com o direito de ação
autônoma. No sentido do texto, parcialmente quanto ao prazo para apresentação de embargos à autônoma. No sentido do texto, parcialmente quanto ao prazo para apresentação de embargos à
execução, ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários ao código de processo civil. 2ª ed. Rio execução, ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários ao código de processo civil. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1976, vol. II, pp. 138-139. No sentido do texto, integralmente, LIMA, Alcides de Janeiro: Forense, 1976, vol. II, pp. 138-139. No sentido do texto, integralmente, LIMA, Alcides
Mendonça. Reconvenção. In Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, nº 9, Mendonça. Reconvenção. In Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, nº 9,
pp. 265-271. No sentido da interpretação extensiva, cf. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios…, pp. 265-271. No sentido da interpretação extensiva, cf. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios…,
cit., pp. 46-47. cit., pp. 46-47.
21. O direito brasileiro consagra tal privilégio conforme visto em nota acima (nota nº 12). 21. O direito brasileiro consagra tal privilégio conforme visto em nota acima (nota nº 12).
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 159 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 159

do necessitado, pondo-se tal privilégio como um meio de minorar a desigualdade do necessitado, pondo-se tal privilégio como um meio de minorar a desigualdade
de armas entre as partes, ou, se existir tal igualdade (ambas as partes são neces- de armas entre as partes, ou, se existir tal igualdade (ambas as partes são neces-
sitadas), como meio de melhor exercício da defesa dos direitos. sitadas), como meio de melhor exercício da defesa dos direitos.
Deste modo, temos como justo e, assim, constitucional o dispositivo legal Deste modo, temos como justo e, assim, constitucional o dispositivo legal
que garante privilégio de intimação pessoal ao defensor público ou a quem esteja que garante privilégio de intimação pessoal ao defensor público ou a quem esteja
a exercer as suas funções. a exercer as suas funções.

6. Lei que concede privilégio de intimação pessoal 6. Lei que concede privilégio de intimação pessoal
aos procuradores de Estado e membros do ministério aos procuradores de Estado e membros do ministério
público público
Determinados ordenamentos jurídicos prescrevem que as intimações (notifi- Determinados ordenamentos jurídicos prescrevem que as intimações (notifi-
cações) aos advogados das partes devem ser reais, ou seja, feitas pessoalmente.22 cações) aos advogados das partes devem ser reais, ou seja, feitas pessoalmente.22
Outros sistemas prescrevem que as intimações (notificações) são fictas, é dizer, Outros sistemas prescrevem que as intimações (notificações) são fictas, é dizer,
feitas pela simples publicação em jornal oficial onde houver.23 Ocorre que às vezes feitas pela simples publicação em jornal oficial onde houver.23 Ocorre que às vezes
os ordenamentos que optam pelo sistema de intimação (notificação) ficta (por os ordenamentos que optam pelo sistema de intimação (notificação) ficta (por
mera publicação em jornal oficial) concedem ao Estado e ao ministério público mera publicação em jornal oficial) concedem ao Estado e ao ministério público
(esteja este a atuar como parte ou como “fiscal da lei”) privilégio de intimação (esteja este a atuar como parte ou como “fiscal da lei”) privilégio de intimação
real (pessoal).24 real (pessoal).24
Os motivos expostos nos itens anteriores são suficientes, no que couber, para Os motivos expostos nos itens anteriores são suficientes, no que couber, para
afirmarmos a inconstitucionalidade de tais dispositivos, repetindo que em relação afirmarmos a inconstitucionalidade de tais dispositivos, repetindo que em relação
ao ministério público a afirmativa só vale em caso de atuação como parte. ao ministério público a afirmativa só vale em caso de atuação como parte.

22. É o caso do Código de Processo Civil português ao dispor que “os mandatários são notificados 22. É o caso do Código de Processo Civil português ao dispor que “os mandatários são notificados
por carta registrada, dirigida para o seu escritório ou para o domicílio escolhido, podendo ser por carta registrada, dirigida para o seu escritório ou para o domicílio escolhido, podendo ser
também notificados pessoalmente pelo funcionário quando se encontrem no edifício do tribunal” também notificados pessoalmente pelo funcionário quando se encontrem no edifício do tribunal”
(art. 254º, 1). A notificação também pode ser feita por meio eletrônico, e tanto num caso como (art. 254º, 1). A notificação também pode ser feita por meio eletrônico, e tanto num caso como
noutro há presunção de realização, podendo tal presunção, no entanto, ser afastada mediante prova noutro há presunção de realização, podendo tal presunção, no entanto, ser afastada mediante prova
em contrário (cf. nºs. 2 a 6 do artigo 254.º). em contrário (cf. nºs. 2 a 6 do artigo 254.º).
23. É o caso do Código de Processo Civil brasileiro ao dispor que “no Distrito Federal e nas Capi- 23. É o caso do Código de Processo Civil brasileiro ao dispor que “no Distrito Federal e nas Capi-
tais dos Estados e Territórios, consideram-se feitas as intimações pela só publicação dos atos tais dos Estados e Territórios, consideram-se feitas as intimações pela só publicação dos atos
e termos do processo no órgão oficial” (art. 236, caput); “nas demais comarcas aplicar-se-á o e termos do processo no órgão oficial” (art. 236, caput); “nas demais comarcas aplicar-se-á o
disposto no artigo antecedente, se houver órgão de publicação dos atos oficiais” (art. 237, 1ª disposto no artigo antecedente, se houver órgão de publicação dos atos oficiais” (art. 237, 1ª
parte). parte).
24. É o caso do direito brasileiro (cf. os seguintes dispositivos legais: parágrafo 2º do art. 236 do 24. É o caso do direito brasileiro (cf. os seguintes dispositivos legais: parágrafo 2º do art. 236 do
CPC, com relação ao ministério público; art. 25, da Lei nº 6.830/1980 – Lei de Execução Fiscal; CPC, com relação ao ministério público; art. 25, da Lei nº 6.830/1980 – Lei de Execução Fiscal;
art. 38, da Lei Complementar nº 73/1993 – Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União; art. 41, art. 38, da Lei Complementar nº 73/1993 – Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União; art. 41,
IV, da Lei nº 8625/1993 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, que chega ao requinte IV, da Lei nº 8625/1993 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, que chega ao requinte
de expressar que essa intimação pessoal se dá “através da entrega dos autos com vista”; art. 18, de expressar que essa intimação pessoal se dá “através da entrega dos autos com vista”; art. 18,
II, h, da Lei Complementar nº 75/93 – Estatuto do Ministério Público da União, que fala em II, h, da Lei Complementar nº 75/93 – Estatuto do Ministério Público da União, que fala em
intimação pessoal nos autos). Essa forma requintada de intimação pessoal “nos autos” ou com intimação pessoal nos autos). Essa forma requintada de intimação pessoal “nos autos” ou com
“entrega dos autos com vista” tem propiciado a que alguns membros do ministério público, em “entrega dos autos com vista” tem propiciado a que alguns membros do ministério público, em
nada preocupados com a celeridade processual, tenham recusado intimações feitas por mandado nada preocupados com a celeridade processual, tenham recusado intimações feitas por mandado
judicial ou carta sem qualquer justificativa que não seja a de querer exigir a aplicação fria de uma judicial ou carta sem qualquer justificativa que não seja a de querer exigir a aplicação fria de uma
formalidade legal absolutamente desnecessária. formalidade legal absolutamente desnecessária.
160 Wilson Alves de Souza 160 Wilson Alves de Souza

Observe-se que a diferenciação de tratamento, no caso, aumenta o custo do Observe-se que a diferenciação de tratamento, no caso, aumenta o custo do
processo, porque faz-se mais uma intimação por um meio mais dispendioso, e processo, porque faz-se mais uma intimação por um meio mais dispendioso, e
contribui para o retardamento da prestação jurisdicional. contribui para o retardamento da prestação jurisdicional.

7. Lei que concede prioridade de julgamento nos pro- 7. Lei que concede prioridade de julgamento nos pro-
cessos em que o idoso figure como parte cessos em que o idoso figure como parte
Determinados ordenamentos jurídicos dispõem que os processos em que o Determinados ordenamentos jurídicos dispõem que os processos em que o
idoso figure como parte devem ter prioridade de julgamento. idoso figure como parte devem ter prioridade de julgamento.
O primeiro problema que surge aqui é a conveniência de inserir ou não na lei O primeiro problema que surge aqui é a conveniência de inserir ou não na lei
critério objetivo de idade com tal finalidade.25 critério objetivo de idade com tal finalidade.25
Optando o legislador pela estipulação de um critério objetivo de idade logo Optando o legislador pela estipulação de um critério objetivo de idade logo
se ­constata que nos casos concretos o juiz terá que sopesar situações bem diferen- se ­constata que nos casos concretos o juiz terá que sopesar situações bem diferen-
ciadas, a começar pelo fato de que a expectativa de vida das pessoas pode variar ciadas, a começar pelo fato de que a expectativa de vida das pessoas pode variar
muito num mesmo país de região para região. muito num mesmo país de região para região.
O tema também envolve outro fator de complicação que é o de que o legisla- O tema também envolve outro fator de complicação que é o de que o legisla-
dor costuma prever muitas outras situações que também merecem o privilégio da dor costuma prever muitas outras situações que também merecem o privilégio da
prioridade de julgamento, não raro sem estabelecer uma ordem objetiva, ficando, prioridade de julgamento, não raro sem estabelecer uma ordem objetiva, ficando,
na prática, a cargo do juiz fixar essa ordem de prioridade. na prática, a cargo do juiz fixar essa ordem de prioridade.
Em princípio, é de ter-se como justa e, assim, como constitucional a norma Em princípio, é de ter-se como justa e, assim, como constitucional a norma
que prever o privilégio da prioridade de julgamento em favor do idoso. No entanto, que prever o privilégio da prioridade de julgamento em favor do idoso. No entanto,
nos casos concretos nem sempre todos os idosos merecerão o mesmo tratamento, nos casos concretos nem sempre todos os idosos merecerão o mesmo tratamento,
ainda que se tenha que decidir a partir de critérios legais objetivos. De outro lado, ainda que se tenha que decidir a partir de critérios legais objetivos. De outro lado,
poderão existir casos em que uma das partes envolvidas não é pessoa idosa e o poderão existir casos em que uma das partes envolvidas não é pessoa idosa e o
processo mereça maior prioridade do que casos em que uma das partes é pessoa processo mereça maior prioridade do que casos em que uma das partes é pessoa
idosa. idosa.
Deste modo, o fundamento da prioridade de tramitação e julgamento de pro- Deste modo, o fundamento da prioridade de tramitação e julgamento de pro-
cessos em que o idoso é parte está em que há uma tendência a que as pessoas a cessos em que o idoso é parte está em que há uma tendência a que as pessoas a
partir de determi­nada idade estão mais próximas do final da vida, de modo que é partir de determi­nada idade estão mais próximas do final da vida, de modo que é
justo que seus processos sejam julgados com prioridade para que, uma vez ven- justo que seus processos sejam julgados com prioridade para que, uma vez ven-
cedor na demanda, possa usufruir do direito assegurado judicialmente. Assim, a cedor na demanda, possa usufruir do direito assegurado judicialmente. Assim, a
situação de desigualdade entre as pessoas em função da idade justifica o tratamento situação de desigualdade entre as pessoas em função da idade justifica o tratamento
legal diferenciado em favor do idoso.26 No entanto, apesar de a lei expressar tal legal diferenciado em favor do idoso.26 No entanto, apesar de a lei expressar tal

25. No direito brasileiro há norma expressa em torno do assunto. O art. 1211-A, do CPC (com redação 25. No direito brasileiro há norma expressa em torno do assunto. O art. 1211-A, do CPC (com redação
da Lei nº 10.173/2001), prescrevia que, para tal fim, o beneficiário tivesse idade mínima de 65 da Lei nº 10.173/2001), prescrevia que, para tal fim, o beneficiário tivesse idade mínima de 65
(sessenta e cinco) anos, mas tal dispositivo fora revogado pelo art. 71, da Lei nº 10.741/2003 (sessenta e cinco) anos, mas tal dispositivo fora revogado pelo art. 71, da Lei nº 10.741/2003
(Estatuto do Idoso), que fixou a idade mínima em 60 (sessenta) anos. (Estatuto do Idoso), que fixou a idade mínima em 60 (sessenta) anos.
26. Em sentido conforme, ARRUDA, Samuel Miranda. O direito fundamental ao processo em tempo 26. Em sentido conforme, ARRUDA, Samuel Miranda. O direito fundamental ao processo em tempo
razoável: fundamentos e conteúdo. Uma análise à luz do constitucionalismo luso-brasileiro. Tese razoável: fundamentos e conteúdo. Uma análise à luz do constitucionalismo luso-brasileiro. Tese
de doutoramento. Coimbra: 2003, pp. 186-187. de doutoramento. Coimbra: 2003, pp. 186-187.
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 161 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 161

circunstância, no particular, e ser omissa em tantos outros casos mais graves, não circunstância, no particular, e ser omissa em tantos outros casos mais graves, não
significará que o juiz deva seguir cegamente o texto legal e deixar de atender situ- significará que o juiz deva seguir cegamente o texto legal e deixar de atender situ-
ações que, na prática, exigem maior prioridade. Assim, por exemplo, o idoso nos ações que, na prática, exigem maior prioridade. Assim, por exemplo, o idoso nos
termos da lei pode, num caso concreto, se encontrar com boa qualidade de vida e termos da lei pode, num caso concreto, se encontrar com boa qualidade de vida e
com grande expectativa de vida, e enquanto isso o juiz tem que dar tramitação e com grande expectativa de vida, e enquanto isso o juiz tem que dar tramitação e
julgar processos de pessoas doentes, apesar de não idosas, que se encontram em julgar processos de pessoas doentes, apesar de não idosas, que se encontram em
estado terminal, situação que não mereceu do legislador posicionamento expresso. estado terminal, situação que não mereceu do legislador posicionamento expresso.
Em ­situações assim pensamos que é o caso de dar preferência de tramitação e Em ­situações assim pensamos que é o caso de dar preferência de tramitação e
julgamento aos processos em que os doentes em estado terminal são partes porque julgamento aos processos em que os doentes em estado terminal são partes porque
a razão jurídica do caso concreto é mais justificável do que aquela disciplinada a razão jurídica do caso concreto é mais justificável do que aquela disciplinada
expressamente pelo legislador. expressamente pelo legislador.
Com efeito, vê-se que esse tipo de norma tem, na prática, um certo grau de Com efeito, vê-se que esse tipo de norma tem, na prática, um certo grau de
inocuidade, de maneira que, na verdade, caberá ao juiz, diante, normalmente, da inocuidade, de maneira que, na verdade, caberá ao juiz, diante, normalmente, da
grande quantidade de casos que tem para despachar e julgar, dar a prioridade de- grande quantidade de casos que tem para despachar e julgar, dar a prioridade de-
vida segundo as circunstâncias dos casos concretos, ainda que não expressas em vida segundo as circunstâncias dos casos concretos, ainda que não expressas em
lei, tendo em vista uma série de variáveis que terá que examinar, ponderando tais lei, tendo em vista uma série de variáveis que terá que examinar, ponderando tais
circunstâncias segundo critérios de proporcionalidade e de razoabilidade. Assim circunstâncias segundo critérios de proporcionalidade e de razoabilidade. Assim
é que, por exemplo, os processos envolvendo pessoas que se encontram com sua é que, por exemplo, os processos envolvendo pessoas que se encontram com sua
liberdade individual cerceada ou ameaçados de detenção ou prisão devem ter liberdade individual cerceada ou ameaçados de detenção ou prisão devem ter
máxima prioridade, como também, numa sequência, os pedidos de liminar que máxima prioridade, como também, numa sequência, os pedidos de liminar que
envolvem possibilidade de ineficácia da decisão final estão em segundo lugar. envolvem possibilidade de ineficácia da decisão final estão em segundo lugar.
Em resumo, o dispositivo legal que prevê prioridade de tramitação a processos Em resumo, o dispositivo legal que prevê prioridade de tramitação a processos
em que o idoso figure como parte é, em princípio, constitucional. No entanto, não em que o idoso figure como parte é, em princípio, constitucional. No entanto, não
se trata de norma bastante em si mesma, podendo existir outros processos que se trata de norma bastante em si mesma, podendo existir outros processos que
mereçam tratamento mais prioritário a depender das circunstâncias de cada caso mereçam tratamento mais prioritário a depender das circunstâncias de cada caso
concreto, solução que o juiz terá que aplicar segundo critérios de proporcionali- concreto, solução que o juiz terá que aplicar segundo critérios de proporcionali-
dade e razoabilidade. dade e razoabilidade.

8. Lei que concede tratamento diferenciado em favor 8. Lei que concede tratamento diferenciado em favor
do Estado em caso de condenação em honorários de do Estado em caso de condenação em honorários de
advogado advogado
Em alguns ordenamentos jurídicos a lei ao impor ao vencido a sucumbência Em alguns ordenamentos jurídicos a lei ao impor ao vencido a sucumbência
integral, inclusive para condená-lo a pagar honorários de advogado à parte ven- integral, inclusive para condená-lo a pagar honorários de advogado à parte ven-
cedora, insere privilégio ao Estado no sentido de que quando este for vencido os cedora, insere privilégio ao Estado no sentido de que quando este for vencido os
honorários são fixados em valores menores.27 honorários são fixados em valores menores.27

27. No direito brasileiro o Código de Processo Civil concede tal privilégio ao Estado ao dispor o 27. No direito brasileiro o Código de Processo Civil concede tal privilégio ao Estado ao dispor o
seguinte: “Os honorários serão fixados entre o mínimo de 10% (dez por cento) e o máximo de seguinte: “Os honorários serão fixados entre o mínimo de 10% (dez por cento) e o máximo de
20% (vinte por cento) sobre o valor da condenação, atendidos: a) o grau de zelo do profissional; 20% (vinte por cento) sobre o valor da condenação, atendidos: a) o grau de zelo do profissional;
b) o lugar da prestação do serviço; c) a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo b) o lugar da prestação do serviço; c) a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo
162 Wilson Alves de Souza 162 Wilson Alves de Souza

O fundamento de tal sistema jurídico está em que demandante e demandado O fundamento de tal sistema jurídico está em que demandante e demandado
são forçados a contratar advogados para a defesa dos seus direitos perante os são forçados a contratar advogados para a defesa dos seus direitos perante os
tribunais, de maneira que o vencido deverá pagar honorários de advogado ao tribunais, de maneira que o vencido deverá pagar honorários de advogado ao
vencedor segundo determinados critérios gerais previstos em lei para o fim de vencedor segundo determinados critérios gerais previstos em lei para o fim de
que os direitos deste sejam recuperados plenamente, apesar de que, na prática, tal que os direitos deste sejam recuperados plenamente, apesar de que, na prática, tal
ressarcimento pleno nem sempre é atendido. Assim, por exemplo, se A propõe ressarcimento pleno nem sempre é atendido. Assim, por exemplo, se A propõe
ação de cobrança de 100 contra B, pagou 20 a seu advogado a título de honorários ação de cobrança de 100 contra B, pagou 20 a seu advogado a título de honorários
e obteve êxito total na demanda, mas o juiz fixou os honorários de sucumbência e obteve êxito total na demanda, mas o juiz fixou os honorários de sucumbência
em 10, no fundo só receberá 90, ou seja, para receber tudo a que teria direito os em 10, no fundo só receberá 90, ou seja, para receber tudo a que teria direito os
honorários deveriam ser fixados em 20.28 honorários deveriam ser fixados em 20.28
Com efeito, quem litiga contra o Estado, se vencido, terá que pagar honorários Com efeito, quem litiga contra o Estado, se vencido, terá que pagar honorários
de advogado segundo os critérios gerais previstos em lei, mas sendo vencedor de advogado segundo os critérios gerais previstos em lei, mas sendo vencedor
receberá menos que os valores que pagaria caso fosse vencedor, não se devendo receberá menos que os valores que pagaria caso fosse vencedor, não se devendo
perder de vista que teria um tratamento igualitário se o litigante opositor não perder de vista que teria um tratamento igualitário se o litigante opositor não
fosse o Estado. fosse o Estado.
Em verdade, nessa relação entre Estado e particular como partes em conflito Em verdade, nessa relação entre Estado e particular como partes em conflito
num mesmo processo, se tivesse que existir um tratamento diferenciado entre eles num mesmo processo, se tivesse que existir um tratamento diferenciado entre eles
a respeito desse tema – não se está aqui a defender essa tese, mas sim pondo-se a respeito desse tema – não se está aqui a defender essa tese, mas sim pondo-se
a questão só para argumentar – essa diferenciação deveria ser posta em favor a questão só para argumentar – essa diferenciação deveria ser posta em favor
do particular, porque este, por não ser, em regra, litigante habitual, é obrigado do particular, porque este, por não ser, em regra, litigante habitual, é obrigado
a contratar advogado num ou noutro caso em que tenha que defender direitos a contratar advogado num ou noutro caso em que tenha que defender direitos
judicialmente, enquanto aquele, por ser litigante habitual, dispõe de quadro de judicialmente, enquanto aquele, por ser litigante habitual, dispõe de quadro de
advogados, o que significa, em princípio, que aqueles terão custo mais elevado advogados, o que significa, em princípio, que aqueles terão custo mais elevado
do que estes com advogados. do que estes com advogados.

advogado e o tempo exigido para o seu serviço” (parágrafo 3º do art. 20). “Nas causas de pequeno advogado e o tempo exigido para o seu serviço” (parágrafo 3º do art. 20). “Nas causas de pequeno
alor, nas de valor inestimável, naquelas em que não houver condenação ou for vencida a Fazenda alor, nas de valor inestimável, naquelas em que não houver condenação ou for vencida a Fazenda
Pública, e nas execuções, embargadas ou não, os honorários serão fixados consoante apreciação Pública, e nas execuções, embargadas ou não, os honorários serão fixados consoante apreciação
equitativa do juiz, atendidas as normas das alíneas a, b e c do parágrafo anterior” (parágrafo 4º equitativa do juiz, atendidas as normas das alíneas a, b e c do parágrafo anterior” (parágrafo 4º
do art. 20). do art. 20).
28. Em verdade, o critério seguido pelo CPC brasileiro, como visto é relativo, e, ao nosso ver, 28. Em verdade, o critério seguido pelo CPC brasileiro, como visto é relativo, e, ao nosso ver,
é o mais acertado. A restituição absoluta dos valores que a parte vencedora despendeu com é o mais acertado. A restituição absoluta dos valores que a parte vencedora despendeu com
seu advogado só ocorreria se o vencido tivesse que restituir exatamente o que fora pago a tal seu advogado só ocorreria se o vencido tivesse que restituir exatamente o que fora pago a tal
título conforme recibos que a parte vencedora apresentasse. Esse critério absoluto não seria título conforme recibos que a parte vencedora apresentasse. Esse critério absoluto não seria
razoável, porque, de um lado, os preços dos honorários não costumam ser tabelados, sendo razoável, porque, de um lado, os preços dos honorários não costumam ser tabelados, sendo
fixados mediante acerto entre advogado e cliente, e, de outro lado, tamanha abertura poderia fixados mediante acerto entre advogado e cliente, e, de outro lado, tamanha abertura poderia
propiciar fraudes mediante a apresentação de recibos com valores não verdadeiros ou, ainda que propiciar fraudes mediante a apresentação de recibos com valores não verdadeiros ou, ainda que
não exista fraude, com valores exorbitantes prejudicando, assim, a parte vencida. Além disso não exista fraude, com valores exorbitantes prejudicando, assim, a parte vencida. Além disso
existem casos em que não há contrato entre as partes, como ocorre com o próprio Estado, com existem casos em que não há contrato entre as partes, como ocorre com o próprio Estado, com
determinadas empresas que dispõem de um quadro de advogados contratados como empregados determinadas empresas que dispõem de um quadro de advogados contratados como empregados
para defesa dos seus direitos genericamente, bem assim com os advogados que prestam serviços para defesa dos seus direitos genericamente, bem assim com os advogados que prestam serviços
gratuitamente. gratuitamente.
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 163 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 163

Como visto, não há nada que justifique tal tratamento diferenciado em fa- Como visto, não há nada que justifique tal tratamento diferenciado em fa-
vor do Estado, sendo injusto e, assim, inconstitucional o dispositivo legal que o vor do Estado, sendo injusto e, assim, inconstitucional o dispositivo legal que o
consagra.29 consagra.29

9. Lei que concede tratamento diferenciado em favor 9. Lei que concede tratamento diferenciado em favor
dos necessitados em caso de condenação em honorários dos necessitados em caso de condenação em honorários
de advogado de advogado
Conforme largamente visto acima, o tratamento diferenciado que se dá ao Conforme largamente visto acima, o tratamento diferenciado que se dá ao
necessitado em relação a honorários de advogado não é privilégio se comparado necessitado em relação a honorários de advogado não é privilégio se comparado
com o que se dá ao Estado. É que em relação a este reduz-se o valor dos hono- com o que se dá ao Estado. É que em relação a este reduz-se o valor dos hono-
rários, favor que não se concede àquele. O privilégio que se dá ao necessitado é rários, favor que não se concede àquele. O privilégio que se dá ao necessitado é
no sentido de não pagar os honorários em caso de sucumbência, não se devendo no sentido de não pagar os honorários em caso de sucumbência, não se devendo
perder de vista que isso fica a depender de não existir mudança na sua situação perder de vista que isso fica a depender de não existir mudança na sua situação
econômico-financeira num determinado lapso temporal fixado em lei. econômico-financeira num determinado lapso temporal fixado em lei.
O privilégio concedido ao necessitado no sentido de dispensá-lo do pagamento O privilégio concedido ao necessitado no sentido de dispensá-lo do pagamento
de honorários de sucumbência é posto pelo legislador em função de uma situação de honorários de sucumbência é posto pelo legislador em função de uma situação
econômica insuperável. Trata-se de um estado de necessidade, de maneira que o econômica insuperável. Trata-se de um estado de necessidade, de maneira que o
privilégio não é um favor legal, mas sim um direito fundamental, que, se não for privilégio não é um favor legal, mas sim um direito fundamental, que, se não for
atendido, está-se a negar às pessoas que se encontram em tal situação a possibi- atendido, está-se a negar às pessoas que se encontram em tal situação a possibi-
lidade de tutela dos seus direitos violados ou ameaçados de violação. Impõe-se, lidade de tutela dos seus direitos violados ou ameaçados de violação. Impõe-se,
pois, no caso, o tratamento desigual para tentar a igualdade material. pois, no caso, o tratamento desigual para tentar a igualdade material.

10. Lei que concede tratamento diferenciado em favor 10. Lei que concede tratamento diferenciado em favor
da Fazenda Pública e do ministério público com relação da Fazenda Pública e do ministério público com relação
a adiantamento de despesas processuais a adiantamento de despesas processuais
No que se refere ao custo do processo alguns ordenamentos expressam o No que se refere ao custo do processo alguns ordenamentos expressam o
princípio da sucumbência, de maneira que tal custo ficará a cargo da parte vencida, princípio da sucumbência, de maneira que tal custo ficará a cargo da parte vencida,
mas o adiantamento das despesas ficará a cargo do autor ou, com relação a certos mas o adiantamento das despesas ficará a cargo do autor ou, com relação a certos
atos, a cargo da parte que os requereu. Isso significa dizer que a parte que fez o atos, a cargo da parte que os requereu. Isso significa dizer que a parte que fez o
adiantamento de despesas processuais, sendo vencedora, deverá ser reembolsada adiantamento de despesas processuais, sendo vencedora, deverá ser reembolsada
pela parte vencida.30 pela parte vencida.30

29. No sentido da tese aqui defendida, cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios…, cit., pp. 29. No sentido da tese aqui defendida, cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios…, cit., pp.
40-42; TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição…, cit., pp. 47-50; 40-42; TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição…, cit., pp. 47-50;
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios…, cit., pp. 49-52. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios…, cit., pp. 49-52.
30. No direito brasileiro o Código de Processo Civil dá a seguinte regulamentação ao assunto: “Salvo 30. No direito brasileiro o Código de Processo Civil dá a seguinte regulamentação ao assunto: “Salvo
as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às partes prover as despesas dos atos que as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às partes prover as despesas dos atos que
realizam ou requerem no processo, antecipando-lhes o pagamento desde o início até sentença realizam ou requerem no processo, antecipando-lhes o pagamento desde o início até sentença
final; e bem ainda, na execução, até a plena satisfação do direito declarado pela sentença” (art. final; e bem ainda, na execução, até a plena satisfação do direito declarado pela sentença” (art.
19, caput). “O pagamento de que trata este artigo será feito por ocasião de cada ato processual” 19, caput). “O pagamento de que trata este artigo será feito por ocasião de cada ato processual”
(parágrafo 1º do art. 19). “Compete ao autor adiantar as despesas relativas a atos, cuja realização (parágrafo 1º do art. 19). “Compete ao autor adiantar as despesas relativas a atos, cuja realização
o juiz determinar de ofício ou a requerimento do Ministério Público” (parágrafo 2º do art. 19). o juiz determinar de ofício ou a requerimento do Ministério Público” (parágrafo 2º do art. 19).
164 Wilson Alves de Souza 164 Wilson Alves de Souza

No entanto, é muito frequente os ordenamentos jurídicos disporem que a No entanto, é muito frequente os ordenamentos jurídicos disporem que a
Fazenda Pública e o ministério público não adiantarão despesas processuais.31 Fazenda Pública e o ministério público não adiantarão despesas processuais.31
No que se refere às taxas, se o Estado é o próprio titular do crédito, não No que se refere às taxas, se o Estado é o próprio titular do crédito, não
adiantar o pagamento das mesmas não é um privilégio legal, mas sim um evidente adiantar o pagamento das mesmas não é um privilégio legal, mas sim um evidente
motivo lógico, na medida em que não se vai exigir ao credor adiantar um crédito motivo lógico, na medida em que não se vai exigir ao credor adiantar um crédito
em que ele mesmo seria o devedor, havendo, no caso verdadeira confusão. O em que ele mesmo seria o devedor, havendo, no caso verdadeira confusão. O
mesmo ocorre em relação às despesas processuais alusivas a atos a serem pra- mesmo ocorre em relação às despesas processuais alusivas a atos a serem pra-
ticados pelos próprios serventuários da justiça, porque é o Estado quem custeia ticados pelos próprios serventuários da justiça, porque é o Estado quem custeia
tais serviços.32 No entanto, se a Fazenda Pública ou o ministério público forem tais serviços.32 No entanto, se a Fazenda Pública ou o ministério público forem
vencidos, o reembolso ao vencedor deve ser imediato. Jogar o pagamento de tal vencidos, o reembolso ao vencedor deve ser imediato. Jogar o pagamento de tal
parcela para o sistema de precatório, como ocorre no Brasil, passa a ser violação parcela para o sistema de precatório, como ocorre no Brasil, passa a ser violação
ao princípio da isonomia.33 Para evitar esse inconveniente, a solução está em que se ao princípio da isonomia.33 Para evitar esse inconveniente, a solução está em que se
prescreva que a Fazenda Pública e o ministério público deverão depositar em juízo prescreva que a Fazenda Pública e o ministério público deverão depositar em juízo
os valores atinentes a tais despesas, devendo levantá-los aquele que vencer a causa. os valores atinentes a tais despesas, devendo levantá-los aquele que vencer a causa.
Não se pode dizer o mesmo com relação às despesas processuais que envol- Não se pode dizer o mesmo com relação às despesas processuais que envol-
vem créditos de terceiros. Assim, por exemplo, não se afigura constitucional a vem créditos de terceiros. Assim, por exemplo, não se afigura constitucional a
norma que dispõe no sentido de que a Fazenda Pública e o ministério público não norma que dispõe no sentido de que a Fazenda Pública e o ministério público não
adiantam as despesas alusivas a indenização com deslocamento de testemunhas adiantam as despesas alusivas a indenização com deslocamento de testemunhas
e honorários de perito. Aqui, além do injustificável tratamento diferenciado em e honorários de perito. Aqui, além do injustificável tratamento diferenciado em
relação à parte contrária, que tem de adiantar tais despesas quando estiverem a relação à parte contrária, que tem de adiantar tais despesas quando estiverem a
seu cargo, tal tipo de dispositivo legal é profundamente injusto para com tercei- seu cargo, tal tipo de dispositivo legal é profundamente injusto para com tercei-
ros, os quais só receberão os valores que desembolsaram ou créditos por serviços ros, os quais só receberão os valores que desembolsaram ou créditos por serviços
prestados ao final do processo.34 prestados ao final do processo.34

“A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários “A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários
advocatícios. Essa verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar advocatícios. Essa verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar
em causa própria” (art. 20, caput). em causa própria” (art. 20, caput).
31. No direito brasileiro o Código de Processo Civil dispõe que “as despesas dos atos processuais, 31. No direito brasileiro o Código de Processo Civil dispõe que “as despesas dos atos processuais,
efetuados a requerimento do Ministério Público ou da Fazenda Pública, serão pagas a final pelo efetuados a requerimento do Ministério Público ou da Fazenda Pública, serão pagas a final pelo
vencido” (art. 27). vencido” (art. 27).
32. Existem sistemas jurídicos em que o serviço judiciário alusivo aos serventuários é privatizado. 32. Existem sistemas jurídicos em que o serviço judiciário alusivo aos serventuários é privatizado.
No Brasil, o serviço judiciário da Justiça da União é público, o mesmo ocorrendo na maioria dos No Brasil, o serviço judiciário da Justiça da União é público, o mesmo ocorrendo na maioria dos
Estados-membros, mas uma minoria segue o sistema da privatização. Nos Estados-membros Estados-membros, mas uma minoria segue o sistema da privatização. Nos Estados-membros
em que o serviço judiciário é privatizado obviamente que o não adiantamento de taxas e outras em que o serviço judiciário é privatizado obviamente que o não adiantamento de taxas e outras
despesas processuais é inequivocamente um privilégio. despesas processuais é inequivocamente um privilégio.
33. Sob essa perspectiva têm razão, em termos, Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci 33. Sob essa perspectiva têm razão, em termos, Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci
quando afirmam que é inconstitucional a dispensa de adiantamento de taxas e certas despesas quando afirmam que é inconstitucional a dispensa de adiantamento de taxas e certas despesas
processuais pela Fazenda Pública e pelo ministério público, ou seja, o adiantamento só não seria processuais pela Fazenda Pública e pelo ministério público, ou seja, o adiantamento só não seria
exigido em caso de confusão nas qualidades de devedor e credor (In Constituição…, cit., p. 47). exigido em caso de confusão nas qualidades de devedor e credor (In Constituição…, cit., p. 47).
Pensamos que no caso de condenação da Fazenda Pública a pagar despesas processuais que o Pensamos que no caso de condenação da Fazenda Pública a pagar despesas processuais que o
autor adiantou não deve incidir o art. 100, da Constituição brasileira, porque tal dispositivo se autor adiantou não deve incidir o art. 100, da Constituição brasileira, porque tal dispositivo se
refere à condenação quanto ao próprio direito objeto da causa, não se estendendo à restituição de refere à condenação quanto ao próprio direito objeto da causa, não se estendendo à restituição de
despesas processuais que o autor fora forçado a adiantar. despesas processuais que o autor fora forçado a adiantar.
34. No sentido do texto, embora com fundamentos diferentes, NERY JUNIOR, Nelson. Princípios…, cit., 34. No sentido do texto, embora com fundamentos diferentes, NERY JUNIOR, Nelson. Princípios…, cit.,
pp. 56-57. pp. 56-57.
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 165 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 165

11. Lei que concede privilégio ao necessitado com rela- 11. Lei que concede privilégio ao necessitado com rela-
ção às custas e despesas processuais ção às custas e despesas processuais
Pelos motivos descritos acima quando tratamos dos honorários advocatícios, Pelos motivos descritos acima quando tratamos dos honorários advocatícios,
também não há inobservância do princípio da isonomia quando a lei dispensa o também não há inobservância do princípio da isonomia quando a lei dispensa o
necessitado de adiantar despesas processuais. Como visto, a situação de desi- necessitado de adiantar despesas processuais. Como visto, a situação de desi-
gualdade aqui é compensada com o tratamento desigual para exatamente tentar a gualdade aqui é compensada com o tratamento desigual para exatamente tentar a
igualdade real, além do que, sem tal providência estar-se-ia negando, na prática, igualdade real, além do que, sem tal providência estar-se-ia negando, na prática,
o acesso à justiça. o acesso à justiça.

12. Lei que isenta o autor de adiantamento de despesas 12. Lei que isenta o autor de adiantamento de despesas
processuais e do ônus da sucumbência no caso de ação processuais e do ônus da sucumbência no caso de ação
popular e ação civil pública popular e ação civil pública
Em determinados ordenamentos jurídicos o autor de ação popular e de ação Em determinados ordenamentos jurídicos o autor de ação popular e de ação
civil pública tem o privilégio de não adiantar taxas ou qualquer despesa processual, civil pública tem o privilégio de não adiantar taxas ou qualquer despesa processual,
bem assim de não sofrer as consequências da sucumbência, salvo comprovada bem assim de não sofrer as consequências da sucumbência, salvo comprovada
má-fé.35 má-fé.35
No caso da ação popular o cidadão tem legitimação ativa com o objetivo de No caso da ação popular o cidadão tem legitimação ativa com o objetivo de
defender o erário público. Aqui quem defende o interesse público não é o Estado, defender o erário público. Aqui quem defende o interesse público não é o Estado,
mas sim o próprio cidadão individualmente, embora nada impeça a formação mas sim o próprio cidadão individualmente, embora nada impeça a formação
de litisconsórcio. Nesse tipo de processo figuram como réus o próprio Estado, de litisconsórcio. Nesse tipo de processo figuram como réus o próprio Estado,
que pode deixar de contestar e ficar ao lado do autor, agentes da Administração que pode deixar de contestar e ficar ao lado do autor, agentes da Administração
Pública (políticos ou servidores comuns) e, a depender do caso, os particulares Pública (políticos ou servidores comuns) e, a depender do caso, os particulares
beneficiários do ato.36 beneficiários do ato.36
Deste modo, exigir que o cidadão adiante taxas judiciárias e demais despesas Deste modo, exigir que o cidadão adiante taxas judiciárias e demais despesas
do processo ou mesmo que, se vencido, sujeite-se ao ônus da sucumbência, sig- do processo ou mesmo que, se vencido, sujeite-se ao ônus da sucumbência, sig-
nifica, na prática, inviabilizar ou, ao menos, tornar muito difícil a ação popular, o nifica, na prática, inviabilizar ou, ao menos, tornar muito difícil a ação popular, o
que significa, na hipótese, impedir ou dificultar o acesso à justiça, com relação a que significa, na hipótese, impedir ou dificultar o acesso à justiça, com relação a
um dos institutos mais relevantes para toda a sociedade. um dos institutos mais relevantes para toda a sociedade.
Com relação à taxa judiciária e despesas processuais outras que não acarretam Com relação à taxa judiciária e despesas processuais outras que não acarretam
custo para terceiros não há maior problema a resolver, isto é, o autor popular não custo para terceiros não há maior problema a resolver, isto é, o autor popular não
terá que adiantá-las. Essa isenção não causa prejuízo a ninguém. Se a ação popular terá que adiantá-las. Essa isenção não causa prejuízo a ninguém. Se a ação popular
for julgada procedente os vencidos, salvo o próprio Estado, é óbvio, deverão ser for julgada procedente os vencidos, salvo o próprio Estado, é óbvio, deverão ser
condenados a pagar tais taxas e despesas caso o autor popular seja vencedor. Os condenados a pagar tais taxas e despesas caso o autor popular seja vencedor. Os
problemas certamente que surgirão, conforme análise infra, com relação às des- problemas certamente que surgirão, conforme análise infra, com relação às des-
pesas processuais adiantadas pelos réus, caso o autor popular seja vencido. pesas processuais adiantadas pelos réus, caso o autor popular seja vencido.

35. No direito brasileiro, cf., exatamente assim, quanto a ação popular, CF, art. 5º, LXXIII e art.10 35. No direito brasileiro, cf., exatamente assim, quanto a ação popular, CF, art. 5º, LXXIII e art.10
da Lei nº 4.717/1965; quanto a ação civil pública, art. 18 da Lei nº 7.347/1985. da Lei nº 4.717/1965; quanto a ação civil pública, art. 18 da Lei nº 7.347/1985.
36. No direito brasileiro, conferir os arts. 1º e 6º da Lei nº 4.717/1965. 36. No direito brasileiro, conferir os arts. 1º e 6º da Lei nº 4.717/1965.
166 Wilson Alves de Souza 166 Wilson Alves de Souza

Começam a surgir dificuldades em relação às despesas com atos processuais Começam a surgir dificuldades em relação às despesas com atos processuais
que geram custos imediatos para terceiros, conforme exemplos aqui já menciona- que geram custos imediatos para terceiros, conforme exemplos aqui já menciona-
dos, porque os mais evidentes e corriqueiros, como despesas com deslocamentos dos, porque os mais evidentes e corriqueiros, como despesas com deslocamentos
de testemunhas e adiantamento de honorários de perito e, principalmente, adian- de testemunhas e adiantamento de honorários de perito e, principalmente, adian-
tamento de despesas necessárias à realização de perícia, se for do autor o ônus da tamento de despesas necessárias à realização de perícia, se for do autor o ônus da
prova. Como na ação popular o cidadão está a defender o interesse público, que prova. Como na ação popular o cidadão está a defender o interesse público, que
é, do ponto de vista institucional, o interesse do Estado, deve o próprio Estado, é, do ponto de vista institucional, o interesse do Estado, deve o próprio Estado,
não importando se contestou a ação ou ficou ao lado do demandante,37 adiantar não importando se contestou a ação ou ficou ao lado do demandante,37 adiantar
tais despesas, porque aqui, a ser diferente, a injustiça não é propriamente contra tais despesas, porque aqui, a ser diferente, a injustiça não é propriamente contra
a parte contrária, mas sim contra esses terceiros. a parte contrária, mas sim contra esses terceiros.
Deste modo, em princípio, o fato de o autor popular não ter que adiantar Deste modo, em princípio, o fato de o autor popular não ter que adiantar
despesas processuais não fere o princípio da igualdade, pela excepcional razão despesas processuais não fere o princípio da igualdade, pela excepcional razão
de se tratar de um cidadão que está a defender o interesse público e não interesse de se tratar de um cidadão que está a defender o interesse público e não interesse
próprio. próprio.
Se os réus, tirante o Estado, adiantaram despesas processuais e venceram a Se os réus, tirante o Estado, adiantaram despesas processuais e venceram a
causa, pelos mesmos motivos descritos no item anterior, é de ter-se como justa a causa, pelos mesmos motivos descritos no item anterior, é de ter-se como justa a
norma constitucional que dispensa o autor do pagamento de tais despesas, bem norma constitucional que dispensa o autor do pagamento de tais despesas, bem
assim de honorários de advogado dos réus, caso o autor popular não tenha agido assim de honorários de advogado dos réus, caso o autor popular não tenha agido
de má-fé. No entanto, sempre partindo do pressuposto de que o autor popular não de má-fé. No entanto, sempre partindo do pressuposto de que o autor popular não
agiu de má-fé, não é consentânea com o princípio da igualdade a interpretação de agiu de má-fé, não é consentânea com o princípio da igualdade a interpretação de
que esse ônus deve ser suportado pelos próprios réus vencedores. Ora, esses réus que esse ônus deve ser suportado pelos próprios réus vencedores. Ora, esses réus
(apenas os funcionários que participaram do ato e os beneficiários do ato) tiveram (apenas os funcionários que participaram do ato e os beneficiários do ato) tiveram
que adiantar despesas processuais e contratar advogado e venceram a causa, de que adiantar despesas processuais e contratar advogado e venceram a causa, de
maneira que não é justo que não sejam ressarcidos de tais despesas. Sendo certo maneira que não é justo que não sejam ressarcidos de tais despesas. Sendo certo
que não se deve impor a obrigação de tal restituição ao autor popular, quem deve que não se deve impor a obrigação de tal restituição ao autor popular, quem deve
suportá-la é o próprio Estado, não importando se contestou a ação ou se ficou ao suportá-la é o próprio Estado, não importando se contestou a ação ou se ficou ao
lado do autor, porque o cidadão demandante estava a defender o interesse público, lado do autor, porque o cidadão demandante estava a defender o interesse público,
o que significa dizer o interesse do próprio Estado. o que significa dizer o interesse do próprio Estado.
Se o cidadão agiu de má-fé é justo que ele deva arcar com o ônus da sucum- Se o cidadão agiu de má-fé é justo que ele deva arcar com o ônus da sucum-
bência. bência.
No que se refere a ação civil pública proposta por entidades associativas No que se refere a ação civil pública proposta por entidades associativas
necessário se faz distinguir se estão a defender interesse público (no sentido necessário se faz distinguir se estão a defender interesse público (no sentido
de interesse do Estado) ou se estão a defender interesses de particulares. Se de interesse do Estado) ou se estão a defender interesses de particulares. Se

37. A ação popular tem a peculiaridade de o Estado ser necessariamente réu no processo, mas com 37. A ação popular tem a peculiaridade de o Estado ser necessariamente réu no processo, mas com
opção de contestar a ação ou assumir posição ao lado do autor (Conferir no direito brasileiro, Lei opção de contestar a ação ou assumir posição ao lado do autor (Conferir no direito brasileiro, Lei
nº 4.717/1965, parágrafo 3º do art. 6º). Isso não é de estranhar, porque o cidadão autor pode ter nº 4.717/1965, parágrafo 3º do art. 6º). Isso não é de estranhar, porque o cidadão autor pode ter
ou não ter razão no seu objetivo de defender o interesse público ao questionar o ato impugnado ou não ter razão no seu objetivo de defender o interesse público ao questionar o ato impugnado
como lesivo ao erário público, de maneira que nada mais normal do que o Estado assumir posição como lesivo ao erário público, de maneira que nada mais normal do que o Estado assumir posição
processual ao lado do demandante caso, na visão dos seus atuais dirigentes, se verifique a primeira processual ao lado do demandante caso, na visão dos seus atuais dirigentes, se verifique a primeira
hipótese. hipótese.
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 167 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 167

determinada associação figura como autora para defender o interesse público, a determinada associação figura como autora para defender o interesse público, a
solução deve ser a mesma que se deu ao caso do autor popular, porque as razões solução deve ser a mesma que se deu ao caso do autor popular, porque as razões
jurídicas são as mesmas. jurídicas são as mesmas.
Se a associação autora defende interesses de particulares há que se examinar a Se a associação autora defende interesses de particulares há que se examinar a
sua capacidade financeira. Tendo capacidade financeira deve a associação adiantar sua capacidade financeira. Tendo capacidade financeira deve a associação adiantar
as despesas processuais e, se vencida, suportar o ônus da sucumbência como em as despesas processuais e, se vencida, suportar o ônus da sucumbência como em
qualquer processo, porque solução contrária fere o princípio da igualdade, não qualquer processo, porque solução contrária fere o princípio da igualdade, não
havendo qualquer razão jurídica para tratamento diferenciado entre as partes ape- havendo qualquer razão jurídica para tratamento diferenciado entre as partes ape-
nas pelo tipo de ação. Se a associação autora não tem capacidade financeira para nas pelo tipo de ação. Se a associação autora não tem capacidade financeira para
suportar o custo do processo, caracteriza-se como necessitada e, assim, titular do suportar o custo do processo, caracteriza-se como necessitada e, assim, titular do
direito à gratuidade da justiça nos termos acima expostos. direito à gratuidade da justiça nos termos acima expostos.
Se a ação civil pública for proposta pelo ministério público ou pelo Estado não Se a ação civil pública for proposta pelo ministério público ou pelo Estado não
há razão jurídica para tratá-los de maneira diferentes dos casos comuns. O fato de há razão jurídica para tratá-los de maneira diferentes dos casos comuns. O fato de
se tratar de ação civil pública não justifica que o réu vencedor da causa, que teve se tratar de ação civil pública não justifica que o réu vencedor da causa, que teve
que adiantar despesas processuais e contratar advogado, não seja devidamente que adiantar despesas processuais e contratar advogado, não seja devidamente
ressarcido como em qualquer processo. A solução contrária fere o princípio da ressarcido como em qualquer processo. A solução contrária fere o princípio da
igualdade. igualdade.

13. Tratamento diferenciado entre réus com relação 13. Tratamento diferenciado entre réus com relação
ao efeito da revelia ao efeito da revelia
De um modo geral os ordenamentos jurídicos dão a revelia efeitos jurídicos De um modo geral os ordenamentos jurídicos dão a revelia efeitos jurídicos
drásticos, principalmente no que se refere à presunção de verdade dos fatos ale- drásticos, principalmente no que se refere à presunção de verdade dos fatos ale-
gados pelo autor.38 gados pelo autor.38
Ao mesmo tempo, em geral, dispõem tais ordenamentos que essa regra de Ao mesmo tempo, em geral, dispõem tais ordenamentos que essa regra de
presunção de verdade dos fatos alegados pelo autor em caso de falta de contestação presunção de verdade dos fatos alegados pelo autor em caso de falta de contestação
não se aplica a todos os casos, principal e particularmente quando os direitos do não se aplica a todos os casos, principal e particularmente quando os direitos do
réu são indisponíveis.39 réu são indisponíveis.39
Se os direitos do réu são indisponíveis não há como não dar, no caso, trata- Se os direitos do réu são indisponíveis não há como não dar, no caso, trata-
mento diferenciado para afastar a regra de presunção de verdade dos fatos alegados mento diferenciado para afastar a regra de presunção de verdade dos fatos alegados
pelo autor. As razões, aqui, para o afastamento de tal regra, mais do que jurídicas, pelo autor. As razões, aqui, para o afastamento de tal regra, mais do que jurídicas,
são de natureza lógica, porquanto, do contrário, teríamos que desconsiderar o fato são de natureza lógica, porquanto, do contrário, teríamos que desconsiderar o fato

38. O direito brasileiro segue essa linha de orientação, conforme se vê do quanto consta no art. 319 38. O direito brasileiro segue essa linha de orientação, conforme se vê do quanto consta no art. 319
do CPC. Assim: “Se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo do CPC. Assim: “Se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo
autor”. autor”.
39. No CPC brasileiro consta tal exceção nos seguintes termos: “A revelia não induz, contudo, o efeito 39. No CPC brasileiro consta tal exceção nos seguintes termos: “A revelia não induz, contudo, o efeito
mencionado no artigo antecedente: I – se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar mencionado no artigo antecedente: I – se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar
a ação; II – se o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III – se a petição inicial não estiver a ação; II – se o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III – se a petição inicial não estiver
acompanhada do instrumento público, que a lei considere indispensável à prova do ato” (art. acompanhada do instrumento público, que a lei considere indispensável à prova do ato” (art.
320). 320).
168 Wilson Alves de Souza 168 Wilson Alves de Souza

de os direitos do réu serem indisponíveis. Se assim é, tal tipo de dispositivo legal de os direitos do réu serem indisponíveis. Se assim é, tal tipo de dispositivo legal
que prescreve tratamento diferenciado não fere o princípio da igualdade. que prescreve tratamento diferenciado não fere o princípio da igualdade.
Havendo litisconsórcio passivo unitário e contestação de apenas um dos réus Havendo litisconsórcio passivo unitário e contestação de apenas um dos réus
litisconsortes não se aplica o efeito de revelia ao réu litisconsorte que não apre- litisconsortes não se aplica o efeito de revelia ao réu litisconsorte que não apre-
sentou contestação. Aqui também as motivações para o tratamento diferenciado sentou contestação. Aqui também as motivações para o tratamento diferenciado
são, mais do que jurídicas, lógicas. É que o litisconsórcio unitário ou uniforme são, mais do que jurídicas, lógicas. É que o litisconsórcio unitário ou uniforme
tem como característica o fato de o julgamento ter, necessariamente, o mesmo tem como característica o fato de o julgamento ter, necessariamente, o mesmo
resultado em relação a todos os litisconsortes, de modo que não há como incidir resultado em relação a todos os litisconsortes, de modo que não há como incidir
a regra que prescreve o efeito da revelia em relação a todos os réus, vez que isto a regra que prescreve o efeito da revelia em relação a todos os réus, vez que isto
resultaria em prejudicar o réu que apresentou contestação, como também não resultaria em prejudicar o réu que apresentou contestação, como também não
existe possibilidade de se aplicar tal regra apenas em relação ao réu que não existe possibilidade de se aplicar tal regra apenas em relação ao réu que não
apresentou contestação ante o fato de que a lógica do julgamento necessariamente apresentou contestação ante o fato de que a lógica do julgamento necessariamente
com o mesmo resultado o impediria. Aliás, essa é a razão pela qual, nas mesmas com o mesmo resultado o impediria. Aliás, essa é a razão pela qual, nas mesmas
circunstâncias (litisconsórcio unitário ou uniforme), o recurso interposto apenas circunstâncias (litisconsórcio unitário ou uniforme), o recurso interposto apenas
por um litisconsorte aproveita aos demais.40 Evidentemente que também aqui o por um litisconsorte aproveita aos demais.40 Evidentemente que também aqui o
princípio da igualdade resta observado. princípio da igualdade resta observado.
Também não há como incidir a regra de presunção de verdade dos fatos ale- Também não há como incidir a regra de presunção de verdade dos fatos ale-
gados pelo autor em caso de falta de contestação quando não se juntou à petição gados pelo autor em caso de falta de contestação quando não se juntou à petição
inicial documento indispensável à prova do ato. Nesse caso, o documento é consi- inicial documento indispensável à prova do ato. Nesse caso, o documento é consi-
derado substancial, de maneira que sua falta significa que o autor não tem o direito derado substancial, de maneira que sua falta significa que o autor não tem o direito
alegado. Em verdade, nesse caso, na perspectiva do autor, o problema é de falta alegado. Em verdade, nesse caso, na perspectiva do autor, o problema é de falta
de pressuposto de desenvolvimento regular do processo, de modo que a falta de de pressuposto de desenvolvimento regular do processo, de modo que a falta de
documento indispensável exige que o juiz conceda ao autor prazo previsto em lei documento indispensável exige que o juiz conceda ao autor prazo previsto em lei
para juntada de tal documento.41 Não ocorrendo a juntada do documento no prazo para juntada de tal documento.41 Não ocorrendo a juntada do documento no prazo
legal a petição inicial não deve ser admitida, devendo o juiz, portanto, extinguir o legal a petição inicial não deve ser admitida, devendo o juiz, portanto, extinguir o
processo sem resolução do mérito. Se é assim, na realidade, não haveria como se processo sem resolução do mérito. Se é assim, na realidade, não haveria como se
falar em revelia, porque o réu não precisaria ser citado. Se houve citação do réu falar em revelia, porque o réu não precisaria ser citado. Se houve citação do réu
em tal circunstância é porque o juiz não ficou atento às providências preliminares em tal circunstância é porque o juiz não ficou atento às providências preliminares
que deveria impor no objetivo de sanear o processo. Deste modo, se ocorreu des- que deveria impor no objetivo de sanear o processo. Deste modo, se ocorreu des-
necessariamente citação do réu e este não apresentou contestação há que incidir necessariamente citação do réu e este não apresentou contestação há que incidir
a norma que excepciona a regra de presunção de verdade dos fatos alegados pelo a norma que excepciona a regra de presunção de verdade dos fatos alegados pelo
autor, mas como o autor tem direito de emendar à petição inicial, não ocorrendo autor, mas como o autor tem direito de emendar à petição inicial, não ocorrendo
tal emenda tempestivamente o juiz não deverá admitir a petição inicial, julgando tal emenda tempestivamente o juiz não deverá admitir a petição inicial, julgando
extinto o processo sem resolução do mérito. Mas se o autor emendar a petição extinto o processo sem resolução do mérito. Mas se o autor emendar a petição
inicial tempestivamente o procedimento correto será repetir a citação do réu. inicial tempestivamente o procedimento correto será repetir a citação do réu.

40. No direito brasileiro o assunto está disciplinado no art. 509 e parágrafo único, do CPC, nos seguintes 40. No direito brasileiro o assunto está disciplinado no art. 509 e parágrafo único, do CPC, nos seguintes
termos: “O recurso interposto por um dos litisconsortes a todos aproveita, salvo se distintos ou termos: “O recurso interposto por um dos litisconsortes a todos aproveita, salvo se distintos ou
opostos os seus interesses”. “Havendo solidariedade passiva, o recurso interposto por um devedor opostos os seus interesses”. “Havendo solidariedade passiva, o recurso interposto por um devedor
aproveitará aos outros, quando as defesas opostas ao credor lhes forem comuns”. aproveitará aos outros, quando as defesas opostas ao credor lhes forem comuns”.
41. No direito brasileiro, é o que se deduz do quanto consta nos arts. 283 e 284 e parágrafo único do 41. No direito brasileiro, é o que se deduz do quanto consta nos arts. 283 e 284 e parágrafo único do
CPC. CPC.
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 169 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 169

Na linha do exposto acima, ainda que haja omissão da lei, deve o juiz, em Na linha do exposto acima, ainda que haja omissão da lei, deve o juiz, em
aplicação ao princípio da igualdade, bem assim, aos princípios do contraditório e aplicação ao princípio da igualdade, bem assim, aos princípios do contraditório e
da ampla defesa, ter cuidado especial em caso de revelia quando tem elementos da ampla defesa, ter cuidado especial em caso de revelia quando tem elementos
para saber que o réu é necessitado, ou surgiram esses elementos posteriormente, para saber que o réu é necessitado, ou surgiram esses elementos posteriormente,
no sentido de desconsiderar a revelia e oficiar a defensoria pública ou órgão no sentido de desconsiderar a revelia e oficiar a defensoria pública ou órgão
equivalente, onde houver, para indicar defensor em favor do réu, ou, na sua falta, equivalente, onde houver, para indicar defensor em favor do réu, ou, na sua falta,
providenciar ele próprio essa designação, reabrindo-se o prazo para defesa. Tal providenciar ele próprio essa designação, reabrindo-se o prazo para defesa. Tal
providência é o mínimo que se deve fazer para o fim de que seja observado o providência é o mínimo que se deve fazer para o fim de que seja observado o
princípio da igualdade e em atenção à idéia de um processo para além de uma princípio da igualdade e em atenção à idéia de um processo para além de uma
visão meramente técnica. visão meramente técnica.

14. Lei que concede privilégio do duplo grau obrigatório 14. Lei que concede privilégio do duplo grau obrigatório
de jurisdição em favor de determinados entes estatais de jurisdição em favor de determinados entes estatais
Alguns ordenamentos jurídicos prescrevem privilégios a determinados entes Alguns ordenamentos jurídicos prescrevem privilégios a determinados entes
estatais ao instituírem o duplo grau obrigatório de jurisdição nos casos de sentença estatais ao instituírem o duplo grau obrigatório de jurisdição nos casos de sentença
proferida contra tais entes.42 proferida contra tais entes.42
O duplo grau obrigatório de jurisdição significa que o julgamento de primeiro O duplo grau obrigatório de jurisdição significa que o julgamento de primeiro
grau existe, mas é ineficaz porque, a atuação jurisdicional está incompleta, im- grau existe, mas é ineficaz porque, a atuação jurisdicional está incompleta, im-
pondo-se o julgamento por outro órgão jurisdicional hierarquicamente superior pondo-se o julgamento por outro órgão jurisdicional hierarquicamente superior
competente, independentemente de recurso da parte vencida. Daí o instituto ser competente, independentemente de recurso da parte vencida. Daí o instituto ser
também denominado de remessa necessária ou remessa oficial, ou, ainda, impro- também denominado de remessa necessária ou remessa oficial, ou, ainda, impro-
priamente, de recurso de ofício. priamente, de recurso de ofício.
Sem o privilégio do reexame necessário, apresentada a sentença pelo órgão Sem o privilégio do reexame necessário, apresentada a sentença pelo órgão
jurisdicional de 1º grau com os devidos fundamentos, é ônus da parte vencida jurisdicional de 1º grau com os devidos fundamentos, é ônus da parte vencida
interpor o recurso previsto no sistema, de maneira que a falta de recurso tempestivo interpor o recurso previsto no sistema, de maneira que a falta de recurso tempestivo
forma a coisa julgada. forma a coisa julgada.
Não há razão jurídica para que se dê tratamento diferenciado às partes do Não há razão jurídica para que se dê tratamento diferenciado às partes do
processo impondo-se a uma delas o ônus de recorrer e dispensando a outra de tal processo impondo-se a uma delas o ônus de recorrer e dispensando a outra de tal
ônus. O Estado deve se aparelhar com pessoal suficiente para cumprir os prazos ônus. O Estado deve se aparelhar com pessoal suficiente para cumprir os prazos

42. É o caso do direito brasileiro que dispõe sobre o tema no art. 475, caput, do CPC, nos seguintes 42. É o caso do direito brasileiro que dispõe sobre o tema no art. 475, caput, do CPC, nos seguintes
termos: “Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de con- termos: “Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de con-
firmada pelo tribunal, a sentença: I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal o firmada pelo tribunal, a sentença: I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal o
Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público; II – que julgar procedentes, Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público; II – que julgar procedentes,
no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI)”. no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI)”.
Os parágrafos 1º e 2º do art. 475 excepcionam a aplicação deste artigo nos casos em que o direito Os parágrafos 1º e 2º do art. 475 excepcionam a aplicação deste artigo nos casos em que o direito
controvertido não exceda a 60 (sessenta) salários mínimos e nas hipóteses em que a sentença está controvertido não exceda a 60 (sessenta) salários mínimos e nas hipóteses em que a sentença está
em conformidade com jurisprudência do plenário ou súmula do Supremo Tribunal Federal ou em conformidade com jurisprudência do plenário ou súmula do Supremo Tribunal Federal ou
súmula de tribunal superior. Em outras leis extravagantes também consta previsão de sentenças súmula de tribunal superior. Em outras leis extravagantes também consta previsão de sentenças
sujeitas a duplo grau obrigatório de jurisdição, a exemplo da Lei nº 1.533/1951 – Lei do Mandado sujeitas a duplo grau obrigatório de jurisdição, a exemplo da Lei nº 1.533/1951 – Lei do Mandado
de Segurança, parágrafo único do art. 12, e da Lei nº 4.717/1965 – Lei da Ação Popular, art. 19. de Segurança, parágrafo único do art. 12, e da Lei nº 4.717/1965 – Lei da Ação Popular, art. 19.
170 Wilson Alves de Souza 170 Wilson Alves de Souza

processuais. O máximo que se pode conceder é uma prorrogação do prazo por processuais. O máximo que se pode conceder é uma prorrogação do prazo por
tempo razoável, caso se apresente ao juiz alegações e provas que justifiquem tal tempo razoável, caso se apresente ao juiz alegações e provas que justifiquem tal
excepcional providência. Se não existir tal circunstância e não houve interposição excepcional providência. Se não existir tal circunstância e não houve interposição
de recurso o problema é de responsabilidade funcional do advogado do Estado de recurso o problema é de responsabilidade funcional do advogado do Estado
encarregado do caso, ou então a hipótese é de orientação em não recorrer dado o encarregado do caso, ou então a hipótese é de orientação em não recorrer dado o
inequívoco acerto da sentença. Deste modo, o duplo grau obrigatório de jurisdição, inequívoco acerto da sentença. Deste modo, o duplo grau obrigatório de jurisdição,
por ser um privilégio injustificável, viola o princípio da igualdade, além de fazer por ser um privilégio injustificável, viola o princípio da igualdade, além de fazer
dilatar o encerramento do processo desnecessariamente, o que também resulta em dilatar o encerramento do processo desnecessariamente, o que também resulta em
violação ao princípio do processo em tempo razoável. violação ao princípio do processo em tempo razoável.

15. Lei que concede privilégio de inversão do ônus da 15. Lei que concede privilégio de inversão do ônus da
prova em favor do consumidor prova em favor do consumidor
A teoria clássica a respeito do tema do ônus da prova afirma que ao autor cabe A teoria clássica a respeito do tema do ônus da prova afirma que ao autor cabe
provar os fatos constitutivos do seu alegado direito, enquanto ao réu cabe a prova provar os fatos constitutivos do seu alegado direito, enquanto ao réu cabe a prova
dos fatos extintivos, modificativos e impeditivos que alegar na defesa.43 dos fatos extintivos, modificativos e impeditivos que alegar na defesa.43
Alguns ordenamentos jurídicos contêm normas que consagram privilégio de Alguns ordenamentos jurídicos contêm normas que consagram privilégio de
inversão do ônus da prova em favor do consumidor.44 inversão do ônus da prova em favor do consumidor.44
Os dispositivos legais que constam nos ordenamentos jurídicos seguindo Os dispositivos legais que constam nos ordenamentos jurídicos seguindo
integralmente a teoria clássica não passam de um ponto de partida como regra, integralmente a teoria clássica não passam de um ponto de partida como regra,
de maneira nem de longe servem para resolver todos os casos que surgem no de maneira nem de longe servem para resolver todos os casos que surgem no
processo. Segundo tal teoria em todos os processos em que o réu apresentar processo. Segundo tal teoria em todos os processos em que o réu apresentar
contestação sem alegar fatos extintivos, modificativos ou impeditivos o ônus da contestação sem alegar fatos extintivos, modificativos ou impeditivos o ônus da
prova é exclusivamente do autor, do mesmo modo que sempre que o réu apresentar prova é exclusivamente do autor, do mesmo modo que sempre que o réu apresentar
contestação alegando fato extintivo, modificativo ou impeditivo o ônus da prova contestação alegando fato extintivo, modificativo ou impeditivo o ônus da prova
é exclusivamente do réu em relação a esses fatos. é exclusivamente do réu em relação a esses fatos.
Se o juiz tivesse que seguir à risca o dispositivo legal consagrador de tal Se o juiz tivesse que seguir à risca o dispositivo legal consagrador de tal
teoria em todos os casos certamente que cometeria injustiça em muitos deles. A teoria em todos os casos certamente que cometeria injustiça em muitos deles. A
posição mais apropriada em torno desse assunto, no nosso entendimento, é a que posição mais apropriada em torno desse assunto, no nosso entendimento, é a que
está consubstanciada na teoria das cargas probatórias dinâmicas, segundo a está consubstanciada na teoria das cargas probatórias dinâmicas, segundo a
qual o ônus da prova deve ser atribuído pelo juiz à parte que estiver em melhores qual o ônus da prova deve ser atribuído pelo juiz à parte que estiver em melhores
condições de provar segundo as circunstâncias de cada caso concreto.45 condições de provar segundo as circunstâncias de cada caso concreto.45

43. O CPC brasileiro segue essa doutrina tradicional, ao dispor o seguinte: “O ônus da prova incumbe: 43. O CPC brasileiro segue essa doutrina tradicional, ao dispor o seguinte: “O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato
impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor” (art. 333). impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor” (art. 333).
44. No direito brasileiro a Lei nº 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor dispõe que é direito 44. No direito brasileiro a Lei nº 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor dispõe que é direito
básico do consumidor “a facilitação da defesa dos seus direitos, inclusive com a inversão do ônus básico do consumidor “a facilitação da defesa dos seus direitos, inclusive com a inversão do ônus
da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou
quando for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência” (art. 6º, VIII). quando for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência” (art. 6º, VIII).
45. Cf. sobre o assunto nosso trabalho Ônus da prova – considerações sobre a doutrina das cargas 45. Cf. sobre o assunto nosso trabalho Ônus da prova – considerações sobre a doutrina das cargas
probatórias dinâmicas. In Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA. Salvador: Fa- probatórias dinâmicas. In Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA. Salvador: Fa-
culdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 1999, vol. VI, pp. 235-260. culdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 1999, vol. VI, pp. 235-260.
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 171 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 171

Deste modo, os ordenamentos jurídicos que invertem as regras do ônus da Deste modo, os ordenamentos jurídicos que invertem as regras do ônus da
prova em favor do consumidor estão a seguir essa teoria, na medida em que existe prova em favor do consumidor estão a seguir essa teoria, na medida em que existe
uma hipossuficiência técnica do consumidor em relação ao fornecedor, de maneira uma hipossuficiência técnica do consumidor em relação ao fornecedor, de maneira
que tal privilégio conferido pela lei ao consumidor visa atender, no particular, ao que tal privilégio conferido pela lei ao consumidor visa atender, no particular, ao
princípio da igualdade. No entanto, isso não significa que a norma que prescreve princípio da igualdade. No entanto, isso não significa que a norma que prescreve
o privilégio em favor do consumidor deva ser aplicada em todos os casos. Volta-se o privilégio em favor do consumidor deva ser aplicada em todos os casos. Volta-se
à teoria das cargas probatórias dinâmicas, porque poderão surgir casos concretos à teoria das cargas probatórias dinâmicas, porque poderão surgir casos concretos
nos quais as circunstâncias revelem que o consumidor está em melhores condições nos quais as circunstâncias revelem que o consumidor está em melhores condições
de provar do que o fornecedor, ou então ambos terão que provar alguma coisa de provar do que o fornecedor, ou então ambos terão que provar alguma coisa
(teoria das provas compartilhadas).46 (teoria das provas compartilhadas).46

16. Conclusões 16. Conclusões


1. O princípio da igualdade é um princípio geral do direito, porque apli- 1. O princípio da igualdade é um princípio geral do direito, porque apli-
cável em qualquer relação, estado ou situação jurídica; de conotação cável em qualquer relação, estado ou situação jurídica; de conotação
constitucional, porque sua fonte direta é a própria constituição; com forte constitucional, porque sua fonte direta é a própria constituição; com forte
ligação com o princípio democrático; e que se caracteriza como um direito ligação com o princípio democrático; e que se caracteriza como um direito
fundamental. fundamental.
2. Por ser geral, o princípio da igualdade também se aplica ao direito pro- 2. Por ser geral, o princípio da igualdade também se aplica ao direito pro-
cessual. cessual.
3. Assim, tendo em vista que a tutela dos direitos, não raro, terá que ser 3. Assim, tendo em vista que a tutela dos direitos, não raro, terá que ser
realizada pela via jurisdicional, quando o legislador se preocupa em dar realizada pela via jurisdicional, quando o legislador se preocupa em dar
tratamento diferenciado entre as pessoas, situações ou coisas no plano tratamento diferenciado entre as pessoas, situações ou coisas no plano
material terá que, muitas vezes, dar esse mesmo tratamento no plano material terá que, muitas vezes, dar esse mesmo tratamento no plano
processual (princípio da adaptação), devendo o juiz, igualmente, obser- processual (princípio da adaptação), devendo o juiz, igualmente, obser-
var o princípio da igualdade no caso concreto em conformidade com a var o princípio da igualdade no caso concreto em conformidade com a
constituição, de maneira que, a não ser assim, não se estará garantindo constituição, de maneira que, a não ser assim, não se estará garantindo
efetivo acesso à j­ustiça. efetivo acesso à j­ustiça.
4. O dispositivo legal que prescreve privilégio de prazo em caso de litiscon- 4. O dispositivo legal que prescreve privilégio de prazo em caso de litiscon-
sórcio com procuradores diferentes é constitucional, porque seu objetivo sórcio com procuradores diferentes é constitucional, porque seu objetivo
é eliminar ou reduzir a vantagem processual que tem a parte adversária é eliminar ou reduzir a vantagem processual que tem a parte adversária
no que se refere ao acesso aos autos do processo, mas a aplicação de tal no que se refere ao acesso aos autos do processo, mas a aplicação de tal
dispositivo deve ter em conta as circunstâncias do caso concreto. dispositivo deve ter em conta as circunstâncias do caso concreto.
5. É constitucional o dispositivo legal que prescreve privilégio de prazo 5. É constitucional o dispositivo legal que prescreve privilégio de prazo
diferenciado em favor da parte beneficiária da justiça gratuita, valendo diferenciado em favor da parte beneficiária da justiça gratuita, valendo

46. Nesse sentido, em termos, GIDI, Antonio. Defesa do consumidor – aspectos da inversão do ônus 46. Nesse sentido, em termos, GIDI, Antonio. Defesa do consumidor – aspectos da inversão do ônus
da prova no código do consumidor. In Ciência Jurídica. Belo Horizonte, vol., 64, 1995, pp. 24-33; da prova no código do consumidor. In Ciência Jurídica. Belo Horizonte, vol., 64, 1995, pp. 24-33;
SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova. Como garantia constitucional SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova. Como garantia constitucional
do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 71-80. do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 71-80.
172 Wilson Alves de Souza 172 Wilson Alves de Souza

ressaltar que, no caso, o privilégio de prazo está posto em favor da própria ressaltar que, no caso, o privilégio de prazo está posto em favor da própria
parte, e não do defensor público ou de quem substitua suas atribuições. parte, e não do defensor público ou de quem substitua suas atribuições.
6. Não há razão aceitável para se ter como constitucional a lei que estabelece 6. Não há razão aceitável para se ter como constitucional a lei que estabelece
privilégio de prazo à Fazenda Pública e ao ministério público, quando privilégio de prazo à Fazenda Pública e ao ministério público, quando
este estiver a atuar como parte, sendo aceitável, no entanto, a lei que este estiver a atuar como parte, sendo aceitável, no entanto, a lei que
autorize ao juiz, caso a caso, conceder prorrogação de prazo sempre que autorize ao juiz, caso a caso, conceder prorrogação de prazo sempre que
as circunstâncias do caso concreto justificarem tal providência. as circunstâncias do caso concreto justificarem tal providência.
7. É constitucional o dispositivo legal que garante privilégio de intimação 7. É constitucional o dispositivo legal que garante privilégio de intimação
pessoal ao defensor público ou a quem esteja a exercer as suas funções, pessoal ao defensor público ou a quem esteja a exercer as suas funções,
vez que tal privilégio não está posto em favor do defensor público ou de vez que tal privilégio não está posto em favor do defensor público ou de
quem esteja a exercer as suas funções, mas sim do necessitado; esse pri- quem esteja a exercer as suas funções, mas sim do necessitado; esse pri-
vilégio tem justificação razoável porque é mecanismo que visa minorar a vilégio tem justificação razoável porque é mecanismo que visa minorar a
desigualdade de armas entre as partes, ou, se existir tal igualdade (ambas desigualdade de armas entre as partes, ou, se existir tal igualdade (ambas
as partes são necessitadas), que objetiva melhor exercício da defesa dos as partes são necessitadas), que objetiva melhor exercício da defesa dos
direitos. direitos.
8. É inconstitucional o dispositivo de lei que concede aos procuradores de 8. É inconstitucional o dispositivo de lei que concede aos procuradores de
Estado e aos membros do ministério público, quando tal instituição está Estado e aos membros do ministério público, quando tal instituição está
a atuar no processo como parte, o privilégio de comunicação pessoal a atuar no processo como parte, o privilégio de comunicação pessoal
de atos processuais a tais agentes, quando os advogados das partes são de atos processuais a tais agentes, quando os advogados das partes são
comunicados de tais atos por jornal oficial, porque não há nada que jus- comunicados de tais atos por jornal oficial, porque não há nada que jus-
tifique tal tratamento diferenciado, valendo observar que a diferenciação tifique tal tratamento diferenciado, valendo observar que a diferenciação
de tratamento, no caso, aumenta o custo do processo, porque terá que de tratamento, no caso, aumenta o custo do processo, porque terá que
ser feita mais uma intimação por um meio mais caro, e contribui para o ser feita mais uma intimação por um meio mais caro, e contribui para o
retardamento da prestação jurisdicional. retardamento da prestação jurisdicional.
9. É constitucional o dispositivo legal que prevê prioridade de tramitação a 9. É constitucional o dispositivo legal que prevê prioridade de tramitação a
processos em que o idoso figure como parte, vez que há uma tendência processos em que o idoso figure como parte, vez que há uma tendência
a que as pessoas a partir de determinada idade estão mais próximas do a que as pessoas a partir de determinada idade estão mais próximas do
final da vida, de modo que é justo que seus processos sejam julgados final da vida, de modo que é justo que seus processos sejam julgados
com prioridade para que, uma vez vencedor na demanda, possa usufruir com prioridade para que, uma vez vencedor na demanda, possa usufruir
do direito assegurado judicialmente. No entanto, não se trata de norma do direito assegurado judicialmente. No entanto, não se trata de norma
bastante em si mesma, podendo existir outros processos que mereçam bastante em si mesma, podendo existir outros processos que mereçam
tratamento mais prioritário a depender das circunstâncias de cada caso tratamento mais prioritário a depender das circunstâncias de cada caso
concreto, solução que o juiz terá que aplicar segundo critérios de propor- concreto, solução que o juiz terá que aplicar segundo critérios de propor-
cionalidade e razoabilidade. cionalidade e razoabilidade.
10. Não há nada que justifique tratamento diferenciado em favor do Estado 10. Não há nada que justifique tratamento diferenciado em favor do Estado
no que se refere ao privilégio em favor deste no sentido de reduzir o valor no que se refere ao privilégio em favor deste no sentido de reduzir o valor
dos honorários de advogado que terá que pagar em caso de sucumbência, dos honorários de advogado que terá que pagar em caso de sucumbência,
sendo injusto e, assim, inconstitucional o dispositivo legal que o consagra, sendo injusto e, assim, inconstitucional o dispositivo legal que o consagra,
até porque o Estado se encontra numa certa situação de vantagem frente até porque o Estado se encontra numa certa situação de vantagem frente
Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 173 Acesso à Justiça e problemas processuais em torno do Princípio da Igualdade… 173

ao cidadão, na medida em que este, por não ser, em regra, litigante habi- ao cidadão, na medida em que este, por não ser, em regra, litigante habi-
tual, é obrigado a contratar advogado num ou noutro caso em que tenha tual, é obrigado a contratar advogado num ou noutro caso em que tenha
que defender direitos judicialmente, enquanto aquele, por ser litigante que defender direitos judicialmente, enquanto aquele, por ser litigante
habitual, dispõe de quadro de advogados, o que significa, em princípio, habitual, dispõe de quadro de advogados, o que significa, em princípio,
que aqueles terão custo mais elevado do que estes com advogados em que aqueles terão custo mais elevado do que estes com advogados em
cada processo isoladamente. cada processo isoladamente.
11. É constitucional o dispositivo legal que concede tratamento diferenciado 11. É constitucional o dispositivo legal que concede tratamento diferenciado
em favor dos necessitados no sentido de dispensá-los de pagar honorários em favor dos necessitados no sentido de dispensá-los de pagar honorários
de advogado em caso de sucumbência ou de adiantamento de despesas de advogado em caso de sucumbência ou de adiantamento de despesas
processuais; o caso é de estado de necessidade, de maneira que tal privi- processuais; o caso é de estado de necessidade, de maneira que tal privi-
légio não é um favor legal, mas sim um direito fundamental, direito esse légio não é um favor legal, mas sim um direito fundamental, direito esse
que se não for atendido está-se a negar às pessoas que se encontram em que se não for atendido está-se a negar às pessoas que se encontram em
tal situação a possibilidade de tutela de direitos violados ou ameaçados tal situação a possibilidade de tutela de direitos violados ou ameaçados
de violação. de violação.
12. É constitucional o dispositivo legal que concede à Fazenda Pública e ao 12. É constitucional o dispositivo legal que concede à Fazenda Pública e ao
ministério público, quando está a atuar como parte, dispensa de adianta- ministério público, quando está a atuar como parte, dispensa de adianta-
mento de taxas e despesas processuais nos ordenamentos jurídicos em que mento de taxas e despesas processuais nos ordenamentos jurídicos em que
o Estado custeia tais serviços, vez que haveria verdadeira confusão entre o Estado custeia tais serviços, vez que haveria verdadeira confusão entre
as situações de credor e devedor, o mesmo não correndo nos Estados em as situações de credor e devedor, o mesmo não correndo nos Estados em
que os serviços judiciários são privatizados ou com relação a determinadas que os serviços judiciários são privatizados ou com relação a determinadas
despesas que o sistema judiciário deixa a cargo de terceiro; no entanto, os despesas que o sistema judiciário deixa a cargo de terceiro; no entanto, os
valores das despesas processuais adiantadas pela parte contrária vencedora valores das despesas processuais adiantadas pela parte contrária vencedora
na causa devem ser reembolsados de imediato, ou seja, fora dos sistemas na causa devem ser reembolsados de imediato, ou seja, fora dos sistemas
processuais especiais de pagamento de débitos judiciais do Estado. processuais especiais de pagamento de débitos judiciais do Estado.
13. O dispositivo legal que dispensa o autor popular de adiantar despesas 13. O dispositivo legal que dispensa o autor popular de adiantar despesas
processuais não fere o princípio da igualdade, pela excepcional razão processuais não fere o princípio da igualdade, pela excepcional razão
de se tratar de um cidadão que está a defender o interesse público e não de se tratar de um cidadão que está a defender o interesse público e não
interesse próprio, o mesmo ocorrendo no caso de ação civil pública pro- interesse próprio, o mesmo ocorrendo no caso de ação civil pública pro-
posta por entidade associativa no objetivo de defesa de interesse público; posta por entidade associativa no objetivo de defesa de interesse público;
nesses casos, se os réus, tirante o Estado, adiantaram despesas processuais nesses casos, se os réus, tirante o Estado, adiantaram despesas processuais
e venceram a causa, é de ter-se como justa a norma constitucional que e venceram a causa, é de ter-se como justa a norma constitucional que
dispensa o autor do pagamento de tais despesas, bem assim de honorários dispensa o autor do pagamento de tais despesas, bem assim de honorários
de advogado dos réus, caso o autor popular não tenha agido de má-fé. No de advogado dos réus, caso o autor popular não tenha agido de má-fé. No
entanto, sempre partindo do pressuposto de que o autor popular não agiu entanto, sempre partindo do pressuposto de que o autor popular não agiu
de má-fé, não é consentânea com o princípio da igualdade a interpretação de má-fé, não é consentânea com o princípio da igualdade a interpretação
de que esse ônus deve ser suportado pelos próprios réus vencedores, ou de que esse ônus deve ser suportado pelos próprios réus vencedores, ou
seja, sendo certo que não se deve impor a obrigação de tal restituição ao seja, sendo certo que não se deve impor a obrigação de tal restituição ao
autor popular, quem deve suportá-la é o próprio Estado, não importando autor popular, quem deve suportá-la é o próprio Estado, não importando
se contestou a ação ou se ficou ao lado do autor, porque o cidadão deman- se contestou a ação ou se ficou ao lado do autor, porque o cidadão deman-
dante estava a defender o interesse público, o que significa dizer o interesse dante estava a defender o interesse público, o que significa dizer o interesse
174 Wilson Alves de Souza 174 Wilson Alves de Souza

do próprio Estado; se o cidadão agiu de má-fé é justo que ele deva arcar do próprio Estado; se o cidadão agiu de má-fé é justo que ele deva arcar
com o ônus da sucumbência; no caso de ação civil pública proposta por com o ônus da sucumbência; no caso de ação civil pública proposta por
entidade associativa no objetivo de defender interesses particulares não entidade associativa no objetivo de defender interesses particulares não
deve haver privilégio algum, salvo estado de necessidade, caso em que deve haver privilégio algum, salvo estado de necessidade, caso em que
devem ser aplicadas as normas de gratuidade da justiça. devem ser aplicadas as normas de gratuidade da justiça.
14. É constitucional o dispositivo legal que concede tratamento diferenciado 14. É constitucional o dispositivo legal que concede tratamento diferenciado
ao réu revel em casos de direitos indisponíveis e litisconsórcio passivo ao réu revel em casos de direitos indisponíveis e litisconsórcio passivo
unitário; para melhor aplicação dessa regra entendemos que, ainda que unitário; para melhor aplicação dessa regra entendemos que, ainda que
haja omissão da lei, deve o juiz, em aplicação ao princípio da igualdade, haja omissão da lei, deve o juiz, em aplicação ao princípio da igualdade,
bem assim, aos princípios do contraditório e da ampla defesa, ter cuidado bem assim, aos princípios do contraditório e da ampla defesa, ter cuidado
especial em caso de revelia, quando tem elementos para saber que o réu especial em caso de revelia, quando tem elementos para saber que o réu
é necessitado, ou surgiram esses elementos posteriormente, no sentido é necessitado, ou surgiram esses elementos posteriormente, no sentido
de desconsiderar a revelia e oficiar a defensoria pública ou órgão equi- de desconsiderar a revelia e oficiar a defensoria pública ou órgão equi-
valente, onde houver, para indicar defensor em favor do réu, ou, na sua valente, onde houver, para indicar defensor em favor do réu, ou, na sua
falta, providenciar ele próprio essa designação, reabrindo-se o prazo para falta, providenciar ele próprio essa designação, reabrindo-se o prazo para
defesa. defesa.
15. O duplo grau obrigatório de jurisdição, por ser um privilégio injustificá- 15. O duplo grau obrigatório de jurisdição, por ser um privilégio injustificá-
vel, viola o princípio da igualdade, além de fazer dilatar o encerramento vel, viola o princípio da igualdade, além de fazer dilatar o encerramento
do processo desnecessariamente, o que também resulta em violação ao do processo desnecessariamente, o que também resulta em violação ao
princípio do processo em tempo razoável. princípio do processo em tempo razoável.
16. É constitucional o dispositivo legal que inverte a regra geral do ônus da 16. É constitucional o dispositivo legal que inverte a regra geral do ônus da
prova em favor do consumidor, na medida em que existe uma hipossufi- prova em favor do consumidor, na medida em que existe uma hipossufi-
ciência técnica do consumidor em relação ao fornecedor; no entanto, isso ciência técnica do consumidor em relação ao fornecedor; no entanto, isso
não significa que a norma que prescreve tal privilégio deva ser aplicada não significa que a norma que prescreve tal privilégio deva ser aplicada
em todos os casos, vez que poderão surgir casos concretos nos quais as em todos os casos, vez que poderão surgir casos concretos nos quais as
circunstâncias revelem que o consumidor está em melhores condições circunstâncias revelem que o consumidor está em melhores condições
de provar do que o fornecedor, ou então ambos terão que provar alguma de provar do que o fornecedor, ou então ambos terão que provar alguma
coisa (teoria das provas compartilhadas). coisa (teoria das provas compartilhadas).

17. Referências bibliográficas 17. Referências bibliográficas


ALVES, Cleber Francisco e PIMENTA, Marilia Gonçalves. Acesso à justiça em preto e ALVES, Cleber Francisco e PIMENTA, Marilia Gonçalves. Acesso à justiça em preto e
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dos Tribunais, vol.1, 2000. dos Tribunais, vol.1, 2000.
176 Wilson Alves de Souza 176 Wilson Alves de Souza

SOUZA, Wilson Alves de. Ônus da prova – considerações sobre a doutrina das cargas SOUZA, Wilson Alves de. Ônus da prova – considerações sobre a doutrina das cargas
probatórias dinâmicas. In Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA. probatórias dinâmicas. In Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA.
Salvador: Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, vol. VI, 1999. Salvador: Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, vol. VI, 1999.
TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e processo. TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e processo.
São Paulo: Saraiva, 1989. São Paulo: Saraiva, 1989.
Capítulo XI Capítulo XI
Depois da onda: mudança de regime? Depois da onda: mudança de regime?
(entendendo a crise no Iraque) (entendendo a crise no Iraque)
Winston P. Nagan* Winston P. Nagan*

O Presidente Bush determinou que os EUA deveriam aumentar as tropas O Presidente Bush determinou que os EUA deveriam aumentar as tropas
no território iraquiano. Ele está convencido de que pode fazê-lo se puder limpar no território iraquiano. Ele está convencido de que pode fazê-lo se puder limpar
Bagdá dos cruéis insurgentes, com o Iraque ganhando fôlego para o governo da Bagdá dos cruéis insurgentes, com o Iraque ganhando fôlego para o governo da
unidade nacional finalmente se estabelecer como um governo com algum efetivo unidade nacional finalmente se estabelecer como um governo com algum efetivo
controle sobre o seu povo, território, instituições governativas e com capacidade controle sobre o seu povo, território, instituições governativas e com capacidade
de atuar mesmo que modestamente no ambiente internacional. de atuar mesmo que modestamente no ambiente internacional.
Nós normalmente destacamos estas qualidades para um país quando nós con- Nós normalmente destacamos estas qualidades para um país quando nós con-
sideramos que ele reúne condições para seu reconhecimento internacional como sideramos que ele reúne condições para seu reconhecimento internacional como
Estado. Dita iniciativa é de fato não uma estratégia, mas um mero lance, e a questão Estado. Dita iniciativa é de fato não uma estratégia, mas um mero lance, e a questão
crucial é se esta tática tem algum valor estratégico que justifique o investimento da crucial é se esta tática tem algum valor estratégico que justifique o investimento da
reputação da Nação pela Administração Bush, dos recursos do Tesouro e, o mais reputação da Nação pela Administração Bush, dos recursos do Tesouro e, o mais
importante dentre tudo, das vidas e do bem estar do seu pessoal militar. importante dentre tudo, das vidas e do bem estar do seu pessoal militar.
O mais óbvio a respeito do conflito no Iraque é que ele é indiscutivelmente O mais óbvio a respeito do conflito no Iraque é que ele é indiscutivelmente
considerado sectário. Pode ser que alguns considerem o conflito sectário diferente considerado sectário. Pode ser que alguns considerem o conflito sectário diferente
do conflito étnico. Isto, contudo, não é sustentável. A fundamental conjectura do conflito étnico. Isto, contudo, não é sustentável. A fundamental conjectura
que a maioria dos agentes políticos fazem sobre o conflito étnico é a seguinte: o que a maioria dos agentes políticos fazem sobre o conflito étnico é a seguinte: o
conflito é incompreensível; as partes lutam por razões completamente irracionais; conflito é incompreensível; as partes lutam por razões completamente irracionais;
uma terceira parte imparcial não consegue atribuir qualquer racionalidade para a uma terceira parte imparcial não consegue atribuir qualquer racionalidade para a
conduta das partes envolvidas; e, deste modo, é impossível entender o conflito em conduta das partes envolvidas; e, deste modo, é impossível entender o conflito em
termos de princípios ou reivindicações negociadas ou racionais. Em tal contexto, termos de princípios ou reivindicações negociadas ou racionais. Em tal contexto,
agentes politicos que sejam prudentes não irão intervir porque a intervenção seria agentes politicos que sejam prudentes não irão intervir porque a intervenção seria
fútil. Se há intervenção, agentes políticos que sejam ajuizados procurarão limitar fútil. Se há intervenção, agentes políticos que sejam ajuizados procurarão limitar
esta intervenção porque as perdas envolvidas não podem ser justificadas em ba- esta intervenção porque as perdas envolvidas não podem ser justificadas em ba-
ses racionais. O que uma sábia política não deve fazer é expandir a intervenção ses racionais. O que uma sábia política não deve fazer é expandir a intervenção
até o ponto em que seja completamente incompreensível do ponto de vista do até o ponto em que seja completamente incompreensível do ponto de vista do
protagonista étnico. protagonista étnico.

* Professor de Direito da Universidade da Flórida-EUA (Levin College of Law), Diretor do Instituto * Professor de Direito da Universidade da Flórida-EUA (Levin College of Law), Diretor do Instituto
para Direitos Humanos, Paz e Desenvolvimento, Ministro em exercício da Suprema Corte da África para Direitos Humanos, Paz e Desenvolvimento, Ministro em exercício da Suprema Corte da África
do Sul, Professor Honorário da Universidade da Cidade do Cabo-RSA, Professor Colaborador do Sul, Professor Honorário da Universidade da Cidade do Cabo-RSA, Professor Colaborador
do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA. Artigo traduzido do inglês por Saulo José do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA. Artigo traduzido do inglês por Saulo José
Casali Bahia, professor de Direito Constitucional e de Direito Internacional Público da Faculdade Casali Bahia, professor de Direito Constitucional e de Direito Internacional Público da Faculdade
de Direito da UFBA. de Direito da UFBA.
178 Winston P. Nagan 178 Winston P. Nagan

Isto é pensado para ser uma idéia básica sobre a natureza de conflitos étnicos Isto é pensado para ser uma idéia básica sobre a natureza de conflitos étnicos
e os limites da intervenção. Se o termo sectário pode ser usado para enfraquecer a e os limites da intervenção. Se o termo sectário pode ser usado para enfraquecer a
­caracterização do conflito, a fim de permitir continuados e custosos compromissos, ­caracterização do conflito, a fim de permitir continuados e custosos compromissos,
é uma questão que deve ser seriamente considerada. O conflito no Iraque possui é uma questão que deve ser seriamente considerada. O conflito no Iraque possui
todas as características de um conflito étnico. todas as características de um conflito étnico.
Quer denominemos o conflito como étnico ou como sectário, há um fato uni- Quer denominemos o conflito como étnico ou como sectário, há um fato uni-
versal que se impõe. Os sunitas do Iraque não gostam da intervenção americana. versal que se impõe. Os sunitas do Iraque não gostam da intervenção americana.
Os americanos são seus inimigos. Daí, as tropas americanas mais propriamente Os americanos são seus inimigos. Daí, as tropas americanas mais propriamente
do que serem mediadoras são as inimigas dos sunitas. Sadam Hussein, que foi do que serem mediadoras são as inimigas dos sunitas. Sadam Hussein, que foi
recentemente executado, e cujo irmão foi executado um tanto de maneira bárbara, recentemente executado, e cujo irmão foi executado um tanto de maneira bárbara,
era sunita. Estas execuções apenas exacerbaram o ódio dos sunitas tanto contra era sunita. Estas execuções apenas exacerbaram o ódio dos sunitas tanto contra
os EUA quanto contra o governo controlado pelos shiitas. os EUA quanto contra o governo controlado pelos shiitas.
Os shiitas são o outro setor de grupo étnico. É apropriado distinguir entre o Os shiitas são o outro setor de grupo étnico. É apropriado distinguir entre o
governo nacional (cuja maioria é shiita) e as milícias shiitas sustentadas pelo seu governo nacional (cuja maioria é shiita) e as milícias shiitas sustentadas pelo seu
partido. Entretanto, os shiitas sabem que darão as cartas quando os americanos partido. Entretanto, os shiitas sabem que darão as cartas quando os americanos
se forem, e irão querer ter todas as cartas que possam ter à sua disposição para se se forem, e irão querer ter todas as cartas que possam ter à sua disposição para se
proteger dos adversários sunitas. Os shiitas irão sem dúvida se recordar de como proteger dos adversários sunitas. Os shiitas irão sem dúvida se recordar de como
o Presidente Bush, o pai, deixou-os expostos como uma oferenda de sacrifício o Presidente Bush, o pai, deixou-os expostos como uma oferenda de sacrifício
para Sadam Hussein, depois que as potências aliadas deixaram Sadam Hussein no para Sadam Hussein, depois que as potências aliadas deixaram Sadam Hussein no
poder com o seu exército Baath. Eles sobreviveram por causa dos shiitas do Irã. poder com o seu exército Baath. Eles sobreviveram por causa dos shiitas do Irã.
Em verdade, os shiitas também apoiam os shiitas do Líbano que se levantaram Em verdade, os shiitas também apoiam os shiitas do Líbano que se levantaram
contra os israelenses recentemente. Os shiitas sabem que os EUA não são seus contra os israelenses recentemente. Os shiitas sabem que os EUA não são seus
amigos, e que a mudança de orientação política da Administração Bush teve menos amigos, e que a mudança de orientação política da Administração Bush teve menos
a ver com a democracia no Iraque do que com as preocupações de Israel relativas a ver com a democracia no Iraque do que com as preocupações de Israel relativas
às ameaças de longo prazo tanto de um Iraque dominado por sunitas sob Sadam às ameaças de longo prazo tanto de um Iraque dominado por sunitas sob Sadam
quanto por um grande Iran shiita sob os aiatolás. Em suma, os americanos são o quanto por um grande Iran shiita sob os aiatolás. Em suma, os americanos são o
alvo legítimo no Iraque dos shiitas. alvo legítimo no Iraque dos shiitas.
O Presidente Bush procura expandir o avanço das tropas em um conflito O Presidente Bush procura expandir o avanço das tropas em um conflito
étnico-sectário onde ambos os lados vêem as forças americanas como alvos de étnico-sectário onde ambos os lados vêem as forças americanas como alvos de
ocasião. Ninguém pode imaginar pior cenário tático no qual atuam as tropas ame- ocasião. Ninguém pode imaginar pior cenário tático no qual atuam as tropas ame-
ricanas. Se isto é correto, poderia existir apenas uma razão para este extravagante ricanas. Se isto é correto, poderia existir apenas uma razão para este extravagante
sacrifício do sangue americano e de verbas do Tesouro, e esta consiste em que a sacrifício do sangue americano e de verbas do Tesouro, e esta consiste em que a
Administração Bush está ainda confiante de que se remanescer no Iraque tempo Administração Bush está ainda confiante de que se remanescer no Iraque tempo
suficiente, isto será capaz de gerar um conflito real diretamente com o Irã. Um suficiente, isto será capaz de gerar um conflito real diretamente com o Irã. Um
conflito com o Iraque, da perspectiva da doutrina Bush, terá como propósito mu- conflito com o Iraque, da perspectiva da doutrina Bush, terá como propósito mu-
dar o regime iraniano por força. Naturalmente, Bush irá precisar de um incidente dar o regime iraniano por força. Naturalmente, Bush irá precisar de um incidente
para iniciar o ataque. para iniciar o ataque.
A questão crítica sobre estas doutrinas de segurança nacional é que quer elas A questão crítica sobre estas doutrinas de segurança nacional é que quer elas
emanem de um partido político ou de outro, elas pretenderam representar o crucial emanem de um partido político ou de outro, elas pretenderam representar o crucial
interesse nacional como um todo. O uso de uma tal doutrina, entretanto, poderia interesse nacional como um todo. O uso de uma tal doutrina, entretanto, poderia
Depois da onda: mudança de regime? (entendendo a crise no Iraque) 179 Depois da onda: mudança de regime? (entendendo a crise no Iraque) 179

ter não somente um dupla finalidade, mas também um objetivo duplo e radical- ter não somente um dupla finalidade, mas também um objetivo duplo e radical-
mente partidário. Este objetivo poderia ser aumentar o envolvimento americano mente partidário. Este objetivo poderia ser aumentar o envolvimento americano
em conflitos globais como meio de influenciar a próxima eleição presidencial em conflitos globais como meio de influenciar a próxima eleição presidencial
americana. Se isto é verdade, isto bem pode ser o último e desesperado lance da americana. Se isto é verdade, isto bem pode ser o último e desesperado lance da
Administração Bush para continuar decisivamente influenciando as eleições de Administração Bush para continuar decisivamente influenciando as eleições de
2008. Se isto é correto, então Bush irá querer manter a dispendiosa presença militar 2008. Se isto é correto, então Bush irá querer manter a dispendiosa presença militar
no Iraque tempo o suficiente para ser crucial para a dinâmica eleitoral. Tempo é um no Iraque tempo o suficiente para ser crucial para a dinâmica eleitoral. Tempo é um
fator crítico. Se o momento é adequado, a Administração Bush terá de achar uma fator crítico. Se o momento é adequado, a Administração Bush terá de achar uma
desculpa para atacar o Irã. Indubitavelmente, o volúvel líder atual do Irã bem pode desculpa para atacar o Irã. Indubitavelmente, o volúvel líder atual do Irã bem pode
fazer isto mais fácil para a Administração Bush com a sua excessiva retórica. fazer isto mais fácil para a Administração Bush com a sua excessiva retórica.
Em caso de conflagração, o partido do Presidente Bush terá vantagens eleito- Em caso de conflagração, o partido do Presidente Bush terá vantagens eleito-
rais significativas. Um conflito expandido e selvagens ameaças compreendendo rais significativas. Um conflito expandido e selvagens ameaças compreendendo
arsenais nucleares irão sem dúvida explorar a dinâmica da insegurança pessoal no arsenais nucleares irão sem dúvida explorar a dinâmica da insegurança pessoal no
eleitorado doméstico americano. O discurso politico será controlado largamente eleitorado doméstico americano. O discurso politico será controlado largamente
por quem dirigir as instituições de segurança nacional. O Congresso sera margi- por quem dirigir as instituições de segurança nacional. O Congresso sera margi-
nalizado. A imprensa será emudecida. A opinião crítico-política responsável será nalizado. A imprensa será emudecida. A opinião crítico-política responsável será
acusada como usual de enfraquecer a segurança nacional. A oposição política será acusada como usual de enfraquecer a segurança nacional. A oposição política será
acusada de ser impatriótica, e não desejosa de apoiar as tropas. O objetivo será acusada de ser impatriótica, e não desejosa de apoiar as tropas. O objetivo será
silenciar o próprio debate político. silenciar o próprio debate político.
Em consequência disto, líderes de opinião neste país, especialmente as lide- Em consequência disto, líderes de opinião neste país, especialmente as lide-
ranças parlamentares, observam criticamente e com muito mais cuidado como a ranças parlamentares, observam criticamente e com muito mais cuidado como a
Administração Bush irá se conduzir entre agora e 2008. Em particular, o público Administração Bush irá se conduzir entre agora e 2008. Em particular, o público
precisa saber se a Doutrina Bush e seu compromisso de mudança de regime em precisa saber se a Doutrina Bush e seu compromisso de mudança de regime em
todo o Oriente Médio, pelo uso da força, continua a ser a doutrina de segurança todo o Oriente Médio, pelo uso da força, continua a ser a doutrina de segurança
nacional da Nação. É crucial para os americanos saber quais são os reais objetivos nacional da Nação. É crucial para os americanos saber quais são os reais objetivos
estratégicos da Administração Bush e se estes objetivos correspondem realmente estratégicos da Administração Bush e se estes objetivos correspondem realmente
ao interesse nacional. A Administração Bush tem sido lembrada recentemente de ao interesse nacional. A Administração Bush tem sido lembrada recentemente de
que os EUA tem vários meios de promover os interesses americanos, e de que uma que os EUA tem vários meios de promover os interesses americanos, e de que uma
excessiva confiança no uso da força pode bem ser contraproducente. excessiva confiança no uso da força pode bem ser contraproducente.
Artigos do CORPO Discente Artigos do CORPO Discente
Capítulo XII Capítulo XII
Aspectos processuais dos crimes Aspectos processuais dos crimes
praticados pela internet praticados pela internet

Bernardo Chezzi* Bernardo Chezzi*

Sumário • 1. Considerações iniciais – 2. Ocorrência do crime. A ata notarial – 3. O procedimento da Sumário • 1. Considerações iniciais – 2. Ocorrência do crime. A ata notarial – 3. O procedimento da
Autoridade Policial na fase de inquérito – 4. A notificação ao provedor de conteúdo – 5. Jurisdição e Autoridade Policial na fase de inquérito – 4. A notificação ao provedor de conteúdo – 5. Jurisdição e
competência – 5.1. A jurisdição penal brasileira – 5.2. Justiça Estadual ou Federal?– 5.3. Foro com- competência – 5.1. A jurisdição penal brasileira – 5.2. Justiça Estadual ou Federal?– 5.3. Foro com-
petente – 5.4. Juízo competente – 6. Conclusões necessárias – 7. Referências bibliográficas petente – 5.4. Juízo competente – 6. Conclusões necessárias – 7. Referências bibliográficas

1. Considerações iniciais 1. Considerações iniciais


A Internet teve o seu formato embrionário no ano de 1969, quando, em plena A Internet teve o seu formato embrionário no ano de 1969, quando, em plena
Guerra Fria, os EUA desenvolviam um eficiente mecanismo de comunicação Guerra Fria, os EUA desenvolviam um eficiente mecanismo de comunicação
militar, imune a bombardeios e de difícil sabotagem, conhecido como ARPANET militar, imune a bombardeios e de difícil sabotagem, conhecido como ARPANET
(nome oriundo de Advanced Research Projects Agency). Algumas décadas depois, (nome oriundo de Advanced Research Projects Agency). Algumas décadas depois,
notadamente em meados de 1980, a lógica comunicacional passou a ser adotada notadamente em meados de 1980, a lógica comunicacional passou a ser adotada
entre universidades americanas, com o fito de troca de conhecimento e unificação entre universidades americanas, com o fito de troca de conhecimento e unificação
de bancos de dados. de bancos de dados.
Somente a partir dos anos 90 é que se verifica a comercialização da Rede, com Somente a partir dos anos 90 é que se verifica a comercialização da Rede, com
a respectiva massificação do mecanismo, e a sua utilização pelos mais variados a respectiva massificação do mecanismo, e a sua utilização pelos mais variados
segmentos sociais, por todo o mundo. Neste novo e atual formato, a Rede Mundial segmentos sociais, por todo o mundo. Neste novo e atual formato, a Rede Mundial
ficou sem dono e controle hierárquico. ficou sem dono e controle hierárquico.
A Rede, que não é um fim em si mesmo, consubstancia-se em instrumento A Rede, que não é um fim em si mesmo, consubstancia-se em instrumento
eficaz para a formação, informação e para o empreendimento de diversas das ações eficaz para a formação, informação e para o empreendimento de diversas das ações
humanas – através das infindáveis formas de interação direta e indireta entre indiví- humanas – através das infindáveis formas de interação direta e indireta entre indiví-
duos e coletividades. Tamanho é o grau de entrelaçamento que guardam sociedade duos e coletividades. Tamanho é o grau de entrelaçamento que guardam sociedade
e Internet, que não se cogita mais em um bom funcionamento dos organismos e Internet, que não se cogita mais em um bom funcionamento dos organismos
sociais sem que se tenha à disposição a Rede Mundial de Computadores. sociais sem que se tenha à disposição a Rede Mundial de Computadores.
Todavia, a transposição das vicissitudes do mundo pós-moderno à Internet Todavia, a transposição das vicissitudes do mundo pós-moderno à Internet
acarretou também o surgimento de condutas, para cujo resultado no “mundo real”, acarretou também o surgimento de condutas, para cujo resultado no “mundo real”,
o Direito define como ilícitos civis ou penais. Como não podia ser diferente, num o Direito define como ilícitos civis ou penais. Como não podia ser diferente, num

* Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, desenvolveu pesquisa do * Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, desenvolveu pesquisa do
tema através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), com a orientação tema através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), com a orientação
da professora Maria Auxiliadora Minahim, durante o biênio 2006/2007. É presidente do Centro da professora Maria Auxiliadora Minahim, durante o biênio 2006/2007. É presidente do Centro
de Estudos e Pesquisas Jurídicas da UFBA (CEPEJ). de Estudos e Pesquisas Jurídicas da UFBA (CEPEJ).
184 Bernardo Chezzi 184 Bernardo Chezzi

sentido amplo, o homem que, sem o uso de computadores, furta, frauda, difama sentido amplo, o homem que, sem o uso de computadores, furta, frauda, difama
e abusa de menores é o mesmo homem que realiza tais condutas típicas por meio e abusa de menores é o mesmo homem que realiza tais condutas típicas por meio
digital, eletrônico. Para este rol de ações praticadas na Internet criou-se a nomen- digital, eletrônico. Para este rol de ações praticadas na Internet criou-se a nomen-
clatura de crimes virtuais. clatura de crimes virtuais.

Há que, no entanto, fazer-se de logo a correta ponderação acerca deste nome, Há que, no entanto, fazer-se de logo a correta ponderação acerca deste nome,
pois, embora sejam praticados por meio de caracteres virtuais, os seus resultados pois, embora sejam praticados por meio de caracteres virtuais, os seus resultados
são fáticos e consistem, no mais das vezes, em reais lesões ou ameaças de lesões a são fáticos e consistem, no mais das vezes, em reais lesões ou ameaças de lesões a
bens jurídicos penalmente tutelados. Por isso, estas condutas merecem igualmente bens jurídicos penalmente tutelados. Por isso, estas condutas merecem igualmente
a sanção do Estado-Juiz. Porém, é preciso cuidado ao examinar o tema, haja vista a sanção do Estado-Juiz. Porém, é preciso cuidado ao examinar o tema, haja vista
que há características dos crimes praticados na Internet que impõem dificuldades, que há características dos crimes praticados na Internet que impõem dificuldades,
com destaque à extraterritorialidade, ao aparente anonimato e à facilidade na com destaque à extraterritorialidade, ao aparente anonimato e à facilidade na
propagação de conteúdo criminoso. propagação de conteúdo criminoso.

O objetivo deste estudo é dirimir algumas das questões de processo penal que O objetivo deste estudo é dirimir algumas das questões de processo penal que
aparentam ser obscuras ou de difícil solução ao jurista, quando defrontado com aparentam ser obscuras ou de difícil solução ao jurista, quando defrontado com
crimes praticados na Internet. Seguir-se-á, destarte, um roteiro lógico, que tem crimes praticados na Internet. Seguir-se-á, destarte, um roteiro lógico, que tem
início na ocorrência do crime dito virtual, até a correta propositura da ação penal, início na ocorrência do crime dito virtual, até a correta propositura da ação penal,
debruçando-se também sobre os aspectos relativos à competência. Ressalva-se, debruçando-se também sobre os aspectos relativos à competência. Ressalva-se,
de logo, que o foco de nossos destes estudos será a estirpe de crimes virtuais pra- de logo, que o foco de nossos destes estudos será a estirpe de crimes virtuais pra-
ticados por meio de um website1, para a útil sistematização de suas propriedades, ticados por meio de um website1, para a útil sistematização de suas propriedades,
embora saibamos que os delitos na Rede não estão a isto subsumidos. embora saibamos que os delitos na Rede não estão a isto subsumidos.

2. Ocorrência do crime. A ata notarial 2. Ocorrência do crime. A ata notarial

Quando o indivíduo toma conhecimento de um crime praticado por meio da Quando o indivíduo toma conhecimento de um crime praticado por meio da
Internet de que é vítima, o primeiro desafio é assegurar-se da prova de sua ocorrên- Internet de que é vítima, o primeiro desafio é assegurar-se da prova de sua ocorrên-
cia, dada a volatilidade do que disposto na Rede. Na maioria das vezes, a mesma cia, dada a volatilidade do que disposto na Rede. Na maioria das vezes, a mesma
pessoa que veicula conteúdo ilícito é capaz de retirá-lo. As provas da ocorrência pessoa que veicula conteúdo ilícito é capaz de retirá-lo. As provas da ocorrência
do ilícito virtual são fundamentais para o correto e efetivo desenvolvimento da do ilícito virtual são fundamentais para o correto e efetivo desenvolvimento da
persecutio criminis. persecutio criminis.

Para isso, os operadores do direito deram nova dimensão ao instituto da ata Para isso, os operadores do direito deram nova dimensão ao instituto da ata
notarial, estabelecido pelo Art. 7º, III, da Lei 8935/94. Em termos genéricos, a ata notarial, estabelecido pelo Art. 7º, III, da Lei 8935/94. Em termos genéricos, a ata
notarial é a narração de fatos verificados pessoalmente pelo tabelião e compreende: notarial é a narração de fatos verificados pessoalmente pelo tabelião e compreende:
local, data e horário de sua lavratura; nome e qualificação do solicitante; narração local, data e horário de sua lavratura; nome e qualificação do solicitante; narração
circunstanciada dos fatos; declaração de haver sido lida ao solicitante e, sendo circunstanciada dos fatos; declaração de haver sido lida ao solicitante e, sendo

1. Websites são os domínios virtuais disponíveis ao livre acesso pela Internet. Estas páginas cos- 1. Websites são os domínios virtuais disponíveis ao livre acesso pela Internet. Estas páginas cos-
tumam ser visitadas por meio de um código virtual, o World wide web, conhecido como www. tumam ser visitadas por meio de um código virtual, o World wide web, conhecido como www.
Em verdade, este endereço virtual traduz um número IP daquele conteúdo, que se visa ao acesso. Em verdade, este endereço virtual traduz um número IP daquele conteúdo, que se visa ao acesso.
Também chamaremos o website de sítio, site, ou simplesmente página. Também chamaremos o website de sítio, site, ou simplesmente página.
Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 185 Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 185

o caso, às testemunhas; assinatura do solicitante e das testemunhas; assinatura e o caso, às testemunhas; assinatura do solicitante e das testemunhas; assinatura e
sinal público do tabelião. sinal público do tabelião.

Com fins de assegurar ao juiz que determinado crime virtual ocorreu, ou Com fins de assegurar ao juiz que determinado crime virtual ocorreu, ou
está ocorrendo, a ata notarial passou a ser usada para que reste certificado pelo está ocorrendo, a ata notarial passou a ser usada para que reste certificado pelo
notário o conteúdo disposto em determinado endereço eletrônico da Internet, em notário o conteúdo disposto em determinado endereço eletrônico da Internet, em
certa data e horário. Através da ata, o tabelião acessa o sítio eletrônico solicitado certa data e horário. Através da ata, o tabelião acessa o sítio eletrônico solicitado
e descreve o que viu, imprime imagens e documentos da página virtual, dando fé e descreve o que viu, imprime imagens e documentos da página virtual, dando fé
pública a cada item transcrito e transladado. A vítima pode solicitar ata notarial pública a cada item transcrito e transladado. A vítima pode solicitar ata notarial
em qualquer Tabelionato de Notas. em qualquer Tabelionato de Notas.
Através da referida ata será possível também a identificação do servidor de Através da referida ata será possível também a identificação do servidor de
conteúdo2 por meio do qual o crime foi praticado (porque especificado o endere- conteúdo2 por meio do qual o crime foi praticado (porque especificado o endere-
ço eletrônico) e os dados necessários para a requisição do endereço IP (Internet ço eletrônico) e os dados necessários para a requisição do endereço IP (Internet
Protocol)3. Protocol)3.
De posse da prova da ocorrência daquele ilícito, o próximo passo é retirar o De posse da prova da ocorrência daquele ilícito, o próximo passo é retirar o
fino véu de anonimato que paira sobre o crime, chegando ao real autor do ilícito fino véu de anonimato que paira sobre o crime, chegando ao real autor do ilícito
virtual. Faz-se mister que a vítima, agora, requeira à Autoridade Policial compe- virtual. Faz-se mister que a vítima, agora, requeira à Autoridade Policial compe-
tente4 a instauração de inquérito para apuração do delito, através da conhecida tente4 a instauração de inquérito para apuração do delito, através da conhecida
noticia criminis. noticia criminis.

3. O procedimento da Autoridade Policial na fase de 3. O procedimento da Autoridade Policial na fase de


inquérito inquérito
Todo usuário da Internet, ao conectar-se, o faz através de um servidor de Todo usuário da Internet, ao conectar-se, o faz através de um servidor de
acesso (ex. Velox, Uol, Terra, SpeedZone, UFBA etc). Geralmente, para cada acesso (ex. Velox, Uol, Terra, SpeedZone, UFBA etc). Geralmente, para cada
conexão há um número IP (Internet Protocol), que é capaz de identificar tanto o conexão há um número IP (Internet Protocol), que é capaz de identificar tanto o
provedor de acesso quanto o endereço físico do usuário que dele utilizou-se. O provedor de acesso quanto o endereço físico do usuário que dele utilizou-se. O
IP não costuma ser estático, sendo na verdade a expressão em uma seqüência de IP não costuma ser estático, sendo na verdade a expressão em uma seqüência de
números de um protocolo de que, naquele momento, naquela conexão, se valeu o números de um protocolo de que, naquele momento, naquela conexão, se valeu o
provedor de acesso para ligar o computador do usuário à Rede. provedor de acesso para ligar o computador do usuário à Rede.

2. Ver-se-á mais tarde a sua devida conceituação, diferenciando servidor de conteúdo e servidor de 2. Ver-se-á mais tarde a sua devida conceituação, diferenciando servidor de conteúdo e servidor de
acesso. acesso.
3. O IP é expresso através de uma seqüência de número, e.g. 200.152.00.30. Expressa o protocolo 3. O IP é expresso através de uma seqüência de número, e.g. 200.152.00.30. Expressa o protocolo
que se utilizou o servidor de acesso para conectar o usuário à Internet, na conexão daquela data que se utilizou o servidor de acesso para conectar o usuário à Internet, na conexão daquela data
e instante. e instante.
4. Aqui acompanhamos a idéia de Fernando da Costa Tourinho Filho (2006), no sentido de que a 4. Aqui acompanhamos a idéia de Fernando da Costa Tourinho Filho (2006), no sentido de que a
expressão autoridade competente é empregada no sentido de poder atribuído a um funcionário para expressão autoridade competente é empregada no sentido de poder atribuído a um funcionário para
tomar conhecimento de determinado assunto. Os Estados costumam regular esta matéria de acordo tomar conhecimento de determinado assunto. Os Estados costumam regular esta matéria de acordo
com a sua Lei de Organização Judiciária, e a maioria deles já criou uma delegacia especializada com a sua Lei de Organização Judiciária, e a maioria deles já criou uma delegacia especializada
para tratar de crimes praticados na Internet. Nestes casos, são estas unidades as competentes para para tratar de crimes praticados na Internet. Nestes casos, são estas unidades as competentes para
receber a noticia criminis. Há de se observar, ainda, que quando se tratar de crime relacionado às receber a noticia criminis. Há de se observar, ainda, que quando se tratar de crime relacionado às
hipóteses elencadas no art. 109 da CF, a Autoridade Policial competente será a federal. hipóteses elencadas no art. 109 da CF, a Autoridade Policial competente será a federal.
186 Bernardo Chezzi 186 Bernardo Chezzi

De outro lado, há também os servidores de conteúdo. Seus formatos podem De outro lado, há também os servidores de conteúdo. Seus formatos podem
ser dos mais diferentes, mas, em linhas gerais, os provedores de conteúdo hospe- ser dos mais diferentes, mas, em linhas gerais, os provedores de conteúdo hospe-
dam outras páginas em seu domínio, ás vezes milhares delas, como acontece com dam outras páginas em seu domínio, ás vezes milhares delas, como acontece com
o geocities.com, uol.com.br, e assim por diante. É no conteúdo hospedado pelo o geocities.com, uol.com.br, e assim por diante. É no conteúdo hospedado pelo
servidor de conteúdo que costuma ser verificado o crime virtual. servidor de conteúdo que costuma ser verificado o crime virtual.
Quando alguém se conecta à Internet, através de um servidor de acesso, e de Quando alguém se conecta à Internet, através de um servidor de acesso, e de
um IP específico para aquela conexão, e pratica um delito através da Rede em um um IP específico para aquela conexão, e pratica um delito através da Rede em um
sítio de um servidor de conteúdo, deixa nos registros do provedor hospedeiro o sítio de um servidor de conteúdo, deixa nos registros do provedor hospedeiro o
número de seu IP. É com esteio neste fato, que a Autoridade Policial deve perquirir, número de seu IP. É com esteio neste fato, que a Autoridade Policial deve perquirir,
nesta seqüência lógica: I) Qual o provedor de conteúdo daquele crime; II) Qual o nesta seqüência lógica: I) Qual o provedor de conteúdo daquele crime; II) Qual o
provedor de acesso; III) Qual o endereço físico do usuário5. provedor de acesso; III) Qual o endereço físico do usuário5.
Portanto, deve o investigador, primeiramente, solicitar ao juiz a quebra de sigilo Portanto, deve o investigador, primeiramente, solicitar ao juiz a quebra de sigilo
de dados telemáticos, para que o magistrado determine ao provedor de conteúdo o de dados telemáticos, para que o magistrado determine ao provedor de conteúdo o
fornecimento do número IP naquela hora e data em que foi verificado o crime. fornecimento do número IP naquela hora e data em que foi verificado o crime.
Para o caso de se tratar de provedor estrangeiro, mas com filial no Brasil, a ordem Para o caso de se tratar de provedor estrangeiro, mas com filial no Brasil, a ordem
deve ser a esta endereçada. Com o número IP obtido, identifica-se o servidor de deve ser a esta endereçada. Com o número IP obtido, identifica-se o servidor de
acesso, através de sítios especializados e gratuitos na própria Internet. acesso, através de sítios especializados e gratuitos na própria Internet.
Será então necessária nova requisição judicial de quebra de dados telemá- Será então necessária nova requisição judicial de quebra de dados telemá-
ticos, desta vez para que obrigue o provedor de acesso a dizer quem, naquela ticos, desta vez para que obrigue o provedor de acesso a dizer quem, naquela
data, hora, respectivo fuso horário, e com aquele IP, utilizou-se de seus serviços. data, hora, respectivo fuso horário, e com aquele IP, utilizou-se de seus serviços.
Dependendo do caso, identificado o endereço físico onde se acometeu o injusto Dependendo do caso, identificado o endereço físico onde se acometeu o injusto
penal, pode-se determinar em seguida a busca e apreensão do computador e de penal, pode-se determinar em seguida a busca e apreensão do computador e de
materiais correlatos. materiais correlatos.
Por último, impende destacar que se a vítima preferir agir sozinha, sem a Por último, impende destacar que se a vítima preferir agir sozinha, sem a
instauração de inquérito, pode fazê-lo. Para tanto, deve utilizar-se de ação cau- instauração de inquérito, pode fazê-lo. Para tanto, deve utilizar-se de ação cau-
telar de exibição de documentos (art. 844, II do CPC), conforme admitido hoje telar de exibição de documentos (art. 844, II do CPC), conforme admitido hoje
na jurisprudência, primeiramente para obter o número IP junto ao provedor de na jurisprudência, primeiramente para obter o número IP junto ao provedor de
conteúdo, e depois para saber o endereço físico junto ao provedor de acesso. Esta conteúdo, e depois para saber o endereço físico junto ao provedor de acesso. Esta
metodologia tem sido também adotada na inquirição de ilícitos cíveis, para os metodologia tem sido também adotada na inquirição de ilícitos cíveis, para os
quais não caberia, na maioria das vezes, a instauração de inquérito policial. quais não caberia, na maioria das vezes, a instauração de inquérito policial.

4. A notificação ao provedor de conteúdo 4. A notificação ao provedor de conteúdo


Concomitante à lavratura da ata notarial, deve a vítima notificar o provedor Concomitante à lavratura da ata notarial, deve a vítima notificar o provedor
de conteúdo por meio do qual foi cometido o crime, solicitando6: a) retirada ime- de conteúdo por meio do qual foi cometido o crime, solicitando6: a) retirada ime-
diata do conteúdo ilegal e/ou ofensivo do serviço onde o material está hospedado, diata do conteúdo ilegal e/ou ofensivo do serviço onde o material está hospedado,

5. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; COMITÊ GESTOR DA INTERNET. Crimes Cibernéticos. 5. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; COMITÊ GESTOR DA INTERNET. Crimes Cibernéticos.
Manual prático de investigação. São Paulo, 2006. Manual prático de investigação. São Paulo, 2006.
6. SAFERNET BRASIL. Disponível em: <www.denunciar.org.br>. Acesso em: 07 de Agosto de 2007. 6. SAFERNET BRASIL. Disponível em: <www.denunciar.org.br>. Acesso em: 07 de Agosto de 2007.
Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 187 Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 187

incluindo o(s) link(s) pertinentes, sob pena de ajuizamento da competente ação de incluindo o(s) link(s) pertinentes, sob pena de ajuizamento da competente ação de
responsabilidade e b) preservação de todas as provas e evidências da materialidade responsabilidade e b) preservação de todas as provas e evidências da materialidade
do(s) crime(s) e todos os indícios de autoria, incluindo os logs e dados cadastrais do(s) crime(s) e todos os indícios de autoria, incluindo os logs e dados cadastrais
e de acesso do(s) suspeito(s), necessários para subsidiar a instrução do inquérito e de acesso do(s) suspeito(s), necessários para subsidiar a instrução do inquérito
policial criminal e a competente ação judicial. policial criminal e a competente ação judicial.
Embora discutível a responsabilidade penal do provedor de conteúdo no que Embora discutível a responsabilidade penal do provedor de conteúdo no que
se refere ao crime virtual através dele cometido, claro está que é responsável se refere ao crime virtual através dele cometido, claro está que é responsável
civilmente o servidor que, sabendo do teor ilícito que hospeda, não o retira do civilmente o servidor que, sabendo do teor ilícito que hospeda, não o retira do
ar. Portanto, é aconselhável que se notifique o provedor por meio idôneo, como ar. Portanto, é aconselhável que se notifique o provedor por meio idôneo, como
por exemplo, uma carta registrada, para fins de prova em uma posterior ação de por exemplo, uma carta registrada, para fins de prova em uma posterior ação de
indenização contra o servidor que foi devidamente notificado, e não agiu (verbi indenização contra o servidor que foi devidamente notificado, e não agiu (verbi
gratia, Resp 566468 – RJ / STJ). gratia, Resp 566468 – RJ / STJ).
Esta conduta é importante para a vítima porque, muitas vezes, a depender Esta conduta é importante para a vítima porque, muitas vezes, a depender
do tipo de crime cometido, dada a facilidade de propagação de informação, não do tipo de crime cometido, dada a facilidade de propagação de informação, não
é razoável que a vítima espere a Justiça retirar o site do ar, quando puder fazê-lo é razoável que a vítima espere a Justiça retirar o site do ar, quando puder fazê-lo
por vias diretas. por vias diretas.
Por fim, ainda no que concerne a este tópico, é importante que o ofendido noti­ Por fim, ainda no que concerne a este tópico, é importante que o ofendido noti­
fique o provedor hospedeiro para que este guarde as informações técnicas necessá- fique o provedor hospedeiro para que este guarde as informações técnicas necessá-
rias a fim de que seja possível a identificação do usuário infrator, na fase de inquérito rias a fim de que seja possível a identificação do usuário infrator, na fase de inquérito
ou na instrução criminal. Exceto nos casos de pornografia infantil (Lei 10.764/03), ou na instrução criminal. Exceto nos casos de pornografia infantil (Lei 10.764/03),
ainda não há norma que obrigue os provedores a fazê-lo, a despeito de Termos ainda não há norma que obrigue os provedores a fazê-lo, a despeito de Termos
de Compromisso entre órgãos públicos e provedores7, celebrados nesse sentido. de Compromisso entre órgãos públicos e provedores7, celebrados nesse sentido.

5. Jurisdição e competência 5. Jurisdição e competência

5.1. A jurisdição penal brasileira 5.1. A jurisdição penal brasileira


Concluído o inquérito ou reunidas as provas necessárias, é hora de se propor Concluído o inquérito ou reunidas as provas necessárias, é hora de se propor
a correta ação penal. Mas, quando é competente a justiça brasileira? a correta ação penal. Mas, quando é competente a justiça brasileira?

Com efeito, o Código Penal adotou, em seu art. 6º, a Teoria da Ubiqüidade Com efeito, o Código Penal adotou, em seu art. 6º, a Teoria da Ubiqüidade
Mista, a qual preceitua que, para efeitos de competência pátria, lugar do crime Mista, a qual preceitua que, para efeitos de competência pátria, lugar do crime
tanto pode ser o da ação como o do resultado, ou ainda o lugar do bem jurídico tanto pode ser o da ação como o do resultado, ou ainda o lugar do bem jurídico
ameaçado ou lesado8, visando assim evitar o conflito negativo de jurisdição. Para ameaçado ou lesado8, visando assim evitar o conflito negativo de jurisdição. Para
apuração da jurisdição penal brasileira, deve ser, portanto, levado em conta o que apuração da jurisdição penal brasileira, deve ser, portanto, levado em conta o que
disposto na referida norma9. disposto na referida norma9.

7. Ibid. 7. Ibid.
8. Bitencourt (2005). 8. Bitencourt (2005).
9. Neste sentido, o STJ, no Conflito de Competência nº 62.949 – Pr (2006/0090645-3), em que se 9. Neste sentido, o STJ, no Conflito de Competência nº 62.949 – Pr (2006/0090645-3), em que se
discutia se e quem era competente para apurar incitação ao uso de drogas veiculada num sítio a discutia se e quem era competente para apurar incitação ao uso de drogas veiculada num sítio a
188 Bernardo Chezzi 188 Bernardo Chezzi

Neste sentido, verifica-se, casuisticamente, que os delitos virtuais em voga Neste sentido, verifica-se, casuisticamente, que os delitos virtuais em voga
são praticados dentro dos limites da competência pátria. Para fins de apuração do são praticados dentro dos limites da competência pátria. Para fins de apuração do
momento e do lugar em que se praticou o tipo, há de se verificar o verbo núcleo momento e do lugar em que se praticou o tipo, há de se verificar o verbo núcleo
do tipo do dispositivo incriminador. Assim, difamar, caluniar, injuriar (crimes do tipo do dispositivo incriminador. Assim, difamar, caluniar, injuriar (crimes
contra a honra), publicar, divulgar (pornografia infantil), danificar (crimes de contra a honra), publicar, divulgar (pornografia infantil), danificar (crimes de
dano, provocado através de vírus), falsificar (crimes contra a fé pública), obter dano, provocado através de vírus), falsificar (crimes contra a fé pública), obter
vantagem mantendo outrem em erro (estelionato), são condutas que, quando re- vantagem mantendo outrem em erro (estelionato), são condutas que, quando re-
alizadas no mundo material, diz-se que houve a prática do tipo a que se referem. alizadas no mundo material, diz-se que houve a prática do tipo a que se referem.
No caso de crimes virtuais, ocorre o mesmo, só que serão realizadas por meio de No caso de crimes virtuais, ocorre o mesmo, só que serão realizadas por meio de
um computador e do acesso à Internet. um computador e do acesso à Internet.

O agente ativo pratica o delito quando se dirige a um PC, acessa a Rede e O agente ativo pratica o delito quando se dirige a um PC, acessa a Rede e
acondiciona nela o que de teor ilícito10. V.g., alguém pratica falsidade ideológica acondiciona nela o que de teor ilícito10. V.g., alguém pratica falsidade ideológica
quando, usando a Internet, através de algum computador, cria uma identidade falsa quando, usando a Internet, através de algum computador, cria uma identidade falsa
dentro da comunidade virtual. É de fácil compreensão, com esteio neste raciocínio, dentro da comunidade virtual. É de fácil compreensão, com esteio neste raciocínio,
que os crimes virtuais, com os quais lide a Justiça Brasileira, sejam, em quase que os crimes virtuais, com os quais lide a Justiça Brasileira, sejam, em quase
toda a sua totalidade, praticados em território nacional, porque a natureza dos toda a sua totalidade, praticados em território nacional, porque a natureza dos
delitos virtuais denunciados ou para os quais houve queixa diz respeito à nossa delitos virtuais denunciados ou para os quais houve queixa diz respeito à nossa
realidade (não há notícias de quadrilhas que cometam furto eletrônico mediante realidade (não há notícias de quadrilhas que cometam furto eletrônico mediante
fraude11 de forma transnacional, quando se difama alguém o autor é conhecido fraude11 de forma transnacional, quando se difama alguém o autor é conhecido
da vítima, e assim por diante12). da vítima, e assim por diante12).

De outro modo, a Teoria da Ubiqüidade Mista abrange as hipóteses mais De outro modo, a Teoria da Ubiqüidade Mista abrange as hipóteses mais
remotas ao determinar que terá jurisdição o Estado brasileiro quando, mesmo que remotas ao determinar que terá jurisdição o Estado brasileiro quando, mesmo que
aqui não praticado o delito, cá seu resultado seja produzido ou projetado. Vale aqui não praticado o delito, cá seu resultado seja produzido ou projetado. Vale
dizer, toda vez que um cidadão seja ofendido ou lesado por crime virtual, toda dizer, toda vez que um cidadão seja ofendido ou lesado por crime virtual, toda
vez que um bem jurídico nacional for ofendido ou lesado, restará competente a vez que um bem jurídico nacional for ofendido ou lesado, restará competente a
justiça para propositura da respectiva ação, porquanto o resultado produziu-se justiça para propositura da respectiva ação, porquanto o resultado produziu-se
para dentro dos limites nacionais. para dentro dos limites nacionais.
Ressaltemos, entrementes, que nem tudo são flores. O fato de haver jurisdi- Ressaltemos, entrementes, que nem tudo são flores. O fato de haver jurisdi-
ção brasileira para dirimir esta sorte de litígios não quer dizer que será eficaz a ção brasileira para dirimir esta sorte de litígios não quer dizer que será eficaz a
sentença penal condenatória brasileira que possa advir. O que se tem em concreto sentença penal condenatória brasileira que possa advir. O que se tem em concreto

americano, veiculado em língua portuguesa. O STJ acolheu a Teoria da Ubiqüidade Mista, americano, veiculado em língua portuguesa. O STJ acolheu a Teoria da Ubiqüidade Mista,
reconhecendo a jurisdição brasileira e determinando a competência da justiça estadual: “As reconhecendo a jurisdição brasileira e determinando a competência da justiça estadual: “As
informações são, pois, no sentido de hospedeiro fora do âmbito nacional – hipoteticamente, na informações são, pois, no sentido de hospedeiro fora do âmbito nacional – hipoteticamente, na
Califórnia. Malgrado tal acontecimento – se verdadeiro –, o fato repercutiu mesmo foi no território Califórnia. Malgrado tal acontecimento – se verdadeiro –, o fato repercutiu mesmo foi no território
nacional”. nacional”.
10. Nesta linha, Túlio Vianna (2005). 10. Nesta linha, Túlio Vianna (2005).
11. A este respeito, vide dados das ações do Departamento de Polícia Federal: www.dpf.gov.br. 11. A este respeito, vide dados das ações do Departamento de Polícia Federal: www.dpf.gov.br.
12. Há rigorosas exceções para esta regra, a exemplo da pornografia infantil que, graças ao advento 12. Há rigorosas exceções para esta regra, a exemplo da pornografia infantil que, graças ao advento
da Internet, virou uma verdadeira indústria internacional, sem fronteiras, de difícil combate por da Internet, virou uma verdadeira indústria internacional, sem fronteiras, de difícil combate por
parte inclusive das autoridades brasileiras. Para mais informações, www.safernet.org.br. parte inclusive das autoridades brasileiras. Para mais informações, www.safernet.org.br.
Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 189 Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 189

é que, por serem crimes que em sua maioria são aqui praticados e que também é que, por serem crimes que em sua maioria são aqui praticados e que também
aqui são verificados os seus resultados, mediante ofensa a bens jurídicos tutela- aqui são verificados os seus resultados, mediante ofensa a bens jurídicos tutela-
dos nacionalmente, a maioria dos agentes ativos do crime são brasileiros. Isto dos nacionalmente, a maioria dos agentes ativos do crime são brasileiros. Isto
quer dizer que, em tese, para a maioria dos casos, a efetividade do Direito será quer dizer que, em tese, para a maioria dos casos, a efetividade do Direito será
verificada, porque, identificado o autor do crime, poderá ele ser punido. Diferen- verificada, porque, identificado o autor do crime, poderá ele ser punido. Diferen-
temente para as hipóteses em que resida o autor do crime em outro país, quando temente para as hipóteses em que resida o autor do crime em outro país, quando
hão de ser observadas as condições do art. 7º do Código Penal, conjuntamente hão de ser observadas as condições do art. 7º do Código Penal, conjuntamente
aos acordos bilaterais e multilaterais que o Brasil haja assinado com o país do aos acordos bilaterais e multilaterais que o Brasil haja assinado com o país do
infrator estrangeiro.13 infrator estrangeiro.13
Sob a tela de delitos inseridos num parâmetro de macrocriminalidade, já se Sob a tela de delitos inseridos num parâmetro de macrocriminalidade, já se
cogita da edificação de uma jurisdição internacional específica14, algo para que já cogita da edificação de uma jurisdição internacional específica14, algo para que já
engatinha o Velho Continente, desde que celebrada a Convenção de Budapeste15. engatinha o Velho Continente, desde que celebrada a Convenção de Budapeste15.

5.2. Justiça Estadual ou Federal? 5.2. Justiça Estadual ou Federal?


Há uma falsa idéia de que todo injusto penal praticado por meio da Internet Há uma falsa idéia de que todo injusto penal praticado por meio da Internet
seja da alçada da Justiça Federal. Este pensamento deflui de duas errôneas pre- seja da alçada da Justiça Federal. Este pensamento deflui de duas errôneas pre-
missas: 1) que a Rede não tem fronteiras e, assim, tratar-se-ia de crime de caráter missas: 1) que a Rede não tem fronteiras e, assim, tratar-se-ia de crime de caráter
internacional e 2) a Internet seria um serviço público da União (VIANNA, 2003, internacional e 2) a Internet seria um serviço público da União (VIANNA, 2003,
p.95)16. Rechaçando essas afirmações, embora o alcance da Internet seja mundial, p.95)16. Rechaçando essas afirmações, embora o alcance da Internet seja mundial,
os efeitos de um crime são verificados em certa comunidade, localidade (obviamen- os efeitos de um crime são verificados em certa comunidade, localidade (obviamen-
te quando o bem jurídico protegido não resida em mais de um país). Ademais, o te quando o bem jurídico protegido não resida em mais de um país). Ademais, o
crime é praticado de um lugar certo, e não indeterminado, embora assim se mostre crime é praticado de um lugar certo, e não indeterminado, embora assim se mostre
num primeiro momento. Sobre o segundo argumento, a União não gere ou está num primeiro momento. Sobre o segundo argumento, a União não gere ou está
obrigada a gerir a Internet, nem é a Rede uma delegação sua, apenas, por vezes, obrigada a gerir a Internet, nem é a Rede uma delegação sua, apenas, por vezes,
dela se utiliza. Deve restar claro que serviços públicos prestados pela União são dela se utiliza. Deve restar claro que serviços públicos prestados pela União são
aqueles determinados pela Carta Magna, o que de longe parece ser o caso. aqueles determinados pela Carta Magna, o que de longe parece ser o caso.
Como supra mencionado, os crimes praticados na Internet nos quais é Como supra mencionado, os crimes praticados na Internet nos quais é
competente a Justiça Federal são aqueles a que alude o art. 109 da Constituição competente a Justiça Federal são aqueles a que alude o art. 109 da Constituição

13. Outro problema está na falta de cooperação de alguns provedores de conteúdo não nacionais, como 13. Outro problema está na falta de cooperação de alguns provedores de conteúdo não nacionais, como
a Google Inc. O rastreamento técnico só pode ser feito se houver colaboração dos envolvidos, o a Google Inc. O rastreamento técnico só pode ser feito se houver colaboração dos envolvidos, o
que por vezes não acontece. que por vezes não acontece.
14. A este respeito, FERREIRA (2007). 14. A este respeito, FERREIRA (2007).
15. Também chamada de Convenção Internacional contra o Cibercrime, já foi assinada por 47 países 15. Também chamada de Convenção Internacional contra o Cibercrime, já foi assinada por 47 países
(43 estados-membros do Conselho da Europa, mais Estados Unidos, Japão, Canadá e África do (43 estados-membros do Conselho da Europa, mais Estados Unidos, Japão, Canadá e África do
Sul). Estabelece padrões de políticas públicas no tratamento do ilícito virtual, bem como facilidades Sul). Estabelece padrões de políticas públicas no tratamento do ilícito virtual, bem como facilidades
recíprocas para a persecução dos incidentes ilícitos virtuais, quando perniciosos a mais de uma recíprocas para a persecução dos incidentes ilícitos virtuais, quando perniciosos a mais de uma
daquelas nações. O Brasil ainda não é signatário. daquelas nações. O Brasil ainda não é signatário.
16. Como decorrência desta conjectura, inúmeros são os casos em que são registradas erroneamente 16. Como decorrência desta conjectura, inúmeros são os casos em que são registradas erroneamente
noticia criminis na Polícia Federal, quando deviam sê-lo na Polícia Estadual. Assim, a boa parte noticia criminis na Polícia Federal, quando deviam sê-lo na Polícia Estadual. Assim, a boa parte
dos inquéritos hoje em andamento tanto no Ministério Público Estadual quanto na Polícia Civil dos inquéritos hoje em andamento tanto no Ministério Público Estadual quanto na Polícia Civil
tiveram início na Polícia Federal, que envia os expedientes ao reconhecer estes órgãos como os tiveram início na Polícia Federal, que envia os expedientes ao reconhecer estes órgãos como os
competentes para perquirir aquele tipo penal suscitado. competentes para perquirir aquele tipo penal suscitado.
190 Bernardo Chezzi 190 Bernardo Chezzi

Federal. No seu inciso IV, a Carta Magna determina que são de alçada federal Federal. No seu inciso IV, a Carta Magna determina que são de alçada federal
os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União,
suas entidades autárquicas ou empresas públicas. Os crimes eletrônicos prati­- suas entidades autárquicas ou empresas públicas. Os crimes eletrônicos prati­-
cados contra os entes da Administração Federal estão abarcados por este cados contra os entes da Administração Federal estão abarcados por este
inciso.17 inciso.17
O inciso V do referido dispositivo constitucional é o que enseja o mais am- O inciso V do referido dispositivo constitucional é o que enseja o mais am-
plo rol de crimes eletrônicos de competência da justiça federal. A Constituição plo rol de crimes eletrônicos de competência da justiça federal. A Constituição
determina que serão apurados pela justiça da federação os crimes previstos em determina que serão apurados pela justiça da federação os crimes previstos em
tratado e convenção nacional, quando iniciada a execução no país o resultado tratado e convenção nacional, quando iniciada a execução no país o resultado
tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro. Destaques destes delitos são aquelas tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro. Destaques destes delitos são aquelas
condutas tipificadas no art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei condutas tipificadas no art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei
anti-racismo 7.716/8918. anti-racismo 7.716/8918.
Excluídas as hipóteses de competência da Justiça Eleitoral – tal como os crimes Excluídas as hipóteses de competência da Justiça Eleitoral – tal como os crimes
tipificados nos arts. 289 a 354 do Código Eleitoral (Lei 4.737/65) – e da Justiça tipificados nos arts. 289 a 354 do Código Eleitoral (Lei 4.737/65) – e da Justiça
Militar (Decreto-lei nº 1.001/69), residualmente, todas as outras condutas típicas Militar (Decreto-lei nº 1.001/69), residualmente, todas as outras condutas típicas
praticadas pela Internet são de competência da Justiça Comum. praticadas pela Internet são de competência da Justiça Comum.
Neste sentido tem se posicionado o Superior Tribunal de Justiça: Neste sentido tem se posicionado o Superior Tribunal de Justiça:
PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME DE INFORMÁTICA. PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME DE INFORMÁTICA.
INEXISTÊNCIA DE TRATADO ENTRE OS PAÍSES. NÃO-INCIDÊNCIA INEXISTÊNCIA DE TRATADO ENTRE OS PAÍSES. NÃO-INCIDÊNCIA
DO DISPOSTO NO ART. 109, V, DA CF/88. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO DISPOSTO NO ART. 109, V, DA CF/88. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA
ESTADUAL. ESTADUAL.
1. Para a incidência da regra de fixação da competência do art. 109, V, da CF/88, 1. Para a incidência da regra de fixação da competência do art. 109, V, da CF/88,
é imperativa a análise da existência ou não de tratado ou convenção internacional é imperativa a análise da existência ou não de tratado ou convenção internacional
entre os países envolvidos na prática criminosa. entre os países envolvidos na prática criminosa.
2. A qualidade do órgão policial conducente da investigação é irrelevante para a 2. A qualidade do órgão policial conducente da investigação é irrelevante para a
fixação da competência do Juízo, pois a Carta da República prevê regras distintas fixação da competência do Juízo, pois a Carta da República prevê regras distintas
na fixação das competências jurisdicional e policial. na fixação das competências jurisdicional e policial.
3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara 3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara
Criminal da Comarca de Santa Cruz do Sul/RS, suscitado. Criminal da Comarca de Santa Cruz do Sul/RS, suscitado.

(CC 33.871/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, (CC 33.871/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO,
julgado em 13.12.2004, DJ 01.02.2005 p. 403). julgado em 13.12.2004, DJ 01.02.2005 p. 403).

17. O Manual Prático de Investigação do MPF (2006) traz exemplo vistoso, qual seja, o de advogada 17. O Manual Prático de Investigação do MPF (2006) traz exemplo vistoso, qual seja, o de advogada
que por falsidade ideológica na Internet visava a restituições do Imposto de Renda em nome de que por falsidade ideológica na Internet visava a restituições do Imposto de Renda em nome de
laranjas. Trata-se de estelionato eletrônico praticado contra a Receita Federal. Neste sentido, as laranjas. Trata-se de estelionato eletrônico praticado contra a Receita Federal. Neste sentido, as
ações que dizem respeito aos correntistas da Caixa Econômica Federal, que tiveram contra si ações que dizem respeito aos correntistas da Caixa Econômica Federal, que tiveram contra si
aplicados golpes eletrônicos de furto de senha e respectiva transferência de valores de sua conta, aplicados golpes eletrônicos de furto de senha e respectiva transferência de valores de sua conta,
também correm perante os tribunais federais. também correm perante os tribunais federais.
18. Cit., CRIMES Cibernéticos: Manual prático de investigação. (2006). 18. Cit., CRIMES Cibernéticos: Manual prático de investigação. (2006).
Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 191 Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 191

5.3. Foro competente 5.3. Foro competente


Para exercer de forma organizada e eficaz o poder de dizer qual o Direito que Para exercer de forma organizada e eficaz o poder de dizer qual o Direito que
deve ser aplicado no caso concreto, e, na lide penal, julgando e aplicando a respec- deve ser aplicado no caso concreto, e, na lide penal, julgando e aplicando a respec-
tiva sanção – se necessário –, o Estado-Juiz repartiu sua jurisdição (juris, dição) tiva sanção – se necessário –, o Estado-Juiz repartiu sua jurisdição (juris, dição)
em diferentes compe­tências ordinárias, estabelecendo regras para determinação em diferentes compe­tências ordinárias, estabelecendo regras para determinação
do foro e do juízo c­ ompetente. do foro e do juízo c­ ompetente.
Para melhor compreensão de o que se trata foro e juízo, institutos comuns Para melhor compreensão de o que se trata foro e juízo, institutos comuns
ao direito processual civil e penal, valer-nos-emos dos ensinamentos de Fredie ao direito processual civil e penal, valer-nos-emos dos ensinamentos de Fredie
Didier Jr. (Vol. I, 6ª Ed., 2006, p. 114): Didier Jr. (Vol. I, 6ª Ed., 2006, p. 114):
Foro é o local onde o juiz exerce as suas funções; é a unidade territorial sobre a qual Foro é o local onde o juiz exerce as suas funções; é a unidade territorial sobre a qual
se exerce o poder jurisdicional (lembre-se que o Estado é soberania de um povo se exerce o poder jurisdicional (lembre-se que o Estado é soberania de um povo
sobre dado território). No mesmo local, conforme as leis de organização judiciária sobre dado território). No mesmo local, conforme as leis de organização judiciária
podem funcionar vários juízes com atribuições iguais ou diversas. Assim, para uma podem funcionar vários juízes com atribuições iguais ou diversas. Assim, para uma
mesma causa, verifica-se primeiro qual o foro competente, depois o juízo, que é a mesma causa, verifica-se primeiro qual o foro competente, depois o juízo, que é a
vara, o cartório, a unidade administrativa. vara, o cartório, a unidade administrativa.

Assim é que, verbi gratia, a competência da Justiça Comum em cada ente Assim é que, verbi gratia, a competência da Justiça Comum em cada ente
federado é dividida, repartida entre as diversas comarcas (foros) existentes. Para o federado é dividida, repartida entre as diversas comarcas (foros) existentes. Para o
caso da Justiça Comum baiana, segundo a Lei de Organização do Poder Judiciário caso da Justiça Comum baiana, segundo a Lei de Organização do Poder Judiciário
daquele Estado, a delimitação territorial da cidade de Salvador corresponde a um daquele Estado, a delimitação territorial da cidade de Salvador corresponde a um
foro, a que se chama de comarca. Em cada foro, há diferentes juízos (varas), com foro, a que se chama de comarca. Em cada foro, há diferentes juízos (varas), com
diferentes competências materiais. Em grandes foros, como o da capital baiana, diferentes competências materiais. Em grandes foros, como o da capital baiana,
onde a demanda ao poder judiciário é maior, há uma contumaz especialização onde a demanda ao poder judiciário é maior, há uma contumaz especialização
dos diversos juízos sediados naquela comarca. Nestes casos sempre haverá varas dos diversos juízos sediados naquela comarca. Nestes casos sempre haverá varas
(juízos) voltadas para certos assuntos, e que devam apenas deles tratar, de forma (juízos) voltadas para certos assuntos, e que devam apenas deles tratar, de forma
distinta e individualmente. Assim é que existem a 1ª Vara da Infância e Juventude, distinta e individualmente. Assim é que existem a 1ª Vara da Infância e Juventude,
3ª Vara Cível de Família, Sucessões e Interditos, 8ª Vara da Fazenda Pública, 2ª 3ª Vara Cível de Família, Sucessões e Interditos, 8ª Vara da Fazenda Pública, 2ª
Vara Crímen, o 11º Juizado Especial Criminal, da Comarca de Salvador (diversos Vara Crímen, o 11º Juizado Especial Criminal, da Comarca de Salvador (diversos
juízos de um mesmo foro, destarte). juízos de um mesmo foro, destarte).
Nesta esteira de intelecção, hão de ser adiante dirimidas as regras que condu- Nesta esteira de intelecção, hão de ser adiante dirimidas as regras que condu-
zem certo ilícito penal para apreciação por parte de predeterminado foro, e para um zem certo ilícito penal para apreciação por parte de predeterminado foro, e para um
juízo específico, ou gênero de juízos específicos, porquanto ao se tratar de crimes juízo específico, ou gênero de juízos específicos, porquanto ao se tratar de crimes
virtuais, restem elas, ao menos inicialmente, um tanto trabalhosas. virtuais, restem elas, ao menos inicialmente, um tanto trabalhosas.
Com efeito, no sistema processual penal pátrio, o legislador ordinário enten- Com efeito, no sistema processual penal pátrio, o legislador ordinário enten-
deu por estabelecer como foro competente para a causa criminal o lugar onde a deu por estabelecer como foro competente para a causa criminal o lugar onde a
infração consumou-se (locus delicti commissi)19. É o que erigido no art. 70 do infração consumou-se (locus delicti commissi)19. É o que erigido no art. 70 do
Código de Processo Penal. Código de Processo Penal.

19. TOURINHO FILHO (2006). 19. TOURINHO FILHO (2006).


192 Bernardo Chezzi 192 Bernardo Chezzi

Uma vez que a consumação de um delito dá-se pela ocorrência dos elementos Uma vez que a consumação de um delito dá-se pela ocorrência dos elementos
de sua definição legal, com esteio nas propriedades da Internet, é possível estabe- de sua definição legal, com esteio nas propriedades da Internet, é possível estabe-
lecer-se critérios comuns a todos os crimes nela praticados para fins de aferição lecer-se critérios comuns a todos os crimes nela praticados para fins de aferição
do lugar do delito e, assim, do foro competente. do lugar do delito e, assim, do foro competente.
Preliminarmente, há de se perquirir se o injusto penal investigado trata-se de Preliminarmente, há de se perquirir se o injusto penal investigado trata-se de
crime material, formal ou de mera conduta. Crimes materiais (ou de resultado), crime material, formal ou de mera conduta. Crimes materiais (ou de resultado),
segundo Paulo Queiroz (3ª Ed., 2006, p. 171), “são aqueles em que o tipo penal segundo Paulo Queiroz (3ª Ed., 2006, p. 171), “são aqueles em que o tipo penal
descreve um comportamento cuja consumação – entendida como completa reali- descreve um comportamento cuja consumação – entendida como completa reali-
zação dos elementos do tipo – somente ocorre com a produção do resultado nele zação dos elementos do tipo – somente ocorre com a produção do resultado nele
previsto”. Cita como exemplo o homicídio (CP, art. 121) e o aborto, quando a previsto”. Cita como exemplo o homicídio (CP, art. 121) e o aborto, quando a
consumação do delito implementa-se pela morte da pessoa ou do feto. É necessário, consumação do delito implementa-se pela morte da pessoa ou do feto. É necessário,
para verificação do momento e do lugar de consumação dos crimes materiais, o para verificação do momento e do lugar de consumação dos crimes materiais, o
resultado típico que transforma o mundo material. resultado típico que transforma o mundo material.
Diferentemente sucede com os crimes formais e de mera conduta, que en- Diferentemente sucede com os crimes formais e de mera conduta, que en-
globaremos, ambos, num mesmo rol. Nos crimes formais (também chamados de globaremos, ambos, num mesmo rol. Nos crimes formais (também chamados de
consumação antecipada), o crime consuma-se com a realização da ação típica, consumação antecipada), o crime consuma-se com a realização da ação típica,
sendo despiciendo a verificação do resultado (v.g. concussão art. 116 do CP, basta sendo despiciendo a verificação do resultado (v.g. concussão art. 116 do CP, basta
que se exija a vantagem indevida). De modo similar, a consumação dos delitos que se exija a vantagem indevida). De modo similar, a consumação dos delitos
de mera conduta dá-se pela ação descrita no tipo, não havendo inclusive menção de mera conduta dá-se pela ação descrita no tipo, não havendo inclusive menção
a qualquer resultado (v.g. invasão de domicílio, art. 150, basta que se entre, se a qualquer resultado (v.g. invasão de domicílio, art. 150, basta que se entre, se
permaneça, em casa alheia, clandestina ou astuciosamente).20 permaneça, em casa alheia, clandestina ou astuciosamente).20
Retome-se, portanto, que a aferição de qual a natureza do crime virtual Retome-se, portanto, que a aferição de qual a natureza do crime virtual
(material, formal ou de mera conduta) será relevante para determinação do foro (material, formal ou de mera conduta) será relevante para determinação do foro
porque o art. 70 do CPP determina que será competente o lugar em que houve a porque o art. 70 do CPP determina que será competente o lugar em que houve a
consumação do delito. Por isso, para os casos em que basta que se pratique aquela consumação do delito. Por isso, para os casos em que basta que se pratique aquela
conduta típica para que se consume o delito (crimes formais e de mera conduta), conduta típica para que se consume o delito (crimes formais e de mera conduta),
o foro competente será aquele em que o agente ativo acessou a Internet através de o foro competente será aquele em que o agente ativo acessou a Internet através de
um computador e veiculou na Rede o conteúdo criminoso ou empreendeu por meio um computador e veiculou na Rede o conteúdo criminoso ou empreendeu por meio
desta aquela ação típica. Exemplifique-se. Se Durval resolve elaborar uma página desta aquela ação típica. Exemplifique-se. Se Durval resolve elaborar uma página
virtual caluniando o seu síndico, e o fez através do computador de sua casa, o foro virtual caluniando o seu síndico, e o fez através do computador de sua casa, o foro
competente será aquele de sua cidade, porque os crimes contra a honra são delitos competente será aquele de sua cidade, porque os crimes contra a honra são delitos
formais, consumam-se tão somente pela prática da conduta típica (caluniar, art. formais, consumam-se tão somente pela prática da conduta típica (caluniar, art.
138, no caso, caluniar pela Internet)21. Ainda que Durval caluniasse, mediante a 138, no caso, caluniar pela Internet)21. Ainda que Durval caluniasse, mediante a
Rede, alguém de outra cidade, como seu chefe, por exemplo, o foro competente Rede, alguém de outra cidade, como seu chefe, por exemplo, o foro competente
ainda seria o da cidade de Durval, porque o crime contra a honra, por ser formal, ainda seria o da cidade de Durval, porque o crime contra a honra, por ser formal,
consuma-se no lugar que foi praticado, e não no espaço em que foram verificados consuma-se no lugar que foi praticado, e não no espaço em que foram verificados
os seus resultados (no caso, na cidade de seu chefe). os seus resultados (no caso, na cidade de seu chefe).

20. op. cit., QUEIROZ (2006, p. 171) 20. op. cit., QUEIROZ (2006, p. 171)
21. Rezamos que aqui também se amolda o art. 241 do ECA, por se tratar de crime formal. 21. Rezamos que aqui também se amolda o art. 241 do ECA, por se tratar de crime formal.
Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 193 Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 193

Neste diapasão, quando se tratar de furto mediante fraude22 pela Internet, Neste diapasão, quando se tratar de furto mediante fraude22 pela Internet,
conduta do art. 155, § 4º do CP, por tratar-se de crime material, é necessário conduta do art. 155, § 4º do CP, por tratar-se de crime material, é necessário
para consumação do delito que o agente ativo aproprie-se da coisa alheia móvel para consumação do delito que o agente ativo aproprie-se da coisa alheia móvel
(dinheiro em conta bancária) mediante fraude na Rede (por meio de um trojan (dinheiro em conta bancária) mediante fraude na Rede (por meio de um trojan
no computador da vítima, por exemplo). A este respeito, inclusive, tem decidido no computador da vítima, por exemplo). A este respeito, inclusive, tem decidido
o STJ (CC 86241, CC 86862) que o foro competente será aquele em que a res o STJ (CC 86241, CC 86862) que o foro competente será aquele em que a res
furtiva deixa de estar na posse da vítima, no local de subtração do bem. Se a con- furtiva deixa de estar na posse da vítima, no local de subtração do bem. Se a con-
ta da vítima estava na cidade A, e a do criminoso na cidade B, para onde foram ta da vítima estava na cidade A, e a do criminoso na cidade B, para onde foram
transferidos os valores, o foro competente é o da primeira, porque deve ser fixada transferidos os valores, o foro competente é o da primeira, porque deve ser fixada
a competência para investigação e, eventual, processamento da ação penal no local a competência para investigação e, eventual, processamento da ação penal no local
onde o correntista detém a conta fraudada, no local do dano real – mormente se onde o correntista detém a conta fraudada, no local do dano real – mormente se
trate de crime material, de resultado. trate de crime material, de resultado.
Assim, de modo geral, determina-se o foro no caso de crimes praticados na Assim, de modo geral, determina-se o foro no caso de crimes praticados na
Internet de acordo com a natureza do crime, ou seja, como material, formal ou de Internet de acordo com a natureza do crime, ou seja, como material, formal ou de
mera conduta. Se material, há de se perquirir onde o resultado típico foi produzi- mera conduta. Se material, há de se perquirir onde o resultado típico foi produzi-
do, já que a consumação aqui se dá pela ocorrência de modificação na realidade do, já que a consumação aqui se dá pela ocorrência de modificação na realidade
material. Se formal ou de mera conduta, o crime consumou-se pela prática do material. Se formal ou de mera conduta, o crime consumou-se pela prática do
crime pela Internet, então há de se perquirir de que computador o criminoso teve crime pela Internet, então há de se perquirir de que computador o criminoso teve
acesso à Internet para cometimento daquele ilícito. acesso à Internet para cometimento daquele ilícito.
Superada esta etapa, é necessária a correta análise acerca de qual o juízo Superada esta etapa, é necessária a correta análise acerca de qual o juízo
competente. competente.

5.4. Juízo competente 5.4. Juízo competente


Como já colocado, num foro há diversos juízos. Quando em determinada Como já colocado, num foro há diversos juízos. Quando em determinada
seção judiciária (justiça federal) ou comarca (justiça estadual) houver mais de um seção judiciária (justiça federal) ou comarca (justiça estadual) houver mais de um
juízo que trate de questões penais, dois sucedâneos ganham relevo para os casos juízo que trate de questões penais, dois sucedâneos ganham relevo para os casos
de crimes praticados na Rede: I) quando se tratar de crimes de menor potencial de crimes praticados na Rede: I) quando se tratar de crimes de menor potencial
ofensivo segundo a Lei 9.099/95 II) quando um deles tornar-se prevento no de- ofensivo segundo a Lei 9.099/95 II) quando um deles tornar-se prevento no de-
correr das investigações. correr das investigações.
Com efeito, a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95), Com efeito, a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95),
modificada pela Lei 11.313/2006, define, em seu art. 61, como crimes de menor modificada pela Lei 11.313/2006, define, em seu art. 61, como crimes de menor
potencial ofensivo “as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena potencial ofensivo “as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena
máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”. E determina máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”. E determina

22. Até pouco tempo predominava o entendimento de que quando se tratava de um usuário da Internet 22. Até pouco tempo predominava o entendimento de que quando se tratava de um usuário da Internet
que, mantido em erro, fornecia dados bancários ao criminoso, que depois deles se valia para realizar que, mantido em erro, fornecia dados bancários ao criminoso, que depois deles se valia para realizar
transferências ou saques, seria tipificada tal conduta como estelionato eletrônico (art. 171 do CP). transferências ou saques, seria tipificada tal conduta como estelionato eletrônico (art. 171 do CP).
O STJ no Conflito de Competência 2007/0137098-6 rechaçou esta tese, para qualificar a conduta O STJ no Conflito de Competência 2007/0137098-6 rechaçou esta tese, para qualificar a conduta
como furto mediante fraude (art. 155, § 4º). Acreditamos que a figura do estelionato eletrônico como furto mediante fraude (art. 155, § 4º). Acreditamos que a figura do estelionato eletrônico
permanece como típica para inúmeras condutas na Internet, a exemplo de fraude a órgãos públicos, permanece como típica para inúmeras condutas na Internet, a exemplo de fraude a órgãos públicos,
fraude para obtenção de dados de um usuário, como CPF, cartão de crédito, correlatos. fraude para obtenção de dados de um usuário, como CPF, cartão de crédito, correlatos.
194 Bernardo Chezzi 194 Bernardo Chezzi

que serão competentes, absolutamente, os juízos especiais criminais para apuração que serão competentes, absolutamente, os juízos especiais criminais para apuração
destes crimes de menor potencial ofensivo. Vale dizer, estes delitos não poderiam destes crimes de menor potencial ofensivo. Vale dizer, estes delitos não poderiam
ser apurados pela Vara crime comum, senão pelos juizados especiais. ser apurados pela Vara crime comum, senão pelos juizados especiais.
Sucede que o rito procedimental nos juizados especiais criminais, não oferta, Sucede que o rito procedimental nos juizados especiais criminais, não oferta,
no mais das vezes, condições apropriadas para o correto destrinchamento dos cri- no mais das vezes, condições apropriadas para o correto destrinchamento dos cri-
mes praticados na Internet. Pela maior complexidade destes delitos, notadamente mes praticados na Internet. Pela maior complexidade destes delitos, notadamente
graças às dificuldades na produção de provas, não seria adequado manter em sua graças às dificuldades na produção de provas, não seria adequado manter em sua
com­petência crimes tais quais os contra a honra e o de dano, provocados pela Rede. com­petência crimes tais quais os contra a honra e o de dano, provocados pela Rede.
Parece perfeitamente aplicável, para o caso, o disposto no § 2º, art. 77, da Parece perfeitamente aplicável, para o caso, o disposto no § 2º, art. 77, da
referida Lei. Lá está assinalado que: “Se a complexidade ou circunstâncias do caso referida Lei. Lá está assinalado que: “Se a complexidade ou circunstâncias do caso
não permitirem a formulação da denúncia, o Ministério Público poderá requerer não permitirem a formulação da denúncia, o Ministério Público poderá requerer
ao Juiz o encaminhamento das peças existentes, na forma do parágrafo único do ao Juiz o encaminhamento das peças existentes, na forma do parágrafo único do
art. 66 desta Lei”. Tal foi o entendimento próspero do Superior Tribunal de Jus- art. 66 desta Lei”. Tal foi o entendimento próspero do Superior Tribunal de Jus-
tiça, ao julgar o Conflito de Competência nº 56.786 do Distrito Federal. Vejamos tiça, ao julgar o Conflito de Competência nº 56.786 do Distrito Federal. Vejamos
a correspondente ementa. a correspondente ementa.
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. VIOLAÇÃO DO SÍTIO DA EMBAIXADA CONFLITO DE COMPETÊNCIA. VIOLAÇÃO DO SÍTIO DA EMBAIXADA
DOS EUA. POSSÍVEL CRIME DE DANO. AUTORIA DESCONHECIDA. PE- DOS EUA. POSSÍVEL CRIME DE DANO. AUTORIA DESCONHECIDA. PE-
DIDO DE QUEBRA DE SIGILO DE DADOS. COMPLEXIDADE. INCOMPA- DIDO DE QUEBRA DE SIGILO DE DADOS. COMPLEXIDADE. INCOMPA-
TIBILIDADE COM OS PRINCÍPIOS QUE REGEM O JUIZADO ESPECIAL. TIBILIDADE COM OS PRINCÍPIOS QUE REGEM O JUIZADO ESPECIAL.
1. O caso em tela não se subsume a nenhuma das hipóteses descritas nos incisos 1. O caso em tela não se subsume a nenhuma das hipóteses descritas nos incisos
do art. 109 da Constituição Federal. Incompetência da Justiça Federal. do art. 109 da Constituição Federal. Incompetência da Justiça Federal.
2. Há evidente necessidade de diligências de maior complexidade para apuração 2. Há evidente necessidade de diligências de maior complexidade para apuração
dos fatos e da autoria, providências essas que incluem, aliás, o pedido em questão dos fatos e da autoria, providências essas que incluem, aliás, o pedido em questão
de quebra de sigilo de dados. Nesse contexto, muito embora o crime de dano, por de quebra de sigilo de dados. Nesse contexto, muito embora o crime de dano, por
definição legal, esteja enquadrado como de menor potencial ofensivo, dada as definição legal, esteja enquadrado como de menor potencial ofensivo, dada as
circunstâncias, incompatíveis com os princípios que regem os Juizados Especiais, circunstâncias, incompatíveis com os princípios que regem os Juizados Especiais,
mormente o da celeridade e o da informalidade, deve o feito ser processado perante mormente o da celeridade e o da informalidade, deve o feito ser processado perante
o Juízo de Direito Comum. o Juízo de Direito Comum.
3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 3.ª Vara 3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 3.ª Vara
Criminal da Circunscrição Especial de Brasília/DF. Criminal da Circunscrição Especial de Brasília/DF.
(CC 56.786/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em (CC 56.786/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em
27.09.2006, DJ 23.10.2006 p. 256) 27.09.2006, DJ 23.10.2006 p. 256)

Igualmente, sugere-se que já possa o querelante, no caso de crimes de menor Igualmente, sugere-se que já possa o querelante, no caso de crimes de menor
potencial ofensivo praticados na Rede, de iniciativa privada, propor a respectiva potencial ofensivo praticados na Rede, de iniciativa privada, propor a respectiva
ação penal privada diretamente na distribuição correspondente aos juízos comuns ação penal privada diretamente na distribuição correspondente aos juízos comuns
(vara criminal), ou diretamente no próprio juízo, acaso só houver um no referido (vara criminal), ou diretamente no próprio juízo, acaso só houver um no referido
foro competente. foro competente.
Por último, há de se analisar a seguinte situação. Como se sabe, no decorrer Por último, há de se analisar a seguinte situação. Como se sabe, no decorrer
da persecutio criminis, especialmente no caso dos delitos virtuais, é necessária a da persecutio criminis, especialmente no caso dos delitos virtuais, é necessária a
Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 195 Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 195

realização de diligências para as quais é imprescindível a autorização judicial. O realização de diligências para as quais é imprescindível a autorização judicial. O
agente policial competente, invariavelmente, pede a um juiz que ou o autorize a agente policial competente, invariavelmente, pede a um juiz que ou o autorize a
agir ou que determine a outrem que aja, para que se chegue ao resultado útil do agir ou que determine a outrem que aja, para que se chegue ao resultado útil do
processo. Na matéria sob exame, temos que a requisição da Autoridade Policial ao processo. Na matéria sob exame, temos que a requisição da Autoridade Policial ao
juiz, para que este determine ao provedor que forneça os dados de acesso relativos juiz, para que este determine ao provedor que forneça os dados de acesso relativos
àquele ilícito penal, torna prevento o juízo, dentre aqueles da mesma circunscrição àquele ilícito penal, torna prevento o juízo, dentre aqueles da mesma circunscrição
territorial jurisdicional. Isto de acordo com a lógica adotada no parágrafo único territorial jurisdicional. Isto de acordo com a lógica adotada no parágrafo único
do art. 75 do CPP. do art. 75 do CPP.
Não obstante, pode ocorrer de que as investigações apontem para um outro Não obstante, pode ocorrer de que as investigações apontem para um outro
foro, verdadeiro lugar do delito, que não aquele no qual foi instaurado o inquérito e foro, verdadeiro lugar do delito, que não aquele no qual foi instaurado o inquérito e
em que ficou prevento um juízo. V.g., Ada tem seus dados pessoais indevidamente em que ficou prevento um juízo. V.g., Ada tem seus dados pessoais indevidamente
usados por alguém na Rede, e realiza a noticia criminis na Autoridade Competente usados por alguém na Rede, e realiza a noticia criminis na Autoridade Competente
para esse assunto na cidade em que mora, município de Cidadela. Desta forma, o para esse assunto na cidade em que mora, município de Cidadela. Desta forma, o
delegado identifica o provedor de conteúdo e pede a um juiz de Cidadela que soli- delegado identifica o provedor de conteúdo e pede a um juiz de Cidadela que soli-
cite os logs de acesso. O pedido é distribuído entre os juízos criminais de Cidadela cite os logs de acesso. O pedido é distribuído entre os juízos criminais de Cidadela
e o juiz X, da 3ª Vara Crime, é sorteado e assim tornado prevento da futura ação e o juiz X, da 3ª Vara Crime, é sorteado e assim tornado prevento da futura ação
penal que se instaurará. Expedida a ordem judicial, obtido o log de acesso junto penal que se instaurará. Expedida a ordem judicial, obtido o log de acesso junto
ao hospedeiro, é identificado o provedor de acesso, e nova ordem é determinada, ao hospedeiro, é identificado o provedor de acesso, e nova ordem é determinada,
identificando-se que o acesso criminoso ocorreu na cidade de Vizinhança, perto identificando-se que o acesso criminoso ocorreu na cidade de Vizinhança, perto
de Cidadela. As investigações apontam para a tipificação da conduta de que Ada de Cidadela. As investigações apontam para a tipificação da conduta de que Ada
foi vítima como o crime de falsa identidade (art. 307), crime formal, que teria foi vítima como o crime de falsa identidade (art. 307), crime formal, que teria
sido consumado, destarte, mediante acesso em Vizinhança, foro competente, em sido consumado, destarte, mediante acesso em Vizinhança, foro competente, em
verdade, para a propositura da ação penal. verdade, para a propositura da ação penal.
Soa claro que aquela prevenção não deve prevalecer, porque decorreu de uma Soa claro que aquela prevenção não deve prevalecer, porque decorreu de uma
presunção segundo a qual o juiz de Cidadela era o competente para conhecer da presunção segundo a qual o juiz de Cidadela era o competente para conhecer da
ação principal23. Não é nula, também, a prova produzida, porque consubstanciada ação principal23. Não é nula, também, a prova produzida, porque consubstanciada
em contexto que a fazia perfeitamente legal.24 em contexto que a fazia perfeitamente legal.24

6. Conclusões necessárias 6. Conclusões necessárias


O surgimento da criminalidade na Rede Mundial impôs ao aplicador do Direito O surgimento da criminalidade na Rede Mundial impôs ao aplicador do Direito
dificuldades para lidar com uma societas diferente daquela a que estava habituado dificuldades para lidar com uma societas diferente daquela a que estava habituado
e, a rigor, não idealizada pelo legislador penal do século XX. Por este trabalho, e, a rigor, não idealizada pelo legislador penal do século XX. Por este trabalho,
viu-se perfeitamente aplicáveis as normas penais, notadamente as de processo viu-se perfeitamente aplicáveis as normas penais, notadamente as de processo
penal, às condutas de teor ilícito praticadas pela Internet, sobretudo porque embora penal, às condutas de teor ilícito praticadas pela Internet, sobretudo porque embora
implementadas no mundo virtual, traduzem efeitos reais na sociedade já tutelada implementadas no mundo virtual, traduzem efeitos reais na sociedade já tutelada
pelo Direito, resultados que guardam absoluta identidade com aqueles típicos, pelo Direito, resultados que guardam absoluta identidade com aqueles típicos,
preconizados e individualizados pelo Direito Penal de Beccaria, Carrara, Roxin. preconizados e individualizados pelo Direito Penal de Beccaria, Carrara, Roxin.

23. STJ, HC 10243, Edson Vidigal,5ª T., un., 18.12.00 23. STJ, HC 10243, Edson Vidigal,5ª T., un., 18.12.00
24. STF, HC81260/ES, Sepúlveda Pertence, Pl., un., 19.4.02 24. STF, HC81260/ES, Sepúlveda Pertence, Pl., un., 19.4.02
196 Bernardo Chezzi 196 Bernardo Chezzi

Não há outro caminho senão a jurisdicionalização do Estado na Rede, e aqui Não há outro caminho senão a jurisdicionalização do Estado na Rede, e aqui
não se alude à legalização, que perpassa sob outros prismas. Como corolário do não se alude à legalização, que perpassa sob outros prismas. Como corolário do
brocardo ubi societas, ubi iuris, seria impossível crer que um sistema de comu- brocardo ubi societas, ubi iuris, seria impossível crer que um sistema de comu-
nicação desenvolvido e atuado por pessoas não esteja sob o crivo social insti- nicação desenvolvido e atuado por pessoas não esteja sob o crivo social insti-
tucionalizado (o Direito). Este, como última instância reguladora da sociedade tucionalizado (o Direito). Este, como última instância reguladora da sociedade
– sociedade em sentido amplo para também abarcar a sociedade eletrônica – é – sociedade em sentido amplo para também abarcar a sociedade eletrônica – é
ínsito a toda e qualquer relação humana, seja ela travada por artifícios usuais ou ínsito a toda e qualquer relação humana, seja ela travada por artifícios usuais ou
contemporâneos. contemporâneos.
Resta premente, consoante esta digressão, que o aplicador da norma penal, Resta premente, consoante esta digressão, que o aplicador da norma penal,
portanto, ao lidar com os delitos em voga, deve retirar o fino véu de anonimato e portanto, ao lidar com os delitos em voga, deve retirar o fino véu de anonimato e
extraterritorialidade que, a priore, parecem residir na Rede. Não se identifica um extraterritorialidade que, a priore, parecem residir na Rede. Não se identifica um
objeto pelo que parece ser, senão pelo que de fato é. Reiterando, malgrado seja objeto pelo que parece ser, senão pelo que de fato é. Reiterando, malgrado seja
diverso o seu modo de prática, os seus resultados são previstos pela norma incrimi- diverso o seu modo de prática, os seus resultados são previstos pela norma incrimi-
nadora e imputados como típicos. Mutatis mutandi, segue os moldes de qualquer nadora e imputados como típicos. Mutatis mutandi, segue os moldes de qualquer
conduta típica assim já conformada pela praxis e pela legis tradicional. conduta típica assim já conformada pela praxis e pela legis tradicional.
Por último, é preciso salutar as iniciativas de órgãos não governamentais, Por último, é preciso salutar as iniciativas de órgãos não governamentais,
por todo o mundo, como a Safernet Brasil, que lutam para que esta barreira entre por todo o mundo, como a Safernet Brasil, que lutam para que esta barreira entre
sociedade eletrônica e o Estado sejam vencidas. O primeiro passo a ser dado, sociedade eletrônica e o Estado sejam vencidas. O primeiro passo a ser dado,
nesta corrente, é o de demonstrar, aos agentes intervenientes, meios existentes nesta corrente, é o de demonstrar, aos agentes intervenientes, meios existentes
e eficazes para dirimir a maioria dos impasses virtuais que se amontam, para, e eficazes para dirimir a maioria dos impasses virtuais que se amontam, para,
depois, galgar soluções para outros de maior remonte, como sucede em crimes de depois, galgar soluções para outros de maior remonte, como sucede em crimes de
pornografia infantil, em que a falta de cooperação internacional tem dificultado pornografia infantil, em que a falta de cooperação internacional tem dificultado
a persecutio criminis. a persecutio criminis.

7. Referências bibliográficas 7. Referências bibliográficas


FERREIRA, Érica Lourenço de Lima. Internet. Macrocriminalidade e Jurisdição Inter- FERREIRA, Érica Lourenço de Lima. Internet. Macrocriminalidade e Jurisdição Inter-
nacional. Curitiba: Ed. Juruá, 2007. nacional. Curitiba: Ed. Juruá, 2007.
INELLAS, Gabriel César Zaccaria. Crimes na Internet. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, INELLAS, Gabriel César Zaccaria. Crimes na Internet. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira,
2004. 2004.
KAMINSKI, Omar (Org.). Internet legal. O Direito na Tecnologia da Informação. Curitiba: KAMINSKI, Omar (Org.). Internet legal. O Direito na Tecnologia da Informação. Curitiba:
Ed. Juruá, 2003 Ed. Juruá, 2003
VIANNA, Túlio Lima. Fundamentos de Direito Penal Informático. Do acesso não auto- VIANNA, Túlio Lima. Fundamentos de Direito Penal Informático. Do acesso não auto-
rizado a sistemas computacionais. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2003. rizado a sistemas computacionais. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2003.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; COMITÊ GESTOR DA INTERNET. Crimes Ci- MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; COMITÊ GESTOR DA INTERNET. Crimes Ci-
bernéticos. Manual prático de investigação. São Paulo, 2006. bernéticos. Manual prático de investigação. São Paulo, 2006.
SAFERNET BRASIL. Disponível em: <www.denunciar.org.br>. Acesso em: 07 de Agosto SAFERNET BRASIL. Disponível em: <www.denunciar.org.br>. Acesso em: 07 de Agosto
de 2007. de 2007.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 5ª Edição. São Paulo: Ed. Revista PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 5ª Edição. São Paulo: Ed. Revista
dos Tribunais, 2005. dos Tribunais, 2005.
Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 197 Aspectos processuais dos crimes praticados pela internet 197

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 3ª Edição. São Paulo: Ed. BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 3ª Edição. São Paulo: Ed.
Saraiva, 2005. Saraiva, 2005.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 8ª Edição. São TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 8ª Edição. São
Paulo: Ed. Saraiva, 2006. Paulo: Ed. Saraiva, 2006.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal Parte Geral. 3ª Edição. São Paulo: Ed. Saraiva, 2006. QUEIROZ, Paulo. Direito Penal Parte Geral. 3ª Edição. São Paulo: Ed. Saraiva, 2006.
Capítulo XIII Capítulo XIII
Conselho Tutelar: um avanço Conselho Tutelar: um avanço
contingenciado pelo Poder Público contingenciado pelo Poder Público

Bruno Gomes Bahia* Bruno Gomes Bahia*


Jaqueline Almeida Silva** Jaqueline Almeida Silva**

Sumário • 1. Introdução – 2. Origem – 3. Conceito – 4. Atribuições Do Conselho – 5. Deficiências Sumário • 1. Introdução – 2. Origem – 3. Conceito – 4. Atribuições Do Conselho – 5. Deficiências
– 6. Conclusão – 7. Referências. – 6. Conclusão – 7. Referências.

1. INTRODUÇÃO 1. INTRODUÇÃO
Escrever sobre conselho tutelar significa revisitar um capítulo da nossa história Escrever sobre conselho tutelar significa revisitar um capítulo da nossa história
recente, qual seja o da construção da democracia representativa. O conselho tutelar recente, qual seja o da construção da democracia representativa. O conselho tutelar
é, sem sombra de dúvida, mais um espaço dentro da administração direta onde há é, sem sombra de dúvida, mais um espaço dentro da administração direta onde há
manifestação da soberania popular, propugnada pela carta magna de 88 – “todo manifestação da soberania popular, propugnada pela carta magna de 88 – “todo
poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes eleitos ou poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta constituição” (art. 1º, parágrafo único). Neste sentido, diretamente, nos termos desta constituição” (art. 1º, parágrafo único). Neste sentido,
entendemos o conselho tutelar como um importante instrumento a serviço do povo, entendemos o conselho tutelar como um importante instrumento a serviço do povo,
ao lado do Sufrágio Universal, da Ação Popular e de instrumentos de consulta, ao lado do Sufrágio Universal, da Ação Popular e de instrumentos de consulta,
como o plebiscito e o referendo. como o plebiscito e o referendo.
No decorrer do presente trabalho dissecaremos o seu conceito, tentando No decorrer do presente trabalho dissecaremos o seu conceito, tentando
esclarecer cada expressão utilizada pelo legislador infraconstitucional, quando esclarecer cada expressão utilizada pelo legislador infraconstitucional, quando
estabeleceu os seus contornos gerais no Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu os seus contornos gerais no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA/Lei nº 8.069/90). Neste sentido, esclareceremos ao leitor o significado (ECA/Lei nº 8.069/90). Neste sentido, esclareceremos ao leitor o significado
dos seus atributos, como órgão autônomo, permanente e não jurisdicional. Des- dos seus atributos, como órgão autônomo, permanente e não jurisdicional. Des-
tacaremos também a sua origem constitucional (art. 227, IV, CF), sem olvidar tacaremos também a sua origem constitucional (art. 227, IV, CF), sem olvidar
de mencionarmos o remédio adequado à sua defesa – o mandado de injunção. de mencionarmos o remédio adequado à sua defesa – o mandado de injunção.
Passearemos, neste ínterim, pelos acontecimentos e movimentos que embasaram Passearemos, neste ínterim, pelos acontecimentos e movimentos que embasaram
a previsão constitucional (“segundo dispuser a legislação tutelar específica”), a previsão constitucional (“segundo dispuser a legislação tutelar específica”),
apontando como marco inicial as críticas dirigidas aos Juízes de menores no apontando como marco inicial as críticas dirigidas aos Juízes de menores no
exercício da função tutelar. exercício da função tutelar.
No que toca as atribuições do conselho, analisaremos uma a uma, fazendo, No que toca as atribuições do conselho, analisaremos uma a uma, fazendo,
sempre que possível, a confrontação entre o que estabelece o ECA no seu art. 136 sempre que possível, a confrontação entre o que estabelece o ECA no seu art. 136
e a prática cotidiana daqueles órgãos. e a prática cotidiana daqueles órgãos.

* Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. * Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
** Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. ** Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
200 Bruno Gomes Bahia | Jaqueline Almeida Silva 200 Bruno Gomes Bahia | Jaqueline Almeida Silva

Dando continuidade, demonstraremos as deficiências no exercício funcional Dando continuidade, demonstraremos as deficiências no exercício funcional
dos conselhos tutelares. Neste sentido traremos à baila a questão da invasão da dos conselhos tutelares. Neste sentido traremos à baila a questão da invasão da
competência, os problemas que envolvem a regulamentação normativa por parte competência, os problemas que envolvem a regulamentação normativa por parte
dos municípios, bem como explicitaremos as carências estruturais. dos municípios, bem como explicitaremos as carências estruturais.
Cabe dizer que este artigo não objetiva esgotar a temática sub exame, mas Cabe dizer que este artigo não objetiva esgotar a temática sub exame, mas
endossar o esforço empreendido por militantes da área da defesa dos direitos endossar o esforço empreendido por militantes da área da defesa dos direitos
fundamentais da criança e do adolescente. fundamentais da criança e do adolescente.

2. ORIGEM 2. ORIGEM
Em 1927 instituiu-se o primeiro juízo privativo de menores, atribuindo àque- Em 1927 instituiu-se o primeiro juízo privativo de menores, atribuindo àque-
les, além da função judicial, a função tutelar. Todavia, percebeu-se, com o passar les, além da função judicial, a função tutelar. Todavia, percebeu-se, com o passar
do tempo, a fragilidade no desempenhar desta última função, pois faltava algo do tempo, a fragilidade no desempenhar desta última função, pois faltava algo
essencial – a participação da comunidade. Destarte, a idéia dos conselhos surge essencial – a participação da comunidade. Destarte, a idéia dos conselhos surge
diante da flagrante insuficiência da atuação dos antigos juizes de menores. Embora diante da flagrante insuficiência da atuação dos antigos juizes de menores. Embora
o primeiro Código de Menores (Dec. 17.943, de 12.10.27) previsse a instituição do o primeiro Código de Menores (Dec. 17.943, de 12.10.27) previsse a instituição do
Conselho de Assistência e Proteção a Menores, este era apenas um órgão auxiliar, Conselho de Assistência e Proteção a Menores, este era apenas um órgão auxiliar,
sem autonomia, que servia apenas como facilitador das ações implementadas sem autonomia, que servia apenas como facilitador das ações implementadas
pelos juízes, na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Somente a pelos juízes, na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Somente a
partir das discussões em torno da elaboração da CF de 88 que se solidificou a idéia partir das discussões em torno da elaboração da CF de 88 que se solidificou a idéia
da implementação de conselhos autônomos, dentro dos quais fosse plenamente da implementação de conselhos autônomos, dentro dos quais fosse plenamente
possível a participação da comunidade local. Dessa forma, como instâncias do possível a participação da comunidade local. Dessa forma, como instâncias do
Poder Público, coube-lhes, desde início, o papel de mediadores, intermediando Poder Público, coube-lhes, desde início, o papel de mediadores, intermediando
a prestação de serviços públicos, de acordo com os anseios da população local. a prestação de serviços públicos, de acordo com os anseios da população local.
Assim, ao mesmo tempo em que os conselhos são um reflexo da sociedade civil, Assim, ao mesmo tempo em que os conselhos são um reflexo da sociedade civil,
eles refletem o seu grau de participação e mobilização e serão tão eficazes e idô- eles refletem o seu grau de participação e mobilização e serão tão eficazes e idô-
neos, quanto for proativa e moral a comunidade. neos, quanto for proativa e moral a comunidade.
Foi com o objetivo, evidentemente não o único, de respaldar as discussões em Foi com o objetivo, evidentemente não o único, de respaldar as discussões em
torno da instituição dos conselhos que a CF de 88 em alguns dispositivos regulou torno da instituição dos conselhos que a CF de 88 em alguns dispositivos regulou
a matéria. No seu art. 127, expressou a doutrina da proteção integral, responsa- a matéria. No seu art. 127, expressou a doutrina da proteção integral, responsa-
bilizando tanto a sociedade como o estado pela tutela dos direitos fundamentais bilizando tanto a sociedade como o estado pela tutela dos direitos fundamentais
das crianças e adolescentes. No parágrafo 5º, do artigo supramencionado, faz-se das crianças e adolescentes. No parágrafo 5º, do artigo supramencionado, faz-se
referência à superveniência de uma legislação tutelar específica e, no art. 224, referência à superveniência de uma legislação tutelar específica e, no art. 224,
do mesmo dispositivo normativo, menciona-se diretamente a necessidade de se do mesmo dispositivo normativo, menciona-se diretamente a necessidade de se
promover a descentralização política administrativa, bem como favorecer a par- promover a descentralização política administrativa, bem como favorecer a par-
ticipação da população, no tocante ao planejamento de diretrizes para a infância ticipação da população, no tocante ao planejamento de diretrizes para a infância
e juventude. e juventude.
Por fim, vale ressaltar que a não pela regulamentação pelo município dos Por fim, vale ressaltar que a não pela regulamentação pelo município dos
conselhos tutelares, pelo menos no número mínimo estabelecido pelo ECA, dá conselhos tutelares, pelo menos no número mínimo estabelecido pelo ECA, dá
margem a impetração do mandado de injunção. Sabe-se que este remédio consti- margem a impetração do mandado de injunção. Sabe-se que este remédio consti-
tucional é utilizado sempre que houver omissão do poder público, no sentido de tucional é utilizado sempre que houver omissão do poder público, no sentido de
Conselho Tutelar: um avanço contingenciado pelo Poder Público 201 Conselho Tutelar: um avanço contingenciado pelo Poder Público 201

dar efetividade aos comandos emanados da lei das leis. Assim, se a CF atribui ao dar efetividade aos comandos emanados da lei das leis. Assim, se a CF atribui ao
legislador infraconstitucional a tarefa de complementar a legislação federal no que legislador infraconstitucional a tarefa de complementar a legislação federal no que
couber e este não a cumpre, impossibilitando o exercício dos direitos fundamentais, couber e este não a cumpre, impossibilitando o exercício dos direitos fundamentais,
pode-se argüir o mandado de injunção. pode-se argüir o mandado de injunção.

3. CONCEITO 3. CONCEITO
O conselho tutelar é um órgão da administração central que, no âmbito muni- O conselho tutelar é um órgão da administração central que, no âmbito muni-
cipal, é parte do poder executivo local. Como órgão burocrático, ele atua junto à cipal, é parte do poder executivo local. Como órgão burocrático, ele atua junto à
comunidade, intermediando a prestação de serviços públicos. Os seus agentes são comunidade, intermediando a prestação de serviços públicos. Os seus agentes são
servidores públicos lato sensu, dentre os quais destacamos os conselheiros (pois servidores públicos lato sensu, dentre os quais destacamos os conselheiros (pois
os demais são cedidos pelas prefeituras), que são eleitos por meio de voto facul- os demais são cedidos pelas prefeituras), que são eleitos por meio de voto facul-
tativo pela população, que não precisa ser a local, ou ter atingido a idade mínima tativo pela população, que não precisa ser a local, ou ter atingido a idade mínima
prevista pela Justiça Eleitoral. Cabe dizer que a ausência de obrigatoriedade não prevista pela Justiça Eleitoral. Cabe dizer que a ausência de obrigatoriedade não
subtrai a legitimidade dos mandatários. subtrai a legitimidade dos mandatários.
Isto posto, analisaremos a definição fornecida pelo ECA. Isto posto, analisaremos a definição fornecida pelo ECA.
O art. 131 da lei menorista conceitua o conselho tutelar como órgão autônomo, O art. 131 da lei menorista conceitua o conselho tutelar como órgão autônomo,
permanente e não jurisdicional. permanente e não jurisdicional.
A autonomia cantada pelo estatuto, segundo Wanderlino Nogueira, não significa A autonomia cantada pelo estatuto, segundo Wanderlino Nogueira, não significa
autonomia administrativa, ou mesmo financeira, mas autonomia funcional, ou seja, autonomia administrativa, ou mesmo financeira, mas autonomia funcional, ou seja,
contra as decisões proferidas pelos conselhos tutelares não cabe recurso hierárqui- contra as decisões proferidas pelos conselhos tutelares não cabe recurso hierárqui-
co. Aquelas só serão reavaliadas pela autoridade judiciária (controle judiciário dos co. Aquelas só serão reavaliadas pela autoridade judiciária (controle judiciário dos
atos da administração) mediante requerimento dos legítimos interessados, ou seja, atos da administração) mediante requerimento dos legítimos interessados, ou seja,
daqueles que possuem legitimidade processual para tanto (ECA, art. 137). Assim, daqueles que possuem legitimidade processual para tanto (ECA, art. 137). Assim,
vale ressaltar que aos magistrados e aos membros do Ministério Público é vedada a vale ressaltar que aos magistrados e aos membros do Ministério Público é vedada a
interferência arbitrária no exercício funcional dos conselhos. É sabido que uma das interferência arbitrária no exercício funcional dos conselhos. É sabido que uma das
características elementares da jurisdição é a sua inércia, ou seja, esta só age quando características elementares da jurisdição é a sua inércia, ou seja, esta só age quando
provocada. No que toca ao Ministério Público, tem-se que a sua atuação se limitará, provocada. No que toca ao Ministério Público, tem-se que a sua atuação se limitará,
a priori, à fiscalização dos conselhos, ditando-lhes recomendações. Desse modo, só a priori, à fiscalização dos conselhos, ditando-lhes recomendações. Desse modo, só
haverá ação judicial por representação do Parquet se aqueles se negarem a cumpri-las haverá ação judicial por representação do Parquet se aqueles se negarem a cumpri-las
(ECA, art. 201, parágrafo 5º, c). Wanderlino Nogueira defende ainda que a concessão (ECA, art. 201, parágrafo 5º, c). Wanderlino Nogueira defende ainda que a concessão
de determinado grau de autonomia financeira e administrativa é possível, desde que de determinado grau de autonomia financeira e administrativa é possível, desde que
haja previsão expressa no ECA. Entendemos que se tal concessão for feita ao.arrepio haja previsão expressa no ECA. Entendemos que se tal concessão for feita ao.arrepio
da lei teremos, incontestavelmente, uma flagrante infração de um dos princípios da lei teremos, incontestavelmente, uma flagrante infração de um dos princípios
estruturais do nosso ordenamento jurídico – o princípio da legalidade. estruturais do nosso ordenamento jurídico – o princípio da legalidade.
Permanência significa continuidade. Os conselhos tutelares não foram pre- Permanência significa continuidade. Os conselhos tutelares não foram pre-
vistos em lei ordinária para atender a uma situação emergencial, pontual. Eles vistos em lei ordinária para atender a uma situação emergencial, pontual. Eles
foram instituídos para salvaguardar a qualquer tempo os direitos fundamentais das foram instituídos para salvaguardar a qualquer tempo os direitos fundamentais das
crianças e adolescentes “credores de direitos” (NOGUEIRA, 2006). Dessa forma, o crianças e adolescentes “credores de direitos” (NOGUEIRA, 2006). Dessa forma, o
desempenho funcional dos conselhos é reclamado a todo tempo pela comunidade, desempenho funcional dos conselhos é reclamado a todo tempo pela comunidade,
a qual deve encontrar em seu seio a satisfação mediata dos seus interesses. a qual deve encontrar em seu seio a satisfação mediata dos seus interesses.
202 Bruno Gomes Bahia | Jaqueline Almeida Silva 202 Bruno Gomes Bahia | Jaqueline Almeida Silva

Ser não jurisdicional significa, como já foi dito acima, que os conselhos não Ser não jurisdicional significa, como já foi dito acima, que os conselhos não
são parte do poder judiciário, nem tão pouco do legislativo. São órgãos do poder são parte do poder judiciário, nem tão pouco do legislativo. São órgãos do poder
executivo, imbuídos de uma nobre função – zelar pelos direitos das nossas crianças executivo, imbuídos de uma nobre função – zelar pelos direitos das nossas crianças
e adolescentes. Assim, não lhes cabe instituir um contencioso judicial, ou mesmo e adolescentes. Assim, não lhes cabe instituir um contencioso judicial, ou mesmo
editar leis. No máximo, permite-lhes fixar diretrizes para o seu funcionamento. A editar leis. No máximo, permite-lhes fixar diretrizes para o seu funcionamento. A
usurpação de competência do poder judiciário é infração ao princípio da separação usurpação de competência do poder judiciário é infração ao princípio da separação
dos poderes, embora este admita temperamento (funções atípicas). dos poderes, embora este admita temperamento (funções atípicas).

4. ATRIBUIÇÕES DO CONSELHO 4. ATRIBUIÇÕES DO CONSELHO


Conforme já mencionamos, os conselhos tutelares foram criados pelo ECA Conforme já mencionamos, os conselhos tutelares foram criados pelo ECA
com o escopo de regulamentar o artigo 227 da Carta Magna de 1988. As suas com o escopo de regulamentar o artigo 227 da Carta Magna de 1988. As suas
atribuições estão expressas no capítulo II do Título V do Estatuto Menorista e atribuições estão expressas no capítulo II do Título V do Estatuto Menorista e
serão pormenorizadas a posteriori. serão pormenorizadas a posteriori.
Ressalte-se, inicialmente, que os conselhos tutelares são verdadeiros fiscaliza- Ressalte-se, inicialmente, que os conselhos tutelares são verdadeiros fiscaliza-
dores do ECA e as suas atribuições são essenciais para que aqueles órgãos possam dores do ECA e as suas atribuições são essenciais para que aqueles órgãos possam
salvaguardar os direitos das crianças e dos adolescentes. Neste contexto, tem-se salvaguardar os direitos das crianças e dos adolescentes. Neste contexto, tem-se
a atuação dos cinco conselheiros (eleitos pela comunidade), os quais selecionam a atuação dos cinco conselheiros (eleitos pela comunidade), os quais selecionam
a melhor medida de proteção para seus tutelados. a melhor medida de proteção para seus tutelados.
O conselho tutelar exerce as suas múltiplas atribuições em torno de onze O conselho tutelar exerce as suas múltiplas atribuições em torno de onze
incisos, expressos no art. 136 do ECA, a saber: incisos, expressos no art. 136 do ECA, a saber:
• Inciso I “ atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos • Inciso I “ atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos
arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII” arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII”
Neste caso, o conselho terá o encargo de assistir os menores que estejam em Neste caso, o conselho terá o encargo de assistir os menores que estejam em
situação de risco, ou seja, deverá atender crianças e adolescentes que sofreram situação de risco, ou seja, deverá atender crianças e adolescentes que sofreram
ameaça ou violação de seus direitos. Ressalte-se que haverá ameaça sempre que ameaça ou violação de seus direitos. Ressalte-se que haverá ameaça sempre que
alguém está diante do risco iminente de ser privado de direitos legalmente protegi- alguém está diante do risco iminente de ser privado de direitos legalmente protegi-
dos. Já a violação é verificada quando esse cerceamento de direitos se concretiza. dos. Já a violação é verificada quando esse cerceamento de direitos se concretiza.
Podemos identificar essas ameaças e violações de direitos, conforme preleciona Podemos identificar essas ameaças e violações de direitos, conforme preleciona
o art. 98 do próprio estatuto, quando o Estado ou a sociedade não assegura os o art. 98 do próprio estatuto, quando o Estado ou a sociedade não assegura os
direitos fundamentais, ou mesmo quando oferecem de forma incompleta, ou ainda direitos fundamentais, ou mesmo quando oferecem de forma incompleta, ou ainda
quando os pais ou responsáveis deixam de auxiliar, sustentar e educar os menores. quando os pais ou responsáveis deixam de auxiliar, sustentar e educar os menores.
Neste sentido, a atuação do conselho tutelar pautar-se-á pelo acompanhamento Neste sentido, a atuação do conselho tutelar pautar-se-á pelo acompanhamento
e identificação das possíveis ameaças ou violações de direitos realizadas contra e identificação das possíveis ameaças ou violações de direitos realizadas contra
menores, comunicando estas situações à autoridade competente. Ademais, vale menores, comunicando estas situações à autoridade competente. Ademais, vale
salientar, que a ocorrência de crimes não tipificados pelo ECA e que tenham o salientar, que a ocorrência de crimes não tipificados pelo ECA e que tenham o
envolvimento de menores também devem ser cientificados às autoridades para envolvimento de menores também devem ser cientificados às autoridades para
que sejam tomadas as providências cabíveis. que sejam tomadas as providências cabíveis.
Destarte, o conselho deverá aplicar as medidas de proteção previstas no art. Destarte, o conselho deverá aplicar as medidas de proteção previstas no art.
101. Deste modo, deverá encaminhar o menor aos pais ou responsáveis, mediante 101. Deste modo, deverá encaminhar o menor aos pais ou responsáveis, mediante
Conselho Tutelar: um avanço contingenciado pelo Poder Público 203 Conselho Tutelar: um avanço contingenciado pelo Poder Público 203

termo de responsabilidade (desta forma, a criança ou o adolescente retornará a termo de responsabilidade (desta forma, a criança ou o adolescente retornará a
esfera de proteção destes últimos), acompanhado de um documento contendo as esfera de proteção destes últimos), acompanhado de um documento contendo as
orientações do conselho. Determina, por sua vez, o inciso II do mesmo dispositivo, orientações do conselho. Determina, por sua vez, o inciso II do mesmo dispositivo,
como medida a ser aplicada pelo conselho, a “orientação, apoio e acompanhamento como medida a ser aplicada pelo conselho, a “orientação, apoio e acompanhamento
temporários”. Neste caso, o conselho terá a atribuição de complementar a ação temporários”. Neste caso, o conselho terá a atribuição de complementar a ação
dos pais ou dos responsáveis oferecendo, provisoriamente, serviços de assistência dos pais ou dos responsáveis oferecendo, provisoriamente, serviços de assistência
social às crianças e aos adolescentes. social às crianças e aos adolescentes.
O art. 101 determina ainda, no inciso III, que o conselho poderá assegurar matrí- O art. 101 determina ainda, no inciso III, que o conselho poderá assegurar matrí-
cula e freqüência escolar dos menores, quando for impossível para os pais ou cula e freqüência escolar dos menores, quando for impossível para os pais ou
responsáveis fazê-lo. Além disso, deve buscar orientar os diretores das escolas a responsáveis fazê-lo. Além disso, deve buscar orientar os diretores das escolas a
comunicar ao próprio conselho os casos relativos a maus-tratos, faltas injustifi- comunicar ao próprio conselho os casos relativos a maus-tratos, faltas injustifi-
cadas, evasão escolar e repetência. Já o inciso IV dispõe que o conselho deverá cadas, evasão escolar e repetência. Já o inciso IV dispõe que o conselho deverá
incluir o adolescente, a criança e até mesmo a família em programas comunitários, incluir o adolescente, a criança e até mesmo a família em programas comunitários,
como é o caso de serviços de assistência social. como é o caso de serviços de assistência social.
Aplica-se também, como medida de proteção a ser realizada pelo conselho Aplica-se também, como medida de proteção a ser realizada pelo conselho
tutelar, conforme dispõe o inciso V, acionar os serviços de saúde, psicológico, tutelar, conforme dispõe o inciso V, acionar os serviços de saúde, psicológico,
psiquiátrico para menores em situações que exigem tratamentos especializados. O psiquiátrico para menores em situações que exigem tratamentos especializados. O
inciso VI, de igual maneira, determina que o conselho inclua em programas oficiais inciso VI, de igual maneira, determina que o conselho inclua em programas oficiais
ou comunitários os adolescentes dependentes de substancias entorpecentes. ou comunitários os adolescentes dependentes de substancias entorpecentes.
O inciso VII determina, por sua vez, o encaminhamento do menor para abrigo O inciso VII determina, por sua vez, o encaminhamento do menor para abrigo
ou entidade. Percebe-se, entretanto, que o abrigo não é uma internação, ou seja, ou entidade. Percebe-se, entretanto, que o abrigo não é uma internação, ou seja,
não se objetiva privar o menor da sua liberdade, tratando-se, tão somente, de não se objetiva privar o menor da sua liberdade, tratando-se, tão somente, de
uma medida transitória, um apoio residencial. Destarte, o conselho deverá atuar uma medida transitória, um apoio residencial. Destarte, o conselho deverá atuar
também no sentido de garantir a transitoriedade do abrigo, requisitando o auxílio também no sentido de garantir a transitoriedade do abrigo, requisitando o auxílio
dos serviços de assistência social, haja vista que o direito de convivência familiar dos serviços de assistência social, haja vista que o direito de convivência familiar
é um direito fundamental tutelado pela constituição brasileira. Ressalte-seaina os é um direito fundamental tutelado pela constituição brasileira. Ressalte-seaina os
abrigos deverão propiciar um ambiente saudável, além de incentivar o contato abrigos deverão propiciar um ambiente saudável, além de incentivar o contato
familiar perdido. familiar perdido.
Por fim, mas não menos importante, o inciso VII do art.101 prescreve como Por fim, mas não menos importante, o inciso VII do art.101 prescreve como
medida específica de proteção ao menor a colocação em família substituta, quando medida específica de proteção ao menor a colocação em família substituta, quando
não for mais possível ao menor retornar ao seio da sua família natural. não for mais possível ao menor retornar ao seio da sua família natural.
• Inciso II “atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as • Inciso II “atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as
medidas previstas no art. 129, I a VII”. medidas previstas no art. 129, I a VII”.
Neste caso, podemos perceber que o estatuto priorizou a família, elevando-a Neste caso, podemos perceber que o estatuto priorizou a família, elevando-a
a uma posição de instituição basilar da sociedade brasileira. Os conselhos tute- a uma posição de instituição basilar da sociedade brasileira. Os conselhos tute-
lares, neste contexto, devem, portanto, buscar fortificar a solidariedade familiar, lares, neste contexto, devem, portanto, buscar fortificar a solidariedade familiar,
orientando os pais ou responsáveis neste sentido. Para tanto, deverão perseguir orientando os pais ou responsáveis neste sentido. Para tanto, deverão perseguir
um trabalho educativo, justamente para auxiliar aqueles na luta pela superação um trabalho educativo, justamente para auxiliar aqueles na luta pela superação
das dificuldades que enfrentam. das dificuldades que enfrentam.
204 Bruno Gomes Bahia | Jaqueline Almeida Silva 204 Bruno Gomes Bahia | Jaqueline Almeida Silva

O Estatuto Menorista, em todas as suas passagens, tenta privilegiar o convívio O Estatuto Menorista, em todas as suas passagens, tenta privilegiar o convívio
com a família, entendendo que é este convívio que poderá propiciar um desenvol- com a família, entendendo que é este convívio que poderá propiciar um desenvol-
vimento sócio-cultural completo a crianças e adolescentes. Neste sentido, o art. vimento sócio-cultural completo a crianças e adolescentes. Neste sentido, o art.
129 do ECA expressa, nos incisos de I a VII, as medidas direcionadas aos pais 129 do ECA expressa, nos incisos de I a VII, as medidas direcionadas aos pais
ou responsáveis com o objetivo de manter ou reestruturar a convivência familiar. ou responsáveis com o objetivo de manter ou reestruturar a convivência familiar.
Por outro lado, os incisos VII, IX e X já demonstram ações mais drástica, mas Por outro lado, os incisos VII, IX e X já demonstram ações mais drástica, mas
estas hipóteses somente serão aplicadas quando não for mais possível manter a estas hipóteses somente serão aplicadas quando não for mais possível manter a
criança com seus pais ou responsáveis. Para tanto, a atuação dos conselhos tute- criança com seus pais ou responsáveis. Para tanto, a atuação dos conselhos tute-
lares se torna mais relevante, principalmente quando a hipótese verificada for de lares se torna mais relevante, principalmente quando a hipótese verificada for de
maus-tratos, opressão ou abuso sexual, conforme preleciona o art.130 da mesma maus-tratos, opressão ou abuso sexual, conforme preleciona o art.130 da mesma
lei estatutária. lei estatutária.
• Inciso III “promover a execução de suas decisões, podendo para tanto: • Inciso III “promover a execução de suas decisões, podendo para tanto:
a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social,
previdência, trabalho e segurança previdência, trabalho e segurança

b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento
injustificado de suas deliberações”. injustificado de suas deliberações”.
Neste caso, o que se objetiva é promover a execução das decisões deliberadas Neste caso, o que se objetiva é promover a execução das decisões deliberadas
pelos conselheiros, respeitando com isso a autonomia funcional dos conselhos. pelos conselheiros, respeitando com isso a autonomia funcional dos conselhos.
O que não se pode deixar de mencionar, entretanto, é que o cumprimento das O que não se pode deixar de mencionar, entretanto, é que o cumprimento das
decisões depende de outras entidades – tanto estatais como não governamentais. decisões depende de outras entidades – tanto estatais como não governamentais.
Contudo, se os serviços prestados por estas entidades comprometidas com pro- Contudo, se os serviços prestados por estas entidades comprometidas com pro-
gramas destinados à infância e juventude apresentarem deficiências, o conselho gramas destinados à infância e juventude apresentarem deficiências, o conselho
tem a atribuição de, juntamente com o Poder Judiciário e o Ministério Publico, tem a atribuição de, juntamente com o Poder Judiciário e o Ministério Publico,
fiscalizar e tomar as medidas necessárias, podendo ir de uma advertência até o fiscalizar e tomar as medidas necessárias, podendo ir de uma advertência até o
fechamento da unidade, ou mesmo, a interdição do programa em relação às en- fechamento da unidade, ou mesmo, a interdição do programa em relação às en-
tidades governamentais. tidades governamentais.
O conselho, ao exigir que suas decisões sejam cumpridas, poderá requisitar a O conselho, ao exigir que suas decisões sejam cumpridas, poderá requisitar a
execução ou regularização do serviço público, fundamentando sua necessidade, execução ou regularização do serviço público, fundamentando sua necessidade,
por meio de correspondência oficial, recebendo o ciente do órgão executor. Neste por meio de correspondência oficial, recebendo o ciente do órgão executor. Neste
sentido, percebe-se que os conselhos tutelares agem com autoridade e autonomia sentido, percebe-se que os conselhos tutelares agem com autoridade e autonomia
funcional, cabendo às autoridades públicas executarem os serviços exigidos. Por- funcional, cabendo às autoridades públicas executarem os serviços exigidos. Por-
tanto, não se pode deixar que as decisões do conselho sejam letra morta e, por isso, tanto, não se pode deixar que as decisões do conselho sejam letra morta e, por isso,
descumprimentos injustificados de suas deliberações devem ser representados junto descumprimentos injustificados de suas deliberações devem ser representados junto
à autoridade judiciária. O que se observa com isso é que o Estatuto se preocupou à autoridade judiciária. O que se observa com isso é que o Estatuto se preocupou
em proteger os direitos fundamentais da criança e dos adolescentes, sem olvidar em proteger os direitos fundamentais da criança e dos adolescentes, sem olvidar
da responsabilidade criminal para aquele que descumprem suas deliberações. da responsabilidade criminal para aquele que descumprem suas deliberações.
• Inciso IV “encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que cons- • Inciso IV “encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que cons-
titua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou titua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou
­adolescente”. ­adolescente”.
Conselho Tutelar: um avanço contingenciado pelo Poder Público 205 Conselho Tutelar: um avanço contingenciado pelo Poder Público 205

Neste caso, os conselhos Tutelares possuem a atribuição de comunicar ao Neste caso, os conselhos Tutelares possuem a atribuição de comunicar ao
Promotor de Justiça da Infância e da Juventude crimes (arts. 228 a 244 ) ou infra- Promotor de Justiça da Infância e da Juventude crimes (arts. 228 a 244 ) ou infra-
ções administrativas (arts. 245 a 248 ) realizadas contra menores. Sendo assim, ções administrativas (arts. 245 a 248 ) realizadas contra menores. Sendo assim,
constatado a violação ou mesmo a ameaça de violação de direitos das crianças constatado a violação ou mesmo a ameaça de violação de direitos das crianças
e dos adolescentes que estejam em abrigos, semi-internados ou internados, o e dos adolescentes que estejam em abrigos, semi-internados ou internados, o
conselho poderá aplicar a medida de advertência, sem a necessidade de encami- conselho poderá aplicar a medida de advertência, sem a necessidade de encami-
nhamento ao magistrado ou ao membro do Parquet. Entretanto, se a entidade ou nhamento ao magistrado ou ao membro do Parquet. Entretanto, se a entidade ou
seus dirigentes praticarem novamente crimes de mesma natureza que os anteriores, seus dirigentes praticarem novamente crimes de mesma natureza que os anteriores,
o conselho tutelar terá a atribuição de comunicar a situação ao Ministério Público o conselho tutelar terá a atribuição de comunicar a situação ao Ministério Público
para a aplicação das medidas cabíveis que, dentre outras, poderá ir de advertência para a aplicação das medidas cabíveis que, dentre outras, poderá ir de advertência
até cassação do registro em relação às entidades não-governamentais, conforme até cassação do registro em relação às entidades não-governamentais, conforme
dispõe o art. 97 da Lei Menorista. dispõe o art. 97 da Lei Menorista.
• Inciso V “encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua compe- • Inciso V “encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua compe-
tência”. tência”.
Neste caso, os Conselhos Tutelares deverão guiar à Justiça da Infância e da Neste caso, os Conselhos Tutelares deverão guiar à Justiça da Infância e da
Juventude questões litigiosas, contraditórias e contenciosas. Perceba que esta Juventude questões litigiosas, contraditórias e contenciosas. Perceba que esta
é uma das atribuições mais importantes a serem realizadas pelos conselhos, os é uma das atribuições mais importantes a serem realizadas pelos conselhos, os
quais com muita competência passam a realizar uma articulação diária com outras quais com muita competência passam a realizar uma articulação diária com outras
autoridades para que o menor seja melhor assistido. É nesse momento, portanto, autoridades para que o menor seja melhor assistido. É nesse momento, portanto,
que se coaduna a atuação do conselho com a Defensoria Publica, bem como, com que se coaduna a atuação do conselho com a Defensoria Publica, bem como, com
o Ministério Publico e entidades governamentais que se comprometeram com a o Ministério Publico e entidades governamentais que se comprometeram com a
causa, objetivando assim, que o menor tenha suas garantias efetivadas, conforme causa, objetivando assim, que o menor tenha suas garantias efetivadas, conforme
prevê o ECA. Ressalte-se, portanto, que é atribuição do conselho, encaminhar os prevê o ECA. Ressalte-se, portanto, que é atribuição do conselho, encaminhar os
adolescentes envolvidos ou supostamente envolvidos com ato infracional para a adolescentes envolvidos ou supostamente envolvidos com ato infracional para a
autoridade judiciária competente. autoridade judiciária competente.
• Inciso VI “providenciar a medida estabelecida pela autoridade judi- • Inciso VI “providenciar a medida estabelecida pela autoridade judi-
ciária, dentre as previstas no art. 101, de I a VI, para o adolescente ciária, dentre as previstas no art. 101, de I a VI, para o adolescente
autor de ato infracional”. autor de ato infracional”.
Neste caso, o conselho tutelar deverá acionar os pais, responsáveis e serviços Neste caso, o conselho tutelar deverá acionar os pais, responsáveis e serviços
públicos e comunitários para atendimento ao adolescente autor de ato infracional. públicos e comunitários para atendimento ao adolescente autor de ato infracional.
Neste sentido, os conselhos irão buscar promover as medidas protetivas aplicadas Neste sentido, os conselhos irão buscar promover as medidas protetivas aplicadas
pela justiça aos jovens infratores. Percebe-se, contudo, que estes não se restringem pela justiça aos jovens infratores. Percebe-se, contudo, que estes não se restringem
a assistir os menores em situação de risco, mas também prestam assistência aos a assistir os menores em situação de risco, mas também prestam assistência aos
jovens infratores, bem como fiscalizam se essas medidas estão sendo cumpridas jovens infratores, bem como fiscalizam se essas medidas estão sendo cumpridas
conforme a lei. conforme a lei.
• Inciso VII “expedir notificações”. • Inciso VII “expedir notificações”.
Neste caso, o conselho expedirá correspondência oficial para que sejam cum- Neste caso, o conselho expedirá correspondência oficial para que sejam cum-
pridos as determinações proferidas na lei 8.069”90. Assim, os conselhos, como pridos as determinações proferidas na lei 8.069”90. Assim, os conselhos, como
fiscalizadores do ECA, deverão, sempre, notificar os interessados, como os pais, fiscalizadores do ECA, deverão, sempre, notificar os interessados, como os pais,
206 Bruno Gomes Bahia | Jaqueline Almeida Silva 206 Bruno Gomes Bahia | Jaqueline Almeida Silva

responsáveis e diretores de escolas para que sejam atendidos os ditames legais e responsáveis e diretores de escolas para que sejam atendidos os ditames legais e
que seja efetivada a melhor aplicação da Lei Menorista. que seja efetivada a melhor aplicação da Lei Menorista.
• Inciso VIII “requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança • Inciso VIII “requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança
quando necessário”. quando necessário”.
Neste caso, o conselho atua em defesa do direito fundamental do individuo Neste caso, o conselho atua em defesa do direito fundamental do individuo
a possuir uma certidão de nascimento. Observa-se, assim, que este inciso visa a possuir uma certidão de nascimento. Observa-se, assim, que este inciso visa
facilitar o desempenho das atribuições do próprio conselho. Contudo, o que deve facilitar o desempenho das atribuições do próprio conselho. Contudo, o que deve
ser destacado é que os conselhos tutelares possuem a atribuição de requisitar ser destacado é que os conselhos tutelares possuem a atribuição de requisitar
as certidões, mas em hipótese alguma poderão determinar registros, pois esta é as certidões, mas em hipótese alguma poderão determinar registros, pois esta é
competência da autoridade judicial. competência da autoridade judicial.
• Inciso IX “assessorar o Poder Executivo local na elaboração da propos- • Inciso IX “assessorar o Poder Executivo local na elaboração da propos-
ta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos ta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos
da criança e do adolescente”. da criança e do adolescente”.
Neste caso, inicialmente, já se observa que a Lei Orçamentária municipal, Neste caso, inicialmente, já se observa que a Lei Orçamentária municipal,
estadual ou federal deverá, obrigatoriamente, prever recursos para políticas de estadual ou federal deverá, obrigatoriamente, prever recursos para políticas de
proteção ao menor. Os conselhos tutelares, como órgão encarregado de zelar proteção ao menor. Os conselhos tutelares, como órgão encarregado de zelar
pelo cumprimento dos direitos da infância e da juventude, analisando a situação pelo cumprimento dos direitos da infância e da juventude, analisando a situação
estrutural, organizacional, não somente do próprio conselho, mas também das estrutural, organizacional, não somente do próprio conselho, mas também das
entidades que auxiliam na execução das medidas, devem indicar as deficiências entidades que auxiliam na execução das medidas, devem indicar as deficiências
encontradas no atendimento dos menores e suas famílias para que a autoridade encontradas no atendimento dos menores e suas famílias para que a autoridade
executiva possa atuar devidamente. executiva possa atuar devidamente.
Destarte, o Conselho Tutelar é o órgão adequado para buscar suprir deficiên- Destarte, o Conselho Tutelar é o órgão adequado para buscar suprir deficiên-
cias ou mesmo aperfeiçoar os programas e planos destinados ao atendimento da cias ou mesmo aperfeiçoar os programas e planos destinados ao atendimento da
criança e do adolescente, pois é o mesmo que sabe das necessidades referentes à criança e do adolescente, pois é o mesmo que sabe das necessidades referentes à
população infanto-juvenil. E, neste caso, o legislador infraconstitucional está de população infanto-juvenil. E, neste caso, o legislador infraconstitucional está de
parabéns por ter chamado os conselhos a participarem do planejamento orçamen- parabéns por ter chamado os conselhos a participarem do planejamento orçamen-
tário, no que toca a destinação de verbas aos programas destinados à infância e tário, no que toca a destinação de verbas aos programas destinados à infância e
juventude. Por outro lado, vale ressaltar que, infelizmente, as políticas públicas juventude. Por outro lado, vale ressaltar que, infelizmente, as políticas públicas
desinteressadas com a causa do menor e o contingenciamento do orçamento difi- desinteressadas com a causa do menor e o contingenciamento do orçamento difi-
cultam o trabalho dos conselhos. cultam o trabalho dos conselhos.
• Inciso X “ representar, em nome da pessoa e da família, contra a vio- • Inciso X “ representar, em nome da pessoa e da família, contra a vio-
lação dos direitos previstos no art. 220, § 3º, inciso II, da Constituição lação dos direitos previstos no art. 220, § 3º, inciso II, da Constituição
Federal”. Federal”.
Neste caso, a ação do conselho esta em fazer representação perante a autoridade Neste caso, a ação do conselho esta em fazer representação perante a autoridade
judiciária ou ao Ministério Publico, em nome de pessoa que se sentir ofendida em judiciária ou ao Ministério Publico, em nome de pessoa que se sentir ofendida em
seus direitos ou desrespeitada em seus valores éticos, morais e sociais pelo fato seus direitos ou desrespeitada em seus valores éticos, morais e sociais pelo fato
de a programação de televisão ou de radio não respeitar o horário autorizado ou de a programação de televisão ou de radio não respeitar o horário autorizado ou
a classificação indicativa do Ministério da Justiça. a classificação indicativa do Ministério da Justiça.
Conselho Tutelar: um avanço contingenciado pelo Poder Público 207 Conselho Tutelar: um avanço contingenciado pelo Poder Público 207

• Inciso XI “representar ao Ministério Publico, para efeito das ações de • Inciso XI “representar ao Ministério Publico, para efeito das ações de
perda ou suspensão do pátrio poder”. perda ou suspensão do pátrio poder”.
Neste caso, o conselho diante de situações de descumprimento do dever de Neste caso, o conselho diante de situações de descumprimento do dever de
assistir, criar e educar os filhos poderá representar ao Promotor de Justiça podendo, assistir, criar e educar os filhos poderá representar ao Promotor de Justiça podendo,
com isso, os pais perderem o poder familiar, mas lembrando que isto somente com isso, os pais perderem o poder familiar, mas lembrando que isto somente
será aplicado quando forem esgotadas todas as formas de medidas e orientações será aplicado quando forem esgotadas todas as formas de medidas e orientações
cabíveis. Portanto, o Estatuto prevê como sanção aos pais que castigarem seus cabíveis. Portanto, o Estatuto prevê como sanção aos pais que castigarem seus
filhos imoderadamente, deixar em abandono ou mesmo permitir que pratiquem atos filhos imoderadamente, deixar em abandono ou mesmo permitir que pratiquem atos
contrários a moral e aos bons costumes, a perda ou suspensão do poder familiar. contrários a moral e aos bons costumes, a perda ou suspensão do poder familiar.
Vale ressaltar que as decisões preferidas pelos Conselhos Tutelares só podem Vale ressaltar que as decisões preferidas pelos Conselhos Tutelares só podem
ser revistas pelas autoridades judiciárias, conforme determina o art.137 do ECA. ser revistas pelas autoridades judiciárias, conforme determina o art.137 do ECA.
Neste sentido, podemos destacar que o estatuto conferiu aos conselhos a auto- Neste sentido, podemos destacar que o estatuto conferiu aos conselhos a auto-
nomia funcional, haja vista que suas decisões devem ser cumpridas, sob pena de nomia funcional, haja vista que suas decisões devem ser cumpridas, sob pena de
responsabilidade criminal e somente serão sustadas por determinação da autoridade responsabilidade criminal e somente serão sustadas por determinação da autoridade
judiciária. Essa autonomia significa, portanto, que os conselhos tutelares, do ponto judiciária. Essa autonomia significa, portanto, que os conselhos tutelares, do ponto
de vista funcional, não possuem nenhum órgão superior, o que lhes garante que de vista funcional, não possuem nenhum órgão superior, o que lhes garante que
suas deliberações não serão alvo de recursos hierárquicos, mas somente controle suas deliberações não serão alvo de recursos hierárquicos, mas somente controle
judicial de legalidade. judicial de legalidade.

5. DEFICIÊNCIAS 5. DEFICIÊNCIAS
Como qualquer outro órgão da administração direta ou indireta, os conselhos Como qualquer outro órgão da administração direta ou indireta, os conselhos
tu­-te­lares possuem deficiências. A primeira delas diz respeito a sua regulamentação tu­-te­lares possuem deficiências. A primeira delas diz respeito a sua regulamentação
nor­mativa. O ECA estabelece que a lei orgânica do município atuará na criação nor­mativa. O ECA estabelece que a lei orgânica do município atuará na criação
dos conselhos, complementando a legislação federal no que tange ao local, dia dos conselhos, complementando a legislação federal no que tange ao local, dia
e horário de funcionamento dos conselhos tutelares, assim como ao processo de e horário de funcionamento dos conselhos tutelares, assim como ao processo de
seleção dos conselheiros (art. 134 e 139, ECA). Esta disposição atende à expressa seleção dos conselheiros (art. 134 e 139, ECA). Esta disposição atende à expressa
previsão constitucional de que compete ao município “suplementar a legislação previsão constitucional de que compete ao município “suplementar a legislação
federal e estadual no que c­ ouber” (art. 30, II, CF). Ora, estando a cargo dos federal e estadual no que c­ ouber” (art. 30, II, CF). Ora, estando a cargo dos
municípios delinear os contornos específicos dos conselhos tutelares, atinentes a municípios delinear os contornos específicos dos conselhos tutelares, atinentes a
sua circunscrição territorial, essa regulamentação é muitas vezes incompleta ou sua circunscrição territorial, essa regulamentação é muitas vezes incompleta ou
contrária às normas gerais, nacionais ou estaduais. contrária às normas gerais, nacionais ou estaduais.
Somando-se a isto, verifica-se uma desestruturação que dificulta a execução da Somando-se a isto, verifica-se uma desestruturação que dificulta a execução da
função a qual foram destinados, a saber: a garantia do exercício dos direitos fundamen- função a qual foram destinados, a saber: a garantia do exercício dos direitos fundamen-
tais da criança e do adolescente. Não raro falta pessoal técnico qualificado, infra- tais da criança e do adolescente. Não raro falta pessoal técnico qualificado, infra-
estrutura e políticas públicas que dêem suporte ao serviço prestado pelos conselhos estrutura e políticas públicas que dêem suporte ao serviço prestado pelos conselhos
tutelares. Em visitas realizadas a estes órgãos, deparamo-nos com uma realidade tutelares. Em visitas realizadas a estes órgãos, deparamo-nos com uma realidade
curiosa – as crianças e adolescentes expostos que se dirigem ao conselho em busca curiosa – as crianças e adolescentes expostos que se dirigem ao conselho em busca
de abrigo, por exemplo, muitas vezes não conseguem encaminhamento porque de abrigo, por exemplo, muitas vezes não conseguem encaminhamento porque
faltam casas de apóio em Salvador. Aliado a isto, as existentes estão sucateadas, faltam casas de apóio em Salvador. Aliado a isto, as existentes estão sucateadas,
não oferecendo o mínimo de identificação com um lar. Cabe então às prefeituras não oferecendo o mínimo de identificação com um lar. Cabe então às prefeituras
208 Bruno Gomes Bahia | Jaqueline Almeida Silva 208 Bruno Gomes Bahia | Jaqueline Almeida Silva

viabilizarem o exercício funcional dos conselhos, dando executoriedade à política viabilizarem o exercício funcional dos conselhos, dando executoriedade à política
de proteção integral emanada da nossa Carta Magna. de proteção integral emanada da nossa Carta Magna.
Constata-se também uma invasão de competência por parte dos órgãos em Constata-se também uma invasão de competência por parte dos órgãos em
questão, numa flagrante infração ao princípio da separação dos poderes. Segundo questão, numa flagrante infração ao princípio da separação dos poderes. Segundo
Wanderlino Nogueira, os conselhos tutelares têm concedido, indevidamente, au- Wanderlino Nogueira, os conselhos tutelares têm concedido, indevidamente, au-
torização para viagem à crianças e adolescente, atuando também como mediador torização para viagem à crianças e adolescente, atuando também como mediador
nas questões que envolvem o pagamento de pensão alimentícia, bem como na nas questões que envolvem o pagamento de pensão alimentícia, bem como na
colocação de menores em famílias substitutas – todas estas ações de competência colocação de menores em famílias substitutas – todas estas ações de competência
do poder judiciário. Além disso, tem-se verificado a usurpação de competência do poder judiciário. Além disso, tem-se verificado a usurpação de competência
dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Ministério Público, dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Ministério Público,
dos órgãos policiais e até da câmara dos vereadores. Entendemos que os conselhos dos órgãos policiais e até da câmara dos vereadores. Entendemos que os conselhos
devem se ater ao cumprimento restrito das atribuições previstas no ECA. Se ao devem se ater ao cumprimento restrito das atribuições previstas no ECA. Se ao
particular é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe, à administração pública, e, particular é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe, à administração pública, e,
neste ínterim, os conselhos tutelares como órgãos a ela pertencentes, cabe pautar- neste ínterim, os conselhos tutelares como órgãos a ela pertencentes, cabe pautar-
se estritamente aos comandos legais. se estritamente aos comandos legais.
Por fim, cabe destacar que os conselhos tutelares, como órgãos da administra- Por fim, cabe destacar que os conselhos tutelares, como órgãos da administra-
ção central, não possuem autonomia administrativa e financeira, o que compromete ção central, não possuem autonomia administrativa e financeira, o que compromete
gravemente a atuação dos mesmos, o que fica evidente quando nos deparamos com gravemente a atuação dos mesmos, o que fica evidente quando nos deparamos com
o grande contingenciamento orçamentário por eles experimentado, o que por via o grande contingenciamento orçamentário por eles experimentado, o que por via
de conseqüência impede que seja suprida a deficiência estrutural e organizacional de conseqüência impede que seja suprida a deficiência estrutural e organizacional
acima mencionadas. acima mencionadas.

6. CONCLUSÃO 6. CONCLUSÃO
Diante do exposto, entendemos que os conselhos tutelares exercem na so- Diante do exposto, entendemos que os conselhos tutelares exercem na so-
ciedade brasileira uma importância fundamental. Destaca-se, neste sentido, a ciedade brasileira uma importância fundamental. Destaca-se, neste sentido, a
sua função de zelar pelos direitos das crianças e adolescentes, mas não podemos sua função de zelar pelos direitos das crianças e adolescentes, mas não podemos
deixar de ressaltar também a sua função social ao atuar na base da sociedade, deixar de ressaltar também a sua função social ao atuar na base da sociedade,
enfrentando e perseguindo soluções efetivas para os grandes problemas vividos enfrentando e perseguindo soluções efetivas para os grandes problemas vividos
pelos menores e suas famílias. pelos menores e suas famílias.
As questões em torno da infância e juventude clamam pelo interesse sócio- As questões em torno da infância e juventude clamam pelo interesse sócio-
econômico-político do país, pois a realidade em que os conselhos atuam é ex- econômico-político do país, pois a realidade em que os conselhos atuam é ex-
tremamente precária. Destarte, a solução não está somente no aperfeiçoamento tremamente precária. Destarte, a solução não está somente no aperfeiçoamento
dos conselhos tutelares, mas também das demais entidade que cooperam com a dos conselhos tutelares, mas também das demais entidade que cooperam com a
causa da infância e da juventude, sem olvidar das ações estatais que possibilitem causa da infância e da juventude, sem olvidar das ações estatais que possibilitem
às famílias obterem condições materiais mínimas para que cumpram seu poder- às famílias obterem condições materiais mínimas para que cumpram seu poder-
dever de cuidar de seus filhos. dever de cuidar de seus filhos.
A Lei 8.069”90, ao criar os conselhos tutelares, buscou instituir um órgão capaz A Lei 8.069”90, ao criar os conselhos tutelares, buscou instituir um órgão capaz
de atuar na sociedade, no sentido de assegurar o exercício dos direitos fundamentais de atuar na sociedade, no sentido de assegurar o exercício dos direitos fundamentais
aos menores. No entanto, os conselhos, atuando como órgãos de conexão entre aos menores. No entanto, os conselhos, atuando como órgãos de conexão entre
Conselho Tutelar: um avanço contingenciado pelo Poder Público 209 Conselho Tutelar: um avanço contingenciado pelo Poder Público 209

a população e os serviços públicos voltados para os menores, enfrentam como a população e os serviços públicos voltados para os menores, enfrentam como
dificuldade o contingenciamento financeiro, não produzindo, assim, uma atuação dificuldade o contingenciamento financeiro, não produzindo, assim, uma atuação
verdadeiramente eficaz. verdadeiramente eficaz.
Ficou claro para nós que os conselhos se apresentam na dogmática jurídica Ficou claro para nós que os conselhos se apresentam na dogmática jurídica
como órgãos da administração central com autonomia funcional, pois, embora como órgãos da administração central com autonomia funcional, pois, embora
integrantes do Poder Executivo e sem personalidade jurídica própria, possuem integrantes do Poder Executivo e sem personalidade jurídica própria, possuem
independência em suas funções, não sofrendo com a revisão de suas decisões independência em suas funções, não sofrendo com a revisão de suas decisões
para nenhuma instância. para nenhuma instância.
De acordo com a própria Lei Menorista, foi conferida aos conselhos tutelares De acordo com a própria Lei Menorista, foi conferida aos conselhos tutelares
uma alçada de atribuições, que dentre outras podem ir desde o atendimento as uma alçada de atribuições, que dentre outras podem ir desde o atendimento as
crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as
medidas previstas no art.101, I a VII, como também representar ao Ministério medidas previstas no art.101, I a VII, como também representar ao Ministério
Publico, para efeito das ações de perda ou suspensão do pátrio poder, conforme Publico, para efeito das ações de perda ou suspensão do pátrio poder, conforme
dispõe o art. 136 do ECA. Vale ressaltar, quanto a este último, que o estatuto dispõe o art. 136 do ECA. Vale ressaltar, quanto a este último, que o estatuto
prioriza a manutenção do convívio familiar, haja vista que ações radicais, como prioriza a manutenção do convívio familiar, haja vista que ações radicais, como
perda ou suspensão do poder familiar, somente devem ocorrer quando não for perda ou suspensão do poder familiar, somente devem ocorrer quando não for
mais possível a aplicação de outra medida protetiva ao menor. mais possível a aplicação de outra medida protetiva ao menor.
Portanto, entendemos que a atuação do conselho tutelar é extremamente Portanto, entendemos que a atuação do conselho tutelar é extremamente
importante para que sejam efetivadas as garantias aos direitos das crianças e dos importante para que sejam efetivadas as garantias aos direitos das crianças e dos
adolescentes. Contudo, a falta de recurso para aprimorar ou suprir as deficiências adolescentes. Contudo, a falta de recurso para aprimorar ou suprir as deficiências
estruturais, tornam os conselhos, ainda, uma realidade incipiente. estruturais, tornam os conselhos, ainda, uma realidade incipiente.

7. REFERÊNCIAS 7. REFERÊNCIAS
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2007. Cap. I e IV. Malheiros Editores, 2007. Cap. I e IV.
CURY, Munir. Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e CURY, Munir. Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e
sociais. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. P.445-467. sociais. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. P.445-467.
NETO, Wanderlino Nogueira. Garantia e defesa dos direitos humnos das crianças e NETO, Wanderlino Nogueira. Garantia e defesa dos direitos humnos das crianças e
adolescentes por intermédio dos conselhos tutelares no Brasil: indicativos para o adolescentes por intermédio dos conselhos tutelares no Brasil: indicativos para o
aperfeiçoamento. aperfeiçoamento.
Disponível em: http://www.risolidaria.org.br/util. Acesso em: 5 jul.2007. Disponível em: http://www.risolidaria.org.br/util. Acesso em: 5 jul.2007.
Capítulo XIV Capítulo XIV
A competência da Justiça do Trabalho A competência da Justiça do Trabalho
para o julgamento das lides oriundas para o julgamento das lides oriundas
das prestações de serviços consumeristas das prestações de serviços consumeristas

Claudiane Cunha da Conceição* Claudiane Cunha da Conceição*

Sumário • 1 Introdução – 2 A ampliação da competência material da Justiça do Trabalho: a abran- Sumário • 1 Introdução – 2 A ampliação da competência material da Justiça do Trabalho: a abran-
gência do termo “relação de trabalho” – 3 A prestação de serviço consumerista como uma relação de gência do termo “relação de trabalho” – 3 A prestação de serviço consumerista como uma relação de
trabalho – 4 A competência da Justiça Trabalhista para o julgamento das lides oriundas das prestações trabalho – 4 A competência da Justiça Trabalhista para o julgamento das lides oriundas das prestações
de serviços consumeristas – 5 Conclusão. de serviços consumeristas – 5 Conclusão.

1. Introdução 1. Introdução
A Emenda Constitucional nº 45/2004 empreendeu uma verdadeira revolução A Emenda Constitucional nº 45/2004 empreendeu uma verdadeira revolução
no âmbito da competência da Justiça do Trabalho (JT), ampliando-a substancial- no âmbito da competência da Justiça do Trabalho (JT), ampliando-a substancial-
mente. Deve-se saber, outrossim, que a citada mudança decorreu de uma inovação mente. Deve-se saber, outrossim, que a citada mudança decorreu de uma inovação
na redação do art. 114, da Carta Magna, cujo inciso I determinou a competência na redação do art. 114, da Carta Magna, cujo inciso I determinou a competência
da Justiça Laboral para o julgamento das “ações oriundas da relação de trabalho”, da Justiça Laboral para o julgamento das “ações oriundas da relação de trabalho”,
quando era ela responsável apenas pela resolução dos “dissídios individuais e quando era ela responsável apenas pela resolução dos “dissídios individuais e
coletivos entre trabalhadores e e­ mpregadores”. coletivos entre trabalhadores e e­ mpregadores”.
Este artigo cuidará, basicamente, de desvendar a importância desta alteração Este artigo cuidará, basicamente, de desvendar a importância desta alteração
para o cenário jurídico nacional e, sobretudo, para os jurisdicionados (trabalhado- para o cenário jurídico nacional e, sobretudo, para os jurisdicionados (trabalhado-
res) que, a partir de agora, podem contar com o amparo desta Justiça, historicamente res) que, a partir de agora, podem contar com o amparo desta Justiça, historicamente
melhor equiparada para lidar com as lides trabalhistas. melhor equiparada para lidar com as lides trabalhistas.
Assim, é pertinente um atento estudo a respeito da ampliação ocorrida no Assim, é pertinente um atento estudo a respeito da ampliação ocorrida no
âmbito da competência material da JT, diante do que se investigará o alcance do âmbito da competência material da JT, diante do que se investigará o alcance do
termo “relação de trabalho” utilizado pelo legiferante, a fim de se examinar se termo “relação de trabalho” utilizado pelo legiferante, a fim de se examinar se
a citada locução também abrange as lides oriundas das prestações de serviços a citada locução também abrange as lides oriundas das prestações de serviços
consumeristas. consumeristas.

2. A ampliação da competência material da Justiça do 2. A ampliação da competência material da Justiça do


Trabalho: a abrangência do termo “relação de traba- Trabalho: a abrangência do termo “relação de traba-
lho” lho”
Como a alteração mais substancial trazida pela Reforma do Judiciário, o Como a alteração mais substancial trazida pela Reforma do Judiciário, o
­alargamento da competência material da Justiça do Trabalho dimana como um ­alargamento da competência material da Justiça do Trabalho dimana como um

* Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. * Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
212 Claudiane Cunha da Conceição 212 Claudiane Cunha da Conceição

dos maiores desafios já enfrentados pela mesma, em toda a sua história. Com dos maiores desafios já enfrentados pela mesma, em toda a sua história. Com
efeito, agora cumpre a ela ­dirimir não apenas as lides decorrentes dos “dissídios efeito, agora cumpre a ela ­dirimir não apenas as lides decorrentes dos “dissídios
individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”, mas todas as causas individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”, mas todas as causas
envolvendo “relação de trabalho”. envolvendo “relação de trabalho”.
Diante desta alteração, os primeiros estudos supervenientes à EC nº 45/2004 Diante desta alteração, os primeiros estudos supervenientes à EC nº 45/2004
se deram no sentido de investigar o alcance da locução “relação de trabalho”, para se deram no sentido de investigar o alcance da locução “relação de trabalho”, para
fins de delimitação da competência juslaboral, afinal, nada mais consentâneo do fins de delimitação da competência juslaboral, afinal, nada mais consentâneo do
que se concentrar na expressão que foi utilizada para conferir tal alargamento. que se concentrar na expressão que foi utilizada para conferir tal alargamento.
De início, fixe-se que o referido termo fez importar, para o âmbito trabalhista do De início, fixe-se que o referido termo fez importar, para o âmbito trabalhista do
Judiciário, um sem número de relações fundadas no trabalho humano. Judiciário, um sem número de relações fundadas no trabalho humano.
Daí porque a pertinência em caracterizar a multicitada relação, a fim de con- Daí porque a pertinência em caracterizar a multicitada relação, a fim de con-
cluir, com certo grau de certeza, quais as relações que, de fato, serão, a partir da cluir, com certo grau de certeza, quais as relações que, de fato, serão, a partir da
EC nº 45/2004, apreciadas pela Justiça do Trabalho. EC nº 45/2004, apreciadas pela Justiça do Trabalho.
Antes, porém, registre-se o conceito elaborado por Maurício Godinho Delgado Antes, porém, registre-se o conceito elaborado por Maurício Godinho Delgado
(1999, p. 230-231), na tentativa de fixar uma definição doutrinária, a propósito (1999, p. 230-231), na tentativa de fixar uma definição doutrinária, a propósito
da relação trabalhista: da relação trabalhista:
...todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial ...todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial
centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em trabalho humano. Refe- centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em trabalho humano. Refe-
re-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente re-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente
admissível. admissível.

Para que exista realmente uma relação de trabalho, o primeiro aspecto a Para que exista realmente uma relação de trabalho, o primeiro aspecto a
se respeitar é o de ser o prestador de serviços uma pessoa física. Tal exigência se respeitar é o de ser o prestador de serviços uma pessoa física. Tal exigência
decorre do fato de que a relação laboral está esteada no trabalho humano, que só decorre do fato de que a relação laboral está esteada no trabalho humano, que só
pode ser realizado pelo homem, enquanto pessoa natural. Deste modo, para fins pode ser realizado pelo homem, enquanto pessoa natural. Deste modo, para fins
da competência juslaboral, não pode ser a relação de trabalho constituída por um da competência juslaboral, não pode ser a relação de trabalho constituída por um
vínculo onde o prestador de serviço seja uma pessoa jurídica. vínculo onde o prestador de serviço seja uma pessoa jurídica.
Não é qualquer trabalho humano, todavia, que se caracteriza como objeto Não é qualquer trabalho humano, todavia, que se caracteriza como objeto
da relação de trabalho, nos termos do art. 114, I, da Carta Magna. Desta forma, da relação de trabalho, nos termos do art. 114, I, da Carta Magna. Desta forma,
forçosa a distinção entre o trabalho por conta alheia e o trabalho por conta própria, forçosa a distinção entre o trabalho por conta alheia e o trabalho por conta própria,
contando-se, neste passo, com a notável lição de Taísa Maria Macena de Lima contando-se, neste passo, com a notável lição de Taísa Maria Macena de Lima
(2005, p. 499), que, citando Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, apresenta a referida (2005, p. 499), que, citando Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, apresenta a referida
diferença, nos seguintes termos: diferença, nos seguintes termos:
Define-se o trabalho por conta alheia como aquele que se presta a outrem, a quem, Define-se o trabalho por conta alheia como aquele que se presta a outrem, a quem,
em princípio, cabem os resultados e os riscos. A divisão trabalho-por-conta-própria em princípio, cabem os resultados e os riscos. A divisão trabalho-por-conta-própria
e trabalho-por-conta-alheia esgota as categorias básicas oriundas da atividade-tra- e trabalho-por-conta-alheia esgota as categorias básicas oriundas da atividade-tra-
balho, para a composição de situações jurídicas. balho, para a composição de situações jurídicas.
No trabalho-por-conta-própria não se estabelece uma relação fundada no trabalho No trabalho-por-conta-própria não se estabelece uma relação fundada no trabalho
em si, mas uma situação de poder sobre a coisa, o objeto trabalhado, o resultado em si, mas uma situação de poder sobre a coisa, o objeto trabalhado, o resultado
do trabalho como relação de trabalho real-factual. No trabalho-por-conta-alheia os do trabalho como relação de trabalho real-factual. No trabalho-por-conta-alheia os
A competência da Justiça do Trabalho para o julgamento das lides oriundas das prestações… 213 A competência da Justiça do Trabalho para o julgamento das lides oriundas das prestações… 213

nexos jurídicos nascem no próprio trabalho, ainda que se tenham em vista os resul- nexos jurídicos nascem no próprio trabalho, ainda que se tenham em vista os resul-
tados da atividade em si. No primeiro caso, a relação jurídica é ulterior ao trabalho e tados da atividade em si. No primeiro caso, a relação jurídica é ulterior ao trabalho e
decorre de um ato de disposição do outro ou qualquer de natureza modificadora do decorre de um ato de disposição do outro ou qualquer de natureza modificadora do
ens ou da situação da coisa concernente à pessoa que a produziu ou de que resultou ens ou da situação da coisa concernente à pessoa que a produziu ou de que resultou
acabada (ato jurídico unilateral, como abandono; negócio jurídico unilateral, como acabada (ato jurídico unilateral, como abandono; negócio jurídico unilateral, como
doação, ou bilateral, como o arrendamento, a troca a venda). doação, ou bilateral, como o arrendamento, a troca a venda).

3. A prestação de serviço consumerista como uma rela- 3. A prestação de serviço consumerista como uma rela-
ção de trabalho ção de trabalho
Sucede que, não obstante a amplitude natural do termo utilizado pelo legis- Sucede que, não obstante a amplitude natural do termo utilizado pelo legis-
lador constitucional, alguns doutrinadores defendem a exclusão das prestações lador constitucional, alguns doutrinadores defendem a exclusão das prestações
de serviços consumeristas do âmbito juslaboral, a partir do argumento de que há de serviços consumeristas do âmbito juslaboral, a partir do argumento de que há
uma diferença abissal entre a “relação de trabalho” (do art. 114, I, CF) e a relação uma diferença abissal entre a “relação de trabalho” (do art. 114, I, CF) e a relação
de consumo (art. 3º, § 2º, do CDC). de consumo (art. 3º, § 2º, do CDC).
As principais idéias utilizadas, no sentido de repelirem da apreciação da Justiça As principais idéias utilizadas, no sentido de repelirem da apreciação da Justiça
do Trabalho tais relações, perpassam pelo argumento de que o Código de Defesa do Trabalho tais relações, perpassam pelo argumento de que o Código de Defesa
do Consumidor é inconteste ao fazer a distinção entre a relação trabalhista e a do Consumidor é inconteste ao fazer a distinção entre a relação trabalhista e a
relação de consumo, no seu art. 3º, § 2º. É a redação do citado dispositivo: relação de consumo, no seu art. 3º, § 2º. É a redação do citado dispositivo:
Art. 3º (...) Art. 3º (...)
§ 2º – Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante § 2º – Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária,
salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. (grifo nosso) salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. (grifo nosso)

É preciso salientar, contudo, que a ressalva feita no artigo sobredito decor- É preciso salientar, contudo, que a ressalva feita no artigo sobredito decor-
reu, unicamente, do fato de que, em 1990, quando foi promulgado o Código de reu, unicamente, do fato de que, em 1990, quando foi promulgado o Código de
Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078), as relações envolvendo o trabalho humano Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078), as relações envolvendo o trabalho humano
se encontravam dissociadas, mormente no que pertine às competências para o se encontravam dissociadas, mormente no que pertine às competências para o
julgamento das lides delas oriundas. julgamento das lides delas oriundas.
Em outras palavras, o trabalho subordinado estava a cargo da Justiça Laboral, Em outras palavras, o trabalho subordinado estava a cargo da Justiça Laboral,
o trabalho autônomo e o estatutário, sob a égide da Justiça Comum e a prestação o trabalho autônomo e o estatutário, sob a égide da Justiça Comum e a prestação
de serviço consumerista, sob a competência das Varas Especializadas de Defesa de serviço consumerista, sob a competência das Varas Especializadas de Defesa
do Consumidor (onde existissem). Da mesma forma, o direito material aplicado: do Consumidor (onde existissem). Da mesma forma, o direito material aplicado:
CLT, para o empregado; Código Civil, para os autônomos; Lei nº 8.112/90, para CLT, para o empregado; Código Civil, para os autônomos; Lei nº 8.112/90, para
os servidores públicos; e CDC, em face dos prestadores de serviço. os servidores públicos; e CDC, em face dos prestadores de serviço.
Sucede que esta desconexão em torno da competência se deu por mera con- Sucede que esta desconexão em torno da competência se deu por mera con-
veniência e opção política do legislador: especializar a competência com base no veniência e opção política do legislador: especializar a competência com base no
direito material aplicado. A superveniência da EC nº 45/2004, porém, fez com que direito material aplicado. A superveniência da EC nº 45/2004, porém, fez com que
as relações fundadas no labor humano fossem reunidas sob a incumbência de uma as relações fundadas no labor humano fossem reunidas sob a incumbência de uma
única Justiça, aquela que, historicamente, sempre melhor lidou com as questões única Justiça, aquela que, historicamente, sempre melhor lidou com as questões
envolvendo a venda da força de trabalho de um em prol de outro. Assim, todas envolvendo a venda da força de trabalho de um em prol de outro. Assim, todas
214 Claudiane Cunha da Conceição 214 Claudiane Cunha da Conceição

foram reunidas, a partir da EC nº 45/2004, sob a égide da Justiça Especializada foram reunidas, a partir da EC nº 45/2004, sob a égide da Justiça Especializada
do Trabalho. Agora todas são, acertadamente, caracterizadas como “relação de do Trabalho. Agora todas são, acertadamente, caracterizadas como “relação de
trabalho” e identificadas a partir da natureza da relação apreciada. trabalho” e identificadas a partir da natureza da relação apreciada.
...todas as ações oriundas da relação de trabalho (para muitos, relação de emprego), ...todas as ações oriundas da relação de trabalho (para muitos, relação de emprego),
no que não temos como desprezar os contratos civis, consumerista ou outros con- no que não temos como desprezar os contratos civis, consumerista ou outros con-
tratos de atividade (quando se referirem à discussão sobre a valorização do trabalho tratos de atividade (quando se referirem à discussão sobre a valorização do trabalho
humano), deverão ser ajuizadas, a partir da Reforma do Judiciário, na Justiça do humano), deverão ser ajuizadas, a partir da Reforma do Judiciário, na Justiça do
Trabalho. (PAMPLONA FILHO, 2006, p. 243) Trabalho. (PAMPLONA FILHO, 2006, p. 243)

Por fim, o desígnio do legiferante, em utilizar uma expressão de significação Por fim, o desígnio do legiferante, em utilizar uma expressão de significação
tão alargada, como “relação de trabalho”, foi o de pura e simplesmente concentrar tão alargada, como “relação de trabalho”, foi o de pura e simplesmente concentrar
sob a tutela do Judiciário Trabalhista todos os trabalhadores, independentemente sob a tutela do Judiciário Trabalhista todos os trabalhadores, independentemente
do direito material aplicado. do direito material aplicado.

Desta forma, há de prevalecer a lição de Moyses Simão Sznifer (2005, p. 1) Desta forma, há de prevalecer a lição de Moyses Simão Sznifer (2005, p. 1)
e é neste sentido que devem se enveredar, sob pena de incoerência com a própria e é neste sentido que devem se enveredar, sob pena de incoerência com a própria
Constituição Federal, as pósteras jurisprudências: Constituição Federal, as pósteras jurisprudências:
Em razão da alteração procedida no texto constitucional pela Emenda nº 45/2004, Em razão da alteração procedida no texto constitucional pela Emenda nº 45/2004,
foram incluídas na competência material da Justiça do Trabalho processar e julgar foram incluídas na competência material da Justiça do Trabalho processar e julgar
as demandas que envolvam a prestação pessoal de serviços, inclusive dos serviços as demandas que envolvam a prestação pessoal de serviços, inclusive dos serviços
que estejam regulados pelo Código de Defesa do Consumidor, cujas disposições que estejam regulados pelo Código de Defesa do Consumidor, cujas disposições
deverão ser observadas pelo Juízo Trabalhista para a solução dos litígios que lhe deverão ser observadas pelo Juízo Trabalhista para a solução dos litígios que lhe
forem submetidas. forem submetidas.

4. A competência da Justiça Trabalhista para o julga- 4. A competência da Justiça Trabalhista para o julga-
mento das lides oriundas das prestações de serviços mento das lides oriundas das prestações de serviços
consumeristas consumeristas

Inicialmente, é de se fixar que não há como negar que numa prestação de Inicialmente, é de se fixar que não há como negar que numa prestação de
serviço, ainda que da seara consumerista, há verdadeira realização de trabalho, serviço, ainda que da seara consumerista, há verdadeira realização de trabalho,
senão, como se executaria o serviço sem despender força laboral? senão, como se executaria o serviço sem despender força laboral?

Entrementes, como observado nas linhas acima, uma parte da doutrina não se Entrementes, como observado nas linhas acima, uma parte da doutrina não se
atém a este fato e, fundada numa letra de lei (art. 3º, §2º, CDC), exclui, ab initio, atém a este fato e, fundada numa letra de lei (art. 3º, §2º, CDC), exclui, ab initio,
do âmbito da competência trabalhista todos os serviços prestados no mercado de do âmbito da competência trabalhista todos os serviços prestados no mercado de
consumo. consumo.

Em face disto, há autores que, no desígnio de defender a prestação de serviço Em face disto, há autores que, no desígnio de defender a prestação de serviço
consumera como relação de trabalho, terminam argumentando que, no reportado consumera como relação de trabalho, terminam argumentando que, no reportado
dispositivo legal, o legislador se referiu, na verdade, à relação empregatícia, de dispositivo legal, o legislador se referiu, na verdade, à relação empregatícia, de
sorte que a relação de trabalho lato sensu estaria inclusa no conceito de serviço. sorte que a relação de trabalho lato sensu estaria inclusa no conceito de serviço.

Este, todavia, não é o melhor arrazoado. Defende-se que o enfoque correto Este, todavia, não é o melhor arrazoado. Defende-se que o enfoque correto
para se entender, conclusivamente, pela ampliação da competência juslaboralista e para se entender, conclusivamente, pela ampliação da competência juslaboralista e
A competência da Justiça do Trabalho para o julgamento das lides oriundas das prestações… 215 A competência da Justiça do Trabalho para o julgamento das lides oriundas das prestações… 215

sua abrangência às prestações de serviços da seara do consumo, é diametralmente sua abrangência às prestações de serviços da seara do consumo, é diametralmente
o inverso. É que, como a alteração se deu no corpo da Constituição Federal, mais o inverso. É que, como a alteração se deu no corpo da Constituição Federal, mais
precisamente no âmbito da competência da Justiça do Trabalho, a partir da novel precisamente no âmbito da competência da Justiça do Trabalho, a partir da novel
redação conferida ao seu art. 114, a análise deve ter seu ponto de partida aí. redação conferida ao seu art. 114, a análise deve ter seu ponto de partida aí.
Assim, a questão se resume em comprovar que o serviço consumerista está Assim, a questão se resume em comprovar que o serviço consumerista está
consubstanciado em uma relação de trabalho, e não que a relação de trabalho seja consubstanciado em uma relação de trabalho, e não que a relação de trabalho seja
um serviço. Afinal, não se está discutindo que as relações de caráter trabalhista são um serviço. Afinal, não se está discutindo que as relações de caráter trabalhista são
serviços para fins de se subsumirem ao direito material consumero. Ao contrário, serviços para fins de se subsumirem ao direito material consumero. Ao contrário,
pugna-se pelo reconhecimento da prestação de serviço consumerista como uma pugna-se pelo reconhecimento da prestação de serviço consumerista como uma
relação fundada no trabalho e, portanto, merecedora das vantagens oferecidas pelo relação fundada no trabalho e, portanto, merecedora das vantagens oferecidas pelo
direito processual trabalhista no domínio da competência juslaboral. direito processual trabalhista no domínio da competência juslaboral.
De tudo, resta confirmado que a Justiça do Trabalho é a competente para as De tudo, resta confirmado que a Justiça do Trabalho é a competente para as
lides oriundas da relação de trabalho lato sensu, da qual é espécie a prestação de lides oriundas da relação de trabalho lato sensu, da qual é espécie a prestação de
serviço de caráter consumerista, desde que realizado por pessoa física. Afinal, não serviço de caráter consumerista, desde que realizado por pessoa física. Afinal, não
há como separar as duas relações, já que coincidentes, distinguindo-se, porém, há como separar as duas relações, já que coincidentes, distinguindo-se, porém,
quanto ao direito material, o que não poderia ser mais correto e adequado. quanto ao direito material, o que não poderia ser mais correto e adequado.

5. Conclusão 5. Conclusão
Este trabalho cuidou de ser um instrumento responsável por fomentar, ainda Este trabalho cuidou de ser um instrumento responsável por fomentar, ainda
mais, o debate acerca da nova competência da Justiça do Trabalho para as ações mais, o debate acerca da nova competência da Justiça do Trabalho para as ações
oriundas das prestações de serviço consumerista. Tema este, aliás, bastante con- oriundas das prestações de serviço consumerista. Tema este, aliás, bastante con-
troverso. troverso.
Dedicou-se atenção à caracterização da “relação de trabalho”, nos moldes da Dedicou-se atenção à caracterização da “relação de trabalho”, nos moldes da
redação do art. 114, I, da Constituição Federal, oportunidade em que se pôde ver redação do art. 114, I, da Constituição Federal, oportunidade em que se pôde ver
que na relação de trabalho, para fins da competência juslaboral, o labor deve ser que na relação de trabalho, para fins da competência juslaboral, o labor deve ser
realizado por pessoa natural e por meio de trabalho por conta alheia. realizado por pessoa natural e por meio de trabalho por conta alheia.
Finalmente, o artigo se dedicou à prestação de serviço consumerista, como Finalmente, o artigo se dedicou à prestação de serviço consumerista, como
espécie do gênero relação de trabalho. Neste tópico, afirmou-se, destarte, a com- espécie do gênero relação de trabalho. Neste tópico, afirmou-se, destarte, a com-
petência da Justiça do Trabalho para a apreciação dos dissídios decorrentes das petência da Justiça do Trabalho para a apreciação dos dissídios decorrentes das
relações de consumo embasadas na prestação de serviço, desde que realizadas por relações de consumo embasadas na prestação de serviço, desde que realizadas por
meio de pessoa natural como executora da atividade. meio de pessoa natural como executora da atividade.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BRASIL. Constituição (1988) Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Lex: Mini BRASIL. Constituição (1988) Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Lex: Mini
Vade Mecum de direito 7 em 1. Anne Joyce Angher (org.). São Paulo: Rideel, 2005. Vade Mecum de direito 7 em 1. Anne Joyce Angher (org.). São Paulo: Rideel, 2005.

BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004. BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004.
Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107,
109, 11, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e 109, 11, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e
216 Claudiane Cunha da Conceição 216 Claudiane Cunha da Conceição

acrescenta os arts. 103-A, 103-B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Lex: Mini acrescenta os arts. 103-A, 103-B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Lex: Mini
Vade Mecum de direito 7 em 1. Anne Joyce Angher (org.). São Paulo: Rideel, 2005. Vade Mecum de direito 7 em 1. Anne Joyce Angher (org.). São Paulo: Rideel, 2005.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e
dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L8078. dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L8078.
htm>. Acesso em: 24 de maio de 2006. htm>. Acesso em: 24 de maio de 2006.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 1ª ed. São Paulo: Ltr, DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 1ª ed. São Paulo: Ltr,
1999. 1999.

LIMA, Taísa Maria Macena de. O sentido e alcance da expressão “relação de trabalho” LIMA, Taísa Maria Macena de. O sentido e alcance da expressão “relação de trabalho”
no artigo 114, inciso I, da Constituição da República (emenda constitucional nº 45, no artigo 114, inciso I, da Constituição da República (emenda constitucional nº 45,
de 08.12.2004). In: COUTINHO, Grijalbo Fernandes; FAVA, Marcos Neves (coord.). de 08.12.2004). In: COUTINHO, Grijalbo Fernandes; FAVA, Marcos Neves (coord.).
Justiça do Trabalho: competência ampliada. São Paulo: LTr, 2005. Justiça do Trabalho: competência ampliada. São Paulo: LTr, 2005.

PAMPLONA FILHO, Rodolfo Mário Veiga. A nova competência da Justiça do Trabalho PAMPLONA FILHO, Rodolfo Mário Veiga. A nova competência da Justiça do Trabalho
– uma contribuição para compreensão dos limites do novo art. 114 da Constituição – uma contribuição para compreensão dos limites do novo art. 114 da Constituição
Federal de 1988. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, a. 32, n. 121, p. 233-258, Federal de 1988. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, a. 32, n. 121, p. 233-258,
janeiro-março de 2006. janeiro-março de 2006.
SZNIFER, Moyses Simão. Direito do Consumidor e a ampliação da competência da Justiça SZNIFER, Moyses Simão. Direito do Consumidor e a ampliação da competência da Justiça
do Trabalho. Disponível em: <http://www.unifacs.br/revistajuridica/edicao_setem- do Trabalho. Disponível em: <http://www.unifacs.br/revistajuridica/edicao_setem-
bro2005/convidados/con_3.doc>. Acesso em: 22 abr. 2007. bro2005/convidados/con_3.doc>. Acesso em: 22 abr. 2007.
Capítulo XV Capítulo XV
O paradigma hermenêutico O paradigma hermenêutico
do positivismo jurídico do positivismo jurídico

Daniel Oitaven Pamponet Miguel* Daniel Oitaven Pamponet Miguel*

Sumário • 1. Introdução: 1.1. Panorama histórico: 1.1.1. O período pré-revolucionário; 1.1.2. O Sumário • 1. Introdução: 1.1. Panorama histórico: 1.1.1. O período pré-revolucionário; 1.1.2. O
período pós-revolução: a ascensão da lei a fonte formal por excelência – 2. O Positivismo Legalista e período pós-revolução: a ascensão da lei a fonte formal por excelência – 2. O Positivismo Legalista e
suas repercussões: 2.1. A Escola de Exegese; 2.2. Tentativas de reação contra o pensamento exegético suas repercussões: 2.1. A Escola de Exegese; 2.2. Tentativas de reação contra o pensamento exegético
– 3. O Normativismo kelseniano: 3.1. O sistema jurídico na visão de Hans Kelsen: 3.1.1. Tipos de – 3. O Normativismo kelseniano: 3.1. O sistema jurídico na visão de Hans Kelsen: 3.1.1. Tipos de
interpretação jurídica e o desafio kelseniano – 4. Conclusões a respeito do pensamento positivista: 4.1. interpretação jurídica e o desafio kelseniano – 4. Conclusões a respeito do pensamento positivista: 4.1.
A Nova Hermenêutica 4.1.1. A dicotomia vontade da lei-vontade do legislador – 5. Referências. A Nova Hermenêutica 4.1.1. A dicotomia vontade da lei-vontade do legislador – 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO 1. INTRODUÇÃO
1.1 Panorama histórico 1.1 Panorama histórico
1.1.1. O período pré-revolucionário 1.1.1. O período pré-revolucionário
O paradigma hermenêutico do Positivismo Jurídico constitui a expressão O paradigma hermenêutico do Positivismo Jurídico constitui a expressão
epistemológica do processo de positivação das normas jurídicas. Tal paradigma, epistemológica do processo de positivação das normas jurídicas. Tal paradigma,
fundamentado no ideal de racionalidade típico do pensamento moderno, origi- fundamentado no ideal de racionalidade típico do pensamento moderno, origi-
nou-se no bojo de um contexto social de estabilização de expectativas, a ser nou-se no bojo de um contexto social de estabilização de expectativas, a ser
consubstanciado no valor da segurança jurídica. Senão, vejamos. consubstanciado no valor da segurança jurídica. Senão, vejamos.
O contexto absolutista da Europa pré-Revolução Francesa era sintetizado na O contexto absolutista da Europa pré-Revolução Francesa era sintetizado na
autoridade do rei, detentor do poder indistinto de legislar, administrar e julgar, direta autoridade do rei, detentor do poder indistinto de legislar, administrar e julgar, direta
ou indiretamente. Tal autoridade monárquica justificava-se no caráter tradicional ou indiretamente. Tal autoridade monárquica justificava-se no caráter tradicional
das monarquias1, bem como na doutrina filosófica de pensadores como Maquia- das monarquias1, bem como na doutrina filosófica de pensadores como Maquia-
vel, Hobbes e Bossuet. Este último, especialmente, pregava o “direito divino dos vel, Hobbes e Bossuet. Este último, especialmente, pregava o “direito divino dos
reis”, sacralização que caracteriza o jusnaturalismo teológico2. A influência do reis”, sacralização que caracteriza o jusnaturalismo teológico2. A influência do
pensamento jusnaturalista, no entanto, viria a servir ao propósito dos revolucio- pensamento jusnaturalista, no entanto, viria a servir ao propósito dos revolucio-
nários franceses. Com o intuito de agregar ao seu poder econômico um domínio nários franceses. Com o intuito de agregar ao seu poder econômico um domínio

* Graduando em Direito na Universidade Federal da Bahia e monitor da disciplina Hermenêutica * Graduando em Direito na Universidade Federal da Bahia e monitor da disciplina Hermenêutica
Jurídica da Faculdade de Direito da UFBA. Jurídica da Faculdade de Direito da UFBA.
1. Tal situação enquadra-se no conceito de legitimidade tradicional, nos termos da classificação 1. Tal situação enquadra-se no conceito de legitimidade tradicional, nos termos da classificação
tripartite weberiana dos tipos de legitimidade. tripartite weberiana dos tipos de legitimidade.
2. Tal concepção possui como cerne a idéia de que o rei, ser divino, possui sua autoridade concedida 2. Tal concepção possui como cerne a idéia de que o rei, ser divino, possui sua autoridade concedida
pelo Deus maior. pelo Deus maior.
218 Daniel Oitaven Pamponet Miguel 218 Daniel Oitaven Pamponet Miguel

político, os burgueses traçaram um projeto filosófico grandioso, de pretensões político, os burgueses traçaram um projeto filosófico grandioso, de pretensões
universalistas, fundado na racionalidade humana – o Iluminismo. Com base em universalistas, fundado na racionalidade humana – o Iluminismo. Com base em
pensadores como Voltaire e Montesquieu, a ideologia iluminista partia do pressu- pensadores como Voltaire e Montesquieu, a ideologia iluminista partia do pressu-
posto filosófico do jusnaturalismo racional, fundado nos padrões universalistas de posto filosófico do jusnaturalismo racional, fundado nos padrões universalistas de
igualdade, liberdade e fraternidade quando transposto para o contexto da Revolução igualdade, liberdade e fraternidade quando transposto para o contexto da Revolução
Francesa. Mediante a pregação da igualdade, os burgueses conseguiram, pois, Francesa. Mediante a pregação da igualdade, os burgueses conseguiram, pois,
sair da condição de integrantes do Terceiro Estado; todos são iguais, não mais sair da condição de integrantes do Terceiro Estado; todos são iguais, não mais
importando o aspecto tradicionalista. O princípio da Separação dos Poderes de importando o aspecto tradicionalista. O princípio da Separação dos Poderes de
Montesquieu bem ilustra o racionalismo vigente no período, mormente quando Montesquieu bem ilustra o racionalismo vigente no período, mormente quando
encarado simultaneamente como elemento fundante da sistematização da atividade encarado simultaneamente como elemento fundante da sistematização da atividade
estatal e como instrumento concretizador da democracia formal. estatal e como instrumento concretizador da democracia formal.

1.1.2. O período pós-revolução: a ascensão da lei à situação de fonte formal 1.1.2. O período pós-revolução: a ascensão da lei à situação de fonte formal
por excelência por excelência
Ocorre que, concretizada a revolução, todo aquele estouro da luta emancipa- Ocorre que, concretizada a revolução, todo aquele estouro da luta emancipa-
tória fundado no jusnaturalismo racional deu lugar à necessidade de sedimentação tória fundado no jusnaturalismo racional deu lugar à necessidade de sedimentação
da nova ordem. Passada a fase das promessas do racionalismo iluminista, na da nova ordem. Passada a fase das promessas do racionalismo iluminista, na
qual o conhecimento-emancipação afigurava-se como prevalente, era chegado qual o conhecimento-emancipação afigurava-se como prevalente, era chegado
o momento de quebra da tensão entre as duas contrapartes do conhecimento em o momento de quebra da tensão entre as duas contrapartes do conhecimento em
favor da explosão do conhecimento-regulação3; a mesma racionalidade em que favor da explosão do conhecimento-regulação3; a mesma racionalidade em que
se fundava o projeto de libertação das amarras da tradição pré-moderna seria uti- se fundava o projeto de libertação das amarras da tradição pré-moderna seria uti-
lizada mediante um projeto de sistematização que institucionalizaria e perpetuaria lizada mediante um projeto de sistematização que institucionalizaria e perpetuaria
o status quo, mediante uma hipertrofia da racionalidade cognitivo-instrumental. o status quo, mediante uma hipertrofia da racionalidade cognitivo-instrumental.
Surge, pois, o momento de apogeu do processo de positivação, quando o Estado Surge, pois, o momento de apogeu do processo de positivação, quando o Estado
atrai para si o monopólio de produção das normas jurídicas, a serem veiculadas atrai para si o monopólio de produção das normas jurídicas, a serem veiculadas
por fontes formais, mormente a lei. Por que a lei? Porque o costume, ao mesmo por fontes formais, mormente a lei. Por que a lei? Porque o costume, ao mesmo
tempo em que não trazia a possibilidade de racionalização e procedimentalização tempo em que não trazia a possibilidade de racionalização e procedimentalização
tão caras à concretização da segurança jurídica, não proporcionava a possibilidade tão caras à concretização da segurança jurídica, não proporcionava a possibilidade
de atualização do direito com a mesma eficiência da lei; de acordo com as neces- de atualização do direito com a mesma eficiência da lei; de acordo com as neces-
sidades, o Estado, mediante o procedimento formal que garantiria a segurança sidades, o Estado, mediante o procedimento formal que garantiria a segurança
jurídica, poderia conformar o direito à realidade. jurídica, poderia conformar o direito à realidade.

2. O POSITIVISMO LEGALISTA E SUAS REPERCUSSÕES 2. O POSITIVISMO LEGALISTA E SUAS REPERCUSSÕES

2.1. A Escola de Exegese 2.1. A Escola de Exegese


O Código de Napoleão foi o documento utilizado para a positivação dos ideais O Código de Napoleão foi o documento utilizado para a positivação dos ideais
do direito natural propostos durante a revolução. Com base em tal acontecimento, do direito natural propostos durante a revolução. Com base em tal acontecimento,

3. Segundo o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, o projeto da Modernidade sustentava-se 3. Segundo o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, o projeto da Modernidade sustentava-se
na tensão existente entre o conhecimento-emancipação e o conhecimento-regulação. Para maior na tensão existente entre o conhecimento-emancipação e o conhecimento-regulação. Para maior
aprofundamento sobre o tema, SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: aprofundamento sobre o tema, SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente:
O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico 219 O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico 219

diz-se que todo período jusnaturalista antecede um positivista. Concretizado diz-se que todo período jusnaturalista antecede um positivista. Concretizado
um ideal de justiça absoluta, metafísica, segue a necessidade de estabilizá-lo me- um ideal de justiça absoluta, metafísica, segue a necessidade de estabilizá-lo me-
diante um p­ rocesso de validação. Temendo a ameaça de retorno dos absolutistas, diante um p­ rocesso de validação. Temendo a ameaça de retorno dos absolutistas,
nasce a Escola de Exegese, primeira manifestação teórica do pensamento positi- nasce a Escola de Exegese, primeira manifestação teórica do pensamento positi-
vista. Com base no brocardo in claris cessat interpretatio, os exegetas negavam vista. Com base no brocardo in claris cessat interpretatio, os exegetas negavam
a possibilidade de interpretação da lei, sob pena de afronta à segurança jurídica; a possibilidade de interpretação da lei, sob pena de afronta à segurança jurídica;
numa ilusão racionalista, o pensamento da Escola de Exegese pregava a previsão numa ilusão racionalista, o pensamento da Escola de Exegese pregava a previsão
da totalidade de casos possíveis de acontecer na realidade fática. De tal forma, da totalidade de casos possíveis de acontecer na realidade fática. De tal forma,
restaria ao juiz, “a boca da lei”, a mera função de aplicar o direito silogisticamente, restaria ao juiz, “a boca da lei”, a mera função de aplicar o direito silogisticamente,
tendo como premissa maior a norma e premissa menor o fato, juridicizado pela tendo como premissa maior a norma e premissa menor o fato, juridicizado pela
incidência da hipótese normativa sobre a realidade. Não haveria, pois, juízo axio- incidência da hipótese normativa sobre a realidade. Não haveria, pois, juízo axio-
lógico algum. O caráter absoluto dado à norma positivada pela Escola de Exegese lógico algum. O caráter absoluto dado à norma positivada pela Escola de Exegese
originou uma idéia de que, em ultima ratio¸ ela não passaria de uma escola do originou uma idéia de que, em ultima ratio¸ ela não passaria de uma escola do
direito natural, posto que se limitava a formalizar mediante a autoridade estatal, direito natural, posto que se limitava a formalizar mediante a autoridade estatal,
visando à concretização do valor segurança jurídica e à perpetuação do status quo visando à concretização do valor segurança jurídica e à perpetuação do status quo
ante, normas fundamentadas no ideal de justiça absoluta. ante, normas fundamentadas no ideal de justiça absoluta.

2.2. Tentativas de reação contra o pensamento exegético 2.2. Tentativas de reação contra o pensamento exegético

Com o passar do tempo, a inexorável insuficiência da Escola de Exegese Com o passar do tempo, a inexorável insuficiência da Escola de Exegese
passou a ser demonstrada. Ora, obviamente era impossível prever todas as possi- passou a ser demonstrada. Ora, obviamente era impossível prever todas as possi-
bilidades de conflitos intersubjetivos que eventualmente eclodissem, de maneira bilidades de conflitos intersubjetivos que eventualmente eclodissem, de maneira
que o pensamento jusfilosófico se deparava com um novo desafio: seria possível que o pensamento jusfilosófico se deparava com um novo desafio: seria possível
concretizar os ideais de unidade, coerência e completude. O que permitiria ao concretizar os ideais de unidade, coerência e completude. O que permitiria ao
direito permanecer unido, não-segmentado? Como resolver um conflito normativo? direito permanecer unido, não-segmentado? Como resolver um conflito normativo?
Como resolver o problema das l­acunas? Como resolver o problema das l­acunas?

Diante de tantas indagações, surgiram varias reações à Escola de Exegese, Diante de tantas indagações, surgiram varias reações à Escola de Exegese,
todas ainda adstritas, de alguma maneira, ao paradigma epistemológico positivista. todas ainda adstritas, de alguma maneira, ao paradigma epistemológico positivista.
A primeira delas, a Escola da Livre Investigação Científica, foi capitaneada por A primeira delas, a Escola da Livre Investigação Científica, foi capitaneada por
François Geny e fundava-se na tentativa de estabelecer uma relação de interdis- François Geny e fundava-se na tentativa de estabelecer uma relação de interdis-
ciplinaridade entre o Direito e outras ciências. Tal vertente não teve uma acolhida ciplinaridade entre o Direito e outras ciências. Tal vertente não teve uma acolhida
muito efusiva, sendo, inclusive, frontalmente rechaçada por Kelsen, visto sua muito efusiva, sendo, inclusive, frontalmente rechaçada por Kelsen, visto sua
Teoria Pura do Direito pressupor a separação do Direito em relação aos outros Teoria Pura do Direito pressupor a separação do Direito em relação aos outros
ramos das Ciências Humanas. ramos das Ciências Humanas.

A Jurisprudência dos Conceitos, de pensamento de cunho abstracionista ba- A Jurisprudência dos Conceitos, de pensamento de cunho abstracionista ba-
seado no método lógico-dedutivo, teve em Bernhard Windscheid seu maior repre- seado no método lógico-dedutivo, teve em Bernhard Windscheid seu maior repre-
sentante, alcançando significativa expressão no Pandectismo alemão, responsável sentante, alcançando significativa expressão no Pandectismo alemão, responsável

contra o desperdício da experiência. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. (Para um novo senso comum: contra o desperdício da experiência. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. (Para um novo senso comum:
a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, v. 1). a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, v. 1).
220 Daniel Oitaven Pamponet Miguel 220 Daniel Oitaven Pamponet Miguel

pela elaboração de grande parte dos conceitos clássicos de Direito Civil. Como pela elaboração de grande parte dos conceitos clássicos de Direito Civil. Como
contraponto a tal Escola, tivemos a Jurisprudência dos Interesses, a qual, focalizada contraponto a tal Escola, tivemos a Jurisprudência dos Interesses, a qual, focalizada
no interesse dos homens sobre os bens da vida como parâmetro de normatização, no interesse dos homens sobre os bens da vida como parâmetro de normatização,
constitui o substrato da Teoria Objetiva da Posse de Rudolf von Ihering. constitui o substrato da Teoria Objetiva da Posse de Rudolf von Ihering.

Finalmente, mencionemos a Escola Histórica, que encontrou em Friedrich Carl Finalmente, mencionemos a Escola Histórica, que encontrou em Friedrich Carl
von Savigny seu maior expoente e representou um papel de grande importância von Savigny seu maior expoente e representou um papel de grande importância
no contexto do processo de positivação das normas jurídicas. O Historicismo, no contexto do processo de positivação das normas jurídicas. O Historicismo,
inicialmente, pregava o costume, a Volksgeist, como fonte do direito, batendo inicialmente, pregava o costume, a Volksgeist, como fonte do direito, batendo
frontalmente com a primazia da lei pregada pelo Positivismo. Acabou, no entanto, frontalmente com a primazia da lei pregada pelo Positivismo. Acabou, no entanto,
em seu período mais tardio, enveredando, ironicamente, pelo Positivismo4. em seu período mais tardio, enveredando, ironicamente, pelo Positivismo4.

Nenhuma dessas escolas, no entanto, conseguiu sistematizar os ideais da Nenhuma dessas escolas, no entanto, conseguiu sistematizar os ideais da
Modernidade com tamanha precisão e complexidade quanto o Normativismo, Modernidade com tamanha precisão e complexidade quanto o Normativismo,
capitaneado por Hans Kelsen. capitaneado por Hans Kelsen.

3. O NORMATIVISMO KELSENIANO 3. O NORMATIVISMO KELSENIANO

O Normativismo reúne as principais características do paradigma do Positi- O Normativismo reúne as principais características do paradigma do Positi-
vismo Jurídico, quais sejam: vismo Jurídico, quais sejam:

• veto ao juízo de valor; • veto ao juízo de valor;

• ênfase na autoridade coativa; • ênfase na autoridade coativa;

• negação do direito natural; • negação do direito natural;

• consciência de mutabilidade do direito; • consciência de mutabilidade do direito;

• procedimentalização; • procedimentalização;

• racionalidade cartesiana; • racionalidade cartesiana;

Percebamos que todos esses traços positivistas estão englobados na noção Percebamos que todos esses traços positivistas estão englobados na noção
de sistema, encontrando-se em perfeita consonância com o projeto da Moder- de sistema, encontrando-se em perfeita consonância com o projeto da Moder-
nidade. A pretensão de cientificidade do Positivismo Jurídico, análoga à do Po- nidade. A pretensão de cientificidade do Positivismo Jurídico, análoga à do Po-
sitivismo Filosófico comteano5, chegou ao apogeu com a Teoria Pura do Direito sitivismo Filosófico comteano5, chegou ao apogeu com a Teoria Pura do Direito
de Kelsen. O autor, preocupado em conferir à Ciência Jurídica uma autonomia de Kelsen. O autor, preocupado em conferir à Ciência Jurídica uma autonomia
que antes ela nunca havia alcançado devido à sua interpenetração com as outras que antes ela nunca havia alcançado devido à sua interpenetração com as outras

5. Embora o Positivismo Jurídico, em suas formas mais expressivas, caracterize-se pela adoção do 5. Embora o Positivismo Jurídico, em suas formas mais expressivas, caracterize-se pela adoção do
método lógico-dedutivo, enquanto o Positivismo Científico adota o método empírico-indutivo, método lógico-dedutivo, enquanto o Positivismo Científico adota o método empírico-indutivo,
ambas as concepções constituem expoentes das pretensões iluministas de racionalização do ambas as concepções constituem expoentes das pretensões iluministas de racionalização do
domínio social. domínio social.
O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico 221 O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico 221

geisteswissenschaften6 – realizou um corte epistemológico, visando a estudar a geisteswissenschaften6 – realizou um corte epistemológico, visando a estudar a
Ciência do Direito separadamente. Somada tal pretensão de autonomia à pre- Ciência do Direito separadamente. Somada tal pretensão de autonomia à pre-
gação da neutralidade axiológica, paradoxalmente um valor em si mesmo tão gação da neutralidade axiológica, paradoxalmente um valor em si mesmo tão
caro ao Positivismo, explica-se o nome de Teoria Pura escolhido por Kelsen caro ao Positivismo, explica-se o nome de Teoria Pura escolhido por Kelsen
para sua teoria. Faz-se importante salientar que Kelsen não negava a interferência para sua teoria. Faz-se importante salientar que Kelsen não negava a interferência
recíproca entre o direito e as outras áreas das Ciências Humanas. A sua proposta recíproca entre o direito e as outras áreas das Ciências Humanas. A sua proposta
metodológica, no entanto, pressupunha o recorte mental por ele efetuado em prol metodológica, no entanto, pressupunha o recorte mental por ele efetuado em prol
de sua pretensão de autonomia. de sua pretensão de autonomia.

3.1. O sistema jurídico na visão de Hans Kelsen 3.1. O sistema jurídico na visão de Hans Kelsen
O sistema normativo kelseniano é “autopoiético”; “O Direito regula sua O sistema normativo kelseniano é “autopoiético”; “O Direito regula sua
própria criação”7. Kelsen estabelece uma prevalência do aspecto dinâmico (pro- própria criação”7. Kelsen estabelece uma prevalência do aspecto dinâmico (pro-
cessual) do ordenamento jurídico sobre o seu aspecto estático (material). De tal cessual) do ordenamento jurídico sobre o seu aspecto estático (material). De tal
maneira, o modelo piramidal do ordenamento jurídico consagrado por tal autor8 maneira, o modelo piramidal do ordenamento jurídico consagrado por tal autor8
pressupõe uma relação de fundamentação (de baixo para cima) e derivação (de pressupõe uma relação de fundamentação (de baixo para cima) e derivação (de
cima para baixo) entre as normas jurídicas; a norma hierarquicamente inferior cima para baixo) entre as normas jurídicas; a norma hierarquicamente inferior
encontra seu fundamento de validade na norma hierarquicamente superior, da encontra seu fundamento de validade na norma hierarquicamente superior, da
qual deriva.9 A autoridade competente para produzir normas jurídicas encontra sua qual deriva.9 A autoridade competente para produzir normas jurídicas encontra sua
legitimidade na validade de seus atos, conferida pelo próprio sistema. Podemos legitimidade na validade de seus atos, conferida pelo próprio sistema. Podemos
verificar o funcionamento de tal mecanismo mediante breve análise de uma simples verificar o funcionamento de tal mecanismo mediante breve análise de uma simples
situação-modelo. Senão, vejamos. situação-modelo. Senão, vejamos.
O juiz e o legislador ordinário encontram na Constituição Federal a norma O juiz e o legislador ordinário encontram na Constituição Federal a norma
procedimental que lhes confere competência para criar direito dentro de suas procedimental que lhes confere competência para criar direito dentro de suas
esferas respectivas. Tendo a Constituição previsto o direito à vida, o legislador esferas respectivas. Tendo a Constituição previsto o direito à vida, o legislador
ordinário, fundado em uma norma procedimental, pôde criar a norma de Direito ordinário, fundado em uma norma procedimental, pôde criar a norma de Direito
Penal “não matarás”, consubstanciada no dispositivo de redação “matar alguém: 6 Penal “não matarás”, consubstanciada no dispositivo de redação “matar alguém: 6
a 20 anos”. O juiz, aplicador das normas jurídicas aos casos concretos, com base a 20 anos”. O juiz, aplicador das normas jurídicas aos casos concretos, com base
nesta última norma e em sua autoridade competente também conferida por norma nesta última norma e em sua autoridade competente também conferida por norma
procedimental constitucional pode criar a norma “condeno o réu à pena de 12 procedimental constitucional pode criar a norma “condeno o réu à pena de 12
anos de prisão por matar o sujeito X”. Teríamos, pois, as normas constitucionais anos de prisão por matar o sujeito X”. Teríamos, pois, as normas constitucionais
procedimentais e materiais na parte mais alta da pirâmide, a lei ordinária material procedimentais e materiais na parte mais alta da pirâmide, a lei ordinária material
no patamar intermediário e a sentença no nível inferior. no patamar intermediário e a sentença no nível inferior.

6. Tal seria o termo utilizado por Wilhelm Dilthey para referir-se às chamadas “ciências do espírito”, 6. Tal seria o termo utilizado por Wilhelm Dilthey para referir-se às chamadas “ciências do espírito”,
que se ocupariam do estudo dos objetos culturais, de acordo com a célebre classificação das regiões que se ocupariam do estudo dos objetos culturais, de acordo com a célebre classificação das regiões
ônticas de Edmund Husserl. ônticas de Edmund Husserl.
7. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito – introdução à problemática científica do direito; tradução 7. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito – introdução à problemática científica do direito; tradução
de J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006 de J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006
8. Embora atribua-se normalmente a idealização de tal modelo a Kelsen, efetivo responsável por 8. Embora atribua-se normalmente a idealização de tal modelo a Kelsen, efetivo responsável por
sua difusão, a idealização original de tal representação do sistema jurídico deve-se a seu discípulo sua difusão, a idealização original de tal representação do sistema jurídico deve-se a seu discípulo
Merckl. Merckl.
9. Ob. cit. 9. Ob. cit.
222 Daniel Oitaven Pamponet Miguel 222 Daniel Oitaven Pamponet Miguel

Ocorre que, como já dito anteriormente, Kelsen privilegia o aspecto dinâmico Ocorre que, como já dito anteriormente, Kelsen privilegia o aspecto dinâmico
do sistema, como já é característico do Positivismo e de seu ideal de segurança do sistema, como já é característico do Positivismo e de seu ideal de segurança
jurídica. Por consegüinte, o autor admite o contra legem, desde que em confor- jurídica. Por consegüinte, o autor admite o contra legem, desde que em confor-
midade com o sistema. Reportando-se mais uma vez à situação descrita acima, se midade com o sistema. Reportando-se mais uma vez à situação descrita acima, se
o juiz inocentasse o réu e o caso chegasse à última instância recursal sem haver o juiz inocentasse o réu e o caso chegasse à última instância recursal sem haver
modificação da sentença, a norma de decisão configurar-se-ia como definitivamente modificação da sentença, a norma de decisão configurar-se-ia como definitivamente
válida, com base na autoridade do órgão competente para julgar o recurso defini- válida, com base na autoridade do órgão competente para julgar o recurso defini-
tivo. Tal precedente constitui o que Kelsen chama de “norma de habilitação”. tivo. Tal precedente constitui o que Kelsen chama de “norma de habilitação”.

3.1.1. Tipos de interpretação jurídica e o desafio kelseniano 3.1.1. Tipos de interpretação jurídica e o desafio kelseniano
Para tratar da pretensão de neutralidade axiológica em Kelsen, é necessário dife- Para tratar da pretensão de neutralidade axiológica em Kelsen, é necessário dife-
renciar os tipos de interpretação que ele apresenta em sua obra. O primeiro deles seria renciar os tipos de interpretação que ele apresenta em sua obra. O primeiro deles seria
a interpretação do senso comum, realizada pelos destinatários das normas jurídicas. a interpretação do senso comum, realizada pelos destinatários das normas jurídicas.
Qualquer individuo, do mendigo ao milionário, realiza inúmeras interpretações de Qualquer individuo, do mendigo ao milionário, realiza inúmeras interpretações de
­normas jurídicas ao longo de sua experiência de vida. Tal interpretação cotidiana consti- ­normas jurídicas ao longo de sua experiência de vida. Tal interpretação cotidiana consti-
tui um pressuposto para a obediência à prescrição normativa (como poderia o tui um pressuposto para a obediência à prescrição normativa (como poderia o
sujeito, ­mediante sua conduta, respeitar as prescrições normativas sem entender sujeito, ­mediante sua conduta, respeitar as prescrições normativas sem entender
o que elas determinam?). Segundo Kelsen, tal tipo de interpretação não tem maior o que elas determinam?). Segundo Kelsen, tal tipo de interpretação não tem maior
importância pratica, já que, alem de não criar direito, não representa elemento importância pratica, já que, alem de não criar direito, não representa elemento
construtor do conhecimento j­urídico.10 construtor do conhecimento j­urídico.10
Deixando a interpretação do senso comum, realizada pelo destinatário da norma, Deixando a interpretação do senso comum, realizada pelo destinatário da norma,
um pouco de lado, visto não apresentar maior relevância no que concerne à discussão um pouco de lado, visto não apresentar maior relevância no que concerne à discussão
da situação do valor no âmbito da interpretação jurídica, tratemos da distinção reali- da situação do valor no âmbito da interpretação jurídica, tratemos da distinção reali-
zada pelo autor entre a interpretação científica ou não-autêntica e a interpre- zada pelo autor entre a interpretação científica ou não-autêntica e a interpre-
tação ­autêntica. tação ­autêntica.
A interpretação doutrinária é aquela realizada pelo cientista do Direito, o qual A interpretação doutrinária é aquela realizada pelo cientista do Direito, o qual
se limita a descrever as possibilidades de aplicação de uma norma jurídica, conti- se limita a descrever as possibilidades de aplicação de uma norma jurídica, conti-
das em sua moldura; é a atividade doutrinária por excelência, consistente em um das em sua moldura; é a atividade doutrinária por excelência, consistente em um
conhecer não-vinculativo (posto não ter autoridade conferida pelo sistema para conhecer não-vinculativo (posto não ter autoridade conferida pelo sistema para
criar direito) e axiologicamente neutro11. Por sua vez, a interpretação autêntica, criar direito) e axiologicamente neutro11. Por sua vez, a interpretação autêntica,

10. Peter Häberle, autor cujo trabalho insere-se no contexto do paradigma neoconstitucionalista, 10. Peter Häberle, autor cujo trabalho insere-se no contexto do paradigma neoconstitucionalista,
critica tal concepção. O direito, para Häberle, deve ser interpretado com base na Constituição, e critica tal concepção. O direito, para Häberle, deve ser interpretado com base na Constituição, e
esta deve ser interpretada, por sua vez, em consonância com as interpretações populares, infor- esta deve ser interpretada, por sua vez, em consonância com as interpretações populares, infor-
mais (interpretação lata, na linguagem do autor, em oposição à interpretação estrita, formal, dos mais (interpretação lata, na linguagem do autor, em oposição à interpretação estrita, formal, dos
órgãos oficiais). Tal alargamento do círculo de intérpretes da constituição acaba por configurar órgãos oficiais). Tal alargamento do círculo de intérpretes da constituição acaba por configurar
a interpretação do destinatário da norma como sustentáculo social, visto constituir a licitude a interpretação do destinatário da norma como sustentáculo social, visto constituir a licitude
como padrão dominante e contribuir para a máxima efetividade dos diplomas constitucionais. como padrão dominante e contribuir para a máxima efetividade dos diplomas constitucionais.
A influência de tal concepção na evolução dos ordenamentos jurídicos pode ser constatada na A influência de tal concepção na evolução dos ordenamentos jurídicos pode ser constatada na
figura do amicus curiae. figura do amicus curiae.
11. Sendo mero ato de conhecimento realizado por estudiosos desprovidos de autoridade decisória, 11. Sendo mero ato de conhecimento realizado por estudiosos desprovidos de autoridade decisória,
a interpretação doutrinária configura-se essencialmente como não-vinculante. Baseado em tal a interpretação doutrinária configura-se essencialmente como não-vinculante. Baseado em tal
O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico 223 O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico 223

realizada imprescindivelmente por um sujeito investido de competência para tanto realizada imprescindivelmente por um sujeito investido de competência para tanto
– donde ser vinculante (cria direito) –, consiste na escolha, mediante um ato de – donde ser vinculante (cria direito) –, consiste na escolha, mediante um ato de
vontade, de uma dentre as referidas possibilidades de aplicação da norma. vontade, de uma dentre as referidas possibilidades de aplicação da norma.
A interpretação científica constitui típico ato de conhecimento, desprovi- A interpretação científica constitui típico ato de conhecimento, desprovi-
do de carga axiológica; o doutrinador não deve emitir opinião sobre qual das do de carga axiológica; o doutrinador não deve emitir opinião sobre qual das
possibilidades deve ser aplicada, a menos que o faça manifestamente, sob pena possibilidades deve ser aplicada, a menos que o faça manifestamente, sob pena
de se comportar tal qual um advogado que argumenta valorativamente, apenas de se comportar tal qual um advogado que argumenta valorativamente, apenas
pretensamente realizando atividade científica.12 Utilizando-se da interpretação pretensamente realizando atividade científica.12 Utilizando-se da interpretação
doutrinária, a Ciência Jurídica, nos moldes da Teoria Pura do Direito, realiza-se; doutrinária, a Ciência Jurídica, nos moldes da Teoria Pura do Direito, realiza-se;
saber neutro, afastado dos elementos sociais e políticos à sua volta, (pretensamente) saber neutro, afastado dos elementos sociais e políticos à sua volta, (pretensamente)
estranhos ao Direito. estranhos ao Direito.
A interpretação autêntica é ato volitivo; tendo como substrato a autoridade A interpretação autêntica é ato volitivo; tendo como substrato a autoridade
que lhe foi formalmente outorgada pelo sistema jurídico estruturado pelo Estado, que lhe foi formalmente outorgada pelo sistema jurídico estruturado pelo Estado,
o intérprete, para fins de suprir a insuficiência do método13, realiza um ato de o intérprete, para fins de suprir a insuficiência do método13, realiza um ato de
vontade dotado de carga decisória. vontade dotado de carga decisória.
É mediante a interpretação autêntica que se desenvolve o caráter dinâmico do É mediante a interpretação autêntica que se desenvolve o caráter dinâmico do
sistema jurídico kelseniano; para que a relação de fundamentação e derivação entre sistema jurídico kelseniano; para que a relação de fundamentação e derivação entre
as normas hierarquizadas configure-se no caso concreto, é necessário que o órgão as normas hierarquizadas configure-se no caso concreto, é necessário que o órgão
estatal realize a interpretação das normas hierarquicamente superiores, as quais estatal realize a interpretação das normas hierarquicamente superiores, as quais
fundamentam formalmente sua competência e materialmente o próprio exercício fundamentam formalmente sua competência e materialmente o próprio exercício
desta, consubstanciado na criação de direito. Tal momento criativo consiste em desta, consubstanciado na criação de direito. Tal momento criativo consiste em
escolher volitivamente qual dos conteúdos possíveis de serem extraídos da fonte escolher volitivamente qual dos conteúdos possíveis de serem extraídos da fonte
formal deve ser aplicado. A autoridade competente, pois, cria direito com base formal deve ser aplicado. A autoridade competente, pois, cria direito com base
em seus valores; é o chamado momento ametódico. em seus valores; é o chamado momento ametódico.
Conforme explica Tércio Sampaio, tal é o momento em que o autor enfren- Conforme explica Tércio Sampaio, tal é o momento em que o autor enfren-
ta seu grande desafio (kelseniano), qual seja, salvar a coerência de sua teoria ta seu grande desafio (kelseniano), qual seja, salvar a coerência de sua teoria
(como pode a Dogmática Jurídica, tecnológica da decisão, pretensamente isenta (como pode a Dogmática Jurídica, tecnológica da decisão, pretensamente isenta
de cargas axiológicas, aceitar que essa mesma decisão, seu objetivo ultimo, seja de cargas axiológicas, aceitar que essa mesma decisão, seu objetivo ultimo, seja
desprovida de objetividade e segurança?).14 E ele consegue, posto que a decisão desprovida de objetividade e segurança?).14 E ele consegue, posto que a decisão

concepção, Miguel Reale recusa à doutrina a condição de fonte do direito. REALE, Miguel. Lições concepção, Miguel Reale recusa à doutrina a condição de fonte do direito. REALE, Miguel. Lições
Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
12. Tal consideração sobre a atividade advocatícia é exposta pelo próprio Kelsen ao tratar da inter- 12. Tal consideração sobre a atividade advocatícia é exposta pelo próprio Kelsen ao tratar da inter-
pretação jurídica. Ob. cit pretação jurídica. Ob. cit
13. Kelsen considera que o método não permite o estabelecimento de critérios avalorativos a serem 13. Kelsen considera que o método não permite o estabelecimento de critérios avalorativos a serem
utilizados na escolha de qual dos conteúdos deve preencher a moldura no caso concreto. Segundo utilizados na escolha de qual dos conteúdos deve preencher a moldura no caso concreto. Segundo
o autor, é possível ao intérprete autêntico utilizar-se do método científico até o momento em que o autor, é possível ao intérprete autêntico utilizar-se do método científico até o momento em que
extrai da moldura normativa os diversos conteúdos idôneos a preenchê-la. A partir deste ponto, a extrai da moldura normativa os diversos conteúdos idôneos a preenchê-la. A partir deste ponto, a
interpretação autêntica diferencia-se da doutrinária, visto que a decisão sobre qual das possiblidades interpretação autêntica diferencia-se da doutrinária, visto que a decisão sobre qual das possiblidades
normativas será aplicada ao caso concreto não pode ser encontrada metodologicamente, donde normativas será aplicada ao caso concreto não pode ser encontrada metodologicamente, donde
resulta seu caráter essencialmente volitivo. resulta seu caráter essencialmente volitivo.
14. Ob.cit. 14. Ob.cit.
224 Daniel Oitaven Pamponet Miguel 224 Daniel Oitaven Pamponet Miguel

do aplicador continua, em ultima ratio, fundada na competência atribuída pelo do aplicador continua, em ultima ratio, fundada na competência atribuída pelo
sistema à autoridade. Caracteriza-se, assim, a matriz positivista do pensamento sistema à autoridade. Caracteriza-se, assim, a matriz positivista do pensamento
de Kelsen: o direito é um ato de vontade; a norma, posta pelo homem dotado de de Kelsen: o direito é um ato de vontade; a norma, posta pelo homem dotado de
autoridade, é dotada de coercibilidade. autoridade, é dotada de coercibilidade.
Nesse momento, Kelsen aproxima-se de Herbert Hart, que considera o ­aspecto Nesse momento, Kelsen aproxima-se de Herbert Hart, que considera o ­aspecto
formal da norma uma “janela normativa”, a qual deve ser preenchida de acordo formal da norma uma “janela normativa”, a qual deve ser preenchida de acordo
com a discricionariedade15 do aplicador. Tal discricionariedade também implica com a discricionariedade15 do aplicador. Tal discricionariedade também implica
valoração, único meio de suprir a vagueza característica da linguagem; a norma valoração, único meio de suprir a vagueza característica da linguagem; a norma
possui uma margem de indeterminação16. Nesse ponto, Kelsen, que considera possui uma margem de indeterminação16. Nesse ponto, Kelsen, que considera
a moldura um “marco de possibilidades”, chega a indicar que o legislador, não a moldura um “marco de possibilidades”, chega a indicar que o legislador, não
raramente, elabora a norma de forma intencionalmente vaga, com o fim de conferir raramente, elabora a norma de forma intencionalmente vaga, com o fim de conferir
a seu aplicador maiores p­ ossibilidades de aplicação. a seu aplicador maiores p­ ossibilidades de aplicação.

4. CONCLUSÕES A RESPEITO DO PENSAMENTO NORMATIVISTA 4. CONCLUSÕES A RESPEITO DO PENSAMENTO NORMATIVISTA


Ao compreender o direito como ato de vontade, o Normativismo, em con- Ao compreender o direito como ato de vontade, o Normativismo, em con-
sonância com seu corte epistemológico, desconsidera a aferição do valor justiça. sonância com seu corte epistemológico, desconsidera a aferição do valor justiça.
Seu parâmetro de legitimidade é a validade formal; estando o intérprete dotado Seu parâmetro de legitimidade é a validade formal; estando o intérprete dotado
de autoridade competente conferida pelo sistema jurídico, suas decisões confi- de autoridade competente conferida pelo sistema jurídico, suas decisões confi-
gurar-se-ão como válidas. A Dogmática Jurídica característica do Positivismo gurar-se-ão como válidas. A Dogmática Jurídica característica do Positivismo
toma como valor intrínseco a decidibilidade dos conflitos, e não o caráter justo toma como valor intrínseco a decidibilidade dos conflitos, e não o caráter justo
ou injusto das decisões. ou injusto das decisões.
Ocorre que, malgrado a criação de ficções metodológicas como o legislador Ocorre que, malgrado a criação de ficções metodológicas como o legislador
racional, a dicotomia vontade da lei-vontade do legislador e os chamados métodos racional, a dicotomia vontade da lei-vontade do legislador e os chamados métodos
clássicos de interpretação (sistemático, teleológico, etc...), a dificuldade de aplica- clássicos de interpretação (sistemático, teleológico, etc...), a dificuldade de aplica-
ção das normas implica grande margem de segurança quanto às decisões tomadas ção das normas implica grande margem de segurança quanto às decisões tomadas
volitivamente, mormente nos denominados hard cases. O Normativismo, pois, volitivamente, mormente nos denominados hard cases. O Normativismo, pois,
encontrou respostas, embora não definitivas, para os problemas da unidade17, da encontrou respostas, embora não definitivas, para os problemas da unidade17, da
coerência e da completude18, mas abdicou da busca de um meio idôneo a afastar coerência e da completude18, mas abdicou da busca de um meio idôneo a afastar
a subjetividade do intérprete característica do momento ametódico. a subjetividade do intérprete característica do momento ametódico.

15. A noção de discricionariedade, idealizada pela doutrina francesa, consiste, conforme o pensa- 15. A noção de discricionariedade, idealizada pela doutrina francesa, consiste, conforme o pensa-
mento administrativista brasileiro dominante, em um “juízo de conveniência e oportunidade” mento administrativista brasileiro dominante, em um “juízo de conveniência e oportunidade”
a ser realizado por uma autoridade competente para o cumprimento de uma dada função. Em a ser realizado por uma autoridade competente para o cumprimento de uma dada função. Em
certas situações, as autoridades estatais, sejam elas administrativas, legislativas ou judiciárias, certas situações, as autoridades estatais, sejam elas administrativas, legislativas ou judiciárias,
não estarão plenamente adstritas a uma regra superior que fosse capaz de tolher qualquer margem não estarão plenamente adstritas a uma regra superior que fosse capaz de tolher qualquer margem
de flexibilidade em sua atuação. de flexibilidade em sua atuação.
16. HART, Herbert. O Conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes, Lisboa, Fundação Ca- 16. HART, Herbert. O Conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes, Lisboa, Fundação Ca-
louste Gulbenkian, 2001, 3ª Edição. louste Gulbenkian, 2001, 3ª Edição.
17. Segundo Orlando Gomes, tal é um dos dois momentos em que Kelsen admite a invasão da moral e 17. Segundo Orlando Gomes, tal é um dos dois momentos em que Kelsen admite a invasão da moral e
da política no sistema jurídico, sendo o outro o supramencionado “momento ametódico”. GOMES, da política no sistema jurídico, sendo o outro o supramencionado “momento ametódico”. GOMES,
Orlando. Marx e Kelsen. Salvador: Publicações da Universidade da Bahia, 1959. Orlando. Marx e Kelsen. Salvador: Publicações da Universidade da Bahia, 1959.
18. A questão da unidade do ordenamento jurídico foi solucionada por Kelsen mediante a adoção do 18. A questão da unidade do ordenamento jurídico foi solucionada por Kelsen mediante a adoção do
postulado gnoseológico da grundnorm (norma hipotético-fundamental). A exigência de coerência, postulado gnoseológico da grundnorm (norma hipotético-fundamental). A exigência de coerência,
O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico 225 O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico 225

4.1. A Nova Hermenêutica 4.1. A Nova Hermenêutica


Como reação à abnegação normativista consubstanciada no momento ame- Como reação à abnegação normativista consubstanciada no momento ame-
tódico, surgiu, pois, a Nova Hermenêutica, que adota a combinação entre justiça tódico, surgiu, pois, a Nova Hermenêutica, que adota a combinação entre justiça
e objetividade como padrão de legitimidade. Tal movimento foi deflagrado por e objetividade como padrão de legitimidade. Tal movimento foi deflagrado por
Ronald Dworkin, o qual substitui a lógica formal positivista pela racionalidade Ronald Dworkin, o qual substitui a lógica formal positivista pela racionalidade
material de valorações. O direito, segundo Dworkin, deve ser aplicado em respeito material de valorações. O direito, segundo Dworkin, deve ser aplicado em respeito
à sua Integridade histórica por um “juiz Hércules”, qual seja, aquele que busca a à sua Integridade histórica por um “juiz Hércules”, qual seja, aquele que busca a
decisão correta com base nos valores constituídos pela comunidade jurídica.19 Tal decisão correta com base nos valores constituídos pela comunidade jurídica.19 Tal
aplicação se dá numa relação de densificação20 dos princípios para o caso concreto aplicação se dá numa relação de densificação20 dos princípios para o caso concreto
mediante as regras, comandos que direcionam em forma de hipótese normativa mediante as regras, comandos que direcionam em forma de hipótese normativa
os valores consubstanciados nos princípios21-22. os valores consubstanciados nos princípios21-22.

4.1.1. A dicotomia vontade da lei-vontade do legislador 4.1.1. A dicotomia vontade da lei-vontade do legislador
A dicotomia vontade da lei-vontade do legislador constitui objeto de uma A dicotomia vontade da lei-vontade do legislador constitui objeto de uma
discussão que, assim como as questões do legislador racional e dos métodos de discussão que, assim como as questões do legislador racional e dos métodos de
interpretação, só é considerada relevante dentro do paradigma do Positivismo Ju- interpretação, só é considerada relevante dentro do paradigma do Positivismo Ju-
rídico. O surgimento da Nova Hermenêutica, a qual, com Dworkin, atribui grande rídico. O surgimento da Nova Hermenêutica, a qual, com Dworkin, atribui grande
relevância aos outrora “desprezados” princípios (espúrias invasões da moral no relevância aos outrora “desprezados” princípios (espúrias invasões da moral no

por sua vez, tornou-se vencível com o advento dos critérios de resolução hierárquico, especial e por sua vez, tornou-se vencível com o advento dos critérios de resolução hierárquico, especial e
temporal. A completude, por sua vez, é afastada pela possibilidade de que a lacuna material seja temporal. A completude, por sua vez, é afastada pela possibilidade de que a lacuna material seja
preenchida pelo aplicador investido de autoridade competente e, se necessário, posteriormente preenchida pelo aplicador investido de autoridade competente e, se necessário, posteriormente
habilitada. habilitada.
19. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 19. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
20. Diz-se, pois, que o caminho percorrido dos princípios às regras consubstancia uma “redução de 20. Diz-se, pois, que o caminho percorrido dos princípios às regras consubstancia uma “redução de
complexidade”, termo utilizado posteriormente, embora em outro contexto e partindo de pressu- complexidade”, termo utilizado posteriormente, embora em outro contexto e partindo de pressu-
postos diversos, por Niklas Lühmann. postos diversos, por Niklas Lühmann.
21. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 21. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
22. A clássica teoria dos princípios e regras adota três critérios básicos de diferenciação entre tais 22. A clássica teoria dos princípios e regras adota três critérios básicos de diferenciação entre tais
espécies normativas. O primeiro deles, qual seja, o do caráter hipotético-condicional, considera espécies normativas. O primeiro deles, qual seja, o do caráter hipotético-condicional, considera
que as regras são formuladas mediante a previsão de uma fattispecie, cuja incidência sobre um que as regras são formuladas mediante a previsão de uma fattispecie, cuja incidência sobre um
fato concreto implica sua juridicização e a correspondente conseqüência jurídica, enquanto os fato concreto implica sua juridicização e a correspondente conseqüência jurídica, enquanto os
princípios funcionam como vetores axiológicos da aplicação de tais regras ao caso concreto, princípios funcionam como vetores axiológicos da aplicação de tais regras ao caso concreto,
numa relação de densificação. Os outros dois critérios – modo final de aplicação e conflito nor- numa relação de densificação. Os outros dois critérios – modo final de aplicação e conflito nor-
mativo – interpenetram-se, constituindo o fundamento da distinção forte entre regras e princípios mativo – interpenetram-se, constituindo o fundamento da distinção forte entre regras e princípios
defendida por Ronald Dworkin e Robert Alexy. Tal raciocínio baseia-se na premissa de que as defendida por Ronald Dworkin e Robert Alexy. Tal raciocínio baseia-se na premissa de que as
regras são aplicadas mediante subsunção – de onde ocorre a idéia de aplicação all-or-nothing –, e regras são aplicadas mediante subsunção – de onde ocorre a idéia de aplicação all-or-nothing –, e
não por ponderação, como ocorre com os princípios. De tal maneira, a aplicação principiológica não por ponderação, como ocorre com os princípios. De tal maneira, a aplicação principiológica
pressupõe uma dimensão de peso a ser determinada em face do caso concreto, donde decorre o pressupõe uma dimensão de peso a ser determinada em face do caso concreto, donde decorre o
entendimento de que o conflito entre normas de tais espécies resolve-se no plano da eficácia e entendimento de que o conflito entre normas de tais espécies resolve-se no plano da eficácia e
mediante uma relação de prevalência, e não prima facie, no plano da validade, como, via de regra, mediante uma relação de prevalência, e não prima facie, no plano da validade, como, via de regra,
acontece com as regras, resultando na exclusão de uma delas do ordenamento jurídico. Para um acontece com as regras, resultando na exclusão de uma delas do ordenamento jurídico. Para um
maior aprofundamento sobre o tema, ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à maior aprofundamento sobre o tema, ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à
aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003.
226 Daniel Oitaven Pamponet Miguel 226 Daniel Oitaven Pamponet Miguel

direito, segundo Kelsen), extingue a necessidade de se buscar a vontade da lei ou direito, segundo Kelsen), extingue a necessidade de se buscar a vontade da lei ou
do legislador como “fórmula” de resolução de conflitos, especialmente no tocante do legislador como “fórmula” de resolução de conflitos, especialmente no tocante
às decisões em hard cases. Tal necessidade, pois, só subsiste enquanto não se ad- às decisões em hard cases. Tal necessidade, pois, só subsiste enquanto não se ad-
mite a regra como mediação entre os princípios e o caso concreto. A conformação mite a regra como mediação entre os princípios e o caso concreto. A conformação
entre princípios resolve, pois, melhor um caso concreto do que a busca de “atas de entre princípios resolve, pois, melhor um caso concreto do que a busca de “atas de
reuniões do legislador histórico” ou da “vontade consubstanciada na lei” (como se reuniões do legislador histórico” ou da “vontade consubstanciada na lei” (como se
o ente objeto da interpretação constituísse um ser autônomo), sendo mais idônea à o ente objeto da interpretação constituísse um ser autônomo), sendo mais idônea à
realização da pretensão de decidibilidade de conflitos consubstanciada no sistema realização da pretensão de decidibilidade de conflitos consubstanciada no sistema
jurídico, segundo os ditames da Dogmática Juridica. jurídico, segundo os ditames da Dogmática Juridica.
Cabe, no entanto, explicar melhor a referida dicotomia. Os defensores da Cabe, no entanto, explicar melhor a referida dicotomia. Os defensores da
visão de que o objetivo da interpretação é encontrar a vontade do legislador (mens visão de que o objetivo da interpretação é encontrar a vontade do legislador (mens
legislatoris) acreditam que a proximidade entre o legislador histórico e o momento legislatoris) acreditam que a proximidade entre o legislador histórico e o momento
da criação da lei permite uma maior fidelidade ao objetivo de sua criação por parte da criação da lei permite uma maior fidelidade ao objetivo de sua criação por parte
do interprete que “descubra” essa vontade. Os defensores da vontade da lei (mens do interprete que “descubra” essa vontade. Os defensores da vontade da lei (mens
legis), por sua vez, retrucam com a afirmação de que a mutabilidade social deve legis), por sua vez, retrucam com a afirmação de que a mutabilidade social deve
ser acompanhada por mudanças no sentido da interpretação, as quais devem ser ser acompanhada por mudanças no sentido da interpretação, as quais devem ser
concretizadas mediante a ação da jurisprudência, que deve se voltar para o “fim concretizadas mediante a ação da jurisprudência, que deve se voltar para o “fim
consubstanciado no texto da lei” (conformação entre os métodos de interpretação consubstanciado no texto da lei” (conformação entre os métodos de interpretação
literal e teleológica), sob pena de “engessamento” do direito. Os subjetivistas, literal e teleológica), sob pena de “engessamento” do direito. Os subjetivistas,
pois, tendem ao conservadorismo, posto que sobrepõem a vontade de um indivíduo pois, tendem ao conservadorismo, posto que sobrepõem a vontade de um indivíduo
ou colegiado num dado momento histórico às necessidades sociais, modificadas ou colegiado num dado momento histórico às necessidades sociais, modificadas
constantemente. Partindo do paradigma positivista, parece mais adequado o constantemente. Partindo do paradigma positivista, parece mais adequado o
pensamento objetivista, visto ao menos representar uma tentativa de conformar pensamento objetivista, visto ao menos representar uma tentativa de conformar
o direito à realidade social e ao momento histórico de sua aplicação, objetivando o direito à realidade social e ao momento histórico de sua aplicação, objetivando
interpretar conforme a esfera de faticidade. Tal ficção, no entanto, configura-se interpretar conforme a esfera de faticidade. Tal ficção, no entanto, configura-se
como insuficiente no tocante à resolução de conflitos, visto padecer do mesmo como insuficiente no tocante à resolução de conflitos, visto padecer do mesmo
problema identificado por Kelsen quanto aos métodos de interpretação: não há problema identificado por Kelsen quanto aos métodos de interpretação: não há
método idôneo a orientar o intérprete quanto à decisão de qual das possibilidades método idôneo a orientar o intérprete quanto à decisão de qual das possibilidades
normativas extraídas da moldura deve ser aplicada ao caso concreto. normativas extraídas da moldura deve ser aplicada ao caso concreto.
A decisão, segundo a Hermenêutica dos Princípios, dar-se-á mediante um A decisão, segundo a Hermenêutica dos Princípios, dar-se-á mediante um
processo de densificação a ser conduzido pelo intérprete, no qual se percorre o processo de densificação a ser conduzido pelo intérprete, no qual se percorre o
caminho das normas mais abertas (constitucionais) ao caso concreto. Assim, esgo- caminho das normas mais abertas (constitucionais) ao caso concreto. Assim, esgo-
ta-se a importância da discussão entre a vontade da lei e a vontade do legislador, ta-se a importância da discussão entre a vontade da lei e a vontade do legislador,
visto os princípios proporcionarem parâmetros mais amplos (e, portanto, mais visto os princípios proporcionarem parâmetros mais amplos (e, portanto, mais
afastados do logicismo e da pretensa exatidão positivista) de interpretação das afastados do logicismo e da pretensa exatidão positivista) de interpretação das
regras, conferindo ao intérprete uma maior margem de maleabilidade na resolução regras, conferindo ao intérprete uma maior margem de maleabilidade na resolução
dos hard cases do que tal construção positivista, outrora colocada em voga visando dos hard cases do que tal construção positivista, outrora colocada em voga visando
a combater o problema da completude do ordenamento jurídico. a combater o problema da completude do ordenamento jurídico.
O pensamento de Dworkin, longe de alcançar uma resposta definitiva para os O pensamento de Dworkin, longe de alcançar uma resposta definitiva para os
problemas do direito, foi seguido e confrontado pelo de muitos outros jurisfilóso- problemas do direito, foi seguido e confrontado pelo de muitos outros jurisfilóso-
fos, incluindo o de Lühmann, neopositivista que revive o caráter autopoiético do fos, incluindo o de Lühmann, neopositivista que revive o caráter autopoiético do
O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico 227 O Paradigma Hermenêutico do Positivismo Jurídico 227

pensamento kelseniano dentro da necessidade de estabilização de expectativas. pensamento kelseniano dentro da necessidade de estabilização de expectativas.
Com o advento da Escola Analítica, pois, podemos concluir que o Positivismo, Com o advento da Escola Analítica, pois, podemos concluir que o Positivismo,
longe de morrer, ainda está em voga; seu reinado absoluto dos tempos modernos, longe de morrer, ainda está em voga; seu reinado absoluto dos tempos modernos,
no entanto, se esvaiu. no entanto, se esvaiu.

5. REFERÊNCIAS 5. REFERÊNCIAS
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
São Paulo: Malheiros, 2003 São Paulo: Malheiros, 2003
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
________. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999 ________. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão,
dominação, São Paulo, 4.ed. Atlas, 2003. dominação, São Paulo, 4.ed. Atlas, 2003.
GOMES, Orlando. Marx e Kelsen. Salvador: Publicações da Universidade da Bahia, GOMES, Orlando. Marx e Kelsen. Salvador: Publicações da Universidade da Bahia,
1959. 1959.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A sociedade aberta dos interpretes da HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A sociedade aberta dos interpretes da
Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Cons- Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Cons-
tituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris tituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor, 1997. Editor, 1997.
HART, Herbert, O Conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes, Lisboa, Fundação HART, Herbert, O Conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2001, 3ª Edição. Calouste Gulbenkian, 2001, 3ª Edição.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito – introdução à problemática científica do direito; KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito – introdução à problemática científica do direito;
tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella – 4, ed. – São Paulo: Editora Revista dos tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella – 4, ed. – São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006 Tribunais, 2006
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. (Para um novo senso comum: a ciência, experiência. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. (Para um novo senso comum: a ciência,
o direito e a política na transição paradigmática, v. 1). o direito e a política na transição paradigmática, v. 1).
Capítulo XVI Capítulo XVI
O consentimento do ofendido e a O consentimento do ofendido e a
capacidade para consentir: análise crítica capacidade para consentir: análise crítica

Devapi Souza Sampaio* Devapi Souza Sampaio*


Rafael de Souza Figueiredo** Rafael de Souza Figueiredo**

“Da finalidade visada pela busca do fundamento, nasce a ilusão do “Da finalidade visada pela busca do fundamento, nasce a ilusão do
fundamento absoluto” (Norberto Bobbio). fundamento absoluto” (Norberto Bobbio).

Sumário • 1. Aspectos Introdutórios – 2. Capacidade de Consentimento: Legislação Comparada Sumário • 1. Aspectos Introdutórios – 2. Capacidade de Consentimento: Legislação Comparada
– 3. Natureza Jurídica do Consentimento do Ofendido – 4. Critérios Definidores da Capacidade de – 3. Natureza Jurídica do Consentimento do Ofendido – 4. Critérios Definidores da Capacidade de
consentir; 4.1. Critério Etário; 4.2. Critério Subjetivo – 5. Conclusões. consentir; 4.1. Critério Etário; 4.2. Critério Subjetivo – 5. Conclusões.

1. Aspectos Introdutórios 1. Aspectos Introdutórios


O poder punitivo estatal está intrinsecamente relacionado com o conflito O poder punitivo estatal está intrinsecamente relacionado com o conflito
existente entre a autonomia e projeção da liberdade do indivíduo e as expectativas existente entre a autonomia e projeção da liberdade do indivíduo e as expectativas
da coletividade. Conforme preleciona Costa Andrade1, “é por demais conhecido o da coletividade. Conforme preleciona Costa Andrade1, “é por demais conhecido o
significado da tensão entre ‘a paixão da liberdade’ e a ‘paixão de ordem’”. Frise- significado da tensão entre ‘a paixão da liberdade’ e a ‘paixão de ordem’”. Frise-
se, no entanto, que é necessário haver equilíbrio entre tais impulsos, sob pena de se, no entanto, que é necessário haver equilíbrio entre tais impulsos, sob pena de
desembocarmos no autoritarismo ou, diametralmente, na anarquia. desembocarmos no autoritarismo ou, diametralmente, na anarquia.
Neste sentido, a repressão penal somente encontrará seu equilíbrio quando Neste sentido, a repressão penal somente encontrará seu equilíbrio quando
limitada pelo princípio da subsidiariedade. É dizer, o Direito Penal deve ser a limitada pelo princípio da subsidiariedade. É dizer, o Direito Penal deve ser a
última dentre todas as medidas a serem consideradas, tutelando unicamente os última dentre todas as medidas a serem consideradas, tutelando unicamente os
bens jurídicos mais caros à sociedade2. O consentimento do ofendido insere-se bens jurídicos mais caros à sociedade2. O consentimento do ofendido insere-se
neste contexto como importante fator de preservação da intervenção mínima, neste contexto como importante fator de preservação da intervenção mínima,
tornando desnecessário o controle penal de determinadas condutas que, “a priori”, tornando desnecessário o controle penal de determinadas condutas que, “a priori”,
seriam puníveis. seriam puníveis.
Constitui-se, o consentimento do ofendido, em manifestação válida do titular Constitui-se, o consentimento do ofendido, em manifestação válida do titular
do bem jurídico, que, voluntariamente, renuncia à proteção penal do bem, subme- do bem jurídico, que, voluntariamente, renuncia à proteção penal do bem, subme-
tendo-o a risco ou sacrifício. A doutrina majoritária distingue entre o consentimento tendo-o a risco ou sacrifício. A doutrina majoritária distingue entre o consentimento

* Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. * Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
** Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. ** Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
1. ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra: Coimbra 1. ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra: Coimbra
Editora, 1991, p. 30. Editora, 1991, p. 30.
2. ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução de Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2. ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução de Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 35. 2006, p. 35.
230 Devapi Souza Sampaio | Rafael de Souza Figueiredo 230 Devapi Souza Sampaio | Rafael de Souza Figueiredo

que exclui a tipicidade (acordo) e o que funciona como causa supralegal de exclusão que exclui a tipicidade (acordo) e o que funciona como causa supralegal de ex-
da antijuridicidade. Todavia, parece-nos mais acertado o entendimento de Roxin, clusão da antijuridicidade. Todavia, parece-nos mais acertado o entendimento de
para quem o consentimento do titular do bem jurídico afasta a tipicidade. Cirino Roxin, para quem o consentimento do titular do bem jurídico afasta a tipicidade.
dos Santos, explicitando a opinião do mestre alemão, aduz: Cirino dos Santos, explicitando a opinião do mestre alemão, aduz:
O consentimento real do ofendido, no caso de bem jurídico disponível, tem eficácia O consentimento real do ofendido, no caso de bem jurídico disponível, tem eficácia
excludente da tipicidade da ação, porque o tipo legal protege a vontade do portador excludente da tipicidade da ação, porque o tipo legal protege a vontade do portador
do bem jurídico, cuja renúncia representa exercício de liberdade constitucional3. do bem jurídico, cuja renúncia representa exercício de liberdade constitucional3.
Diante de tal posicionamento, entendemos ser irrelevante a distinção entre Diante de tal posicionamento, entendemos ser irrelevante a distinção entre
consentimento e acordo, existindo apenas o consentimento do titular do bem consentimento e acordo, existindo apenas o consentimento do titular do bem
jurídico, cuja conseqüência é a exclusão da tipicidade. jurídico, cuja conseqüência é a exclusão da tipicidade.
O consentimento, para ser válido e eficaz, deve observar alguns requisitos: a) O consentimento, para ser válido e eficaz, deve observar alguns requisitos: a)
disponibilidade do bem; b) consciência do consentimento por parte do agente; c) disponibilidade do bem; b) consciência do consentimento por parte do agente; c)
a aquiescência necessita ser prévia ou concomitante; d) o agente deve atuar nos a aquiescência necessita ser prévia ou concomitante; d) o agente deve atuar nos
limites do consentimento; e) o titular do bem deve ser capaz de consentir4. limites do consentimento; e) o titular do bem deve ser capaz de consentir4.
É acerca deste último requisito, capacidade de consentir, que tratará o presente É acerca deste último requisito, capacidade de consentir, que tratará o presente
trabalho. Questão duvidosa é a que visa definir um critério para aferir essa capaci- trabalho. Questão duvidosa é a que visa definir um critério para aferir essa capaci-
dade. Tradicionalmente, a doutrina nacional utiliza um critério etário, sustentando dade. Tradicionalmente, a doutrina nacional utiliza um critério etário, sustentando
que é capaz de consentir o maior de 18 anos, em analogia com a imputabilidade que é capaz de consentir o maior de 18 anos, em analogia com a imputabilidade
penal ou com a capacidade civil.5 penal ou com a capacidade civil.5
Data venia, ousamos divergir de tais posicionamentos. Entendemos, na esteira Data venia, ousamos divergir de tais posicionamentos. Entendemos, na esteira
de Juarez Tavares6 e Wessels7, que não se deve estabelecer critérios estáticos, sendo de Juarez Tavares6 e Wessels7, que não se deve estabelecer critérios estáticos, sendo
aferível a capacidade única e exclusivamente quando do exame do caso concreto. aferível a capacidade única e exclusivamente quando do exame do caso concreto.
Mostraremos, outrossim, que referidas posições doutrinárias são, em verdade, Mostraremos, outrossim, que referidas posições doutrinárias são, em verdade,
construções em malam partem, vedadas pelo nosso ordenamento jurídico. construções em malam partem, vedadas pelo nosso ordenamento jurídico.

2. Capacidade de Consentimento: Legislação Comparada 2. Capacidade de Consentimento: Legislação Comparada


É inegável a importância do estudo do direito comparado como método de É inegável a importância do estudo do direito comparado como método de
investigação e compreensão do direito. Nos dizeres de Zaffaroni e Batista: “É fácil investigação e compreensão do direito. Nos dizeres de Zaffaroni e Batista: “É fácil

2. ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução de Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, 2. ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução de Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p.35. p.35.
3. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006, p.263. 3. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006, p.263.
4. Cf. PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. Parte Geral, v. I, 5ª. ed. São Paulo: 4. Cf. PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. Parte Geral, v. I, 5ª. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2005, p.402. Revista dos Tribunais, 2005, p.402.
5. Neste sentido, JESUS, E. Damásio. Direito Penal (parte geral). 26ª ed., v.I, São Paulo: Saraiva, 5. Neste sentido, JESUS, E. Damásio. Direito Penal (parte geral). 26ª ed., v.I, São Paulo: Saraiva,
2003, p.403. e PIERANGELI, José Henrique. O Consentimento do Ofendido na Teoria do Delito. 2003, p.403. e PIERANGELI, José Henrique. O Consentimento do Ofendido na Teoria do Delito.
3ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.138. 3ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.138.
6. TAVARES, Juarez. O consentimento do ofendido no direito penal. Revista da Faculdade de Direito 6. TAVARES, Juarez. O consentimento do ofendido no direito penal. Revista da Faculdade de Direito
da Ufpr, Curitiba, 1969. Disponível em <http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/arti- da Ufpr, Curitiba, 1969. Disponível em <http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/arti-
cle/view/7163/5114>. Acessado em: 13 jun. 2007. cle/view/7163/5114>. Acessado em: 13 jun. 2007.
7. WESSELS, Johannes. Direito Penal – Parte Geral. Tradução: Juarez Tavares. Porto Alegre: 7. WESSELS, Johannes. Direito Penal – Parte Geral. Tradução: Juarez Tavares. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1976, p. 78-79. Sergio Antonio Fabris, 1976, p. 78-79.
O consentimento do ofendido e a capacidade para consentir: análise crítica 231 O consentimento do ofendido e a capacidade para consentir: análise crítica 231

comprovar não haver sistemas que sejam construídos sem receber influências de comprovar não haver sistemas que sejam construídos sem receber influências de
outros, estruturados para outros países”8 outros, estruturados para outros países”8
Nada obstante a importância do consentimento do ofendido, são raros os Có- Nada obstante a importância do consentimento do ofendido, são raros os Có-
digos Penais que tratam desse instituto em suas partes gerais, sendo tarefa ainda digos Penais que tratam desse instituto em suas partes gerais, sendo tarefa ainda
mais árdua encontrar dispositivos normativos que especifiquem a capacidade de mais árdua encontrar dispositivos normativos que especifiquem a capacidade de
consentir. Como lembra Costa Andrade, “a maioria das codificações limita-se a consentir. Como lembra Costa Andrade, “a maioria das codificações limita-se a
algumas normas esparsas na Parte Especial, regulando apenas aspectos parcelares algumas normas esparsas na Parte Especial, regulando apenas aspectos parcelares
do consentimento”9. do consentimento”9.
A análise das partes gerais das diversas codificações penais alienígenas, no A análise das partes gerais das diversas codificações penais alienígenas, no
que se refere à capacidade de consentimento, conduz-nos a uma divisão em três que se refere à capacidade de consentimento, conduz-nos a uma divisão em três
categorias. Na primeira, encontram-se os Códigos que regulamentam o consen- categorias. Na primeira, encontram-se os Códigos que regulamentam o consen-
timento do ofendido e estabelecem um critério definidor para a capacidade de timento do ofendido e estabelecem um critério definidor para a capacidade de
consentir. Enquadra-se nesta delimitação, v.g., o Código Penal Espanhol, que consentir. Enquadra-se nesta delimitação, v.g., o Código Penal Espanhol, que
preceitua, in verbis: preceitua, in verbis:
Art. 155 – En los delitos de lesiones, si ha mediado el consentimiento válida, libre, Art. 155 – En los delitos de lesiones, si ha mediado el consentimiento válida, libre,
espontánea y expresamente emitido del ofendido, se impondrá la pena inferior en espontánea y expresamente emitido del ofendido, se impondrá la pena inferior en
uno o dos grados. No será válido el consentimiento otorgado por un menor de edad uno o dos grados. No será válido el consentimiento otorgado por un menor de edad
o un incapaz (grifo nosso). o un incapaz (grifo nosso).

Bem assim, o Código Penal Português: Bem assim, o Código Penal Português:
Art. 38.º – Consentimento. Art. 38.º – Consentimento.

“1. Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude “1. Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude
do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto
não ofender os bons costumes. não ofender os bons costumes.

“2. O consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade “2. O consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade
séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, e pode ser séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, e pode ser
livremente revogado até à execução do facto. livremente revogado até à execução do facto.

“3. O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 14 anos e “3. O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 14 anos e
possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento
em que o presta (grifo nosso). em que o presta (grifo nosso).

Em um segundo grupo estão aqueles Códigos que tratam apenas de aspectos Em um segundo grupo estão aqueles Códigos que tratam apenas de aspectos
gerais do consentimento, sendo omissos no que diz respeito à definição da capa- gerais do consentimento, sendo omissos no que diz respeito à definição da capa-
cidade de consentir. Citamos, a título exemplificativo, o Código Penal alemão: cidade de consentir. Citamos, a título exemplificativo, o Código Penal alemão:

8. BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito 8. BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito
Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2003; p.189. Revan, 2003; p.189.
9. ANDRADE, op. cit., p.11. 9. ANDRADE, op. cit., p.11.
232 Devapi Souza Sampaio | Rafael de Souza Figueiredo 232 Devapi Souza Sampaio | Rafael de Souza Figueiredo

§ 228: Quem efetua uma lesão pessoal com o consentimento do lesionado, então § 228: Quem efetua uma lesão pessoal com o consentimento do lesionado, então
só atua antijuridicamente quando o fato, apesar do consentimento, vá de encontro só atua antijuridicamente quando o fato, apesar do consentimento, vá de encontro
aos bons costumes. aos bons costumes.

Da mesma forma, o Código Penal italiano, no seu art. 50: “Não é punível Da mesma forma, o Código Penal italiano, no seu art. 50: “Não é punível
quem ofende ou põe em perigo um direito, com consentimento da pessoa que dele quem ofende ou põe em perigo um direito, com consentimento da pessoa que dele
pode validamente dispor.”. Lembramos também os Códigos Penais mexicano, pode validamente dispor.”. Lembramos também os Códigos Penais mexicano,
colombiano, uruguaio e costarriquenho. colombiano, uruguaio e costarriquenho.
Num terceiro grupo, por fim, reúnem-se os que nada estabelecem a respeito da Num terceiro grupo, por fim, reúnem-se os que nada estabelecem a respeito da
matéria. Inserem-se nesta categoria a grande maioria das codificações, inclusive matéria. Inserem-se nesta categoria a grande maioria das codificações, inclusive
a brasileira. Destarte, no Brasil, coube à doutrina a regulamentação do instituto a brasileira. Destarte, no Brasil, coube à doutrina a regulamentação do instituto
do consentimento do ofendido, tratando de seus principais aspectos, inclusive da do consentimento do ofendido, tratando de seus principais aspectos, inclusive da
capacidade de consentir. capacidade de consentir.

3. Natureza Jurídica do Consentimento do Ofendido 3. Natureza Jurídica do Consentimento do Ofendido


Antes de analisarmos os critérios comumente utilizados pela doutrina para Antes de analisarmos os critérios comumente utilizados pela doutrina para
definir a capacidade de consentir, faz-se necessário, preliminarmente, discutir a definir a capacidade de consentir, faz-se necessário, preliminarmente, discutir a
questão da natureza jurídica do consentimento do ofendido. Isto porque só com a questão da natureza jurídica do consentimento do ofendido. Isto porque só com a
clara ciência dessa natureza é que se poderá inferir quais critérios e regras devem clara ciência dessa natureza é que se poderá inferir quais critérios e regras devem
disciplinar a definição de referida capacidade. disciplinar a definição de referida capacidade.
Feuerbach, um dos primeiros autores a tratar com profundidade do tema, Feuerbach, um dos primeiros autores a tratar com profundidade do tema,
entendia que a natureza jurídica do consentimento resultava necessariamente da entendia que a natureza jurídica do consentimento resultava necessariamente da
natureza jurídica do crime, é dizer: “perspectivado o crime como atentado a uma natureza jurídica do crime, é dizer: “perspectivado o crime como atentado a uma
expressão da liberdade, o consentimento só poderia relevar da dimensão positivada expressão da liberdade, o consentimento só poderia relevar da dimensão positivada
da mesma liberdade”. Neste sentido, para o jurista alemão, “enquanto uma pessoa da mesma liberdade”. Neste sentido, para o jurista alemão, “enquanto uma pessoa
pode renunciar de seus direitos através de um ato declaratório de sua vontade, o pode renunciar de seus direitos através de um ato declaratório de sua vontade, o
consentimento para o fato da parte do prejudicado elimina o conceito de delito”10. consentimento para o fato da parte do prejudicado elimina o conceito de delito”10.
A despeito da inquestionável importância deste conceito para a dogmática penal A despeito da inquestionável importância deste conceito para a dogmática penal
– contribuindo para o debate acerca da natureza jurídica do consentimento – ele – contribuindo para o debate acerca da natureza jurídica do consentimento – ele
não mais deve ser adotado, porquanto considera crime como uma violação de não mais deve ser adotado, porquanto considera crime como uma violação de
direito subjetivo de outrem, ótica ultrapassada na teoria do delito desde o triunfo direito subjetivo de outrem, ótica ultrapassada na teoria do delito desde o triunfo
da idéia de bem jurídico11. da idéia de bem jurídico11.
A teoria do negócio jurídico, de Zitelmann, confere uma natureza negocial A teoria do negócio jurídico, de Zitelmann, confere uma natureza negocial
ao consentimento, funcionando como um negócio jurídico privado. Nos dizeres ao consentimento, funcionando como um negócio jurídico privado. Nos dizeres
de Pierangeli: “a sua essência está em garantir ao consenciente o cumprimento de Pierangeli: “a sua essência está em garantir ao consenciente o cumprimento
da conduta”12. Ressalta ainda o penalista brasileiro, desconstruindo essa teoria, da conduta”12. Ressalta ainda o penalista brasileiro, desconstruindo essa teoria,

10. PIERANGELI, op. cit., p.73. 10. PIERANGELI, op. cit., p.73.
11. Ver mais em ANDRADE, op. cit., p. 51. 11. Ver mais em ANDRADE, op. cit., p. 51.
12. PIERANGELI, op. cit., p.74. 12. PIERANGELI, op. cit., p.74.
O consentimento do ofendido e a capacidade para consentir: análise crítica 233 O consentimento do ofendido e a capacidade para consentir: análise crítica 233

que “não é possível se falar em negócio jurídico válido no campo penal, vez que que “não é possível se falar em negócio jurídico válido no campo penal, vez que
o direito a cumprir-se seria manifestamente ilícito.”13 o direito a cumprir-se seria manifestamente ilícito.”13
Outro jurista que se debruçou verticalmente sobre o tema foi Mezger. Tratando Outro jurista que se debruçou verticalmente sobre o tema foi Mezger. Tratando
de seu entendimento, são elucidativos os ensinamentos de Tavares: de seu entendimento, são elucidativos os ensinamentos de Tavares:
(...) o consentimento constituir-se-ia no exemplo clássico da exclusão do injusto (...) o consentimento constituir-se-ia no exemplo clássico da exclusão do injusto
com base no princípio da ausência de interesse. Sua verificação só caberia com a com base no princípio da ausência de interesse. Sua verificação só caberia com a
pressuposta existência de abandono do bem.14 pressuposta existência de abandono do bem.14

Critica-se esse argumento por apoiar-se na idéia de que o injusto representa Critica-se esse argumento por apoiar-se na idéia de que o injusto representa
lesão de interesse, e não lesão a um bem jurídico – contrariando o entendimento lesão de interesse, e não lesão a um bem jurídico – contrariando o entendimento
quase pacífico na dogmática penal contemporânea. quase pacífico na dogmática penal contemporânea.
Para nós, a melhor doutrina é aquela que considera que o consentimento Para nós, a melhor doutrina é aquela que considera que o consentimento
do ofendido “constitui causa de exclusão de tipicidade e consiste na renúncia à do ofendido “constitui causa de exclusão de tipicidade e consiste na renúncia à
proteção penal de bens jurídicos disponíveis”15 (destaque nosso). Esclarecedoras proteção penal de bens jurídicos disponíveis”15 (destaque nosso). Esclarecedoras
são as palavras de Tavares: são as palavras de Tavares:
Há ocasiões em que o bem atacado renuncia à proteção da norma, constituindo Há ocasiões em que o bem atacado renuncia à proteção da norma, constituindo
uma ­situação anormal. Essa situação arrasta consigo a norma, fazendo-a retroceder, uma ­situação anormal. Essa situação arrasta consigo a norma, fazendo-a retroceder,
pois já não interessa a ela proteger o bem, tendo em vista o critério de valor de pois já não interessa a ela proteger o bem, tendo em vista o critério de valor de
uma situação normal16. uma situação normal16.

Diante do exposto, resulta claro que a capacidade de consentir deve ser ana- Diante do exposto, resulta claro que a capacidade de consentir deve ser ana-
lisada sob o prisma do direito penal, adotando-se a idéia de crime como lesão a lisada sob o prisma do direito penal, adotando-se a idéia de crime como lesão a
bem jurídico e afastando-se os preceitos de direito privado. bem jurídico e afastando-se os preceitos de direito privado.

4. Critérios Definidores da Capacidade de consentir 4. Critérios Definidores da Capacidade de consentir


Conforme demonstrado anteriormente (cap. 2), a maioria das legislações nada Conforme demonstrado anteriormente (cap. 2), a maioria das legislações nada
estabelece acerca do consentimento do ofendido e os seus requisitos. Por esta ra- estabelece acerca do consentimento do ofendido e os seus requisitos. Por esta ra-
zão, em grande parte dos países coube à doutrina construir os critérios definidores zão, em grande parte dos países coube à doutrina construir os critérios definidores
da capacidade de consentir. No Brasil, costuma-se divergir entre dois principais da capacidade de consentir. No Brasil, costuma-se divergir entre dois principais
critérios. O primeiro, defendido por Pierangeli, Damásio, Marques, estabelece critérios. O primeiro, defendido por Pierangeli, Damásio, Marques, estabelece
uma idade a partir da qual se adquire a capacidade. Já o segundo, defendido por uma idade a partir da qual se adquire a capacidade. Já o segundo, defendido por
Cirino, Tavares, propugna a abolição de qualquer idade-limite que autorize “o Cirino, Tavares, propugna a abolição de qualquer idade-limite que autorize “o
titular do bem jurídico na sua disposição, devendo o juiz, caso a caso, valorar o titular do bem jurídico na sua disposição, devendo o juiz, caso a caso, valorar o
grau de capacidade material do consenciente”17. grau de capacidade material do consenciente”17.

13. PIERANGELI, op. cit., p. 75. 13. PIERANGELI, op. cit., p. 75.
14. TAVARES, op. cit., p. 262-263. 14. TAVARES, op. cit., p. 262-263.
15. SANTOS, op. cit., p. 262. 15. SANTOS, op. cit., p. 262.
16. TAVARES, op. cit., p. 263. 16. TAVARES, op. cit., p. 263.
17. PIERANGELI, op. cit., p.137. 17. PIERANGELI, op. cit., p.137.
234 Devapi Souza Sampaio | Rafael de Souza Figueiredo 234 Devapi Souza Sampaio | Rafael de Souza Figueiredo

4.1. Critério Etário 4.1. Critério Etário


Fazendo uma interpretação analógica com a idade fixada no Código Penal Fazendo uma interpretação analógica com a idade fixada no Código Penal
brasileiro para a imputabilidade penal, Pierangeli sustenta: brasileiro para a imputabilidade penal, Pierangeli sustenta:
Resulta, portanto, meridianamente claro, que o critério a ser seguido só pode ser o Resulta, portanto, meridianamente claro, que o critério a ser seguido só pode ser o
da idade estabelecida para a imputabilidade, ou seja, 18 anos, até porque os meno- da idade estabelecida para a imputabilidade, ou seja, 18 anos, até porque os meno-
res dessa idade ficam sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial (art. res dessa idade ficam sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial (art.
27). Adquire, pois, o indivíduo a sua capacidade penal a partir dos 18 anos. Mas, 27). Adquire, pois, o indivíduo a sua capacidade penal a partir dos 18 anos. Mas,
não a adquire tão-somente o imputado, mas, também, o consenciente, porquanto não a adquire tão-somente o imputado, mas, também, o consenciente, porquanto
seria inadmissível que em um mesmo Código se estabelecesse duas idades para seria inadmissível que em um mesmo Código se estabelecesse duas idades para
uma mesma capacidade penal, ou, por outras palavras, uma para a prática do fato uma mesma capacidade penal, ou, por outras palavras, uma para a prática do fato
e outra para consentir em fato que a j­ustifica.18 e outra para consentir em fato que a j­ustifica.18

De forma semelhante, Damásio de Jesus: De forma semelhante, Damásio de Jesus:


(...) é necessário que a vontade seja expressa por quem já atingiu a capacidade (...) é necessário que a vontade seja expressa por quem já atingiu a capacidade
penal, aos 18 anos de idade, não eivada de qualquer causa que lhe retire o caráter penal, aos 18 anos de idade, não eivada de qualquer causa que lhe retire o caráter
de validade por doença mental, erro, dolo ou violência.19 de validade por doença mental, erro, dolo ou violência.19

Com a devida licença, cumpre sublinhar que tais posicionamentos incorrem Com a devida licença, cumpre sublinhar que tais posicionamentos incorrem
em dois graves equívocos, sendo o primeiro de ordem formal e o segundo de em dois graves equívocos, sendo o primeiro de ordem formal e o segundo de
ordem material. ordem material.
No que concerne à forma, a defesa de que a capacidade para consentir deve No que concerne à forma, a defesa de que a capacidade para consentir deve
ser a mesma da imputabilidade esbarra em uma norma básica do direito penal: a ser a mesma da imputabilidade esbarra em uma norma básica do direito penal: a
vedação absoluta da analogia em malam partem. Ora, o legislador em momento vedação absoluta da analogia em malam partem. Ora, o legislador em momento
algum estabeleceu um quantum definidor da capacidade. Admiti-la, portanto, algum estabeleceu um quantum definidor da capacidade. Admiti-la, portanto,
como sendo 18 anos, baseado tão-somente em uma analogia, é insuficiente para como sendo 18 anos, baseado tão-somente em uma analogia, é insuficiente para
condenar o ofensor do bem jurídico “invalidamente” renunciado, tendo em vista condenar o ofensor do bem jurídico “invalidamente” renunciado, tendo em vista
que isso configuraria – no caso concreto – uma analogia em desfavor do réu. que isso configuraria – no caso concreto – uma analogia em desfavor do réu.
Em relação ao aspecto material, a princípio parece não haver equívoco algum Em relação ao aspecto material, a princípio parece não haver equívoco algum
em se utilizar, na definição da capacidade de consentir, o mesmo parâmetro utili- em se utilizar, na definição da capacidade de consentir, o mesmo parâmetro utili-
zado para delimitar a imputabilidade penal (capacidade de culpabilidade), já que zado para delimitar a imputabilidade penal (capacidade de culpabilidade), já que
ambas partem da mesma realidade ôntica, é dizer, ambos exigem que o agente ambas partem da mesma realidade ôntica, é dizer, ambos exigem que o agente
compreenda o sentido e as conseqüências de seus atos. compreenda o sentido e as conseqüências de seus atos.
Todavia, após uma análise mais aprofundada destes institutos, nota-se que Todavia, após uma análise mais aprofundada destes institutos, nota-se que
eles diferenciam-se essencialmente no que tange à sua função na teoria do de- eles diferenciam-se essencialmente no que tange à sua função na teoria do de-
lito. É que enquanto a imputabilidade funciona como pressuposto de punição, lito. É que enquanto a imputabilidade funciona como pressuposto de punição,
o consentimento do ofendido é concebido justamente para evitar a punição. o consentimento do ofendido é concebido justamente para evitar a punição.
A imputabilidade, por conta disto, exige um critério fixo, bem delimitado, em A imputabilidade, por conta disto, exige um critério fixo, bem delimitado, em

18. PIERANGELI, op. cit., p.138. 18. PIERANGELI, op. cit., p.138.
19. JESUS, op. cit., p. 403. 19. JESUS, op. cit., p. 403.
O consentimento do ofendido e a capacidade para consentir: análise crítica 235 O consentimento do ofendido e a capacidade para consentir: análise crítica 235

homenagem à segurança do cidadão face às arbitrariedades do Estado. Assim, na homenagem à segurança do cidadão face às arbitrariedades do Estado. Assim, na
determinação da imputabilidade torna-se compreensível a utilização de um critério determinação da imputabilidade torna-se compreensível a utilização de um critério
estático (etário). O mesmo não se diz em relação ao consentimento do ofendido. estático (etário). O mesmo não se diz em relação ao consentimento do ofendido.
Este instituto se presta a afastar a punição, não demanda, portanto, um critério Este instituto se presta a afastar a punição, não demanda, portanto, um critério
definidor tão rígido, sendo mais razoável optar-se pela análise do caso concreto, definidor tão rígido, sendo mais razoável optar-se pela análise do caso concreto,
cujas vantagens iremos explicitar no tópico seguinte. cujas vantagens iremos explicitar no tópico seguinte.

Por tudo quanto exposto, consideramos o critério etário inidôneo para deter- Por tudo quanto exposto, consideramos o critério etário inidôneo para deter-
minar a capacidade de consentir. minar a capacidade de consentir.

4.2. Critério Subjetivo 4.2. Critério Subjetivo

Com argúcia mestre, Tavares, em um dos mais brilhantes trabalhos publicados Com argúcia mestre, Tavares, em um dos mais brilhantes trabalhos publicados
no Brasil sobre o tema, ensina-nos: no Brasil sobre o tema, ensina-nos:
Só possui eficácia o consentimento dado por agente capaz. Essa capacidade deve Só possui eficácia o consentimento dado por agente capaz. Essa capacidade deve
ser inferida do caso concreto, independentemente do grau de imputabilidade, bem ser inferida do caso concreto, independentemente do grau de imputabilidade, bem
como das regras do Direito Privado.20 como das regras do Direito Privado.20

No mesmo sentido, Cirino dos Santos: No mesmo sentido, Cirino dos Santos:
A capacidade de consentimento depende da capacidade concreta de compreensão A capacidade de consentimento depende da capacidade concreta de compreensão
ou de juízo do titular do bem jurídico afetado, determinável como questão de fato ou de juízo do titular do bem jurídico afetado, determinável como questão de fato
independentemente da idade do portador do bem jurídico ou do critério civilístico independentemente da idade do portador do bem jurídico ou do critério civilístico
de capacidade relativa21. de capacidade relativa21.

Este critério se nos parece muito mais adequado, porquanto, ao reservar a Este critério se nos parece muito mais adequado, porquanto, ao reservar a
análise da capacidade ao caso concreto, leva em consideração as vicissitudes da análise da capacidade ao caso concreto, leva em consideração as vicissitudes da
vida e as idiossincrasias do homem, não ignorando o caráter dinâmico da realidade vida e as idiossincrasias do homem, não ignorando o caráter dinâmico da realidade
social. Revela-se, portanto, muito mais próximo de um Direito Penal marcado social. Revela-se, portanto, muito mais próximo de um Direito Penal marcado
pela idéia de subsidiariedade e orientado por perspectivas político-criminais pela idéia de subsidiariedade e orientado por perspectivas político-criminais
constitucionalizadas. constitucionalizadas.

Por fim, vale transcrever, literalmente, Wessels: Por fim, vale transcrever, literalmente, Wessels:
[…] o consenciente deve ser capaz de consentir, isto é, capaz, segundo sua maturi- […] o consenciente deve ser capaz de consentir, isto é, capaz, segundo sua maturi-
dade psíquica e moral, de reconhecer o significado e o alcance da renúncia ao bem dade psíquica e moral, de reconhecer o significado e o alcance da renúncia ao bem
jurídico e de julgá-lo justamente (...) Não se exige para isto uma determinada idade jurídico e de julgá-lo justamente (...) Não se exige para isto uma determinada idade
(...) Decisivo é somente que tenha abarcado inteiramente, segundo sua maturidade (...) Decisivo é somente que tenha abarcado inteiramente, segundo sua maturidade
de entendimento e capacidade de julgamento, a essência, o alcance e os efeitos da de entendimento e capacidade de julgamento, a essência, o alcance e os efeitos da
intervenção afetadora de seus interesses. intervenção afetadora de seus interesses.

20. TAVARES, op. cit., p. 262-263. 20. TAVARES, op. cit., p. 262-263.
21. SANTOS, op. cit., p. 262. 21. SANTOS, op. cit., p. 262.
236 Devapi Souza Sampaio | Rafael de Souza Figueiredo 236 Devapi Souza Sampaio | Rafael de Souza Figueiredo

5. Conclusões 5. Conclusões

Finalizando a presente investigação, podemos chegar às seguintes conclu- Finalizando a presente investigação, podemos chegar às seguintes conclu-
sões: sões:

a) O consentimento do ofendido reveste-se de grande importância na moderna te­ a) O consentimento do ofendido reveste-se de grande importância na moderna te­
oria do delito, ao tornar atípicas condutas que seriam inicialmente puníveis. Co­ oria do delito, ao tornar atípicas condutas que seriam inicialmente puníveis. Co­
aduna-se, desta forma, a uma moderna concepção de Direito Penal, caracteri­­- aduna-se, desta forma, a uma moderna concepção de Direito Penal, caracteri­­-
zado por uma proteção subsidiária e norteado por perspectivas de política zado por uma proteção subsidiária e norteado por perspectivas de política
cri­minal. cri­minal.

b) São raras as codificações estrangeiras que regulamentam o consentimento b) São raras as codificações estrangeiras que regulamentam o consentimento
do ofendido. No Brasil, onde também ocorre esta omissão, coube à doutrina do ofendido. No Brasil, onde também ocorre esta omissão, coube à doutrina
construir as regras aplicáveis a referido instituto. construir as regras aplicáveis a referido instituto.

c) No pertinente à natureza jurídica, é o consentimento do ofendido causa de c) No pertinente à natureza jurídica, é o consentimento do ofendido causa de
exclusão de tipicidade, consistindo na renúncia à proteção penal de bens exclusão de tipicidade, consistindo na renúncia à proteção penal de bens
jurídicos disponíveis. jurídicos disponíveis.

d) Deve-se, tendo em vista sua natureza jurídica do consentimento, repudiar d) Deve-se, tendo em vista sua natureza jurídica do consentimento, repudiar
a utilização de preceitos privados na delimitação da capacidade de con- a utilização de preceitos privados na delimitação da capacidade de con-
sentir. sentir.

e) Incorre em erro a doutrina que estabelece um critério etário, baseado em e) Incorre em erro a doutrina que estabelece um critério etário, baseado em
analogia com a imputabilidade penal e capacidade civil, para determinar analogia com a imputabilidade penal e capacidade civil, para determinar
a capacidade de consentir, pelos motivos seguintes: a capacidade de consentir, pelos motivos seguintes:

I) Essa posição doutrinária viola o princípio que veda a analogia em I) Essa posição doutrinária viola o princípio que veda a analogia em
malam partem em matéria penal; malam partem em matéria penal;

II) Confunde, ainda, dois institutos díspares no que toca à sua função na II) Confunde, ainda, dois institutos díspares no que toca à sua função na
teoria do delito, exigindo da delimitação da capacidade de consentir teoria do delito, exigindo da delimitação da capacidade de consentir
a mesma rigidez utilizada na definição da imputabilidade. a mesma rigidez utilizada na definição da imputabilidade.

f) O critério a ser seguido na definição da capacidade de consentir deve ser f) O critério a ser seguido na definição da capacidade de consentir deve ser
aquele que aponta que o juiz deve valorar o grau de capacidade do con- aquele que aponta que o juiz deve valorar o grau de capacidade do con-
senciente caso a caso. senciente caso a caso.

6. REFERÊNCIAS 6. REFERÊNCIAS
ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra: ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra:
Coimbra Editora, 1991. Coimbra Editora, 1991.
BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro.
Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2 ed., Rio Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2 ed., Rio
de Janeiro: Revan, 2003. de Janeiro: Revan, 2003.
O consentimento do ofendido e a capacidade para consentir: análise crítica 237 O consentimento do ofendido e a capacidade para consentir: análise crítica 237

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte Geral. 10 ed., v.1, São BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte Geral. 10 ed., v.1, São
Paulo: Editora Saraiva, 2006. Paulo: Editora Saraiva, 2006.
GRECO, ROGÉRIO. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4 ed., Rio de Janeiro: Im- GRECO, ROGÉRIO. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4 ed., Rio de Janeiro: Im-
petus, 2004. petus, 2004.
JESUS, E. Damásio. Direito Penal (parte geral). 26 ed., v. I, São Paulo: Saraiva, 2003. JESUS, E. Damásio. Direito Penal (parte geral). 26 ed., v. I, São Paulo: Saraiva, 2003.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 18 ed., São Paulo: MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 18 ed., São Paulo:
Atlas, 2002. Atlas, 2002.
NORONHA, Edgar Magalhães. Direito Penal. 24 ed., vol. I, São Paulo: Saraiva, 1986. NORONHA, Edgar Magalhães. Direito Penal. 24 ed., vol. I, São Paulo: Saraiva, 1986.
PIERANGELI, José Henrique. O Consentimento do Ofendido na Teoria do Delito. 3 ed., PIERANGELI, José Henrique. O Consentimento do Ofendido na Teoria do Delito. 3 ed.,
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral, 5 ed., v.I, São Paulo: PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral, 5 ed., v.I, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2005. Revista dos Tribunais, 2005.
QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal – Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal – Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva,
2001. 2001.
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução de Luis Greco. Rio de Janeiro: Reno- ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução de Luis Greco. Rio de Janeiro: Reno-
var, 2006. var, 2006.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006.
TAVARES, Juarez. O consentimento do ofendido no direito penal. Revista da Faculdade de TAVARES, Juarez. O consentimento do ofendido no direito penal. Revista da Faculdade de
Direito da Ufpr, Curitiba, 1969. Disponível em <http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index. Direito da Ufpr, Curitiba, 1969. Disponível em <http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.
php/direito/article/view/7163/5114>. Acesso em: 13/06/2007. php/direito/article/view/7163/5114>. Acesso em: 13/06/2007.
WESSELS, Johannes. Direito Penal – Parte Geral. Tradução: Juarez Tavares. Porto Alegre: WESSELS, Johannes. Direito Penal – Parte Geral. Tradução: Juarez Tavares. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1976. Sergio Antonio Fabris, 1976.
Capítulo XVII Capítulo XVII
Aspectos controvertidos a respeito Aspectos controvertidos a respeito
da cláusula vedatória de abertura da cláusula vedatória de abertura
de filial em contratos de shopping center de filial em contratos de shopping center

Ermiro Ferreira Neto* Ermiro Ferreira Neto*

Sumário • 1. Introdução – 2. Contrato de shopping center. Conceito. Características – 3. A mínima Sumário • 1. Introdução – 2. Contrato de shopping center. Conceito. Características – 3. A mínima
regulamentação e a necessária incidência das regras da Teoria Geral dos Contratos – 4. Cláusulas ve- regulamentação e a necessária incidência das regras da Teoria Geral dos Contratos – 4. Cláusulas ve-
datórias de abertura de filiais: 4.1. A proibição de constituição de filial; 4.2. A proibição de constituição datórias de abertura de filiais: 4.1. A proibição de constituição de filial; 4.2. A proibição de constituição
de filial nas redondezas do shopping center; 4.3. A proibição de constituição de filial em shopping de filial nas redondezas do shopping center; 4.3. A proibição de constituição de filial em shopping
center concorrente – 5. Conclusão – 6. Referências. center concorrente – 5. Conclusão – 6. Referências.

1. Introdução 1. Introdução
O correr do século XX foi marcante para a evolução e aperfeiçoamento da O correr do século XX foi marcante para a evolução e aperfeiçoamento da
Teoria Geral dos Contratos, mormente no que tange a mitigação dos princípios Teoria Geral dos Contratos, mormente no que tange a mitigação dos princípios
da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda. Tal movimento encontrou da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda. Tal movimento encontrou
guarida, sem dúvida alguma, no legislador brasileiro, o qual, imbuído de uma forte guarida, sem dúvida alguma, no legislador brasileiro, o qual, imbuído de uma forte
tendência trazida com o dirigismo contratual, trouxe para o ordenamento jurídico tendência trazida com o dirigismo contratual, trouxe para o ordenamento jurídico
nacional uma série de diplomas legais que visam tutelar em parte as relações ne- nacional uma série de diplomas legais que visam tutelar em parte as relações ne-
gociais e proteger a parte hiposuficiente, a exemplo da Lei nº 8.078/90 (Código gociais e proteger a parte hiposuficiente, a exemplo da Lei nº 8.078/90 (Código
de Defesa do Consumidor), Lei nº 8.245/91 (Lei de Locações) e do Decreto nº de Defesa do Consumidor), Lei nº 8.245/91 (Lei de Locações) e do Decreto nº
22.626/33 (Lei de Usura)1. 22.626/33 (Lei de Usura)1.
Nada obstante a forte tendência dirigista, os contratos de cessão de uso de espa- Nada obstante a forte tendência dirigista, os contratos de cessão de uso de espa-
ço em estabelecimento de shopping center ou simplesmente contratos de shopping ço em estabelecimento de shopping center ou simplesmente contratos de shopping
centers2 foram contemplados com apenas duas normas regulamentadoras presentes centers2 foram contemplados com apenas duas normas regulamentadoras presentes
na Lei nº 8.245/91 (art. 52, § 2º e art. 54), o que, tendo em vista as especificidades na Lei nº 8.245/91 (art. 52, § 2º e art. 54), o que, tendo em vista as especificidades
desse tipo de operação comercial, abre espaço para abusos de toda sorte, onde, na desse tipo de operação comercial, abre espaço para abusos de toda sorte, onde, na
grande maioria das vezes, o lojista é sempre a figura prejudicada. grande maioria das vezes, o lojista é sempre a figura prejudicada.
Com efeito, tal é o panorama constatado na maioria desses contratos. Como Com efeito, tal é o panorama constatado na maioria desses contratos. Como
será oportunamente frisado adiante, os contratos de shopping center revestem-se será oportunamente frisado adiante, os contratos de shopping center revestem-se

* Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 6º semestre. * Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 6º semestre.
1. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade, 1. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade,
vol.3, 30. ed, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 19. vol.3, 30. ed, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 19.
2. A denominação desse tipo de contrato nunca encontrou uniformidade na doutrina. Apenas a título 2. A denominação desse tipo de contrato nunca encontrou uniformidade na doutrina. Apenas a título
de exemplo, tal figura contratual já foi chamada de contrato de estabelecimento (Alfredo Buzaid), de exemplo, tal figura contratual já foi chamada de contrato de estabelecimento (Alfredo Buzaid),
contrato de centro comercial (Villaça Azevedo) ou simplesmente de contrato de locação (Caio contrato de centro comercial (Villaça Azevedo) ou simplesmente de contrato de locação (Caio
Mário). Mário).
240 Ermiro Ferreira Neto 240 Ermiro Ferreira Neto

de uma característica comum fundamental: a extrema importância do planejamento de uma característica comum fundamental: a extrema importância do planejamento
e da padronização do mix de lojas, de forma a atrair a público alvo para o estabe- e da padronização do mix de lojas, de forma a atrair a público alvo para o estabe-
lecimento. Sob esse ponto de vista, a maioria de empreendimentos desse tipo faz lecimento. Sob esse ponto de vista, a maioria de empreendimentos desse tipo faz
constar em contrato a vedação imposta aos lojistas de não abrirem filiais de lojas constar em contrato a vedação imposta aos lojistas de não abrirem filiais de lojas
estabelecidas no shopping center no entorno do estabelecimento. O fundamento é estabelecidas no shopping center no entorno do estabelecimento. O fundamento é
que a não abertura de loja filial no entorno do empreendimento seria uma neces- que a não abertura de loja filial no entorno do empreendimento seria uma neces-
sidade, uma forma de concentrar clientes apenas no interior do shopping center, sidade, uma forma de concentrar clientes apenas no interior do shopping center,
possibilitando que a clientela consuma também os produtos de outros lojistas. possibilitando que a clientela consuma também os produtos de outros lojistas.
Por sua vez, aparentemente, tal cláusula viola os preceitos da livre iniciativa Por sua vez, aparentemente, tal cláusula viola os preceitos da livre iniciativa
(art. 1º, inciso IV, Constituição Federal) e da livre concorrência (art. 170, inciso (art. 1º, inciso IV, Constituição Federal) e da livre concorrência (art. 170, inciso
IV, Constituição Federal), princípios relativos à ordem econômica, claramente IV, Constituição Federal), princípios relativos à ordem econômica, claramente
agasalhados pela Carta Magna brasileira, mas, no particular, retirados do lojista agasalhados pela Carta Magna brasileira, mas, no particular, retirados do lojista
por uma cláusula em contrato de adesão, como o são a maioria dos contratos de por uma cláusula em contrato de adesão, como o são a maioria dos contratos de
shopping center. shopping center.
O presente artigo tem por finalidade discutir tal questão relativa à cláusula ve- O presente artigo tem por finalidade discutir tal questão relativa à cláusula ve-
datória de abertura de filiais de lojas estabelecidas em shopping center, abordando datória de abertura de filiais de lojas estabelecidas em shopping center, abordando
aspectos constitucionais e características específicas dessa figura contratual, visan- aspectos constitucionais e características específicas dessa figura contratual, visan-
do, ao final estabelecer parâmetros para a análise da matéria no caso concreto. do, ao final estabelecer parâmetros para a análise da matéria no caso concreto.

2. Contrato de shopping center. Conceito. Caracterís­ 2. Contrato de shopping center. Conceito. Caracterís­
ticas ticas
Os empreendimentos denominados shopping centers começam a despontar Os empreendimentos denominados shopping centers começam a despontar
no cenário do mercado varejista de bens como uma evolução natural dos níveis no cenário do mercado varejista de bens como uma evolução natural dos níveis
de tecnologia, interação e planejamento das operações de compra e venda no de tecnologia, interação e planejamento das operações de compra e venda no
mercado de consumo. Assim, na segunda metade do século XX, dentre outras mercado de consumo. Assim, na segunda metade do século XX, dentre outras
formas de comércio mais sofisticadas, como os serviços de venda por telefone, formas de comércio mais sofisticadas, como os serviços de venda por telefone,
por canais de televisão ou mesmo, mais recentemente, pela internet, nascem os por canais de televisão ou mesmo, mais recentemente, pela internet, nascem os
shopping centers. shopping centers.
Nesse sentido, Lima Filho: “as mudanças nos padrões do sistema varejista podem Nesse sentido, Lima Filho: “as mudanças nos padrões do sistema varejista podem
ser consideradas como uma resposta a um novo conjunto de variáveis tais como a ser consideradas como uma resposta a um novo conjunto de variáveis tais como a
interação entre os compradores e comerciantes, novos níveis de avanços econômi- interação entre os compradores e comerciantes, novos níveis de avanços econômi-
cos e tecnológicos. Os shopping centers são a maior conseqüência desses fatos”.3 cos e tecnológicos. Os shopping centers são a maior conseqüência desses fatos”.3
Verri, traça o caminho que conduz a esses vastos centros de compras planeja- Verri, traça o caminho que conduz a esses vastos centros de compras planeja-
dos para otimizar as operações de fornecimento de bens e serviços, listando como dos para otimizar as operações de fornecimento de bens e serviços, listando como
exemplos da caminhada de consolidação as lojas de departamento, os macromer- exemplos da caminhada de consolidação as lojas de departamento, os macromer-
cados, as galerias de lojas e os centros de compra elitizados, todos ainda, porém, cados, as galerias de lojas e os centros de compra elitizados, todos ainda, porém,

3. LIMA FILHO, Alberto de Oliveira. Shopping Centers – EUS vs. Brasil: uma análise mercadológica 3. LIMA FILHO, Alberto de Oliveira. Shopping Centers – EUS vs. Brasil: uma análise mercadológica
comparativa, 1971, p.16. comparativa, 1971, p.16.
Aspectos controvertidos a respeito da cláusula vedatória de abertura de filial… 241 Aspectos controvertidos a respeito da cláusula vedatória de abertura de filial… 241

sem “um nível complexo de organização”, o que só se verifica nesta “estrutura sem “um nível complexo de organização”, o que só se verifica nesta “estrutura
inovadora”, baseada em “diversos fatores”. Todos portanto, estariam em estágio inovadora”, baseada em “diversos fatores”. Todos portanto, estariam em estágio
inferior ao alcançado pelo empreendimento de shopping center4. inferior ao alcançado pelo empreendimento de shopping center4.
Tais são os pressupostos para que se chegue a um conceito sobre os estabe- Tais são os pressupostos para que se chegue a um conceito sobre os estabe-
lecimentos shopping centers: organização e planejamento. lecimentos shopping centers: organização e planejamento.
Com efeito, tal é a definição a que chegam Kotler e Armstrong ao afirmarem Com efeito, tal é a definição a que chegam Kotler e Armstrong ao afirmarem
ser tal tipo de empreendimento “um grupo de negócios de varejo planejado, de- ser tal tipo de empreendimento “um grupo de negócios de varejo planejado, de-
senvolvido e administrado como uma unidade”5. senvolvido e administrado como uma unidade”5.

Complementando o conceito anterior, a ABRASCE – Associação Brasileira Complementando o conceito anterior, a ABRASCE – Associação Brasileira
de Shopping Centers – define o empreendimento de seus associados como “um de Shopping Centers – define o empreendimento de seus associados como “um
centro comercial planejado, sob administração única e centralizada, composto centro comercial planejado, sob administração única e centralizada, composto
de lojas destinadas à exploração de ramos diversificados de comércio, e que per- de lojas destinadas à exploração de ramos diversificados de comércio, e que per-
maneçam, na sua maior parte, objeto de locação, ficando os locatários sujeitos maneçam, na sua maior parte, objeto de locação, ficando os locatários sujeitos
a normas contratuais padronizadas que visam à conservação do equilíbrio da a normas contratuais padronizadas que visam à conservação do equilíbrio da
oferta e da funcionalidade, para assegurar, como objetivo básico, a convivência oferta e da funcionalidade, para assegurar, como objetivo básico, a convivência
integrada e que varie o preço da locação, ao menos em parte, de acordo com o integrada e que varie o preço da locação, ao menos em parte, de acordo com o
faturamento dos locatários”.6 faturamento dos locatários”.6

Ao se criar um empreendimento desse tipo, deve-se ter em vista duas partes Ao se criar um empreendimento desse tipo, deve-se ter em vista duas partes
integrantes do contrato: de um lado, o lojista e do outro, o organizador ou admi- integrantes do contrato: de um lado, o lojista e do outro, o organizador ou admi-
nistrador do shopping center. Trata-se de contrato bilateral que, em detida síntese, nistrador do shopping center. Trata-se de contrato bilateral que, em detida síntese,
desenrola-se por meio de dois aspectos fundamentais: desenrola-se por meio de dois aspectos fundamentais:

a) aspecto imobiliário – considerando-se o espaço físico, o shopping center é a) aspecto imobiliário – considerando-se o espaço físico, o shopping center é
considerado como um imóvel posto à locação. Assim, o primeiro aspecto considerado como um imóvel posto à locação. Assim, o primeiro aspecto
desse contrato é a locação, por parte do lojista, de determinado espaço desse contrato é a locação, por parte do lojista, de determinado espaço
dentro do shopping center, com a finalidade de montar um estabelecimento dentro do shopping center, com a finalidade de montar um estabelecimento
comercial. comercial.

b) aspecto logístico/administrativo – o administrador do shopping center, por b) aspecto logístico/administrativo – o administrador do shopping center, por
sua vez, como contraprestação, oferece ao lojista um ambiente de negócios sua vez, como contraprestação, oferece ao lojista um ambiente de negócios
extremamente favorável ao consumo, criado e permanentemente admi- extremamente favorável ao consumo, criado e permanentemente admi-
nistrado através de pesquisas mercadológicas, campanhas de marketing nistrado através de pesquisas mercadológicas, campanhas de marketing
voltadas para o público alvo do estabelecimento e o contínuo controle voltadas para o público alvo do estabelecimento e o contínuo controle

4. MAMEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, 4. MAMEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del Rey, 2000,
p. 23. p. 23.
5. Apud MEIRA, Paulo Ricardo dos Santos. Shopping center e o comportamento do consumidor: a 5. Apud MEIRA, Paulo Ricardo dos Santos. Shopping center e o comportamento do consumidor: a
satisfação das necessidades humanas nos templos de consumo, 1996, p.49. satisfação das necessidades humanas nos templos de consumo, 1996, p.49.
6. Apud VERRI, Maria Elisa Gualandi. Shopping Centers: aspectos jurídicos e origem. Belo Hori- 6. Apud VERRI, Maria Elisa Gualandi. Shopping Centers: aspectos jurídicos e origem. Belo Hori-
zonte: Del Rey, 1996, p. 21. zonte: Del Rey, 1996, p. 21.
242 Ermiro Ferreira Neto 242 Ermiro Ferreira Neto

da atividade comercial dentro do empreendimento, de modo a evitar a da atividade comercial dentro do empreendimento, de modo a evitar a
concorrência interna e a maximizar vendas e lucros de todos os lojistas. concorrência interna e a maximizar vendas e lucros de todos os lojistas.
Há aqui a chamada gerência científica do estabelecimento, que por sua Há aqui a chamada gerência científica do estabelecimento, que por sua
vez tende a tornar ainda mais complexas as funções da administração, vez tende a tornar ainda mais complexas as funções da administração,
introduzindo pesquisas de mercado e outras novidades desconhecidas do introduzindo pesquisas de mercado e outras novidades desconhecidas do
pequeno capitalista. pequeno capitalista.
Desse aspecto logístico/administrativo, desponta a figura do tenant mix, ou Desse aspecto logístico/administrativo, desponta a figura do tenant mix, ou
simplesmente mix de lojas, que vem a ser exatamente o resultado do planejamento e simplesmente mix de lojas, que vem a ser exatamente o resultado do planejamento e
do estabelecimento do público alvo, concretizado no conjunto de estabelecimentos do estabelecimento do público alvo, concretizado no conjunto de estabelecimentos
que fazem parte do shopping center, organizado em lojas-âncora e lojas-satélite, que fazem parte do shopping center, organizado em lojas-âncora e lojas-satélite,
de modo a achar o ponto de equilíbrio entre concorrência interna e convergência de modo a achar o ponto de equilíbrio entre concorrência interna e convergência
de clientela. de clientela.
A natureza dúbia desse tipo de contrato ensejou grande discussão doutrinária A natureza dúbia desse tipo de contrato ensejou grande discussão doutrinária
sobre a natureza jurídica do contrato de shopping center, tendo ilustres autores se sobre a natureza jurídica do contrato de shopping center, tendo ilustres autores se
posicionado nessa questão. posicionado nessa questão.
Basicamente, haviam duas correntes. A primeira, cujo principal defensor era Basicamente, haviam duas correntes. A primeira, cujo principal defensor era
o Prof. Orlando Gomes, defendia que o contrato de shopping center tratava-se de o Prof. Orlando Gomes, defendia que o contrato de shopping center tratava-se de
um contrato atípico misto, no que era acompanhado por Alfredo Buzaid e Álvaro um contrato atípico misto, no que era acompanhado por Alfredo Buzaid e Álvaro
Villaça; a segunda, capitaneada pelo Prof. Caio Mário, por sua vez, asseverava Villaça; a segunda, capitaneada pelo Prof. Caio Mário, por sua vez, asseverava
ter tal contrato natureza de locação, com cláusulas atípicas.7 ter tal contrato natureza de locação, com cláusulas atípicas.7
No entanto, parece-nos que tal discussão tornou-se inócua. Atualmente, a No entanto, parece-nos que tal discussão tornou-se inócua. Atualmente, a
opinião mais correta é a do Professor Gladston Mamede, ao afirmar que a Lei nº opinião mais correta é a do Professor Gladston Mamede, ao afirmar que a Lei nº
8.245/91 (Lei de Locações) ao tratar expressamente, ainda que em apenas dois 8.245/91 (Lei de Locações) ao tratar expressamente, ainda que em apenas dois
artigos, acerca da locação comercial em shopping centers, acabou com as dúvidas artigos, acerca da locação comercial em shopping centers, acabou com as dúvidas
ainda existentes sobre a natureza jurídica desse contrato, no que tange o seu aspec- ainda existentes sobre a natureza jurídica desse contrato, no que tange o seu aspec-
to imobiliário; ao contrário, a ausência de menção legislativa quanto ao aspecto to imobiliário; ao contrário, a ausência de menção legislativa quanto ao aspecto
logístico/administrativo, atesta o caráter atípico dessa parte do contrato.8 logístico/administrativo, atesta o caráter atípico dessa parte do contrato.8

7. DRAGO, Guilherme Araujo. O negócio jurídico de shopping center como contrato misto. Jus 7. DRAGO, Guilherme Araujo. O negócio jurídico de shopping center como contrato misto. Jus
Navigandi, Teresina, ano 8, n. 209, 31 jan. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutri- Navigandi, Teresina, ano 8, n. 209, 31 jan. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutri-
na/texto.asp?id=4780>. Acesso em: 09 fev. 2007. Noticia o autor um curioso debate a respeito na/texto.asp?id=4780>. Acesso em: 09 fev. 2007. Noticia o autor um curioso debate a respeito
do tema: “Não deixa de ser curioso notar que esta discussão medrou sobretudo no Brasil e em do tema: “Não deixa de ser curioso notar que esta discussão medrou sobretudo no Brasil e em
Portugal. Lemke, acusa Antunes Varela, grande amigo de Orlando Gomes, de disseminar em Portugal. Lemke, acusa Antunes Varela, grande amigo de Orlando Gomes, de disseminar em
sua terra a tese do ilustre professor baiano, acusando este último de se deixar influenciar por um sua terra a tese do ilustre professor baiano, acusando este último de se deixar influenciar por um
parecer dado a um grande empresário interessado em fazer um shopping, mas que não admitia a parecer dado a um grande empresário interessado em fazer um shopping, mas que não admitia a
ação renovatória. Cita Jorge Pinto Furtado, também professor de Coimbra, que em seu livro sobre ação renovatória. Cita Jorge Pinto Furtado, também professor de Coimbra, que em seu livro sobre
o assunto, editado em 1996, fala ser inexistente em outros países posições conhecidas diferentes o assunto, editado em 1996, fala ser inexistente em outros países posições conhecidas diferentes
daquelas pela locação, remetendo-nos para Raol D`Heucqueville, Jean Derruppé, Saint –Allary daquelas pela locação, remetendo-nos para Raol D`Heucqueville, Jean Derruppé, Saint –Allary
e Michel Pédamon na França ao tempo em que afirma ocorrer o mesmo nos Estados Unidos.” e Michel Pédamon na França ao tempo em que afirma ocorrer o mesmo nos Estados Unidos.”
8. “E, asssim, vulnerável aos setores que estavam preocupados com a regulamentação dos sho- 8. “E, asssim, vulnerável aos setores que estavam preocupados com a regulamentação dos sho-
pping centers sobre o seu aspecto exclusivamente imobiliário, o Congresso Nacional brasi- pping centers sobre o seu aspecto exclusivamente imobiliário, o Congresso Nacional brasi-
leiro cuidou de abordar a questão no âmbito da Lei do Inquilinato (Lei 8.245 de 18.10.1991). leiro cuidou de abordar a questão no âmbito da Lei do Inquilinato (Lei 8.245 de 18.10.1991).
Aspectos controvertidos a respeito da cláusula vedatória de abertura de filial… 243 Aspectos controvertidos a respeito da cláusula vedatória de abertura de filial… 243

De fato, a compreensão da existência dos dois aspectos ressaltados do contrato De fato, a compreensão da existência dos dois aspectos ressaltados do contrato
de shopping center é fundamental para a exata compreensão desse negócio jurídi- de shopping center é fundamental para a exata compreensão desse negócio jurídi-
co. Veja-se, por exemplo, a questão do pagamento do aluguel, onde comumente co. Veja-se, por exemplo, a questão do pagamento do aluguel, onde comumente
estabelece-se o pagamento de um valor fixo, somado a um valor calculado com estabelece-se o pagamento de um valor fixo, somado a um valor calculado com
base no percentual de vendas (res esperata). Tal característica, anteriormente base no percentual de vendas (res esperata). Tal característica, anteriormente
entendido pela doutrina como fator que levava todo o contrato para campo da entendido pela doutrina como fator que levava todo o contrato para campo da
atipicidade, hoje deve ser entendido como uma remuneração dupla para cada atipicidade, hoje deve ser entendido como uma remuneração dupla para cada
um dos aspectos destacados. O aluguel fixo relaciona-se com a relação locatícia um dos aspectos destacados. O aluguel fixo relaciona-se com a relação locatícia
entabulada entre as partes, enquanto o “aluguel percentual” objetiva remunerar o entabulada entre as partes, enquanto o “aluguel percentual” objetiva remunerar o
empreendedor/administrador por sua iniciativa e atuação mercadológica. empreendedor/administrador por sua iniciativa e atuação mercadológica.

3. A mínima regulamentação e a necessária incidência 3. A mínima regulamentação e a necessária incidência


das regras da Teoria Geral dos Contratos das regras da Teoria Geral dos Contratos
Assentadas as bases acerca da definição e das principais características do Assentadas as bases acerca da definição e das principais características do
contrato de shopping center, tem-se certo que, tendo em vista a natureza dúplice contrato de shopping center, tem-se certo que, tendo em vista a natureza dúplice
deste negócio jurídico – aspecto imobiliário e aspecto logístico/administrativo deste negócio jurídico – aspecto imobiliário e aspecto logístico/administrativo
– existe uma clara lacuna legislativa no que tange à regulamentação da atividade – existe uma clara lacuna legislativa no que tange à regulamentação da atividade
dos organizadores deste tipo de empreendimento (atipicidade contratual), nada dos organizadores deste tipo de empreendimento (atipicidade contratual), nada
obstante admita-se que a Lei de Locações trouxe uma mínima regulação apenas obstante admita-se que a Lei de Locações trouxe uma mínima regulação apenas
relativa à natureza locatícia. relativa à natureza locatícia.
De fato, tal orientação foi inclusive albergada pelo referido diploma legal, De fato, tal orientação foi inclusive albergada pelo referido diploma legal,
consoante redação do art. 54, ao asseverar de forma clara que “nas relações entre consoante redação do art. 54, ao asseverar de forma clara que “nas relações entre
lojistas e empreendedores de shopping center, prevalecerão as condições livremen- lojistas e empreendedores de shopping center, prevalecerão as condições livremen-
te pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais te pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais
previstas nesta Lei”. previstas nesta Lei”.
Com efeito, o substrato técnico para a orientação prevista na Lei nº 8.245/91 Com efeito, o substrato técnico para a orientação prevista na Lei nº 8.245/91
reside no princípio da autonomia das partes e da obrigatória vinculação das partes reside no princípio da autonomia das partes e da obrigatória vinculação das partes
ao contrato (pacta sunt servanda), tendo por base o brocardo de Direito Privado ao contrato (pacta sunt servanda), tendo por base o brocardo de Direito Privado
que prevê a licitude de qualquer conduta não reputada como ilegal pela lei. Assim, que prevê a licitude de qualquer conduta não reputada como ilegal pela lei. Assim,
não existindo norma que impeça a adoção de determinada conduta pelas partes não existindo norma que impeça a adoção de determinada conduta pelas partes
de um contrato, a elas é absolutamente lícito estipularem o que bem entenderem, de um contrato, a elas é absolutamente lícito estipularem o que bem entenderem,
obrigando-se a adimplirem o quanto firmado, desde que respeitada a função social obrigando-se a adimplirem o quanto firmado, desde que respeitada a função social
do contrato e a boa-fé entre as partes. do contrato e a boa-fé entre as partes.

Dessa forma, foram expressa e especificamente pacificadas as dúvidas em relação a tais Dessa forma, foram expressa e especificamente pacificadas as dúvidas em relação a tais
empreendimentos sob o ponto de vista imobiliário; o aspecto logístico, entretanto, no qual o empreendimentos sob o ponto de vista imobiliário; o aspecto logístico, entretanto, no qual o
shopping center apresenta-se como um serviço oferecido a consumido­res-comerciantes, não shopping center apresenta-se como um serviço oferecido a consumido­res-comerciantes, não
obtebe tratamento específico, devendo ser resolvido pelas regras gerais do Direito (...)”.MA- obtebe tratamento específico, devendo ser resolvido pelas regras gerais do Direito (...)”.MA-
MEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, MEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del Rey, 2000,
p. 39. p. 39.
244 Ermiro Ferreira Neto 244 Ermiro Ferreira Neto

Contudo, nas relações entre o organizador de shopping center e os lojistas, Contudo, nas relações entre o organizador de shopping center e os lojistas,
Cerveira Filho adverte que “sob o manto da palavra ‘atípico’ se praticam os Cerveira Filho adverte que “sob o manto da palavra ‘atípico’ se praticam os
maiores abusos em matéria de locação em shopping. Essa expressão bem traduz maiores abusos em matéria de locação em shopping. Essa expressão bem traduz
a voracidade e concentração de poder nas mãos dos empreendedores”.9 a voracidade e concentração de poder nas mãos dos empreendedores”.9
Pois bem. Ao contrário do que pode parecer, no entanto, frise-se que a ati- Pois bem. Ao contrário do que pode parecer, no entanto, frise-se que a ati-
picidade do contrato relativamente ao seu aspecto logístico/administrativo não picidade do contrato relativamente ao seu aspecto logístico/administrativo não
pode servir como uma autorização legal para que os empreendedores desse tipo pode servir como uma autorização legal para que os empreendedores desse tipo
de estabelecimento, sempre em posição de superioridade econômica em relação de estabelecimento, sempre em posição de superioridade econômica em relação
aos lojistas, possam cometer toda sorte de práticas abusivas. Independentemente aos lojistas, possam cometer toda sorte de práticas abusivas. Independentemente
de existência ou não de regulamentação legal do contrato, todo negócio jurídico de existência ou não de regulamentação legal do contrato, todo negócio jurídico
apenas pode ser concebido se estiver em consonância com as normas gerais dos apenas pode ser concebido se estiver em consonância com as normas gerais dos
contratos. contratos.
Nesse sentido, afirma Lôbo que “a norma criada pelo contrato não tem vida Nesse sentido, afirma Lôbo que “a norma criada pelo contrato não tem vida
própria, não tem força obrigatória em si mesma. Apenas pode ser concebida em própria, não tem força obrigatória em si mesma. Apenas pode ser concebida em
conjunção com a norma geral. Dessa forma, a norma ou ordem criadas pelo contrato conjunção com a norma geral. Dessa forma, a norma ou ordem criadas pelo contrato
seriam, pois, uma norma ou uma ordem de grau inferior à norma ou ordem que seriam, pois, uma norma ou uma ordem de grau inferior à norma ou ordem que
instituiria o contrato, como procedimento criador de normas jurídicas”.10 instituiria o contrato, como procedimento criador de normas jurídicas”.10
Assim, tem-se certo que contratos de shopping center, nada obstante a Lei Assim, tem-se certo que contratos de shopping center, nada obstante a Lei
de Locações aparentemente tenha privilegiado a observância pura e simples das de Locações aparentemente tenha privilegiado a observância pura e simples das
normas convencionadas entre as partes, devem sempre ser interpretados à luz das normas convencionadas entre as partes, devem sempre ser interpretados à luz das
normas da Teoria Geral dos Contratos, inseridas na legislação infraconstitucional, normas da Teoria Geral dos Contratos, inseridas na legislação infraconstitucional,
bem como das regras traçadas pela Constituição Federal. bem como das regras traçadas pela Constituição Federal.

4. Cláusulas vedatórias de abertura de filiais 4. Cláusulas vedatórias de abertura de filiais


Conforme apontado anteriormente, a organização e o planejamento do tenant Conforme apontado anteriormente, a organização e o planejamento do tenant
mix do empreendimento de shopping center, através de pesquisas mercadológicas mix do empreendimento de shopping center, através de pesquisas mercadológicas
e do uso de alta tecnologia de marketing, é característica essencial para a formação e do uso de alta tecnologia de marketing, é característica essencial para a formação
do contrato objeto do presente artigo. do contrato objeto do presente artigo.
Assim é que, tendo em vista a organização do empreendimento no que tange Assim é que, tendo em vista a organização do empreendimento no que tange
aspectos como a proibição de competição autofágica, centralização do público alvo aspectos como a proibição de competição autofágica, centralização do público alvo
dentro do estabelecimento, manutenção de um ambiente saudável de concorrência dentro do estabelecimento, manutenção de um ambiente saudável de concorrência
interna, entre outros fatores, é inerente a este negócio jurídico o fato de que o interna, entre outros fatores, é inerente a este negócio jurídico o fato de que o
lojista abre mão de parcela de sua liberdade de gestão à frente de seu negócio, a lojista abre mão de parcela de sua liberdade de gestão à frente de seu negócio, a
fim de que o administrador do shopping center possa compor da melhor maneira fim de que o administrador do shopping center possa compor da melhor maneira
o mix, de forma a maximizar os lucros do empreendimento. o mix, de forma a maximizar os lucros do empreendimento.

9. CERVEIRA FILHO, Mário. Shopping Centers: direitos dos lojistas – 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2000. 9. CERVEIRA FILHO, Mário. Shopping Centers: direitos dos lojistas – 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
p.17 p.17
10. Apud MAMEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, 10. Apud MAMEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del Rey, 2000,
p. 47. p. 47.
Aspectos controvertidos a respeito da cláusula vedatória de abertura de filial… 245 Aspectos controvertidos a respeito da cláusula vedatória de abertura de filial… 245

Dessa forma é que se tornou extremamente comum a inserção nesse tipo de Dessa forma é que se tornou extremamente comum a inserção nesse tipo de
contrato de cláusula que proíba o lojista de abrir filial de sua loja estabelecida no contrato de cláusula que proíba o lojista de abrir filial de sua loja estabelecida no
shopping center. Tal medida justifica-se por força da necessidade de organização shopping center. Tal medida justifica-se por força da necessidade de organização
do empreendimento, buscando evitar a dispersão de consumidores entre as filiais do empreendimento, buscando evitar a dispersão de consumidores entre as filiais
de determinada loja, possibilitando que o consumidor alvo de uma loja X, possa, de determinada loja, possibilitando que o consumidor alvo de uma loja X, possa,
ao visitar o shopping center onde está instalada sua loja, adquirir produtos de ao visitar o shopping center onde está instalada sua loja, adquirir produtos de
outras lojas, criando uma cadeia de consumo que visa aumentar as vendas de outras lojas, criando uma cadeia de consumo que visa aumentar as vendas de
todo o conjunto de lojas. todo o conjunto de lojas.
O Professor Gladston Mamede descreve a existência dessas cláusulas, afir- O Professor Gladston Mamede descreve a existência dessas cláusulas, afir-
mando que “é comum preverem os contratos de shopping center uma proibição de mando que “é comum preverem os contratos de shopping center uma proibição de
que o lojista constitua ou mantenha filial de sua empresa, ou uma outra empresa que o lojista constitua ou mantenha filial de sua empresa, ou uma outra empresa
congênere ou similar, nas redondezas do shopping. Alguns contratos chegam a congênere ou similar, nas redondezas do shopping. Alguns contratos chegam a
estender essa proibição aos sócios e diretores da empresa locatária”.11 estender essa proibição aos sócios e diretores da empresa locatária”.11
Em verdade, tal regra inserida nos contratos não deve ser analisada generica- Em verdade, tal regra inserida nos contratos não deve ser analisada generica-
mente. Veja-se que a proibição, conforme a própria descrição de Mamede, aponta mente. Veja-se que a proibição, conforme a própria descrição de Mamede, aponta
a existência de diversas espécies de cláusulas: a proibição de constituição de filial a existência de diversas espécies de cláusulas: a proibição de constituição de filial
e a proibição de constituição de filial nas redondezas do shopping center. e a proibição de constituição de filial nas redondezas do shopping center.
Outrossim, além destas espécies de cláusulas, existem outras, como a proibição Outrossim, além destas espécies de cláusulas, existem outras, como a proibição
de abertura de filial em estabelecimento de shopping center concorrente. Como de abertura de filial em estabelecimento de shopping center concorrente. Como
adiantado, a análise da legalidade de tais regras merece o exame separado, com adiantado, a análise da legalidade de tais regras merece o exame separado, com
o objetivo de se criar parâmetros para a apreciação de cada cláusula nos casos o objetivo de se criar parâmetros para a apreciação de cada cláusula nos casos
concretos. concretos.

4.1. A proibição de constituição de filial 4.1. A proibição de constituição de filial


A primeira espécie busca pura e simplesmente proibir que o lojista que se A primeira espécie busca pura e simplesmente proibir que o lojista que se
estabelece em um shopping center possa abrir uma filial de sua loja, obrigando-o estabelece em um shopping center possa abrir uma filial de sua loja, obrigando-o
a permanecer apenas com aquele estabelecimento empresarial. Tal regra, sob a a permanecer apenas com aquele estabelecimento empresarial. Tal regra, sob a
ótica das normas gerais de Direito, é válida? ótica das normas gerais de Direito, é válida?
Evidentemente que não. Evidentemente que não.
De fato, tal cláusula viola preceitos constitucionais, de ordem pública, não De fato, tal cláusula viola preceitos constitucionais, de ordem pública, não
existindo qualquer razoabilidade na vedação absoluta do direito do lojista em abrir existindo qualquer razoabilidade na vedação absoluta do direito do lojista em abrir
filiais de sua loja originária, reinvestindo seus lucros e adaptando-se ao crescimento filiais de sua loja originária, reinvestindo seus lucros e adaptando-se ao crescimento
de sua atividade comercial. de sua atividade comercial.
Trata-se do primado do direito à livre iniciativa erigido à qualidade de princípio Trata-se do primado do direito à livre iniciativa erigido à qualidade de princípio
fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. IV, art. 170, caput, fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. IV, art. 170, caput,

11. MAMEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, 11. MAMEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del Rey, 2000,
p. 109. p. 109.
246 Ermiro Ferreira Neto 246 Ermiro Ferreira Neto

Constituição Federal)12. Como direito fundamental, a livre iniciativa é irrenun- Constituição Federal)12. Como direito fundamental, a livre iniciativa é irrenun-
ciável, de modo que não é possível que um instrumento particular possa retirar ciável, de modo que não é possível que um instrumento particular possa retirar
de qualquer pessoa o direito de, querendo, constituir filial de estabelecimento de qualquer pessoa o direito de, querendo, constituir filial de estabelecimento
empresarial com a finalidade de explorar atividade comercial. empresarial com a finalidade de explorar atividade comercial.
Ademais, veja-se ainda que tal espécie de cláusula vedatória não se presta para Ademais, veja-se ainda que tal espécie de cláusula vedatória não se presta para
atingir a finalidade de sua inserção em contrato de shopping center, haja vista que atingir a finalidade de sua inserção em contrato de shopping center, haja vista que
a constituição ou manutenção de loja filial, por exemplo, em mercado diferente a constituição ou manutenção de loja filial, por exemplo, em mercado diferente
daquele que busca o shopping center atingir, não interfere de forma alguma na daquele que busca o shopping center atingir, não interfere de forma alguma na
organização do mix de lojas. Da mesma forma ocorre quando a filial visa o mesmo organização do mix de lojas. Da mesma forma ocorre quando a filial visa o mesmo
público alvo do shopping, mas foi instalada a uma distância razoável do empre- público alvo do shopping, mas foi instalada a uma distância razoável do empre-
endimento, de forma a captar consumidores de outras localidades. endimento, de forma a captar consumidores de outras localidades.

4.2. A proibição de constituição de filial nas redondezas do shopping center 4.2. A proibição de constituição de filial nas redondezas do shopping center
Aqui, fala-se de proibição em razão da distância entre o empreendimento Aqui, fala-se de proibição em razão da distância entre o empreendimento
de shopping center e a loja filial. Ao contrário do quanto declinado quando da de shopping center e a loja filial. Ao contrário do quanto declinado quando da
análise da espécie anterior, acreditamos ser perfeitamente possível a inserção de análise da espécie anterior, acreditamos ser perfeitamente possível a inserção de
tal cláusula. tal cláusula.
Com efeito, há razoabilidade em tal limitação à atuação do lojista, tendo em Com efeito, há razoabilidade em tal limitação à atuação do lojista, tendo em
vista a necessidade de organização de um tenant mix que alcance sucesso na atração vista a necessidade de organização de um tenant mix que alcance sucesso na atração
de consumi­dores. A se autorizar a abertura de filiais das mesmas lojas instaladas de consumi­dores. A se autorizar a abertura de filiais das mesmas lojas instaladas
no shopping center nas redondezas do empreendimento, estar-se-ia perdendo a no shopping center nas redondezas do empreendimento, estar-se-ia perdendo a
sinergia que caracteriza o fundamento do sucesso desse tipo de operação, haja vista sinergia que caracteriza o fundamento do sucesso desse tipo de operação, haja vista
que não haveria atrativos para que os clientes da região onde está o estabelecimento que não haveria atrativos para que os clientes da região onde está o estabelecimento
concentrassem a compra de produtos e serviços dentro do shopping. concentrassem a compra de produtos e serviços dentro do shopping.
A contrario sensu, não existe prejuízo à livre iniciativa, haja vista que tal A contrario sensu, não existe prejuízo à livre iniciativa, haja vista que tal
direito foi contemplado com a abertura da loja dentro do shopping center e a direito foi contemplado com a abertura da loja dentro do shopping center e a
adesão ao contrato de prestação de serviços logísticos/administrativos por parte do adesão ao contrato de prestação de serviços logísticos/administrativos por parte do
organizador do empreendimento. Observe-se que o lojista pode abrir filiais onde organizador do empreendimento. Observe-se que o lojista pode abrir filiais onde
bem entender, contudo abdica do direito de fazer isso nas cercanias do shopping, bem entender, contudo abdica do direito de fazer isso nas cercanias do shopping,
como forma de apenas se beneficiar disso. como forma de apenas se beneficiar disso.
Contudo, registre-se, tal não é a opinião de Mamede, que afirma que “tais Contudo, registre-se, tal não é a opinião de Mamede, que afirma que “tais
cláusulas são inconstitucionais, já que cerceiam o direito de agir economicamente cláusulas são inconstitucionais, já que cerceiam o direito de agir economicamente

12. “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e 12. “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: (...) IV. os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.’ fundamentos: (...) IV. os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.’
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (...)” tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (...)”
Aspectos controvertidos a respeito da cláusula vedatória de abertura de filial… 247 Aspectos controvertidos a respeito da cláusula vedatória de abertura de filial… 247

com liberdade e, simultaneamente, pretendem constituir mecanismo que impeça com liberdade e, simultaneamente, pretendem constituir mecanismo que impeça
a concorrência”. 13 a concorrência”. 13

4.3. A proibição de constituição de filial em shopping center concorrente 4.3. A proibição de constituição de filial em shopping center concorrente
A terceira espécie proíbe a abertura de filial em outro estabelecimento de A terceira espécie proíbe a abertura de filial em outro estabelecimento de
shopping center, concorrente do empreendimento onde está instalada a loja, shopping center, concorrente do empreendimento onde está instalada a loja,
independentemente da distância entre os estabelecimentos. independentemente da distância entre os estabelecimentos.
Utilizando-se os parâmetros montados para o exame da legalidade das pri- Utilizando-se os parâmetros montados para o exame da legalidade das pri-
meiras duas espécies de cláusulas vedatórias, tem-se que a mera proibição de meiras duas espécies de cláusulas vedatórias, tem-se que a mera proibição de
abertura de filial, sem razoabilidade e sem se ancorar na distância entre a filial abertura de filial, sem razoabilidade e sem se ancorar na distância entre a filial
e o shopping center é, de per si, uma regra que fere a livre iniciativa garantida e o shopping center é, de per si, uma regra que fere a livre iniciativa garantida
constitucionalmente. constitucionalmente.
De fato, é oportuno frisar a lição do Ministro do Supremo Tribunal Federal De fato, é oportuno frisar a lição do Ministro do Supremo Tribunal Federal
Eros Roberto Grau sobre a definição do princípio da livre iniciativa: “Inúmeros Eros Roberto Grau sobre a definição do princípio da livre iniciativa: “Inúmeros
sentidos, de toda sorte, podem ser divisados no princípio, em sua dupla face, ou sentidos, de toda sorte, podem ser divisados no princípio, em sua dupla face, ou
seja, enquanto liberdade de comércio e indústria e enquanto liberdade de con- seja, enquanto liberdade de comércio e indústria e enquanto liberdade de con-
corrência. A este critério classificatório acoplando-se outro, que leva à distinção corrência. A este critério classificatório acoplando-se outro, que leva à distinção
entre liberdade pública e liberdade privada, poderemos ter equacionado o seguinte entre liberdade pública e liberdade privada, poderemos ter equacionado o seguinte
quadro de exposição de tais sentidos: quadro de exposição de tais sentidos:
a) liberdade de comércio e indústria (não ingerência do Estado no domínio a) liberdade de comércio e indústria (não ingerência do Estado no domínio
­econômico); ­econômico);
a.1) faculdade de criar e explorar uma atividade econômica a título privado a.1) faculdade de criar e explorar uma atividade econômica a título privado
– liberdade pública; – liberdade pública;
a.2) não sujeição a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei – li- a.2) não sujeição a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei – li-
berdade pública; berdade pública;
b) liberdade de concorrência; b) liberdade de concorrência;
b.1) faculdade de conquistar a clientela, desde que não através de concor- b.1) faculdade de conquistar a clientela, desde que não através de concor-
rência desleal – liberdade privada; rência desleal – liberdade privada;
b.2) proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência – liberdade b.2) proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência – liberdade
privada; privada;
b.3) neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igual- b.3) neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igual-
dade de condições dos concorrentes – liberdade pública.14 dade de condições dos concorrentes – liberdade pública.14

13. MAMEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, 13. MAMEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del Rey, 2000,
p. 111. p. 111.
14. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, 10. ed, São Paulo: Malheiros, 14. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, 10. ed, São Paulo: Malheiros,
2005. p. 204. 2005. p. 204.
248 Ermiro Ferreira Neto 248 Ermiro Ferreira Neto

Tomando por base o rol de significados que o princípio da livre iniciativa Tomando por base o rol de significados que o princípio da livre iniciativa
pode abranger, tem-se certo que as cláusulas vedatórias de abertura de filial em pode abranger, tem-se certo que as cláusulas vedatórias de abertura de filial em
contratos de shopping center restringem a faculdade dos lojistas de explorarem contratos de shopping center restringem a faculdade dos lojistas de explorarem
sua atividade econômica. Tal vedação é extremamente temerária, quando mais sua atividade econômica. Tal vedação é extremamente temerária, quando mais
se ocorrer por meio de contrato de adesão firmado entre dois particulares, dando se ocorrer por meio de contrato de adesão firmado entre dois particulares, dando
ao organizador do shopping um poder (de limitar a livre iniciativa) que nem a ao organizador do shopping um poder (de limitar a livre iniciativa) que nem a
Constituição deu ao Poder Público. Constituição deu ao Poder Público.
Entretanto, nesta terceira espécie de cláusula vedatória, parece claro que a Entretanto, nesta terceira espécie de cláusula vedatória, parece claro que a
conduta do administrador de shopping center que insere esse tipo de imposição conduta do administrador de shopping center que insere esse tipo de imposição
no contrato, para além de violar um direito do lojista, atinge o empreendimento no contrato, para além de violar um direito do lojista, atinge o empreendimento
concorrente, que ficará privado de contratar com lojas já estabelecidas no primeiro concorrente, que ficará privado de contratar com lojas já estabelecidas no primeiro
shopping. shopping.
Tal conduta, diga-se desde logo, é repudiada pelo ordenamento jurídico Tal conduta, diga-se desde logo, é repudiada pelo ordenamento jurídico
nacional, conforme prevê o art. 170, inc. IV da Constituição Federal, ao garantir nacional, conforme prevê o art. 170, inc. IV da Constituição Federal, ao garantir
a livre concorrência como princípio da ordem econômica do Brasil, bem como, a livre concorrência como princípio da ordem econômica do Brasil, bem como,
conforme visto, fere de morte, mais uma vez, a livre iniciativa, porquanto tal conforme visto, fere de morte, mais uma vez, a livre iniciativa, porquanto tal
expressão abarca também a liberdade de concorrência. expressão abarca também a liberdade de concorrência.
A fim de garantir o devido respeito à livre concorrência, a Lei nº 8.884/94 A fim de garantir o devido respeito à livre concorrência, a Lei nº 8.884/94
deu amplos poderes de investigação e julgamento de possíveis atos de infração à deu amplos poderes de investigação e julgamento de possíveis atos de infração à
ordem econômica ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), ao ordem econômica ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), ao
tempo em que “tipificou” uma série de condutas, rotulando-as como agressivas tempo em que “tipificou” uma série de condutas, rotulando-as como agressivas
à ordem econômica. à ordem econômica.
De modo que, a conduta do administrador de shopping center que busca pre- De modo que, a conduta do administrador de shopping center que busca pre-
judicar seus concorrentes através da proibição de que seus lojistas abram filiais judicar seus concorrentes através da proibição de que seus lojistas abram filiais
nesses empreendimentos enquadra-se perfeitamente nas condutas tipificadas no nesses empreendimentos enquadra-se perfeitamente nas condutas tipificadas no
art. 20, inc. I, bem como art. 21, inc. V. art. 20, inc. I, bem como art. 21, inc. V.

5. Conclusão 5. Conclusão
Do exposto, conclui-se que, tendo em vista as características extremamente Do exposto, conclui-se que, tendo em vista as características extremamente
específicas do contrato de shopping center, mormente no que toca sua natureza específicas do contrato de shopping center, mormente no que toca sua natureza
dúplice, com forte traço de locação no seu aspecto imobiliário e de natureza ainda dúplice, com forte traço de locação no seu aspecto imobiliário e de natureza ainda
atípica no seu aspecto logístico/administrativo, a interpretação de suas cláusulas, atípica no seu aspecto logístico/administrativo, a interpretação de suas cláusulas,
na ausência de uma mínima regulamentação legal, deve ser feita com base em na ausência de uma mínima regulamentação legal, deve ser feita com base em
princípios garantidos constitucionalmente no ordenamento jurídico pátrio, bem princípios garantidos constitucionalmente no ordenamento jurídico pátrio, bem
como nas regras da Teoria Geral dos Contratos. como nas regras da Teoria Geral dos Contratos.
Sob esse enfoque devem ser traçadas as balizas para o exame de cláusulas Sob esse enfoque devem ser traçadas as balizas para o exame de cláusulas
que proíbam o lojista que instalou sua loja em um empreendimento de shopping que proíbam o lojista que instalou sua loja em um empreendimento de shopping
center de abrir filiais de seu estabelecimento empresarial. center de abrir filiais de seu estabelecimento empresarial.
Aspectos controvertidos a respeito da cláusula vedatória de abertura de filial… 249 Aspectos controvertidos a respeito da cláusula vedatória de abertura de filial… 249

Assim é que, caso essa regra inserida em contrato tenha razoabilidade e vise Assim é que, caso essa regra inserida em contrato tenha razoabilidade e vise
tão somente o benefício do lojista em conjunto com a maximização do volume de tão somente o benefício do lojista em conjunto com a maximização do volume de
vendas do shopping center, não há óbice para sua adoção, a exemplo do tipo de vendas do shopping center, não há óbice para sua adoção, a exemplo do tipo de
cláusula que vede a abertura de filial nas cercanias do shopping center. cláusula que vede a abertura de filial nas cercanias do shopping center.

No entanto, tal não ocorre quando tal proibição não encontra guarida nas regras No entanto, tal não ocorre quando tal proibição não encontra guarida nas regras
constitucionais referentes à ordem econômica, vez que é defeso ao administrador constitucionais referentes à ordem econômica, vez que é defeso ao administrador
de shopping center violar o princípio da livre iniciativa e o da livre concorrência, de shopping center violar o princípio da livre iniciativa e o da livre concorrência,
podendo o mesmo ser punido por infração à ordem econômica, na forma da Lei podendo o mesmo ser punido por infração à ordem econômica, na forma da Lei
nº 8.884/94. nº 8.884/94.

6. Referências 6. Referências
ARRUDA, José Soares: LÔBO, Carlos Augusto da Silveira (org.). “Shopping Center” ARRUDA, José Soares: LÔBO, Carlos Augusto da Silveira (org.). “Shopping Center”
Aspectos Jurídicos. 1ª edição, São Paulo: REVISTA DOS TRIBUNAIS, 1984. Aspectos Jurídicos. 1ª edição, São Paulo: REVISTA DOS TRIBUNAIS, 1984.

CERVEIRA FILHO, Mário. Shopping Centers: direitos dos lojistas – 2. ed., São Paulo: CERVEIRA FILHO, Mário. Shopping Centers: direitos dos lojistas – 2. ed., São Paulo:
Saraiva, 2000. Saraiva, 2000.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 1., 7. ed., São Paulo: Saraiva, COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 1., 7. ed., São Paulo: Saraiva,
2003 2003

DINIZ, Maria Helena. Lei de Locações de Imóveis Urbanos Comentada. São Paulo: DINIZ, Maria Helena. Lei de Locações de Imóveis Urbanos Comentada. São Paulo:
Saraiva, 1997. Saraiva, 1997.

DRAGO, Guilherme Araujo. O negócio jurídico de shopping center como contrato misto. DRAGO, Guilherme Araujo. O negócio jurídico de shopping center como contrato misto.
Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 209, 31 jan. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 209, 31 jan. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.
com.br/doutrina/texto.asp?id=4780>. Acesso em: 09 fev. 2007. com.br/doutrina/texto.asp?id=4780>. Acesso em: 09 fev. 2007.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, 10. ed, São Paulo: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, 10. ed, São Paulo:
Malheiros, 2005. Malheiros, 2005.

LIMA FILHO, Alberto de Oliveira. Shopping Centers – EUS vs. Brasil: uma análise LIMA FILHO, Alberto de Oliveira. Shopping Centers – EUS vs. Brasil: uma análise
mercadológica comparativa, 1971. mercadológica comparativa, 1971.

MAMEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del MAMEDE, Gladston. Contrato de Locação em Shopping Center, Belo Horizonte: Del
Rey, 2000. Rey, 2000.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da
Vontade, vol.3, 30. ed, São Paulo: Saraiva, 2004. Vontade, vol.3, 30. ed, São Paulo: Saraiva, 2004.

VERRI, Maria Elisa Gualandi. Shopping Centers: aspectos jurídicos e origem. Belo Ho- VERRI, Maria Elisa Gualandi. Shopping Centers: aspectos jurídicos e origem. Belo Ho-
rizonte: Del Rey, 1996. rizonte: Del Rey, 1996.
Capítulo XVIII Capítulo XVIII
Foucault: entre o Poder e o ­Direito Foucault: entre o Poder e o ­Direito
Felipe Jacques Silva* Felipe Jacques Silva*

Sumário • 1. As Bases do Pensamento de Foucault: 1.2. Os Métodos: Arqueológico e Genealógico; 1.3. As Sumário • 1. As Bases do Pensamento de Foucault: 1.2. Os Métodos: Arqueológico e Genealógico; 1.3. As
Relações de Poder: 1.3.1. O Poder-Saber; 1.3.2. A Microfísica do Poder; 1.3.3. O Contrapoder; 1.3.4. Os Relações de Poder: 1.3.1. O Poder-Saber; 1.3.2. A Microfísica do Poder; 1.3.3. O Contrapoder; 1.3.4. Os
Dispositivos Disciplinares; 2. Questionamentos sobre a existência das verdades universais e do “humanis- Dispositivos Disciplinares; 2. Questionamentos sobre a existência das verdades universais e do “humanis-
mo” – 3. A Normalização – 4. Os Dispositivos Jurídicos segundo Foucault: 4.1. A Lei; 4.2. A Revolução; 4.3. mo” – 3. A Normalização – 4. Os Dispositivos Jurídicos segundo Foucault: 4.1. A Lei; 4.2. A Revolução; 4.3.
O Crime; 4.4. A Pena; 4.5. A Transição Paradigmática da Justiça Criminal; 4.6. As Ciências Extrajurídicas – O Crime; 4.4. A Pena; 4.5. A Transição Paradigmática da Justiça Criminal; 4.6. As Ciências Extrajurídicas –
5. Conclusão – 6. Referências Bibliográficas. 5. Conclusão – 6. Referências Bibliográficas.

“No pensamento e na análise política ainda não cortaram a “No pensamento e na análise política ainda não cortaram a
cabeça do rei” (Michel Foucault). cabeça do rei” (Michel Foucault).

É, no mínimo, curiosa a relação que estabelece o título desse trabalho, visto É, no mínimo, curiosa a relação que estabelece o título desse trabalho, visto
que Michel Foucault (1926-1984) nunca se deteve a estabelecer um conceito, muito que Michel Foucault (1926-1984) nunca se deteve a estabelecer um conceito, muito
menos, uma teoria, seja sobre o poder ou o direito. Entretanto, muitos intérpretes menos, uma teoria, seja sobre o poder ou o direito. Entretanto, muitos intérpretes
legam-no esta produção, principalmente, no que tange ao poder. legam-no esta produção, principalmente, no que tange ao poder.
O próprio filósofo, na obra O Sujeito e o Poder, refuta essa idéia, ao afirmar O próprio filósofo, na obra O Sujeito e o Poder, refuta essa idéia, ao afirmar
que o objetivo de seu trabalho – desde o início da década de sessenta, a partir que o objetivo de seu trabalho – desde o início da década de sessenta, a partir
do momento em que escreveu suas obras mais consagradas – “não foi analisar o do momento em que escreveu suas obras mais consagradas – “não foi analisar o
fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal análise”1. Apesar disto, fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal análise”1. Apesar disto,
pedimos a vênia para discordar do ilustre pensador no que se refere à produção pedimos a vênia para discordar do ilustre pensador no que se refere à produção
de uma analítica do poder e, por via reflexa, da ciência jurídica através de seus de uma analítica do poder e, por via reflexa, da ciência jurídica através de seus
dispositivos. Sabido que seus estudos são marcados pela inter-relação dos objetos dispositivos. Sabido que seus estudos são marcados pela inter-relação dos objetos
centrais com sua forma peculiar de apreciação do poder. centrais com sua forma peculiar de apreciação do poder.
A referência a um estudo indireto dá-se pelo fato da rejeição às teorias jurí- A referência a um estudo indireto dá-se pelo fato da rejeição às teorias jurí-
dicas do poder, ou melhor, à concepção de lei ou Estado, enquanto encarnação dicas do poder, ou melhor, à concepção de lei ou Estado, enquanto encarnação
do poder. Pois, veremos que este nada tem de negativo ou de personificado na do poder. Pois, veremos que este nada tem de negativo ou de personificado na
abordagem foucaultiana, antes imaterial, difuso e operacionalizável, o que nos abordagem foucaultiana, antes imaterial, difuso e operacionalizável, o que nos
basta saber por hora. basta saber por hora.
Malgrado, ressalte-se que a formulação do modo especial de abordagem do Malgrado, ressalte-se que a formulação do modo especial de abordagem do
poder e do direito, que se invoca em Foucault, tem suas origens na substituição do poder e do direito, que se invoca em Foucault, tem suas origens na substituição do

* Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Membro do Centro de * Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Membro do Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicos da UFBa (CEPEJ). O presente trabalho inscreve-se no programa Estudos e Pesquisas Jurídicos da UFBa (CEPEJ). O presente trabalho inscreve-se no programa
de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), ano 2006-2007, sob orientação do Prof. Dr. José Euclimar Xavier de Menezes. E-mail: (CNPq), ano 2006-2007, sob orientação do Prof. Dr. José Euclimar Xavier de Menezes. E-mail:
felipejacques@yahoo.com.br. felipejacques@yahoo.com.br.
1. FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. P.231. 1. FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. P.231.
252 Felipe Jacques Silva 252 Felipe Jacques Silva

rei absoluto e de sua lei que a tudo sancionava, durante os séculos XVII e XVIII, rei absoluto e de sua lei que a tudo sancionava, durante os séculos XVII e XVIII,
pelo surgimento das instituições disciplinares e seus dispositivos. pelo surgimento das instituições disciplinares e seus dispositivos.
Portanto, são os dispositivos jurídicos e não o direito per si, que aqui se Portanto, são os dispositivos jurídicos e não o direito per si, que aqui se
relacionará com o poder desvendado por Foucault. Mas para isso, faz-se mister relacionará com o poder desvendado por Foucault. Mas para isso, faz-se mister
compreender as premissas de seu pensamento. compreender as premissas de seu pensamento.

1. AS BASES DO PENSAMENTO DE FOUCAULT 1. AS BASES DO PENSAMENTO DE FOUCAULT


Poder, saber, instituições, dispositivos jurídicos ou não, “humanismo”, verda- Poder, saber, instituições, dispositivos jurídicos ou não, “humanismo”, verda-
des universais, enfim, muitos dos objetos desse estudo passarão a ser vistos com des universais, enfim, muitos dos objetos desse estudo passarão a ser vistos com
outros olhos a partir desta leitura. Com os olhos de quem viu, ao mesmo tempo, outros olhos a partir desta leitura. Com os olhos de quem viu, ao mesmo tempo,
além e na contramão de seu tempo, daquele que nos parece muito mais mal com- além e na contramão de seu tempo, daquele que nos parece muito mais mal com-
preendido do que bem criticado, portanto, damos às vezes para Foucault, sem, preendido do que bem criticado, portanto, damos às vezes para Foucault, sem,
entretanto, nos deixar cegar pelo encantamento de seu discurso. entretanto, nos deixar cegar pelo encantamento de seu discurso.

1.2. Os métodos: arqueológico e genealógico 1.2. Os métodos: arqueológico e genealógico


A metodologia utilizada por Foucault para prover sua argumentação é extre- A metodologia utilizada por Foucault para prover sua argumentação é extre-
mamente peculiar, não há uma cronologia histórica, assim, dados, fatos e textos mamente peculiar, não há uma cronologia histórica, assim, dados, fatos e textos
circulam sobre uma atmosfera atemporal, buscando que o leitor adquira uma forma circulam sobre uma atmosfera atemporal, buscando que o leitor adquira uma forma
especial de pensar. Esta ausência de sincronia e linearidade histórica, somada à especial de pensar. Esta ausência de sincronia e linearidade histórica, somada à
busca de desvendar como os saberes aparecem e se transformam a partir de uma busca de desvendar como os saberes aparecem e se transformam a partir de uma
análise histórico-política pontual é a denominada “arqueologia”2. Esta que abarca análise histórico-política pontual é a denominada “arqueologia”2. Esta que abarca
as formas de pensamento necessárias, inconscientes e anônimas3, conhecidas como as formas de pensamento necessárias, inconscientes e anônimas3, conhecidas como
“epistemes”. Logo, indispensáveis para o entendimento das obras do autor, visto “epistemes”. Logo, indispensáveis para o entendimento das obras do autor, visto
que são um a priori histórico que: que são um a priori histórico que:
[…] num dado período delimita na totalidade da experiência um campo do sa­- […] num dado período delimita na totalidade da experiência um campo do sa­-
ber, define o modo de ser dos objetos que aparecem naquele campo, apresenta ber, define o modo de ser dos objetos que aparecem naquele campo, apresenta
modelos teóricos à percepção cotidiana do homem e define as condições em modelos teóricos à percepção cotidiana do homem e define as condições em
que ele pode sustentar um discurso sobre coisas que são reconhecidas como que ele pode sustentar um discurso sobre coisas que são reconhecidas como
verdadeiras4. verdadeiras4.

Assim, além de conter vários campos do saber, a “episteme” também envol- Assim, além de conter vários campos do saber, a “episteme” também envol-
ve diferentes épocas do pensamento ocidental, que são “desenterrados”, dando ve diferentes épocas do pensamento ocidental, que são “desenterrados”, dando
prossecução à composição do modelo arqueológico5. prossecução à composição do modelo arqueológico5.

2. DE SÁ, Raquel Stela. A Arqueologia: como os saberes aparecem e se transformam. 2. DE SÁ, Raquel Stela. A Arqueologia: como os saberes aparecem e se transformam.
3. MERQUIOR, J.G. Michel Foucault ou o Niilismo de Cátedra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 3. MERQUIOR, J.G. Michel Foucault ou o Niilismo de Cátedra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1985. p.50 1985. p.50
4. Idem, Ibidem, p.50. 4. Idem, Ibidem, p.50.
5. Idem, Ibidem, p.51. 5. Idem, Ibidem, p.51.
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 253 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 253

Foucault funda, portanto, um novo método analítico, uma vez que suas “episte- Foucault funda, portanto, um novo método analítico, uma vez que suas “episte-
mes”, principal forma de organização textual e construção argumentativa, provêm mes”, principal forma de organização textual e construção argumentativa, provêm
de fatos marginalizados, não difundidos, destarte ocultados, e muitas vezes tidos de fatos marginalizados, não difundidos, destarte ocultados, e muitas vezes tidos
como mito. Discursos únicos e que deixaram obscurecida a história por estarem como mito. Discursos únicos e que deixaram obscurecida a história por estarem
limitados a poucos – alguns membros do clero, da nobreza e da burguesia até o limitados a poucos – alguns membros do clero, da nobreza e da burguesia até o
século XIX, e um número pequeno de pesquisadores na modernidade –, muitas século XIX, e um número pequeno de pesquisadores na modernidade –, muitas
vezes impossibilitados de relatarem a existência desse conhecimento. No entanto, vezes impossibilitados de relatarem a existência desse conhecimento. No entanto,
este não foi o posicionamento de Foucault em um panorama geral, já que grande este não foi o posicionamento de Foucault em um panorama geral, já que grande
parte de sua retórica advém de bibliotecas restritas, algumas até da realeza européia, parte de sua retórica advém de bibliotecas restritas, algumas até da realeza européia,
e arquivos esquecidos, que acumulam séculos de uma história não contada. e arquivos esquecidos, que acumulam séculos de uma história não contada.
Deste modo, além de isolar a análise do fato em “epistemes”, é constante a Deste modo, além de isolar a análise do fato em “epistemes”, é constante a
utilização desses arquivos para estabelecer liames com o presente, uma investiga­­ção utilização desses arquivos para estabelecer liames com o presente, uma investiga­­ção
que ele denomina de “genealogia” (temporal). Método através do qual acontece: que ele denomina de “genealogia” (temporal). Método através do qual acontece:
O acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a consti- O acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a consti-
tuição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais tuição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais
(...). Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legiti- (...). Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legiti-
mados, contra a instância teórica unitária que pretende depurá-los, hieraquizá-los, mados, contra a instância teórica unitária que pretende depurá-los, hieraquizá-los,
ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome de uma ciência ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome de uma ciência
detida por alguns6. detida por alguns6.

Malgrado, qual seria a diferença entre “arqueologia” e “genealogia” (tempo- Malgrado, qual seria a diferença entre “arqueologia” e “genealogia” (tempo-
ral)? Para alguns autores, como o excêntrico filósofo contemporâneo de Foucault, ral)? Para alguns autores, como o excêntrico filósofo contemporâneo de Foucault,
Gilles Deleuze: Gilles Deleuze:
A arqueologia e a genealogia são igualmente uma genealogia. A arqueologia não A arqueologia e a genealogia são igualmente uma genealogia. A arqueologia não
é necessariamente o passado. Há uma arqueologia do presente; de certa maneira é necessariamente o passado. Há uma arqueologia do presente; de certa maneira
ela está sempre no presente7. ela está sempre no presente7.

Segundo ele, os arquivos que são objetos da arqueologia sempre se relacionam Segundo ele, os arquivos que são objetos da arqueologia sempre se relacionam
a uma contribuição no presente. Entretanto, não adotamos este posicionamento, a uma contribuição no presente. Entretanto, não adotamos este posicionamento,
utilizando neste estudo, a idéia de conceitos diferentes entre as modalidades me- utilizando neste estudo, a idéia de conceitos diferentes entre as modalidades me-
todológicas. Destarte concebe-se arqueologia como camadas distintas de conheci- todológicas. Destarte concebe-se arqueologia como camadas distintas de conheci-
mento com sua peculiaridade temporal, que nada tem de imediato com o presente. mento com sua peculiaridade temporal, que nada tem de imediato com o presente.
Por exemplo, as “epistemes” que são retratadas no início da obra Vigiar e Punir, Por exemplo, as “epistemes” que são retratadas no início da obra Vigiar e Punir,
uma suscita o minucioso suplício de um parricida em meados do século XVIII, e uma suscita o minucioso suplício de um parricida em meados do século XVIII, e
a outra descreve os horários das atividades diárias na “Casa dos jovens detentos a outra descreve os horários das atividades diárias na “Casa dos jovens detentos
em Paris” no final do mesmo século. Mas ambas as leituras não remetem direta- em Paris” no final do mesmo século. Mas ambas as leituras não remetem direta-
mente ao presente, servindo de ilustração para um aprimoramento do saber sobre a mente ao presente, servindo de ilustração para um aprimoramento do saber sobre a
época, o que não impede, doravante, um embasamento para se discutir o presente. época, o que não impede, doravante, um embasamento para se discutir o presente.

6. FOUCAULT, M., Microfísica do Poder.p. 171. 6. FOUCAULT, M., Microfísica do Poder.p. 171.
7. DELEUZE, G., Conversações, p. 120. 7. DELEUZE, G., Conversações, p. 120.
254 Felipe Jacques Silva 254 Felipe Jacques Silva

Construção diversa se verifica na genealogia, que necessariamente reporta- Construção diversa se verifica na genealogia, que necessariamente reporta-
se a um fato presente. Pois ela atua no passado com “vetores” que vinculam os se a um fato presente. Pois ela atua no passado com “vetores” que vinculam os
acontecimentos relatados à atualidade. Pode-se evidenciar, então, que a genealogia acontecimentos relatados à atualidade. Pode-se evidenciar, então, que a genealogia
se origina de uma arqueologia, enquanto sistema de discursos históricos dispos- se origina de uma arqueologia, enquanto sistema de discursos históricos dispos-
tos em camadas, mas nunca na sua aplicação manifestada por um fato isolado. tos em camadas, mas nunca na sua aplicação manifestada por um fato isolado.
Exemplificativamente, argüi-se o nexo estabelecido por Foucault para explicar Exemplificativamente, argüi-se o nexo estabelecido por Foucault para explicar
a crescente utilização das penas de prisão no ocidente, retratando uma crítica de a crescente utilização das penas de prisão no ocidente, retratando uma crítica de
seu processo paradigmático, assim: seu processo paradigmático, assim:
(...) se eu traí meu país, sou preso; se matei meu pai, sou preso; todos os delitos (...) se eu traí meu país, sou preso; se matei meu pai, sou preso; todos os delitos
imagináveis são punidos da maneira mais uniforme. Tenho a impressão de ver um imagináveis são punidos da maneira mais uniforme. Tenho a impressão de ver um
médico que, para todas as doenças, tem o mesmo remédio8. médico que, para todas as doenças, tem o mesmo remédio8.

Visto isso, sintetizamos nessa passagem as duas formas essenciais do método Visto isso, sintetizamos nessa passagem as duas formas essenciais do método
de apreciação foucaultiano. Entretanto, além da genealogia temporal, que foi de apreciação foucaultiano. Entretanto, além da genealogia temporal, que foi
abordada supra, ainda suscita-se a genealogia do poder, que, por entendermos se abordada supra, ainda suscita-se a genealogia do poder, que, por entendermos se
confundir com o próprio pensamento do filósofo na analítica do poder, reportar- confundir com o próprio pensamento do filósofo na analítica do poder, reportar-
nos-emos a esta no próximo tópico. nos-emos a esta no próximo tópico.

1.3. As relações de poder 1.3. As relações de poder


Há uma necessidade, neste ponto, de analisarmos os objetos separadamente, Há uma necessidade, neste ponto, de analisarmos os objetos separadamente,
na ordem, o poder e, posteriormente, a relação, para daí chegarmos a nosso escopo, na ordem, o poder e, posteriormente, a relação, para daí chegarmos a nosso escopo,
a relação de poder. a relação de poder.
Como já suscitado, não é nosso objetivo conceituar o poder, tampouco re- Como já suscitado, não é nosso objetivo conceituar o poder, tampouco re-
correr aos conceitos já existentes, que por sinal são intensamente combatidos por correr aos conceitos já existentes, que por sinal são intensamente combatidos por
Foucault. Mais que isso, serão apresentadas as características desse ente, que para Foucault. Mais que isso, serão apresentadas as características desse ente, que para
o pensador, extrapola as barreiras do reducionismo conceitual. o pensador, extrapola as barreiras do reducionismo conceitual.
Seguindo os critérios, magistralmente, adotados por Thamy Pogrebinshi9; Seguindo os critérios, magistralmente, adotados por Thamy Pogrebinshi9;
assim caracterizamos o poder foucaultiano: assim caracterizamos o poder foucaultiano:
a) Positividade – a grande maioria das teorias que tentaram conceituar o a) Positividade – a grande maioria das teorias que tentaram conceituar o
poder acabou por descrevê-lo como um ente negativo, de força, repressão poder acabou por descrevê-lo como um ente negativo, de força, repressão
ou dominação, em alguns casos, visando apenas à depreciação do corpo ou dominação, em alguns casos, visando apenas à depreciação do corpo
social como um todo. Enfim, são múltiplos os exemplos que podem ser social como um todo. Enfim, são múltiplos os exemplos que podem ser
elencados nesta linha, a saber, o Marxismo, a Teoria de Nietzche, e a Teoria elencados nesta linha, a saber, o Marxismo, a Teoria de Nietzche, e a Teoria
de Reich. de Reich.
Foucault, então, incumbiu-se de refutar estes posicionamentos, afirmando a Foucault, então, incumbiu-se de refutar estes posicionamentos, afirmando a
necessidade, e a própria indissociação do poder nas relações em sociedade. necessidade, e a própria indissociação do poder nas relações em sociedade.

8. Ch. Chabroud, Archives Parlementaires, t. XXVI, p. 618 apud FOUCAULT, M.. Vigiar e Punir. 8. Ch. Chabroud, Archives Parlementaires, t. XXVI, p. 618 apud FOUCAULT, M.. Vigiar e Punir.
Op. Cit. p. 97. Op. Cit. p. 97.
9. Mestra em Direito pela PUC/RJ e Doutora em Ciências Políticas pela Iuperj. 9. Mestra em Direito pela PUC/RJ e Doutora em Ciências Políticas pela Iuperj.
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 255 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 255

b) Difuso10 – está em toda parte e ao mesmo tempo em lugar algum. b) Difuso10 – está em toda parte e ao mesmo tempo em lugar algum.
c) Imaterial e não–subjetivo – é uma abstração, ente incorpóreo inerente à c) Imaterial e não–subjetivo – é uma abstração, ente incorpóreo inerente à
relação; enquadrando-se como extra-patrimonial, ou seja, ninguém pode relação; enquadrando-se como extra-patrimonial, ou seja, ninguém pode
tomá-lo como propriedade, consequentemente, não há que se falar em tomá-lo como propriedade, consequentemente, não há que se falar em
“detentores do poder”, seja por via pecuniária ou legal, por exemplo. “detentores do poder”, seja por via pecuniária ou legal, por exemplo.
d) Circular e Transitório11 – é operacionalizável, manejado, circulando de d) Circular e Transitório11 – é operacionalizável, manejado, circulando de
forma efêmera por todos que podem fruí-lo, entretanto que não detêm a forma efêmera por todos que podem fruí-lo, entretanto que não detêm a
capacidade de freá-lo. capacidade de freá-lo.
e) Imanente – por mais que possa parecer contraditório devido ao caráter e) Imanente – por mais que possa parecer contraditório devido ao caráter
difuso e imaterial, o poder pode ser intrínseco a determinados entes de sua difuso e imaterial, o poder pode ser intrínseco a determinados entes de sua
manifestação, como o saber e o sexo. manifestação, como o saber e o sexo.
f) Não-ideologizado e Não-dualístico – não é passível de ser determinado f) Não-ideologizado e Não-dualístico – não é passível de ser determinado
ou conceituado por postulados ideológicos, daí o próprio pensador ter ou conceituado por postulados ideológicos, daí o próprio pensador ter
afirmado que não teve a intenção de analisar o poder nem seus possíveis afirmado que não teve a intenção de analisar o poder nem seus possíveis
fundamentos. Além disso, é impróprio figurar como seu fator existencial, fundamentos. Além disso, é impróprio figurar como seu fator existencial,
a necessária oposição de interesses qualificada de maneira maniqueísta, na a necessária oposição de interesses qualificada de maneira maniqueísta, na
contraposição entre bons e maus, dominadores e dominados, por exemplo. contraposição entre bons e maus, dominadores e dominados, por exemplo.
Vistas estas classificações, pode-se, então, explicar o funcionamento da Vistas estas classificações, pode-se, então, explicar o funcionamento da
Genealogia do Poder. Como foi dito, é um método que se confunde com a pró- Genealogia do Poder. Como foi dito, é um método que se confunde com a pró-
pria analítica do poder, pois, se este é manejado pelos componentes atômicos da pria analítica do poder, pois, se este é manejado pelos componentes atômicos da
sociedade, por exemplo, o corpo e os dispositivos disciplinares, logo, o exame sociedade, por exemplo, o corpo e os dispositivos disciplinares, logo, o exame
promovido pelo filósofo parte do micro para o macro, em um escalonamento de promovido pelo filósofo parte do micro para o macro, em um escalonamento de
importância inversa, em que o mínimo se sobrepõe ao máximo, cuja ascendência importância inversa, em que o mínimo se sobrepõe ao máximo, cuja ascendência
provoca uma gradual desnaturação no que se refere ao manejo do poder. Isso é provoca uma gradual desnaturação no que se refere ao manejo do poder. Isso é
o bastante por hora. o bastante por hora.
Voltaremos nossas atenções agora para a relação, a qual não se faz necessá- Voltaremos nossas atenções agora para a relação, a qual não se faz necessá-
rio provar ser um ato, uma vez que o ser humano é essencial a esta. Entretanto, rio provar ser um ato, uma vez que o ser humano é essencial a esta. Entretanto,
o posicionamento foucaultiano torna desnecessário figurarem, no mínimo, dois o posicionamento foucaultiano torna desnecessário figurarem, no mínimo, dois
sujeitos para sua consecução, como suscita a parxi, já que aparecem em cena sujeitos para sua consecução, como suscita a parxi, já que aparecem em cena
os dispositivos de poder, que são mais apropriadamente tratados como entes ou os dispositivos de poder, que são mais apropriadamente tratados como entes ou
organizações. organizações.
Ressalva-se a difícil aplicabilidade do termo sujeito, representando um Ressalva-se a difícil aplicabilidade do termo sujeito, representando um
membro da relação, já que afirma Foucault, membro da relação, já que afirma Foucault,

10. Classificação adotada por nós, em razão de sua notável importância, estando ela, porém, suben- 10. Classificação adotada por nós, em razão de sua notável importância, estando ela, porém, suben-
tendida na divisão efetuada por Thamy Pogrebinchi. tendida na divisão efetuada por Thamy Pogrebinchi.
11. Thamy Pogrebinchi utiliza esta classificação apenas como nota metodológica. 11. Thamy Pogrebinchi utiliza esta classificação apenas como nota metodológica.
256 Felipe Jacques Silva 256 Felipe Jacques Silva

Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle e depen- Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle e depen-
dência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. dência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento.
Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a.

Deste modo, é preferível o termo corpo, que a partir de então será frequen- Deste modo, é preferível o termo corpo, que a partir de então será frequen-
temente utilizado. temente utilizado.
Malgrado ainda é importante questionar sobre a produção de efeitos de uma Malgrado ainda é importante questionar sobre a produção de efeitos de uma
relação, em outras palavras, só seria relação aquela que produz efeitos? Isto não relação, em outras palavras, só seria relação aquela que produz efeitos? Isto não
é postulado expressamente por Foucault, assim sendo adotaremos o critério de é postulado expressamente por Foucault, assim sendo adotaremos o critério de
que relação é todo vínculo direta ou indiretamente estabelecido entre os corpos que relação é todo vínculo direta ou indiretamente estabelecido entre os corpos
ou de no mínimo um destes para com o(s) dispositivo(s). ou de no mínimo um destes para com o(s) dispositivo(s).
Sabe-se até então da idoneidade da utilização das partes da relação – corpo e Sabe-se até então da idoneidade da utilização das partes da relação – corpo e
dispositivos – escolhidas por Foucault para compor a relação de poder, mas faz-se dispositivos – escolhidas por Foucault para compor a relação de poder, mas faz-se
necessário especificá-las. necessário especificá-las.
O corpo é mais que a simples personificação do indivíduo, é antes sua indivi- O corpo é mais que a simples personificação do indivíduo, é antes sua indivi-
dualidade cultural, em outras palavras, é a moldura que a política do saber provoca dualidade cultural, em outras palavras, é a moldura que a política do saber provoca
no “ser primitivo”. O homem perde sua identidade de igualdade fisiológica e passa no “ser primitivo”. O homem perde sua identidade de igualdade fisiológica e passa
a ser pautado no campo do saber, da subjetividade. Não mais o ser humano per a ser pautado no campo do saber, da subjetividade. Não mais o ser humano per
si será levado em consideração, mas o normal, o condenado, o louco, o escolar, si será levado em consideração, mas o normal, o condenado, o louco, o escolar,
dentre outros, possibilitando que um único indivíduo possa pairar dentre os di- dentre outros, possibilitando que um único indivíduo possa pairar dentre os di-
versos corpos pelo universo do saber, por exemplo, um corpo sexualizado não versos corpos pelo universo do saber, por exemplo, um corpo sexualizado não
deixa de ser condenado. deixa de ser condenado.
Já o dispositivo é segundo Foucault: Já o dispositivo é segundo Foucault:
“(...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, “(...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas. Em suma o enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas. Em suma o
dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre estes elementos12. estabelecer entre estes elementos12.

Portanto, evidencia-se, claramente, na definição do autor, que os dispositivos Portanto, evidencia-se, claramente, na definição do autor, que os dispositivos
nada mais são que a representação da tecnologia do saber em entes culturais re- nada mais são que a representação da tecnologia do saber em entes culturais re-
gulamentadores ou operacionalizadores do poder sobre o corpo. Porquanto, mais gulamentadores ou operacionalizadores do poder sobre o corpo. Porquanto, mais
adiante será abordado particularmente a importância do dispositivo disciplinar e adiante será abordado particularmente a importância do dispositivo disciplinar e
seus possíveis efeitos nos corpos, visto que é o mais enaltecido pelo filósofo. seus possíveis efeitos nos corpos, visto que é o mais enaltecido pelo filósofo.
Finalmente, chegamos à relação de poder, e esclarecemos desde já, que não Finalmente, chegamos à relação de poder, e esclarecemos desde já, que não
indo de encontro a nenhuma das características dos seus componentes isolada- indo de encontro a nenhuma das características dos seus componentes isolada-
mente – relação e poder –, esta apenas deve respeitar a mais uma condição de mente – relação e poder –, esta apenas deve respeitar a mais uma condição de
existência, a liberdade. existência, a liberdade.

12. Idem, Ibidem, p. 244. 12. Idem, Ibidem, p. 244.


Foucault: entre o Poder e o ­Direito 257 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 257

O poder, deste modo, só se exerce de forma livre, não se estabelecendo a O poder, deste modo, só se exerce de forma livre, não se estabelecendo a
relação na coerção, na repressão física ou moral, quando o corpo encontra-se relação na coerção, na repressão física ou moral, quando o corpo encontra-se
impossibilitado de uma atitude contrária, de reação àquela que se impõe. Por impossibilitado de uma atitude contrária, de reação àquela que se impõe. Por
isso Foucault proclama não ser a escravidão uma relação de poder completa, pois isso Foucault proclama não ser a escravidão uma relação de poder completa, pois
enquanto estiver atuando sobre ameaça ou coação, o escravo não tem meios para enquanto estiver atuando sobre ameaça ou coação, o escravo não tem meios para
repelir tal situação. repelir tal situação.
O mais importante de tudo isso é compreender que o poder tem sua essência O mais importante de tudo isso é compreender que o poder tem sua essência
indissociável da relação, noutros termos, ele só pode ser operacionalizado através indissociável da relação, noutros termos, ele só pode ser operacionalizado através
dela. dela.
Assim, estão postos os requisitos básicos para que possamos explicar outros Assim, estão postos os requisitos básicos para que possamos explicar outros
pilares do pensamento do autor, tais quais: o poder-saber, a microfísica do poder pilares do pensamento do autor, tais quais: o poder-saber, a microfísica do poder
e o contrapoder. e o contrapoder.

1.3.1. O poder-saber 1.3.1. O poder-saber


Fonte e ao mesmo tempo o produto, parte e simultaneamente um conjunto, Fonte e ao mesmo tempo o produto, parte e simultaneamente um conjunto,
assim se comportam o poder e o saber, convivendo em uma produção mútua e assim se comportam o poder e o saber, convivendo em uma produção mútua e
dependente. Em outras palavras, a operacionalização do poder tem como requisito dependente. Em outras palavras, a operacionalização do poder tem como requisito
a utilização ou produção de um conhecimento. Este que extrapola o campo da a utilização ou produção de um conhecimento. Este que extrapola o campo da
ciência propriamente dita, pois é possível expressar-se pela mera construção de ciência propriamente dita, pois é possível expressar-se pela mera construção de
uma frase, ou, até mesmo, através das culturas ditas vulgares, por exemplo. Enfim, uma frase, ou, até mesmo, através das culturas ditas vulgares, por exemplo. Enfim,
tudo que pode ser compreendido pela razão humana é saber, e este sim pode ser tudo que pode ser compreendido pela razão humana é saber, e este sim pode ser
selecionado na operacionalização do poder. selecionado na operacionalização do poder.
Daí falar-se no poder-saber, porquanto: Daí falar-se no poder-saber, porquanto:
“entre técnicas de saber e estratégias de poder, nenhuma exterioridade; mesmo “entre técnicas de saber e estratégias de poder, nenhuma exterioridade; mesmo
que cada uma tenha seu papel específico e que se articulem entre si a partir de que cada uma tenha seu papel específico e que se articulem entre si a partir de
suas diferenças. Partir-se-á, portanto, do que se poderia chamar de focos locais suas diferenças. Partir-se-á, portanto, do que se poderia chamar de focos locais
de poder-saber”13 de poder-saber”13

Enfim, segundo Foucault, não há saber que se exteriorize sem que tenha Enfim, segundo Foucault, não há saber que se exteriorize sem que tenha
ônus de poder. ônus de poder.

1.3.2. A microfísica do poder 1.3.2. A microfísica do poder


O fato de as menores partículas, seja social – o corpo –, ou cultural, como o O fato de as menores partículas, seja social – o corpo –, ou cultural, como o
discurso, figurarem como grandes operacionalizadores do poder no pensamento discurso, figurarem como grandes operacionalizadores do poder no pensamento
foucaultiano é que propicia a articulação destes em um plano horizontal de pos- foucaultiano é que propicia a articulação destes em um plano horizontal de pos-
sibilidades. Logo, promovendo a formação de uma rede de poder, em que seus sibilidades. Logo, promovendo a formação de uma rede de poder, em que seus

13. FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A vontade de saber. p. 93-94. 13. FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A vontade de saber. p. 93-94.
258 Felipe Jacques Silva 258 Felipe Jacques Silva

protagonistas estão, simultaneamente ou em momentos distintos, no pólo ativo protagonistas estão, simultaneamente ou em momentos distintos, no pólo ativo
– exercendo poder – ou no pólo passivo – sofrendo a incidência dele. É, então, a – exercendo poder – ou no pólo passivo – sofrendo a incidência dele. É, então, a
este infinitesimal e ilimitado campo de relações de poder que se chama microfisica este infinitesimal e ilimitado campo de relações de poder que se chama microfisica
do poder. do poder.

1.3.3. O contrapoder 1.3.3. O contrapoder


Foucault não inova apenas na análise de arquivos e documentos esquecidos, Foucault não inova apenas na análise de arquivos e documentos esquecidos,
escondidos, ou que deixaram lacunas históricas, mas também trata do excepcional escondidos, ou que deixaram lacunas históricas, mas também trata do excepcional
no que tange aos entes negativos da sociedade, enquanto manipuladores do poder; no que tange aos entes negativos da sociedade, enquanto manipuladores do poder;
vale ressaltar, por exemplo: o louco, o leproso, o escolar, o militar e o detento. vale ressaltar, por exemplo: o louco, o leproso, o escolar, o militar e o detento.
Enfim, entes considerados como emanadores de contrapoder, ou seja, do poder Enfim, entes considerados como emanadores de contrapoder, ou seja, do poder
que se insurge e reage contra o dito normal, legítimo, moral ou ético. que se insurge e reage contra o dito normal, legítimo, moral ou ético.
A preferência do filósofo por essa abordagem deve-se, segundo ele, a maior A preferência do filósofo por essa abordagem deve-se, segundo ele, a maior
facilidade existente em se examinar o poder a partir de sua exceção. Esta que em facilidade existente em se examinar o poder a partir de sua exceção. Esta que em
momento algum deve ser vista como vítima ou refém dos acontecimentos. momento algum deve ser vista como vítima ou refém dos acontecimentos.
Ressalva-se, então, que para o pensador, o poder excepcional fascina pelo Ressalva-se, então, que para o pensador, o poder excepcional fascina pelo
tratamento diferenciado que requer da sociedade; além de viabilizar a melhor tratamento diferenciado que requer da sociedade; além de viabilizar a melhor
compreensão do emprego e funcionamento de dispositivos, que muitas vezes a compreensão do emprego e funcionamento de dispositivos, que muitas vezes a
ele se designa na busca da contenção e neutralização, exemplificativamente, o ele se designa na busca da contenção e neutralização, exemplificativamente, o
hospício, o leprosário, a escola, o quartel militar e a prisão. hospício, o leprosário, a escola, o quartel militar e a prisão.

1.3.4. Os dispositivos disciplinares 1.3.4. Os dispositivos disciplinares


Voltamos a tratar dos objetos da relação de poder, em especial, dos disposi- Voltamos a tratar dos objetos da relação de poder, em especial, dos disposi-
tivos disciplinares. Entretanto, não desceremos às minúcias que o tema merece, tivos disciplinares. Entretanto, não desceremos às minúcias que o tema merece,
bastando-nos apenas expor as noções gerais indispensáveis para compreensão do bastando-nos apenas expor as noções gerais indispensáveis para compreensão do
pensamento do fi­ lósofo. pensamento do fi­ lósofo.
A disciplina requer uma abordagem isolada por se tratar do dispositivo por A disciplina requer uma abordagem isolada por se tratar do dispositivo por
excelência, uma espécie de “máquina de poder” formadora de corpos submissos excelência, uma espécie de “máquina de poder” formadora de corpos submissos
e exercitados, os chamados corpos “dóceis”, assim a partir de sua instauração: e exercitados, os chamados corpos “dóceis”, assim a partir de sua instauração:
(...) ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente (...) ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente
para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas,
segundo a rapidez e a eficácia que se determina.14 segundo a rapidez e a eficácia que se determina.14

A disciplina atua, portanto, como potencializadora das forças produtivas de A disciplina atua, portanto, como potencializadora das forças produtivas de
aptidão e capacidade do corpo no exercício de determinadas atividades, assim au- aptidão e capacidade do corpo no exercício de determinadas atividades, assim au-
mentando sua utilidade econômica. Em contrapartida, minimiza o poder de reação, mentando sua utilidade econômica. Em contrapartida, minimiza o poder de reação,
de insurgência, o contrapoder, uma vez que, a insubordinação é contida, há uma de insurgência, o contrapoder, uma vez que, a insubordinação é contida, há uma

14. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. p.119. 14. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. p.119.
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 259 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 259

tentativa de coagir, de produzir uma política de obediência, enfim, de alienar. Em tentativa de coagir, de produzir uma política de obediência, enfim, de alienar. Em
suma, diz-se “que a coação disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre suma, diz-se “que a coação disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre
uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”15. uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”15.

2. QUESTIONAMENTOS SOBRE A EXISTÊNCIA DAS VERDADES UNI- 2. QUESTIONAMENTOS SOBRE A EXISTÊNCIA DAS VERDADES UNI-
VERSAIS E DO “HUMANISMO” VERSAIS E DO “HUMANISMO”

Elucidada a teoria da relação de poder e, principalmente, seu nexo existencial Elucidada a teoria da relação de poder e, principalmente, seu nexo existencial
com a liberdade, torna-se compreensível porque todas as análises do pensador com a liberdade, torna-se compreensível porque todas as análises do pensador
“vão de encontro à existência de verdades universais na existência humana”16 e “vão de encontro à existência de verdades universais na existência humana”16 e
da própria noção de “humanismo”. Abarcando-os em uma mesma análise, pelo da própria noção de “humanismo”. Abarcando-os em uma mesma análise, pelo
fato de ambos os conceitos sofrerem um habitual processo de integração; destarte fato de ambos os conceitos sofrerem um habitual processo de integração; destarte
o “humanismo” não é nada mais que uma verdade universal sobre o compor- o “humanismo” não é nada mais que uma verdade universal sobre o compor-
tamento humano, a reiteração de condutas que estabelecem o mínimo ético da tamento humano, a reiteração de condutas que estabelecem o mínimo ético da
relação intersubjetiva ou com dispositivos para que seja respeitada a “dignidade relação intersubjetiva ou com dispositivos para que seja respeitada a “dignidade
da pessoa humana”– conotação contemporânea, que tem suas bases consolidadas da pessoa humana”– conotação contemporânea, que tem suas bases consolidadas
após o século XVIII. após o século XVIII.

No entanto, o autor afirma que essa valoração cultural difusa, tendente a ser No entanto, o autor afirma que essa valoração cultural difusa, tendente a ser
intitulada de “universal” – ressalva-se a inidoneidade da expressão –, foi repetida intitulada de “universal” – ressalva-se a inidoneidade da expressão –, foi repetida
livremente durante a história para justificar posturas segregacionistas, regimes livremente durante a história para justificar posturas segregacionistas, regimes
totalitários e autoritaristas, por exemplo, o Nazismo, o Fascismo, o Stalinismo, totalitários e autoritaristas, por exemplo, o Nazismo, o Fascismo, o Stalinismo,
enfim, esse cinematógrafo de “ismos” que nada têm com o sentido de bondade, enfim, esse cinematógrafo de “ismos” que nada têm com o sentido de bondade,
probidade, sinceridade, fraternidade ou honestidade humana. probidade, sinceridade, fraternidade ou honestidade humana.

Para Foucault, portanto, os dois conceitos configurar-se-iam em limítrofes Para Foucault, portanto, os dois conceitos configurar-se-iam em limítrofes
da liberdade e do poder do corpo, implicando um discurso utilizado como pronto da liberdade e do poder do corpo, implicando um discurso utilizado como pronto
e acabado, e que tem sua formação imemorial aos indivíduos que estão sob sua e acabado, e que tem sua formação imemorial aos indivíduos que estão sob sua
égide. égide.

Porquanto, essencialmente, as verdades são fortes armas para o esquecimento Porquanto, essencialmente, as verdades são fortes armas para o esquecimento
de importantes paradigmas sociais, políticos, econômicos, culturais, enfim, as de importantes paradigmas sociais, políticos, econômicos, culturais, enfim, as
mais diversas metamorfoses na ordem social. Pois se intitulam inquestionáveis, mais diversas metamorfoses na ordem social. Pois se intitulam inquestionáveis,
inviabilizando a coexistência com as verdades que vigoravam anteriormente, visto inviabilizando a coexistência com as verdades que vigoravam anteriormente, visto
que destituídas apenas na total impossibilidade de sua manutenção. Por isso novas que destituídas apenas na total impossibilidade de sua manutenção. Por isso novas
compreensões são engessadas e constantemente reproduzidas. compreensões são engessadas e constantemente reproduzidas.

Deste modo, ressalta-se o caráter difuso e diversificado do enquadramento Deste modo, ressalta-se o caráter difuso e diversificado do enquadramento
de ­verdade: de ­verdade:

15. Idem, Ibidem, p.119. 15. Idem, Ibidem, p.119.


16. Cf. FOUCAULT. M.Verité, pouvoir et soi.., p.781. 16. Cf. FOUCAULT. M.Verité, pouvoir et soi.., p.781.
260 Felipe Jacques Silva 260 Felipe Jacques Silva

Cada  sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade: isto é, Cada  sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade: isto é,
os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos
e instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os meios e instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os meios
pelos quais cada um deles é sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados pelos quais cada um deles é sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados
na aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados  de dizer o que na aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados  de dizer o que
conta como verdadeiro17. conta como verdadeiro17.

Já o específico combate ao “humanismo”, dar-se pelo seu caráter de imperativo Já o específico combate ao “humanismo”, dar-se pelo seu caráter de imperativo
categórico, em outros termos, segundo essa designação, todo homem seria bom, categórico, em outros termos, segundo essa designação, todo homem seria bom,
honesto, diligente, enfim, buscaria sempre o bem comum, zelando pelo bem-estar honesto, diligente, enfim, buscaria sempre o bem comum, zelando pelo bem-estar
do próximo. Algo que, segundo Foucault, é usado constantemente para maquiar do próximo. Algo que, segundo Foucault, é usado constantemente para maquiar
discursos parciais e interesseiros, escondendo a manifestação do poder. discursos parciais e interesseiros, escondendo a manifestação do poder.
Enfim, para o filósofo, nada deve ser posto como absoluto, principalmente, Enfim, para o filósofo, nada deve ser posto como absoluto, principalmente,
quando se trata do caráter e dos discursos humanos quando se trata do caráter e dos discursos humanos

3. A NORMALIZAÇÃO 3. A NORMALIZAÇÃO
A noção de “normalização” é analisada no pensamento foucaultiano, no sen- A noção de “normalização” é analisada no pensamento foucaultiano, no sen-
tido mais primário do termo, de tornar normal, regularizar, padronizar, supondo, tido mais primário do termo, de tornar normal, regularizar, padronizar, supondo,
assim, que existe algo que é excepcional, fora da regra, desvirtuoso, anormal. Este assim, que existe algo que é excepcional, fora da regra, desvirtuoso, anormal. Este
seria todo um rol de condutas e estigmas ilícitos da ordem, o ser enquanto fora do seria todo um rol de condutas e estigmas ilícitos da ordem, o ser enquanto fora do
“dever ser”, enfim, algo que requerer ser normalizados, e caso haja impossibili- “dever ser”, enfim, algo que requerer ser normalizados, e caso haja impossibili-
dade de fazê-lo, terão seus corpos expurgados da sociedade, escondidos, servindo dade de fazê-lo, terão seus corpos expurgados da sociedade, escondidos, servindo
de exemplo. Além disso, farão parte de uma tecnologia do poder para que sejam de exemplo. Além disso, farão parte de uma tecnologia do poder para que sejam
reaproveitados economicamente, podendo-se explorar valia do intitulado inválido. reaproveitados economicamente, podendo-se explorar valia do intitulado inválido.
Mas nem por isso são coitados, pois livres em grande parte de suas condutas e fonte Mas nem por isso são coitados, pois livres em grande parte de suas condutas e fonte
importante de contrapoder. Ressaltando-se sempre que o excepcional amedronta importante de contrapoder. Ressaltando-se sempre que o excepcional amedronta
e põe em perigo a normalidade. e põe em perigo a normalidade.

4. OS DISPOSITIVOS JURIDÍCOS SEGUNDO FOUCAULT 4. OS DISPOSITIVOS JURIDÍCOS SEGUNDO FOUCAULT


A contribuição de Foucault para a Ciência do Direito é substancial. O estudioso A contribuição de Foucault para a Ciência do Direito é substancial. O estudioso
embasa historicamente o advento e utilização de mecanismos jurídicos, através de embasa historicamente o advento e utilização de mecanismos jurídicos, através de
seus métodos essenciais de análise, a arqueologia e a genealogia. seus métodos essenciais de análise, a arqueologia e a genealogia.
Assim, propõe-se analisar o pensamento foucaultiano na abordagem que faz Assim, propõe-se analisar o pensamento foucaultiano na abordagem que faz
dos dispositivos jurídicos, principalmente em seu caráter de penalização e pre- dos dispositivos jurídicos, principalmente em seu caráter de penalização e pre-
venção, que não se limitam a essas características precípuas, destarte invadem o venção, que não se limitam a essas características precípuas, destarte invadem o
campo da docilização e “normalização”. Porquanto, a argumentação do teórico, campo da docilização e “normalização”. Porquanto, a argumentação do teórico,
reportando-se a esses, perpassa pela história da adequação das penas, engendran- reportando-se a esses, perpassa pela história da adequação das penas, engendran-
do pelo pensamento dos “reformadores” durante o século XVIII, até suscitar a do pelo pensamento dos “reformadores” durante o século XVIII, até suscitar a

17. Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. p.12. 17. Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. p.12.
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 261 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 261

perpetuação ou modificação de alguns mecanismos, entre os quais serão aborda- perpetuação ou modificação de alguns mecanismos, entre os quais serão aborda-
dos: a lei, e, a partir dela, a revolução, enquanto meio de modificação do sistema dos: a lei, e, a partir dela, a revolução, enquanto meio de modificação do sistema
jurídico, o crime, a pena, o poder judiciário, a sentença, a medida de segurança, jurídico, o crime, a pena, o poder judiciário, a sentença, a medida de segurança,
e o aparecimento das ciências extrajurídicas. e o aparecimento das ciências extrajurídicas.

4.1. A lei 4.1. A lei


Não mais imiscuída de um poder de império, de caráter permanente e absoluto, Não mais imiscuída de um poder de império, de caráter permanente e absoluto,
como era unicamente interpretada até o fim do século XVII; é assim que a lei se como era unicamente interpretada até o fim do século XVII; é assim que a lei se
configura segundo Foucault. configura segundo Foucault.
Seu surgimento, argüi o pensador, deve-se, basicamente, ao término imposto Seu surgimento, argüi o pensador, deve-se, basicamente, ao término imposto
ou voluntário de uma guerra, que traz consigo o aparecimento de um campo de ou voluntário de uma guerra, que traz consigo o aparecimento de um campo de
ilicitude, o qual seria o maior respaldo para a formulação legal, sobrepondo-se ilicitude, o qual seria o maior respaldo para a formulação legal, sobrepondo-se
em grau de importância, até mesmo, às precípuas necessidades do ordenamento em grau de importância, até mesmo, às precípuas necessidades do ordenamento
social. social.
Ressalva o filósofo que a lei sozinha não coage, cobra resultados, organiza Ressalva o filósofo que a lei sozinha não coage, cobra resultados, organiza
instituições ou pune, destarte ela é a mera manifestação, normalmente, escrita instituições ou pune, destarte ela é a mera manifestação, normalmente, escrita
de regras sociais registradas para figurarem enquanto ordenamento permissivo, de regras sociais registradas para figurarem enquanto ordenamento permissivo,
garantidor ou proibitivo de condutas sob a égide do direito – conceito nosso sobre garantidor ou proibitivo de condutas sob a égide do direito – conceito nosso sobre
lei stricto sensu. Outrossim, a lei, de forma ordinária, não é auto-executória, ela lei stricto sensu. Outrossim, a lei, de forma ordinária, não é auto-executória, ela
depende de dispositivos e da existência e atuação dos corpos, ou seja, apresenta- depende de dispositivos e da existência e atuação dos corpos, ou seja, apresenta-
se em um panorama macro, e por isso, em grande parte, desnaturou-se enquanto se em um panorama macro, e por isso, em grande parte, desnaturou-se enquanto
operacionalizadora do poder. operacionalizadora do poder.
Não obstante é indispensável na estruturação social e funcional de alguns Não obstante é indispensável na estruturação social e funcional de alguns
dispositivos, como a prisão, não sendo, na maioria das vezes, fonte direta de poder, dispositivos, como a prisão, não sendo, na maioria das vezes, fonte direta de poder,
mas, indubitavelmente, limitando seu campo de manejo e expansão. mas, indubitavelmente, limitando seu campo de manejo e expansão.
Assim, “saiu de cena a codificação de comportamentos para entrar em cena a Assim, “saiu de cena a codificação de comportamentos para entrar em cena a
normalização das condutas”18, muito mais específica, casuística e, principalmente, normalização das condutas”18, muito mais específica, casuística e, principalmente,
atuando no mesmo nível dos corpos. atuando no mesmo nível dos corpos.

4.2. A revolução 4.2. A revolução


As revoluções não são, teoricamente, parte do sistema jurídico, mas deter- As revoluções não são, teoricamente, parte do sistema jurídico, mas deter-
minam seu rumo, pois se “bastariam três palavras retificadoras do legislador e minam seu rumo, pois se “bastariam três palavras retificadoras do legislador e
bibliotecas inteiras se transformariam em papel sem valor”19, imagina-se o que bibliotecas inteiras se transformariam em papel sem valor”19, imagina-se o que

18. POGREBINSCHI, Thamy. Foucault, para além do poder disciplinar e do biopoder. p.194. 18. POGREBINSCHI, Thamy. Foucault, para além do poder disciplinar e do biopoder. p.194.
19. FERRAZ Jr., Tércio S. Apud DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à Ciência do 19. FERRAZ Jr., Tércio S. Apud DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à Ciência do
Direito. p. 16. Direito. p. 16.
262 Felipe Jacques Silva 262 Felipe Jacques Silva

ocorre havendo a modificação da Constituição como resultado de um movimen- ocorre havendo a modificação da Constituição como resultado de um movimen-
to revolucionário; a ordem jurídica inteira seria desfigurada? Provavelmente to revolucionário; a ordem jurídica inteira seria desfigurada? Provavelmente
sim, entretanto, Foucault trata deste mito da mudança generalizada, ou de tran- sim, entretanto, Foucault trata deste mito da mudança generalizada, ou de tran-
sição paradigmática, que instaura um novo ordenamento como excepcional, sição paradigmática, que instaura um novo ordenamento como excepcional,
pois: pois:
É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que
introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam
reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando,
traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis.20 traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis.20

Essa afirmação pode ser respaldada pelo fato de as lutas antiautoritárias, ou Essa afirmação pode ser respaldada pelo fato de as lutas antiautoritárias, ou
seja, contra um dito poder abusivo, terem o aspecto “imediato”, ou seja: seja, contra um dito poder abusivo, terem o aspecto “imediato”, ou seja:
Em tais lutas, criticam-se as instâncias de poder que lhes são mais próximas, aquelas Em tais lutas, criticam-se as instâncias de poder que lhes são mais próximas, aquelas
que exercem sua ação sobre os indivíduos. Elas não objetivam um “inimigo mor”, mas que exercem sua ação sobre os indivíduos. Elas não objetivam um “inimigo mor”, mas
o inimigo imediato. Nem esperam encontrar uma solução para seus problemas no fu- o inimigo imediato. Nem esperam encontrar uma solução para seus problemas no fu-
turo (isto é, liberação, revolução, fim da luta de classe). Em relação a uma escala teórica turo (isto é, liberação, revolução, fim da luta de classe). Em relação a uma escala teórica
de explicação ou uma ordem revolucionária que polarize o historiador, são lutas de explicação ou uma ordem revolucionária que polarize o historiador, são lutas
anár­quicas.21 anár­quicas.21

Assim, nessa hipótese, não ocorreriam revoluções, uma vez que estas não se Assim, nessa hipótese, não ocorreriam revoluções, uma vez que estas não se
resumem a simples pseudo-mudança de opressores ou dominadores, pois o poder resumem a simples pseudo-mudança de opressores ou dominadores, pois o poder
é difuso e disperso, passível de ser manejado por todos, mas inapropriável. No é difuso e disperso, passível de ser manejado por todos, mas inapropriável. No
entanto, o desígnio do manejo do poder pela maioria pode promover mudanças entanto, o desígnio do manejo do poder pela maioria pode promover mudanças
no mecanismo disciplinar, de adestramento e de submissão do corpo, que visam, no mecanismo disciplinar, de adestramento e de submissão do corpo, que visam,
igualmente ao regime “deposto”, a uma normalização, mas de forma mais eficaz, igualmente ao regime “deposto”, a uma normalização, mas de forma mais eficaz,
que atenda os anseios sociais iminentes. que atenda os anseios sociais iminentes.
Entretanto Foucault não reduz o conceito de revolução à necessária “mudança” Entretanto Foucault não reduz o conceito de revolução à necessária “mudança”
da ordem social como um todo. Visto que o poder enquanto microfísico atua em da ordem social como um todo. Visto que o poder enquanto microfísico atua em
vários estratos sociais e ideológicos, mas podendo conter a mesma tentativa falha vários estratos sociais e ideológicos, mas podendo conter a mesma tentativa falha
de mudanças do plano macro. Então, afirma que: de mudanças do plano macro. Então, afirma que:
As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes no hospital, os homossexuais, As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes no hospital, os homossexuais,
iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de
controle que se exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do movi- controle que se exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do movi-
mento revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem compromisso mento revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem compromisso
nem reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma nem reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma
mudança de titular22. mudança de titular22.

20. FOUCAULT, M. História da Sexualidade I. p. 92. 20. FOUCAULT, M. História da Sexualidade I. p. 92.
21. FOUCAULT, M., Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da 21. FOUCAULT, M., Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da
hermenêutica. In. DREYFUS, P.; RABINOW, H.p 234. hermenêutica. In. DREYFUS, P.; RABINOW, H.p 234.
22. FOUCAULT, M., Microfísica do Poder. p. 78. 22. FOUCAULT, M., Microfísica do Poder. p. 78.
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 263 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 263

4.3. O crime 4.3. O crime

As alterações nos tipos de crime e sua aplicabilidade não ficam de fora do As alterações nos tipos de crime e sua aplicabilidade não ficam de fora do
fabuloso método de análise desenvolvido por Foucault. fabuloso método de análise desenvolvido por Foucault.

Referindo-se a suas transformações, pode-se identificar na obra do autor, a Referindo-se a suas transformações, pode-se identificar na obra do autor, a
abordagem de uma aparente diminuição da violência nos delitos do século XVIII, abordagem de uma aparente diminuição da violência nos delitos do século XVIII,
e conseqüentemente a moderação de sua censurabilidade, logo penas mais brandas e conseqüentemente a moderação de sua censurabilidade, logo penas mais brandas
passam a ser aplicadas: passam a ser aplicadas:
Desde o final do século XVII, com efeito nota-se uma diminuição considerável Desde o final do século XVII, com efeito nota-se uma diminuição considerável
dos crimes de sangue e, de um modo geral, das agressões físicas; os delitos contra dos crimes de sangue e, de um modo geral, das agressões físicas; os delitos contra
a propriedade parecem prevalecer sobre os crimes violentos; o roubo e a vigarice a propriedade parecem prevalecer sobre os crimes violentos; o roubo e a vigarice
sobre os assassinatos, os ferimentos e golpes; (...)23 sobre os assassinatos, os ferimentos e golpes; (...)23

A justificativa inicial desse processo de transição seria o conjunto de fatores A justificativa inicial desse processo de transição seria o conjunto de fatores
que englobam: uma mudança no jogo de pressões econômicas, a elevação do que englobam: uma mudança no jogo de pressões econômicas, a elevação do
nível de vida – poucos têm muito e muitos têm muito pouco –, forte crescimento nível de vida – poucos têm muito e muitos têm muito pouco –, forte crescimento
demográfico, multiplicação das riquezas e das propriedades, e a necessidade daí demográfico, multiplicação das riquezas e das propriedades, e a necessidade daí
decorrente de uma intensificação da segurança. decorrente de uma intensificação da segurança.

No entanto, a intervenção pontual de Foucault sobre esse fato é de fundamental No entanto, a intervenção pontual de Foucault sobre esse fato é de fundamental
importância para se desvelar uma nova ótica da situação a partir da disposição importância para se desvelar uma nova ótica da situação a partir da disposição
do poder e de seus dispositivos. Alude-se, então, o crime não como uma simples do poder e de seus dispositivos. Alude-se, então, o crime não como uma simples
violação da lei do Estado, mas enquanto ente de poder, neste caso específico, violação da lei do Estado, mas enquanto ente de poder, neste caso específico,
normalmente exercido de baixo para cima na escala social. Em outras palavras, o normalmente exercido de baixo para cima na escala social. Em outras palavras, o
corpo do condenado passa a ser, essencialmente, o corpo marginalizado, aquele corpo do condenado passa a ser, essencialmente, o corpo marginalizado, aquele
com menos recursos materiais. com menos recursos materiais.

Assim, o pensamento foucaultiano não induz a compreensão de que houve Assim, o pensamento foucaultiano não induz a compreensão de que houve
uma mera diminuição dos crimes violentos contra a vida ou integridade física, uma mera diminuição dos crimes violentos contra a vida ou integridade física,
muito além disso, monta todo um panorama que engloba o próprio paradigma muito além disso, monta todo um panorama que engloba o próprio paradigma
social da época: social da época:
Na verdade, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de Na verdade, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de
fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figura o desenvolvimento fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figura o desenvolvimento
da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral maior das da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral maior das
relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um policiamento relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um policiamento
mais estreitado da população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura, mais estreitado da população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura,
de informação: o deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma extensão e de informação: o deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma extensão e
de um afinamento das práticas punitivas.24 de um afinamento das práticas punitivas.24

23. FOUCAULT, M., Vigiar e Punir. p.64. 23. FOUCAULT, M., Vigiar e Punir. p.64.
24. Idem, Ibidem. p.66. 24. Idem, Ibidem. p.66.
264 Felipe Jacques Silva 264 Felipe Jacques Silva

Destarte, conclui-se que esses fatores foram determinantes para tal mudança no Destarte, conclui-se que esses fatores foram determinantes para tal mudança no
caráter da criminalidade. Entretanto, uma lógica tão importante quanto pode ser caráter da criminalidade. Entretanto, uma lógica tão importante quanto pode ser
suscitada: o que era mais drasticamente punido? Os crimes contra a vida. Então suscitada: o que era mais drasticamente punido? Os crimes contra a vida. Então
qual o campo de atuação que o poder do crime pode mais facilmente se expan- qual o campo de atuação que o poder do crime pode mais facilmente se expan-
dir? Os de caráter pecuniário. Logo, fez-se necessário que a tecnologia política dir? Os de caráter pecuniário. Logo, fez-se necessário que a tecnologia política
do poder deslocasse seus meios inibitórios ou controladores no desenvolvimento do poder deslocasse seus meios inibitórios ou controladores no desenvolvimento
de saberes punitivos vinculados a essa nova realidade, dando origem a diversos de saberes punitivos vinculados a essa nova realidade, dando origem a diversos
dispositivos penais, mas, essencialmente, disciplinares. dispositivos penais, mas, essencialmente, disciplinares.
Portanto, o poder inerente ao crime, indubitavelmente um contrapoder, é de Portanto, o poder inerente ao crime, indubitavelmente um contrapoder, é de
fundamental importância para que seja feita uma análise das demais expressões fundamental importância para que seja feita uma análise das demais expressões
do poder dele decorrentes. Entre os quais, o poder de punir. do poder dele decorrentes. Entre os quais, o poder de punir.

4.4. A pena 4.4. A pena


O emprego de penas durante a história, partindo do século XVII, foi objeto O emprego de penas durante a história, partindo do século XVII, foi objeto
dos estudos de Foucault, não por um devaneio jurídico, mas pela necessidade de dos estudos de Foucault, não por um devaneio jurídico, mas pela necessidade de
demonstrar a tecnologia política do corpo que envolvia sua aplicação. demonstrar a tecnologia política do corpo que envolvia sua aplicação.
Ele enumera alguns requisitos da pena, entre os quais, a intenção de castigar, Ele enumera alguns requisitos da pena, entre os quais, a intenção de castigar,
privar de direitos, particularmente a liberdade ou a própria vida, publicizar o castigo privar de direitos, particularmente a liberdade ou a própria vida, publicizar o castigo
para que sirva de exemplo, de modo a evitar ou inibir sua reiteração. para que sirva de exemplo, de modo a evitar ou inibir sua reiteração.

Apesar de não negar o caráter de penitência da pena – afinal, etimologica- Apesar de não negar o caráter de penitência da pena – afinal, etimologica-
mente, aquela deriva desta –, o filósofo sustenta que a essência desta deve ser, e mente, aquela deriva desta –, o filósofo sustenta que a essência desta deve ser, e
como passou a ser utilizada pelo moderno mecanismo disciplinar em sua maioria, como passou a ser utilizada pelo moderno mecanismo disciplinar em sua maioria,
a política da ressocialização, reeducação, ou seja, “castigos que se atribui a função a política da ressocialização, reeducação, ou seja, “castigos que se atribui a função
de tornar o criminoso ‘não só desejoso, mas também capaz de viver respeitando a de tornar o criminoso ‘não só desejoso, mas também capaz de viver respeitando a
lei e de suprir às suas próprias necessidades’”25. Então houve a procura de disposi- lei e de suprir às suas próprias necessidades’”25. Então houve a procura de disposi-
tivos que “normalizassem” com maior eficácia, não implicando, necessariamente, tivos que “normalizassem” com maior eficácia, não implicando, necessariamente,
a busca da suavização ou da “humanização” da prática punitiva. a busca da suavização ou da “humanização” da prática punitiva.

Assim, faz-se mister demarcar o período histórico anterior à ocorrência dessa Assim, faz-se mister demarcar o período histórico anterior à ocorrência dessa
progressiva mudança no modo de punir, conhecida como a “reforma” penal. progressiva mudança no modo de punir, conhecida como a “reforma” penal.

Durante quase todo o século XVII, a punição tinha como características a Durante quase todo o século XVII, a punição tinha como características a
atrocidade dos suplícios, o julgamento secreto, no qual pouco se creditava ao réu atrocidade dos suplícios, o julgamento secreto, no qual pouco se creditava ao réu
o direito de defesa, dessa forma não tinha absoluto conhecimento sobre o processo o direito de defesa, dessa forma não tinha absoluto conhecimento sobre o processo
que estava sendo incriminado. As torturas desumanas eram intensamente utilizadas que estava sendo incriminado. As torturas desumanas eram intensamente utilizadas
a requerimento do juiz, podendo as provas extraídas dessas serem juntadas aos a requerimento do juiz, podendo as provas extraídas dessas serem juntadas aos
autos do processo, já que o acusado estaria subordinado a um juramento impositivo. autos do processo, já que o acusado estaria subordinado a um juramento impositivo.

25. Idem, Ibidem. Vigiar e Punir. p.19. 25. Idem, Ibidem. Vigiar e Punir. p.19.
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 265 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 265

As penas infamantes tiveram seu esplendor, pois em suas aplicações expunham As penas infamantes tiveram seu esplendor, pois em suas aplicações expunham
os condenados ao ridículo perante a sociedade, servindo de exemplo, de símbolo os condenados ao ridículo perante a sociedade, servindo de exemplo, de símbolo
da atuação dos dispositivos punitivos. Somado a isso, a desigualdade ante aos da atuação dos dispositivos punitivos. Somado a isso, a desigualdade ante aos
castigos descredibilizava estes, já que: castigos descredibilizava estes, já que:
(...) os diferentes estratos sociais tinham cada uma sua margem de ilegalidade tole- (...) os diferentes estratos sociais tinham cada uma sua margem de ilegalidade tole-
rada: a não aplicação da regra, a inobservância de inúmeros editos ou ordenações rada: a não aplicação da regra, a inobservância de inúmeros editos ou ordenações
eram condições do funcionamento político e econômico da sociedade.26 eram condições do funcionamento político e econômico da sociedade.26

Isto se deve ao fato de o panorama desse momento histórico basear-se na Isto se deve ao fato de o panorama desse momento histórico basear-se na
existência de um superpoder que, teoricamente, “tudo” podia e “nada” temia, existência de um superpoder que, teoricamente, “tudo” podia e “nada” temia,
salvo se considerada a “cólera contida do povo”, e sua capacidade de canalização salvo se considerada a “cólera contida do povo”, e sua capacidade de canalização
do potencial poder do indivíduo na busca do objetivo de combater esse inimigo do potencial poder do indivíduo na busca do objetivo de combater esse inimigo
imediato – o caso das pseudo-revoluções já tratado. Por isso, esse poder supremo, imediato – o caso das pseudo-revoluções já tratado. Por isso, esse poder supremo,
que tinha na figura do rei seu representante, permitia que não através de privilégios que tinha na figura do rei seu representante, permitia que não através de privilégios
como os concedidos à nobreza, ao clero e à burguesia – em alguns casos isolados –; como os concedidos à nobreza, ao clero e à burguesia – em alguns casos isolados –;
mas legava às camadas mais desfavorecidas da população um limite de tolerância, mas legava às camadas mais desfavorecidas da população um limite de tolerância,
como os pequenos delitos contra a propriedade, a exemplo do furto, outrossim, como os pequenos delitos contra a propriedade, a exemplo do furto, outrossim,
concretizando e perpetuando estes tipos de crimes. “Em suma, o jogo recíproco concretizando e perpetuando estes tipos de crimes. “Em suma, o jogo recíproco
de ilegalidades fazia parte da vida política e econômica da sociedade”27. de ilegalidades fazia parte da vida política e econômica da sociedade”27.
A hipertrofia de um poder que acumula para si competências executiva, A hipertrofia de um poder que acumula para si competências executiva,
legislativa e judiciária, não consegue, segundo Foucault, atuar e ser onipresente legislativa e judiciária, não consegue, segundo Foucault, atuar e ser onipresente
e onipotente em todas as esferas que requerem sua função coercitiva. Pois os e onipotente em todas as esferas que requerem sua função coercitiva. Pois os
dispositivos de poder ficam dependentes de sua vênia para atuarem efetivamente, dispositivos de poder ficam dependentes de sua vênia para atuarem efetivamente,
assim, o controle, a vigilância, o adestramento, o enquadramento, e todas as demais assim, o controle, a vigilância, o adestramento, o enquadramento, e todas as demais
técnicas de “normalização” e “docilização” esbarram em uma incapacidade de se técnicas de “normalização” e “docilização” esbarram em uma incapacidade de se
expandir, de serem executadas em sua plenitude. Os ofícios que emanam do rei expandir, de serem executadas em sua plenitude. Os ofícios que emanam do rei
multiplicavam os conflitos funcionais. O povo é rigorosamente oprimido. Houve, multiplicavam os conflitos funcionais. O povo é rigorosamente oprimido. Houve,
portanto, um excesso, descontrole e má utilização do poder de punir. portanto, um excesso, descontrole e má utilização do poder de punir.

Tal quadro de falência punitiva, até o século XVIII, será mais bem explorado Tal quadro de falência punitiva, até o século XVIII, será mais bem explorado
nos próximos tópicos, destarte este se bastou à abordagem das diretrizes da pena nos próximos tópicos, destarte este se bastou à abordagem das diretrizes da pena
na análise foucaultiana. na análise foucaultiana.

4.5. A transição paradigmática da justiça criminal 4.5. A transição paradigmática da justiça criminal

Outro aspecto jurídico abordado por Foucault, na análise das punições e suas Outro aspecto jurídico abordado por Foucault, na análise das punições e suas
aplicações, durante os séculos XVII e XVIII, antes da concretização da “refor- aplicações, durante os séculos XVII e XVIII, antes da concretização da “refor-
ma” penal, é a “desnaturação” do poder judiciário, a qual consiste em vendas de ma” penal, é a “desnaturação” do poder judiciário, a qual consiste em vendas de

26. Idem, Ibidem. p. 70. 26. Idem, Ibidem. p. 70.


27. Idem, Ibidem. p. 71. 27. Idem, Ibidem. p. 71.
266 Felipe Jacques Silva 266 Felipe Jacques Silva

sentenças, indicações e hereditariedade para o cargo de juiz, que contava com sentenças, indicações e hereditariedade para o cargo de juiz, que contava com
total autonomia para determinar a pena, mesmo que a partir de provas vagas e total autonomia para determinar a pena, mesmo que a partir de provas vagas e
fúteis, porém legais. fúteis, porém legais.

Além disso, corroborou a “descontinuidade, sobreposição e os conflitos entre Além disso, corroborou a “descontinuidade, sobreposição e os conflitos entre
as diferentes justiças”28, seja dos senhores ou do rei em todas suas derivações e, as diferentes justiças”28, seja dos senhores ou do rei em todas suas derivações e,
principalmente, referente ao campo jurisdicional e a sua multiplicidade de instân- principalmente, referente ao campo jurisdicional e a sua multiplicidade de instân-
cias. Já que estas, mesmo que inferiores, eram dotadas de um poder excessivo, pois cias. Já que estas, mesmo que inferiores, eram dotadas de um poder excessivo, pois
respaldadas pela pobreza e pela ignorância dos condenados, acabavam por: respaldadas pela pobreza e pela ignorância dos condenados, acabavam por:
(...) negligenciar as apelações de direito e mandar executar sem controle sentenças (...) negligenciar as apelações de direito e mandar executar sem controle sentenças
arbitrárias; poder excessivo do lado de uma acusação à qual são dados quase sem arbitrárias; poder excessivo do lado de uma acusação à qual são dados quase sem
limite meios de prosseguir, enquanto o acusado está desarmado diante dela, o que limite meios de prosseguir, enquanto o acusado está desarmado diante dela, o que
leva os juizes a ser, às vezes severos demais, às vezes, por reação, indulgentes leva os juizes a ser, às vezes severos demais, às vezes, por reação, indulgentes
demais; (...)29 demais; (...)29

A justiça contava ainda com um excesso de lacunas legais, devido aos dife- A justiça contava ainda com um excesso de lacunas legais, devido aos dife-
rentes costumes aos quais estava relacionada, além dos diversos procedimentos rentes costumes aos quais estava relacionada, além dos diversos procedimentos
técnicos – se assim pode-se dizer – de atuação perante o fato, sua valoração e técnicos – se assim pode-se dizer – de atuação perante o fato, sua valoração e
aplicação da norma: aplicação da norma:
(...) lacunosa pelo conflito interno de competência; lacunosa pelos interesses (...) lacunosa pelo conflito interno de competência; lacunosa pelos interesses
particulares – políticos ou econômicos – que a cada instância é levada a defender; particulares – políticos ou econômicos – que a cada instância é levada a defender;
lacunosa enfim devido às intervenções do poder real que pode impedir o curso lacunosa enfim devido às intervenções do poder real que pode impedir o curso
regular e austero da justiça, pelos perdões, comutações, evocações em conselho regular e austero da justiça, pelos perdões, comutações, evocações em conselho
ou pressão direta sobre os magistrados.30 ou pressão direta sobre os magistrados.30
O excesso de poder de que o juiz era dotado, disposto pelo rei no seu pro- O excesso de poder de que o juiz era dotado, disposto pelo rei no seu pro-
cesso de escolha, legava-lhe a possibilidade de acabar por reescrever, a partir de cesso de escolha, legava-lhe a possibilidade de acabar por reescrever, a partir de
seus julgamentos, a lei que a ele cabia apenas interpretar, destarte provocou-se seus julgamentos, a lei que a ele cabia apenas interpretar, destarte provocou-se
o conflito de competências entre o poder legislativo e o judiciário. Malgrado, o o conflito de competências entre o poder legislativo e o judiciário. Malgrado, o
entrecruzamento de poderes já se configurava comum nesse período, se lembrado entrecruzamento de poderes já se configurava comum nesse período, se lembrado
da supracitada função totalizante e centralizadora do soberano. da supracitada função totalizante e centralizadora do soberano.
Essa argumentação sobre o lastimável estado do poder judiciário durante o Essa argumentação sobre o lastimável estado do poder judiciário durante o
Antigo Regime de nada serviria caso não seja entendido que: Antigo Regime de nada serviria caso não seja entendido que:
A paralisia da justiça esta ligada menos a um enfraquecimento que a uma distri- A paralisia da justiça esta ligada menos a um enfraquecimento que a uma distri-
buição mal regulada do poder, a sua concentração em um certo número de pontos buição mal regulada do poder, a sua concentração em um certo número de pontos
e os conflitos e descontinuidades que daí resultam.31 e os conflitos e descontinuidades que daí resultam.31

28. Idem, Ibidem. p. 67. 28. Idem, Ibidem. p. 67.


29. Idem, Ibidem. p. 68. 29. Idem, Ibidem. p. 68.
30. Idem, Ibidem. p. 67. 30. Idem, Ibidem. p. 67.
31. Idem, Ibidem. p. 68. 31. Idem, Ibidem. p. 68.
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 267 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 267

Novamente, Foucault nos traz a idéia de poder como determinante da ordem Novamente, Foucault nos traz a idéia de poder como determinante da ordem
social, buscando sempre extrair de suas análises o lado bom e o ruim da situação, social, buscando sempre extrair de suas análises o lado bom e o ruim da situação,
outrossim, método que o possibilita reiterar a importância do poder, sempre ne- outrossim, método que o possibilita reiterar a importância do poder, sempre ne-
cessário, já que inerente à relação intersubjetiva ou estabelecida entre os corpos cessário, já que inerente à relação intersubjetiva ou estabelecida entre os corpos
e os dispositivos de maneira livre. No entanto pode ter seu aproveitamento rea- e os dispositivos de maneira livre. No entanto pode ter seu aproveitamento rea-
lizado dentro de variáveis de utilização, dependendo da sua disposição, assim é lizado dentro de variáveis de utilização, dependendo da sua disposição, assim é
admissível que o poder encontre-se hipertrofiado e mal disposto – “concentrado admissível que o poder encontre-se hipertrofiado e mal disposto – “concentrado
em um certo número de pontos” –, seria, portanto, aquele deteriorado, que tem em um certo número de pontos” –, seria, portanto, aquele deteriorado, que tem
uma defasagem teleológica. uma defasagem teleológica.
Em contrapartida, o poder pode se encontrar em um regime de racionalização Em contrapartida, o poder pode se encontrar em um regime de racionalização
e distribuição eqüitativa das possibilidades de operacionalização pelos membros e distribuição eqüitativa das possibilidades de operacionalização pelos membros
inter-relacionados, em outras palavras, trata-se, segundo Foucault, de um regime inter-relacionados, em outras palavras, trata-se, segundo Foucault, de um regime
de economia do poder. Não que neste caso haja uma quantificação ou qualifica- de economia do poder. Não que neste caso haja uma quantificação ou qualifica-
ção do poder, mas ele está livre para circular, expandir-se e se expressar até o ção do poder, mas ele está livre para circular, expandir-se e se expressar até o
limite do tolerável para manutenção da ordem social, quer dizer, de seus próprios limite do tolerável para manutenção da ordem social, quer dizer, de seus próprios
mecanismos de emanação. Assim, o poder que transgredir essa tênue fronteira, mecanismos de emanação. Assim, o poder que transgredir essa tênue fronteira,
entre o permitido e o intolerável, passa de necessário a prescindível, ou melhor, entre o permitido e o intolerável, passa de necessário a prescindível, ou melhor,
desnatura-se em prol da coerção. desnatura-se em prol da coerção.
Conclui-se, por conseguinte, que o poder do judiciário durante o período Conclui-se, por conseguinte, que o poder do judiciário durante o período
abordado seria mais prejudicial ao corpo social, do que um dispositivo de manu- abordado seria mais prejudicial ao corpo social, do que um dispositivo de manu-
tenção da convivência civilizada, algo que era necessário, mas não eficaz em sua tenção da convivência civilizada, algo que era necessário, mas não eficaz em sua
tarefa punitiva, pois, como já foi dito, era discricionário, em outras palavras, seu tarefa punitiva, pois, como já foi dito, era discricionário, em outras palavras, seu
poder atingia diferentemente os a ele subordinados, muitas vezes utilizado em poder atingia diferentemente os a ele subordinados, muitas vezes utilizado em
casos fúteis ou desnecessários. casos fúteis ou desnecessários.
Entretanto, para chegarmos ao fim dessa transição paradigmática, como é Entretanto, para chegarmos ao fim dessa transição paradigmática, como é
normal nas exposições de Foucault, é necessário procedermos a uma análise da normal nas exposições de Foucault, é necessário procedermos a uma análise da
história e dos movimentos ideológicos a ela vinculados, que não deixam de ser história e dos movimentos ideológicos a ela vinculados, que não deixam de ser
dispositivos de poder. dispositivos de poder.
Assim sendo, alude-se o período dos reformadores penais, notadamente, Assim sendo, alude-se o período dos reformadores penais, notadamente,
entre os séculos XVII e XVIII, sendo seus protagonistas considerados como ide- entre os séculos XVII e XVIII, sendo seus protagonistas considerados como ide-
alizadores de um novo processo de disposição do poder, uma economia do modo alizadores de um novo processo de disposição do poder, uma economia do modo
de punir, entre os quais se encontram: Beccaria, Serva, Dupaty ou Lacretelle, de punir, entre os quais se encontram: Beccaria, Serva, Dupaty ou Lacretelle,
Duport, Target e Bergasse; não deixando de fora o mérito dos Constituintes do Duport, Target e Bergasse; não deixando de fora o mérito dos Constituintes do
período pela reorganização do aparato judiciário e emprego da Teoria “Clássica” período pela reorganização do aparato judiciário e emprego da Teoria “Clássica”
do Direito Penal na legislação32. do Direito Penal na legislação32.
O reformador mais utilizado na sistematização do pensamento foucaultiano é O reformador mais utilizado na sistematização do pensamento foucaultiano é
Beccaria, o qual é considerado por muitos doutrinadores, o “pai” do direito penal Beccaria, o qual é considerado por muitos doutrinadores, o “pai” do direito penal

32. Idem, Ibidem. p. 64. 32. Idem, Ibidem. p. 64.


268 Felipe Jacques Silva 268 Felipe Jacques Silva

moderno, certamente, com algumas alterações em sua aplicação contemporânea. moderno, certamente, com algumas alterações em sua aplicação contemporânea.
Sua obra mais importante, Dos Delitos e das Penas, data de 1764 e serviu de Sua obra mais importante, Dos Delitos e das Penas, data de 1764 e serviu de
suporte para a formação dos precípuos ideais de: suporte para a formação dos precípuos ideais de:
(...) fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva (...) fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva
à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade
atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais
profundamente no corpo social o poder de punir.33 profundamente no corpo social o poder de punir.33

Deste modo, o movimento reformista surge e instaura-se não por ser apenas Deste modo, o movimento reformista surge e instaura-se não por ser apenas
uma opção mais viável, mas pelo processo de falência que passava o modelo de uma opção mais viável, mas pelo processo de falência que passava o modelo de
punição instituído. Este era minudente e de certa forma racional, mas sua validade punição instituído. Este era minudente e de certa forma racional, mas sua validade
parecia ter se expirado, pois o passar do tempo muda os dispositivos de poder, parecia ter se expirado, pois o passar do tempo muda os dispositivos de poder,
logo suas implicações. logo suas implicações.
Passou a ser perceptível o descontentamento quase geral da população à pos- Passou a ser perceptível o descontentamento quase geral da população à pos-
sibilidade de ser alvo, ou de ter que continuar a ver aqueles espetáculos horrendos sibilidade de ser alvo, ou de ter que continuar a ver aqueles espetáculos horrendos
feitos em praça pública. Esta conscientização não advém do nada, já que notórios feitos em praça pública. Esta conscientização não advém do nada, já que notórios
a expansão cada vez maior do superpoder e o surgimento do dito pensamento de a expansão cada vez maior do superpoder e o surgimento do dito pensamento de
“humanização”. Assim, “humanização”. Assim,
(...) ficou suspeito de que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele (...) ficou suspeito de que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele
afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando em selvageria, acostu- afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando em selvageria, acostu-
mando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê-los afastados, mando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê-los afastados,
mostrando-lhe a freqüência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer com crimi- mostrando-lhe a freqüência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer com crimi-
noso, os juizes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo noso, os juizes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo
do supliciado um objeto de piedade e de admiração34. do supliciado um objeto de piedade e de admiração34.

Isso abalava o sistema punitivo, pois o contrapoder se armava e insurgia contra Isso abalava o sistema punitivo, pois o contrapoder se armava e insurgia contra
os dispositivos implementados. As modificações começaram a aparecer antes de os dispositivos implementados. As modificações começaram a aparecer antes de
uma quase que geral aplicação do pensamento de reforma. O discurso do poder uma quase que geral aplicação do pensamento de reforma. O discurso do poder
judiciário modifica-se, a pena passa a ser um fardo que lhe cabe aplicar e utilizar judiciário modifica-se, a pena passa a ser um fardo que lhe cabe aplicar e utilizar
para manutenção da ordem social, ou seja, “é indecoroso ser passível de punição, para manutenção da ordem social, ou seja, “é indecoroso ser passível de punição,
mas pouco glorioso punir”.35 mas pouco glorioso punir”.35
Sem embargo, esse discurso não obteve muita eficácia, tudo continuava Sem embargo, esse discurso não obteve muita eficácia, tudo continuava
ocorrendo como antes. Eis que a idéia de sociedade organizada como um contra- ocorrendo como antes. Eis que a idéia de sociedade organizada como um contra-
to social surgiu aos “olhos” da justiça e do Estado como outra forma de driblar to social surgiu aos “olhos” da justiça e do Estado como outra forma de driblar
esse processo de deterioração da forma de punir empregada pelo Antigo Regime. esse processo de deterioração da forma de punir empregada pelo Antigo Regime.
Com isto, passou-se a afirmar que o rei é detentor supremo do poder não apenas Com isto, passou-se a afirmar que o rei é detentor supremo do poder não apenas
devido a uma ordem divina, mas porque ele emana do povo, que o legou, cedendo devido a uma ordem divina, mas porque ele emana do povo, que o legou, cedendo

33. Idem, Ibidem. p. 70. 33. Idem, Ibidem. p. 70.


34. Idem, Ibidem. p. 12-13. 34. Idem, Ibidem. p. 12-13.
35. Idem, Ibidem. p. 13. 35. Idem, Ibidem. p. 13.
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 269 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 269

através de cada um de seus indivíduos um pouco do poder e da liberdade. Nesse através de cada um de seus indivíduos um pouco do poder e da liberdade. Nesse
contexto: contexto:
O criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompe o pacto, O criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompe o pacto,
é portanto inimigo da sociedade inteira, mas participa da punição que se exerce é portanto inimigo da sociedade inteira, mas participa da punição que se exerce
sobre ele. O menor crime ataca toda sociedade; e toda a sociedade – inclusive o sobre ele. O menor crime ataca toda sociedade; e toda a sociedade – inclusive o
criminoso – esta presente na menor punição.36 criminoso – esta presente na menor punição.36
Mas esse dispositivo também fracassou, com tantos outros que foram tentados, Mas esse dispositivo também fracassou, com tantos outros que foram tentados,
mas não têm relevância de serem elencados no presente estudo. Consequentemente, mas não têm relevância de serem elencados no presente estudo. Consequentemente,
o processo de reforma tornou-se inevitável. o processo de reforma tornou-se inevitável.
Segue-se, portanto, um longo período de transição paradigmática daquela Segue-se, portanto, um longo período de transição paradigmática daquela
justiça que mais parecia uma vingança do soberano no exercício de todo seu ex- justiça que mais parecia uma vingança do soberano no exercício de todo seu ex-
cesso de poder. Destarte, as idéias reformistas roubam a cena, mostrando-se mais cesso de poder. Destarte, as idéias reformistas roubam a cena, mostrando-se mais
lucrativas pecuniariamente falando, eficazes na prevenção e coação criminal, além lucrativas pecuniariamente falando, eficazes na prevenção e coação criminal, além
de basearem-se no belo discurso da reeducação, correção e “cura” do condenado. de basearem-se no belo discurso da reeducação, correção e “cura” do condenado.
Visto que “o castigo passou de uma arte das sanções insuportáveis a uma economia Visto que “o castigo passou de uma arte das sanções insuportáveis a uma economia
dos direitos suspensos”37. dos direitos suspensos”37.
Por conseguinte, a punição passou a ater-se, teoricamente, a não atingir o Por conseguinte, a punição passou a ater-se, teoricamente, a não atingir o
corpo, ou o fazer da mínima forma possível. Daí as penas mudam seu caráter e corpo, ou o fazer da mínima forma possível. Daí as penas mudam seu caráter e
aplicabilidade, passando-se a adotar prioritariamente, a prisão, os trabalhos for- aplicabilidade, passando-se a adotar prioritariamente, a prisão, os trabalhos for-
çados, a servidão compulsória, a interdição de domicílio, a deportação e a multa, çados, a servidão compulsória, a interdição de domicílio, a deportação e a multa,
que se excetua de fato como castigo não “físico”38. Partindo-se do pressuposto que se excetua de fato como castigo não “físico”38. Partindo-se do pressuposto
que as demais formas de punição além de cercearem a liberdade do indivíduo, que as demais formas de punição além de cercearem a liberdade do indivíduo,
nunca funcionam sem privá-lo de outros requisitos que funcionam como com- nunca funcionam sem privá-lo de outros requisitos que funcionam como com-
plementos punitivos corpóreos: “redução alimentar, privação sexual, expiação plementos punitivos corpóreos: “redução alimentar, privação sexual, expiação
física, masmorra”39 física, masmorra”39
Instaura-se, assim, uma nova política de punição que busca censurar e atuar so- Instaura-se, assim, uma nova política de punição que busca censurar e atuar so-
bre algo que é transcendental, indo muito além do corpo em importância, amplitude bre algo que é transcendental, indo muito além do corpo em importância, amplitude
e disposição do poder, a alma. Conforme Foucault, não poderia ser limitadamente e disposição do poder, a alma. Conforme Foucault, não poderia ser limitadamente
definida, pois algo de extensa abrangência, entre os quais abarcaria, os sentimentos definida, pois algo de extensa abrangência, entre os quais abarcaria, os sentimentos
do condenado, seu intelecto, sua vontade e suas disposições40. De tal modo, o ritual do condenado, seu intelecto, sua vontade e suas disposições40. De tal modo, o ritual
de aplicação da penalidade passa a ter uma finalidade “incorpórea”, visto que a de aplicação da penalidade passa a ter uma finalidade “incorpórea”, visto que a
pena deve se consagrar pelo intuito de punir mais a alma do que o corpo. pena deve se consagrar pelo intuito de punir mais a alma do que o corpo.
Eis que essa forma de aplicação penal trouxe consigo inúmeras inovações, Eis que essa forma de aplicação penal trouxe consigo inúmeras inovações,
entre as quais, o reaproveitamento econômico, o enquadramento e a ressocialização entre as quais, o reaproveitamento econômico, o enquadramento e a ressocialização
daquele corpo que seria inutilizado pela prática de torturas ou descartado após a daquele corpo que seria inutilizado pela prática de torturas ou descartado após a

36. Idem, Ibidem, p. 76. 36. Idem, Ibidem, p. 76.


37. Idem, Ibidem, p. 14. 37. Idem, Ibidem, p. 14.
38. Idem, Ibidem, p. 14. 38. Idem, Ibidem, p. 14.
39. Idem, Ibidem, p. 18. 39. Idem, Ibidem, p. 18.
40. Idem, Ibidem, p. 18. 40. Idem, Ibidem, p. 18.
270 Felipe Jacques Silva 270 Felipe Jacques Silva

execução da pena capital. “Por que haveria a sociedade de suprir uma vida e um execução da pena capital. “Por que haveria a sociedade de suprir uma vida e um
corpo que ela poderia se utilizar?”41 corpo que ela poderia se utilizar?”41
Os trabalhos forçados, então, seriam uma das maneiras do “criminoso” pagar Os trabalhos forçados, então, seriam uma das maneiras do “criminoso” pagar
pelo delito, mesmo que necessário trabalhar para o Estado durante toda sua vida, pelo delito, mesmo que necessário trabalhar para o Estado durante toda sua vida,
em outras palavras, o corpo do condenado passaria a ser um “bem social”. Daí, se- em outras palavras, o corpo do condenado passaria a ser um “bem social”. Daí, se-
gundo alguns reformadores, essa espécie de pena também serviria como emanadora gundo alguns reformadores, essa espécie de pena também serviria como emanadora
de temor, uma vez que visível a todos. Essa característica foi exaltada pelo fato de temor, uma vez que visível a todos. Essa característica foi exaltada pelo fato
de os mesmos que proclamavam a teoria da publicidade afirmarem que as penas de os mesmos que proclamavam a teoria da publicidade afirmarem que as penas
escondidas seriam um desperdício do impacto que causariam na coletividade. escondidas seriam um desperdício do impacto que causariam na coletividade.
Além desse tipo de mecanismos de poder judicial, muitos outros são expostos Além desse tipo de mecanismos de poder judicial, muitos outros são expostos
ao longo de todo o capítulo, As Mitigações da Pena, da obra Vigiar e Punir. Alguns ao longo de todo o capítulo, As Mitigações da Pena, da obra Vigiar e Punir. Alguns
até abolidos pelas teorias mais modernas do direito penal. Mas é valido reportar- até abolidos pelas teorias mais modernas do direito penal. Mas é valido reportar-
se a esses por toda disposição de poder que suscitam e que foram profundamente se a esses por toda disposição de poder que suscitam e que foram profundamente
estudadas por Foucault, por exemplo, a punição para grande maioria dos reforma- estudadas por Foucault, por exemplo, a punição para grande maioria dos reforma-
dores deveria ser determinada a partir da natureza de cada crime, pois eximiria o dores deveria ser determinada a partir da natureza de cada crime, pois eximiria o
legislador desse encargo; “não é de modo algum o homem que faz violência ao legislador desse encargo; “não é de modo algum o homem que faz violência ao
homem, mas a própria ação do homem”42. Isto parece ser um óbvio disfarce da homem, mas a própria ação do homem”42. Isto parece ser um óbvio disfarce da
responsabilidade de punir que só cabe ao Estado, assemelhando-se muito com a responsabilidade de punir que só cabe ao Estado, assemelhando-se muito com a
idéia do pacto social que já foi tratada. idéia do pacto social que já foi tratada.
Respaldados nessa teoria natural da pena, os reformadores criticavam o po- Respaldados nessa teoria natural da pena, os reformadores criticavam o po-
sicionamento de certos países em adotarem a prisão como pena para quase todas sicionamento de certos países em adotarem a prisão como pena para quase todas
as infrações, uma espécie de uniformização dos castigos, que seria, segundo as infrações, uma espécie de uniformização dos castigos, que seria, segundo
uma analogia feita por eles, como se um médico tivesse um único remédio para uma analogia feita por eles, como se um médico tivesse um único remédio para
as várias doenças. Porquanto, Foucault aborda a explicação da posição negativa as várias doenças. Porquanto, Foucault aborda a explicação da posição negativa
deles em relação a esta punição: deles em relação a esta punição:
Porque é incapaz de responder à especificidade dos crimes. Porque é desprovida Porque é incapaz de responder à especificidade dos crimes. Porque é desprovida
de efeitos sobre o público. Porque é inútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém de efeitos sobre o público. Porque é inútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém
os condenados na ociosidade, multiplica-lhes os vícios43. Porque é difícil contro- os condenados na ociosidade, multiplica-lhes os vícios43. Porque é difícil contro-
lar o cumprimento de uma pena dessas e corre-se o risco de expor os detentos à lar o cumprimento de uma pena dessas e corre-se o risco de expor os detentos à
arbitrariedade de seus guardiões. Porque o trabalho de privar um homem de sua arbitrariedade de seus guardiões. Porque o trabalho de privar um homem de sua
liberdade e vigiá-lo na prisão é um exercício de tirania44. liberdade e vigiá-lo na prisão é um exercício de tirania44.
Neste rol, outra dura crítica manifestada em desprestígio ao regime prisional Neste rol, outra dura crítica manifestada em desprestígio ao regime prisional
seria, contrariando o que foi dito sobre os dispositivos ainda corpóreos de punição seria, contrariando o que foi dito sobre os dispositivos ainda corpóreos de punição
dos castigos da alma, que “a prisão não é bastante punitiva: em suma, os detentos dos castigos da alma, que “a prisão não é bastante punitiva: em suma, os detentos
tem menos fome, menos frio e privações que muitos pobres ou operários”45. tem menos fome, menos frio e privações que muitos pobres ou operários”45.

41. Idem, Ibidem, p. 90. 41. Idem, Ibidem, p. 90.


42. Idem, Ibidem, p. 97. 42. Idem, Ibidem, p. 97.
43. FOUCAULT. M. Apud Cf. Archives ParlementairesI, t. XXVI, p.712 Op. Cit., p. 95. 43. FOUCAULT. M. Apud Cf. Archives ParlementairesI, t. XXVI, p.712 Op. Cit., p. 95.
44. FOUCAULT, M., Vigiar e Punir, p. 95. 44. FOUCAULT, M., Vigiar e Punir, p. 95.
45. Idem, Ibidem, p. 18 45. Idem, Ibidem, p. 18
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 271 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 271

Isto demonstra o total descaso com a famigerada suavização ou “humani- Isto demonstra o total descaso com a famigerada suavização ou “humani-
zação” dos dispositivos de poder. A defesa da riqueza e da subordinação através zação” dos dispositivos de poder. A defesa da riqueza e da subordinação através
de mecanismos de adestramento parece ser muito mais interessante à ótica dos de mecanismos de adestramento parece ser muito mais interessante à ótica dos
reformadores que a simples vida humana. Por isso, desde quando remonta o pa- reformadores que a simples vida humana. Por isso, desde quando remonta o pa-
radigma da abolição dos suplícios, Foucault faz uma crítica dizendo: radigma da abolição dos suplícios, Foucault faz uma crítica dizendo:
O sofrimento que deve ser excluído pela suavização das penas é o dos juízes ou O sofrimento que deve ser excluído pela suavização das penas é o dos juízes ou
dos espectadores com tudo o que pode acarretar de endurecimento, de ferocidade dos espectadores com tudo o que pode acarretar de endurecimento, de ferocidade
trazida pelo hábito, ou ao contrário de piedade indevida de indulgência sem fun- trazida pelo hábito, ou ao contrário de piedade indevida de indulgência sem fun-
damento.46 damento.46

Esse posicionamento faz parte de uma gama que não se altera com os movi- Esse posicionamento faz parte de uma gama que não se altera com os movi-
mentos reformistas. Pois o sofrimento, se intenso, deveria ser escondido, manter-se mentos reformistas. Pois o sofrimento, se intenso, deveria ser escondido, manter-se
no subterrâneo dos dispositivos, mas se empregado em castigos aceitáveis, poderia no subterrâneo dos dispositivos, mas se empregado em castigos aceitáveis, poderia
ser exposto para provocar impacto de publicidade, de medo, coação, respeito à or- ser exposto para provocar impacto de publicidade, de medo, coação, respeito à or-
dem e as leis, como a própria punição através de serviços estatais compulsórios. dem e as leis, como a própria punição através de serviços estatais compulsórios.
Os defensores da prisão respondiam a essas afirmações, pregando a não publi- Os defensores da prisão respondiam a essas afirmações, pregando a não publi-
cidade da pena para evitar que isso pudesse influenciar no resultado final dela, em cidade da pena para evitar que isso pudesse influenciar no resultado final dela, em
outros termos, que o condenado pudesse ser beneficiado por indulgências ou pela outros termos, que o condenado pudesse ser beneficiado por indulgências ou pela
pressão social, independentemente de sua intensidade. Além disso, proclamavam pressão social, independentemente de sua intensidade. Além disso, proclamavam
ser muito mais eficaz individualizar a aplicação da pena dentro da carceragem. ser muito mais eficaz individualizar a aplicação da pena dentro da carceragem.
Algo que foi acolhido, hodiernamente, pelos países ocidentais em geral. Algo que foi acolhido, hodiernamente, pelos países ocidentais em geral.
A questão da quantidade de pena tornou-se, então, muito debatida nesse pe- A questão da quantidade de pena tornou-se, então, muito debatida nesse pe-
ríodo. A idéia era não estabelecer um tempo de reclusão que fosse inexpressivo ríodo. A idéia era não estabelecer um tempo de reclusão que fosse inexpressivo
para crimes considerados de pequeno porte, como furtos de bens de baixo valor para crimes considerados de pequeno porte, como furtos de bens de baixo valor
pecuniário, já que não haveria condição temporal para normalizar o indivíduo; pecuniário, já que não haveria condição temporal para normalizar o indivíduo;
antes aplicar penas alternativas que fizessem o delinqüente de símbolo para os antes aplicar penas alternativas que fizessem o delinqüente de símbolo para os
demais, doravante este posicionamento é utilizado atualmente, remontando parte demais, doravante este posicionamento é utilizado atualmente, remontando parte
do entendimento da corrente que defendia a teoria da publicidade da punição. Em do entendimento da corrente que defendia a teoria da publicidade da punição. Em
contrapartida, quanto aos crimes mais relevantes, a pena deveria ser quantificada contrapartida, quanto aos crimes mais relevantes, a pena deveria ser quantificada
na medida de ressocializar, “curar”, podendo o infrator ser reinserido na socie- na medida de ressocializar, “curar”, podendo o infrator ser reinserido na socie-
dade. Aquele que antes era um selvagem, um corpo morto, depois de adestrado, dade. Aquele que antes era um selvagem, um corpo morto, depois de adestrado,
torna-se útil, ganha importância econômica, mesmo que não saiba ser dotado torna-se útil, ganha importância econômica, mesmo que não saiba ser dotado
desta, seja alienado. desta, seja alienado.
Assim a pena perpétua de detenção foi um dispositivo abolido pelos reforma- Assim a pena perpétua de detenção foi um dispositivo abolido pelos reforma-
dores, não intentando tornar os castigos mais suaves, mas evitar uma exacerbação dores, não intentando tornar os castigos mais suaves, mas evitar uma exacerbação
do poder do corpo do condenado. Pois qual a perspectiva de uma pessoa que se do poder do corpo do condenado. Pois qual a perspectiva de uma pessoa que se
sabe presa até o fim de sua vida? Obviamente nenhuma. Por isso pouco importa sabe presa até o fim de sua vida? Obviamente nenhuma. Por isso pouco importa
praticar mais crimes dentro da prisão, afinal, a pena não seria alterada. Então, praticar mais crimes dentro da prisão, afinal, a pena não seria alterada. Então,

46. Idem, Ibidem, p.77. 46. Idem, Ibidem, p.77.


272 Felipe Jacques Silva 272 Felipe Jacques Silva

invocou-se nessa paulatina reformulação da punição, que, se mantidas essas penas invocou-se nessa paulatina reformulação da punição, que, se mantidas essas penas
tidas como antieconômicas, tanto para o orçamento estatal quanto na disposição tidas como antieconômicas, tanto para o orçamento estatal quanto na disposição
do poder, que ao menos os detentos dessa categoria deveriam ocupar pavilhões do poder, que ao menos os detentos dessa categoria deveriam ocupar pavilhões
diferenciados dentro do encarceramento. diferenciados dentro do encarceramento.
Desta forma, a pena que antes se exercia com excesso, tem-se proporcional Desta forma, a pena que antes se exercia com excesso, tem-se proporcional
ao agravo do delito, mas Foucault discorda de Beccaria, e da maioria dos reforma- ao agravo do delito, mas Foucault discorda de Beccaria, e da maioria dos reforma-
dores, quanto à aplicação desse dispositivo – a proporcionalidade. Uma vez que dores, quanto à aplicação desse dispositivo – a proporcionalidade. Uma vez que
estes postulavam a necessidade de se punir apenas até o limite da culpabilidade, estes postulavam a necessidade de se punir apenas até o limite da culpabilidade,
atendo-se para uma maior severidade com os crimes mais prejudiciais à sociedade, atendo-se para uma maior severidade com os crimes mais prejudiciais à sociedade,
os quais seriam os mais excepcionais, esdrúxulos, desumanos, como o parricídio, os quais seriam os mais excepcionais, esdrúxulos, desumanos, como o parricídio,
a tentativa de regicídio e crimes sui generis. a tentativa de regicídio e crimes sui generis.
Já o filósofo afirma ater-se o princípio ao fato de que se deve “calcular uma Já o filósofo afirma ater-se o princípio ao fato de que se deve “calcular uma
pena não em função do crime, mas de sua possível repetição”47. Ele fundamenta pena não em função do crime, mas de sua possível repetição”47. Ele fundamenta
sua tese com o exemplo de uma fábrica, supondo que se um dos funcionários sua tese com o exemplo de uma fábrica, supondo que se um dos funcionários
furtasse um objeto e não fosse devidamente punido, ou seja, não tivesse o poder furtasse um objeto e não fosse devidamente punido, ou seja, não tivesse o poder
enquadrado de maneira adequada, desencadearia um processo de furtos em massa, enquadrado de maneira adequada, desencadearia um processo de furtos em massa,
uma exacerbação do contrapoder. Assim, por serem os menores e mais comuns uma exacerbação do contrapoder. Assim, por serem os menores e mais comuns
delitos aqueles mais facilmente imitados, logo deveriam ser punidos de forma delitos aqueles mais facilmente imitados, logo deveriam ser punidos de forma
mais algoz. Em contrapartida, os crimes raros e mais hediondos aconteceriam em mais algoz. Em contrapartida, os crimes raros e mais hediondos aconteceriam em
situações tão extraordinárias, sendo dificilmente imitados, portanto seus culpados situações tão extraordinárias, sendo dificilmente imitados, portanto seus culpados
poderiam ter penas mais leves e indulgentes. poderiam ter penas mais leves e indulgentes.
Na prática, não se pode dizer ao certo qual desses dois posicionamentos pas- Na prática, não se pode dizer ao certo qual desses dois posicionamentos pas-
sou a vigorar; talvez uma combinação dos dois, mas de difícil distinção frente à sou a vigorar; talvez uma combinação dos dois, mas de difícil distinção frente à
moderna hegemonia das penas restritivas de liberdade. moderna hegemonia das penas restritivas de liberdade.
Depois de explicitadas as principais mudanças ocorridas no Jus Puniendi, Depois de explicitadas as principais mudanças ocorridas no Jus Puniendi,
durante esse período de transição paradigmática, faz-se salutar descrevermos al- durante esse período de transição paradigmática, faz-se salutar descrevermos al-
gumas das implicações que estas provocaram na justiça criminal. Entre as quais, gumas das implicações que estas provocaram na justiça criminal. Entre as quais,
a restrita função de exegese da lei pelo magistrado, que independente de sua ins- a restrita função de exegese da lei pelo magistrado, que independente de sua ins-
tância, perdeu a característica de fonte desmedida de poder. Isto resultou de todo tância, perdeu a característica de fonte desmedida de poder. Isto resultou de todo
contexto histórico já abordado, podendo-se vincular ainda ao fato da articulação contexto histórico já abordado, podendo-se vincular ainda ao fato da articulação
de dispositivos de poder mais variados e meticulosos para “normalização” do de dispositivos de poder mais variados e meticulosos para “normalização” do
condenado, já que a pena tornou-se um objeto de exercício de diversos saberes, condenado, já que a pena tornou-se um objeto de exercício de diversos saberes,
em outros termos, estabeleceu-se a participação de outras ciências dotadas de em outros termos, estabeleceu-se a participação de outras ciências dotadas de
atribuições na prática punitiva, algo que não deslegitimou o inerente direito de atribuições na prática punitiva, algo que não deslegitimou o inerente direito de
punir da justiça. punir da justiça.
Porquanto, o condenado passou a ser acompanhando durante todo o cumpri- Porquanto, o condenado passou a ser acompanhando durante todo o cumpri-
mento de sua sentença por guardas, médicos, capelães, psiquiatras, psicólogos, mento de sua sentença por guardas, médicos, capelães, psiquiatras, psicólogos,

47. Idem, Ibidem, p. 78. 47. Idem, Ibidem, p. 78.


Foucault: entre o Poder e o ­Direito 273 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 273

educadores48. Por isso mais eficazmente vigiado, punido, reeducado, docilizado, educadores48. Por isso mais eficazmente vigiado, punido, reeducado, docilizado,
enquadrado. enquadrado.
Assim, tornou-se inadequado se dizer, “a justiça executou a punição”, mas “a Assim, tornou-se inadequado se dizer, “a justiça executou a punição”, mas “a
punição foi executada” devido a uma ação ou omissão, censurada por um com- punição foi executada” devido a uma ação ou omissão, censurada por um com-
plexo aparato punitivo. Em síntese, diria Foucault, utilizando essas disposições plexo aparato punitivo. Em síntese, diria Foucault, utilizando essas disposições
do poder já na contemporaneidade: do poder já na contemporaneidade:
Mas uma coisa é singular na justiça criminal moderna: se ela se carrega de tantos Mas uma coisa é singular na justiça criminal moderna: se ela se carrega de tantos
elementos extrajurídicos, não é para poder qualificá-los juridicamente e integrá- elementos extrajurídicos, não é para poder qualificá-los juridicamente e integrá-
los pouco a pouco no estrito poder de punir; é ao contrário, para poder fazê-los los pouco a pouco no estrito poder de punir; é ao contrário, para poder fazê-los
funcionar no interior da operação penal como elementos não jurídicos; é para evitar funcionar no interior da operação penal como elementos não jurídicos; é para evitar
que essa operação seja pura e simplesmente uma punição legal; é para escusar o que essa operação seja pura e simplesmente uma punição legal; é para escusar o
juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga.49 juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga.49

Ressalva-se, então, o surgimento das pequenas justiças, juízes paralelos, e Ressalva-se, então, o surgimento das pequenas justiças, juízes paralelos, e
todo um conjunto de elementos extrajurídicos que passaram a serem componentes todo um conjunto de elementos extrajurídicos que passaram a serem componentes
indispensáveis à aplicação da sentença principal, mesmo que para reafirmá-la, indispensáveis à aplicação da sentença principal, mesmo que para reafirmá-la,
conformar o condenado, ocupar seu tempo com um processo de reeducação social. conformar o condenado, ocupar seu tempo com um processo de reeducação social.
Pode-se observar isso já na “episteme” sobre a Casa dos Jovens Detentos em Paris Pode-se observar isso já na “episteme” sobre a Casa dos Jovens Detentos em Paris
no final do século XVIII, retratada por Foucault logo no início do livro Vigiar no final do século XVIII, retratada por Foucault logo no início do livro Vigiar
e Punir. A análise dessa suscita a existência de um regime disciplinar parecido e Punir. A análise dessa suscita a existência de um regime disciplinar parecido
ao empregado nos quartéis militares, pois todas as ações dos prisioneiros eram ao empregado nos quartéis militares, pois todas as ações dos prisioneiros eram
determinadas meticulosamente por rufos de tambor, seja: levantar, orar, comer, determinadas meticulosamente por rufos de tambor, seja: levantar, orar, comer,
trabalhar, estudar, dormir, enfim, absolutamente, todas as disposições do corpo, trabalhar, estudar, dormir, enfim, absolutamente, todas as disposições do corpo,
que parecia mais um “boneco” manuseado por linhas de poder, manipuladas, que parecia mais um “boneco” manuseado por linhas de poder, manipuladas,
essencialmente, por uma ordem fora do direito. essencialmente, por uma ordem fora do direito.
Os juízes paralelos supracitados também figuraram de maneira indispensável Os juízes paralelos supracitados também figuraram de maneira indispensável
para uma nova sistemática da forma de punir, principalmente, no que tange às para uma nova sistemática da forma de punir, principalmente, no que tange às
sentenças, pois mesmo a coisa julgada passa a poder ter, a qualquer momento, sua sentenças, pois mesmo a coisa julgada passa a poder ter, a qualquer momento, sua
imputação penal revisada, tanto que em benefício do réu. No entanto, este deve imputação penal revisada, tanto que em benefício do réu. No entanto, este deve
– visto que técnica atual – estar num estado avançado de suas ressocialização e – visto que técnica atual – estar num estado avançado de suas ressocialização e
adestramento, um corpo que, no pensamento foucaltiano, pode ser melhor aprovei- adestramento, um corpo que, no pensamento foucaltiano, pode ser melhor aprovei-
tado economicamente do lado de fora dos muros da penitenciária. Nada relacionado tado economicamente do lado de fora dos muros da penitenciária. Nada relacionado
à “humanização” do processo punitivo, mas a valia que se pode extrair do corpo. à “humanização” do processo punitivo, mas a valia que se pode extrair do corpo.
Da mesma forma, esses magistrados de execução criminal podem endurecer a pena Da mesma forma, esses magistrados de execução criminal podem endurecer a pena
se ficar comprovada a resistência do indivíduo em ser “normalizado”. se ficar comprovada a resistência do indivíduo em ser “normalizado”.
Em suma, a sentença passa a ter a possibilidade de ser flexibilizada. Surgem, Em suma, a sentença passa a ter a possibilidade de ser flexibilizada. Surgem,
então, diferentes regimes de penas privativas de liberdade (reclusão ou detenção): então, diferentes regimes de penas privativas de liberdade (reclusão ou detenção):

48. Idem, Ibidem, p. 14. 48. Idem, Ibidem, p. 14.


49. Idem, Ibidem, p. 23. 49. Idem, Ibidem, p. 23.
274 Felipe Jacques Silva 274 Felipe Jacques Silva

fechado, semi-aberto, aberto; além de tantas outras penas alternativas, como a de fechado, semi-aberto, aberto; além de tantas outras penas alternativas, como a de
prestação de serviços para o Estado. Há, portanto, uma punição pela “economia prestação de serviços para o Estado. Há, portanto, uma punição pela “economia
interna de uma pena que, embora sancione o crime, pode modificar-se (abreviando- interna de uma pena que, embora sancione o crime, pode modificar-se (abreviando-
se ou, se for o caso, prolongando-se), conforme se transformar o comportamento se ou, se for o caso, prolongando-se), conforme se transformar o comportamento
do condenado (...)”50 do condenado (...)”50

4.6. As ciências extrajurídicas 4.6. As ciências extrajurídicas


Na reformulação dos dispositivos de punição que se passou entre os séculos Na reformulação dos dispositivos de punição que se passou entre os séculos
XVII e XVIII, a psicologia e a psiquiatria foram as ciências extrajurídicas pio- XVII e XVIII, a psicologia e a psiquiatria foram as ciências extrajurídicas pio-
neiras, visto a necessidade de mecanismos reguladores do quadro psíquico do neiras, visto a necessidade de mecanismos reguladores do quadro psíquico do
criminoso. Além disso, a discussão sobre a responsabilidade penal das pessoas com criminoso. Além disso, a discussão sobre a responsabilidade penal das pessoas com
enfermidade ou deficiência mental vem à tona na sociedade. Não parecia cabível enfermidade ou deficiência mental vem à tona na sociedade. Não parecia cabível
a idéia de punir da mesma forma aquele que, no momento da ação ou da omissão a idéia de punir da mesma forma aquele que, no momento da ação ou da omissão
ilícita, tinha seu discernimento viciado por distúrbios psicológicos. Executar um ilícita, tinha seu discernimento viciado por distúrbios psicológicos. Executar um
deficiente mental agravava o teor horrendo dos suplícios. Como condenar à morte deficiente mental agravava o teor horrendo dos suplícios. Como condenar à morte
uma pessoa que nem ao menos sabe porque esta sendo punida? Por que aplicar uma pessoa que nem ao menos sabe porque esta sendo punida? Por que aplicar
o mecanismo do espetáculo sangrento em quem a publicização deste no corpo o mecanismo do espetáculo sangrento em quem a publicização deste no corpo
social sofrerá um repúdio de proporções assustadoras? Seria perigoso continuar social sofrerá um repúdio de proporções assustadoras? Seria perigoso continuar
fornecendo ao contrapoder possibilidades de estopim, ou seja, da exacerbação fornecendo ao contrapoder possibilidades de estopim, ou seja, da exacerbação
ou expansão descontrolada de seu poder. ou expansão descontrolada de seu poder.
Assim, a economia do modo de punir deve também atingir os enfermos Assim, a economia do modo de punir deve também atingir os enfermos
mentais. Algo que começou a ser praticada mesmo antes do fim da reforma em mentais. Algo que começou a ser praticada mesmo antes do fim da reforma em
alguns países, como a França. Uma vez que, relembra Foucault, o Código Crimi- alguns países, como a França. Uma vez que, relembra Foucault, o Código Crimi-
nal francês de 1810, em seu artigo 64, dispunha que se o autor estava em estado nal francês de 1810, em seu artigo 64, dispunha que se o autor estava em estado
de demência no instante do “injusto-típico”, ou caso desenvolvesse tal estado de de demência no instante do “injusto-típico”, ou caso desenvolvesse tal estado de
forma permanente, não seria desqualificada ou atenuada a punição, no entanto, o forma permanente, não seria desqualificada ou atenuada a punição, no entanto, o
próprio crime desapareceria51. próprio crime desapareceria51.
Entretanto, para isto ocorrer, inicialmente, era o puro senso analítico do juiz Entretanto, para isto ocorrer, inicialmente, era o puro senso analítico do juiz
que iria especular a ausência da vontade livre do infrator no momento do ato. Daí que iria especular a ausência da vontade livre do infrator no momento do ato. Daí
teve-se a desconsideração de muitos tribunais a esta norma, destarte continuaram teve-se a desconsideração de muitos tribunais a esta norma, destarte continuaram
proferindo sentenças contendo punições para os deficientes mentais, mesmo o proferindo sentenças contendo punições para os deficientes mentais, mesmo o
Supremo Tribunal de Justiça francês afirmando várias vezes o caráter de impro- Supremo Tribunal de Justiça francês afirmando várias vezes o caráter de impro-
cedência jurídica que deveria ser aplicado nestes casos. Todavia, alguns desses cedência jurídica que deveria ser aplicado nestes casos. Todavia, alguns desses
veredictos contra legem rezavam que: veredictos contra legem rezavam que:
Admitiram que era possível alguém ser culpado e louco; quanto mais louco tanto Admitiram que era possível alguém ser culpado e louco; quanto mais louco tanto
menos culpado; culpado, sem dúvida, mas que deveria ser enclausurado e tratado menos culpado; culpado, sem dúvida, mas que deveria ser enclausurado e tratado
e não punido; culpado perigoso, pois que manifestamente doente, etc.52 e não punido; culpado perigoso, pois que manifestamente doente, etc.52

50. Idem, Ibidem, p. 20. 50. Idem, Ibidem, p. 20.


51. Idem, Ibidem, p. 21. 51. Idem, Ibidem, p. 21.
52. Idem, Ibidem, p. 21. 52. Idem, Ibidem, p. 21.
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 275 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 275

Mas o importante são as modificações jurídicas que isso proporcionou com Mas o importante são as modificações jurídicas que isso proporcionou com
a reforma do código em 1832, instaurando uma gradual redução ou isenção da a reforma do código em 1832, instaurando uma gradual redução ou isenção da
pena, a depender dos níveis de loucura ou anomalia apresentados pelo agente, não pena, a depender dos níveis de loucura ou anomalia apresentados pelo agente, não
bastando mais a mera alegação de deficiência mental para anular o julgamento ou bastando mais a mera alegação de deficiência mental para anular o julgamento ou
a possibilidade de sanção. a possibilidade de sanção.
Malgrado, deixou o juiz vinculado ao laudo psiquiátrico, não que ele tivesse Malgrado, deixou o juiz vinculado ao laudo psiquiátrico, não que ele tivesse
obrigatoriedade de apreciá-lo, mas o bom senso, a prudência e, principalmente, o obrigatoriedade de apreciá-lo, mas o bom senso, a prudência e, principalmente, o
novo regime de vigilância hierárquica, mandavam que o examinasse. novo regime de vigilância hierárquica, mandavam que o examinasse.
Daí chega-se a outro ente jurídico abordado na dinâmica do poder foucaultiano, Daí chega-se a outro ente jurídico abordado na dinâmica do poder foucaultiano,
a “medida de segurança”, que se destacou como dispositivo mais adequado, entre a “medida de segurança”, que se destacou como dispositivo mais adequado, entre
os já aplicados, para o caso em análise, sendo definida nas palavras do filósofo os já aplicados, para o caso em análise, sendo definida nas palavras do filósofo
como algo que: como algo que:
(...) não se destina a sancionar a infração, mas a controlar o indivíduo, a neutralizar (...) não se destina a sancionar a infração, mas a controlar o indivíduo, a neutralizar
sua periculosidade, a modificar suas disposições criminais, a cessar somente após sua periculosidade, a modificar suas disposições criminais, a cessar somente após
obtenção de tais modificações.53 obtenção de tais modificações.53

Por isso legou-se, de certa forma, ao psiquiatra a posição de conselheiro de Por isso legou-se, de certa forma, ao psiquiatra a posição de conselheiro de
punição do magistrado, competindo-lhe analisar e expor o grau de periculosidade punição do magistrado, competindo-lhe analisar e expor o grau de periculosidade
do indivíduo, sugerir a forma de se proteger dele, elencar dispositivos capazes do indivíduo, sugerir a forma de se proteger dele, elencar dispositivos capazes
de “normalizá-lo”, e opinar se é mais idôneo reprimir ou tratar, ou seja, aplicar- de “normalizá-lo”, e opinar se é mais idôneo reprimir ou tratar, ou seja, aplicar-
lhe como sanção, a prisão ou o hospício. Este panorama Foucault vai chamar de lhe como sanção, a prisão ou o hospício. Este panorama Foucault vai chamar de
“tratamento médico judicial”. “tratamento médico judicial”.
Logo, tudo isso fundamenta a conclusão de pensador que: Logo, tudo isso fundamenta a conclusão de pensador que:
A justiça criminal hoje em dia só funciona e só se justifica por essa perpétua referên- A justiça criminal hoje em dia só funciona e só se justifica por essa perpétua referên-
cia a outra coisa que não é ela mesma, por essa incessante reinscrição nos sistemas cia a outra coisa que não é ela mesma, por essa incessante reinscrição nos sistemas
não jurídicos. Ela está votada a essa requalificação pelo saber.54 não jurídicos. Ela está votada a essa requalificação pelo saber.54

Inicialmente, concordar com essa afirmação parece-nos ser difícil para qual- Inicialmente, concordar com essa afirmação parece-nos ser difícil para qual-
quer jurista. Mas não há que se negar essa necessária inter-relação com as ciências quer jurista. Mas não há que se negar essa necessária inter-relação com as ciências
extrajurídicas, principalmente no direito penal a partir do século XVIII. Doravante, extrajurídicas, principalmente no direito penal a partir do século XVIII. Doravante,
todo o processo criminal passa ser mais racional e sistemático; o poder é operacio- todo o processo criminal passa ser mais racional e sistemático; o poder é operacio-
nalizado numa regularidade e especificidade de funções que não deixa existirem nalizado numa regularidade e especificidade de funções que não deixa existirem
entrechoques de competências. Além disso, a responsabilidade pela punição parece entrechoques de competências. Além disso, a responsabilidade pela punição parece
ficar mais difusa. Em outras palavras, é o “aparato criminal” que castiga, fazendo ficar mais difusa. Em outras palavras, é o “aparato criminal” que castiga, fazendo
do condenado um corpo dócil, de forma a potencializar suas forças para atividades do condenado um corpo dócil, de forma a potencializar suas forças para atividades
econômicas e reduzir sua capacidade de reação mais eficazmente. econômicas e reduzir sua capacidade de reação mais eficazmente.

53. Idem, Ibidem,, p. 20. 53. Idem, Ibidem,, p. 20.


54. Idem, Ibidem, p. 23. 54. Idem, Ibidem, p. 23.
276 Felipe Jacques Silva 276 Felipe Jacques Silva

5. CONCLUSÃO 5. CONCLUSÃO
É perceptível que este estudo tratou, limitadamente, ao nível legal de cada dis- É perceptível que este estudo tratou, limitadamente, ao nível legal de cada dis-
positivo jurídico que se propôs a analisar. Uma vez que seu escopo estava voltado positivo jurídico que se propôs a analisar. Uma vez que seu escopo estava voltado
para a leitura de Foucault em cada um deles, mesmo que de forma sucinta. para a leitura de Foucault em cada um deles, mesmo que de forma sucinta.
Deste modo, os mecanismos abordados nos propiciam concluir que o pen- Deste modo, os mecanismos abordados nos propiciam concluir que o pen-
samento foucaultiano vincula-se ao fato de que o surgimento de cada um deles, samento foucaultiano vincula-se ao fato de que o surgimento de cada um deles,
independente dos desígnios, ou seja, tampouco importa se proibitivos, ou que independente dos desígnios, ou seja, tampouco importa se proibitivos, ou que
estabeleçam um regime hierárquico ou de vigilância, trarão consigo uma sombra estabeleçam um regime hierárquico ou de vigilância, trarão consigo uma sombra
de ilicitude. Esta que se articula em um embate de poderes contra um possível de ilicitude. Esta que se articula em um embate de poderes contra um possível
cerceamento, já que o contrapoder encontra-se em uma permanente tentativa de cerceamento, já que o contrapoder encontra-se em uma permanente tentativa de
controle e “normalização”. controle e “normalização”.
Portanto, a elucidação de jogos de poderes escondidos nas entrelinhas da estru- Portanto, a elucidação de jogos de poderes escondidos nas entrelinhas da estru-
tura social, além de remissões às transições paradigmáticas esquecidas pela acepção tura social, além de remissões às transições paradigmáticas esquecidas pela acepção
de falsas verdades, revelam a preocupação de Foucault com a real percepção da de falsas verdades, revelam a preocupação de Foucault com a real percepção da
formação histórica por seus próprios atores. Destarte, procurando abrir-lhes os formação histórica por seus próprios atores. Destarte, procurando abrir-lhes os
olhos para a compreensão das pontuais mudanças do passado, e das concepções e olhos para a compreensão das pontuais mudanças do passado, e das concepções e
construções culturais do presente, para que assim possam criticá-las e destruí-las, construções culturais do presente, para que assim possam criticá-las e destruí-las,
não mais figurando apenas como alienados de sua própria história. não mais figurando apenas como alienados de sua própria história.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ABRAHAM, Tomás. El último Foucault. Buenos Aires: Editoral Sudamericana, 2003. ABRAHAM, Tomás. El último Foucault. Buenos Aires: Editoral Sudamericana, 2003.
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DELEUZE, G., Conversações, Rio de Janeiro: Ed.34 , 1992. DELEUZE, G., Conversações, Rio de Janeiro: Ed.34 , 1992.
DE SÁ, Raquel Stela. A Arqueologia: como os saberes aparecem e se transformam. DE SÁ, Raquel Stela. A Arqueologia: como os saberes aparecem e se transformam.
Disponível em <www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art12.html> Acesso em 14 de Disponível em <www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art12.html> Acesso em 14 de
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DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 3ª ed., São Paulo: DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 3ª ed., São Paulo:
Editora Saraiva, 1991. Editora Saraiva, 1991.
DREYFUS, Paul; RABINOW, Hubert. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para DREYFUS, Paul; RABINOW, Hubert. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para
além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 1995. além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
FOUCAULT, M., Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 31ªed. Petrópolis: FOUCAULT, M., Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 31ªed. Petrópolis:
Vozes, 2006. Vozes, 2006.
_______. A Verdade e as Formas Jurídicas. 3ªed. Rio de Janeiro: NAU Ed., 2002. _______. A Verdade e as Formas Jurídicas. 3ªed. Rio de Janeiro: NAU Ed., 2002.
_______. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Grall, 1985. _______. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Grall, 1985.
_______. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da _______. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque Rio de Janeiro: Graal, 2001. Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque Rio de Janeiro: Graal, 2001.
Foucault: entre o Poder e o ­Direito 277 Foucault: entre o Poder e o ­Direito 277

_______. O Sujeito e o Poder. In RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault, _______. O Sujeito e o Poder. In RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault,
Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. São Paulo, Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. São Paulo,
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MERQUIOR, J.G. Michel Foucault ou o Niilismo de Cátedra. Rio de Janeiro, Nova MERQUIOR, J.G. Michel Foucault ou o Niilismo de Cátedra. Rio de Janeiro, Nova
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POGREBINSCHI, Thamy. Foucault, para além do poder disciplinar e do biopoder. Lua POGREBINSCHI, Thamy. Foucault, para além do poder disciplinar e do biopoder. Lua
Nova, 2004, no.63, p.179-201. ISSN 0102-6445. Nova, 2004, no.63, p.179-201. ISSN 0102-6445.
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Verité, pouvoir et soi. (entretien avec R. Martain, Université du Vermont, 25 de octobre Verité, pouvoir et soi. (entretien avec R. Martain, Université du Vermont, 25 de octobre
1982).Traduzido a partir de  FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1982).Traduzido a partir de  FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard,
1994, vol. IV, por Wanderson Flor do Nascimento. 1994, vol. IV, por Wanderson Flor do Nascimento.
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br/~aulas/pdf3/26.pdf> acesso em 10 de maio de 2007. br/~aulas/pdf3/26.pdf> acesso em 10 de maio de 2007.
Capítulo XIX Capítulo XIX
Direitos fundamentais e hermenêutica Direitos fundamentais e hermenêutica
constitucional concretizadora constitucional concretizadora

Flávia Moreira Guimarães Pessoa* Flávia Moreira Guimarães Pessoa*

Sumário:1. Introdução – 2. Direitos fundamentais: conceituação e conteúdo – 3. A evolução do Sumário:1. Introdução – 2. Direitos fundamentais: conceituação e conteúdo – 3. A evolução do
raciocínio judiciário – 4. A necessidade de uma hermenêutica constitucional concretizadora – 5. raciocínio judiciário – 4. A necessidade de uma hermenêutica constitucional concretizadora – 5.
Considerações Finais – 6. Referências Bibliográficas. Considerações Finais – 6. Referências Bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO 1. INTRODUÇÃO
O presente artigo cuida do papel da hermenêutica jurídica na concretização dos O presente artigo cuida do papel da hermenêutica jurídica na concretização dos
direitos fundamentais. Para tanto, inicia-se com a análise da definição e conteúdo direitos fundamentais. Para tanto, inicia-se com a análise da definição e conteúdo
dos direitos fundamentais. Em seguida trata-se da evolução do raciocínio judiciário. dos direitos fundamentais. Em seguida trata-se da evolução do raciocínio judiciário.
Por fim, procede-se à verificação da hermenêutica constitucional concretizadora Por fim, procede-se à verificação da hermenêutica constitucional concretizadora
dos direitos fundamentais. dos direitos fundamentais.

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONCEITUAÇÃO E CONTEÚDO 2. DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONCEITUAÇÃO E CONTEÚDO


A conceituação do que sejam direitos fundamentais é particularmente difícil, A conceituação do que sejam direitos fundamentais é particularmente difícil,
tendo em vista a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem tendo em vista a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem
no envolver histórico. Aumenta essa dificuldade, o fato de se empregarem várias no envolver histórico. Aumenta essa dificuldade, o fato de se empregarem várias
expressões para designá-los, como “direitos naturais”, “direitos humanos”, “di- expressões para designá-los, como “direitos naturais”, “direitos humanos”, “di-
reitos públicos subjetivos”, “liberdades fundamentais” etc1. reitos públicos subjetivos”, “liberdades fundamentais” etc1.
Alexy (2003, p. 21) aponta três conceitos de direito fundamental, que ele Alexy (2003, p. 21) aponta três conceitos de direito fundamental, que ele
classifica em concepções formais, materiais e procedimentais. A concepção formal classifica em concepções formais, materiais e procedimentais. A concepção formal

* Juíza do Trabalho Substituta (TRT 20ª Região), Diretora da EMATRA XX – Escola da Magistratura * Juíza do Trabalho Substituta (TRT 20ª Região), Diretora da EMATRA XX – Escola da Magistratura
do Trabalho da 20ª Região. Coordenadora e Professora da Pós-Graduação em Direito do Trabalho do Trabalho da 20ª Região. Coordenadora e Professora da Pós-Graduação em Direito do Trabalho
(TRT 20ª Região/UFS), Professora da Fanese. Especialista em Direito Processual pela UFSC, (TRT 20ª Região/UFS), Professora da Fanese. Especialista em Direito Processual pela UFSC,
Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutoranda em Direito Público pela UFBA. Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutoranda em Direito Público pela UFBA.
1. Ingo Sarlet (2006, p. 35-37) estabelece a distinção entre “direitos fundamentais”, “direitos hu- 1. Ingo Sarlet (2006, p. 35-37) estabelece a distinção entre “direitos fundamentais”, “direitos hu-
manos” e “direitos do homem”. Nesse sentido, segundo o autor, o termo direitos fundamentais manos” e “direitos do homem”. Nesse sentido, segundo o autor, o termo direitos fundamentais
se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito
constitucional positivo de determinado Estado, enquanto que a expressão direitos humanos seria constitucional positivo de determinado Estado, enquanto que a expressão direitos humanos seria
relativa aos documentos de direito internacional, por referir-se às posições jurídicas que se reco- relativa aos documentos de direito internacional, por referir-se às posições jurídicas que se reco-
nhece ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação a determinado Estado. Já a nhece ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação a determinado Estado. Já a
expressão “direitos do homem” seria, segundo Sarlet (2006, p. 37) marcadamente jusnaturalista, expressão “direitos do homem” seria, segundo Sarlet (2006, p. 37) marcadamente jusnaturalista,
de uma fase que precedeu o reconhecimento dos direitos no âmbito do direito positivo interno e de uma fase que precedeu o reconhecimento dos direitos no âmbito do direito positivo interno e
internacional. internacional.
280 Flávia Moreira Guimarães Pessoa 280 Flávia Moreira Guimarães Pessoa

baseia-se na maneira em que está disposta a normatividade de direito positivo dos baseia-se na maneira em que está disposta a normatividade de direito positivo dos
direitos fundamentais. Assim, direitos fundamentais são todos aqueles catalogados direitos fundamentais. Assim, direitos fundamentais são todos aqueles catalogados
expressamente como tais na Constituição. Para Alexy ( 2003, p. 23) os conceitos expressamente como tais na Constituição. Para Alexy ( 2003, p. 23) os conceitos
formais de direito fundamentais referidos a catálogos consagrados nas normas formais de direito fundamentais referidos a catálogos consagrados nas normas
constitucionais podem ser úteis, mas em seu fundo deve haver sempre um conceito constitucionais podem ser úteis, mas em seu fundo deve haver sempre um conceito
material de direito fundamental. material de direito fundamental.
Em relação à definição material dos direitos fundamentais, Alexy (2003, p. Em relação à definição material dos direitos fundamentais, Alexy (2003, p.
27) ressalta que é necessário que existam diversos tipos de direitos fundamentais 27) ressalta que é necessário que existam diversos tipos de direitos fundamentais
que possam ser correlatos a diferentes concepções de Estado. Assim, por exem- que possam ser correlatos a diferentes concepções de Estado. Assim, por exem-
plo, para o Estado Burguês, direitos fundamentais seriam os direitos liberais do plo, para o Estado Burguês, direitos fundamentais seriam os direitos liberais do
indivíduo, o que exclui as ações positivas do Estado. indivíduo, o que exclui as ações positivas do Estado.
A definição procedimental exposta por Alexy (2003, p. 29) aponta para uma A definição procedimental exposta por Alexy (2003, p. 29) aponta para uma
definição formal a partir da qual se estabelece que as decisões do parlamento não definição formal a partir da qual se estabelece que as decisões do parlamento não
possam ser tomadas por maioria simples, de forma que se estabelecem quoruns possam ser tomadas por maioria simples, de forma que se estabelecem quoruns
privilegiados para sua modificação. privilegiados para sua modificação.
Outrossim, cumpre frisar que o conteúdo dos direitos fundamentais foi sendo Outrossim, cumpre frisar que o conteúdo dos direitos fundamentais foi sendo
paulatinamente alterado, a partir da verificação do seu caráter histórico. Com paulatinamente alterado, a partir da verificação do seu caráter histórico. Com
efeito, consoante assinala Canotilho (2003, p. 1395), os direitos fundamentais efeito, consoante assinala Canotilho (2003, p. 1395), os direitos fundamentais
“pressupõem concepções de Estado e de Constituição decisivamente operantes “pressupõem concepções de Estado e de Constituição decisivamente operantes
na atividade interpretativo-concretizadora das normas constitucionais”. Assim, na atividade interpretativo-concretizadora das normas constitucionais”. Assim,
no constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais eram considerados os di- no constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais eram considerados os di-
reitos de liberdade do indivíduo contra o Estado, constituindo-se essencialmente reitos de liberdade do indivíduo contra o Estado, constituindo-se essencialmente
nos direitos de autonomia e defesa. A teoria da ordem dos valores, por outro nos direitos de autonomia e defesa. A teoria da ordem dos valores, por outro
lado, associada à doutrina de Smend e à filosofia de valores, definia os direitos lado, associada à doutrina de Smend e à filosofia de valores, definia os direitos
fundamentais como valores de caráter objetivo. Já a teoria institucional dos di- fundamentais como valores de caráter objetivo. Já a teoria institucional dos di-
reitos fundamentais, capitaneada por Peter Haberle, parte da afirmação de que os reitos fundamentais, capitaneada por Peter Haberle, parte da afirmação de que os
direitos fundamentais não se esgotam em sua vertente individual, mas possuem direitos fundamentais não se esgotam em sua vertente individual, mas possuem
um caráter duplo, ou seja, individual e institucional. Por seu turno, a teoria social um caráter duplo, ou seja, individual e institucional. Por seu turno, a teoria social
dos direitos fundamentais parte da tripla dimensão destes direitos: individual; dos direitos fundamentais parte da tripla dimensão destes direitos: individual;
institucional e processual. De sua vez, a teoria democrática funcional acentua o institucional e processual. De sua vez, a teoria democrática funcional acentua o
momento teleológico-funcional dos direitos fundamentais no processo político- momento teleológico-funcional dos direitos fundamentais no processo político-
democrático. Por fim, a teoria socialista dos direitos fundamentais pretende ser democrático. Por fim, a teoria socialista dos direitos fundamentais pretende ser
uma concepção originária dos direitos fundamentais, o que implicaria em uma uma concepção originária dos direitos fundamentais, o que implicaria em uma
ruptura com as concepções liberais (CANOTILHO, 2003, p. 1397-1400) ruptura com as concepções liberais (CANOTILHO, 2003, p. 1397-1400)
Expostas as teorias que pretendem fixar o conteúdo dos direitos fundamentais, Expostas as teorias que pretendem fixar o conteúdo dos direitos fundamentais,
importa destacar a classificação dos direitos fundamentais procedida por Ingo importa destacar a classificação dos direitos fundamentais procedida por Ingo
Sarlet (2006 p. 194) que divide os direitos fundamentais em dois grupos: direitos Sarlet (2006 p. 194) que divide os direitos fundamentais em dois grupos: direitos
fundamentais como direitos de defesa e direitos fundamentais como direitos a fundamentais como direitos de defesa e direitos fundamentais como direitos a
prestações. Esse último grupo, por seu turno, subdivide-se em direitos a prestações prestações. Esse último grupo, por seu turno, subdivide-se em direitos a prestações
Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 281 Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 281

em sentido amplo, direitos à proteção, direitos a prestações em sentido estrito em sentido amplo, direitos à proteção, direitos a prestações em sentido estrito
– direitos sociais – e direitos à participação na organização e procedimento. – direitos sociais – e direitos à participação na organização e procedimento.

A primeira divisão apontada, relativa aos direitos de defesa e direitos a pres- A primeira divisão apontada, relativa aos direitos de defesa e direitos a pres-
tações, parte da clássica distinção efetivada pela doutrina. Com efeito, os direitos tações, parte da clássica distinção efetivada pela doutrina. Com efeito, os direitos
fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos
poderes públicos, que deverá respeitar os direitos individuais. Por outro lado, os poderes públicos, que deverá respeitar os direitos individuais. Por outro lado, os
direitos fundamentais a prestações implicam uma postura ativa do Estado, que é direitos fundamentais a prestações implicam uma postura ativa do Estado, que é
obrigado a colocar a disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e obrigado a colocar a disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e
material (SARLET, 2006, P. 216) material (SARLET, 2006, P. 216)

Em relação aos direitos de defesa, esses abrangem não somente os tradicionais Em relação aos direitos de defesa, esses abrangem não somente os tradicionais
direitos de liberdade e igualdade, como também os direitos à vida, à propriedade, direitos de liberdade e igualdade, como também os direitos à vida, à propriedade,
às liberdades fundamentais de locomoção, de consciência, de manifestação de às liberdades fundamentais de locomoção, de consciência, de manifestação de
pensamento, de imprensa e de associação, além dos direitos que irradiam da per- pensamento, de imprensa e de associação, além dos direitos que irradiam da per-
sonalidade, da nacionalidade e da cidadania, bem como os direitos coletivos. sonalidade, da nacionalidade e da cidadania, bem como os direitos coletivos.

Em relação aos direitos fundamentais como prestações, estes se encontram Em relação aos direitos fundamentais como prestações, estes se encontram
vinculados à concepção de que ao Estado incumbe colocar à disposição os meios vinculados à concepção de que ao Estado incumbe colocar à disposição os meios
materiais e implementar as condições que possibilitem o efetivo exercício das materiais e implementar as condições que possibilitem o efetivo exercício das
liberdades fundamentais. Dentro da subdivisão, efetivada por Sarlet (2006) entre liberdades fundamentais. Dentro da subdivisão, efetivada por Sarlet (2006) entre
direitos a prestações em sentido amplo e estrito, tem-se que, segundo o autor, na direitos a prestações em sentido amplo e estrito, tem-se que, segundo o autor, na
rubrica de direitos a prestações em sentido amplo enquadram-se todos os direi- rubrica de direitos a prestações em sentido amplo enquadram-se todos os direi-
tos fundamentais de natureza tipicamente (ou, no mínimo, predominantemente) tos fundamentais de natureza tipicamente (ou, no mínimo, predominantemente)
prestacional que não se enquadram na categoria de direitos de defesa. Quanto aos prestacional que não se enquadram na categoria de direitos de defesa. Quanto aos
direitos a prestações em sentido estrito, Sarlet (2006, p. 221) aponta que estes direitos a prestações em sentido estrito, Sarlet (2006, p. 221) aponta que estes
se reportam à atuação dos poderes públicos como expressão do Estado Social. se reportam à atuação dos poderes públicos como expressão do Estado Social.
Trata-se, por outro lado, de direitos a prestações fáticas que o indivíduo, caso Trata-se, por outro lado, de direitos a prestações fáticas que o indivíduo, caso
dispusesse de recursos necessários, poderia obter através de particulares. São, dispusesse de recursos necessários, poderia obter através de particulares. São,
assim, os chamados direitos fundamentais sociais. assim, os chamados direitos fundamentais sociais.

Voltando-se aos direitos fundamentais a prestação em sentido amplo, Sarlet Voltando-se aos direitos fundamentais a prestação em sentido amplo, Sarlet
(2006, p. 222) destaca os direitos à proteção, que seriam aqueles que outorgam (2006, p. 222) destaca os direitos à proteção, que seriam aqueles que outorgam
ao indivíduo o direito de exigir do Estado que este o proteja contra ingerências ao indivíduo o direito de exigir do Estado que este o proteja contra ingerências
de terceiros em determinados bens pessoais. de terceiros em determinados bens pessoais.

Há, também, a dimensão dos direitos fundamentais de participação na orga- Há, também, a dimensão dos direitos fundamentais de participação na orga-
nização e procedimento. Tal dimensão, além de outorgar legitimidade ao Estado nização e procedimento. Tal dimensão, além de outorgar legitimidade ao Estado
Democrático de Direito, ao tempo em que assegura uma democracia com elemen- Democrático de Direito, ao tempo em que assegura uma democracia com elemen-
tos participativos. Neste aspecto, Sarlet (2006, p. 226) afirma que importantes tos participativos. Neste aspecto, Sarlet (2006, p. 226) afirma que importantes
liberdades pessoais somente atingem um grau de efetiva realização no âmbito de liberdades pessoais somente atingem um grau de efetiva realização no âmbito de
uma cooperação por parte de outros titulares de direitos fundamentais, implicando uma cooperação por parte de outros titulares de direitos fundamentais, implicando
prestações estatais de cunho organizatório. prestações estatais de cunho organizatório.
282 Flávia Moreira Guimarães Pessoa 282 Flávia Moreira Guimarães Pessoa

Ressalte-se, porém, como faz Andréas Krell (1999, p. 245) que a doutrina Ressalte-se, porém, como faz Andréas Krell (1999, p. 245) que a doutrina
moderna dá ênfase em afirmar que qualquer direito fundamental contém, ao moderna dá ênfase em afirmar que qualquer direito fundamental contém, ao
mesmo tempo, componentes de obrigações positivas e negativas para o Estado. mesmo tempo, componentes de obrigações positivas e negativas para o Estado.
Desta forma, a tradicional diferenciação entre os direitos “da primeira” e os “da Desta forma, a tradicional diferenciação entre os direitos “da primeira” e os “da
segunda” geração seria meramente gradual, mas não substancial, uma vez que segunda” geração seria meramente gradual, mas não substancial, uma vez que
muitos dos direitos fundamentais tradicionais seriam reinterpretados como sociais, muitos dos direitos fundamentais tradicionais seriam reinterpretados como sociais,
perdendo sentido, assim, as distinções rígidas. perdendo sentido, assim, as distinções rígidas.
Tal prévia análise do conceito e conteúdo dos direitos fundamentais é relevante Tal prévia análise do conceito e conteúdo dos direitos fundamentais é relevante
para a verificação da concretização hermenêutica dos direitos fundamentais. Antes, para a verificação da concretização hermenêutica dos direitos fundamentais. Antes,
porém, aborda-se, no item seguinte, a evolução do raciocínio judiciário. porém, aborda-se, no item seguinte, a evolução do raciocínio judiciário.

3. A EVOLUÇÃO DO RACIOCÍNIO JUDICIÁRIO 3. A EVOLUÇÃO DO RACIOCÍNIO JUDICIÁRIO


O presente item procura apontar o desenvolvimento das teorias sobre o papel O presente item procura apontar o desenvolvimento das teorias sobre o papel
da interpretação. Parte da perspectiva de que é possível compreender a ciência da interpretação. Parte da perspectiva de que é possível compreender a ciência
do direito a partir da evolução do raciocínio judiciário, com base no pressuposto do direito a partir da evolução do raciocínio judiciário, com base no pressuposto
de que o ordenamento jurídico pode ser entendido como “o conjunto de regras de que o ordenamento jurídico pode ser entendido como “o conjunto de regras
acolhidas (ou que têm a possibilidade de serem acolhidas) por um juiz” (BOBBIO, acolhidas (ou que têm a possibilidade de serem acolhidas) por um juiz” (BOBBIO,
1995, p. 28). 1995, p. 28).
Nessa busca de sistematização, adota-se a divisão proposta por Perelman, Nessa busca de sistematização, adota-se a divisão proposta por Perelman,
que distingue três fases na formação da ideologia judiciária ocidental: a primeira, que distingue três fases na formação da ideologia judiciária ocidental: a primeira,
desde seus primórdios até a Revolução Francesa; a segunda entre a Revolução desde seus primórdios até a Revolução Francesa; a segunda entre a Revolução
Francesa e a Segunda Guerra Mundial e a terceira a partir do final da Segunda Francesa e a Segunda Guerra Mundial e a terceira a partir do final da Segunda
Guerra (PERELMAN, 1998, p.184)2. Guerra (PERELMAN, 1998, p.184)2.
Na primeira fase, não havia separação de poderes, sendo o soberano detentor Na primeira fase, não havia separação de poderes, sendo o soberano detentor
das funções de administrar, legislar e julgar. Ainda não existia um corpo completo das funções de administrar, legislar e julgar. Ainda não existia um corpo completo
de leis, de forma que o julgador norteava-se pelo critério de “justiça”, devendo de leis, de forma que o julgador norteava-se pelo critério de “justiça”, devendo
fundamentar-se em regras jurídicas, morais, religiosas etc3. Prevaleciam, à época, fundamentar-se em regras jurídicas, morais, religiosas etc3. Prevaleciam, à época,

2. As datas assinaladas não são inflexíveis, servindo apenas como referência para fixação do momento 2. As datas assinaladas não são inflexíveis, servindo apenas como referência para fixação do momento
histórico. histórico.
3. Os argumentos que os julgadores romanos utilizavam para chegar racionalmente às decisões só 3. Os argumentos que os julgadores romanos utilizavam para chegar racionalmente às decisões só
escassamente estavam contidos nas regras. Na maioria das vezes, as soluções eram encontradas den- escassamente estavam contidos nas regras. Na maioria das vezes, as soluções eram encontradas den-
tro das próprias circunstâncias do problema, ou nos casos onde havia o mesmo caráter específico, tro das próprias circunstâncias do problema, ou nos casos onde havia o mesmo caráter específico,
invocando-se, por analogia, casos paralelos ou argumentando-se casos opostos. O mais importante invocando-se, por analogia, casos paralelos ou argumentando-se casos opostos. O mais importante
era sustentar a racionalidade da solução do ponto de vista prático, mostrando que ela resultou era sustentar a racionalidade da solução do ponto de vista prático, mostrando que ela resultou
das circunstâncias da causa. Até o fim da Antigüidade, os romanos conservaram notas casuísticas das circunstâncias da causa. Até o fim da Antigüidade, os romanos conservaram notas casuísticas
dominantes na sua ordem jurídica, ensejando, assim, a utilização da “tópica”, conforme enfatiza dominantes na sua ordem jurídica, ensejando, assim, a utilização da “tópica”, conforme enfatiza
Viehweg (1979, p. 49): “O jurista romano coloca um problema e trata de encontrar argumento. Viehweg (1979, p. 49): “O jurista romano coloca um problema e trata de encontrar argumento.
Vê-se, por isto, necessitado de desenvolver uma techne adequada. Pressupõe irrefletidamente um Vê-se, por isto, necessitado de desenvolver uma techne adequada. Pressupõe irrefletidamente um
nexo que não pretende demonstrar, porém dentro do qual se move. Esta é a postura fundamental nexo que não pretende demonstrar, porém dentro do qual se move. Esta é a postura fundamental
da tópica”. da tópica”.
Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 283 Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 283

os primados e a legitimidade do chamado direito natural, cujo fundamento evoluiu, os primados e a legitimidade do chamado direito natural, cujo fundamento evo-
no decorrer dos tempos: tomava por base a natureza humana, na Antigüidade luiu, no decorrer dos tempos: tomava por base a natureza humana, na Antigüidade
Clássica; ancorou-se no poder divino, durante a Idade Média4 e terminou por Clássica; ancorou-se no poder divino, durante a Idade Média4 e terminou por
assentar-se na razão, com o iluminismo, na Idade Moderna. assentar-se na razão, com o iluminismo, na Idade Moderna.
A partir da Revolução Francesa, afirmaram-se os pressupostos da separação A partir da Revolução Francesa, afirmaram-se os pressupostos da separação
de poderes, bem como a exigência de motivação das decisões. Além disso, foram de poderes, bem como a exigência de motivação das decisões. Além disso, foram
fixadas, em primeiro plano, a legalidade e a segurança jurídica como parâmetros fixadas, em primeiro plano, a legalidade e a segurança jurídica como parâmetros
para a coexistência social harmônica e a interferência estatal legítima. Nessa fase, para a coexistência social harmônica e a interferência estatal legítima. Nessa fase,
prevaleceu o positivismo jurídico, na versão tradicional, sendo as decisões judiciais prevaleceu o positivismo jurídico, na versão tradicional, sendo as decisões judiciais
formuladas com base em um raciocínio lógico-dedutivo formal. formuladas com base em um raciocínio lógico-dedutivo formal.
Nesta fase inclui-se tanto o positivismo jurídico tradicional – representado Nesta fase inclui-se tanto o positivismo jurídico tradicional – representado
pela Escola da Exegese5 quanto o positivismo jurídico normativista kelseniano6 e pela Escola da Exegese5 quanto o positivismo jurídico normativista kelseniano6 e
o positivismo da common law, explicitado na obra de Herbert Hart7. o positivismo da common law, explicitado na obra de Herbert Hart7.

4. Na Idade Média, o direito romano difundiu-se com o nome de direito comum, o qual, por seu 4. Na Idade Média, o direito romano difundiu-se com o nome de direito comum, o qual, por seu
turno, se contrapunha ao jus proprium, ou seja, aquele direito próprio das diversas instituições turno, se contrapunha ao jus proprium, ou seja, aquele direito próprio das diversas instituições
sociais. Contudo, conforme assinala Machado Neto (1975, p. 83), durante toda a Idade Média, os sociais. Contudo, conforme assinala Machado Neto (1975, p. 83), durante toda a Idade Média, os
fundamentos do direito natural jamais deixaram de ser a inteligência e a vontade divinas. Como fundamentos do direito natural jamais deixaram de ser a inteligência e a vontade divinas. Como
maiores expoentes da Idade Média, devem ser destacados Santo Agostinho – da primeira fase, maiores expoentes da Idade Média, devem ser destacados Santo Agostinho – da primeira fase,
chamada patrística – e Santo Tomás de Aquino, no período conhecido como escolástico. chamada patrística – e Santo Tomás de Aquino, no período conhecido como escolástico.
5. A Escola da Exegese, surgida na França, no século XIX, a partir da edição do Código Civil Francês, 5. A Escola da Exegese, surgida na França, no século XIX, a partir da edição do Código Civil Francês,
pugna pela identificação do direito com a lei escrita, devendo o aplicador da lei limitar-se com pugna pela identificação do direito com a lei escrita, devendo o aplicador da lei limitar-se com
rigor ao texto legal, para revelar o seu sentido real e preciso. Suas características fundamentais rigor ao texto legal, para revelar o seu sentido real e preciso. Suas características fundamentais
podem ser fixadas em cinco princípios: inversão das relações tradicionais entre direito natural e podem ser fixadas em cinco princípios: inversão das relações tradicionais entre direito natural e
direito positivo, concepção rigidamente estatal do direito, interpretação fundada na intenção do direito positivo, concepção rigidamente estatal do direito, interpretação fundada na intenção do
legislador, culto do texto da lei e respeito ao princípio da autoridade legislador, culto do texto da lei e respeito ao princípio da autoridade
6. Hans Kelsen desenvolveu sua teoria submetendo a ciência jurídica a uma dupla depuração. Com isso, 6. Hans Kelsen desenvolveu sua teoria submetendo a ciência jurídica a uma dupla depuração. Com isso,
retirou do seu âmbito qualquer análise envolvendo aspectos fáticos e valorativos, sendo a norma jurídica retirou do seu âmbito qualquer análise envolvendo aspectos fáticos e valorativos, sendo a norma jurídica
o seu objeto específico. Kelsen qualifica as decisões judiciais como um ato de vontade que cria o o seu objeto específico. Kelsen qualifica as decisões judiciais como um ato de vontade que cria o
direito. A partir desse entendimento, distingue a interpretação feita pela ciência jurídica daquela direito. A partir desse entendimento, distingue a interpretação feita pela ciência jurídica daquela
realizada pelos órgãos jurídicos. Segundo esclarece, a primeira estabelece as possíveis significa- realizada pelos órgãos jurídicos. Segundo esclarece, a primeira estabelece as possíveis significa-
ções da norma, enquanto a segunda constitui criação jurídica. Nesse aspecto, Kelsen caracteriza a ções da norma, enquanto a segunda constitui criação jurídica. Nesse aspecto, Kelsen caracteriza a
interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do direito considerando que a interpretação interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do direito considerando que a interpretação
cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um
ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades
reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com esse ato, segundo o autor, ou reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com esse ato, segundo o autor, ou
é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na norma é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na norma
jurídica aplicanda ( KELSEN, 1979, p. 470). Esse ato de vontade a liga-se ao conceito kelseniano jurídica aplicanda ( KELSEN, 1979, p. 470). Esse ato de vontade a liga-se ao conceito kelseniano
do texto normativo como moldura dentro da qual há várias possibilidades de aplicação. Entre- do texto normativo como moldura dentro da qual há várias possibilidades de aplicação. Entre-
tanto, apenas uma delas é escolhida pelo órgão aplicador da lei. Esclarece o autor que dizer que tanto, apenas uma delas é escolhida pelo órgão aplicador da lei. Esclarece o autor que dizer que
uma sentença judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro uma sentença judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro
da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas
que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral
(KELSEN, 1979, p. 467). (KELSEN, 1979, p. 467).
7. De forma semelhante a Kelsen, Hart afirma que o sistema jurídico está composto de regras primá- 7. De forma semelhante a Kelsen, Hart afirma que o sistema jurídico está composto de regras primá-
rias e secundárias. As primeiras são aquelas que prescrevem condutas ao cidadãos; as segundas, rias e secundárias. As primeiras são aquelas que prescrevem condutas ao cidadãos; as segundas,
também chamadas de regras de reconhecimento, fornecem os critérios através dos quais pode também chamadas de regras de reconhecimento, fornecem os critérios através dos quais pode
ser aferida a validade das regras primárias. Em seu modelo de raciocínio judicial, Hart defende ser aferida a validade das regras primárias. Em seu modelo de raciocínio judicial, Hart defende
284 Flávia Moreira Guimarães Pessoa 284 Flávia Moreira Guimarães Pessoa

A partir da Segunda Guerra Mundial, com a verificação de que a decisão A partir da Segunda Guerra Mundial, com a verificação de que a decisão
judicial, para ser justa, não poderia limitar-se à lógica dedutiva tradicional, os judicial, para ser justa, não poderia limitar-se à lógica dedutiva tradicional, os
teóricos passaram a buscar novas perspectivas para a problemática da decisão. teóricos passaram a buscar novas perspectivas para a problemática da decisão.
Teve início, assim, o ­terceiro momento do raciocínio judicial8, consoante esque- Teve início, assim, o ­terceiro momento do raciocínio judicial8, consoante esque-
matização introdutória já assinalada. matização introdutória já assinalada.

Essa fase, segundo Perelman (1998, p. 185), relaciona-se a uma reação que, Essa fase, segundo Perelman (1998, p. 185), relaciona-se a uma reação que,
sem chegar a ser um retorno ao direito natural, ao modo próprio dos séculos sem chegar a ser um retorno ao direito natural, ao modo próprio dos séculos
XVII e XVIII, confia ao juiz a missão de buscar, para cada litígio particular, uma XVII e XVIII, confia ao juiz a missão de buscar, para cada litígio particular, uma
solução eqüitativa e razoável, pedindo-lhe ao mesmo tempo que permaneça, solução eqüitativa e razoável, pedindo-lhe ao mesmo tempo que permaneça,
para consegui-lo, dentro dos limites autorizados por seu sistema de direito. Nesta para consegui-lo, dentro dos limites autorizados por seu sistema de direito. Nesta
fase, é permitido ao Juiz, para realizar a síntese buscada entre a equidade e a lei, fase, é permitido ao Juiz, para realizar a síntese buscada entre a equidade e a lei,
tornar esta mais flexível graças à intervenção crescente das regras de direito não tornar esta mais flexível graças à intervenção crescente das regras de direito não
escritas, representadas pelos princípios gerais do direito e pelo fato de se levar escritas, representadas pelos princípios gerais do direito e pelo fato de se levar
em consideração os tópicos jurídicos. Essa nova concepção acresce a importância em consideração os tópicos jurídicos. Essa nova concepção acresce a importância
do direito pretoriano, fazendo do juiz o auxiliar e o complemento indispensável do direito pretoriano, fazendo do juiz o auxiliar e o complemento indispensável
do legislador: Desta forma, Perelman destaca que se assiste à aproximação entre do legislador: Desta forma, Perelman destaca que se assiste à aproximação entre
a concepção continental do direito e a concepção anglo-saxã. (PERELMAN, a concepção continental do direito e a concepção anglo-saxã. (PERELMAN,
1998, p. 185). 1998, p. 185).

Assiste-se, portanto, a um período de maior aproximação entre direito e moral, Assiste-se, portanto, a um período de maior aproximação entre direito e moral,
muito embora não se trate propriamente de retorno ao direito natural. Essa nova muito embora não se trate propriamente de retorno ao direito natural. Essa nova
fase busca a aplicação dos valores, quer por via dos princípios de direito, quer fase busca a aplicação dos valores, quer por via dos princípios de direito, quer
pela tópica jurídica. pela tópica jurídica.

que o juiz deverá aplicar o direito posto, ou seja, as normas primárias. Contudo, adverte que, que o juiz deverá aplicar o direito posto, ou seja, as normas primárias. Contudo, adverte que,
em qualquer sistema jurídico, haverá sempre hipóteses em que não existe regulação prévia, de em qualquer sistema jurídico, haverá sempre hipóteses em que não existe regulação prévia, de
forma que o direito apresenta-se como parcialmente indeterminado ou incompleto. Nesses casos, forma que o direito apresenta-se como parcialmente indeterminado ou incompleto. Nesses casos,
para o autor, o juiz deve exercer o seu poder discricionário de criar o direito, desde que tal ato para o autor, o juiz deve exercer o seu poder discricionário de criar o direito, desde que tal ato
seja juridicamente limitado. Para Hart, ocorrendo lacuna das normas, o juiz deverá criar o direito seja juridicamente limitado. Para Hart, ocorrendo lacuna das normas, o juiz deverá criar o direito
para solucionar o caso concreto que lhe é apresentado. Entretanto, assinala que os tribunais, ao para solucionar o caso concreto que lhe é apresentado. Entretanto, assinala que os tribunais, ao
criarem o direito novo, devem tomar por base a analogia, “de forma a assegurarem que o novo criarem o direito novo, devem tomar por base a analogia, “de forma a assegurarem que o novo
direito que criam, embora seja direito novo, está em conformidade com os princípios ou razões direito que criam, embora seja direito novo, está em conformidade com os princípios ou razões
subjacentes, reconhecidos como tendo já uma base no direito existente”(HART, 1994, p. 337) subjacentes, reconhecidos como tendo já uma base no direito existente”(HART, 1994, p. 337)
8. Tal perspectiva pós-positivista é caracterizada por diversos elementos, assim descritos por Bo- 8. Tal perspectiva pós-positivista é caracterizada por diversos elementos, assim descritos por Bo-
navides: “A passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto navides: “A passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto
e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem
jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicística (seu ingresso nas jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicística (seu ingresso nas
constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos
princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua
normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de
sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e
princípios, como espécies diversificadas do gênero normas e, finalmente, por expressão máxima princípios, como espécies diversificadas do gênero normas e, finalmente, por expressão máxima
de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia
e preeminência dos princípios” (BONAVIDES, 2001, p. 265) e preeminência dos princípios” (BONAVIDES, 2001, p. 265)
Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 285 Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 285

Passa-se, então, analisar duas significativas vertentes do pensamento atual: Passa-se, então, analisar duas significativas vertentes do pensamento atual:
a tópica jurídica e a nova retórica, especificamente com os expoentes Viehweg e a tópica jurídica e a nova retórica, especificamente com os expoentes Viehweg e
Perelman, e o raciocínio judicial aberto a princípios, através da obra de Dworkin Perelman, e o raciocínio judicial aberto a princípios, através da obra de Dworkin
e Alexy. e Alexy.

De acordo com a vertente tópico-retórica do pós-positivismo, a estrutura das De acordo com a vertente tópico-retórica do pós-positivismo, a estrutura das
decisões jurídicas se funda no esforço de persuasão e convencimento. Esse novo decisões jurídicas se funda no esforço de persuasão e convencimento. Esse novo
modelo de legitimação das decisões judiciais tem como pressuposto o reconheci- modelo de legitimação das decisões judiciais tem como pressuposto o reconheci-
mento da natureza dialética e argumentativa do direito. Tal linha de raciocínio foi mento da natureza dialética e argumentativa do direito. Tal linha de raciocínio foi
bem desenvolvida por Viehweg e Perelman. O primeiro foi responsável, a partir bem desenvolvida por Viehweg e Perelman. O primeiro foi responsável, a partir
da publicação de sua obra Tópica e Jurisprudência, em 1953, pela retomada da da publicação de sua obra Tópica e Jurisprudência, em 1953, pela retomada da
controvérsia acerca da metodologia a ser utilizada no campo do direito. A linha controvérsia acerca da metodologia a ser utilizada no campo do direito. A linha
de raciocínio dessa obra é a de que a forma de pensar tópico-problemática da de raciocínio dessa obra é a de que a forma de pensar tópico-problemática da
jurisprudência romana, que construía sua justiça a partir de decisões concretas e jurisprudência romana, que construía sua justiça a partir de decisões concretas e
daí extraía princípios que lhe servissem de fundamento de validade, não teria se daí extraía princípios que lhe servissem de fundamento de validade, não teria se
perdido, apesar de toda ênfase dada à idéia de sistema pela dogmática jurídica perdido, apesar de toda ênfase dada à idéia de sistema pela dogmática jurídica
dos modernos dos modernos

Pode-se afirmar que a grande contribuição de Viehweg para a evolução do Pode-se afirmar que a grande contribuição de Viehweg para a evolução do
raciocínio jurídico foi a retomada da tópica e, conseqüentemente, o fato de privi- raciocínio jurídico foi a retomada da tópica e, conseqüentemente, o fato de privi-
legiar o âmbito da criação judicial do direito, que fora afastada pelo positivismo legiar o âmbito da criação judicial do direito, que fora afastada pelo positivismo
tradicional9. Essa importância dada à esfera da decisão vem se consolidar com tradicional9. Essa importância dada à esfera da decisão vem se consolidar com
os estudos da teoria da argumentação e nova retórica de Chaïm Perelman. Este os estudos da teoria da argumentação e nova retórica de Chaïm Perelman. Este
também se vale da tópica e da retórica aristotélicas, passando a desenvolver sua também se vale da tópica e da retórica aristotélicas, passando a desenvolver sua
teoria da argumentação. teoria da argumentação.

Perelman procura então desenvolver uma metodologia capaz de permitir o Perelman procura então desenvolver uma metodologia capaz de permitir o
uso prático da razão, elaborando uma lógica de juízos de valor que não os fizesse uso prático da razão, elaborando uma lógica de juízos de valor que não os fizesse
depender do arbítrio de cada julgador. Para tanto, utiliza-se do recurso às técnicas depender do arbítrio de cada julgador. Para tanto, utiliza-se do recurso às técnicas
argumentativas, como forma de permitir a aceitação das decisões judiciais. argumentativas, como forma de permitir a aceitação das decisões judiciais.

Quanto à aplicação da nova retórica e dos valores no raciocínio do juiz, ex- Quanto à aplicação da nova retórica e dos valores no raciocínio do juiz, ex-
pressa Perelman que o raciocínio judiciário visa a discernir e a justificar a solução pressa Perelman que o raciocínio judiciário visa a discernir e a justificar a solução
autorizada de uma controvérsia, na qual argumentações em sentidos diversos, autorizada de uma controvérsia, na qual argumentações em sentidos diversos,
conduzidas em conformidade com procedimentos impostos, procuram fazer valer, conduzidas em conformidade com procedimentos impostos, procuram fazer valer,
em situações diversas, um valor ou um compromisso entre valores, que possa ser em situações diversas, um valor ou um compromisso entre valores, que possa ser
aceito em um meio e em um momento dados (PERELMAN, 1998, p. 183). aceito em um meio e em um momento dados (PERELMAN, 1998, p. 183).

9. Manuel Atienza assinala que “o mérito fundamental de Viehweg não é ter construído uma teoria 9. Manuel Atienza assinala que “o mérito fundamental de Viehweg não é ter construído uma teoria
e sim ter descoberto um campo para investigação”. Para ele, o Viehweg ressaltou “a necessidade e sim ter descoberto um campo para investigação”. Para ele, o Viehweg ressaltou “a necessidade
de raciocinar também onde não cabem fundamentações conclusivas, e a necessidade de explorar, de raciocinar também onde não cabem fundamentações conclusivas, e a necessidade de explorar,
no raciocínio jurídico, os aspectos que permanecem ocultos se examinados de uma perspectiva no raciocínio jurídico, os aspectos que permanecem ocultos se examinados de uma perspectiva
exclusivamente lógica” (ATIENZA, 2002, p. 77). exclusivamente lógica” (ATIENZA, 2002, p. 77).
286 Flávia Moreira Guimarães Pessoa 286 Flávia Moreira Guimarães Pessoa

A forma de pensar tópico-retórica visa, assim, em apertada síntese, dar ênfase A forma de pensar tópico-retórica visa, assim, em apertada síntese, dar ênfase
aos mecanismos persuasivos que formam o discurso jurídico, buscando o consenso, aos mecanismos persuasivos que formam o discurso jurídico, buscando o consenso,
para dar suporte e legitimidade à decisão judicial. para dar suporte e legitimidade à decisão judicial.
Outra vertente do pós-positivismo de fundamental relevância é aquela que Outra vertente do pós-positivismo de fundamental relevância é aquela que
busca recuperar a força normativa dos princípios de direito, com todo seu potencial busca recuperar a força normativa dos princípios de direito, com todo seu potencial
valorativo. O estudo da teoria da decisão judicial recebeu grande contribuição valorativo. O estudo da teoria da decisão judicial recebeu grande contribuição
de Ronald Dworkin que criou um modelo segundo o qual o trabalho do juiz é de Ronald Dworkin que criou um modelo segundo o qual o trabalho do juiz é
“reconstruir racionalmente a ordem jurídica vigente, identificando os princípios “reconstruir racionalmente a ordem jurídica vigente, identificando os princípios
fundamentais que lhe dão sentido” (SOUZA NETO, 2002, p. 237). Significa dizer fundamentais que lhe dão sentido” (SOUZA NETO, 2002, p. 237). Significa dizer
que a sentença do juiz se situa numa dimensão intermediária entre a mera aplicação que a sentença do juiz se situa numa dimensão intermediária entre a mera aplicação
silogística defendida pela Escola da Exegese e o ato de vontade idealizado pelo silogística defendida pela Escola da Exegese e o ato de vontade idealizado pelo
normativismo jurídico. normativismo jurídico.
A proposta de Dworkin questiona o modelo positivista do raciocínio judicial, A proposta de Dworkin questiona o modelo positivista do raciocínio judicial,
em especial o pensamento de Hart. Funda-se, principalmente, no problema relativo em especial o pensamento de Hart. Funda-se, principalmente, no problema relativo
aos hard cases10, tema a partir do qual desenvolve sua idéia de que quando existem aos hard cases10, tema a partir do qual desenvolve sua idéia de que quando existem
lacunas nas normas ou regras, o juiz deverá tomar sua decisão pautando-se nos lacunas nas normas ou regras, o juiz deverá tomar sua decisão pautando-se nos
princípios. Para Dworkin, nos casos comuns, devem ser aplicadas as normas ou princípios. Para Dworkin, nos casos comuns, devem ser aplicadas as normas ou
regras, através do método lógico-dedutivo. Na hipótese de conflito entre regras, regras, através do método lógico-dedutivo. Na hipótese de conflito entre regras,
deverá ser adotado o critério de validade, pelo qual uma das normas será neces- deverá ser adotado o critério de validade, pelo qual uma das normas será neces-
sariamente descartada. Em caso de inexistência de normas, deverão ser aplicados sariamente descartada. Em caso de inexistência de normas, deverão ser aplicados
os princípios em sentido estrito e as diretrizes, sendo que aqueles sempre deverão os princípios em sentido estrito e as diretrizes, sendo que aqueles sempre deverão
prevalecer sobre estas. Em caso de colisão dos princípios entre si, deverá o juiz prevalecer sobre estas. Em caso de colisão dos princípios entre si, deverá o juiz
levar a efeito um processo de ponderação do peso de cada princípio envolvido. levar a efeito um processo de ponderação do peso de cada princípio envolvido.
De relevante importância para a compreensão da teoria em análise é, ainda, a De relevante importância para a compreensão da teoria em análise é, ainda, a
noção do juiz “Hércules”. Seria um julgador imaginário, de capacidade e paciência noção do juiz “Hércules”. Seria um julgador imaginário, de capacidade e paciência
sobre-humanas, que aceita o direito como integridade (DWORKIN, 1995, p. 177). sobre-humanas, que aceita o direito como integridade (DWORKIN, 1995, p. 177).
Tal conceito é importante porque o modelo de raciocínio judicial de Dworkin Tal conceito é importante porque o modelo de raciocínio judicial de Dworkin
pretende uma única resposta correta. Tal solução deve ser encontrada pelo juiz pretende uma única resposta correta. Tal solução deve ser encontrada pelo juiz
Hércules a partir do direito preestabelecido, consistente em regras, princípios e Hércules a partir do direito preestabelecido, consistente em regras, princípios e
diretrizes. diretrizes.
A exemplo de Dworkin, Alexy desenvolve sua teoria inserindo os princípios A exemplo de Dworkin, Alexy desenvolve sua teoria inserindo os princípios
no seu modelo de sistema jurídico. Além disso, comunga também com a pre- no seu modelo de sistema jurídico. Além disso, comunga também com a pre-
ocupação de Dworkin, no sentido de restringir o âmbito da discricionariedade ocupação de Dworkin, no sentido de restringir o âmbito da discricionariedade
judicial. Entretanto, sob o ponto de vista da decisão judicial, a grande diferença judicial. Entretanto, sob o ponto de vista da decisão judicial, a grande diferença
entre os dois é que Alexy desenvolve uma teoria procedimental para a obtenção da entre os dois é que Alexy desenvolve uma teoria procedimental para a obtenção da

10. Os hard cases são aqueles em que existe incerteza. Esta ocorre na hipótese de existir mais de 10. Os hard cases são aqueles em que existe incerteza. Esta ocorre na hipótese de existir mais de
uma norma, contraditórias entre si, que regulem o mesmo caso ou de não existir norma específica uma norma, contraditórias entre si, que regulem o mesmo caso ou de não existir norma específica
aplicável. aplicável.
Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 287 Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 287

resposta correta, evitando, dessa forma, o recurso ao juiz Hércules desenvolvido resposta correta, evitando, dessa forma, o recurso ao juiz Hércules desenvolvido
por Dworkin. por Dworkin.
Alexy define o sistema jurídico como um conjunto integrado de regras, prin- Alexy define o sistema jurídico como um conjunto integrado de regras, prin-
cípios e procedimentos. Para ele, as regras são mandatos definitivos, enquanto os cípios e procedimentos. Para ele, as regras são mandatos definitivos, enquanto os
princípios são mandatos de otimização. Daí decorre sua principal distinção, já que princípios são mandatos de otimização. Daí decorre sua principal distinção, já que
os princípios não requerem a realização integral de seu dispositivo, podendo ser os princípios não requerem a realização integral de seu dispositivo, podendo ser
aplicados em diferentes graus. É necessário, porém, que o juiz recorra à ponderação aplicados em diferentes graus. É necessário, porém, que o juiz recorra à ponderação
na hipótese de conflito entre eles. A aplicação das regras, ao contrário, é neces- na hipótese de conflito entre eles. A aplicação das regras, ao contrário, é neces-
sariamente excludente, sendo resolvida em termos de validade jurídica ou social. sariamente excludente, sendo resolvida em termos de validade jurídica ou social.
Para melhor explicitar essa teoria, vale aduzir que, para Alexy, a questão Para melhor explicitar essa teoria, vale aduzir que, para Alexy, a questão
decisiva é que os participantes de um discurso jurídico devem, independente- decisiva é que os participantes de um discurso jurídico devem, independente-
mente de se existe ou não um única resposta correta, elevar a pretensão de que mente de se existe ou não um única resposta correta, elevar a pretensão de que
a sua resposta é a única correta. Isso significa que eles devem pressupor a única a sua resposta é a única correta. Isso significa que eles devem pressupor a única
resposta correta como idéia reguladora, a qual não pressupõe que exista, para resposta correta como idéia reguladora, a qual não pressupõe que exista, para
cada caso, uma única resposta correta. Pressupõe apenas que, em alguns casos, cada caso, uma única resposta correta. Pressupõe apenas que, em alguns casos,
se pode obter uma única resposta correta e que não se sabe em que casos é assim, se pode obter uma única resposta correta e que não se sabe em que casos é assim,
de maneira que vale a pena procurar encontrar, em cada caso, a única resposta de maneira que vale a pena procurar encontrar, em cada caso, a única resposta
correta (ALEXY, 1997, p.151). correta (ALEXY, 1997, p.151).
Finalmente, para encerrar esse panorama do pensamento jurídico contempo- Finalmente, para encerrar esse panorama do pensamento jurídico contempo-
râneo, não há como se olvidar os estudos hermenêuticos de Heidegger e Gadamer, râneo, não há como se olvidar os estudos hermenêuticos de Heidegger e Gadamer,
que analisaram e difundiram o conceito da pré-compreensão. Heidegger (1988, pág. que analisaram e difundiram o conceito da pré-compreensão. Heidegger (1988, pág.
207) entende que a interpretação de algo como algo se funda, essencialmente, numa 207) entende que a interpretação de algo como algo se funda, essencialmente, numa
posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação, assim, segundo posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação, assim, segundo
o autor, nunca é a apreensão de um dado preliminar isenta de pressuposições. o autor, nunca é a apreensão de um dado preliminar isenta de pressuposições.
Para Gadamer, de igual forma, toda experiência hermenêutica pressupõe uma Para Gadamer, de igual forma, toda experiência hermenêutica pressupõe uma
i­ nserção no processo de transmissão da tradição. Há um movimento antecipatório i­ nserção no processo de transmissão da tradição. Há um movimento antecipatório
da c­ ompreensão, a pré-compreensão, que constitui um momento essencial do da c­ ompreensão, a pré-compreensão, que constitui um momento essencial do
fenômeno hermenêutico e é impossível ao intérprete despreender-se do círculo da fenômeno hermenêutico e é impossível ao intérprete despreender-se do círculo da
compreensão. O autor entende como processo hermenêutico unitário a compre- compreensão. O autor entende como processo hermenêutico unitário a compre-
ensão, a interpretação e a aplicação e considera que o trabalho do intérprete se dá ensão, a interpretação e a aplicação e considera que o trabalho do intérprete se dá
a partir de uma fusão de horizontes, porque compreender é sempre o processo de a partir de uma fusão de horizontes, porque compreender é sempre o processo de
fusão dos horizontes presumivelmente dados por si mesmos. Compreender uma fusão dos horizontes presumivelmente dados por si mesmos. Compreender uma
tradição implica projetar um horizonte histórico que vai originar um novo horizonte tradição implica projetar um horizonte histórico que vai originar um novo horizonte
presente. Um texto histórico somente é interpretável a partir da historicidade do presente. Um texto histórico somente é interpretável a partir da historicidade do
intérprete (GADAMER, 1997, pág. 460). intérprete (GADAMER, 1997, pág. 460).

4. A NECESSIDADE DE UMA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 4. A NECESSIDADE DE UMA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL


CONCRETIZADORA CONCRETIZADORA
As análises empreendidas no item anterior são fundamentais para a concretiza- As análises empreendidas no item anterior são fundamentais para a concretiza-
ção dos direitos fundamentais, pois, dado ao caráter aberto e amplo da constituição, ção dos direitos fundamentais, pois, dado ao caráter aberto e amplo da constituição,
288 Flávia Moreira Guimarães Pessoa 288 Flávia Moreira Guimarães Pessoa

os problemas de interpretação surgem com maior freqüência do que em outros os problemas de interpretação surgem com maior freqüência do que em outros
setores do direito, em que as normas são mais detalhadas. setores do direito, em que as normas são mais detalhadas.
Nesse sentido, expõe Konrad Hesse (1992, p. 35) que o objetivo da interpre- Nesse sentido, expõe Konrad Hesse (1992, p. 35) que o objetivo da interpre-
tação constitucional é deduzir o resultado constitucionalmente correto através de tação constitucional é deduzir o resultado constitucionalmente correto através de
um procedimento racional e controlável e fundamentar esse mesmo resultado, um procedimento racional e controlável e fundamentar esse mesmo resultado,
criando certeza e previsibilidade jurídicas e não apenas a solução de determinado criando certeza e previsibilidade jurídicas e não apenas a solução de determinado
caso concreto. caso concreto.
A teoria tradicional da interpretação persegue revelar a vontade objetiva da A teoria tradicional da interpretação persegue revelar a vontade objetiva da
norma ou a vontade subjetiva do legislador mediante a análise do texto, de seu norma ou a vontade subjetiva do legislador mediante a análise do texto, de seu
processo de cria­ção, além do sentido e finalidade da norma. Porém, demonstra processo de cria­ção, além do sentido e finalidade da norma. Porém, demonstra
Hesse (1992, p. 38) que essa idéia tradicional apresenta uma série de dificuldades, Hesse (1992, p. 38) que essa idéia tradicional apresenta uma série de dificuldades,
em especial porque os métodos de interpretação tradicional não oferecem orienta- em especial porque os métodos de interpretação tradicional não oferecem orienta-
ção suficiente, já que deixam em aberto qual orientação seguir quando conduzem ção suficiente, já que deixam em aberto qual orientação seguir quando conduzem
a resultados de interpretação diferentes. a resultados de interpretação diferentes.
Pode-se afirmar que a interpretação constitucional é concretização. Procurando Pode-se afirmar que a interpretação constitucional é concretização. Procurando
precisar esta última idéia, Canotilho (2003, p. 1201) aponta que concretizar a cons- precisar esta última idéia, Canotilho (2003, p. 1201) aponta que concretizar a cons-
tituição traduz-se no processo de densificação de regras e princípios constitucionais. tituição traduz-se no processo de densificação de regras e princípios constitucionais.
Densificar uma norma, por outro lado, significa preencher, complementar e precisar Densificar uma norma, por outro lado, significa preencher, complementar e precisar
o espaço normativo de um preceito constitucional, especialmente necessitado de o espaço normativo de um preceito constitucional, especialmente necessitado de
concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas
concretos Segundo Hesse (1998, p. 61) interpretação constitucional é concretização concretos Segundo Hesse (1998, p. 61) interpretação constitucional é concretização
e “o conteúdo da norma interpretada concluiu-se primeiro na interpretação”. e “o conteúdo da norma interpretada concluiu-se primeiro na interpretação”.
Na linha de uma hermenêutica constitucional concretizadora, cumpre frisar Na linha de uma hermenêutica constitucional concretizadora, cumpre frisar
que a concretização da Constituição pressupõe um entendimento do conteúdo que a concretização da Constituição pressupõe um entendimento do conteúdo
da norma, o que se relaciona à pré-compreensão e ao problema concreto a ser da norma, o que se relaciona à pré-compreensão e ao problema concreto a ser
resolvido. Para Hesse (1998, p. 61), o interprete entende o conteúdo da norma a resolvido. Para Hesse (1998, p. 61), o interprete entende o conteúdo da norma a
partir de uma pré-compreensão, destacando, outrossim, a importância de tornar partir de uma pré-compreensão, destacando, outrossim, a importância de tornar
consciente e fundamentar essa pré-compreensão, com o objetivo de “proteger-se consciente e fundamentar essa pré-compreensão, com o objetivo de “proteger-se
contra o arbítrio de idéias e a estreiteza de hábitos de pensar imperceptíveis e contra o arbítrio de idéias e a estreiteza de hábitos de pensar imperceptíveis e
dirigir o olhar para as coisas mesmas” (HESSE, 1998, p. 62). O autor ressalta, dirigir o olhar para as coisas mesmas” (HESSE, 1998, p. 62). O autor ressalta,
ainda, a segunda condição da interpretação constitucional: o entendimento, de ainda, a segunda condição da interpretação constitucional: o entendimento, de
forma que a concretização somente é possível a partir do método tópico do caso forma que a concretização somente é possível a partir do método tópico do caso
concreto (HESSE, 1998, P. 62). concreto (HESSE, 1998, P. 62).
Para Hesse (1998, p. 63) a vinculação da interpretação à norma concretizada, Para Hesse (1998, p. 63) a vinculação da interpretação à norma concretizada,
à (pré)compreensão do interprete e ao problema a ser resolvido tem significado à (pré)compreensão do interprete e ao problema a ser resolvido tem significado
negativo e positivo. Negativamente, significa que não pode haver método de in- negativo e positivo. Negativamente, significa que não pode haver método de in-
terpretação autônomo, separado desses fatores. Positivamente, demonstra que o terpretação autônomo, separado desses fatores. Positivamente, demonstra que o
procedimento de concretização deve ser determinado pelo objeto da interpretação, procedimento de concretização deve ser determinado pelo objeto da interpretação,
pela constituição e pelo problema respectivo. pela constituição e pelo problema respectivo.
Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 289 Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 289

O procedimento de concretização proposto por Hesse (1998, p. 63) prevê O procedimento de concretização proposto por Hesse (1998, p. 63) prevê
que no avanço tópico, guiado e limitado normativamente, devem ser achados e que no avanço tópico, guiado e limitado normativamente, devem ser achados e
demonstrados pontos de vista dirigentes que são buscados e fundamentam a deci- demonstrados pontos de vista dirigentes que são buscados e fundamentam a deci-
são final da maneira mais convincente possível. Se esses pontos de vista contêm são final da maneira mais convincente possível. Se esses pontos de vista contêm
premissas materialmente apropriadas, elas possibilitam deduções que conduzem premissas materialmente apropriadas, elas possibilitam deduções que conduzem
ou contribuem para a resolução de problemas. O intérprete, então, deve escolher ou contribuem para a resolução de problemas. O intérprete, então, deve escolher
os pontos de vista – topoi – apropriados, excluindo os demais. os pontos de vista – topoi – apropriados, excluindo os demais.

Hesse (1992, p. 45) refere que aos princípios de interpretação constitucio- Hesse (1992, p. 45) refere que aos princípios de interpretação constitucio-
nal corresponde a missão de orientar o processo de interpretação. Dentre esses nal corresponde a missão de orientar o processo de interpretação. Dentre esses
princípios, o autor ressalta, em primeiro lugar, o princípio da unidade da consti- princípios, o autor ressalta, em primeiro lugar, o princípio da unidade da consti-
tuição, pelo qual a constituição deve ser sempre interpretada de tal maneira que tuição, pelo qual a constituição deve ser sempre interpretada de tal maneira que
se evitem contradições com as outras normas da mesma constituição (HESSE, se evitem contradições com as outras normas da mesma constituição (HESSE,
1992, p. 45). 1992, p. 45).

Em íntima relação com o primeiro, Hesse relaciona o princípio da concor- Em íntima relação com o primeiro, Hesse relaciona o princípio da concor-
dância prática, que estabelece os limites dentro da ponderação de valores, na dância prática, que estabelece os limites dentro da ponderação de valores, na
hipótese de conflito entre os bens jurídicos protegidos pela norma constitucional hipótese de conflito entre os bens jurídicos protegidos pela norma constitucional
(HESSE, 1992, p. 46). (HESSE, 1992, p. 46).

Hesse (1992, p. 47) destaca, ainda, o princípio da correção funcional, segundo Hesse (1992, p. 47) destaca, ainda, o princípio da correção funcional, segundo
o qual, se a constituição regula de uma determinada maneira a repartição de atri- o qual, se a constituição regula de uma determinada maneira a repartição de atri-
buições dos agentes das funções estatais, o órgão de interpretação deve manter-se buições dos agentes das funções estatais, o órgão de interpretação deve manter-se
fiel às funções previamente estabelecidas11. fiel às funções previamente estabelecidas11.

Outro princípio destacado por Hesse (1992, p. 47) é o da eficácia integradora. Outro princípio destacado por Hesse (1992, p. 47) é o da eficácia integradora.
Assim, se a constituição se propõe a criação e manutenção da unidade política, Assim, se a constituição se propõe a criação e manutenção da unidade política,
tal fato exige outorgar preferência à interpretação que promova e mantenha a tal fato exige outorgar preferência à interpretação que promova e mantenha a
dita unidade. dita unidade.

Por fim, o último critério apontado por Hesse (1992, p. 47) é o da força Por fim, o último critério apontado por Hesse (1992, p. 47) é o da força
normativa da constituição, que pugna que se dê preferência à solução dos pro- normativa da constituição, que pugna que se dê preferência à solução dos pro-
blemas jurídico-constitucionais que conduzam à máxima efetividade da norma blemas jurídico-constitucionais que conduzam à máxima efetividade da norma
constitucional12. constitucional12.

11. Segundo Hesse (1992, p. 47) esse princípio é aplicável em particular às relações entre o legislador 11. Segundo Hesse (1992, p. 47) esse princípio é aplicável em particular às relações entre o legislador
e o tribunal constitucional, limitando-se as atividades deste último, vedando-se uma interpretação e o tribunal constitucional, limitando-se as atividades deste último, vedando-se uma interpretação
que conduza a uma restrição da liberdade conformadora do legislador além dos limites estabele- que conduza a uma restrição da liberdade conformadora do legislador além dos limites estabele-
cidos pela constituição”. cidos pela constituição”.
12. De acordo com o princípio da máxima efetividade o intérprete constitucional deve ter compromisso 12. De acordo com o princípio da máxima efetividade o intérprete constitucional deve ter compromisso
com a efetividade da constituição de forma que, entre interpretações possíveis, deverá preferir com a efetividade da constituição de forma que, entre interpretações possíveis, deverá preferir
aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando-se ao máximo soluções que aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando-se ao máximo soluções que
“se refugiem no argumento da não auto-aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do “se refugiem no argumento da não auto-aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do
legislador” (BARROSO; BARCELOS, 2006, p. 364). legislador” (BARROSO; BARCELOS, 2006, p. 364).
290 Flávia Moreira Guimarães Pessoa 290 Flávia Moreira Guimarães Pessoa

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS


O presente trabalho procurou apontar a importância de uma hermenêutica O presente trabalho procurou apontar a importância de uma hermenêutica
constitucional concretizadora com o objetivo de se conceder a máxima força constitucional concretizadora com o objetivo de se conceder a máxima força
normativa à Constituição. Com efeito, considerando-se caráter aberto e amplo da normativa à Constituição. Com efeito, considerando-se caráter aberto e amplo da
constituição, os problemas de interpretação surgem com maior freqüência do que constituição, os problemas de interpretação surgem com maior freqüência do que
em outros setores do direito. em outros setores do direito.
Seguindo-se a idéia de uma hermenêutica constitucional concretizadora, Seguindo-se a idéia de uma hermenêutica constitucional concretizadora,
impõe-se a adoção de princípios próprios de interpretação constitucional, dife- impõe-se a adoção de princípios próprios de interpretação constitucional, dife-
renciados dos princípios tradicionais de interpretação da lei, pois somente aqueles renciados dos princípios tradicionais de interpretação da lei, pois somente aqueles
podem conduzir à máxima eficácia dos direitos fundamentais. podem conduzir à máxima eficácia dos direitos fundamentais.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica: la teoria del discurso racional como ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica: la teoria del discurso racional como
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Centro de Estudios Constitucionales, 1997. Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

ALEXY, Robert. Tres escritos sobre los derechos fundamentales y la teoría de los princi- ALEXY, Robert. Tres escritos sobre los derechos fundamentales y la teoría de los princi-
pios. Trad de Carlos Bernal Pulido. Serie de Teoria Juridica Y Filosofia del Derecho pios. Trad de Carlos Bernal Pulido. Serie de Teoria Juridica Y Filosofia del Derecho
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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, Parte I. Petrópolis, Vozes, 1988 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, Parte I. Petrópolis, Vozes, 1988
Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 291 Direitos fundamentais e hermenêutica constitucional concretizadora 291

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cial da prestação de serviços públicos básicos (uma visão comparativa). Revista de cial da prestação de serviços públicos básicos (uma visão comparativa). Revista de
Informação Legislativa. Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999, p. 239/260. Informação Legislativa. Brasília a. 36 n. 144 out./dez. 1999, p. 239/260.
LUNO, Antônio-Enrique Pérez. La universalidad de los derechos humanos y el Estado LUNO, Antônio-Enrique Pérez. La universalidad de los derechos humanos y el Estado
constitucional. Serie de Teoria Juridica Y Filosofia del Derecho n. 23. Bogotá: Uni- constitucional. Serie de Teoria Juridica Y Filosofia del Derecho n. 23. Bogotá: Uni-
versidad Externado de Colombia, 2002. versidad Externado de Colombia, 2002.
LUÑO, Antônio-Enrique Pérez. Los derechos fundamentales. 8.ed. Madrid: Tecnos, LUÑO, Antônio-Enrique Pérez. Los derechos fundamentales. 8.ed. Madrid: Tecnos,
2005 2005
MACHADO NETO, Antônio Luiz. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 1975. MACHADO NETO, Antônio Luiz. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 1975.
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. Martins Fontes, 1996.
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Trad. de Vergínia k. Pupi. São Paulo: PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Trad. de Vergínia k. Pupi. São Paulo:
Martins Fontes, 1998. Martins Fontes, 1998.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2006. do Advogado, 2006.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade
prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Coleção VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Coleção
Pensamento Jurídico Contemporâneo. Brasília: Ministério da Justiça, 1979. Pensamento Jurídico Contemporâneo. Brasília: Ministério da Justiça, 1979.
Capítulo XX Capítulo XX
Das liminares em Mandado de Segurança: Das liminares em Mandado de Segurança:
natureza jurídica e impossibilidade natureza jurídica e impossibilidade
de limitação abstrata de limitação abstrata

João Paulo Lordelo Guimarães Tavares* João Paulo Lordelo Guimarães Tavares*

Sumário • 1. Introdução – 2. Natureza do Mandado de Segurança – 3. Conceito de Medida Liminar Sumário • 1. Introdução – 2. Natureza do Mandado de Segurança – 3. Conceito de Medida Liminar
– 4. A Liminar em Mandado de Segurança – 5. A Impossibilidade de Limitação Abstrata – 6. Conclusões – 4. A Liminar em Mandado de Segurança – 5. A Impossibilidade de Limitação Abstrata – 6. Conclusões
– 7. Referências Bibliográficas. – 7. Referências Bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO 1. INTRODUÇÃO
Instituto histórico, contemplado em inúmeras obras, o mandado de segurança Instituto histórico, contemplado em inúmeras obras, o mandado de segurança
ainda suscita controvérsias em sua aplicação, mormente no que concerne à possi- ainda suscita controvérsias em sua aplicação, mormente no que concerne à possi-
bilidade do provimento liminar em seu bojo. bilidade do provimento liminar em seu bojo.
O objetivo primordial deste artigo – saliente-se – é apresentar – a respeito O objetivo primordial deste artigo – saliente-se – é apresentar – a respeito
do dito remédio constitucional –, considerações sobre as liminares, que lhe são do dito remédio constitucional –, considerações sobre as liminares, que lhe são
comuns, tratando da sua natureza e defendendo, por fim, a impossibilidade da sua comuns, tratando da sua natureza e defendendo, por fim, a impossibilidade da sua
limitação abstrata. Não integra a nossa pretensão a realização de um levantamento limitação abstrata. Não integra a nossa pretensão a realização de um levantamento
histórico profundo junto ao tema, eis que já há farta bibliografia a respeito. histórico profundo junto ao tema, eis que já há farta bibliografia a respeito.
Por óbvio, diversas são as implicações que derivam do posicionamento Por óbvio, diversas são as implicações que derivam do posicionamento
particularmente adotado, sobretudo no que diz respeito à eficácia do writ e à particularmente adotado, sobretudo no que diz respeito à eficácia do writ e à
maximização do princípio do due process of law. maximização do princípio do due process of law.

2. NATUREZA DO MANDADO DE SEGURANÇA 2. NATUREZA DO MANDADO DE SEGURANÇA


Como cediço, o referido instituto jurídico é o meio constitucional posto à Como cediço, o referido instituto jurídico é o meio constitucional posto à
disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual
ou universalidade reconhecida em lei, para a proteção de direito individual ou universalidade reconhecida em lei, para a proteção de direito individual
ou coletivo, líquido e certo, lesado ou ameaçado por ato de autoridade. É ou coletivo, líquido e certo, lesado ou ameaçado por ato de autoridade. É
oponível contra autoridade pública ou agente de pessoa jurídica que exerce atri- oponível contra autoridade pública ou agente de pessoa jurídica que exerce atri-
buições públicas. buições públicas.

* Graduando do 7º semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, diretor do * Graduando do 7º semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, diretor do
Centro Acadêmico Ruy Barbosa – CARB. Centro Acadêmico Ruy Barbosa – CARB.
294 João Paulo Lordelo Guimarães Tavares 294 João Paulo Lordelo Guimarães Tavares

Desta forma, trata-se, para alguns autores, não só de remédio constitucional, Desta forma, trata-se, para alguns autores, não só de remédio constitucional,
mas – sobretudo –, de verdadeira garantia fundamental, expressamente prevista mas – sobretudo –, de verdadeira garantia fundamental, expressamente prevista
no art. 5º, LXIX, da Constituição pátria. no art. 5º, LXIX, da Constituição pátria.
Em decorrência da relevância que lhe é peculiar, gize-se, a ação mandamental Em decorrência da relevância que lhe é peculiar, gize-se, a ação mandamental
não pode ser impetrada com a finalidade de declarar inconstitucionalidade de lei, não pode ser impetrada com a finalidade de declarar inconstitucionalidade de lei,
existência ou inexistência de relação jurídica ou a invalidade do ato coator. existência ou inexistência de relação jurídica ou a invalidade do ato coator.
Por outro lado, também respondem em mandado de segurança autoridades Por outro lado, também respondem em mandado de segurança autoridades
judiciárias que profiram decisões – mesmo atos administrativos – que lesem direito judiciárias que profiram decisões – mesmo atos administrativos – que lesem direito
líquido e certo, individual ou coletivo do impetrante. Nestes casos, a ilegalidade líquido e certo, individual ou coletivo do impetrante. Nestes casos, a ilegalidade
é flagrante e nociva à ordem pública. é flagrante e nociva à ordem pública.
Embora existam requisitos e condições – algumas específicas – a serem obser- Embora existam requisitos e condições – algumas específicas – a serem obser-
vadas, é importante ter em mente que devem ser mínimos os impedimentos à sua vadas, é importante ter em mente que devem ser mínimos os impedimentos à sua
utilização. Se, em determinada situação, houver dúvida quanto ao seu cabimento, utilização. Se, em determinada situação, houver dúvida quanto ao seu cabimento,
deve prevalecer o entendimento a favor de sua admissibilidade. deve prevalecer o entendimento a favor de sua admissibilidade.
Também no que concerne às questões polêmicas que o seu estudo suscita – e Também no que concerne às questões polêmicas que o seu estudo suscita – e
nos dizeres de Sergio Ferraz –, há de prosperar a corrente que se revele produtora nos dizeres de Sergio Ferraz –, há de prosperar a corrente que se revele produtora
da maior amplitude de suas hipóteses de incidência e de espectro de atuação. da maior amplitude de suas hipóteses de incidência e de espectro de atuação.
Nesse sentido, acrescenta o autor que o mandado de segurança – revelando-se, a Nesse sentido, acrescenta o autor que o mandado de segurança – revelando-se, a
um só tempo, remédio processual e garantia constitucional – deve ser admitido um só tempo, remédio processual e garantia constitucional – deve ser admitido
de maneira amplíssima, não podendo ter o curso barrado por mera exigência de de maneira amplíssima, não podendo ter o curso barrado por mera exigência de
forma, desprovida de relevância e essencialidade. forma, desprovida de relevância e essencialidade.

3. CONCEITO DE MEDIDA LIMINAR 3. CONCEITO DE MEDIDA LIMINAR


Liminar, sabe-se, é a medida concedida in limine litis, ou seja, no início da Liminar, sabe-se, é a medida concedida in limine litis, ou seja, no início da
lide. Prescinde, para a sua prolação, de oitiva da parte contrária. lide. Prescinde, para a sua prolação, de oitiva da parte contrária.
Não se trata, assim, no escólio do mestre Fredie Didier Junior1 de algo onto- Não se trata, assim, no escólio do mestre Fredie Didier Junior1 de algo onto-
logicamente substantivo. Ao contrário, liminar é a qualidade daquilo que foi feito logicamente substantivo. Ao contrário, liminar é a qualidade daquilo que foi feito
no início (in limine). no início (in limine).
Desta forma, embora as normas legais – no que tangem à medida antecipatória Desta forma, embora as normas legais – no que tangem à medida antecipatória
de tutela – refiram-se, invariavelmente, à expressão “medida liminar”, esta não de tutela – refiram-se, invariavelmente, à expressão “medida liminar”, esta não
se resume àquela. se resume àquela.
Pouco importa se a liminar foi proferida em processo cautelar, de conhe- Pouco importa se a liminar foi proferida em processo cautelar, de conhe-
cimento ou execução ou se consiste em antecipação de tutela. Para a doutrina cimento ou execução ou se consiste em antecipação de tutela. Para a doutrina
e jurisprudência pátria, liminar é, tão só, o provimento emitido inaudita altera e jurisprudência pátria, liminar é, tão só, o provimento emitido inaudita altera

1. DIDIER JUNIOR, Fredie. Antecipação parcial e liminar dos efeitos da tutela. Hipótese concreta. 1. DIDIER JUNIOR, Fredie. Antecipação parcial e liminar dos efeitos da tutela. Hipótese concreta.
Considerações. Em: Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA. Salvador: Faculdade Considerações. Em: Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA. Salvador: Faculdade
de Direito da UFBA, 1999, v. V, p. 114. de Direito da UFBA, 1999, v. V, p. 114.
Das liminares em Mandado de Segurança: natureza jurídica e impossibilidade… 295 Das liminares em Mandado de Segurança: natureza jurídica e impossibilidade… 295

pars, ou seja, antes de manifestação daquele que integra o pólo passivo da relação pars, ou seja, antes de manifestação daquele que integra o pólo passivo da relação
jurídico-processual. Dá-se no momento de instauração do processo, antes mesmo jurídico-processual. Dá-se no momento de instauração do processo, antes mesmo
da sua angularização, com a citação do acionado. da sua angularização, com a citação do acionado.
Também o Código de Processo Civil corrobora com o conceito adjetivo de Também o Código de Processo Civil corrobora com o conceito adjetivo de
medida liminar. Verbera o diploma pátrio: medida liminar. Verbera o diploma pátrio:
Art. 928. Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir Art. 928. Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir
o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração; no caso o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração; no caso
contrário, determinará que o autor justifique perfeitamente o alegado, citando-se o contrário, determinará que o autor justifique perfeitamente o alegado, citando-se o
réu para comparecer à Audiência que for designada. réu para comparecer à Audiência que for designada.

Vê-se, pois, que o conceito de provimento liminar não tem por base o seu Vê-se, pois, que o conceito de provimento liminar não tem por base o seu
conteúdo, eis que este é variável. Ora assume característica de antecipação dos conteúdo, eis que este é variável. Ora assume característica de antecipação dos
efeitos da tutela – que, em verdade, pode se dar em qualquer momento do proce- efeitos da tutela – que, em verdade, pode se dar em qualquer momento do proce-
dimento – ora assume natureza cautelar, de sentença etc. dimento – ora assume natureza cautelar, de sentença etc.
A respeito das medidas antecipatórias, não são poucas as normas legais que A respeito das medidas antecipatórias, não são poucas as normas legais que
r­ estringem a concessão de liminares, sobretudo aquelas requeridas em função do r­ estringem a concessão de liminares, sobretudo aquelas requeridas em função do
Poder Público. Poder Público.

4. A LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA 4. A LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA


Tema de absoluta relevância prática – e doutrinariamente controverso –, no Tema de absoluta relevância prática – e doutrinariamente controverso –, no
que diz respeito ao mandado de segurança, é o da liminar. Alguns doutrinadores, que diz respeito ao mandado de segurança, é o da liminar. Alguns doutrinadores,
a exemplo de Tereza Arruda Alvim2, afirmam que o que caracteriza, de maneira a exemplo de Tereza Arruda Alvim2, afirmam que o que caracteriza, de maneira
marcante, tal remédio constitucional é a possibilidade da concessão de medida marcante, tal remédio constitucional é a possibilidade da concessão de medida
liminar. Ora, de fato, a sua eficácia depende diretamente de tal providência. liminar. Ora, de fato, a sua eficácia depende diretamente de tal providência.
Segundo Sérgio Ferraz3, a liminar é o pressuposto básico de preservação da Segundo Sérgio Ferraz3, a liminar é o pressuposto básico de preservação da
possibilidade de satisfação, in natura, do direito invocado pelo impetrante. possibilidade de satisfação, in natura, do direito invocado pelo impetrante.
Neste contexto, mister delinear algumas considerações iniciais da medida. Neste contexto, mister delinear algumas considerações iniciais da medida.
Em primeiro plano, cabe discorrer acerca da sua natureza jurídica. O emérito Em primeiro plano, cabe discorrer acerca da sua natureza jurídica. O emérito
Hely Lopes Meirelles4 afirma categoricamente ser a medida liminar, em manda- Hely Lopes Meirelles4 afirma categoricamente ser a medida liminar, em manda-
do de segurança, provimento cautelar admitido pela própria lei, quando forem do de segurança, provimento cautelar admitido pela própria lei, quando forem
relevantes os fundamentos da impetração e do ato impugnado puder resultar a relevantes os fundamentos da impetração e do ato impugnado puder resultar a
ineficácia da ordem judicial, se concedida a final (art. 7º, II, Lei nº 1.522/51). Para ineficácia da ordem judicial, se concedida a final (art. 7º, II, Lei nº 1.522/51). Para
o autor, não se trata de antecipação dos efeitos da sentença final, consistindo em o autor, não se trata de antecipação dos efeitos da sentença final, consistindo em
procedimento acautelatório do possível direito do impetrante, justificado pela procedimento acautelatório do possível direito do impetrante, justificado pela
iminência de dano irreversível. iminência de dano irreversível.

2. ARRUDA ALVIM, Tereza. Mandado de Segurança contra Ato Judicial. São Paulo, RT, p. 18. 2. ARRUDA ALVIM, Tereza. Mandado de Segurança contra Ato Judicial. São Paulo, RT, p. 18.
3. FERRAZ, Sérgio. Mandado de Segurança. São Paulo, Malheiros, 2006. 3. FERRAZ, Sérgio. Mandado de Segurança. São Paulo, Malheiros, 2006.
4. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, 18ª Ed, São Paulo, Malheiros, 1997, p. 73. 4. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, 18ª Ed, São Paulo, Malheiros, 1997, p. 73.
296 João Paulo Lordelo Guimarães Tavares 296 João Paulo Lordelo Guimarães Tavares

Mesmo diante da reforma do Código de Processo Civil, ao admitir a figura Mesmo diante da reforma do Código de Processo Civil, ao admitir a figura
da antecipação da tutela no procedimento ordinário, o renomado autor assevera da antecipação da tutela no procedimento ordinário, o renomado autor assevera
a natureza cautelar da liminar. a natureza cautelar da liminar.
O ilustre Frédie Didier Júnior, em sentido contrário, afirma a natureza ante- O ilustre Frédie Didier Júnior, em sentido contrário, afirma a natureza ante-
cipatória das liminares em mandado de segurança. O autor, em artigo de suma cipatória das liminares em mandado de segurança. O autor, em artigo de suma
categoria5, giza: categoria5, giza:
No mais das vezes, o pedido liminar em mandado de segurança – procedimento No mais das vezes, o pedido liminar em mandado de segurança – procedimento
típico do controle jurisdicional dos atos administrativos – tem por fim a suspensão típico do controle jurisdicional dos atos administrativos – tem por fim a suspensão
do ato inquinado de indevido ou a proibição de sua prática, no caso da segurança do ato inquinado de indevido ou a proibição de sua prática, no caso da segurança
puramente preventiva. O pedido de suspensão do ato impugnado tem sempre natu- puramente preventiva. O pedido de suspensão do ato impugnado tem sempre natu-
reza satisfativa, porquanto seja a atribuição imediata de um dos efeitos anexos de reza satisfativa, porquanto seja a atribuição imediata de um dos efeitos anexos de
eventual sentença procedente – demandas com força constitutiva ou declaratória. eventual sentença procedente – demandas com força constitutiva ou declaratória.
A dificuldade que certos setores da doutrina têm em identificar a natureza antecipa- A dificuldade que certos setores da doutrina têm em identificar a natureza antecipa-
tória desta espécie de liminar em mandado de segurança (ou outras liminares que tória desta espécie de liminar em mandado de segurança (ou outras liminares que
também visem à suspensão de eficácia) é o grande motivo da mixórdia doutrinária também visem à suspensão de eficácia) é o grande motivo da mixórdia doutrinária
a respeito do assunto. a respeito do assunto.

Saliente-se: a tutela preventiva tem por objetivo evitar ou minorar os efeitos da Saliente-se: a tutela preventiva tem por objetivo evitar ou minorar os efeitos da
lesão. Como sempre se vinculou a tutela cautelar à idéia de perigo, muitos autores lesão. Como sempre se vinculou a tutela cautelar à idéia de perigo, muitos autores
ainda identificam, na presença do risco, a medida judicial de natureza cautelar, ainda identificam, na presença do risco, a medida judicial de natureza cautelar,
muito embora não esteja a ela exclusivamente adstrito. Neste ponto, e no escólio muito embora não esteja a ela exclusivamente adstrito. Neste ponto, e no escólio
de Pontes de Miranda, mister se faz a distinção entre a segurança para a execução de Pontes de Miranda, mister se faz a distinção entre a segurança para a execução
e a execução para a s­ egurança. e a execução para a s­ egurança.
No particular, contudo, defendemos a impossibilidade de adoção de uma postu- No particular, contudo, defendemos a impossibilidade de adoção de uma postu-
ra apriorística quanto à natureza jurídica das liminares em mandado de segurança. ra apriorística quanto à natureza jurídica das liminares em mandado de segurança.
Ora, como já foi dito, trata-se de conceito adjetivo, não podendo se vincular a um Ora, como já foi dito, trata-se de conceito adjetivo, não podendo se vincular a um
único instituto, ainda que em sede de ação mandamental. único instituto, ainda que em sede de ação mandamental.
A dizer, tais medidas podem assumir feições cautelares ou satisfativas, a A dizer, tais medidas podem assumir feições cautelares ou satisfativas, a
depender do caso concreto. No primeiro caso, a providência visa a resguardar depender do caso concreto. No primeiro caso, a providência visa a resguardar
o resultado útil da providência final; no segundo, visa a antecipar os efeitos da o resultado útil da providência final; no segundo, visa a antecipar os efeitos da
tutela – ainda que os satisfaça integralmente. Em ambos os casos, faz-se presente tutela – ainda que os satisfaça integralmente. Em ambos os casos, faz-se presente
o elemento risco. o elemento risco.
Em segundo plano, deve-se ter em mente que a liminar, no bojo do remédio Em segundo plano, deve-se ter em mente que a liminar, no bojo do remédio
constitucional, não é um provimento excepcional. Não se trata, aqui, de exceção constitucional, não é um provimento excepcional. Não se trata, aqui, de exceção
ao princípio do devido processo legal, mas, ao contrário, de etapa essencial e ao princípio do devido processo legal, mas, ao contrário, de etapa essencial e
integrante do due processo of law na ação de segurança. integrante do due processo of law na ação de segurança.

5. DIDIER, Fredie. Liminar em mandado de segurança: natureza jurídica e importância histórica: 5. DIDIER, Fredie. Liminar em mandado de segurança: natureza jurídica e importância histórica:
Uma tentativa de reenquadramento dogmático em face das últimas reformas processuais. Artigo Uma tentativa de reenquadramento dogmático em face das últimas reformas processuais. Artigo
disponível em <www.jus.com.br>. disponível em <www.jus.com.br>.
Das liminares em Mandado de Segurança: natureza jurídica e impossibilidade… 297 Das liminares em Mandado de Segurança: natureza jurídica e impossibilidade… 297

Isso porque o direito de ação, constitucionalmente previsto (art. 5º, XXXV), Isso porque o direito de ação, constitucionalmente previsto (art. 5º, XXXV),
tem por escopo a obtenção de uma tutela jurisdicional eficaz e adequada à lide. tem por escopo a obtenção de uma tutela jurisdicional eficaz e adequada à lide.
Se, para tanto, for necessária ao impetrante a tutela liminar, esta não lhe poderá Se, para tanto, for necessária ao impetrante a tutela liminar, esta não lhe poderá
ser negada, sob pena de ser violado o direito de ação. ser negada, sob pena de ser violado o direito de ação.

5. A IMPOSSIBILIDADE DE LIMITAÇÃO ABSTRATA 5. A IMPOSSIBILIDADE DE LIMITAÇÃO ABSTRATA


Pode-se afirmar, pois, sem grandes digressões, que, ainda que não haja uma Pode-se afirmar, pois, sem grandes digressões, que, ainda que não haja uma
previsão legal no sentido de ser possível a concessão de liminar, deverá ser ela previsão legal no sentido de ser possível a concessão de liminar, deverá ser ela
concedida, de acordo com o caso concreto. concedida, de acordo com o caso concreto.
Ato contínuo, ainda que haja previsão legal vedando ou restringindo a con- Ato contínuo, ainda que haja previsão legal vedando ou restringindo a con-
cessão de medidas liminares em sede de mandado de segurança, o magistrado cessão de medidas liminares em sede de mandado de segurança, o magistrado
terá de concedê-la, quando esta for necessária à satisfação do legítimo interesse terá de concedê-la, quando esta for necessária à satisfação do legítimo interesse
do impetrante. Daí a impossibilidade de limitação in abstrato. do impetrante. Daí a impossibilidade de limitação in abstrato.
Tal posicionamento encontra arrimo na maximização do princípio do due Tal posicionamento encontra arrimo na maximização do princípio do due
processo of law, como postulado constitucional fundamental do direito processual processo of law, como postulado constitucional fundamental do direito processual
civil. civil.
Diante dele, todos os demais princípios constitucionais do processo são espé- Diante dele, todos os demais princípios constitucionais do processo são espé-
cies6. Daí exsurge o entendimento de serem manifestações do devido processo legal cies6. Daí exsurge o entendimento de serem manifestações do devido processo legal
o princípio da publicidade dos atos processuais, a impossibilidade de utilizar-se o princípio da publicidade dos atos processuais, a impossibilidade de utilizar-se
em juízo de prova obtida por meio ilícito e outros. em juízo de prova obtida por meio ilícito e outros.

É importante gizar que a inconstitucionalidade – por violação ao direito de É importante gizar que a inconstitucionalidade – por violação ao direito de
ação – o legal vedando ou restringindo a concessconcreto. não se restringe à ação – o legal vedando ou restringindo a concessconcreto. não se restringe à
concessão de liminares. Ao contrário, mesmo determinadas limitações objetivas concessão de liminares. Ao contrário, mesmo determinadas limitações objetivas
do mandamus, incluindo aquelas previstas na Lei 1.533 de Dezembro de 1951, do mandamus, incluindo aquelas previstas na Lei 1.533 de Dezembro de 1951,
devem ser desconsideradas, pois não é dado ao legislador ordinário limitar o devem ser desconsideradas, pois não é dado ao legislador ordinário limitar o
exercício da ação mandamental, mormente em se considerando que o dispositivo exercício da ação mandamental, mormente em se considerando que o dispositivo
constitucional que a institui não remete o seu regulamento à lei. constitucional que a institui não remete o seu regulamento à lei.

Conclui-se, nesse passo, que somente é dado ao legislador ordinário criar Conclui-se, nesse passo, que somente é dado ao legislador ordinário criar
normas procedimentais relativas ao mandado de segurança, e desde que não seja normas procedimentais relativas ao mandado de segurança, e desde que não seja
desconfigurado o seu escopo – reduzindo, por exemplo, a sua celeridade. Em outras desconfigurado o seu escopo – reduzindo, por exemplo, a sua celeridade. Em outras
palavras, lhe é assegurado exclusivamente o exercício do poder regulamentador, palavras, lhe é assegurado exclusivamente o exercício do poder regulamentador,
sem que possa criar limites não previstos na Carta Constitucional. sem que possa criar limites não previstos na Carta Constitucional.

Por consectário lógico, restam prejudicadas algumas disposições legais. Isto Por consectário lógico, restam prejudicadas algumas disposições legais. Isto
ocorre, por exemplo, com o art. 1º, §3º, da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, ocorre, por exemplo, com o art. 1º, §3º, da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992,
que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público,

6. NERY, Nelson Junior. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo, Revista 6. NERY, Nelson Junior. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo, Revista
dos Tribunais, 2000. dos Tribunais, 2000.
298 João Paulo Lordelo Guimarães Tavares 298 João Paulo Lordelo Guimarães Tavares

ao verberar que “não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em ao verberar que “não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em
qualquer parte, o objeto da ação”. qualquer parte, o objeto da ação”.

Defender a constitucionalidade de tal previsão legal é limitar, de maneira Defender a constitucionalidade de tal previsão legal é limitar, de maneira
absurda, o alcance e a eficácia da ação mandamental. absurda, o alcance e a eficácia da ação mandamental.

6. CONCLUSÕES 6. CONCLUSÕES

Diante de tudo quanto alhures exposto, impende tecer algumas conclusões Diante de tudo quanto alhures exposto, impende tecer algumas conclusões
a respeito do tema abordado, algumas há muito pronunciadas, outras ainda em a respeito do tema abordado, algumas há muito pronunciadas, outras ainda em
divergência doutrinária e jurisprudencial: divergência doutrinária e jurisprudencial:

1) Embora possua requisitos e condições específicas, devem ser mínimos os 1) Embora possua requisitos e condições específicas, devem ser mínimos os
impedimentos à utilização do mandado de segurança. Se, em determinada impedimentos à utilização do mandado de segurança. Se, em determinada
situação, houver dúvida quanto ao seu cabimento, deverá prevalecer o situação, houver dúvida quanto ao seu cabimento, deverá prevalecer o
entendimento em seu favor. entendimento em seu favor.
2) No que concerne às questões polêmicas que o seu estudo suscita, há de 2) No que concerne às questões polêmicas que o seu estudo suscita, há de
prevalecer a corrente que se revele produtora da maior amplitude de suas prevalecer a corrente que se revele produtora da maior amplitude de suas
hipóteses de incidência e de espectro de atuação. Revelando-se, a um hipóteses de incidência e de espectro de atuação. Revelando-se, a um
só tempo, remédio processual e garantia constitucional, deve o writ ser só tempo, remédio processual e garantia constitucional, deve o writ ser
admitido de maneira amplíssima. admitido de maneira amplíssima.
3) Não se trata, o conceito de medida liminar, de algo ontologicamente 3) Não se trata, o conceito de medida liminar, de algo ontologicamente
substantivo. Ao contrário, esta é a qualidade daquilo que foi feito no substantivo. Ao contrário, esta é a qualidade daquilo que foi feito no
início (in limine). Assim, embora as normas legais – no que tangem à início (in limine). Assim, embora as normas legais – no que tangem à
medida antecipatória de tutela – refiram-se, invariavelmente, à expressão medida antecipatória de tutela – refiram-se, invariavelmente, à expressão
“medida liminar”, esta não se resume àquela. “medida liminar”, esta não se resume àquela.
4) Tal provimento não tem por base o seu conteúdo, eis que este é variável. 4) Tal provimento não tem por base o seu conteúdo, eis que este é variável.
Ora assume característica de antecipação dos efeitos da tutela – que, em Ora assume característica de antecipação dos efeitos da tutela – que, em
verdade, pode se dar em qualquer momento do procedimento – ora assume verdade, pode se dar em qualquer momento do procedimento – ora assume
natureza cautelar, de sentença etc. natureza cautelar, de sentença etc.
5) A liminar, no bojo do remédio constitucional, não é um provimento ex- 5) A liminar, no bojo do remédio constitucional, não é um provimento ex-
cepcional. Não se trata, aqui, de exceção ao princípio do devido processo cepcional. Não se trata, aqui, de exceção ao princípio do devido processo
legal, mas, ao contrário, de etapa essencial e integrante do due processo legal, mas, ao contrário, de etapa essencial e integrante do due processo
of law na ação de segurança. Tal ocorre pois o direito de ação, consti- of law na ação de segurança. Tal ocorre pois o direito de ação, consti-
tucionalmente previsto (art. 5º, XXXV), tem por escopo a obtenção de tucionalmente previsto (art. 5º, XXXV), tem por escopo a obtenção de
uma tutela jurisdicional eficaz e adequada à lide. Se for necessária a tutela uma tutela jurisdicional eficaz e adequada à lide. Se for necessária a tutela
liminar, esta não poderá ser negada. liminar, esta não poderá ser negada.
6) Ainda que não haja uma previsão legal no sentido de ser possível a concessão 6) Ainda que não haja uma previsão legal no sentido de ser possível a concessão
de liminar, deverá ser ela concedida, de acordo com o caso concreto. Mais de liminar, deverá ser ela concedida, de acordo com o caso concreto. Mais
a mais, ainda que haja previsão legal vedando ou restringindo a concessão a mais, ainda que haja previsão legal vedando ou restringindo a concessão
Das liminares em Mandado de Segurança: natureza jurídica e impossibilidade… 299 Das liminares em Mandado de Segurança: natureza jurídica e impossibilidade… 299

de medidas liminares em sede de mandado de segurança, o magistrado de medidas liminares em sede de mandado de segurança, o magistrado
terá de concedê-las, quando necessárias à satisfação do legítimo interesse terá de concedê-las, quando necessárias à satisfação do legítimo interesse
do impetrante, com vista à maximização do due process of law. do impetrante, com vista à maximização do due process of law.
7) Não é dado ao legislador ordinário limitar o exercício da ação manda- 7) Não é dado ao legislador ordinário limitar o exercício da ação manda-
mental, mormente em se considerando que o dispositivo constitucional mental, mormente em se considerando que o dispositivo constitucional
que a institui não remete o seu regulamento à lei. Somente é dado ao que a institui não remete o seu regulamento à lei. Somente é dado ao
legislador ordinário criar normas procedimentais relativas ao mandado legislador ordinário criar normas procedimentais relativas ao mandado
de segurança, e desde que não seja desconfigurado o seu escopo. de segurança, e desde que não seja desconfigurado o seu escopo.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARAÚJO JR., Luiz Rodolfo de (coord.). Aspectos Polêmicos e Atuais do Mandado de ARAÚJO JR., Luiz Rodolfo de (coord.). Aspectos Polêmicos e Atuais do Mandado de
Segurança (obra coletiva). São Paulo, RT, 2002. Segurança (obra coletiva). São Paulo, RT, 2002.
ARRUDA ALVIM, Tereza. Mandado de Segurança Contra Ato Judicial. São Paulo, RT. ARRUDA ALVIM, Tereza. Mandado de Segurança Contra Ato Judicial. São Paulo, RT.
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Mandado de Segurança, Mandado de Segurança CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Mandado de Segurança, Mandado de Segurança
Coletivo, Mandado de Injunção, “Hábeas Data”. Rio de Janeiro, Forense, 1995. Coletivo, Mandado de Injunção, “Hábeas Data”. Rio de Janeiro, Forense, 1995.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Antecipação parcial e liminar dos efeitos da tutela. Hipótese DIDIER JUNIOR, Fredie. Antecipação parcial e liminar dos efeitos da tutela. Hipótese
concreta. Considerações. Em: Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA. concreta. Considerações. Em: Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA.
Salvador: Faculdade de Direito da UFBA, 1999. Salvador: Faculdade de Direito da UFBA, 1999.
FERRAZ, Sérgio. Mandado de Segurança. São Paulo, Malheiros, 2006. FERRAZ, Sérgio. Mandado de Segurança. São Paulo, Malheiros, 2006.
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública,
Mandado de Injunção, “Habeas Data”. São Paulo, Malheiros, 1997. Mandado de Injunção, “Habeas Data”. São Paulo, Malheiros, 1997.
NERY, Nelson Junior. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo, NERY, Nelson Junior. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo,
Revista dos Tribunais, 2000. Revista dos Tribunais, 2000.
Capítulo XXI Capítulo XXI
A assistência social tipo A assistência social tipo
educação formal. Obrigações do Estado educação formal. Obrigações do Estado
e das associações beneficentes do tipo e das associações beneficentes do tipo
escolas portadoras do Certificado escolas portadoras do Certificado
de Entidade Beneficente do CNAS de Entidade Beneficente do CNAS

José Rosa* José Rosa*

Sumário • 1. Introdução – 2. Histórico – 3. Conceito e Fundamentos Jurídicos – 4. O SUAS – Sis- Sumário • 1. Introdução – 2. Histórico – 3. Conceito e Fundamentos Jurídicos – 4. O SUAS – Sis-
tema Unificado de Assistência Social – 5. Obrigações das Escolas beneficentes de Assistência Social tema Unificado de Assistência Social – 5. Obrigações das Escolas beneficentes de Assistência Social
Decorrentes da Adesão ao SUAS – 6. Os Sujeitos Ativos da Assistência Social Educacional e seus Decorrentes da Adesão ao SUAS – 6. Os Sujeitos Ativos da Assistência Social Educacional e seus
Direitos – 7. Escolas Privadas Beneficentes e as Leis 8.742/93 – LOAS e 9.394/96 – LDBE; Direitos Direitos – 7. Escolas Privadas Beneficentes e as Leis 8.742/93 – LOAS e 9.394/96 – LDBE; Direitos
e Obrigações – 8. Conclusão – 9. Referência Bibliográfica. e Obrigações – 8. Conclusão – 9. Referência Bibliográfica.

1. Introdução 1. Introdução
A Assistência Social é política pública de seguridade social que visa prover as A Assistência Social é política pública de seguridade social que visa prover as
necessidades básicas mínimas das pessoas que não tenham condições de obtê-las necessidades básicas mínimas das pessoas que não tenham condições de obtê-las
sozinhas por meios próprios, sem cobrança de qualquer valor pecuniário como sozinhas por meios próprios, sem cobrança de qualquer valor pecuniário como
contraprestação por parte do beneficiário do serviço da assistência social. contraprestação por parte do beneficiário do serviço da assistência social.
Pretende proteger o indivíduo e a família carentes, em situação de risco, exclu- Pretende proteger o indivíduo e a família carentes, em situação de risco, exclu-
ídos ou impedidos de integração ao mercado do trabalho, incapazes e portadores ídos ou impedidos de integração ao mercado do trabalho, incapazes e portadores
de deficiência, conforme diretrizes dos arts. 203 e 204 da CF e 1º da Lei 8742/93. de deficiência, conforme diretrizes dos arts. 203 e 204 da CF e 1º da Lei 8742/93.
Neste artigo está explicitado que a assistência social será prestada pelo Estado Neste artigo está explicitado que a assistência social será prestada pelo Estado
e por entidades privadas da sociedade, através de conjuntos integrados de ações e por entidades privadas da sociedade, através de conjuntos integrados de ações
para garantir o atendimento às necessidades básicas. para garantir o atendimento às necessidades básicas.
Desta forma percebe-se que a Assistência Social que os atuais Legisladores Desta forma percebe-se que a Assistência Social que os atuais Legisladores
Constituinte e Infraconstitucional coerentemente pretendem, exige necessariamen- Constituinte e Infraconstitucional coerentemente pretendem, exige necessariamen-
te a coordenação de diversos setores de atividades ou serviços e de agentes promo- te a coordenação de diversos setores de atividades ou serviços e de agentes promo-
tores das ações que constituem assistência social, conforme conceitos mais abertos tores das ações que constituem assistência social, conforme conceitos mais abertos
e coerentes, consolidados nas Constituições de 1937 e 1946, as quais in­cluíam a e coerentes, consolidados nas Constituições de 1937 e 1946, as quais in­cluíam a
assistência educacional como uma espécie do gênero assistência social.1 assistência educacional como uma espécie do gênero assistência social.1

* Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. * Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
1. A Constituição de 1946 tornou obrigatória a assistência social, deixando claro que, até então, a 1. A Constituição de 1946 tornou obrigatória a assistência social, deixando claro que, até então, a
assistência social também compreendia a assistência educacional. assistência social também compreendia a assistência educacional.
302 José Rosa 302 José Rosa

Da análise das normas constitucionais pertinentes à assistência social e da Da análise das normas constitucionais pertinentes à assistência social e da
legislação que lhe dá concretude; pelos seus objetivos e finalidade, conclui-se que legislação que lhe dá concretude; pelos seus objetivos e finalidade, conclui-se que
a prestação de assistência social é direito do cidadão e dever do Estado, derivada a prestação de assistência social é direito do cidadão e dever do Estado, derivada
diretamente de execução de Política de Seguridade Social não contributiva, somen- diretamente de execução de Política de Seguridade Social não contributiva, somen-
te possível de ser realizada com serviços e ações diversas, inclusive no âmbito da te possível de ser realizada com serviços e ações diversas, inclusive no âmbito da
educação formal. Sua execução, conforme a Constituição, é prestação da serviço educação formal. Sua execução, conforme a Constituição, é prestação da serviço
público cujos coordenadores e executores estão elencados na CF/88: público cujos coordenadores e executores estão elencados na CF/88:
“Art. 204. As ações governamentais na área de assistência social serão realizadas “Art. 204. As ações governamentais na área de assistência social serão realizadas
com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de
outras fontes,... I –..... a coordenação e a execução dos respectivos programas às outras fontes,... I –..... a coordenação e a execução dos respectivos programas às
esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência
social;” (Grifo nosso) social;” (Grifo nosso)

Assim, é um direito subjetivo, inscrito entre os direitos fundamentais, portanto Assim, é um direito subjetivo, inscrito entre os direitos fundamentais, portanto
tutelado em sede constitucional. Esse direito está prescrito entre diversos outros tutelado em sede constitucional. Esse direito está prescrito entre diversos outros
no “Título VIII – Da Ordem Social” da Carta Magna. no “Título VIII – Da Ordem Social” da Carta Magna.
Ganha concretude normativa na Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, Ganha concretude normativa na Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS,
nº 8.742/93, nas Resoluções 177/2000 e 145/2004 do Conselho Nacional de nº 8.742/93, nas Resoluções 177/2000 e 145/2004 do Conselho Nacional de
Assistência Social e LDBE – Lei Federal 9.394/96, Lei 11.439 de 29/12/2006 Assistência Social e LDBE – Lei Federal 9.394/96, Lei 11.439 de 29/12/2006
– Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração da Lei Orçamentária de 2007 – Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração da Lei Orçamentária de 2007
– além de outras leis. – além de outras leis.
Nessas regras, a prestação de educação formal conforme a Lei de Diretrizes Nessas regras, a prestação de educação formal conforme a Lei de Diretrizes
e Base da Educação está regulamentada e garantida como espécie de serviço de e Base da Educação está regulamentada e garantida como espécie de serviço de
assistência social, dentre outras espécies assistenciais. assistência social, dentre outras espécies assistenciais.
Dá-se relevante destaque à idéia de que a regulação da imunidade tributária Dá-se relevante destaque à idéia de que a regulação da imunidade tributária
em si, de competência de lei complementar, é distinto da regulação legal da cons- em si, de competência de lei complementar, é distinto da regulação legal da cons-
tituição, funcionamento e fiscalização das entidades beneficentes de assistência tituição, funcionamento e fiscalização das entidades beneficentes de assistência
social. Entretanto boa parte da doutrina combate a legislação que busca efetivar a social. Entretanto boa parte da doutrina combate a legislação que busca efetivar a
fiscalização sobre o devido cumprimento da finalidade das entidades beneficentes fiscalização sobre o devido cumprimento da finalidade das entidades beneficentes
do inc. I, 204 da CF. do inc. I, 204 da CF.
Naquela legislação estão gravados os direitos e obrigações das escolas pri- Naquela legislação estão gravados os direitos e obrigações das escolas pri-
vadas portadoras de Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos, beneficente, vadas portadoras de Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos, beneficente,
sem fins lucrativos, de interesse público, prestadora de educação formal gratuita sem fins lucrativos, de interesse público, prestadora de educação formal gratuita
simultaneamente às suas atividades remuneradas, cujos lucros devem ser aplicados simultaneamente às suas atividades remuneradas, cujos lucros devem ser aplicados
integralmente nas suas finalidades beneficentes. Em contrapartida, ao cumprirem integralmente nas suas finalidades beneficentes. Em contrapartida, ao cumprirem
suas obrigações assistenciais, desfrutam de imunidades tributárias garantidas no suas obrigações assistenciais, desfrutam de imunidades tributárias garantidas no
artigo 150 da CF, no CTN e nas legislações estaduais e municipais, em obediência artigo 150 da CF, no CTN e nas legislações estaduais e municipais, em obediência
ao comando constitucional. ao comando constitucional.
Também estão regulados os sujeitos de direito do Sistema Unificado de Também estão regulados os sujeitos de direito do Sistema Unificado de
Assistência Social – SUAS, criado pela Política Nacional de Assistência Social. Assistência Social – SUAS, criado pela Política Nacional de Assistência Social.
A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 303 A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 303

Tais sujeitos são pessoas economicamente carentes, consideradas em situação de Tais sujeitos são pessoas economicamente carentes, consideradas em situação de
risco decorrentes da pobreza extrema e indigência que assolam mais de cinqüenta risco decorrentes da pobreza extrema e indigência que assolam mais de cinqüenta
milhões de brasileiros. milhões de brasileiros.
Os requisitos que qualificam o carente que deve receber os benefícios da Os requisitos que qualificam o carente que deve receber os benefícios da
assistência social, os critérios para a concessão, os tipos de serviços e formas de assistência social, os critérios para a concessão, os tipos de serviços e formas de
divulgação, prestação de contas, gerenciamento e controle das atividades estão divulgação, prestação de contas, gerenciamento e controle das atividades estão
garantidos na legislação. garantidos na legislação.
Para garantir a transparência e participação popular na execução ou prestação Para garantir a transparência e participação popular na execução ou prestação
da assistência social, a CF (58 II, 204 II, 37 caput, 5º caput, XXIII e §§ 1º/3º) da assistência social, a CF (58 II, 204 II, 37 caput, 5º caput, XXIII e §§ 1º/3º)
viabiliza estes direitos intrínsecos do Estado Democrático em diversas normas e viabiliza estes direitos intrínsecos do Estado Democrático em diversas normas e
Princípios constitucionais. Igualmente na LOAS, arts. 4º e outros. Princípios constitucionais. Igualmente na LOAS, arts. 4º e outros.

Não obstante esse aparato normativo de garantias e direitos para o cidadão Não obstante esse aparato normativo de garantias e direitos para o cidadão
potencialmente beneficiário da assistência social da espécie educação formal, tal potencialmente beneficiário da assistência social da espécie educação formal, tal
instrumento de inserção social tem apresentado resultados macros próximos da instrumento de inserção social tem apresentado resultados macros próximos da
deficiência total. E no âmbito individual, considerando que a assistência social tipo deficiência total. E no âmbito individual, considerando que a assistência social tipo
educação formal é toda ela prestada por entidades beneficentes sem fins lucrativos, educação formal é toda ela prestada por entidades beneficentes sem fins lucrativos,
a ineficiência é total em inúmeros casos exemplificados adiante. a ineficiência é total em inúmeros casos exemplificados adiante.

Constata-se que os serviços beneficentes de assistência educacional, a partir Constata-se que os serviços beneficentes de assistência educacional, a partir
da instituição da Imunidade Tributária atrelada às entidades beneficentes e de da instituição da Imunidade Tributária atrelada às entidades beneficentes e de
assistência social, gradualmente, estão acontecendo apenas no plano formal, nos assistência social, gradualmente, estão acontecendo apenas no plano formal, nos
registros, declarações e prestações de contas ao Estado. No plano da verdade registros, declarações e prestações de contas ao Estado. No plano da verdade
real, no atendimento aos míseros cidadãos excluídos pela pobreza extrema, estes real, no atendimento aos míseros cidadãos excluídos pela pobreza extrema, estes
quando buscam uma vaga gratuita nas escolas registradas nos órgãos tributários quando buscam uma vaga gratuita nas escolas registradas nos órgãos tributários
estatais como beneficentes filantrópicas, geralmente são ignorados, tratados de estatais como beneficentes filantrópicas, geralmente são ignorados, tratados de
modo indigno e humilhante, ao final são informados de que não existe gratuidade modo indigno e humilhante, ao final são informados de que não existe gratuidade
nos cursos de educação formal. nos cursos de educação formal.

O próprio Estado não exerce fiscalização sobre as atividades de assistência O próprio Estado não exerce fiscalização sobre as atividades de assistência
social beneficentes ou filantrópicas, na área da educação. Assim, garante e fomenta social beneficentes ou filantrópicas, na área da educação. Assim, garante e fomenta
essa contumácia de fraudar a ordem tributária, gerando mais graves prejuízos essa contumácia de fraudar a ordem tributária, gerando mais graves prejuízos
sociais pelo não provimento de educação para os adolescentes e crianças carentes sociais pelo não provimento de educação para os adolescentes e crianças carentes
que é financiada pelo Estado, indiretamente, com as imunidades. Essas violações que é financiada pelo Estado, indiretamente, com as imunidades. Essas violações
a direito fundamental permitidas, constituem-se em descumprimento de preceito a direito fundamental permitidas, constituem-se em descumprimento de preceito
fundamental, do Estado, por não fiscalizar e impor o cumprimento da lei por parte fundamental, do Estado, por não fiscalizar e impor o cumprimento da lei por parte
das omissas escolas-entidades beneficentes. das omissas escolas-entidades beneficentes.

Assim, será desenvolvido o presente trabalho, visando aprofundar o conheci- Assim, será desenvolvido o presente trabalho, visando aprofundar o conheci-
mento sobre o direito à educação como serviço de assistência social garantido na mento sobre o direito à educação como serviço de assistência social garantido na
CF/88 nas CF de 1937 e 1946. Demonstrar como o inadimplemento das escolas- CF/88 nas CF de 1937 e 1946. Demonstrar como o inadimplemento das escolas-
entidades beneficentes filantrópicas geram graves prejuízos econômicos à fazenda entidades beneficentes filantrópicas geram graves prejuízos econômicos à fazenda
304 José Rosa 304 José Rosa

pública, no valor de R$ 2,4 bilhões de reais apenas sobre as isenções da cota pública, no valor de R$ 2,4 bilhões de reais apenas sobre as isenções da cota pa-
patronal devidas ao INSS, no ano de 2003. Sendo, porém, muito mais relevantes tronal devidas ao INSS, no ano de 2003. Sendo, porém, muito mais relevantes os
os prejuízos à sociedade ao inviabilizar a educação digna e eficaz para milhares prejuízos à sociedade ao inviabilizar a educação digna e eficaz para milhares de
de crianças que têm direito à educação nas escolas beneficentes de assistência crianças que têm direito à educação nas escolas beneficentes de assistência social,
social, mas que desse direito não desfrutam. mas que desse direito não desfrutam.

Tais prejuízos são irreparáveis, garantem a exclusão social e a manutenção de Tais prejuízos são irreparáveis, garantem a exclusão social e a manutenção de
um iníquo processo de formação de uma sociedade de desiguais. Uma sociedade um iníquo processo de formação de uma sociedade de desiguais. Uma sociedade
dividida em duas partes: uma formada de cidadãos dignos, portadores de todos os dividida em duas partes: uma formada de cidadãos dignos, portadores de todos os
direitos e beneficiados pelos frutos da civilização de uma sociedade organizada; direitos e beneficiados pelos frutos da civilização de uma sociedade organizada;
outra formada por párias, cidadãos de última classe, sem direitos, sem dignidade, outra formada por párias, cidadãos de última classe, sem direitos, sem dignidade,
excluídos do mundo da cultura, da civilização. excluídos do mundo da cultura, da civilização.

2. HISTÓRICO – DA FILANTROPIA E CARIDADE À ASSISTÊNCIA 2. HISTÓRICO – DA FILANTROPIA E CARIDADE À ASSISTÊNCIA


SOCIAL POSITIVADA NO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL SOCIAL POSITIVADA NO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL
Não é possível entender a assistência social senão como prestação de ações Não é possível entender a assistência social senão como prestação de ações
de proteção em diversos campos de necessidades, alimentação, saúde, abrigo, etc. de proteção em diversos campos de necessidades, alimentação, saúde, abrigo, etc.
Inclusive, também, a prestação de educação formal apta a causar a inserção social Inclusive, também, a prestação de educação formal apta a causar a inserção social
de pessoas carentes. Este pensamento é coerente com as constituições brasileiras de pessoas carentes. Este pensamento é coerente com as constituições brasileiras
e com a prática de assistência social construída ao longo da história humana nos e com a prática de assistência social construída ao longo da história humana nos
três últimos milênios, quer no oriente tanto na civilização ocidental. três últimos milênios, quer no oriente tanto na civilização ocidental.
Na existência humana as pessoas, individualmente ou em grupos, podem Na existência humana as pessoas, individualmente ou em grupos, podem
passar por momentos de fragilidade e infortúnios. Podem ser atingidas por even- passar por momentos de fragilidade e infortúnios. Podem ser atingidas por even-
tuais vicissitudes tais como a doença, a pobreza ou carência total de recursos tuais vicissitudes tais como a doença, a pobreza ou carência total de recursos
necessários à vida, a morte de familiares que são provedores da família, além de necessários à vida, a morte de familiares que são provedores da família, além de
outras mazelas. Ademais, a velhice é quase sempre acompanhada da perda de outras mazelas. Ademais, a velhice é quase sempre acompanhada da perda de
capacidade para prover a própria subsistência. capacidade para prover a própria subsistência.
A consciência dessas dificuldades desde a antiguidade e entre diversos povos, A consciência dessas dificuldades desde a antiguidade e entre diversos povos,
fez nascer os sentimentos humanitários de fraternidade, solidariedade e também fez nascer os sentimentos humanitários de fraternidade, solidariedade e também
com o senso de prudência, induziu em maior ou menor intensidade a prática de com o senso de prudência, induziu em maior ou menor intensidade a prática de
diversas manifestações de assistência, de auxílio ao necessitado. diversas manifestações de assistência, de auxílio ao necessitado.
Muitas vezes os costumes e a própria lei, consolidaram a pratica da assistência Muitas vezes os costumes e a própria lei, consolidaram a pratica da assistência
ao necessitado. Essa assistência consistia no socorro com abrigo, cuidados para ao necessitado. Essa assistência consistia no socorro com abrigo, cuidados para
recuperar a saúde, dar alimentos, etc. recuperar a saúde, dar alimentos, etc.
Temos entre os judeus, por exemplos, o costume de dar esmola aos neces- Temos entre os judeus, por exemplos, o costume de dar esmola aos neces-
sitados (cf. Mateus, 5, 1 – 4), bem como a instituição do dízimo, que servia não sitados (cf. Mateus, 5, 1 – 4), bem como a instituição do dízimo, que servia não
apenas para manutenção dos templos e dos sacerdotes, mas para socorrer aos apenas para manutenção dos templos e dos sacerdotes, mas para socorrer aos
irmãos da igreja em suas diversas necessidades para a subsistência. A idéia de irmãos da igreja em suas diversas necessidades para a subsistência. A idéia de
auxílio social como ações de múltipla natureza está bem exemplificada na Bíblia, auxílio social como ações de múltipla natureza está bem exemplificada na Bíblia,
em Mateus, 25, 35 a 44: em Mateus, 25, 35 a 44:
A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 305 A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 305

“34 Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai. “34 Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai.
Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;
35 porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era 35 porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era
forasteiro, e me acolhestes; forasteiro, e me acolhestes;
36 estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão e fostes 36 estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão e fostes
­ver-me.” ­ver-me.”

Na Europa desde o início da Idade Média a filantropia era um costume inten- Na Europa desde o início da Idade Média a filantropia era um costume inten-
samente praticado, também conforme as prescrições bíblicas2: samente praticado, também conforme as prescrições bíblicas2:
“Durante os séculos após a morte de Carlos Magno em 814, muito dos cuidados aos “Durante os séculos após a morte de Carlos Magno em 814, muito dos cuidados aos
pobres, até então a cargo das paróquias da Igreja, migraram para os mosteiros. Nas pobres, até então a cargo das paróquias da Igreja, migraram para os mosteiros. Nas
­palavras do rei S. Luiz IX da França, os mosteiros eram “o patrimônio dos pobres”; ­palavras do rei S. Luiz IX da França, os mosteiros eram “o patrimônio dos pobres”;
o que sempre foi desde o séc. IV. Em cada lugar onde surgia um mosteiro, nos o que sempre foi desde o séc. IV. Em cada lugar onde surgia um mosteiro, nos
vales e montanhas, formavam-se centros de vida religiosa organizada com escolas, vales e montanhas, formavam-se centros de vida religiosa organizada com escolas,
modelos para a agricultura, indústria, piscicultura, reflorestamento, proteção aos modelos para a agricultura, indústria, piscicultura, reflorestamento, proteção aos
viajantes, alívio para os pobres, órfãos, cuidado dos doentes... viajantes, alívio para os pobres, órfãos, cuidado dos doentes...

Mas os monges não apenas esperavam os pobres virem a eles, iam atrás dos pobres Mas os monges não apenas esperavam os pobres virem a eles, iam atrás dos pobres
e doentes para socorrê-los.... a Igreja Católica revolucionou a caridade na civili- e doentes para socorrê-los.... a Igreja Católica revolucionou a caridade na civili-
zação ocidental tanto no seu espírito quanto em sua realização. Ninguém como a zação ocidental tanto no seu espírito quanto em sua realização. Ninguém como a
Igreja socorreu tanto os pobres, órfãos, viúvas e doentes. E isto..... durante os vinte Igreja socorreu tanto os pobres, órfãos, viúvas e doentes. E isto..... durante os vinte
séculos de sua existência. [...] só a Igreja lutava contra a miséria, socorria os séculos de sua existência. [...] só a Igreja lutava contra a miséria, socorria os
indigentes, os “pobres benditos” que viviam perto da catedral; havia os “fundos indigentes, os “pobres benditos” que viviam perto da catedral; havia os “fundos
de socorro” que estavam em toda parte. [...] Havia também hospícios, hospe- de socorro” que estavam em toda parte. [...] Havia também hospícios, hospe-
darias para estrangeiros e hospitais mantidos pela Igreja; surgiram depois os darias para estrangeiros e hospitais mantidos pela Igreja; surgiram depois os
leprosários ou ‘hospitais de Lázaro”...... leprosários ou ‘hospitais de Lázaro”......

Os mosteiros tinham também a sua “matrícula” sob os cuidados do monge “es- Os mosteiros tinham também a sua “matrícula” sob os cuidados do monge “es-
moler”. (grifo nosso) moler”. (grifo nosso)

A partir do séc. XI começaram a surgir as Ordens dedicadas à caridade. A Ordem A partir do séc. XI começaram a surgir as Ordens dedicadas à caridade. A Ordem
hospitalar mais antiga foi a dos “Antoninos”; nasceu em Vienne, em 1095, na pa- hospitalar mais antiga foi a dos “Antoninos”; nasceu em Vienne, em 1095, na pa-
róquia onde estavam as relíquias de Santo Antão. ..... a Igreja pedia que as crianças róquia onde estavam as relíquias de Santo Antão. ..... a Igreja pedia que as crianças
abandonadas fossem deixadas nas portas dos mosteiros..... eram cuidadas pela Or- abandonadas fossem deixadas nas portas dos mosteiros..... eram cuidadas pela Or-
dem do Espírito Santo ou pelos hospitalários de São João de Jerusalém, ..... Alguns dem do Espírito Santo ou pelos hospitalários de São João de Jerusalém, ..... Alguns
desses asilos de crianças eram enormes e elas só saíam daí trabalhando. ..... desses asilos de crianças eram enormes e elas só saíam daí trabalhando. .....

São incontáveis os números de hospitais, sanatórios, escolas para crianças pobres, São incontáveis os números de hospitais, sanatórios, escolas para crianças pobres,
asilos, creches, etc… que os filhos da Igreja sempre mantiveram durante todos asilos, creches, etc… que os filhos da Igreja sempre mantiveram durante todos
esses vinte séculos de cristianismo. ..... A caridade católica sempre foi totalmente esses vinte séculos de cristianismo. ..... A caridade católica sempre foi totalmente
gratuita, desinteressada, .....” gratuita, desinteressada, .....”

2. Art. 172 – Cada sistema de ensino terá obrigatoriamente serviços de assistência educacional que 2. Art. 172 – Cada sistema de ensino terá obrigatoriamente serviços de assistência educacional que
assegurem aos alunos necessitados condições de eficiência escolar.”. Rogério Tobias de Carvalho. assegurem aos alunos necessitados condições de eficiência escolar.”. Rogério Tobias de Carvalho.
Imunidade Tributária e Contribuições para a Seguridade Social. Ed.Renovar. RJ. 2006. p 18. Imunidade Tributária e Contribuições para a Seguridade Social. Ed.Renovar. RJ. 2006. p 18.
306 José Rosa 306 José Rosa

Entre os muçulmanos tem-se que o Islão está construído sobre cinco funda- Entre os muçulmanos tem-se que o Islão está construído sobre cinco funda-
mentos: Atestar que não há outra divindade senão Deus e que Muhammad é o mentos: Atestar que não há outra divindade senão Deus e que Muhammad é o
profeta de Deus; rezar; dar esmola; jejuar no mês de Ramadan e, para aqueles profeta de Deus; rezar; dar esmola; jejuar no mês de Ramadan e, para aqueles
que têm possibilidade, fazer a peregrinação a Meca. que têm possibilidade, fazer a peregrinação a Meca.
 Justifica-se a idéia do auxílio ou esmola, sem nenhum sentido depreciativo  Justifica-se a idéia do auxílio ou esmola, sem nenhum sentido depreciativo
para o beneficiado,pois que tudo que tem o fiel, foi recebido de Deus, que o proverá para o beneficiado,pois que tudo que tem o fiel, foi recebido de Deus, que o proverá
sempre aquele que dá esmola, livrando-o da necessidade. Se é Deus quem provê, sempre aquele que dá esmola, livrando-o da necessidade. Se é Deus quem provê,
aquele que tem deverá doar destes bens aos necessitados. aquele que tem deverá doar destes bens aos necessitados.
Constata-se que a filantropia e a assistência social beneficente é um costume Constata-se que a filantropia e a assistência social beneficente é um costume
e valor secularmente cultivado no mundo cristão e no Brasil, oficialmente desde e valor secularmente cultivado no mundo cristão e no Brasil, oficialmente desde
a inauguração do hospital da primeiras Santa Casa de Misericórdia do Brasil, em a inauguração do hospital da primeiras Santa Casa de Misericórdia do Brasil, em
15433. 15433.
Tal valor e prática moral sofreu a proteção do Legislador Constituinte nas Tal valor e prática moral sofreu a proteção do Legislador Constituinte nas
Constituições de 37 e 46, permanecendo vigente no ordenamento infraconstitu- Constituições de 37 e 46, permanecendo vigente no ordenamento infraconstitu-
cional contemporâneo como será demonstrado adiante. cional contemporâneo como será demonstrado adiante.
A CF de 1946 tornou obrigatória a assistência social que compreendia também A CF de 1946 tornou obrigatória a assistência social que compreendia também
a assistência educacional: a assistência educacional:
“Art. 172. Cada sistema de ensino terá obrigatoriamente serviços de assistência “Art. 172. Cada sistema de ensino terá obrigatoriamente serviços de assistência
educacional que assegurem aos alunos necessitados condições de eficiência es- educacional que assegurem aos alunos necessitados condições de eficiência es-
colar”. colar”.
 Apesar de inexistir na CF/88 expressamente disposição de que educação seja  Apesar de inexistir na CF/88 expressamente disposição de que educação seja
espécie de assistência social, as normas constitucionais e princípios fundamentais espécie de assistência social, as normas constitucionais e princípios fundamentais
que fundamentam a imunidade tributária para as entidades beneficentes e de assis- que fundamentam a imunidade tributária para as entidades beneficentes e de assis-
tência social infirmam que educação formal continua sendo um tipo de assistência tência social infirmam que educação formal continua sendo um tipo de assistência
social. Este sentido posto pela CF/88 transparece com o crescente elenco de nor- social. Este sentido posto pela CF/88 transparece com o crescente elenco de nor-
mas legais e regulamentos dispondo sobre a educação formal como prestação de mas legais e regulamentos dispondo sobre a educação formal como prestação de
assistência social e a permanência de outras sobre a mesma matéria. assistência social e a permanência de outras sobre a mesma matéria.
Cristalizando os valores cultivados pelo povo brasileiro, quanto à filantropia Cristalizando os valores cultivados pelo povo brasileiro, quanto à filantropia
benficente e assistência social como um conjunto de ações protetivas, incluindo benficente e assistência social como um conjunto de ações protetivas, incluindo
a educação, O Congresso Nacional reconhece através da COMISSÃO MISTA a educação, O Congresso Nacional reconhece através da COMISSÃO MISTA
DE PLANOS, ORÇAMENTOS PÚBLICOS E FISCALIZAÇÃO (no PLOA DE PLANOS, ORÇAMENTOS PÚBLICOS E FISCALIZAÇÃO (no PLOA
2005 – PROJETO DE LEI ORÇAMENTÁRIA N.º 51, de 2004 – CN, no SU- 2005 – PROJETO DE LEI ORÇAMENTÁRIA N.º 51, de 2004 – CN, no SU-
MÁRIO DA NOTA TÉCNICA, que dentro dos gastos com a função educação há MÁRIO DA NOTA TÉCNICA, que dentro dos gastos com a função educação há
despesas computadas como “programas suplementares de alimentação, assistência despesas computadas como “programas suplementares de alimentação, assistência

3. Felipe Aquino at 7:44 pm on Domingo, Abril 15, 2007. Igreja. Bajar de la cruz a los pobres. 3. Felipe Aquino at 7:44 pm on Domingo, Abril 15, 2007. Igreja. Bajar de la cruz a los pobres.
permanente caridade da Igreja – Parte II. Extraído em Prof. Felipe Aquino – site: www.cleofas. permanente caridade da Igreja – Parte II. Extraído em Prof. Felipe Aquino – site: www.cleofas.
com.br. Domingo, 01/07/2007. com.br. Domingo, 01/07/2007.
A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 307 A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 307

médico-odontológica, farmacêutica e odontológica, e outras formas de assistência médico-odontológica, farmacêutica e odontológica, e outras formas de assistência
social” no tópico “Educação”. social” no tópico “Educação”.
Assim, impõe-se que se entenda implícita na atual Carta Magna que o gênero Assim, impõe-se que se entenda implícita na atual Carta Magna que o gênero
assistência social carrega em seu interior, dentre outras, a espécie educação. assistência social carrega em seu interior, dentre outras, a espécie educação.

3. CONCEITO E FUNDAMENTOS JURÍDICOS 3. CONCEITO E FUNDAMENTOS JURÍDICOS


Sentidos correntes dos termos “Assistir” e “Assistência”. Etimologia. Têm Sentidos correntes dos termos “Assistir” e “Assistência”. Etimologia. Têm
origem no latim “ad-sistere” ou “assistëre”, que significam estar presente, ver, origem no latim “ad-sistere” ou “assistëre”, que significam estar presente, ver,
testemunhar. A partir do século XVI, o termo é empregado com o sentido de testemunhar. A partir do século XVI, o termo é empregado com o sentido de
ajudar, socorrer4. ajudar, socorrer4.
Houaiss (2001, 1ª ed.) identifica já em 1551 “assistência”, como o ato de Houaiss (2001, 1ª ed.) identifica já em 1551 “assistência”, como o ato de
assistir, amparar, proteger, auxiliar; “Assistência Pública” – espécies de auxílio, assistir, amparar, proteger, auxiliar; “Assistência Pública” – espécies de auxílio,
cuidados ou apoio dos poderes públicos prestados às pessoas, comunidades ou cuidados ou apoio dos poderes públicos prestados às pessoas, comunidades ou
grupos sociais que deles necessitem; conjunto de medidas através das quais o grupos sociais que deles necessitem; conjunto de medidas através das quais o
Estado e as entidades privadas procuram atender certas necessidades de pessoas Estado e as entidades privadas procuram atender certas necessidades de pessoas
que não dispõem de meios próprios para satisfazê-las. que não dispõem de meios próprios para satisfazê-las.
Deve se concretizar com ações de proteção à família, à maternidade, à infância, Deve se concretizar com ações de proteção à família, à maternidade, à infância,
à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promo- à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promo-
ção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação das pessoas ção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação das pessoas
portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária. portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária.
Em nosso ordenamento constitucional a assistência social é Política de Segu- Em nosso ordenamento constitucional a assistência social é Política de Segu-
ridade Social não contributiva (CF, art. 203), que provê os mínimos sociais, para ridade Social não contributiva (CF, art. 203), que provê os mínimos sociais, para
garantir o atendimento às necessidades básicas, realizada através de um conjunto garantir o atendimento às necessidades básicas, realizada através de um conjunto
integrado de iniciativa pública e da sociedade, através das “entidades beneficentes integrado de iniciativa pública e da sociedade, através das “entidades beneficentes
e de assistência social”, como está gravado no texto constitucional, parte final do e de assistência social”, como está gravado no texto constitucional, parte final do
inc. I do art. 204. Visa proteção à família e a pessoas em situação de risco. inc. I do art. 204. Visa proteção à família e a pessoas em situação de risco.
No ordenamento infraconstitucional, a lei específica é a LOAS – Lei 8.742/93, No ordenamento infraconstitucional, a lei específica é a LOAS – Lei 8.742/93,
que regulamenta as disposições dos arts. 203/204 da CF, reafirmando que será que regulamenta as disposições dos arts. 203/204 da CF, reafirmando que será
executada pela iniciativa pública e também, pela sociedade. executada pela iniciativa pública e também, pela sociedade.
Entretanto, em amplo elenco de leis estão previstos diversos tipos ações de Entretanto, em amplo elenco de leis estão previstos diversos tipos ações de
assistência social, como por exemplo, relevante, na Lei Federal 9.394/96 – Lei assistência social, como por exemplo, relevante, na Lei Federal 9.394/96 – Lei
de Diretrizes e Bases da Educação: de Diretrizes e Bases da Educação:
“Art. 70. Considerar-se-ão como de manutenção e desenvolvimento do ensino as “Art. 70. Considerar-se-ão como de manutenção e desenvolvimento do ensino as
despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições
educacionais de todos os níveis, compreendendo as que se destinam a: .... educacionais de todos os níveis, compreendendo as que se destinam a: ....

4. Carvalho, Rogério Tobias de. Imunidade Tributária e Contribuições para a Seguridade Social. 4. Carvalho, Rogério Tobias de. Imunidade Tributária e Contribuições para a Seguridade Social.
Renovar. 2006. p 15 Renovar. 2006. p 15
308 José Rosa 308 José Rosa

VI – concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas; VI – concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas;

Art. 77. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser Art. 77. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser
dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas que: dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas que:

...... ......

§ 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de § 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de
estudo para a educação básica, na forma da lei, para os que demonstrarem estudo para a educação básica, na forma da lei, para os que demonstrarem
insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares de rede insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares de rede
pública de domicílio do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir pública de domicílio do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir
prioritariamente na expansão da sua rede local. prioritariamente na expansão da sua rede local.

§ 2º As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão receber apoio finan- § 2º As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão receber apoio finan-
ceiro do Poder Público, inclusive mediante bolsas de estudo.” (Grifos nosso). ceiro do Poder Público, inclusive mediante bolsas de estudo.” (Grifos nosso).

A Resolução/FNDE/CD/Nº 015 de 16/06/2003, estabelece critérios para o A Resolução/FNDE/CD/Nº 015 de 16/06/2003, estabelece critérios para o
repasse de recursos financeiros, à conta do PNAE, previstos na Medida Provisória repasse de recursos financeiros, à conta do PNAE, previstos na Medida Provisória
nº 2.178-36, de 24/08/2001 e DOU 25/08/2001 – Ed. Extra, para escolas da nº 2.178-36, de 24/08/2001 e DOU 25/08/2001 – Ed. Extra, para escolas da
rede pública federal estadual, municipal e entidades beneficentes de assistência rede pública federal estadual, municipal e entidades beneficentes de assistência
social, com os recursos financeiros destacados do Ministério Extraordinário de social, com os recursos financeiros destacados do Ministério Extraordinário de
Segurança Alimentar e Combate a Fome para cobertura do PNAE, cujos objeti- Segurança Alimentar e Combate a Fome para cobertura do PNAE, cujos objeti-
vos e clientela são (Art. 2º.) suprir parcialmente as necessidades nutricionais dos vos e clientela são (Art. 2º.) suprir parcialmente as necessidades nutricionais dos
alunos, ..... (Art. 3º) Os beneficiários do PNAE são os alunos matriculados na alunos, ..... (Art. 3º) Os beneficiários do PNAE são os alunos matriculados na
educação infantil, ....§ 1º Excepcionalmente, poderão, também, ser computados...... educação infantil, ....§ 1º Excepcionalmente, poderão, também, ser computados......
os alunos matriculados na educação infantil oferecida em creches e pré-escolas os alunos matriculados na educação infantil oferecida em creches e pré-escolas
e no ensino fundamental mantidas por entidades beneficentes. “FUNDAMENTA- e no ensino fundamental mantidas por entidades beneficentes. “FUNDAMENTA-
ÇÃO LEGAL: Constituição Federal, art. 208; Lei Complementar nº 101/2000; ÇÃO LEGAL: Constituição Federal, art. 208; Lei Complementar nº 101/2000;
Lei nº 9.394/1996. Dispõe sobre o repasse de recursos financeiros do Programa Lei nº 9.394/1996. Dispõe sobre o repasse de recursos financeiros do Programa
Nacional de Alimentação Escolar, institui o Programa Dinheiro Direto na Escola, Nacional de Alimentação Escolar, institui o Programa Dinheiro Direto na Escola,
altera a Lei nº 9.533, de 10 de dezembro de 1997”, que dispõe sobre programa altera a Lei nº 9.533, de 10 de dezembro de 1997”, que dispõe sobre programa
de garantia de renda mínima, institui programas de apoio da União às ações dos de garantia de renda mínima, institui programas de apoio da União às ações dos
Estados e Municípios, voltadas para o atendimento educacional, e dá outras Estados e Municípios, voltadas para o atendimento educacional, e dá outras
providências. providências.
Por fim, temos a Lei 11.439/2006 dispõe sobre as diretrizes para a elaboração Por fim, temos a Lei 11.439/2006 dispõe sobre as diretrizes para a elaboração
da Lei Orçamentária de 2007. Em seu art. 7º e ss, regula sobre aplicação de da Lei Orçamentária de 2007. Em seu art. 7º e ss, regula sobre aplicação de
recursos financeiros da União, em entidades privadas de atendimento direto ao recursos financeiros da União, em entidades privadas de atendimento direto ao
público, de forma gratuita, e que estejam registradas no Conselho Nacional de público, de forma gratuita, e que estejam registradas no Conselho Nacional de
Assistência Social – CNAS: Assistência Social – CNAS:
“Art. 7º ..... I – mediante transferência financeira: “Art. 7º ..... I – mediante transferência financeira:

 a) a outras esferas de Governo, seus órgãos, fundos ou entidades; ou  a) a outras esferas de Governo, seus órgãos, fundos ou entidades; ou

 b) diretamente a entidades privadas sem fins lucrativos e outras institui-  b) diretamente a entidades privadas sem fins lucrativos e outras institui-
ções;  ....... ções;  .......
A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 309 A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 309

Art. 32.  É vedada a destinação de recursos a título de subvenções sociais para Art. 32.  É vedada a destinação de recursos a título de subvenções sociais para
entidades privadas, ressalvadas aquelas sem fins lucrativos, que exerçam entidades privadas, ressalvadas aquelas sem fins lucrativos, que exerçam
atividades de natureza continuada nas áreas de cultura, assistência social, atividades de natureza continuada nas áreas de cultura, assistência social,
saúde e educação, observado o disposto no art. 16 da Lei n o 4.320, de 1964, e saúde e educação, observado o disposto no art. 16 da Lei n o 4.320, de 1964, e
que preencham uma das seguintes condições: .... que preencham uma das seguintes condições: ....
III – atendam ao disposto no art. 204 da Constituição, no art. 61 do ADCT, bem III – atendam ao disposto no art. 204 da Constituição, no art. 61 do ADCT, bem
como na Lei n o 8.742, de 7 de dezembro de 1993; ....” como na Lei n o 8.742, de 7 de dezembro de 1993; ....”

A legislação é exaustiva e ampla na identificação das entidades beneficentes A legislação é exaustiva e ampla na identificação das entidades beneficentes
e de assistência social como coexecutoras da política pública de assistência social e de assistência social como coexecutoras da política pública de assistência social
decorrentes da conjugação das regras constitucionais da imunidade tributária do decorrentes da conjugação das regras constitucionais da imunidade tributária do
art. 195 § 7º com as dos 203, 204 I e 150 VI “c”, estando vinculadas à norma do art. 195 § 7º com as dos 203, 204 I e 150 VI “c”, estando vinculadas à norma do
§ 4º do art. 150, todos da CF/88. § 4º do art. 150, todos da CF/88.
Então, como já exposto, o sentido do ordenamento jurídico é que a educação Então, como já exposto, o sentido do ordenamento jurídico é que a educação
é espécie de assistência social constitucionalmente protegido e obrigação das é espécie de assistência social constitucionalmente protegido e obrigação das
entidades beneficentes que desfrutam da imunidade tributária. entidades beneficentes que desfrutam da imunidade tributária.
Resta distinguir a regulação da constituição e funcionamento das entida- Resta distinguir a regulação da constituição e funcionamento das entida-
des beneficentes de assistência social da regulação da matéria tributária sobre des beneficentes de assistência social da regulação da matéria tributária sobre
imunidade que é reservada para a legislação complementar. Sobre a matéria já imunidade que é reservada para a legislação complementar. Sobre a matéria já
se pronunciou o e. STF na ADIn 20028, com voto do Min. Marco Aurélio, reco- se pronunciou o e. STF na ADIn 20028, com voto do Min. Marco Aurélio, reco-
nhecendo a constitucionalidade do inc. II do art. 55 da Lei 8.212/91, que exige nhecendo a constitucionalidade do inc. II do art. 55 da Lei 8.212/91, que exige
seja a entidade beneficente e filantrópica seja portadora do CEBAS – Certificado seja a entidade beneficente e filantrópica seja portadora do CEBAS – Certificado
de Entidade Beneficente, que substituiu o Certificado de Entidade Filantrópica de Entidade Beneficente, que substituiu o Certificado de Entidade Filantrópica
e Assistência Social – CEAS, fornecido pelo Conselho Nacional de Assistência e Assistência Social – CEAS, fornecido pelo Conselho Nacional de Assistência
Social – CNAS. Social – CNAS.
A legislação que regulamenta o funcionamento das entidades beneficentes, A legislação que regulamenta o funcionamento das entidades beneficentes,
exigindo delas o cumprimento de suas finalidades nos quantitativos estabelecidos exigindo delas o cumprimento de suas finalidades nos quantitativos estabelecidos
em leis e resoluções, a exemplo da Resolução 177/2000 do Conselho Nacional em leis e resoluções, a exemplo da Resolução 177/2000 do Conselho Nacional
de Assistência Social – CNAS são compatíveis com a Constituição, não tendo de Assistência Social – CNAS são compatíveis com a Constituição, não tendo
natureza tributária. natureza tributária.
Desta forma, só merecem o abrigo e garantia da imunidade aquelas entidades Desta forma, só merecem o abrigo e garantia da imunidade aquelas entidades
que, principalmente, cumpram a finalidade da política nacional de assistência que, principalmente, cumpram a finalidade da política nacional de assistência
social, reinvestindo seus ingressos de receitas – pois elas não geram lucros, mas social, reinvestindo seus ingressos de receitas – pois elas não geram lucros, mas
excedentes denominados como ingressos, na atividade principal e suas finalidades excedentes denominados como ingressos, na atividade principal e suas finalidades
legais e estatutárias: prestação de serviços gratuitos de assistência social, de forma legais e estatutárias: prestação de serviços gratuitos de assistência social, de forma
parcial e total para o público carente, assim qualificados objetivamente em con- parcial e total para o público carente, assim qualificados objetivamente em con-
formidade com a lei e não com o arbítrio dos dirigentes que quando os concede, formidade com a lei e não com o arbítrio dos dirigentes que quando os concede,
o faz a poucos e que não são pessoas carentes como exige a lei.5 o faz a poucos e que não são pessoas carentes como exige a lei.5

5. Cunha, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Nova Fronteira. 5. Cunha, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Nova Fronteira.
310 José Rosa 310 José Rosa

Entende Rogério Tobias de Carvalho, que a assistência social engloba, na Entende Rogério Tobias de Carvalho, que a assistência social engloba, na
proteção à criança em situação de risco, de pobreza extrema, entre diversas ações, proteção à criança em situação de risco, de pobreza extrema, entre diversas ações,
a de integração ao sistema educacional, ou melhor, ao acesso à educação como a de integração ao sistema educacional, ou melhor, ao acesso à educação como
prestação de assistência social (p. 126). prestação de assistência social (p. 126).

4. O SUAS – SISTEMA UNIFICADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. 4. O SUAS – SISTEMA UNIFICADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL.
A POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL – PNASS imple- A POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL – PNASS imple-
mentou a POLÍTICA PÚBLICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, criando o SUAS mentou a POLÍTICA PÚBLICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, criando o SUAS
– Sistema Unificado de Assistência Social, em obediência ao disposto nos artigos – Sistema Unificado de Assistência Social, em obediência ao disposto nos artigos
203 e 204 da Carta Magna. 203 e 204 da Carta Magna.
No ano de 1993 a Lei 8.742, LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social No ano de 1993 a Lei 8.742, LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social
passou a dispor sobre a organização da assistência social, seguida pela Lei nº passou a dispor sobre a organização da assistência social, seguida pela Lei nº
8.908/94, que regulamenta a prestação de serviços por entidades de assistência 8.908/94, que regulamenta a prestação de serviços por entidades de assistência
social, entidades beneficentes de assistência social e entidades de fins filantrópicos, social, entidades beneficentes de assistência social e entidades de fins filantrópicos,
regulamentando os procedimentos e prazos para registro e obtenção de certidão regulamentando os procedimentos e prazos para registro e obtenção de certidão
junto ao Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS. junto ao Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS.
O artigo 1º da LOAS, garante: “a assistência social, direito do cidadão e O artigo 1º da LOAS, garante: “a assistência social, direito do cidadão e
dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os
mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de iniciativa pública mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de iniciativa pública
e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”. e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”.
O SUAS – Sistema Unificado de Assistência Social, deve prestar assistência O SUAS – Sistema Unificado de Assistência Social, deve prestar assistência
social a quem dela necessitar independente de contribuições à seguridade social social a quem dela necessitar independente de contribuições à seguridade social
(caput do art 203 da CF) e tem, dentre outros objetivos, a proteção à criança, à (caput do art 203 da CF) e tem, dentre outros objetivos, a proteção à criança, à
família, à adolescência, ao velho, às crianças e aos adolescentes carentes – incisos família, à adolescência, ao velho, às crianças e aos adolescentes carentes – incisos
I e II do mesmo artigo 203 da Carta Magna. Os prestadores de ações de assistência I e II do mesmo artigo 203 da Carta Magna. Os prestadores de ações de assistência
social do SUAS são os Estados, os Municípios e as entidades beneficentes e de social do SUAS são os Estados, os Municípios e as entidades beneficentes e de
assistência social. assistência social.
A prestação de Assistência social a partir da nova Ordem Jurídica, com a A prestação de Assistência social a partir da nova Ordem Jurídica, com a
Constituição Cidadã, não deve ter nenhum conteúdo humilhante de voluntária Constituição Cidadã, não deve ter nenhum conteúdo humilhante de voluntária
ajuda caridosa, facultativa, constrangedora à pessoa que está em situação social ajuda caridosa, facultativa, constrangedora à pessoa que está em situação social
de risco, tal como a indigência, a pobreza, situação das pessoas que moram nas de risco, tal como a indigência, a pobreza, situação das pessoas que moram nas
ruas, ou outras situações. ruas, ou outras situações.
A implementação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, conforme A implementação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, conforme
a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, busca efetivar a assistência social a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, busca efetivar a assistência social
como política pública de Estado, definida em Lei. como política pública de Estado, definida em Lei.
Não mais é admissível entendê-la como clientelismo, assistencialismo, Não mais é admissível entendê-la como clientelismo, assistencialismo,
caridade ou ações pontuais, que nada têm a ver com políticas públicas e com o caridade ou ações pontuais, que nada têm a ver com políticas públicas e com o
compromisso do Estado com a sociedade. compromisso do Estado com a sociedade.
A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 311 A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 311

A Política Nacional de Assistência Social implementada pelo Estado busca A Política Nacional de Assistência Social implementada pelo Estado busca
materializar a Assistência Social como “um pilar do Sistema de Proteção Social materializar a Assistência Social como “um pilar do Sistema de Proteção Social
Brasileiro no âmbito da Seguridade Social”.6 Brasileiro no âmbito da Seguridade Social”.6
O custeio das ações do SUAS é feito com recursos governamentais da se- O custeio das ações do SUAS é feito com recursos governamentais da se-
guridade social, previstos no art. 195 da CF, além de outras fontes, tais como os guridade social, previstos no art. 195 da CF, além de outras fontes, tais como os
recursos capitalizados pelas entidades beneficentes filantrópicas, equivalentes às recursos capitalizados pelas entidades beneficentes filantrópicas, equivalentes às
imunidades tributárias concedidas pelas esferas do poder público federal, muni- imunidades tributárias concedidas pelas esferas do poder público federal, muni-
cipal e estadual. cipal e estadual.
As ações têm por base as diretrizes da descentralização político-administrativa, As ações têm por base as diretrizes da descentralização político-administrativa,
cabendo “a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e cabendo “a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e
execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a
entidades beneficentes e de assistência social” – art. 204, I da CF/88. Também no entidades beneficentes e de assistência social” – art. 204, I da CF/88. Também no
inciso II do mesmo artigo 204, está garantida a participação popular na formulação inciso II do mesmo artigo 204, está garantida a participação popular na formulação
das políticas e no controle das ações em todos os níveis. das políticas e no controle das ações em todos os níveis.
Então, a execução dos programas e serviços de assistência social está a cargo Então, a execução dos programas e serviços de assistência social está a cargo
das esferas públicas municipal e estadual, “bem como das entidades beneficentes das esferas públicas municipal e estadual, “bem como das entidades beneficentes
e de assistência social”, como está gravado no texto constitucional (inc. I do art. e de assistência social”, como está gravado no texto constitucional (inc. I do art.
204 CF). 204 CF).
A co-responsabilidade da entidades beneficentes na sua parceria com o Estado A co-responsabilidade da entidades beneficentes na sua parceria com o Estado
é inquestionável, tendo em vista que a adesão das entidades privadas à Política de é inquestionável, tendo em vista que a adesão das entidades privadas à Política de
Assistência Social é voluntária e o volume de dinheiro carreado para as mesmas, Assistência Social é voluntária e o volume de dinheiro carreado para as mesmas,
direta ou indiretamente (via imunidades ou isenções tributárias) ascendem a vá- direta ou indiretamente (via imunidades ou isenções tributárias) ascendem a vá-
rios bilhões de reais anualmente, segundo informações da Secretaria do Tesouro rios bilhões de reais anualmente, segundo informações da Secretaria do Tesouro
Nacional, registradas na Resolução CNAS 145/2004. Nacional, registradas na Resolução CNAS 145/2004.
A política de assistência social, é portanto reconhecida como direito do ci- A política de assistência social, é portanto reconhecida como direito do ci-
dadão e responsabilidade do Estado, que deve ser universalizada como das mais dadão e responsabilidade do Estado, que deve ser universalizada como das mais
importantes formas de reduzir a pobreza no Brasil. importantes formas de reduzir a pobreza no Brasil.
“O Brasil apresenta um dos maiores índices de desigualdade do mundo, quais- “O Brasil apresenta um dos maiores índices de desigualdade do mundo, quais-
quer que sejam as medidas utilizadas. Segundo Instituto de Pesquisas Aplicadas quer que sejam as medidas utilizadas. Segundo Instituto de Pesquisas Aplicadas
– IPEA, em 2002, os 50% mais pobres detinham 14,4% do rendimento e o 1% mais – IPEA, em 2002, os 50% mais pobres detinham 14,4% do rendimento e o 1% mais
ricos, 13,5% do rendimento.... esse modelo de desigualdade do país ganha expres- ricos, 13,5% do rendimento.... esse modelo de desigualdade do país ganha expres-
são concreta no cotidiano das cidades, cujos territórios internos (bairros, distritos, são concreta no cotidiano das cidades, cujos territórios internos (bairros, distritos,
áreas censitárias ou de planejamento) tendem a apresentar condições de vida áreas censitárias ou de planejamento) tendem a apresentar condições de vida
também desiguais. .... ainda considerando as medidas de pobreza (renda per também desiguais. .... ainda considerando as medidas de pobreza (renda per
capita inferior a ½ salário mínimo) e indigência (renda per capita inferior a ¼ capita inferior a ½ salário mínimo) e indigência (renda per capita inferior a ¼
do salário mínimo) pelo conjunto dos municípios brasileiros, já é possível ob- do salário mínimo) pelo conjunto dos municípios brasileiros, já é possível ob-
servar as diferenças de concentração da renda entre os municípios, o que supõe a servar as diferenças de concentração da renda entre os municípios, o que supõe a

6. Apresentação. Capítulo 6. Anexo à Resolução CNAS 145” de 15/10/2004 – DOU de 28/ 6. Apresentação. Capítulo 6. Anexo à Resolução CNAS 145” de 15/10/2004 – DOU de 28/
10/2004. 10/2004.
312 José Rosa 312 José Rosa

necessidade de conjugar os indicadores de renda a outros relativos às condições necessidade de conjugar os indicadores de renda a outros relativos às condições
de vida de cada localidade.7 de vida de cada localidade.7

Ademais, recebem valores monetários equivalentes, no mínimo iguais aos Ademais, recebem valores monetários equivalentes, no mínimo iguais aos
valores das imunidades tributárias, o que vincula os objetivos da entidade à valores das imunidades tributárias, o que vincula os objetivos da entidade à
prestação de serviços gratuitos assistenciais, muitas vezes paralelamente às suas prestação de serviços gratuitos assistenciais, muitas vezes paralelamente às suas
atividades não gratuitas, comerciais, industriais ou de serviços que são executados atividades não gratuitas, comerciais, industriais ou de serviços que são executados
para cumprir a finalidade principal, sua atividade fim que é a prestação de serviço para cumprir a finalidade principal, sua atividade fim que é a prestação de serviço
de assistência social gratuitos. de assistência social gratuitos.
Conforme a Secretaria do Tesouro Nacional8, o valor das imunidades apenas Conforme a Secretaria do Tesouro Nacional8, o valor das imunidades apenas
com o INSS, no ano de 2003 segundo dados da Receita Federal e Previdência com o INSS, no ano de 2003 segundo dados da Receita Federal e Previdência
Social, foi de R$2,4 bilhões, que correspondem às isenções anuais concedidas Social, foi de R$2,4 bilhões, que correspondem às isenções anuais concedidas
pelo INSS – Instituto Nacional do Seguro Social relativas ao pagamento da cota pelo INSS – Instituto Nacional do Seguro Social relativas ao pagamento da cota
patronal dos encargos sociais devidos a esse órgão e oportunizadas em razão da patronal dos encargos sociais devidos a esse órgão e oportunizadas em razão da
certificação com o CEAS – Certificado de Entidade Beneficente de Assistência certificação com o CEAS – Certificado de Entidade Beneficente de Assistência
Social, destas, 51% são escolas. Social, destas, 51% são escolas.
Conforme a mesma fonte, a União Federal, Estados e Municípios gastaram Conforme a mesma fonte, a União Federal, Estados e Municípios gastaram
em 2003, R$ 12,3 bilhões de recursos públicos com Assistência Social, direta- em 2003, R$ 12,3 bilhões de recursos públicos com Assistência Social, direta-
mente, através de programas gerenciados e executados pelo próprio Estado, ou mente, através de programas gerenciados e executados pelo próprio Estado, ou
por transferências para entidades privadas de assistência social de saúde, educação por transferências para entidades privadas de assistência social de saúde, educação
e outros serviços. e outros serviços.

5. OBRIGAÇÕES DAS ESCOLAS BENEFICENTES DE ASSISTÊNCIA 5. OBRIGAÇÕES DAS ESCOLAS BENEFICENTES DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL DECORRENTES DA ADESÃO AO SUAS SOCIAL DECORRENTES DA ADESÃO AO SUAS
A Resolução CNAS 177/2000, com base no art. 18, incisos IV e VIII da A Resolução CNAS 177/2000, com base no art. 18, incisos IV e VIII da
LOAS, regulamenta a concessão e renovação do Certificado de Entidades de LOAS, regulamenta a concessão e renovação do Certificado de Entidades de
Fins Filantrópicos. Fins Filantrópicos.
Tal Certificado somente é dado àquelas entidades privadas que aderem ao SUAS, Tal Certificado somente é dado àquelas entidades privadas que aderem ao SUAS,
como entidade beneficente de assistência social para prover assistência social, em como entidade beneficente de assistência social para prover assistência social, em
parceria com o Estado, conforme obrigações gravadas no art. 2º, 3º e seguintes. parceria com o Estado, conforme obrigações gravadas no art. 2º, 3º e seguintes.
No inciso IV do artigo 2º dessa Resolução, a norma prevê os serviços gratuitos No inciso IV do artigo 2º dessa Resolução, a norma prevê os serviços gratuitos
de “assistência educacional ou de saúde”. Ainda no mesmo artigo, nos incisos VI9 de “assistência educacional ou de saúde”. Ainda no mesmo artigo, nos incisos VI9
e VIII parágrafo 1º: e VIII parágrafo 1º:

7. Resolução CNAS 145/2004. capítulos 11/13: Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano, 2002 7. Resolução CNAS 145/2004. capítulos 11/13: Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano, 2002
8. Capítulo 19 da Resolução CNAS 145/2004: “Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional – STN – do 8. Capítulo 19 da Resolução CNAS 145/2004: “Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional – STN – do
Ministério da Fazenda (www.stn.fazenda.gov.br)”. Ministério da Fazenda (www.stn.fazenda.gov.br)”.
9. Resolução CNAS 177/2000. Art. 3º VI: “aplicar anualmente em gratuidade, pelo menos 20% 9. Resolução CNAS 177/2000. Art. 3º VI: “aplicar anualmente em gratuidade, pelo menos 20%
(vinte por cento) da receita bruta decorrente da venda de serviços, acrescida da receita decorrente (vinte por cento) da receita bruta decorrente da venda de serviços, acrescida da receita decorrente
de aplicações financeiras, ... cujo montante nunca será inferior à isenção de contribuições sociais de aplicações financeiras, ... cujo montante nunca será inferior à isenção de contribuições sociais
usufruídas”. usufruídas”.
A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 313 A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 313

“§ 1º A entidade que desenvolve atividade educacional deverá comprovar gratui- “§ 1º A entidade que desenvolve atividade educacional deverá comprovar gratui-
dade, a que se refere o inciso VI do art. 3º dessa Resolução, em gratuidade total, dade, a que se refere o inciso VI do art. 3º dessa Resolução, em gratuidade total,
parcial e projetos de assistência social de caráter permanente”. parcial e projetos de assistência social de caráter permanente”.
Os procedimentos para concessão do “Certificado de Entidade de Fins Filan- Os procedimentos para concessão do “Certificado de Entidade de Fins Filan-
trópicos” por parte do Conselho Nacional de Assistência Social são exaustivamente trópicos” por parte do Conselho Nacional de Assistência Social são exaustivamente
esclarecedores sobre as exigências da legislação assistencial. Essa dificuldade im- esclarecedores sobre as exigências da legislação assistencial. Essa dificuldade im-
pede que a entidade alegue o não conhecimento da Lei, haja vista que é repetitiva pede que a entidade alegue o não conhecimento da Lei, haja vista que é repetitiva
a exigência de concessão de gratuidade para os alunos carentes. a exigência de concessão de gratuidade para os alunos carentes.
Acresce-se que no anexo VI da Resolução 177/2000, ao qual a entidade é Acresce-se que no anexo VI da Resolução 177/2000, ao qual a entidade é
obrigada a preencher para obter o Certificado, está o rol de cursos que devem ser obrigada a preencher para obter o Certificado, está o rol de cursos que devem ser
prestados pela entidade filantrópica: todos cursos regulares conforme, portanto, prestados pela entidade filantrópica: todos cursos regulares conforme, portanto,
a LDBE. a LDBE.
Entretanto, em contrapartida às gratuidades a que é obrigada prover para caren- Entretanto, em contrapartida às gratuidades a que é obrigada prover para caren-
tes em seus cursos regulares, a entidade recebe imunidades tributárias. Tais imuni- tes em seus cursos regulares, a entidade recebe imunidades tributárias. Tais imuni-
dades equivalem a recurso público recebido, em função do não recolhimento dos dades equivalem a recurso público recebido, em função do não recolhimento dos
impostos. impostos.
A jurisprudência do STF reconhece que a contrapartida com o exercício da A jurisprudência do STF reconhece que a contrapartida com o exercício da
atividade fim de assistência social é condição para seu reconhecimento como atividade fim de assistência social é condição para seu reconhecimento como
entidade beneficente e, por isso, gozar das imunidades do art. 150 da CF/88 e do entidade beneficente e, por isso, gozar das imunidades do art. 150 da CF/88 e do
art. 14 do CTN: art. 14 do CTN:
“Ementa: Mandado de Segurança – Contribuição Previdenciária – Quota Patronal “Ementa: Mandado de Segurança – Contribuição Previdenciária – Quota Patronal
– Entidade de Fins Assistenciais, Filantrópicos e Educacionais – Imunidade (CF, – Entidade de Fins Assistenciais, Filantrópicos e Educacionais – Imunidade (CF,
art. 195 § 7º) – Recurso Conhecido e Provido. art. 195 § 7º) – Recurso Conhecido e Provido.
– A Associação Paulista da Igreja Adventista do Sétimo Dia, por qualificar-se – A Associação Paulista da Igreja Adventista do Sétimo Dia, por qualificar-se
como entidade beneficente de assistência social – e por também atender, de modo como entidade beneficente de assistência social – e por também atender, de modo
integral, às exigências estabelecidas em lei – tem direito irrecusável ao benefício integral, às exigências estabelecidas em lei – tem direito irrecusável ao benefício
extraordinário da imunidade subjetiva relativa às contribuições pertinentes à se- extraordinário da imunidade subjetiva relativa às contribuições pertinentes à se-
guridade social guridade social
– A cláusula inscrita no art. 195 § 7º da Carta Política – não obstante referir-se – A cláusula inscrita no art. 195 § 7º da Carta Política – não obstante referir-se
impropriamente à isenção de contribuição para a seguridade social –, contemplou as impropriamente à isenção de contribuição para a seguridade social –, contemplou as
entidades beneficentes de assistência social com o favor constitucional da imunidade entidades beneficentes de assistência social com o favor constitucional da imunidade
tributária, desde que por elas preenchidos os requisitos fixados em lei. ..... tributária, desde que por elas preenchidos os requisitos fixados em lei. .....
Precedente: RTJ 137/965 Precedente: RTJ 137/965
– Tratando-se de imunidade – que decorre, em função de sua natureza mesma, – Tratando-se de imunidade – que decorre, em função de sua natureza mesma,
do próprio texto constitucional –, revela-se evidente a absoluta impossibilidade do próprio texto constitucional –, revela-se evidente a absoluta impossibilidade
jurídica de a autoridade executiva, mediante deliberação de índole administra- jurídica de a autoridade executiva, mediante deliberação de índole administra-
tiva, restringir a eficácia do preceito inscrito no art. 195 § 7º, da Carta Política, tiva, restringir a eficácia do preceito inscrito no art. 195 § 7º, da Carta Política,
para, em função da exegese que claramente distorce a teleologia da prerrogativa para, em função da exegese que claramente distorce a teleologia da prerrogativa
fundamental em referência, negar, à entidade beneficente de assistência social que fundamental em referência, negar, à entidade beneficente de assistência social que
satisfaz os requisitos da lei, o benefício que lhe é assegurado no mais elevado plano satisfaz os requisitos da lei, o benefício que lhe é assegurado no mais elevado plano
normativo” (RE em MS nº 22.192-9-DF – STF 1ª T – DJ de 19.12.96). normativo” (RE em MS nº 22.192-9-DF – STF 1ª T – DJ de 19.12.96).
314 José Rosa 314 José Rosa

6. SUJEITOS ATIVOS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL EDUCACIONAL E 6. SUJEITOS ATIVOS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL EDUCACIONAL E
SEUS DIREITOS SEUS DIREITOS
a) A educação é Direito Fundamental indisponível, assegurado igualmente a) A educação é Direito Fundamental indisponível, assegurado igualmente
a todos, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu exercício. a todos, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu exercício.
Está indissociavelmente ligado à garantia de uma vida digna. Está indissociavelmente ligado à garantia de uma vida digna.
Deve ser disponível, acessível, qualitativamente compatível com a realidade Deve ser disponível, acessível, qualitativamente compatível com a realidade
contemporânea, desta forma viabilizando equalizar as oportunidades de desen- contemporânea, desta forma viabilizando equalizar as oportunidades de desen-
volvimento de todo cidadão para o trabalho e inserção social. volvimento de todo cidadão para o trabalho e inserção social.

Não deve ser um fator de produção de uma sociedade estamental, com pessoas Não deve ser um fator de produção de uma sociedade estamental, com pessoas
educadas de forma eficiente e digna, porque podem pagar, conseguindo desta forma educadas de forma eficiente e digna, porque podem pagar, conseguindo desta forma
uma vida digna e inserido socialmente; e, formando por outro lado, o estamento de uma vida digna e inserido socialmente; e, formando por outro lado, o estamento de
pessoas com educação tecnicamente hipossuficiente ou sem nenhuma educação10. pessoas com educação tecnicamente hipossuficiente ou sem nenhuma educação10.
A educação, portanto, é requisito indispensável para formar o homem, integrando A educação, portanto, é requisito indispensável para formar o homem, integrando
a pessoa e habilitando-a à vida social digna. a pessoa e habilitando-a à vida social digna.

A divisão da educação em escolas públicas precárias, e até insuficientes, de A divisão da educação em escolas públicas precárias, e até insuficientes, de
um lado, como única disponível para os pobres; por outro lado, educação em um lado, como única disponível para os pobres; por outro lado, educação em
escolas modernas, eficientes que provê uma educação digna apenas para quem escolas modernas, eficientes que provê uma educação digna apenas para quem
pode comprar tais serviços, está a construir, manter e ampliar a sociedade desi- pode comprar tais serviços, está a construir, manter e ampliar a sociedade desi-
gual que temos no Brasil. Manter este estado de coisas é descumprir preceitos gual que temos no Brasil. Manter este estado de coisas é descumprir preceitos
fundamentais contidos nos artigos 203/214 da CF/88 e, também, no caput do art. fundamentais contidos nos artigos 203/214 da CF/88 e, também, no caput do art.
5º : direito à vida e à igualdade. 5º : direito à vida e à igualdade.

Tal assertiva é fundamentada em que o direito à vida gravado no caput do art. Tal assertiva é fundamentada em que o direito à vida gravado no caput do art.
5º não é apenas a vida biológica, como tem uma pessoa excluída das oportunidades 5º não é apenas a vida biológica, como tem uma pessoa excluída das oportunidades
no convívio social. A vida deve ser com preservação da dignidade humana, com no convívio social. A vida deve ser com preservação da dignidade humana, com
acesso aos bens mínimos e aos frutos da civilização e da cultura. Igualmente o acesso aos bens mínimos e aos frutos da civilização e da cultura. Igualmente o
descumprimento ao preceito fundamental da Igualdade, relativo ao direito igual descumprimento ao preceito fundamental da Igualdade, relativo ao direito igual
à educação digna, coibindo a apartheid educacional existente no país. O direito à educação digna, coibindo a apartheid educacional existente no país. O direito
a dispor de educação digna e eficiente está esparso na própria CF/88, nos Trata- a dispor de educação digna e eficiente está esparso na própria CF/88, nos Trata-
dos Internacionais dos quais o Brasil é signatário e na legislação de Assistência dos Internacionais dos quais o Brasil é signatário e na legislação de Assistência
Social, de proteção à criança e, principalmente na legislação educacional, no art. Social, de proteção à criança e, principalmente na legislação educacional, no art.
5º da 9.394/96: 5º da 9.394/96:
“Art. 5º O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo “Art. 5º O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo
qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical,

10. Os dados do Censo 2000, contidos no Relatório da Resolução CNAS 145/2004 dão conta que 6% 10. Os dados do Censo 2000, contidos no Relatório da Resolução CNAS 145/2004 dão conta que 6%
das crianças pobres no Brasil estão fora da escola. Nas famílias pobres ou abaixo da linha da pobreza, das crianças pobres no Brasil estão fora da escola. Nas famílias pobres ou abaixo da linha da pobreza,
na indigência, a média de freqüência à escolar a é de 3,4 anos para as pessoas até vinte e cinco na indigência, a média de freqüência à escolar a é de 3,4 anos para as pessoas até vinte e cinco
anos de idade. anos de idade.
A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 315 A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 315

entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público,
acionar o Poder Público para exigi-lo”. acionar o Poder Público para exigi-lo”.

Na Convenção sobre os Direitos da Criança, da qual o Brasil é signatário, Na Convenção sobre os Direitos da Criança, da qual o Brasil é signatário,
positivada no ordenamento através do Decreto 99.710/90, o art. 28 normatiza que positivada no ordenamento através do Decreto 99.710/90, o art. 28 normatiza que
o ensino deve ser disponível, acessível, obrigatório, moderno e compatível com a o ensino deve ser disponível, acessível, obrigatório, moderno e compatível com a
dignidade humana, sendo obrigação do Estado. dignidade humana, sendo obrigação do Estado.
O direito à assistência social tipo educação está expressamente garantido na O direito à assistência social tipo educação está expressamente garantido na
legislação de assistência social. Na Resolução CNAS 177/2000, inciso IV do art. legislação de assistência social. Na Resolução CNAS 177/2000, inciso IV do art.
2º, a norma prevê os serviços gratuitos de “assistência educacional ou de saúde”; 2º, a norma prevê os serviços gratuitos de “assistência educacional ou de saúde”;
também no art. 3º incisos VI11 e VIII: também no art. 3º incisos VI11 e VIII:
“§ 1º A entidade que desenvolve atividade educacional deverá comprovar gratui- “§ 1º A entidade que desenvolve atividade educacional deverá comprovar gratui-
dade, a que se refere o inciso VI, artigo 3 dessa Resolução, em gratuidade total, dade, a que se refere o inciso VI, artigo 3 dessa Resolução, em gratuidade total,
parcial e projetos de assistência social de caráter permanente;”. parcial e projetos de assistência social de caráter permanente;”.

Pelo exposto, percebemos que os Objetivos Constitucionais gravam a educação Pelo exposto, percebemos que os Objetivos Constitucionais gravam a educação
como encargo que é: Responsabilidade do Estado; Indissociável do direito à vida como encargo que é: Responsabilidade do Estado; Indissociável do direito à vida
digna; Indisponível; deve ter acesso Igualitário; deve ser prestado, também, por digna; Indisponível; deve ter acesso Igualitário; deve ser prestado, também, por
Instituição de prestação de serviço educacional como Assistência Social, através Instituição de prestação de serviço educacional como Assistência Social, através
do SUAS; do SUAS;
b) Sabendo da condição de direito subjetivo em sede constitucional que é b) Sabendo da condição de direito subjetivo em sede constitucional que é
o direito à educação, garantido a todos, cumpre identificar quem é o sujeito de o direito à educação, garantido a todos, cumpre identificar quem é o sujeito de
direitos da assistência social, a pessoa carente. direitos da assistência social, a pessoa carente.
Está posto no Decreto nº 3.048/99, art 206, § 2º: Está posto no Decreto nº 3.048/99, art 206, § 2º:
“Considera-se pessoa carente a que comprove não possuir meios de prover a “Considera-se pessoa carente a que comprove não possuir meios de prover a
própria manutenção, nem tê-la provida por sua família, bem como ser destinatária própria manutenção, nem tê-la provida por sua família, bem como ser destinatária
da Política Nacional de Assistência Social, aprovada pelo Conselho Nacional de da Política Nacional de Assistência Social, aprovada pelo Conselho Nacional de
Assistência Social.” Assistência Social.”

Bem, é Razoável que seja considerado pessoa carente, destinatária da Política Bem, é Razoável que seja considerado pessoa carente, destinatária da Política
Nacional de Assistência Social educativa, aquela que não tem condições para pro- Nacional de Assistência Social educativa, aquela que não tem condições para pro-
ver as condições mínimas de satisfação das necessidades de moradia, alimentação, ver as condições mínimas de satisfação das necessidades de moradia, alimentação,
educação, em suas realidades concretas de vida, fazendo a interpretação da norma educação, em suas realidades concretas de vida, fazendo a interpretação da norma
não de forma abstrata à luz da regra isolada. Porém, conforme o direcionamento não de forma abstrata à luz da regra isolada. Porém, conforme o direcionamento
dos Princípios Fundamentais da Constituição Federal e a realidade circunstancial dos Princípios Fundamentais da Constituição Federal e a realidade circunstancial
da análise sobre se o sujeito é carente ou não. da análise sobre se o sujeito é carente ou não.

11. Resolução CNAS 177/2000. Art. 3º VI: “aplicar anualmente em gratuidade, pelo menos 20% 11. Resolução CNAS 177/2000. Art. 3º VI: “aplicar anualmente em gratuidade, pelo menos 20%
(vinte por cento)da receita bruta decorrente da venda de serviços, acrescida da receita decorrente (vinte por cento)da receita bruta decorrente da venda de serviços, acrescida da receita decorrente
de aplicações financeiras, ... cujo montante nunca será inferior à isenção de contribuições sociais de aplicações financeiras, ... cujo montante nunca será inferior à isenção de contribuições sociais
usufruídas”. usufruídas”.
316 José Rosa 316 José Rosa

7. ESCOLAS PRIVADAS BENEFICENTES E A LEI Nº 8.742/93 – DIREI- 7. ESCOLAS PRIVADAS BENEFICENTES E A LEI Nº 8.742/93 – DIREI-
TOS E OBRIGAÇÕES TOS E OBRIGAÇÕES
Quando se cadastram para obter o Certificado de Entidade de Fins Filan- Quando se cadastram para obter o Certificado de Entidade de Fins Filan-
trópicos”, no Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS12, sabem que trópicos”, no Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS12, sabem que
irão se beneficiar das imunidades tributárias do art.150 § 4º da CF/88 frente ao irão se beneficiar das imunidades tributárias do art.150 § 4º da CF/88 frente ao
poder público nas esferas municipal, estadual e federal. Porém a contrapartida é poder público nas esferas municipal, estadual e federal. Porém a contrapartida é
a prestação do serviço assistencial conforme o PNAS e LOAS, cujas condições a prestação do serviço assistencial conforme o PNAS e LOAS, cujas condições
declaram pleno conhecimento. declaram pleno conhecimento.
A adesão voluntária da escola privada à atividade de assistência social como A adesão voluntária da escola privada à atividade de assistência social como
entidade beneficente tipo escola de cursos formais a deixa obrigada a prestar entidade beneficente tipo escola de cursos formais a deixa obrigada a prestar
serviço de e­ ducação formal em conformidade com as normas da Lei nº 9.394/96 serviço de e­ ducação formal em conformidade com as normas da Lei nº 9.394/96
– LDBE e da Lei 8.742/93 – LOAS, bem como aos princípios da administração – LDBE e da Lei 8.742/93 – LOAS, bem como aos princípios da administração
pública pertinentes, com destaque para os da Finalidade e Publicidade. pública pertinentes, com destaque para os da Finalidade e Publicidade.
O fundamento para continuar obtendo as imunidades tributárias conforme o O fundamento para continuar obtendo as imunidades tributárias conforme o
art. 150 da CF, combinado com os arts. 9 e 14 do Código Tributário Nacional, é art. 150 da CF, combinado com os arts. 9 e 14 do Código Tributário Nacional, é
que estejam prestando no Brasil os serviços gratuitos de educação de acordo com que estejam prestando no Brasil os serviços gratuitos de educação de acordo com
a política de assistência social para carentes. a política de assistência social para carentes.
Também a mesma exigência de que estejam prestando o serviço de assistência Também a mesma exigência de que estejam prestando o serviço de assistência
social de forma gratuita está na Resolução CNAS 177/2000, artigos 1º e 2º, mais social de forma gratuita está na Resolução CNAS 177/2000, artigos 1º e 2º, mais
as normas do inciso VI e § 1º “d”, inc VIII do art. 3º. as normas do inciso VI e § 1º “d”, inc VIII do art. 3º.
O direito à educação é direito subjetivo, ao qual se obrigam prover à criança O direito à educação é direito subjetivo, ao qual se obrigam prover à criança
carente, no momento em que, voluntariamente, a entidade beneficente-escola carente, no momento em que, voluntariamente, a entidade beneficente-escola
se vincula ao poder público na categoria de Escola Formal como entidade de se vincula ao poder público na categoria de Escola Formal como entidade de
assistência social. assistência social.
Se a entidade beneficente não cumpre mais sua função filantrópica, porém Se a entidade beneficente não cumpre mais sua função filantrópica, porém
continua gozando de imunidade tributária, está se desviando da sua obrigação. continua gozando de imunidade tributária, está se desviando da sua obrigação.

8. CONCLUSÃO 8. CONCLUSÃO
Percebe-se a importância da proteção e implementação da política nacional Percebe-se a importância da proteção e implementação da política nacional
de assistência social voltada para a educação, como dos meios mais eficazes na de assistência social voltada para a educação, como dos meios mais eficazes na
promoção do desenvolvimento social e econômico, de forma sustentável. promoção do desenvolvimento social e econômico, de forma sustentável.
Ademais, o ensino fundamental deve ter o acesso garantido, com qualidade Ademais, o ensino fundamental deve ter o acesso garantido, com qualidade
e eficiência para possibilitar o desenvolvimento da pessoa, ainda criança, no caso e eficiência para possibilitar o desenvolvimento da pessoa, ainda criança, no caso

12. Silva, Indira Ernesto. Parecer, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 41/98, pg. 135 e ss: “As 12. Silva, Indira Ernesto. Parecer, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 41/98, pg. 135 e ss: “As
entidades beneficentes de assistência social são contempladas com duas imunidades (a impostos entidades beneficentes de assistência social são contempladas com duas imunidades (a impostos
e a contribuição à seguridade social, chamada “cota patronal”); as instituições de educação foram e a contribuição à seguridade social, chamada “cota patronal”); as instituições de educação foram
contempladas apenas com a imunidade a impostos. contempladas apenas com a imunidade a impostos.
A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 317 A assistência social tipo educação formal. Obrigações do Estado e das associações… 317

em estudo, sendo defendido pela Dra. Mônica Sifuentes, como um direito público em estudo, sendo defendido pela Dra. Mônica Sifuentes, como um direito público
subjetivo, com sede constitucional, devendo ter sua efetividade garantida pelo subjetivo, com sede constitucional, devendo ter sua efetividade garantida pelo
Poder judiciário, quando provocado, garantindo assim, a efetividade da Consti- Poder judiciário, quando provocado, garantindo assim, a efetividade da Consti-
tuição. Essa tese é defendia na obra “O acesso ao ensino fundamental no Brasil: tuição. Essa tese é defendia na obra “O acesso ao ensino fundamental no Brasil:
um direito ao desenvolvimento”. Para a ilustre humanista e jurista, Juíza Federal um direito ao desenvolvimento”. Para a ilustre humanista e jurista, Juíza Federal
no DF, o ensino fundamental é serviço público essencial, que deve ser garantido no DF, o ensino fundamental é serviço público essencial, que deve ser garantido
a todos, com qualidade, conforme a LDBE, em respeito à garantia de igualdade a todos, com qualidade, conforme a LDBE, em respeito à garantia de igualdade
de oportunidades pertinentes à educação regular. de oportunidades pertinentes à educação regular.
Produzem melhores e de mais sólidos resultados que as políticas emergenciais Produzem melhores e de mais sólidos resultados que as políticas emergenciais
de apenas fornecer alimentos para as pessoas em estado de risco social pela pobreza de apenas fornecer alimentos para as pessoas em estado de risco social pela pobreza
extrema, um segmento do público alvo da assistência social que, simultaneamente, extrema, um segmento do público alvo da assistência social que, simultaneamente,
deve continuar sendo assistido. deve continuar sendo assistido.
Considerando a importância social e econômica da específica assistência Considerando a importância social e econômica da específica assistência
educacional; pelas inúmeras denúncias públicas e notórias de inadimplemento educacional; pelas inúmeras denúncias públicas e notórias de inadimplemento
das obrigações legais por parte das entidades beneficentes de assistência; pelos das obrigações legais por parte das entidades beneficentes de assistência; pelos
vultosos recursos públicos que ultrapassam o valor de 2,4 bilhões de reais apenas vultosos recursos públicos que ultrapassam o valor de 2,4 bilhões de reais apenas
com as imunidades das cotas patronais com o INSS, em 2003, desfrutados pe- com as imunidades das cotas patronais com o INSS, em 2003, desfrutados pe-
los colégios filantrópicos no Brasil, segundo a Secretaria do Tesouro Nacional; los colégios filantrópicos no Brasil, segundo a Secretaria do Tesouro Nacional;
considerando que o público carente que seria beneficiado pelas gratuidades em considerando que o público carente que seria beneficiado pelas gratuidades em
excelentes escolas beneficentes remuneradas regiamente pelo Estado, percebemos excelentes escolas beneficentes remuneradas regiamente pelo Estado, percebemos
que urge aprimorar a efetivação das políticas públicas voltadas para uma real que urge aprimorar a efetivação das políticas públicas voltadas para uma real
promoção da dignidade humana. promoção da dignidade humana.
Necessário se faz aperfeiçoar a fiscalização das atividades e não apenas pro- Necessário se faz aperfeiçoar a fiscalização das atividades e não apenas pro-
mover fiscalizações formais, contábeis, muitas vezes fraudadas. mover fiscalizações formais, contábeis, muitas vezes fraudadas.
O recurso ao Poder Judiciário, consiste no melhor instrumento de defesa de O recurso ao Poder Judiciário, consiste no melhor instrumento de defesa de
direitos do cidadão, no entanto, ainda é desconhecido pela população que seria direitos do cidadão, no entanto, ainda é desconhecido pela população que seria
usuária do direito subjetivo à assistência social educacional demandante. usuária do direito subjetivo à assistência social educacional demandante.
Sem dúvida, é um excelente campo para o Ministério Público, que está Sem dúvida, é um excelente campo para o Ministério Público, que está
omisso totalmente na questão em análise; para os cidadãos e servidores públicos omisso totalmente na questão em análise; para os cidadãos e servidores públicos
esclarecidos atuarem contra esses desvios de finalidade com o dinheiro público, esclarecidos atuarem contra esses desvios de finalidade com o dinheiro público,
ao tomarem conhecimento de inadimplemento das obrigações das entidades filan- ao tomarem conhecimento de inadimplemento das obrigações das entidades filan-
trópicas. Essas inadimplências, em verdade são ofensivas aos direitos de milhares trópicas. Essas inadimplências, em verdade são ofensivas aos direitos de milhares
de crianças que poderiam estar dispondo de educação digna e eficiente como de crianças que poderiam estar dispondo de educação digna e eficiente como
determina o legislador constitucional e pelas quais o Estado paga, indiretamente, determina o legislador constitucional e pelas quais o Estado paga, indiretamente,
com as imunidades.. com as imunidades..
Ao final desta incursão no tema, seria providencial se o INSS e CNAS, com o Ao final desta incursão no tema, seria providencial se o INSS e CNAS, com o
poder que a lei lhes permite, obrigassem as entidades beneficentes sem fins lucra- poder que a lei lhes permite, obrigassem as entidades beneficentes sem fins lucra-
tivos e de assistência social cumprissem o art. 13 da Resolução CNAS 177/2000, tivos e de assistência social cumprissem o art. 13 da Resolução CNAS 177/2000,
expondo em placa visível ao público sua natureza de entidade beneficente e qual expondo em placa visível ao público sua natureza de entidade beneficente e qual
318 José Rosa 318 José Rosa

o tipo de serviço assistencial presta, imitando a louvável conduta legal e ética do o tipo de serviço assistencial presta, imitando a louvável conduta legal e ética do
Hospital Filantrópico e de Assistência Social, o Aristides Maltez, único hospital Hospital Filantrópico e de Assistência Social, o Aristides Maltez, único hospital
especializado no tratamento de câncer, que atende a população carente do Estado especializado no tratamento de câncer, que atende a população carente do Estado
da Bahia. da Bahia.

9. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 9. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


AQUINO, Felipe Igreja. Bajar de la cruz a los pobres. permanente caridade da Igreja AQUINO, Felipe Igreja. Bajar de la cruz a los pobres. permanente caridade da Igreja
– Parte II. Extraído do site: www.cleofas.com.br. – Parte II. Extraído do site: www.cleofas.com.br.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurí- ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurí-
dicos. 4ª ed., Malheiros Editores. São Paulo. SP dicos. 4ª ed., Malheiros Editores. São Paulo. SP
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 12ª ed., Ma- BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 12ª ed., Ma-
lheiros Editores. lheiros Editores.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional.
CARVALHO, Rogério Tobias de. Imunidade Tributária e Contribuições para a Seguridade CARVALHO, Rogério Tobias de. Imunidade Tributária e Contribuições para a Seguridade
Social. Ed.Renovar. RJ. 2006. Social. Ed.Renovar. RJ. 2006.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e
Crítica). 8ª ed. Malheiros Editores. São Paulo. SP. 2003. Crítica). 8ª ed. Malheiros Editores. São Paulo. SP. 2003.
MEDAUAR, Odete. Constituição Federal. Coletânea de Legislação Administrativa. Ed. MEDAUAR, Odete. Constituição Federal. Coletânea de Legislação Administrativa. Ed.
Revista dos Tribunais – RT. 5ª edição. 2005. Rio de Janeiro. RJ. Revista dos Tribunais – RT. 5ª edição. 2005. Rio de Janeiro. RJ.
MEDEIROS, Mônica Jacqueline Sifuentes Pacheco de. O Acesso ao ensino fundamental no MEDEIROS, Mônica Jacqueline Sifuentes Pacheco de. O Acesso ao ensino fundamental no
Brasil: um direito ao desenvolvimento. Rio de Janeiro. RJ. América Jurídica, 2001. Brasil: um direito ao desenvolvimento. Rio de Janeiro. RJ. América Jurídica, 2001.
MORAES, José Diniz de. A Função Social da Propriedade e a Constituição Federal de MORAES, José Diniz de. A Função Social da Propriedade e a Constituição Federal de
1988. Malheiros Editores. São Paulo. SP. 1999. 1988. Malheiros Editores. São Paulo. SP. 1999.
PEREIRA, Tânia da Silva. Estatuto da Criança e do Adolescente – Coletânea. Editora PEREIRA, Tânia da Silva. Estatuto da Criança e do Adolescente – Coletânea. Editora
Renovar. Rio de Janeiro. RJ. 1992. Renovar. Rio de Janeiro. RJ. 1992.
RIBEIRO, Renata Mesquita. “O Direito à Educação nos Tratados Internacionais de Direitos RIBEIRO, Renata Mesquita. “O Direito à Educação nos Tratados Internacionais de Direitos
Humanos”. Revista Jurídica da Seção Judiciária da Bahia. Salvador. Ba. Ano 4. nº Humanos”. Revista Jurídica da Seção Judiciária da Bahia. Salvador. Ba. Ano 4. nº
5. Setembro de 2005. 5. Setembro de 2005.
SILVA, Indira Ernesto. “Parecer”, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 41/98. SILVA, Indira Ernesto. “Parecer”, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 41/98.
Capítulo XXII Capítulo XXII
Interrogado delator Interrogado delator
– a constitucionalização da sua atividade – a constitucionalização da sua atividade
no processo penal por meio no processo penal por meio
do princípio da comunhão da prova do princípio da comunhão da prova

Misael Neto Bispo da França* Misael Neto Bispo da França*

Sumário • 1. Aspectos introdutórios – 2. Breves anotações sobre conceito de prova – 3. Natureza Sumário • 1. Aspectos introdutórios – 2. Breves anotações sobre conceito de prova – 3. Natureza
jurídica do interrogatório segundo o processo penal constitucional: meio de defesa – 4. Valor probante jurídica do interrogatório segundo o processo penal constitucional: meio de defesa – 4. Valor probante
do interrogatório e sua submissão ao princípio da comunhão da prova – um abrigo nos casos de co- do interrogatório e sua submissão ao princípio da comunhão da prova – um abrigo nos casos de co-
delinqüência – 5. Conclusão – 6. Referências bibliográficas. delinqüência – 5. Conclusão – 6. Referências bibliográficas.

“Irmãos, não falem mal uns dos outros. Quem fala contra o seu irmão ou “Irmãos, não falem mal uns dos outros. Quem fala contra o seu irmão ou
julga o seu irmão, fala contra a Lei e a julga. Quando você julga a Lei, julga o seu irmão, fala contra a Lei e a julga. Quando você julga a Lei,
não a está cumprindo, mas está se colocando como juiz. Há apenas um não a está cumprindo, mas está se colocando como juiz. Há apenas um
Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e destruir. Mas quem é você para Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e destruir. Mas quem é você para
julgar o seu próximo?”(Tg. 4, 11-12) julgar o seu próximo?”(Tg. 4, 11-12)

1. Aspectos introdutórios 1. Aspectos introdutórios


A moderna leitura do interrogatório do acusado, no processo penal, consen- A moderna leitura do interrogatório do acusado, no processo penal, consen-
tânea com o modelo garantista adotado por um sistema acusatório, é no sentido tânea com o modelo garantista adotado por um sistema acusatório, é no sentido
de ser ele um meio de defesa com valor probatório. Presta-se o interrogatório a de ser ele um meio de defesa com valor probatório. Presta-se o interrogatório a
permitir que o sujeito apresente suas declarações, quando indagado pelo juiz, pelo permitir que o sujeito apresente suas declarações, quando indagado pelo juiz, pelo
seu defensor e pela parte adversa, buscando escapar da imputação que lhe é feita. seu defensor e pela parte adversa, buscando escapar da imputação que lhe é feita.
A roupagem conferida àquele elemento da instrução pela Lei nº. 10.792, de 1º de A roupagem conferida àquele elemento da instrução pela Lei nº. 10.792, de 1º de
dezembro de 2003, garantindo ao interrogado o direito de, antes, entrevistar-se dezembro de 2003, garantindo ao interrogado o direito de, antes, entrevistar-se
com seu procurador (constituído ou nomeado), de ser questionado também pela com seu procurador (constituído ou nomeado), de ser questionado também pela
defesa, de pedir a realização de novo interrogatório e o direito de não ter o seu defesa, de pedir a realização de novo interrogatório e o direito de não ter o seu
silêncio interpretado em seu desfavor – interpretação que já havia sido afastada, silêncio interpretado em seu desfavor – interpretação que já havia sido afastada,
desde a revogação do artigo 186 do Código de Processo Penal pela Constituição desde a revogação do artigo 186 do Código de Processo Penal pela Constituição
de 1988 – aludida roupagem evidencia a salvaguarda de direitos fundamentais do de 1988 – aludida roupagem evidencia a salvaguarda de direitos fundamentais do
interrogado, ou seja, expressa a proteção de sua ampla defesa, nela entendido o interrogado, ou seja, expressa a proteção de sua ampla defesa, nela entendido o

* Graduando 9º semestre na FDUFBA, Perito Técnico da Polícia Civil em Salvador, participante do * Graduando 9º semestre na FDUFBA, Perito Técnico da Polícia Civil em Salvador, participante do
curso “Processo penal contemporâneo e teses defensivas” na Escola Superior de Advocacia Orlan- curso “Processo penal contemporâneo e teses defensivas” na Escola Superior de Advocacia Orlan-
do Gomes – ESAD (2007.1), ex-membro do Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia. do Gomes – ESAD (2007.1), ex-membro do Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia.
320 Misael Neto Bispo da França 320 Misael Neto Bispo da França

contraditório, sua presunção de inocência e sua dignidade de pessoa, de sujeito, contraditório, sua presunção de inocência e sua dignidade de pessoa, de sujeito,
e não de objeto, no processo penal. e não de objeto, no processo penal.
Ocorre que o devido processo legal, nas entranhas da persecução penal em Ocorre que o devido processo legal, nas entranhas da persecução penal em
juízo, requer que os sujeitos passivos sejam tratados sem distinção, de acordo com juízo, requer que os sujeitos passivos sejam tratados sem distinção, de acordo com
o postulado da igualdade substancial, não se permitindo que os direitos de um o postulado da igualdade substancial, não se permitindo que os direitos de um
acusado obstaculizem as garantias de outro. Uma das nuances desta democrati- acusado obstaculizem as garantias de outro. Uma das nuances desta democrati-
zação do processo encontra-se no princípio da comunhão da prova, a estabelecer zação do processo encontra-se no princípio da comunhão da prova, a estabelecer
que todo instrumento probatório, uma vez dentro do processo, pertence a todas que todo instrumento probatório, uma vez dentro do processo, pertence a todas
as partes. Referido princípio, tristemente, nem sempre é respeitado pelos órgãos as partes. Referido princípio, tristemente, nem sempre é respeitado pelos órgãos
do Poder Judiciário, gerando enormes prejuízos no momento da condenação. do Poder Judiciário, gerando enormes prejuízos no momento da condenação.
Um deles diz respeito ao co-réu incriminado pelo interrogado. Não raro tem Um deles diz respeito ao co-réu incriminado pelo interrogado. Não raro tem
sido vedada a participação de seu defensor no interrogatório de acusado, e, ainda sido vedada a participação de seu defensor no interrogatório de acusado, e, ainda
assim, uma delação por parte deste incriminando aqueloutro pode contribuir assim, uma delação por parte deste incriminando aqueloutro pode contribuir
para a formação do convencimento do magistrado, dando ensejo a uma futura para a formação do convencimento do magistrado, dando ensejo a uma futura
sentença condenatória. Visando a evitar odioso prejuízo, consistente na eficácia sentença condenatória. Visando a evitar odioso prejuízo, consistente na eficácia
de uma prova ilegítima porque apartada do contraditório, os tribunais brasileiros, de uma prova ilegítima porque apartada do contraditório, os tribunais brasileiros,
capitaneados pelo Supremo Tribunal Federal, passaram a condicionar o ingresso capitaneados pelo Supremo Tribunal Federal, passaram a condicionar o ingresso
daquela delação no conjunto probatório à coexistência de outros meios de prova, daquela delação no conjunto probatório à coexistência de outros meios de prova,
servindo de parâmetros à sua valoração. E, no caso em questão, maior e mais idôneo servindo de parâmetros à sua valoração. E, no caso em questão, maior e mais idôneo
parâmetro não há que a palavra do co-réu delatado, proferida por ele mesmo ou parâmetro não há que a palavra do co-réu delatado, proferida por ele mesmo ou
por seu procurador. Assim, não só a presença física do causídico no interrogatório por seu procurador. Assim, não só a presença física do causídico no interrogatório
de outros acusados, mas também a possibilidade de que lhes formule perguntas de outros acusados, mas também a possibilidade de que lhes formule perguntas
constitui plena defesa de seu assistido ou cliente, atentando-se para o fato de ser constitui plena defesa de seu assistido ou cliente, atentando-se para o fato de ser
comum, em tese, que, nas hipóteses de co-delinqüência, um acusado procure comum, em tese, que, nas hipóteses de co-delinqüência, um acusado procure
eximir-se de culpa e, para tal culpe outro. eximir-se de culpa e, para tal culpe outro.
Como se disse, os direitos dos diferentes réus, num mesmo processo, devem Como se disse, os direitos dos diferentes réus, num mesmo processo, devem
conviver o mais harmonicamente possível, sob pena de se incorrer em um garantis- conviver o mais harmonicamente possível, sob pena de se incorrer em um garantis-
mo utópico, ruindo todo o ordenamento jurídico pátrio, a iniciar pela Constituição. mo utópico, ruindo todo o ordenamento jurídico pátrio, a iniciar pela Constituição.
E cabe aos profissionais do direito o zelo por semelhante coexistência, pelo fato E cabe aos profissionais do direito o zelo por semelhante coexistência, pelo fato
de deterem juízes, promotores e defensores o conhecimento técnico para dar vida de deterem juízes, promotores e defensores o conhecimento técnico para dar vida
a direitos e garantias cristalizados no papel, o que só é viável, por sua vez, com a direitos e garantias cristalizados no papel, o que só é viável, por sua vez, com
a formação verdadeiramente humanística de tais profissionais. A solução para os a formação verdadeiramente humanística de tais profissionais. A solução para os
problemas jurídicos encontram-se no próprio indivíduo, enquanto ser social, e problemas jurídicos encontram-se no próprio indivíduo, enquanto ser social, e
não nos meandros mornos da lei. não nos meandros mornos da lei.

2. Breves anotações sobre conceito de prova 2. Breves anotações sobre conceito de prova
O lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira1 traz, como denotação O lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira1 traz, como denotação
do termo prova, “Aquilo que atesta a veracidade ou a autenticidade de algo” ou do termo prova, “Aquilo que atesta a veracidade ou a autenticidade de algo” ou

1. FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Miniaurélio século XXI – o minidicionário da língua por- 1. FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Miniaurélio século XXI – o minidicionário da língua por-
tuguesa, p. 601. tuguesa, p. 601.
Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 321 Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 321

ainda “Ato que atesta uma intenção ou sentimento; testemunho”. A ambigüidade ainda “Ato que atesta uma intenção ou sentimento; testemunho”. A ambigüidade
de tais definições, tratando-se o referido termo uma vez como objeto (aquilo), de tais definições, tratando-se o referido termo uma vez como objeto (aquilo),
outra vez como ação (ato), repercute na seara do direito, em face das tentativas outra vez como ação (ato), repercute na seara do direito, em face das tentativas
de conceituação do que seria prova. Fala-se, ali, em prova como substantivo de de conceituação do que seria prova. Fala-se, ali, em prova como substantivo de
provar, procedimento dirigido à verificação de um juízo, atividade desenvolvida provar, procedimento dirigido à verificação de um juízo, atividade desenvolvida
no curso de uma ação, no sentido de convencer da efetiva ocorrência de um fato. no curso de uma ação, no sentido de convencer da efetiva ocorrência de um fato.
Cintra, Grinover e Dinamarco, em referência feita por Duclerc2, ensinam que a Cintra, Grinover e Dinamarco, em referência feita por Duclerc2, ensinam que a
prova “constitui, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz prova “constitui, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz
a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos convertidos no processo”. Fi- a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos convertidos no processo”. Fi-
quemos, enfim, com este último entendimento para lançar breves considerações quemos, enfim, com este último entendimento para lançar breves considerações
acerca da prova no sistema processual penal acusatório. acerca da prova no sistema processual penal acusatório.
Sabe-se que o Brasil, em matéria probatória, adotou o princípio do livre Sabe-se que o Brasil, em matéria probatória, adotou o princípio do livre
convencimento motivado do julgador, um dos traços caracterizadores do sistema convencimento motivado do julgador, um dos traços caracterizadores do sistema
acusatório, o qual, por sua vez, posiciona o juiz à eqüidistância das partes e acima acusatório, o qual, por sua vez, posiciona o juiz à eqüidistância das partes e acima
delas, com o escopo de garantir sua imparcialidade, ao menos – já que não se delas, com o escopo de garantir sua imparcialidade, ao menos – já que não se
pode reconhecer uma “neutralidade” do julgador3. Deve-se garantir, àquele sujeito pode reconhecer uma “neutralidade” do julgador3. Deve-se garantir, àquele sujeito
processual, a real liberdade para mensurar as provas a ele postas, tendo-se em processual, a real liberdade para mensurar as provas a ele postas, tendo-se em
conta que, como emana do princípio do livre convencimento motivado, as provas conta que, como emana do princípio do livre convencimento motivado, as provas
estão em pé de igualdade, no processo penal, não se enxergando uma escala de estão em pé de igualdade, no processo penal, não se enxergando uma escala de
valores entre elas. Por outro lado, em um sistema processual penal que vê o réu valores entre elas. Por outro lado, em um sistema processual penal que vê o réu
como sujeito, de fato – e não como objeto, visão do sistema inquisitorial – a este como sujeito, de fato – e não como objeto, visão do sistema inquisitorial – a este
devem ser asseguradas todas as garantias requeridas pela sua condição de mais devem ser asseguradas todas as garantias requeridas pela sua condição de mais
fraco4, na relação processual, mormente em matéria probatória; o trato dispensado fraco4, na relação processual, mormente em matéria probatória; o trato dispensado
aos instrumentos que formarão a convicção do juiz e que poderão embasar uma aos instrumentos que formarão a convicção do juiz e que poderão embasar uma
sentença condenatória deve arrimar-se na Constituição Federal. É dizer, o juiz deve sentença condenatória deve arrimar-se na Constituição Federal. É dizer, o juiz deve
estar atento aos direitos e garantias fundamentais do réu ou acusado, sendo a ele estar atento aos direitos e garantias fundamentais do réu ou acusado, sendo a ele
inadmissível que, na sistemática albergada pelo Código de Processo Penal pátrio, inadmissível que, na sistemática albergada pelo Código de Processo Penal pátrio,
apodere-se das funções de acusador e julgador, diligenciando pela produção de apodere-se das funções de acusador e julgador, diligenciando pela produção de
provas para, na seqüência, decidir com base nelas – como, lamentavelmente, tem provas para, na seqüência, decidir com base nelas – como, lamentavelmente, tem
ocorrido em recentes atuações do Superior Tribunal de Justiça –, menos no afã ocorrido em recentes atuações do Superior Tribunal de Justiça –, menos no afã
de se garantir a imparcialidade que de atender, rapidamente, à sanha denuncista de se garantir a imparcialidade que de atender, rapidamente, à sanha denuncista
da imprensa... da imprensa...

2. DUCLERC, Elmir. Prova penal e garantismo: uma investigação crítica sobre a verdade fática 2. DUCLERC, Elmir. Prova penal e garantismo: uma investigação crítica sobre a verdade fática
construída através do processo, p. 8-7. construída através do processo, p. 8-7.
3. COUTINHO, Jacinto N. de Miranda (coord.). Crítica à teoria geral do direito processual penal, 3. COUTINHO, Jacinto N. de Miranda (coord.). Crítica à teoria geral do direito processual penal,
p.46. p.46.
4. Segundo Aury Lopes Jr., “No momento do crime, a vítima é o débil e, por isso, recebe a tutela 4. Segundo Aury Lopes Jr., “No momento do crime, a vítima é o débil e, por isso, recebe a tutela
penal. Contudo, no processo penal opera-se uma importante modificação: o mais débil passa a penal. Contudo, no processo penal opera-se uma importante modificação: o mais débil passa a
ser o acusado, que frente ao poder de acusar do Estado sofre a violência institucionalizada do ser o acusado, que frente ao poder de acusar do Estado sofre a violência institucionalizada do
processo e, posteriormente, da pena.” Introdução crítica ao processo penal – fundamentos da processo e, posteriormente, da pena.” Introdução crítica ao processo penal – fundamentos da
instrumentalidade constitucional, p.42. instrumentalidade constitucional, p.42.
322 Misael Neto Bispo da França 322 Misael Neto Bispo da França

3. Natureza jurídica do interrogatório segundo o pro- 3. Natureza jurídica do interrogatório segundo o pro-
cesso penal constitucional: meio de defesa cesso penal constitucional: meio de defesa
A doutrina tem por vezo tratar do interrogatório, no processo penal, como A doutrina tem por vezo tratar do interrogatório, no processo penal, como
subtópico da prova, condizente com a topografia adotada pela Lei Codificada subtópico da prova, condizente com a topografia adotada pela Lei Codificada
de 1941, que traz um capítulo III (Do interrogatório do acusado) inserto no seu de 1941, que traz um capítulo III (Do interrogatório do acusado) inserto no seu
título VII (Da prova). Assim tem permanecido, mesmo após a consagração dos título VII (Da prova). Assim tem permanecido, mesmo após a consagração dos
direitos e garantias fundamentais proclamados pelo Constituinte de 1988. Até direitos e garantias fundamentais proclamados pelo Constituinte de 1988. Até
que se entende sua natureza probatória, uma vez que do interrogatório podem-se que se entende sua natureza probatória, uma vez que do interrogatório podem-se
extrair informações de que o magistrado, a princípio ignorante, pode valer-se na extrair informações de que o magistrado, a princípio ignorante, pode valer-se na
perseguição da verdade. É bom que se diga, de imediato, que esta verdade é a pro- perseguição da verdade. É bom que se diga, de imediato, que esta verdade é a pro-
cessual, juridicamente válida, estruturada sobre os fatos controvertidos na fluência cessual, juridicamente válida, estruturada sobre os fatos controvertidos na fluência
do iter processual; não se trata da verdade real, que é um dogma, algo a que se visa do iter processual; não se trata da verdade real, que é um dogma, algo a que se visa
atingir. Pois bem, o interrogatório constitui-se fonte de informações decisivas para atingir. Pois bem, o interrogatório constitui-se fonte de informações decisivas para
o (re) conhecimento da verdade dos fatos por parte do juiz. Não se pode olvidar o (re) conhecimento da verdade dos fatos por parte do juiz. Não se pode olvidar
a que podem dar azo os dados fornecidos pelo interrogado sobre a veracidade e a que podem dar azo os dados fornecidos pelo interrogado sobre a veracidade e
os motivos da imputação que lhe é feita, o local onde se encontrava quando do os motivos da imputação que lhe é feita, o local onde se encontrava quando do
cometimento da infração, se conhece os objetos utilizados na prática da infração, cometimento da infração, se conhece os objetos utilizados na prática da infração,
etc. Referidos dados, por sua tenacidade, podem influir no intelecto do julgador, etc. Referidos dados, por sua tenacidade, podem influir no intelecto do julgador,
ensejando, mais à frente, uma sentença de mérito, condenatória, inclusive. ensejando, mais à frente, uma sentença de mérito, condenatória, inclusive.

Foi, todavia, sob os influxos das garantias individuais trazidas pela Cons- Foi, todavia, sob os influxos das garantias individuais trazidas pela Cons-
tituição de 1988, inspirada na Declaração Universal dos Direitos Humanos de tituição de 1988, inspirada na Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948, também albergadas na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, 1948, também albergadas na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos,
ratificada pelo Brasil em 1992, que os doutrinadores e tribunais brasileiros ratificada pelo Brasil em 1992, que os doutrinadores e tribunais brasileiros
passaram a propalar a natureza defensiva do interrogatório no processo penal, passaram a propalar a natureza defensiva do interrogatório no processo penal,
adaptando-o à sistemática acusatória adotada pelo respectivo Código. Fernando adaptando-o à sistemática acusatória adotada pelo respectivo Código. Fernando
da Costa Tourinho Filho, sempre à frente da sua geração, dividiu, em capítulos da Costa Tourinho Filho, sempre à frente da sua geração, dividiu, em capítulos
próprios, a prova e o interrogatório, a esclarecer o caráter defensivo deste último, próprios, a prova e o interrogatório, a esclarecer o caráter defensivo deste último,
nas seguintes e sábias palavras: nas seguintes e sábias palavras:
A despeito da sua posição topográfica (...), o interrogatório é meio de defesa. Para A despeito da sua posição topográfica (...), o interrogatório é meio de defesa. Para
a doutrina tradicional, o interrogatório constitui o início da fase probatória e, ao a doutrina tradicional, o interrogatório constitui o início da fase probatória e, ao
mesmo tempo, um dos atos finais da fase postulatória. Geralmente, na fase postula- mesmo tempo, um dos atos finais da fase postulatória. Geralmente, na fase postula-
tória destacam-se o instante da formulação do pedido, do juízo de admissibilidade tória destacam-se o instante da formulação do pedido, do juízo de admissibilidade
da demanda e da defesa preliminar. Pois bem: o interrogatório integra esse segundo da demanda e da defesa preliminar. Pois bem: o interrogatório integra esse segundo
instante, sem embargo de estar situado no capítulo destinado à instrução.5 instante, sem embargo de estar situado no capítulo destinado à instrução.5

Dos pretórios brasileiros emanaram as seguintes considerações: “O interroga- Dos pretórios brasileiros emanaram as seguintes considerações: “O interroga-
tório é meio de prova e de defesa. Ideal seria que sempre fosse tomado pelo juiz tório é meio de prova e de defesa. Ideal seria que sempre fosse tomado pelo juiz
processante (...)”6; “O interrogatório, repita-se, é peça de defesa. O réu, por isso, processante (...)”6; “O interrogatório, repita-se, é peça de defesa. O réu, por isso,

5. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. v. 3, p. 263. 5. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. v. 3, p. 263.
6. STJ, 3ª T. Rel. Min. Luiz V. Cernicchiaro, DJU – 10/05/93, p.8599. 6. STJ, 3ª T. Rel. Min. Luiz V. Cernicchiaro, DJU – 10/05/93, p.8599.
Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 323 Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 323

tem direito de conhecer seu conteúdo, explicado pelo juiz, bem como de aconse- tem direito de conhecer seu conteúdo, explicado pelo juiz, bem como de aconse-
lhar-se previamente com seu defensor dativo ou constituído”7. Saliente-se que, lhar-se previamente com seu defensor dativo ou constituído”7. Saliente-se que,
também em outros países, a natureza defensiva do interrogatório foi reconhecida, também em outros países, a natureza defensiva do interrogatório foi reconhecida,
como na StPO alemã e nos Códigos de Córdoba, La Rioja, Mendoza, Salta e San como na StPO alemã e nos Códigos de Córdoba, La Rioja, Mendoza, Salta e San
Juan.8 O reconhecimento do interrogatório como meio de defesa dos acusados, Juan.8 O reconhecimento do interrogatório como meio de defesa dos acusados,
por parte das alas doutrinária e jurisprudencial, sintoniza-se com uma visão ga- por parte das alas doutrinária e jurisprudencial, sintoniza-se com uma visão ga-
rantista do processo penal, interpretado à luz da Constituição e com espeque nos rantista do processo penal, interpretado à luz da Constituição e com espeque nos
fundamentos por ela adotados, principalmente o da dignidade da pessoa humana, fundamentos por ela adotados, principalmente o da dignidade da pessoa humana,
o qual, por seu turno, rege o modelo acusatório a tentar impedir as estratégias, o qual, por seu turno, rege o modelo acusatório a tentar impedir as estratégias,
muitas vezes sutis, do juiz inquisidor. muitas vezes sutis, do juiz inquisidor.

O interrogatório, como parte da instrução no processo penal, precisou O interrogatório, como parte da instrução no processo penal, precisou
ganhar novos ares, sendo oxigenado com os requisitos do método acusató- ganhar novos ares, sendo oxigenado com os requisitos do método acusató-
rio, fundado nos direitos e garantias individuais, sob o pálio da Constitui- rio, fundado nos direitos e garantias individuais, sob o pálio da Constitui-
ção. Foi então, em socorro de tal sistemática, que, em 1º de dezembro de ção. Foi então, em socorro de tal sistemática, que, em 1º de dezembro de
2003, publicou-se a Lei Federal de nº. 10.792, conferindo nova redação aos 2003, publicou-se a Lei Federal de nº. 10.792, conferindo nova redação aos
dispositivos atinentes ao interrogatório do acusado, no Código de Proces- dispositivos atinentes ao interrogatório do acusado, no Código de Proces-
so Penal. Admitiu-se com isto maior atuação do defensor e do presentante so Penal. Admitiu-se com isto maior atuação do defensor e do presentante
do Ministério Público, possibilitando a estes, inclusive, a formulação de reper- do Ministério Público, possibilitando a estes, inclusive, a formulação de reper-
guntas ao interrogado. Protegeu-se o silêncio do imputado, não podendo mais guntas ao interrogado. Protegeu-se o silêncio do imputado, não podendo mais
ser interpretado em prejuízo dele. Outra inovação da Lei de 2003 encontra-se no ser interpretado em prejuízo dele. Outra inovação da Lei de 2003 encontra-se no
artigo 196 do Código, que permite a realização de novo interrogatório também a artigo 196 do Código, que permite a realização de novo interrogatório também a
pedido fundamentado de qualquer das partes, a todo tempo, com o que se tentou pedido fundamentado de qualquer das partes, a todo tempo, com o que se tentou
atenuar a índole inquisitorial ou meramente probatória desta parte da instrução. atenuar a índole inquisitorial ou meramente probatória desta parte da instrução.
Em verdade, a referida Lei só veio ratificar o posicionamento dos autores e dos Em verdade, a referida Lei só veio ratificar o posicionamento dos autores e dos
tribunais sobre a matéria, após o advento da Constituição de 1988, conferindo tribunais sobre a matéria, após o advento da Constituição de 1988, conferindo
segurança ao ordenamento jurídico brasileiro e, consequentemente, aos cidadãos segurança ao ordenamento jurídico brasileiro e, consequentemente, aos cidadãos
por ele regrados. Reafirmou-se a natureza defensiva do interrogatório, com olhos por ele regrados. Reafirmou-se a natureza defensiva do interrogatório, com olhos
postos em caríssimos princípios reitores do processo penal, ou antes, do modelo postos em caríssimos princípios reitores do processo penal, ou antes, do modelo
constitucional vigente, no qual se fundamenta o Estado que se pretende Democrá- constitucional vigente, no qual se fundamenta o Estado que se pretende Democrá-
tico e de Direito: a ampla defesa, com todos os meios necessários à sua efetivação tico e de Direito: a ampla defesa, com todos os meios necessários à sua efetivação
– mormente o contraditório – e a presunção de inocência, que uns preferem chamar – mormente o contraditório – e a presunção de inocência, que uns preferem chamar
de estado de inocência.9 de estado de inocência.9
Ocorre que, no direito, como em outros campos científicos, e muito pelo Ocorre que, no direito, como em outros campos científicos, e muito pelo
fato de as regras jurídicas estarem alicerçadas sobre a rede multicor das relações fato de as regras jurídicas estarem alicerçadas sobre a rede multicor das relações
sociais, nada é absoluto. De há muito se contestou o caráter dogmático da norma sociais, nada é absoluto. De há muito se contestou o caráter dogmático da norma
jurídica pregado pelo Positivismo Legalista. Não vigora mais o “in claris cessat jurídica pregado pelo Positivismo Legalista. Não vigora mais o “in claris cessat
interpretatio”, dentre os brocardos que disciplinam a hermenêutica jurídica. Aliás, interpretatio”, dentre os brocardos que disciplinam a hermenêutica jurídica. Aliás,

7. STJ, 6ª T. Rel. Min. Luiz V. Cernicchiaro, DJU – 05/02/96, p.1448. 7. STJ, 6ª T. Rel. Min. Luiz V. Cernicchiaro, DJU – 05/02/96, p.1448.
8. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado, p.520. 8. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado, p.520.
9. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de.Curso de processo penal, p. 31-2. 9. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de.Curso de processo penal, p. 31-2.
324 Misael Neto Bispo da França 324 Misael Neto Bispo da França

mesmo os direitos e garantias individuais previstos na Constituição, dotados de mesmo os direitos e garantias individuais previstos na Constituição, dotados de
plena eficácia, na casuística devem ser sopesados, ampliando-os ao máximo e, plena eficácia, na casuística devem ser sopesados, ampliando-os ao máximo e,
ao mesmo tempo, restringindo-os no menor grau possível, sob pena de se ver ao mesmo tempo, restringindo-os no menor grau possível, sob pena de se ver
fragmentar o edifício jurídico, que não resiste à antinomia ou à colidência irreso- fragmentar o edifício jurídico, que não resiste à antinomia ou à colidência irreso-
lúvel de valores. Ponderam-se os valores para que se realizem os ideais do povo, lúvel de valores. Ponderam-se os valores para que se realizem os ideais do povo,
titular soberano do poder de inaugurar nova ordem constitucional. Assim, diante titular soberano do poder de inaugurar nova ordem constitucional. Assim, diante
da liberdade atribuída ao interrogado, não cabe a passividade, simplesmente da liberdade atribuída ao interrogado, não cabe a passividade, simplesmente
aceitando-a e pronto. Em consideração à natureza híbrida do interrogatório, que aceitando-a e pronto. Em consideração à natureza híbrida do interrogatório, que
é meio de defesa e fonte de prova10, e ao que dela se pode ensejar, principalmente é meio de defesa e fonte de prova10, e ao que dela se pode ensejar, principalmente
aquela faculdade do imputado – dizer a verdade, omitir fatos ou mentir sobre aquela faculdade do imputado – dizer a verdade, omitir fatos ou mentir sobre
eles – cabe a análise da condição do co-delinquente acusado, mormente quando eles – cabe a análise da condição do co-delinquente acusado, mormente quando
a delação feita por aquele é a única prova contra este último. a delação feita por aquele é a única prova contra este último.

4. Valor probante do interrogatório e sua submissão ao 4. Valor probante do interrogatório e sua submissão ao
princípio da comunhão da prova – um abrigo nos casos princípio da comunhão da prova – um abrigo nos casos
de co-delinqüência de co-delinqüência
A natureza probatória do interrogarorio, ao lado de ser meio de defesa, como A natureza probatória do interrogarorio, ao lado de ser meio de defesa, como
já calcificado, evidencia-se na acusação feita pelo interrogado contra seu compar- já calcificado, evidencia-se na acusação feita pelo interrogado contra seu compar-
sa. O Tribu­nal de Alçada de Minas Gerais, inclusive, já decidiu “ser de inegável sa. O Tribu­nal de Alçada de Minas Gerais, inclusive, já decidiu “ser de inegável
valor probatório a acusação do co-réu que, sem procurar exculpar-se, incrimina valor probatório a acusação do co-réu que, sem procurar exculpar-se, incrimina
frontalmente seu ­comparsa”.11 Não seria impossível que um acusado, movido por frontalmente seu ­comparsa”.11 Não seria impossível que um acusado, movido por
temor ou solidariedade, confessasse a autoria do delito, como também não seria temor ou solidariedade, confessasse a autoria do delito, como também não seria
estranho que, agora sob o ódio ou a vingança, incriminasse também o outro. Neste estranho que, agora sob o ódio ou a vingança, incriminasse também o outro. Neste
passo, há de ser feito coro junto ao pretório mineiro, a fim de se reconhecer o passo, há de ser feito coro junto ao pretório mineiro, a fim de se reconhecer o
valor probatório do interrogatório, ao menos na hipótese de acusação de alguém valor probatório do interrogatório, ao menos na hipótese de acusação de alguém
pelo interrogado. E prova produz a referida parte da instrução, constituída pelas pelo interrogado. E prova produz a referida parte da instrução, constituída pelas
declarações (ou omissões) prestadas pelo acusado, pois pode influenciar no livre declarações (ou omissões) prestadas pelo acusado, pois pode influenciar no livre
convencimento do magistrado e dar cabo a uma decisão de mérito, razão por convencimento do magistrado e dar cabo a uma decisão de mérito, razão por
que tais declarações devem pertencer ao processo como objeto à disposição da que tais declarações devem pertencer ao processo como objeto à disposição da
diligência de qualquer das partes. Fala-se, portanto, no princípio da comunhão diligência de qualquer das partes. Fala-se, portanto, no princípio da comunhão
da prova, que, adotado pelo sistema processual penal acusatório, é expressão do da prova, que, adotado pelo sistema processual penal acusatório, é expressão do
contraditório e, portanto, de um processo penal escorado na Constituição. Então, contraditório e, portanto, de um processo penal escorado na Constituição. Então,
não se pode dar continuidade à instrução sem que se ofereça ao co-réu incriminado não se pode dar continuidade à instrução sem que se ofereça ao co-réu incriminado
a oportunidade de se manifestar, seja procedendo, de ofício, ao seu interrogatório, a oportunidade de se manifestar, seja procedendo, de ofício, ao seu interrogatório,
seja conferindo ao seu defensor a permissão para participar dos outros interroga- seja conferindo ao seu defensor a permissão para participar dos outros interroga-
tórios. Esta última alternativa revela-se a mais consentânea com o princípio da tórios. Esta última alternativa revela-se a mais consentânea com o princípio da
ampla defesa, o qual seria observado no ato, no calor do momento, na presença ampla defesa, o qual seria observado no ato, no calor do momento, na presença

10. É o termo que agrada a Pelegrini Grinover, avessa à expressão “meio de prova”. Apud LOPES 10. É o termo que agrada a Pelegrini Grinover, avessa à expressão “meio de prova”. Apud LOPES
JR., Aury. Ibidem, p. 239. JR., Aury. Ibidem, p. 239.
11. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p531. 11. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p531.
Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 325 Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 325

dos demais sujeitos do processo, sem falar que aludida opção constitui-se também dos demais sujeitos do processo, sem falar que aludida opção constitui-se também
um meio hábil para a economia processual. um meio hábil para a economia processual.
De fato, as declarações prestadas pelo interrogado que investe contra outrem De fato, as declarações prestadas pelo interrogado que investe contra outrem
são testemunho. O acusado, portanto, neste momento, torna-se uma aberração: é são testemunho. O acusado, portanto, neste momento, torna-se uma aberração: é
testemunha que não se compromete com a verdade, não pode ser processada por testemunha que não se compromete com a verdade, não pode ser processada por
falso testemunho e nem ser contraditada12. Para aclarar as coisas e para que não falso testemunho e nem ser contraditada12. Para aclarar as coisas e para que não
sejam violados os direitos e garantias individuais dos outros envolvidos no pro- sejam violados os direitos e garantias individuais dos outros envolvidos no pro-
cesso, melhor que sejam percebidas as informações prestadas pelo réu-acusador cesso, melhor que sejam percebidas as informações prestadas pelo réu-acusador
como fonte de prova contra o co-delinquente. Daí a necessidade de submetê-las como fonte de prova contra o co-delinquente. Daí a necessidade de submetê-las
ao contraditório13, permitindo-se ao defensor do compar­sa acusado comparecer ao contraditório13, permitindo-se ao defensor do compar­sa acusado comparecer
ao interrogatório do acusador sui generis e fazer-lhe perguntas. Neste sentido é o ao interrogatório do acusador sui generis e fazer-lhe perguntas. Neste sentido é o
entendimento de Grinover, para quem “É inegável que a palavra de um acusado entendimento de Grinover, para quem “É inegável que a palavra de um acusado
com relação aos demais, é testemunho. Testemunho e, consequentemente, meio com relação aos demais, é testemunho. Testemunho e, consequentemente, meio
de prova; e prova alguma pode ser acolhida senão sob o pálio do contraditório”.14 de prova; e prova alguma pode ser acolhida senão sob o pálio do contraditório”.14
Sentimentos quejandos oportunizaram a elaboração da Súmula nº. 65 das Mesas Sentimentos quejandos oportunizaram a elaboração da Súmula nº. 65 das Mesas
Reunidas de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Reunidas de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
cuja redação literal é como segue: “O interrogatório de co-réu, incriminando outro, cuja redação literal é como segue: “O interrogatório de co-réu, incriminando outro,
tem, com relação a este, natureza de depoimento testemunhal, devendo, por isso, tem, com relação a este, natureza de depoimento testemunhal, devendo, por isso,
se admitir reperguntas”. Doutrina e jurisprudência, portanto, em sua melhor forma, se admitir reperguntas”. Doutrina e jurisprudência, portanto, em sua melhor forma,
caminham no sentido de refutar a delação de co-réu em interrogatório de acusa- caminham no sentido de refutar a delação de co-réu em interrogatório de acusa-
do como única prova contrária àquele, visando a resguardar seu direito à ampla do como única prova contrária àquele, visando a resguardar seu direito à ampla
defesa e ao contraditório. Assim, referida delação deve ser sopesada, temperada defesa e ao contraditório. Assim, referida delação deve ser sopesada, temperada
com outras provas do processo, a fim de se perseguir a verdade judiciária com a com outras provas do processo, a fim de se perseguir a verdade judiciária com a
lanterna dos direitos e garantias individuais, nos moldes do garantismo penal. Se lanterna dos direitos e garantias individuais, nos moldes do garantismo penal. Se
o interrogado incrimina seu comparsa, deve o julgador, atento ao princípio da pre- o interrogado incrimina seu comparsa, deve o julgador, atento ao princípio da pre-
sunção de inocência, garantir ao co-réu incriminado a possibilidade de se defender sunção de inocência, garantir ao co-réu incriminado a possibilidade de se defender
das acusações, e não se vê meio mais eficaz de realizá-lo que o reconhecimento das acusações, e não se vê meio mais eficaz de realizá-lo que o reconhecimento
e o deferimento de seu direito de reperguntar, por seu defensor. E alerte-se para o e o deferimento de seu direito de reperguntar, por seu defensor. E alerte-se para o
fato de que tal reconhecimento não contraria, em qualquer hipótese, a inteligência fato de que tal reconhecimento não contraria, em qualquer hipótese, a inteligência
do artigo 191 da Lei Penal Adjetiva, que determina o interrogatório em separado do artigo 191 da Lei Penal Adjetiva, que determina o interrogatório em separado
dos acusados. Sua interpretação deve ser sistemática, ou seja, é preciso que se dos acusados. Sua interpretação deve ser sistemática, ou seja, é preciso que se
afaste ao máximo do aludido dispositivo, de modo a se iluminar todo o panorama afaste ao máximo do aludido dispositivo, de modo a se iluminar todo o panorama
jurídico em que ele está inserido. Semelhantemente entende o professor Eutímio jurídico em que ele está inserido. Semelhantemente entende o professor Eutímio
de Carvalho (2007). Em se permitindo que o defensor do co-réu, ao lado do de Carvalho (2007). Em se permitindo que o defensor do co-réu, ao lado do
titular da ação penal e do defensor do interrogado, também repergunte, está-se, titular da ação penal e do defensor do interrogado, também repergunte, está-se,
simplesmente, a reconhecer a índole probatória do testemunho deste último; e, se simplesmente, a reconhecer a índole probatória do testemunho deste último; e, se
é assim, nada mais lúcido que, jungido ao princípio da comunhão da prova, acolha é assim, nada mais lúcido que, jungido ao princípio da comunhão da prova, acolha

12. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p. 532. 12. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p. 532.
13. LOPES JR. Aury. Ibidem, p. 229 e ss. 13. LOPES JR. Aury. Ibidem, p. 229 e ss.
14. Ibidem, p. 533 14. Ibidem, p. 533
326 Misael Neto Bispo da França 326 Misael Neto Bispo da França

o magistrado as perguntas feitas pela defesa do co-réu delatado, tomando-as por o magistrado as perguntas feitas pela defesa do co-réu delatado, tomando-as por
termo, juntamente com as respectivas respostas. Outrossim, esta é uma forma de termo, juntamente com as respectivas respostas. Outrossim, esta é uma forma de
fiscalização da atividade jurisdicional, visto que permite o óbice aos arbítrios do fiscalização da atividade jurisdicional, visto que permite o óbice aos arbítrios do
juiz. Também se garante a realização de um processo penal efetivamente acusatório, juiz. Também se garante a realização de um processo penal efetivamente acusatório,
em que restam delimitadas, cristalinamente, as funções dos sujeitos processuais. em que restam delimitadas, cristalinamente, as funções dos sujeitos processuais.
Razão maior para que se dê vazão à ampla defesa do co-réu perante a delação Razão maior para que se dê vazão à ampla defesa do co-réu perante a delação
feita pelo interrogado reside no fato, já mencionado, de este transmudar-se em feita pelo interrogado reside no fato, já mencionado, de este transmudar-se em
testemunha; e a favor de quem? Dele mesmo e da acusação (vítima ou Ministério testemunha; e a favor de quem? Dele mesmo e da acusação (vítima ou Ministério
Público). Vê-se, então, que há um claro desequilíbrio processual: de um lado o Público). Vê-se, então, que há um claro desequilíbrio processual: de um lado o
co-réu delatado, do outro o interrogado delator, a acusação com suas testemunhas co-réu delatado, do outro o interrogado delator, a acusação com suas testemunhas
e o juiz, muitas vezes recalcitrante em exercer o papel de garantidor15. e o juiz, muitas vezes recalcitrante em exercer o papel de garantidor15.

É bem verdade que há juízes e Juízes16, mas não se pode negar que, mesmo É bem verdade que há juízes e Juízes16, mas não se pode negar que, mesmo
o bom magistrado, corre o risco de proceder sob as mais renegáveis pressões, so- o bom magistrado, corre o risco de proceder sob as mais renegáveis pressões, so-
bretudo as advindas dos telejornais policialescos. Sem dúvidas que, em combates bretudo as advindas dos telejornais policialescos. Sem dúvidas que, em combates
como o referido alhures, flagrantemente desproporcionais, a corda tende a arrastar como o referido alhures, flagrantemente desproporcionais, a corda tende a arrastar
o mais fraco... Aquela delação, quando escoteira, nem mesmo deveria integrar o mais fraco... Aquela delação, quando escoteira, nem mesmo deveria integrar
os autos do processo por constituir-se ilegítima – pois alheia ao contraditório e, os autos do processo por constituir-se ilegítima – pois alheia ao contraditório e,
portanto, sem nenhum parâmetro de ponderação. portanto, sem nenhum parâmetro de ponderação.

Lamentavelmente, nem todas as vozes, no palco do direito, entoam a mesma Lamentavelmente, nem todas as vozes, no palco do direito, entoam a mesma
melodia, como sói acontecer em certos entendimentos jurisprudenciais que ora melodia, como sói acontecer em certos entendimentos jurisprudenciais que ora
merecem ser transcritos em sua literalidade: merecem ser transcritos em sua literalidade:
O advogado não precisa ser intimado previamente da realização do interrogatório O advogado não precisa ser intimado previamente da realização do interrogatório
do co-réu, até porque não lhe é dado o direito de participar ativamente do ato com do co-réu, até porque não lhe é dado o direito de participar ativamente do ato com
formulação de perguntas (...) formulação de perguntas (...)

No tocante à falta de intimação do il. Defensor do recorrente para acompanhar a No tocante à falta de intimação do il. Defensor do recorrente para acompanhar a
inquirição do co-réu Jésus, também não vejo como acolher a súplica defensiva. inquirição do co-réu Jésus, também não vejo como acolher a súplica defensiva.
Observo que o próprio apelante reconhece a impossibilidade de o defensor formular Observo que o próprio apelante reconhece a impossibilidade de o defensor formular
perguntas ao co-acusado que está sendo interrogado (fls. 125). perguntas ao co-acusado que está sendo interrogado (fls. 125).
Anoto que, recentemente, as disposições sobre o interrogatório foram alteradas pela Anoto que, recentemente, as disposições sobre o interrogatório foram alteradas pela
Lei 10.972/2003, que possibilitou a intervenção do defensor com perguntas em Lei 10.972/2003, que possibilitou a intervenção do defensor com perguntas em
favor do próprio cliente. Verifico que a novel legislação consagrou o contraditório favor do próprio cliente. Verifico que a novel legislação consagrou o contraditório
em prol do réu que está sendo interrogado, mas nada dispôs sobre a inquirição de em prol do réu que está sendo interrogado, mas nada dispôs sobre a inquirição de
co-réu, preferindo o legislador adotar a cautela retro consignada. co-réu, preferindo o legislador adotar a cautela retro consignada.
Quanto à pretensão de apenas acompanhar o desenvolvimento do interrogatório Quanto à pretensão de apenas acompanhar o desenvolvimento do interrogatório
para que o seu combativo procurador pudesse conferir de perto o teor das alega- para que o seu combativo procurador pudesse conferir de perto o teor das alega-
ções ditadas ao il. Juiz a quo e passadas ao Sr. Escrivão, tenho por absolutamente ções ditadas ao il. Juiz a quo e passadas ao Sr. Escrivão, tenho por absolutamente

15. COUTINHO, Jacinto N. de Miranda (coord.). Ibidem, p. 46. 15. COUTINHO, Jacinto N. de Miranda (coord.). Ibidem, p. 46.
16. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p. 526. 16. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p. 526.
Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 327 Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 327

desnecessária a providência. O magistrado goza de presunção de idoneidade e desnecessária a providência. O magistrado goza de presunção de idoneidade e
lisura em suas atividades até prova em contrário, que o recorrente não trouxe nas lisura em suas atividades até prova em contrário, que o recorrente não trouxe nas
razões de fls. 121/131.17 razões de fls. 121/131.17

Trata-se o excerto acima de termos de negativa do provimento a recurso de Trata-se o excerto acima de termos de negativa do provimento a recurso de
apelação criminal interposta por condenado a 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses apelação criminal interposta por condenado a 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses
de reclusão, regime inicial semi-aberto, e 13 (treze) dias-multa, fixada a unidade de reclusão, regime inicial semi-aberto, e 13 (treze) dias-multa, fixada a unidade
no mínimo legal, sob a acusação de ter subtraído, mediante violência, uma car- no mínimo legal, sob a acusação de ter subtraído, mediante violência, uma car-
teira contendo R$40,00 (quarenta reais). O Relator acolheu o parecer ministerial, teira contendo R$40,00 (quarenta reais). O Relator acolheu o parecer ministerial,
entendendo suficientes ao decreto condenatório os depoimentos da vítima e da tes- entendendo suficientes ao decreto condenatório os depoimentos da vítima e da tes-
temunha ocular. Considerou o Desembargador do Tribunal de Alçada mineiro que temunha ocular. Considerou o Desembargador do Tribunal de Alçada mineiro que
“a delação feita pelo co-sentenciado Jésus assumiu papel meramente ilustrativo, “a delação feita pelo co-sentenciado Jésus assumiu papel meramente ilustrativo,
coadjuvante, cuja contribuição à condenação afigura-se despiciendo”. Atente-se, coadjuvante, cuja contribuição à condenação afigura-se despiciendo”. Atente-se,
aqui, para dois dados que expressam a mentalidade retrógrada do magistrado ad aqui, para dois dados que expressam a mentalidade retrógrada do magistrado ad
quem, infelizmente na contramão de um processo penal constitucional: o fato quem, infelizmente na contramão de um processo penal constitucional: o fato
de defender a “presunção de idoneidade e lisura” de sua classe para espancar de defender a “presunção de idoneidade e lisura” de sua classe para espancar
as pretensões do recorrente e o de tê-lo feito no ano de 2004, muito depois de o as pretensões do recorrente e o de tê-lo feito no ano de 2004, muito depois de o
Constituinte de 1988 ter consagrado, como direitos fundamentais do cidadão, a Constituinte de 1988 ter consagrado, como direitos fundamentais do cidadão, a
ampla defesa e o contraditório, bem como a presunção de inocência. ampla defesa e o contraditório, bem como a presunção de inocência.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua Quinta Turma, no mesmo sentido do O Superior Tribunal de Justiça, por sua Quinta Turma, no mesmo sentido do
excerto acima, laborou como segue: excerto acima, laborou como segue:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. LATROCÍNIO E ESTUPRO REAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. LATROCÍNIO E ESTUPRO REAL.
INTERROGATÓRIO. DELAÇÃO DE CO-RÉU. PARTICIPAÇÃO DE DEFEN- INTERROGATÓRIO. DELAÇÃO DE CO-RÉU. PARTICIPAÇÃO DE DEFEN-
SOR DO DELATADO. CONDENAÇÃO. CONJUNTO PROBATÓRIO. SOR DO DELATADO. CONDENAÇÃO. CONJUNTO PROBATÓRIO.

I – O interrogatório, nos termos da novel legislação (Lei nº. 10.792/03), continua I – O interrogatório, nos termos da novel legislação (Lei nº. 10.792/03), continua
sendo, também, um meio de prova da defesa (...), deixando apenas de ser ato per- sendo, também, um meio de prova da defesa (...), deixando apenas de ser ato per-
sonalíssimo do juiz (art. 188, do CPP), uma vez que oportuniza à acusação e ao ad- sonalíssimo do juiz (art. 188, do CPP), uma vez que oportuniza à acusação e ao ad-
vogado do interrogado a sugestão do esclarecimento da situação fática olvidada. vogado do interrogado a sugestão do esclarecimento da situação fática olvidada.

II – A sistemática moderna não transformou, de forma alguma, o interrogado II – A sistemática moderna não transformou, de forma alguma, o interrogado
em testemunha. Ao passo que esta não pode se manter silente, aquele, por seu em testemunha. Ao passo que esta não pode se manter silente, aquele, por seu
turno, não pode ser induzido a se auto-acusar (...) turno, não pode ser induzido a se auto-acusar (...)

III – Apesar de ser meio de prova da defesa, aquilo que é dito no interrogatório III – Apesar de ser meio de prova da defesa, aquilo que é dito no interrogatório
integra o material cognitivo por força do princípio da comunhão da prova. integra o material cognitivo por força do princípio da comunhão da prova.

IV – A participação de advogados dos co-réus não tem amparo legal, visto que IV – A participação de advogados dos co-réus não tem amparo legal, visto que
criaria uma forma de constrangimento para o interrogado. criaria uma forma de constrangimento para o interrogado.

V – A delação (...), por si só, na esteira de ensinanças do Pretório Excelso, é V – A delação (...), por si só, na esteira de ensinanças do Pretório Excelso, é
que deve ser valorada com muita cautela. que deve ser valorada com muita cautela.

17. Ap. crim. nº. 440.273-3; 1ª Câmara Mista do TAMG, Rel. Eduardo Brum, pub. DJ 16/06/04. 17. Ap. crim. nº. 440.273-3; 1ª Câmara Mista do TAMG, Rel. Eduardo Brum, pub. DJ 16/06/04.
328 Misael Neto Bispo da França 328 Misael Neto Bispo da França

IV – Se a decisão atacada não deu destaque decisivo à delação, não há que se IV – Se a decisão atacada não deu destaque decisivo à delação, não há que se
reconhecer qualquer modalidade de error na estreita via do habeas corpus. reconhecer qualquer modalidade de error na estreita via do habeas corpus.

Writ denegado.18 (grifos nossos) Writ denegado.18 (grifos nossos)

Neste julgado, o STJ, ao considerar que a participação do advogado do co-réu é Neste julgado, o STJ, ao considerar que a participação do advogado do co-réu é
desprovida de amparo legal, interpreta restritivamente o Código de Processo Penal, desprovida de amparo legal, interpreta restritivamente o Código de Processo Penal,
destacando-o de todo o repositório de leis brasileiro que, guiado pela Constituição destacando-o de todo o repositório de leis brasileiro que, guiado pela Constituição
vigente, tem o direito à defesa técnica, e seus corolários, e o direito à autodefesa vigente, tem o direito à defesa técnica, e seus corolários, e o direito à autodefesa
guindados ao grau de princípio. Bem assim, se a delação deve ser valorada, como guindados ao grau de princípio. Bem assim, se a delação deve ser valorada, como
costuma julgar o Supremo Tribunal Federal, como fazê-lo com a devida eficácia, costuma julgar o Supremo Tribunal Federal, como fazê-lo com a devida eficácia,
senão permitindo ao co-réu defender-se, por meio de seu procurador, hic et nunc, senão permitindo ao co-réu defender-se, por meio de seu procurador, hic et nunc,
com a formulação de perguntas e reperguntas ao interrogado? Ou, como indagou com a formulação de perguntas e reperguntas ao interrogado? Ou, como indagou
Adalberto José Q.T. de Camargo Aranha, “Se ao atingido pela delação não é pos- Adalberto José Q.T. de Camargo Aranha, “Se ao atingido pela delação não é pos-
sível interferir no interrogatório do acusador, fazendo perguntas ou reperguntas sível interferir no interrogatório do acusador, fazendo perguntas ou reperguntas
que poderão levar à verdade ou ao desmascaramento, onde obedecido o princípio que poderão levar à verdade ou ao desmascaramento, onde obedecido o princípio
do contraditório?”.19 do contraditório?”.19
É bem verdade que doutrina e jurisprudência harmonizaram-se no sentido É bem verdade que doutrina e jurisprudência harmonizaram-se no sentido
de haver a necessidade de se valorar a delação perante outras provas, não sendo de haver a necessidade de se valorar a delação perante outras provas, não sendo
aceitável que um futuro decreto condenatório lastreie-se em acusações isoladas aceitável que um futuro decreto condenatório lastreie-se em acusações isoladas
do interrogado contra seu comparsa, ou seja, quando tais acusações constituírem do interrogado contra seu comparsa, ou seja, quando tais acusações constituírem
o único meio de prova contra este último. Procedendo de forma semelhante, o único meio de prova contra este último. Procedendo de forma semelhante,
estar-se-ia a condenar com base em prova ilegítima, posto que distante do asseio estar-se-ia a condenar com base em prova ilegítima, posto que distante do asseio
proporcionado pelo contraditório. Neste nexo, convém trazer a lume a inteligência proporcionado pelo contraditório. Neste nexo, convém trazer a lume a inteligência
dos juristas brasileiros. dos juristas brasileiros.
No processo criminal, a imputação de co-réu só tem valia probatória quando é No processo criminal, a imputação de co-réu só tem valia probatória quando é
confirmada por outros elementos de convicção. Não se pode reconhecer como prova confirmada por outros elementos de convicção. Não se pode reconhecer como prova
plena a imputação isolada de co-réu para suporte de um veredictum condenatório, plena a imputação isolada de co-réu para suporte de um veredictum condenatório,
porque seria instituir-se a insegurança no julgamento criminal, com possibilidade porque seria instituir-se a insegurança no julgamento criminal, com possibilidade
de erros judiciários20. de erros judiciários20.

A delação levada a efeito por co-réu não respalda, por si só, decreto condenatório. A delação levada a efeito por co-réu não respalda, por si só, decreto condenatório.
A valia de tal procedimento pressupõe contexto que evidencie a sinceridade do A valia de tal procedimento pressupõe contexto que evidencie a sinceridade do
depoimento21. depoimento21.

Das duas uma: ou o juiz permite a ingerência das partes para perguntas ou reper- Das duas uma: ou o juiz permite a ingerência das partes para perguntas ou reper-
guntas, porquanto aquelas acusações implicam testemunhos, ou absolve o terceiro guntas, porquanto aquelas acusações implicam testemunhos, ou absolve o terceiro
ante a ausência de observância do contraditório22. ante a ausência de observância do contraditório22.

18. RHC nº. 42.780/PR, Rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª T., pub DJ 12/02/07. 18. RHC nº. 42.780/PR, Rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª T., pub DJ 12/02/07.
19. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p. 531-2. 19. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p. 531-2.
20. RT, 410/316. 20. RT, 410/316.
21. STF, HC nº. 71.803/RS, DJU, pub 17/02/95, p. 2746. 21. STF, HC nº. 71.803/RS, DJU, pub 17/02/95, p. 2746.
22. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p. 530. 22. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p. 530.
Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 329 Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 329

No nosso modesto entender, não vale como prova incriminatória. E se outras exis- No nosso modesto entender, não vale como prova incriminatória. E se outras exis-
tem, a condenação será uma resultante delas e não da chamada de co-réu23. tem, a condenação será uma resultante delas e não da chamada de co-réu23.

Como visto, são fartos os votos que pugnam pela realização da justiça, com Como visto, são fartos os votos que pugnam pela realização da justiça, com
a tutela no contraditório24, visando ao socorro do co-acusado incriminado em a tutela no contraditório24, visando ao socorro do co-acusado incriminado em
interrogatório, o que só é alcançável mediante uma defesa técnica hígida, que interrogatório, o que só é alcançável mediante uma defesa técnica hígida, que
atue energicamente durante todos os atos do processo penal. Não se pode confiar atue energicamente durante todos os atos do processo penal. Não se pode confiar
tão somente na memória dos magistrados, a esperar que recordem aquilo sobre tão somente na memória dos magistrados, a esperar que recordem aquilo sobre
o que a jurisprudência e os manuais de ponta já pacificaram. É imprescindível o que a jurisprudência e os manuais de ponta já pacificaram. É imprescindível
a participação efetiva dos defensores dos co-réus no interrogatório de todos os a participação efetiva dos defensores dos co-réus no interrogatório de todos os
acusados, como ensina Pacelli25, oxigenando a instrução, sob pena de se incorrer acusados, como ensina Pacelli25, oxigenando a instrução, sob pena de se incorrer
em graves erros judiciários, atropelando direitos fundamentais. Imagine-se, por em graves erros judiciários, atropelando direitos fundamentais. Imagine-se, por
exemplo, o desastre que seria um interrogatório sem a presença de procuradores exemplo, o desastre que seria um interrogatório sem a presença de procuradores
dos outros co-réus em sede de crime societário...Neste tipo de delito26 é comum dos outros co-réus em sede de crime societário...Neste tipo de delito26 é comum
aceitar-se a denúncia genérica, sem que se individualizem as condutas, em aten- aceitar-se a denúncia genérica, sem que se individualizem as condutas, em aten-
ção ao reticente pro societate – e em detrimento da presunção de inocência. Ali, ção ao reticente pro societate – e em detrimento da presunção de inocência. Ali,
o indivíduo é acusado simplesmente por compor os quadros da empresa; onde o indivíduo é acusado simplesmente por compor os quadros da empresa; onde
a prova? Onde os indícios da autoria e materialidade delitiva? Como garantir a a prova? Onde os indícios da autoria e materialidade delitiva? Como garantir a
ampla defesa sob a alegação míope de que os acusados devem ser interrogados ampla defesa sob a alegação míope de que os acusados devem ser interrogados
em separado? Não há dúvida quanto à urgência da participação dos defensores de em separado? Não há dúvida quanto à urgência da participação dos defensores de
todos os sócios – entendendo esta como o dever de serem comunicados, a oportu- todos os sócios – entendendo esta como o dever de serem comunicados, a oportu-
nidade de participarem e formularem perguntas ou reperguntas – no interrogatório nidade de participarem e formularem perguntas ou reperguntas – no interrogatório
de todos os acusados. de todos os acusados.

5. Conclusão 5. Conclusão
A ampla defesa do acusado no interrogatório judicial não pode, absolutamente, A ampla defesa do acusado no interrogatório judicial não pode, absolutamente,
significar a supressão de direitos dos outros acusados. É dizer, não se concebe, significar a supressão de direitos dos outros acusados. É dizer, não se concebe,
nos dias de hoje, um processo penal marcado pelo desequilíbrio insolúvel entre os nos dias de hoje, um processo penal marcado pelo desequilíbrio insolúvel entre os
interesses dos acusados entre si, principalmente quando tal representa a violação interesses dos acusados entre si, principalmente quando tal representa a violação
de direitos individuais, constitucionalmente protegidos, apartando-se, com isto, de direitos individuais, constitucionalmente protegidos, apartando-se, com isto,
de um modelo de processo garantista, jungido aos princípios da Lei Maior. Ao de um modelo de processo garantista, jungido aos princípios da Lei Maior. Ao
interrogatório de acusado deve ser garantida a participação dos procuradores de interrogatório de acusado deve ser garantida a participação dos procuradores de

23. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p. 532. 23. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Ibidem, p. 532.
24. “O contraditório deve ser assegurado em sua maior amplitude possível. Se o advogado de um co- 24. “O contraditório deve ser assegurado em sua maior amplitude possível. Se o advogado de um co-
réu está presente, tem o direito de participar e inclusive de fazer reperguntas, quando o co-réu ‘A’ réu está presente, tem o direito de participar e inclusive de fazer reperguntas, quando o co-réu ‘A’
faz qualquer tipo de incriminação contra outra pessoa (ou outro co-réu)”. GOMES, Luiz Flávio. faz qualquer tipo de incriminação contra outra pessoa (ou outro co-réu)”. GOMES, Luiz Flávio.
Direito processual penal 6 v, p. 192. Direito processual penal 6 v, p. 192.
25 Ibidem, p. 29. 25 Ibidem, p. 29.
26. Veja-se a que ponto chegou o STJ: “(...) Outrossim, nos crimes societários é dispensável a descri- 26. Veja-se a que ponto chegou o STJ: “(...) Outrossim, nos crimes societários é dispensável a descri-
ção minuciosa e individualizada da conduta de cada acusado, bastando, para tanto, que ela narre ção minuciosa e individualizada da conduta de cada acusado, bastando, para tanto, que ela narre
a conduta delituosa de forma a possibilitar o exercício da ampla defesa” (HC nº. 41.948/SP. 5ª a conduta delituosa de forma a possibilitar o exercício da ampla defesa” (HC nº. 41.948/SP. 5ª
T.Rel. Min. Laurita Vaz. DJ pub 13/06/05, p. 330) – Ordem denegada à unanimidade. T.Rel. Min. Laurita Vaz. DJ pub 13/06/05, p. 330) – Ordem denegada à unanimidade.
330 Misael Neto Bispo da França 330 Misael Neto Bispo da França

eventuais co-réus, entendendo-se a referida participação não só como a presença eventuais co-réus, entendendo-se a referida participação não só como a presença
física do causídico, mas ainda que seja citado para o ato, que lhe seja franqueada física do causídico, mas ainda que seja citado para o ato, que lhe seja franqueada
a palavra para, no momento oportuno, formular perguntas ou reperguntas ao in- a palavra para, no momento oportuno, formular perguntas ou reperguntas ao in-
terrogado. E isto porque, nos casos de co-delinqüência, é perfeitamente possível terrogado. E isto porque, nos casos de co-delinqüência, é perfeitamente possível
que um acusado queira exculpar-se e, para tanto, impute a consumação do fato que um acusado queira exculpar-se e, para tanto, impute a consumação do fato
delituoso ao outro, o que se constitui clara divergência de interesses. O juiz que delituoso ao outro, o que se constitui clara divergência de interesses. O juiz que
veda a referida participação maneja em colidência com princípios constitucionais veda a referida participação maneja em colidência com princípios constitucionais
do processo penal, visto que não restam observados o contraditório e ampla defe- do processo penal, visto que não restam observados o contraditório e ampla defe-
sa. Seu proceder representa cerceamento do direito de defesa prévia e, também, sa. Seu proceder representa cerceamento do direito de defesa prévia e, também,
viola outro caro princípio do direito hodierno, qual seja o da isonomia, por tratar viola outro caro princípio do direito hodierno, qual seja o da isonomia, por tratar
desigualmente os iguais. desigualmente os iguais.
É o Código de Processo Penal que precisa ser lido e aplicado com supedâneo É o Código de Processo Penal que precisa ser lido e aplicado com supedâneo
na Carta Política, com o que cai por terra a tese dos que insistem em desconhecer na Carta Política, com o que cai por terra a tese dos que insistem em desconhecer
“previsão legal” para a participação de advogado (ou defensor) de co-réu no inter- “previsão legal” para a participação de advogado (ou defensor) de co-réu no inter-
rogatório de acusado. A respeito, Aury Lopes Jr. constata que “os processualistas rogatório de acusado. A respeito, Aury Lopes Jr. constata que “os processualistas
contemporâneos têm se orientado por uma tutela constitucional do processo, contemporâneos têm se orientado por uma tutela constitucional do processo,
tendo o processo como instrumento a serviço da ordem constitucional”.27 A tendo o processo como instrumento a serviço da ordem constitucional”.27 A
interpretação que deve ser feita dos artigos 185 e seguintes do CPP, renovados interpretação que deve ser feita dos artigos 185 e seguintes do CPP, renovados
pela Lei nº. 10.792/2003, é a sistemática, enxergando-se aquele rol de dispositivos pela Lei nº. 10.792/2003, é a sistemática, enxergando-se aquele rol de dispositivos
infraconstitucionais como uma gota no oceano que é o ordenamento jurídico pátrio; infraconstitucionais como uma gota no oceano que é o ordenamento jurídico pátrio;
portanto, não se pode analisar o Código com a visão caolha da interpretação literal portanto, não se pode analisar o Código com a visão caolha da interpretação literal
restritiva, sob pena de se incorrer em labuta fadada ao erro. restritiva, sob pena de se incorrer em labuta fadada ao erro.
A jurisprudência é tranqüila, repise-se, quanto a admitir a delação de co-réu A jurisprudência é tranqüila, repise-se, quanto a admitir a delação de co-réu
em interrogatório de acusado, desde que esta não seja o único elemento constante em interrogatório de acusado, desde que esta não seja o único elemento constante
do conjunto probatório, sendo, pois, necessária a comprovação do que disse o do conjunto probatório, sendo, pois, necessária a comprovação do que disse o
interrogado com outras fontes de prova. E, nas pegadas de um devido processo interrogado com outras fontes de prova. E, nas pegadas de um devido processo
penal, há de se entender como outras fontes o gênero que engloba a manifestação penal, há de se entender como outras fontes o gênero que engloba a manifestação
do co-delinquente apontado pelo comparsa, mediante a diligência de sua defesa do co-delinquente apontado pelo comparsa, mediante a diligência de sua defesa
técnica, na função de parâmetro para a aludida comparação. De mais a mais, so- técnica, na função de parâmetro para a aludida comparação. De mais a mais, so-
mente assim permite-se realizar a ampla defesa material, através do contraditório. mente assim permite-se realizar a ampla defesa material, através do contraditório.
E contraditório relaciona-se diretamente com a igualdade substancial entre as E contraditório relaciona-se diretamente com a igualdade substancial entre as
partes28; o primeiro pulsa na paridade de armas entre os contendores, garantida partes28; o primeiro pulsa na paridade de armas entre os contendores, garantida
pela direção do Poder Judiciário em observância daqueloutra. Ciente da resistência pela direção do Poder Judiciário em observância daqueloutra. Ciente da resistência
do juiz em permitir-lhe a participação – lato sensu – no interrogatório de co-réu, do juiz em permitir-lhe a participação – lato sensu – no interrogatório de co-réu,
e com o fito de proteger tal direito, conseqüentemente dando margem à fluência e com o fito de proteger tal direito, conseqüentemente dando margem à fluência
dos direitos do seu cliente ou assistido, reconhece-se, aqui, ser cabível ao advo- dos direitos do seu cliente ou assistido, reconhece-se, aqui, ser cabível ao advo-
gado ou defensor público impetrar Mandado de Segurança, nos termos da Lei nº. gado ou defensor público impetrar Mandado de Segurança, nos termos da Lei nº.

27. Ibidem, p.42. 27. Ibidem, p.42.


28. TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal 28. TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal
(estudo sistemático), p. 204. (estudo sistemático), p. 204.
Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 331 Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 331

1.533/51, com suas atualizações. Procedendo neste ritmo, pleitearia o causídico o 1.533/51, com suas atualizações. Procedendo neste ritmo, pleitearia o causídico o
socorro ao direito líquido e certo de exercer livremente seu mister, velando pelo socorro ao direito líquido e certo de exercer livremente seu mister, velando pelo
devido processo legal, com todas as suas características, e fiscalizando a atuação devido processo legal, com todas as suas características, e fiscalizando a atuação
do juiz em sua persistente tentação ao arbítrio. O professor Eutímio de Carvalho, do juiz em sua persistente tentação ao arbítrio. O professor Eutímio de Carvalho,
por sua vez, entende que referida e odiável resistência do magistrado desafia a por sua vez, entende que referida e odiável resistência do magistrado desafia a
impetração de Habeas corpus em favor do co-réu, comparsa do interrogado.29 E, impetração de Habeas corpus em favor do co-réu, comparsa do interrogado.29 E,
em analogia ao que sente Renato Flavio Marcão, acaso o magistrado não aco- em analogia ao que sente Renato Flavio Marcão, acaso o magistrado não aco-
lhesse, como fundamento para o pedido de novo interrogatório, o cerceamento lhesse, como fundamento para o pedido de novo interrogatório, o cerceamento
de defesa, marcado pela ausência do procurador do requerente ao interrogatório de defesa, marcado pela ausência do procurador do requerente ao interrogatório
de outro réu, referida negativa poderia ser atacada em preliminar de apelação30. de outro réu, referida negativa poderia ser atacada em preliminar de apelação30.
Se, mesmo assim, o interrogatório for realizado sem a garantia da ampla defesa Se, mesmo assim, o interrogatório for realizado sem a garantia da ampla defesa
dos outros acusados, e se estes ainda não foram ouvidos, que conste do termo de dos outros acusados, e se estes ainda não foram ouvidos, que conste do termo de
seus respectivos depoimentos a ausência daquela garantia. Se já foram ouvidos, seus respectivos depoimentos a ausência daquela garantia. Se já foram ouvidos,
que seus defensores requeiram novo interrogatório, de modo a serem rebatidas que seus defensores requeiram novo interrogatório, de modo a serem rebatidas
possíveis acusações feitas pelo co-réu antes interrogado. Aliás, o próprio juiz ga- possíveis acusações feitas pelo co-réu antes interrogado. Aliás, o próprio juiz ga-
rantidor, de ofício, poderá, nesta última hipótese, determinar a realização de outro rantidor, de ofício, poderá, nesta última hipótese, determinar a realização de outro
interrogatório, como também entende o professor Antônio Vieira31. Somente assim interrogatório, como também entende o professor Antônio Vieira31. Somente assim
restará obedecida a jurisprudência pacífica, que prega a necessidade de valoração restará obedecida a jurisprudência pacífica, que prega a necessidade de valoração
das palavras do interrogado contra demais co-réus, mediante outros elementos das palavras do interrogado contra demais co-réus, mediante outros elementos
de prova. E diga-se isto porque o condenado que fora alvo de acusações de seu de prova. E diga-se isto porque o condenado que fora alvo de acusações de seu
comparsa, em interrogatório desprovido da participação da defesa técnica daquele comparsa, em interrogatório desprovido da participação da defesa técnica daquele
(do condenado) não pode ir ao cárcere, visto que sua condenação emergiu de prova (do condenado) não pode ir ao cárcere, visto que sua condenação emergiu de prova
ilegítima, sem o filtro do contraditório, que desembocou em decisão viciada. É ilegítima, sem o filtro do contraditório, que desembocou em decisão viciada. É
por isto que, na impossibilidade de reparação do erro promanado da negativa do por isto que, na impossibilidade de reparação do erro promanado da negativa do
juiz, quanto à participação do defensor de outrem no interrogatório, pugna-se pela juiz, quanto à participação do defensor de outrem no interrogatório, pugna-se pela
imediata retirada do respectivo termo dos autos e pela incontinenti remessa dos imediata retirada do respectivo termo dos autos e pela incontinenti remessa dos
mesmos ao juiz substituto. Quer-se, com tal medida, fixar as bases de um processo mesmos ao juiz substituto. Quer-se, com tal medida, fixar as bases de um processo
penal higienizado pelos fluidos do modelo acusatório, com provas que – mesmo penal higienizado pelos fluidos do modelo acusatório, com provas que – mesmo
as ilícitas porventura aceitas – tenham passado pela assepsia do contraditório, as ilícitas porventura aceitas – tenham passado pela assepsia do contraditório,
em atenção ao princípio da comunhão da prova. Acaso não vingue qualquer em atenção ao princípio da comunhão da prova. Acaso não vingue qualquer
das opções ventiladas, que seja ajuizada ação de revisão criminal para anular a das opções ventiladas, que seja ajuizada ação de revisão criminal para anular a
condenação, restaurando a dignidade do apenado; assim há de se entender, com condenação, restaurando a dignidade do apenado; assim há de se entender, com
base na interpretação de Pacelli sobre o artigo 621-I do CPP32. Ademais, segundo base na interpretação de Pacelli sobre o artigo 621-I do CPP32. Ademais, segundo

30. Interrogatório: primeiras impressões sobre as novas regras ditadas pela Lei nº. 10.792/2003 30. Interrogatório: primeiras impressões sobre as novas regras ditadas pela Lei nº. 10.792/2003
(documento eletrônico). (documento eletrônico).
31. Ponto de vista expressado durante seminário em homenagem ao professor Raul Chaves, em noite 31. Ponto de vista expressado durante seminário em homenagem ao professor Raul Chaves, em noite
do dia 04/07/07, na Faculdade de Direito da UFBA. do dia 04/07/07, na Faculdade de Direito da UFBA.
32. “A nosso sentir, a questão pode ser entendida de outra maneira. 32. “A nosso sentir, a questão pode ser entendida de outra maneira.
Em primeiro lugar, é possível que a decisão esteja lastreada em prova cuja inadmissibilidade, Em primeiro lugar, é possível que a decisão esteja lastreada em prova cuja inadmissibilidade,
porque ilícita ou ilegítima, não tenha sido percebida. Nesse caso, do reconhecimento da ilicitude porque ilícita ou ilegítima, não tenha sido percebida. Nesse caso, do reconhecimento da ilicitude
da prova poderá resultar a inexistência do material probatório para sustentar a condenação.”Ibidem, da prova poderá resultar a inexistência do material probatório para sustentar a condenação.”Ibidem,
p.751. p.751.
332 Misael Neto Bispo da França 332 Misael Neto Bispo da França

entende o mesmo Doutor em Direito pela UFMG, o reconhecimento do direito entende o mesmo Doutor em Direito pela UFMG, o reconhecimento do direito
de defesa do interrogado não permite que ele atribua, falsamente, a prática de de defesa do interrogado não permite que ele atribua, falsamente, a prática de
crime a terceira pessoa, incorrendo no delito de denunciação caluniosa (art. 339 crime a terceira pessoa, incorrendo no delito de denunciação caluniosa (art. 339
do Código Penal Brasileiro)33. do Código Penal Brasileiro)33.
Necessário é que os direitos fundamentais, de incontestável índole principioló- Necessário é que os direitos fundamentais, de incontestável índole principioló-
gica, recebam vida, podendo respirar para além da folha escrita; e tal só se viabiliza gica, recebam vida, podendo respirar para além da folha escrita; e tal só se viabiliza
se os aplicadores do direito trouxerem, em sua formação, em suas convicções, se os aplicadores do direito trouxerem, em sua formação, em suas convicções,
idéias que se coadunem com a vida daqueles direitos. Olvidar esta necessidade é idéias que se coadunem com a vida daqueles direitos. Olvidar esta necessidade é
incorrer no que Ferrajoli denominou “falácia garantista”34, é atuar antigarantisti- incorrer no que Ferrajoli denominou “falácia garantista”34, é atuar antigarantisti-
camente. Aliás, como prega o mestre italiano, “nenhum direito fundamental pode camente. Aliás, como prega o mestre italiano, “nenhum direito fundamental pode
concretamente sobreviver se não é apoiado pela luta por sua atuação da parte de concretamente sobreviver se não é apoiado pela luta por sua atuação da parte de
quem é seu titular e pela solidariedade com esta, de forças políticas e sociais”. É quem é seu titular e pela solidariedade com esta, de forças políticas e sociais”. É
por meio da mencionada luta, portanto, travada no palco externo ao direito, antes por meio da mencionada luta, portanto, travada no palco externo ao direito, antes
mesmo de se transpor para ele, que sobrevivem os direitos e garantias individuais. mesmo de se transpor para ele, que sobrevivem os direitos e garantias individuais.
Pensar diferente é insistir na “idéia de que bastam as razões de um direito bom, Pensar diferente é insistir na “idéia de que bastam as razões de um direito bom,
dotado de sistemas avançados e realizáveis de garantias constitucionais, para conter dotado de sistemas avançados e realizáveis de garantias constitucionais, para conter
os poderes e para pôr os direitos fundamentais a salvo de suas distorções”.35 os poderes e para pôr os direitos fundamentais a salvo de suas distorções”.35
Nesta linha de raciocínio, convém conclamar todos os figurantes processuais, Nesta linha de raciocínio, convém conclamar todos os figurantes processuais,
no sentido de atentarem para a condição inferior dos acusados perante a sanha no sentido de atentarem para a condição inferior dos acusados perante a sanha
punitiva do Estado, não raro estimulada pela “banda podre” da imprensa. Juízes, punitiva do Estado, não raro estimulada pela “banda podre” da imprensa. Juízes,
promotores, assistentes do Ministério Público, advogados e defensores públicos promotores, assistentes do Ministério Público, advogados e defensores públicos
são os catalisadores responsáveis – por terem sido capacitados com a técnica ju- são os catalisadores responsáveis – por terem sido capacitados com a técnica ju-
rídica – pela coexistência de direitos entre os acusados, para que as garantias de rídica – pela coexistência de direitos entre os acusados, para que as garantias de
um não sufoquem a segurança dos outros. Tal dever resplandece, com todo vigor, um não sufoquem a segurança dos outros. Tal dever resplandece, com todo vigor,
no interrogatório, sabidamente meio de defesa com valor probatório a favor do no interrogatório, sabidamente meio de defesa com valor probatório a favor do
acusado, no qual se permite que ele declare o que achar conveniente, assistido acusado, no qual se permite que ele declare o que achar conveniente, assistido
por sua defesa técnica, inclusive culpar outros envolvidos. Se a responsabilidade por sua defesa técnica, inclusive culpar outros envolvidos. Se a responsabilidade
maior, no desenrolar de um processo penal constitucional, recai sobre os aludidos maior, no desenrolar de um processo penal constitucional, recai sobre os aludidos
profissionais, forçoso é convir que seu espírito de luta por um semelhan­te pro- profissionais, forçoso é convir que seu espírito de luta por um semelhan­te pro-
cesso, pelas garantias pertinentes a um sistema verdadeiramente acusatório, deve cesso, pelas garantias pertinentes a um sistema verdadeiramente acusatório, deve
ser fomentado ainda nas Faculdades de Direito. O currículo mínimo dos cursos ser fomentado ainda nas Faculdades de Direito. O currículo mínimo dos cursos
jurídicos deveria dispensar maior atenção às ciências propedêuticas, tais como jurídicos deveria dispensar maior atenção às ciências propedêuticas, tais como
sociologia, antropologia e filosofia geral. Estas matérias poderiam ser ministradas sociologia, antropologia e filosofia geral. Estas matérias poderiam ser ministradas
mais demoradamente aos futuros juristas, a fim de que criem a consciência de que mais demoradamente aos futuros juristas, a fim de que criem a consciência de que
seu trabalho, no porvir, terá o outro por objeto, alguém semelhante a eles, mas seu trabalho, no porvir, terá o outro por objeto, alguém semelhante a eles, mas
com suas próprias fraquezas e dores. com suas próprias fraquezas e dores.

33. Ibidem, p.335. 33. Ibidem, p.335.


34. Ibidem, p. 866. 34. Ibidem, p. 866.
35. FERRAJOLI, Luigi. Trad. Sica et al. Ibidem, p.866. 35. FERRAJOLI, Luigi. Trad. Sica et al. Ibidem, p.866.
Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 333 Interrogado delator – a constitucionalização da sua atividade no processo penal… 333

Por fim, fiquemos com Ferrajoli (mais uma vez, Ferrajoli), remetendo-se a Por fim, fiquemos com Ferrajoli (mais uma vez, Ferrajoli), remetendo-se a
Rudolf Jhering em seu clássico A luta pelo direito: “Apenas pela luta pelos di- Rudolf Jhering em seu clássico A luta pelo direito: “Apenas pela luta pelos di-
reitos, que quer dizer o seu constante exercício e a sua tenaz defesa contra todo reitos, que quer dizer o seu constante exercício e a sua tenaz defesa contra todo
possível obstáculo, ­­ame-aça ou violação, pode ser garantida a efetiva posse e a possível obstáculo, ­­ame-aça ou violação, pode ser garantida a efetiva posse e a
conseguinte valorização da pessoa”.36 conseguinte valorização da pessoa”.36

6. Referências bibliográficas 6. Referências bibliográficas


CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
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CARVALHO, Djalma Eutímio. Curso de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 2007. CARVALHO, Djalma Eutímio. Curso de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coord.). Crítica à teoria geral do direito pro- COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coord.). Crítica à teoria geral do direito pro-
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fática construída através do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. fática construída através do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
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processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. rev. e amp. – tra- FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. rev. e amp. – tra-
dução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio dução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio
Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio século XXI: o minidicionário da FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio século XXI: o minidicionário da
língua portuguesa. 5 ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. língua portuguesa. 5 ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal – fundamentos da instrumentalidade LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal – fundamentos da instrumentalidade
constitucional. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. constitucional. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
MARCÃO, Renato Flávio. Interrogatório: primeiras impressões sobre as novas regras MARCÃO, Renato Flávio. Interrogatório: primeiras impressões sobre as novas regras
ditadas pela Lei nº. 10.792/2003. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, nº. 163, 16 dez. ditadas pela Lei nº. 10.792/2003. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, nº. 163, 16 dez.
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em:18/06/07. em:18/06/07.
MOREIRA, Rômulo. Estudos de direito processual penal – temas atuais. São Paulo: BH MOREIRA, Rômulo. Estudos de direito processual penal – temas atuais. São Paulo: BH
Ed. e Dist. de Livros, 2006. Ed. e Dist. de Livros, 2006.
NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de direito processual penal. 21 ed. atual. por NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de direito processual penal. 21 ed. atual. por
Adalberto José Q.T. de Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, 1992. Adalberto José Q.T. de Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, 1992.

36. Ibidem, p.869. 36. Ibidem, p.869.


334 Misael Neto Bispo da França 334 Misael Neto Bispo da França

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7 ed. rev. atual. e amp. Belo OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7 ed. rev. atual. e amp. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007. Horizonte: Del Rey, 2007.
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 7 ed. rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 7 ed. rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003. Juris, 2003.
SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2 ed. São Paulo: SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. Revista dos Tribunais, 2004.
TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de processo penal. 4 v. São Paulo: Saraiva, TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de processo penal. 4 v. São Paulo: Saraiva,
1978. 1978.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Código de processo penal comentado 1 v. 9 ed. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Código de processo penal comentado 1 v. 9 ed.
rev. aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. rev. aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005.
_______. Processo penal 3 v. 20 ed. rev. modif. e amp. São Paulo: Saraiva, 1998. _______. Processo penal 3 v. 20 ed. rev. modif. e amp. São Paulo: Saraiva, 1998.
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo
penal (estudo sistemático). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. penal (estudo sistemático). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Capítulo XXIII Capítulo XXIII
Os meios de solução de conflitos Os meios de solução de conflitos
relativos ao comércio eletrônico relativos ao comércio eletrônico
internacional internacional

Ricardo Barretto de Andrade* Ricardo Barretto de Andrade*

Sumário • 1. Introdução – 2. A aplicação das regras de conflitos de leis no comércio eletrônico in- Sumário • 1. Introdução – 2. A aplicação das regras de conflitos de leis no comércio eletrônico in-
ternacional – 3. A unificação dos direitos substanciais do mundo – 4. A criação de uma ordem legal ternacional – 3. A unificação dos direitos substanciais do mundo – 4. A criação de uma ordem legal
internacional privada – 5. Conclusão – Referências. internacional privada – 5. Conclusão – Referências.

1. INTRODUÇÃO 1. INTRODUÇÃO

O fenômeno do comércio internacional há muito tempo se apresenta como O fenômeno do comércio internacional há muito tempo se apresenta como
uma realidade no cenário internacional. Mais recentemente, todavia, e sobretudo uma realidade no cenário internacional. Mais recentemente, todavia, e sobretudo
a partir da década de 80, o processo de globalização econômica tem impulsionado a partir da década de 80, o processo de globalização econômica tem impulsionado
os fluxos mundiais de comércio de forma surpreendente. os fluxos mundiais de comércio de forma surpreendente.

Bem assim, o surgimento significativo, na década de 90, do comércio eletrôni- Bem assim, o surgimento significativo, na década de 90, do comércio eletrôni-
co contribuiu para tornar as relações econômicas ainda mais complexas, mormente co contribuiu para tornar as relações econômicas ainda mais complexas, mormente
quando essas relações se desenvolvem entre atores de países distintos. quando essas relações se desenvolvem entre atores de países distintos.

Em decorrência disso, passou a ser fundamental a regulamentação e norma- Em decorrência disso, passou a ser fundamental a regulamentação e norma-
tização satisfatória das relações comerciais existentes no plano supranacional. tização satisfatória das relações comerciais existentes no plano supranacional.
Assim, podem-se vislumbrar essencialmente três modelos voltados a concretizar Assim, podem-se vislumbrar essencialmente três modelos voltados a concretizar
essa regulamentação: o primeiro consiste na aplicação de regras de conflitos de leis essa regulamentação: o primeiro consiste na aplicação de regras de conflitos de leis
que consubstanciam o Direito Internacional privado; uma segunda possibilidade que consubstanciam o Direito Internacional privado; uma segunda possibilidade
seria a busca pela unificação, de forma universal, do direito material ou substancial seria a busca pela unificação, de forma universal, do direito material ou substancial
dos países; por fim, ante a ausência de uma regulamentação do comércio baseada dos países; por fim, ante a ausência de uma regulamentação do comércio baseada
na atuação conjunta dos Estados, surge, no seio das relações econômicas privadas, na atuação conjunta dos Estados, surge, no seio das relações econômicas privadas,
a possibilidade de auto-regulamentação, a exemplo do que de certa maneira já a possibilidade de auto-regulamentação, a exemplo do que de certa maneira já
ocorre por meio da lex mercatoria. ocorre por meio da lex mercatoria.

Esses três meios de solução de conflitos relacionados ao comércio eletrônico Esses três meios de solução de conflitos relacionados ao comércio eletrônico
internacional, muitas vezes coexistentes entre si, apresentam, cada um, vantagens internacional, muitas vezes coexistentes entre si, apresentam, cada um, vantagens

* Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e graduando em Relações * Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e graduando em Relações
Internacionais pelas Faculdades Jorge Amado. Internacionais pelas Faculdades Jorge Amado.
336 Ricardo Barretto de Andrade 336 Ricardo Barretto de Andrade

e desvantagens, razão pela qual todos devem ser estudados e analisados, porquanto e desvantagens, razão pela qual todos devem ser estudados e analisados, porquanto
as relações comerciais internacionais demandam um nível de segurança jurídica as relações comerciais internacionais demandam um nível de segurança jurídica
e institucional do qual ainda se está muito aquém. e institucional do qual ainda se está muito aquém.

2. A APLICAÇÃO DAS REGRAS DE CONFLITOS DE LEIS NO COMÉR- 2. A APLICAÇÃO DAS REGRAS DE CONFLITOS DE LEIS NO COMÉR-
CIO ELETRÔNICO INTERNACIONAL CIO ELETRÔNICO INTERNACIONAL
O Direito Internacional Privado, entendido como um conjunto de normas de O Direito Internacional Privado, entendido como um conjunto de normas de
direito interno que regula relações privadas dotadas de elementos de estraneida- direito interno que regula relações privadas dotadas de elementos de estraneida-
de, possui caráter instrumental, portanto direcionado a solucionar um conflito de de, possui caráter instrumental, portanto direcionado a solucionar um conflito de
competência legislativa internacional por meio da utilização de regras que definem competência legislativa internacional por meio da utilização de regras que definem
a lei a ser aplicada no caso concreto. a lei a ser aplicada no caso concreto.
No que se refere ao comércio internacional, a aplicação das regras de confli- No que se refere ao comércio internacional, a aplicação das regras de confli-
tos de leis é ainda muito tímida. Isso porque a dinâmica das relações comerciais tos de leis é ainda muito tímida. Isso porque a dinâmica das relações comerciais
praticamente “atropela” a morosa renovação legislativa dos critérios de determi- praticamente “atropela” a morosa renovação legislativa dos critérios de determi-
nação da lei que deverá ser aplicada caso se constate a ocorrência de um choque nação da lei que deverá ser aplicada caso se constate a ocorrência de um choque
de leis de países distintos. Além disso, a efetividade do Direito Internacional de leis de países distintos. Além disso, a efetividade do Direito Internacional
Privado depende, em grande medida, da harmonização dos critérios de solução Privado depende, em grande medida, da harmonização dos critérios de solução
de conflitos aplicados pelos diferentes países, sem o que a aplicabilidade desses de conflitos aplicados pelos diferentes países, sem o que a aplicabilidade desses
critérios pode se tornar inócua. critérios pode se tornar inócua.
Assim, havendo um litígio comercial internacional, caso os países relacio- Assim, havendo um litígio comercial internacional, caso os países relacio-
nados ao conflito não adotem o mesmo critério de conexão, não se chegará a nados ao conflito não adotem o mesmo critério de conexão, não se chegará a
uma solução comum e satisfatória para ambos os países. Dessa forma, o Direito uma solução comum e satisfatória para ambos os países. Dessa forma, o Direito
Internacional Privado, a despeito de ser formado por um conjunto de normas que Internacional Privado, a despeito de ser formado por um conjunto de normas que
pertencem aos ordenamentos jurídicos internos, carece de uma harmonização ou pertencem aos ordenamentos jurídicos internos, carece de uma harmonização ou
unificação internacional. unificação internacional.
Nesse campo, há iniciativas de maior ou menor sucesso de harmonização do Nesse campo, há iniciativas de maior ou menor sucesso de harmonização do
Direito Internacional Privado. A União Européia, por exemplo, apresenta um bom Direito Internacional Privado. A União Européia, por exemplo, apresenta um bom
estágio de uniformização deste ramo do direito, ao passo que a América Latina, estágio de uniformização deste ramo do direito, ao passo que a América Latina,
apesar de ter sido pioneira com o Código Bustamante, de 1928, não alcançou um apesar de ter sido pioneira com o Código Bustamante, de 1928, não alcançou um
estágio de unificação normativa tão avançado, sobretudo em razão da utilização estágio de unificação normativa tão avançado, sobretudo em razão da utilização
abusiva do instituto das reservas aplicado aos tratados internacionais. abusiva do instituto das reservas aplicado aos tratados internacionais.
Em relação ao comércio eletrônico internacional, sua natureza ainda mais Em relação ao comércio eletrônico internacional, sua natureza ainda mais
fluida e dinâmica torna a aplicação das regras de conflitos de leis ainda mais fluida e dinâmica torna a aplicação das regras de conflitos de leis ainda mais
complexa que no comércio internacional tradicional. Essa espécie de comércio complexa que no comércio internacional tradicional. Essa espécie de comércio
difere do comércio tradicional principalmente pela forma de celebração dos con- difere do comércio tradicional principalmente pela forma de celebração dos con-
tratos que ensejam sua prática. Bem assim, por ser um fenômeno muito recente, tratos que ensejam sua prática. Bem assim, por ser um fenômeno muito recente,
o comércio eletrônico ainda não apresenta uma regulamentação satisfatória pelos o comércio eletrônico ainda não apresenta uma regulamentação satisfatória pelos
direitos internos dos países. direitos internos dos países.
Os meios de solução de conflitos relativos ao comércio eletrônico internacional… 337 Os meios de solução de conflitos relativos ao comércio eletrônico internacional… 337

Com a revolução tecnológica hodiernamente ocorrida, as relações econômicas Com a revolução tecnológica hodiernamente ocorrida, as relações econômicas
têm se tornado cada vez mais ágeis. Se há algum tempo era possível saber o local têm se tornado cada vez mais ágeis. Se há algum tempo era possível saber o local
de celebração de um contrato devido a seu caráter escrito ou verbal, nos dias atuais de celebração de um contrato devido a seu caráter escrito ou verbal, nos dias atuais
muitas relações econômicas ocorrem virtualmente, de forma eletrônica, pelo que muitas relações econômicas ocorrem virtualmente, de forma eletrônica, pelo que
se tem enorme dificuldade para regulamentá-las. se tem enorme dificuldade para regulamentá-las.
Nesse sentido, o Advogado Eduardo Weiss Martins de Lima (2007), mestre Nesse sentido, o Advogado Eduardo Weiss Martins de Lima (2007), mestre
em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela PUC/SP, pondera que: em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela PUC/SP, pondera que:
Quando um consumidor em nosso país tem uma pretensão resistida em relação a Quando um consumidor em nosso país tem uma pretensão resistida em relação a
um fornecedor localizado em outro – por exemplo o bem adquirido não é entregue um fornecedor localizado em outro – por exemplo o bem adquirido não é entregue
– temos em mente que existem dois ordenamentos jurídicos, a princípio, a reger a – temos em mente que existem dois ordenamentos jurídicos, a princípio, a reger a
relação, já que nas compras pela internet dificilmente haveria eleição de lei e foro. relação, já que nas compras pela internet dificilmente haveria eleição de lei e foro.
Como, da mesma forma, dificilmente o direito material – e processual – desses Como, da mesma forma, dificilmente o direito material – e processual – desses
países será harmônico, igual, ou mesmo semelhante, podemos ter um conflito de países será harmônico, igual, ou mesmo semelhante, podemos ter um conflito de
normas. Qual sistema prevalece? As regras de Direito Internacional Privado de normas. Qual sistema prevalece? As regras de Direito Internacional Privado de
cada país trazem elementos de conexão para determinar o direito aplicável – terri- cada país trazem elementos de conexão para determinar o direito aplicável – terri-
toriais, como o domicilio, pessoais, como a nacionalidade, ou mesmo voluntários toriais, como o domicilio, pessoais, como a nacionalidade, ou mesmo voluntários
– mas são, da mesma forma diferentes entre os diferentes ordenamentos, além de – mas são, da mesma forma diferentes entre os diferentes ordenamentos, além de
antiquadas e relacionadas às obrigações mercantis, como no caso do Brasil (art. antiquadas e relacionadas às obrigações mercantis, como no caso do Brasil (art.
9º da LICC). É na vontade dos Estados em harmonizar estas relações por meio 9º da LICC). É na vontade dos Estados em harmonizar estas relações por meio
dos acordos internacionais, como no caso da OEA, que pode haver a saída para dos acordos internacionais, como no caso da OEA, que pode haver a saída para
tantas perguntas. tantas perguntas.

Dessa forma, observa-se que a capacidade de utilização do Direito Internacio- Dessa forma, observa-se que a capacidade de utilização do Direito Internacio-
nal Privado para solucionar conflitos de competência legislativa internacional é nal Privado para solucionar conflitos de competência legislativa internacional é
ainda muito restrita no que toca ao comércio eletrônico internacional, seja porque ainda muito restrita no que toca ao comércio eletrônico internacional, seja porque
o direito interno dos países ainda não é capaz de normatizar o comércio eletrôni- o direito interno dos países ainda não é capaz de normatizar o comércio eletrôni-
co, ou, ainda, porque não há suficiente consenso entre os ordenamentos jurídicos co, ou, ainda, porque não há suficiente consenso entre os ordenamentos jurídicos
dos países para que sejam adotadas regras comuns de resolução de conflitos de dos países para que sejam adotadas regras comuns de resolução de conflitos de
leis, valendo-se destas como principal meio para regulamentar esse emergente leis, valendo-se destas como principal meio para regulamentar esse emergente
fenômeno econômico. fenômeno econômico.

3. A UNIFICAÇÃO DOS DIREITOS SUBSTANCIAIS DO MUNDO 3. A UNIFICAÇÃO DOS DIREITOS SUBSTANCIAIS DO MUNDO

Num mundo marcado pelo avanço do processo de globalização e pela poro- Num mundo marcado pelo avanço do processo de globalização e pela poro-
sidade crescente das fronteiras nacionais, em decorrência do aumento nos fluxos sidade crescente das fronteiras nacionais, em decorrência do aumento nos fluxos
internacionais de pessoas, mercadorias e capital, a unificação dos direitos subs- internacionais de pessoas, mercadorias e capital, a unificação dos direitos subs-
tanciais dos países certamente simplificaria a solução dos conflitos que decorrem tanciais dos países certamente simplificaria a solução dos conflitos que decorrem
das mais diversas relações internacionais privadas. das mais diversas relações internacionais privadas.

Isso permitiria, no que se refere ao comércio eletrônico, por exemplo, a Isso permitiria, no que se refere ao comércio eletrônico, por exemplo, a
aplicação internacional de normas únicas de direito comercial, empresarial, ban- aplicação internacional de normas únicas de direito comercial, empresarial, ban-
cário, das relações de consumo, etc., sem a necessidade de utilização de regras cário, das relações de consumo, etc., sem a necessidade de utilização de regras
de conflitos de leis, já que não ocorreriam estes conflitos. de conflitos de leis, já que não ocorreriam estes conflitos.
338 Ricardo Barretto de Andrade 338 Ricardo Barretto de Andrade

Esse ideal de unificação do direito material dos países, todavia, é ainda mais Esse ideal de unificação do direito material dos países, todavia, é ainda mais
difícil de ser alcançado que o ideal de uniformização do Direito Internacional difícil de ser alcançado que o ideal de uniformização do Direito Internacional
Privado. Isso porque, apesar da existência do processo de globalização, cada Privado. Isso porque, apesar da existência do processo de globalização, cada
país ainda possui marcantes e singulares características sociais e culturais, que país ainda possui marcantes e singulares características sociais e culturais, que
se refletem de forma única em seu ordenamento jurídico, pelo que é improvável, se refletem de forma única em seu ordenamento jurídico, pelo que é improvável,
ao menos num razoável espaço de tempo, que venha a ocorrer um esforço de ao menos num razoável espaço de tempo, que venha a ocorrer um esforço de
unificação internacional dos direitos substanciais. unificação internacional dos direitos substanciais.
Em seus estudos sobre a harmonização e unificação do direito privado na Em seus estudos sobre a harmonização e unificação do direito privado na
América Latina, o Professor Alejandro Garro (1994) afirma a existência de uma América Latina, o Professor Alejandro Garro (1994) afirma a existência de uma
identidade na cultura jurídica dos países latinos que constituiria uma base firme identidade na cultura jurídica dos países latinos que constituiria uma base firme
para a harmonização dos direitos materiais internos destes países. Em razão para a harmonização dos direitos materiais internos destes países. Em razão
disso, segundo Garro, as tendências de uniformização do direito substantivo disso, segundo Garro, as tendências de uniformização do direito substantivo
latino-americano se projetariam em uma crescente elaboração de “leis-tipo” ou latino-americano se projetariam em uma crescente elaboração de “leis-tipo” ou
“códigos modelo”. A despeito de servir em ­alguma medida como fonte de reformas “códigos modelo”. A despeito de servir em ­alguma medida como fonte de reformas
legislativas, essa tendência, todavia, ainda não teria viabilizado a concretização legislativas, essa tendência, todavia, ainda não teria viabilizado a concretização
de um direito positivo uniforme. de um direito positivo uniforme.
No particular, também vale salientar que a unificação dos direitos substantivos No particular, também vale salientar que a unificação dos direitos substantivos
relativos ao comércio internacional, mormente ao comércio eletrônico internacio- relativos ao comércio internacional, mormente ao comércio eletrônico internacio-
nal, possui duas dificuldades adicionais. nal, possui duas dificuldades adicionais.
Em primeiro plano, considerando que as legislações internas que envolvem o Em primeiro plano, considerando que as legislações internas que envolvem o
comércio eletrônico são extremamente defasadas, deve-se levar em conta que um comércio eletrônico são extremamente defasadas, deve-se levar em conta que um
esforço internacional de unificação das normas relativas a este comércio teria de esforço internacional de unificação das normas relativas a este comércio teria de
ser ainda maior, pois o esforço não seria meramente de unificação, mas de cons- ser ainda maior, pois o esforço não seria meramente de unificação, mas de cons-
trução de um direito unificado, uma vez que ainda é incipiente a regulamentação trução de um direito unificado, uma vez que ainda é incipiente a regulamentação
do comércio eletrônico nos ordenamentos jurídicos internos, pelo que não há bases do comércio eletrônico nos ordenamentos jurídicos internos, pelo que não há bases
sólidas para haver um processo de unificação. sólidas para haver um processo de unificação.
Por outro lado, caso fosse alcançado um estágio avançado de unificação Por outro lado, caso fosse alcançado um estágio avançado de unificação
legislativa no campo do comércio eletrônico internacional, surgiria o desafio de legislativa no campo do comércio eletrônico internacional, surgiria o desafio de
criar mecanismos de atualização legislativa capazes de acompanhar a evolução criar mecanismos de atualização legislativa capazes de acompanhar a evolução
dinâmica deste tipo de comércio. dinâmica deste tipo de comércio.
Não se vislumbra, portanto, uma significativa possibilidade de resolução dos Não se vislumbra, portanto, uma significativa possibilidade de resolução dos
conflitos que envolvem o comércio internacional por meio da uniformização dos conflitos que envolvem o comércio internacional por meio da uniformização dos
direitos substanciais dos países, pelo menos não por meio da formatação de um direitos substanciais dos países, pelo menos não por meio da formatação de um
ordenamento jurídico único, o que não exclui a possibilidade de unificação pontual ordenamento jurídico único, o que não exclui a possibilidade de unificação pontual
de determinadas normas que envolvem esse tipo de comércio. de determinadas normas que envolvem esse tipo de comércio.

4. A CRIAÇÃO DE UMA ORDEM LEGAL INTERNACIONAL PRIVADA 4. A CRIAÇÃO DE UMA ORDEM LEGAL INTERNACIONAL PRIVADA
O crescimento significativo do comércio internacional ocorrido no século O crescimento significativo do comércio internacional ocorrido no século
XX foi responsável pelo surgimento de um fenômeno sistêmico de normatização XX foi responsável pelo surgimento de um fenômeno sistêmico de normatização
Os meios de solução de conflitos relativos ao comércio eletrônico internacional… 339 Os meios de solução de conflitos relativos ao comércio eletrônico internacional… 339

privada das relações comerciais internacionais. Segundo o Professor Valerio privada das relações comerciais internacionais. Segundo o Professor Valerio
Mazzuoli (2003), este é um fenômeno que tem origem remota nas feiras da Idade Mazzuoli (2003), este é um fenômeno que tem origem remota nas feiras da Idade
Média, quando os comerciantes buscavam a auto-regulamentação de suas relações Média, quando os comerciantes buscavam a auto-regulamentação de suas relações
como forma de superar os entraves impostos pelo sistema feudal de então. como forma de superar os entraves impostos pelo sistema feudal de então.
Nesse sentido, o primeiro intelectual a detectar a existência de um direito Nesse sentido, o primeiro intelectual a detectar a existência de um direito
costumeiro do comércio internacional baseado na prática reiterada de seus agentes costumeiro do comércio internacional baseado na prática reiterada de seus agentes
foi o Professor Berthold Goldman, em trabalho publicado em 1964. De forma foi o Professor Berthold Goldman, em trabalho publicado em 1964. De forma
pioneira, Goldman (1964) revelou a emergência de um fenômeno denominado pioneira, Goldman (1964) revelou a emergência de um fenômeno denominado
“nova lex mercatoria”, que corresponderia a um conjunto de normas de origem “nova lex mercatoria”, que corresponderia a um conjunto de normas de origem
essencialmente privada, responsável por regulamentar as práticas do comércio essencialmente privada, responsável por regulamentar as práticas do comércio
internacional. internacional.
Segundo Goldman (1964), as relações econômicas privadas internacionais Segundo Goldman (1964), as relações econômicas privadas internacionais
cada dia mais escapariam da influência dos ordenamentos jurídicos estatais, cada dia mais escapariam da influência dos ordenamentos jurídicos estatais,
ou até mesmo de um direito uniforme integrado à legislação dos Estados. Isso ou até mesmo de um direito uniforme integrado à legislação dos Estados. Isso
ocorreria porque, de forma semelhante ao que acontecia na Idade Média, há, na ocorreria porque, de forma semelhante ao que acontecia na Idade Média, há, na
modernidade, a necessidade de que os agentes privados do comércio possuam modernidade, a necessidade de que os agentes privados do comércio possuam
mecanismos de solução de conflitos compatíveis com a dinâmica das relações mecanismos de solução de conflitos compatíveis com a dinâmica das relações
comerciais por eles empreendidas. comerciais por eles empreendidas.
Nesse sentido, à medida que os Estados, seja pela normatização interna, seja Nesse sentido, à medida que os Estados, seja pela normatização interna, seja
por suas articulações no sentido de criar normas uniformes de direito substantivo por suas articulações no sentido de criar normas uniformes de direito substantivo
ou instrumental, não dispõem de instrumentos adequados à regulamentação do ou instrumental, não dispõem de instrumentos adequados à regulamentação do
comércio internacional, surge, como imperativo, a necessidade de essas relações comércio internacional, surge, como imperativo, a necessidade de essas relações
econômicas serem guiadas por normas criadas por iniciativa dos próprios agentes econômicas serem guiadas por normas criadas por iniciativa dos próprios agentes
dessa modalidade comércio. dessa modalidade comércio.
Assim é que as articulações do setor privado, ocorridas de forma espontânea, Assim é que as articulações do setor privado, ocorridas de forma espontânea,
tornam-se relevantes e atualmente ocorrem, inclusive, no âmbito de instituições tornam-se relevantes e atualmente ocorrem, inclusive, no âmbito de instituições
criadas com o intuito de estudar e normatizar o comércio internacional, a exemplo criadas com o intuito de estudar e normatizar o comércio internacional, a exemplo
da UNIDROIT (The International Institute for the Unification of Private Law) e da UNIDROIT (The International Institute for the Unification of Private Law) e
da Câmara do Comércio Internacional de Paris. da Câmara do Comércio Internacional de Paris.
O interessante é que o direito costumeiro do comércio internacional tem criado O interessante é que o direito costumeiro do comércio internacional tem criado
figuras jurídicas até então desconhecidas pelos ordenamentos jurídicos internos figuras jurídicas até então desconhecidas pelos ordenamentos jurídicos internos
e que, muitas vezes, são incorporadas por estes. A criação das “INCOTERMS”, e que, muitas vezes, são incorporadas por estes. A criação das “INCOTERMS”,
no bojo da Câmara Internacional de Comércio, e sua posterior adoção pelo direi- no bojo da Câmara Internacional de Comércio, e sua posterior adoção pelo direi-
to comercial brasileiro, por exemplo, demonstra a pujança do fenômeno da lex to comercial brasileiro, por exemplo, demonstra a pujança do fenômeno da lex
mercatoria e os impactos que este pode ter também nos ordenamentos internos. mercatoria e os impactos que este pode ter também nos ordenamentos internos.
De igual maneira, há figuras de contratos internacionais atualmente reconheci- De igual maneira, há figuras de contratos internacionais atualmente reconheci-
das pelo direito brasileiro que se originaram das práticas reiteradas do comércio das pelo direito brasileiro que se originaram das práticas reiteradas do comércio
internacional, a exemplo dos contratos de leasing e franchising. internacional, a exemplo dos contratos de leasing e franchising.
340 Ricardo Barretto de Andrade 340 Ricardo Barretto de Andrade

No que se refere ao comércio eletrônico internacional, este possui particu- No que se refere ao comércio eletrônico internacional, este possui particu-
laridades em relação ao comércio tradicional e, mesmo no âmbito das práticas laridades em relação ao comércio tradicional e, mesmo no âmbito das práticas
reiteradas do comércio internacional, ainda apresenta regulamentação incipiente. reiteradas do comércio internacional, ainda apresenta regulamentação incipiente.
Deve-se reconhecer, portanto, que a lex mercatoria ainda não abarca satisfatoria- Deve-se reconhecer, portanto, que a lex mercatoria ainda não abarca satisfatoria-
mente o comércio eletrônico. Há, todavia, um enorme potencial para a adoção da mente o comércio eletrônico. Há, todavia, um enorme potencial para a adoção da
lex mercatoria aplicada ao campo do comércio eletrônico, que, segundo o Professor lex mercatoria aplicada ao campo do comércio eletrônico, que, segundo o Professor
Cláudio Finkelstein (2005) poderia ser denominada “e-lex mercatoria”. Cláudio Finkelstein (2005) poderia ser denominada “e-lex mercatoria”.
Nesse esteio, aplicada ao comércio eletrônico, a lex mercatoria possibilitaria Nesse esteio, aplicada ao comércio eletrônico, a lex mercatoria possibilitaria
uma maior dinâmica normativa a esse campo do direito internacional, algo extre- uma maior dinâmica normativa a esse campo do direito internacional, algo extre-
mamente difícil de ocorrer com uma possível uniformização dos direitos internos mamente difícil de ocorrer com uma possível uniformização dos direitos internos
dos países ou mesmo com a harmonização das regras de conflito de competência. dos países ou mesmo com a harmonização das regras de conflito de competência.
Dessa forma, a grande vantagem da “e-lex mercatoria” seria criar mecanismos Dessa forma, a grande vantagem da “e-lex mercatoria” seria criar mecanismos
céleres e eficazes de solução de conflitos que envolvem o comércio eletrônico céleres e eficazes de solução de conflitos que envolvem o comércio eletrônico
internacional. internacional.
Há, entretanto, uma diferença fundamental entre o comércio internacional Há, entretanto, uma diferença fundamental entre o comércio internacional
tradicional e o comércio eletrônico no que se refere a seus agentes. Por um lado, tradicional e o comércio eletrônico no que se refere a seus agentes. Por um lado,
o comércio tradicional, em regra, envolve a atuação de empresas ou pessoas o comércio tradicional, em regra, envolve a atuação de empresas ou pessoas
jurídicas de forma geral. Nesse contexto, caso haja alguma contenda, um árbitro jurídicas de forma geral. Nesse contexto, caso haja alguma contenda, um árbitro
pode ser designado pelas partes para solucionar o conflito, consoante as normas, pode ser designado pelas partes para solucionar o conflito, consoante as normas,
princípios e práticas que regem o comércio internacional. princípios e práticas que regem o comércio internacional.
Em relação ao comércio eletrônico, todavia, a situação mais comum envol- Em relação ao comércio eletrônico, todavia, a situação mais comum envol-
ve, como partes, uma empresa e uma pessoa física. Esse fato deve alertar para a ve, como partes, uma empresa e uma pessoa física. Esse fato deve alertar para a
existência em potencial de relações de consumo no seio do comércio eletrônico existência em potencial de relações de consumo no seio do comércio eletrônico
internacional, o que implica em dizer que uma das partes (o consumidor) é ma- internacional, o que implica em dizer que uma das partes (o consumidor) é ma-
nifestamente hipossuficiente em relação à outra. nifestamente hipossuficiente em relação à outra.
Assim, pode-se questionar: Caberia nessa situação a aplicação da arbitragem Assim, pode-se questionar: Caberia nessa situação a aplicação da arbitragem
nos moldes em que é utilizada pela lex mercatoria? Como esperar que a prática nos moldes em que é utilizada pela lex mercatoria? Como esperar que a prática
reiterada do comércio eletrônico internacional crie mecanismos de solução de reiterada do comércio eletrônico internacional crie mecanismos de solução de
conflitos que possuam eqüidade e permitam o equilíbrio da relação contratual? conflitos que possuam eqüidade e permitam o equilíbrio da relação contratual?
Esses são temas sobre os quais a criação de uma doutrina da e-lex mercatoria Esses são temas sobre os quais a criação de uma doutrina da e-lex mercatoria
deverá perpassar, já que não se pode simplesmente utilizar os institutos da lex deverá perpassar, já que não se pode simplesmente utilizar os institutos da lex
mercatoria de forma deliberada em relação ao comércio eletrônico, pelo menos mercatoria de forma deliberada em relação ao comércio eletrônico, pelo menos
não antes que se tenha a devida dimensão das especificidades e peculiaridades não antes que se tenha a devida dimensão das especificidades e peculiaridades
desse tipo de comércio. desse tipo de comércio.
O mais adequado, portanto, não seria o que propõe o Professor Finkelstein O mais adequado, portanto, não seria o que propõe o Professor Finkelstein
(2005), no sentido da mera “adoção da lex mercatoria aplicada ao campo do (2005), no sentido da mera “adoção da lex mercatoria aplicada ao campo do
comércio eletrônico”, pois isso geraria graves distorções contratuais e jurídicas comércio eletrônico”, pois isso geraria graves distorções contratuais e jurídicas
nas relações econômicas ocorridas via comércio eletrônico. nas relações econômicas ocorridas via comércio eletrônico.
Os meios de solução de conflitos relativos ao comércio eletrônico internacional… 341 Os meios de solução de conflitos relativos ao comércio eletrônico internacional… 341

Nesse particular, parece necessária uma análise detalhada das particularidades Nesse particular, parece necessária uma análise detalhada das particularidades
do comércio eletrônico, bem como é adequado e aconselhável que os Estados do comércio eletrônico, bem como é adequado e aconselhável que os Estados
participem dessa nova regulamentação, criando em conjunto, por exemplo, normas participem dessa nova regulamentação, criando em conjunto, por exemplo, normas
uniformes de proteção ao consumidor, ou mesmo critérios uniformes de solução uniformes de proteção ao consumidor, ou mesmo critérios uniformes de solução
de conflitos por meio do Direito Internacional Privado. de conflitos por meio do Direito Internacional Privado.

5. CONCLUSÃO 5. CONCLUSÃO
Ante de tudo quanto exposto, pode-se afirmar que nenhum dos meios de Ante de tudo quanto exposto, pode-se afirmar que nenhum dos meios de
solução de conflitos de leis atinentes ao comércio internacional pode ser adequa- solução de conflitos de leis atinentes ao comércio internacional pode ser adequa-
damente transposto de forma autônoma para o campo do comércio eletrônico damente transposto de forma autônoma para o campo do comércio eletrônico
internacional. internacional.
Se, por um lado, a aplicação do Direito Internacional privado e a unificação Se, por um lado, a aplicação do Direito Internacional privado e a unificação
dos direitos substanciais são deficientes num campo tão novo e ainda pouco re- dos direitos substanciais são deficientes num campo tão novo e ainda pouco re-
tratado pelas legislações internas, igualmente a proposta de criação de uma “e-lex tratado pelas legislações internas, igualmente a proposta de criação de uma “e-lex
mercatoria” não pode ser tida como única forma de solução de conflitos relativos mercatoria” não pode ser tida como única forma de solução de conflitos relativos
ao comércio eletrônico internacional. ao comércio eletrônico internacional.
O que desponta como mais adequado, pois, é a utilização simultânea dos O que desponta como mais adequado, pois, é a utilização simultânea dos
três meios de solução de conflitos, adaptando-os às peculiaridades do comércio três meios de solução de conflitos, adaptando-os às peculiaridades do comércio
eletrônico. Assim, a unificação, ainda que complexa, dos direitos substanciais em eletrônico. Assim, a unificação, ainda que complexa, dos direitos substanciais em
determinados pontos não exclui a aplicação do Direito Internacional privado em determinados pontos não exclui a aplicação do Direito Internacional privado em
outras questões, que, por sua vez, também pode ser conciliada com a aplicação das outras questões, que, por sua vez, também pode ser conciliada com a aplicação das
práticas reiteradas do comércio internacional adaptadas ao comércio eletrônico. práticas reiteradas do comércio internacional adaptadas ao comércio eletrônico.
A questão dos meios de solução de conflitos, portanto, não pode ser vista a A questão dos meios de solução de conflitos, portanto, não pode ser vista a
partir de uma dicotomia, de uma oposição ou exclusão mútua, pelo que a conci- partir de uma dicotomia, de uma oposição ou exclusão mútua, pelo que a conci-
liação destes meios é fundamental para o deslinde das complexas questões que liação destes meios é fundamental para o deslinde das complexas questões que
envolvem o comércio eletrônico internacional. envolvem o comércio eletrônico internacional.

6. REFERÊNCIAS 6. REFERÊNCIAS
FINKELSTEIN, Cláudio. “A E-Lex Mercatoria”. Revista de Direito Internacional e Eco- FINKELSTEIN, Cláudio. “A E-Lex Mercatoria”. Revista de Direito Internacional e Eco-
nômico, abr-jun de 2005, v. 11: p. 99. nômico, abr-jun de 2005, v. 11: p. 99.
GARRO, Alejandro M.. “Armonizacion y unificacion del derecho privado en America GARRO, Alejandro M.. “Armonizacion y unificacion del derecho privado en America
Latina: esfuerzos, tendencias y realidades”, Revista de Direito Civil, jul-set de 1994, Latina: esfuerzos, tendencias y realidades”, Revista de Direito Civil, jul-set de 1994,
nº 65. nº 65.
GOLDMAN, Berthold. “Frontières du droit et lex mercatoria”. In: Archives de Philosophie GOLDMAN, Berthold. “Frontières du droit et lex mercatoria”. In: Archives de Philosophie
du Droit. Paris: Sirey, nº 9 (Le droit subjectif en question), p. 177-192, 1964. du Droit. Paris: Sirey, nº 9 (Le droit subjectif en question), p. 177-192, 1964.
MARTINS DE LIMA, Eduardo. “Proteção do consumidor brasileiro no comércio eletrô- MARTINS DE LIMA, Eduardo. “Proteção do consumidor brasileiro no comércio eletrô-
nico internacional”. in Jornal Jurídico Carta Forense, edição 1/2007. Disponível nico internacional”. in Jornal Jurídico Carta Forense, edição 1/2007. Disponível
em: <http://www.cartaforense.com.br/v1/index.php?id=entrevistas&identrevista=61>. em: <http://www.cartaforense.com.br/v1/index.php?id=entrevistas&identrevista=61>.
Acesso em 29 mar. 2007. Acesso em 29 mar. 2007.
342 Ricardo Barretto de Andrade 342 Ricardo Barretto de Andrade

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. “A nova lex mercatoria como fonte do direito do comércio MAZZUOLI, Valério de Oliveira. “A nova lex mercatoria como fonte do direito do comércio
internacional: um paralelo entre as concepções de Berthold Goldman e Paul Lagarde”. internacional: um paralelo entre as concepções de Berthold Goldman e Paul Lagarde”.
In: Jete Jane FIORATI e Valerio de Oliveira MAZZUOLI (Coord.). Novas Vertentes In: Jete Jane FIORATI e Valerio de Oliveira MAZZUOLI (Coord.). Novas Vertentes
do Direito do Comércio Internacional. São Paulo, ed. Manole, 2003, p. 28. do Direito do Comércio Internacional. São Paulo, ed. Manole, 2003, p. 28.
Capítulo XXIV Capítulo XXIV
Questionamentos a respeito Questionamentos a respeito
da estabilidade provisória da empregada da estabilidade provisória da empregada
doméstica gestante: uma visão doméstica gestante: uma visão
sócio-juridica dessas mulheres sócio-juridica dessas mulheres

Samira Oliveira Noronha* Samira Oliveira Noronha*

Sumário • 1. Introdução – 2. Os Aspectos Sócio-históricos: Quem é a empregada doméstica brasileira? Sumário • 1. Introdução – 2. Os Aspectos Sócio-históricos: Quem é a empregada doméstica brasileira?
– 3. A estabilidade provisória da doméstica gestante: 3.1. A realidade jurídica versus a realidade social: – 3. A estabilidade provisória da doméstica gestante: 3.1. A realidade jurídica versus a realidade social:
3.2. Empregada doméstica: algoz ou vítima? – 4. Conclusão – Referências Bibliográficas. 3.2. Empregada doméstica: algoz ou vítima? – 4. Conclusão – Referências Bibliográficas.

1. Introdução 1. Introdução
A estabilidade provisória da doméstica gestante foi assegurada em 19 de julho A estabilidade provisória da doméstica gestante foi assegurada em 19 de julho
de 2006 pela Lei 11.324, mas ainda continua levantando polêmicas. Existem duas de 2006 pela Lei 11.324, mas ainda continua levantando polêmicas. Existem duas
principais posições doutrinárias e jurisprudenciais que tratam do assunto, uma a principais posições doutrinárias e jurisprudenciais que tratam do assunto, uma a
favor, outra contrária, mas ambas versam sempre sobre os mesmos argumentos: favor, outra contrária, mas ambas versam sempre sobre os mesmos argumentos:
proteção à família, ou melhor, ao empregador, e a legalidade. Entretanto, a em- proteção à família, ou melhor, ao empregador, e a legalidade. Entretanto, a em-
pregada doméstica, verdadeira “tutelada” pelo Direito do Trabalho, neste caso, pregada doméstica, verdadeira “tutelada” pelo Direito do Trabalho, neste caso,
permanece como objeto, e não sujeito, da discussão. É justamente o seu lado que permanece como objeto, e não sujeito, da discussão. É justamente o seu lado que
será exposto neste artigo. será exposto neste artigo.
Sem tentar alcançar uma – imaginária – neutralidade, propomo-nos a mostrar Sem tentar alcançar uma – imaginária – neutralidade, propomo-nos a mostrar
quem é a empregada doméstica1 brasileira através de dados de suas características quem é a empregada doméstica1 brasileira através de dados de suas características
e condições de trabalho, retirados de uma pesquisa realizada pelo Departamento e condições de trabalho, retirados de uma pesquisa realizada pelo Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos sobre essa categoria de Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos sobre essa categoria de
trabalhadoras no Brasil. Intentaremos, também, demonstrar como apenas a partir trabalhadoras no Brasil. Intentaremos, também, demonstrar como apenas a partir
dos dados da sua realidade é que se pode formular os problemas e as respecti- dos dados da sua realidade é que se pode formular os problemas e as respecti-
vas soluções sobre a sua situação jurídica, reconhecidamente especial diante de vas soluções sobre a sua situação jurídica, reconhecidamente especial diante de

* Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e membro do Centro de * Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e membro do Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas (CEPEJ). Estudos e Pesquisas Jurídicas (CEPEJ).
1. Neste artigo, nos referiremos sempre às empregadas domésticas, no feminino, não apenas por 1. Neste artigo, nos referiremos sempre às empregadas domésticas, no feminino, não apenas por
motivo do tema que tratamos, mas, principalmente, por serem as mulheres mais de 93% do universo motivo do tema que tratamos, mas, principalmente, por serem as mulheres mais de 93% do universo
de empregados(os) domésticos(as), sendo que os poucos homens que aí incluídos trabalham em de empregados(os) domésticos(as), sendo que os poucos homens que aí incluídos trabalham em
atividades como piscineiro, motorista, caseiro, etc., e não em atividades domésticas. atividades como piscineiro, motorista, caseiro, etc., e não em atividades domésticas.
344 Samira Oliveira Noronha 344 Samira Oliveira Noronha

outros(as) trabalhadores(as), especialmente na questão da estabilidade provisória outros(as) trabalhadores(as), especialmente na questão da estabilidade provisória
da gestante. da gestante.

2. Os aspectos sócio-históricos: Quem é a empregada do- 2. Os aspectos sócio-históricos: Quem é a empregada do-
méstica brasileira? méstica brasileira?
A essa pergunta sempre foi dada muito menos importância do que a merecida A essa pergunta sempre foi dada muito menos importância do que a merecida
no Direito. Isso se torna óbvio quando a própria Constituição permite a discrimina- no Direito. Isso se torna óbvio quando a própria Constituição permite a discrimina-
ção ­negativa da maior profissão feminina do país. Para que melhor se compreenda ção ­negativa da maior profissão feminina do país. Para que melhor se compreenda
a situação social e jurídica dessas mulheres, é preciso traçar um perfil histórico a situação social e jurídica dessas mulheres, é preciso traçar um perfil histórico
do trabalho doméstico2. do trabalho doméstico2.
As origens dessa profissão, como se sabe, estão no próprio escravismo, quando As origens dessa profissão, como se sabe, estão no próprio escravismo, quando
as escravas mucamas realizavam o trabalho doméstico na casa dos(as) senhores(as). as escravas mucamas realizavam o trabalho doméstico na casa dos(as) senhores(as).
Eram escravas mais próximas da família, a quem era permitida uma maior inti- Eram escravas mais próximas da família, a quem era permitida uma maior inti-
midade. Isto nunca significou uma menor exploração, muito pelo contrário. Esta, midade. Isto nunca significou uma menor exploração, muito pelo contrário. Esta,
apesar de melhor dissimulada, sempre esteve presente na desvalorização do seu apesar de melhor dissimulada, sempre esteve presente na desvalorização do seu
trabalho, da sua cor, do seu sexo e da sua posição social. Sofrendo um cotidiano trabalho, da sua cor, do seu sexo e da sua posição social. Sofrendo um cotidiano
assédio moral, e, muitas vezes, inclusive sexual, essas mulheres permaneceram assédio moral, e, muitas vezes, inclusive sexual, essas mulheres permaneceram
nas “casas grandes”, mas, agora, assalariadas. nas “casas grandes”, mas, agora, assalariadas.
Pouco mudou desde então. A partir das décadas de 70 e 80, em que as mu- Pouco mudou desde então. A partir das décadas de 70 e 80, em que as mu-
lheres, de forma mais acelerada, entraram no mercado de trabalho brasileiro3, foi lheres, de forma mais acelerada, entraram no mercado de trabalho brasileiro3, foi
necessário que outras mulheres fizessem o trabalho doméstico. Neste momento, necessário que outras mulheres fizessem o trabalho doméstico. Neste momento,
o emprego doméstico cresceu exponencialmente, restando como uma das poucas o emprego doméstico cresceu exponencialmente, restando como uma das poucas
opções para mulheres de baixa renda e escolaridade4, em sua maioria, negras5. opções para mulheres de baixa renda e escolaridade4, em sua maioria, negras5.
Afinal de contas, “ofício de mulher” todas elas saberiam fazer. Afinal de contas, “ofício de mulher” todas elas saberiam fazer.

2. “A categoria trabalho doméstico, neste texto, deve ser entendida como sinônimo de emprego 2. “A categoria trabalho doméstico, neste texto, deve ser entendida como sinônimo de emprego
doméstico, aquele realizado por uma/um trabalhadora/or no âmbito de um domicílio que não doméstico, aquele realizado por uma/um trabalhadora/or no âmbito de um domicílio que não
seja o de sua unidade familiar. Esta/e trabalhadora/trabalhador se responsabiliza pelos chama- seja o de sua unidade familiar. Esta/e trabalhadora/trabalhador se responsabiliza pelos chama-
dos «afazeres domésticos», cujas atividades correspondem geralmente à guarda e aos cuidados dos «afazeres domésticos», cujas atividades correspondem geralmente à guarda e aos cuidados
pessoais de crianças, limpeza dos domicílios, cuidados com as roupas familiares, preparo de pessoais de crianças, limpeza dos domicílios, cuidados com as roupas familiares, preparo de
alimentos, entre outras”. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos alimentos, entre outras”. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (DIEESE). O emprego doméstico: uma ocupação tipicamente feminina Socioeconômicos (DIEESE). O emprego doméstico: uma ocupação tipicamente feminina
/ Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE); Programa / Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE); Programa
de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e Raça, Erradicação da Pobreza e de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e Raça, Erradicação da Pobreza e
Geração de Emprego (GRPE). – [Brasília]: OIT – Secretaria Internacional do Trabalho, 2006. 52 Geração de Emprego (GRPE). – [Brasília]: OIT – Secretaria Internacional do Trabalho, 2006. 52
p. : Il. – (Cadernos GRPE; n.3). p. 11. p. : Il. – (Cadernos GRPE; n.3). p. 11.
3. Ibidem, p. 12. 3. Ibidem, p. 12.
4. Mais de 75% das empregadas domésticas brasileiras tem, no máximo, ensino fundamental com- 4. Mais de 75% das empregadas domésticas brasileiras tem, no máximo, ensino fundamental com-
pleto. DIEESE, op. cit., p. 21. pleto. DIEESE, op. cit., p. 21.
5. No Brasil, a proporção de mulheres negras ocupadas como domésticas supera, em média, 10 pontos 5. No Brasil, a proporção de mulheres negras ocupadas como domésticas supera, em média, 10 pontos
percentuais a de mulheres não-negras, sendo que estas percebem maior salário que as primeiras. percentuais a de mulheres não-negras, sendo que estas percebem maior salário que as primeiras.
DIEESE, op. cit., p. 19. DIEESE, op. cit., p. 19.
Questionamentos a respeito da estabilidade provisória da empregada doméstica gestante… 345 Questionamentos a respeito da estabilidade provisória da empregada doméstica gestante… 345

Atualmente, o emprego doméstico representa uma das parcelas mais importan- Atualmente, o emprego doméstico representa uma das parcelas mais importan-
tes no mercado de trabalho metropolitano, chegando a 10% dos(as) ocupados(as)6 tes no mercado de trabalho metropolitano, chegando a 10% dos(as) ocupados(as)6
em algumas metrópoles. Os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego indi- em algumas metrópoles. Os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego indi-
cam também que 18% do total de mulheres ocupadas no Brasil são trabalhadoras cam também que 18% do total de mulheres ocupadas no Brasil são trabalhadoras
domésticas, um índice que sobre para 20% em regiões metropolitanas7. Essas domésticas, um índice que sobre para 20% em regiões metropolitanas7. Essas
informações demonstram a importância do emprego doméstico no país, e, por- informações demonstram a importância do emprego doméstico no país, e, por-
tanto, a visibilidade que essa questão deve ter dentro do Direito. No entanto, a tanto, a visibilidade que essa questão deve ter dentro do Direito. No entanto, a
desvalorização que esse tipo de trabalho sofre, deixa-lhe marcas atávicas, que se desvalorização que esse tipo de trabalho sofre, deixa-lhe marcas atávicas, que se
reproduzem também na esfera jurídica. reproduzem também na esfera jurídica.
O trabalho doméstico é historicamente desvalorizado, principalmente por ser O trabalho doméstico é historicamente desvalorizado, principalmente por ser
tido como sem teor econômico. No entanto, a importância do trabalho doméstico tido como sem teor econômico. No entanto, a importância do trabalho doméstico
torna-se clara quando se verifica que caso a responsável por ele, a mulher, trabalhe torna-se clara quando se verifica que caso a responsável por ele, a mulher, trabalhe
fora de casa, ela terá que contratar quem o faça. Ou seja, o trabalho doméstico fora de casa, ela terá que contratar quem o faça. Ou seja, o trabalho doméstico
tanto tem teor econômico que o tempo gasto com ele reflete-se na economia da tanto tem teor econômico que o tempo gasto com ele reflete-se na economia da
casa. Todavia, por ser “coisa de mulher”, nunca se deu a ele o devido valor, sendo casa. Todavia, por ser “coisa de mulher”, nunca se deu a ele o devido valor, sendo
feito de graça pelas mulheres, ou muito mal pago por estas, quando outras fazem feito de graça pelas mulheres, ou muito mal pago por estas, quando outras fazem
em “seu lugar”. em “seu lugar”.
Toda essa desvalorização, tanto da mulher negra de baixa renda, quanto do Toda essa desvalorização, tanto da mulher negra de baixa renda, quanto do
emprego doméstico, realizado nas residências, reflete-se nas condições do seu emprego doméstico, realizado nas residências, reflete-se nas condições do seu
contrato e seu t­rabalho: contrato e seu t­rabalho:
Dessas características do emprego doméstico resultam processos de trabalho que Dessas características do emprego doméstico resultam processos de trabalho que
apresen­tam pouca conformidade quanto à duração e à composição da jornada, ao apresen­tam pouca conformidade quanto à duração e à composição da jornada, ao
ritmo e à intensidade do trabalho, às formas de pagamento, ao padrão das relações ritmo e à intensidade do trabalho, às formas de pagamento, ao padrão das relações
de trabalho mediado por relações interpessoais, aos tipos de atividades a serem de trabalho mediado por relações interpessoais, aos tipos de atividades a serem
desempenhadas, entre outras.8 desempenhadas, entre outras.8
Dessa forma, a empregada doméstica, entre assalariados(as) e autônomos(as), Dessa forma, a empregada doméstica, entre assalariados(as) e autônomos(as),
é a trabalhadora com menor rendimento. Em Salvador, Recife e Belo Horizonte, é a trabalhadora com menor rendimento. Em Salvador, Recife e Belo Horizonte,
o salário da empregada doméstica é, em média, inferior ao mínimo, que é a re- o salário da empregada doméstica é, em média, inferior ao mínimo, que é a re-
ferência, historicamente, para a determinação de seu salário. Além disso, existe ferência, historicamente, para a determinação de seu salário. Além disso, existe
uma alta informalidade nessa profissão, em que 65,6% das trabalhadoras não têm uma alta informalidade nessa profissão, em que 65,6% das trabalhadoras não têm
carteira assinada9 e que menos da metade contribui com a previdência social. A carteira assinada9 e que menos da metade contribui com a previdência social. A
conseqüência é que essas mulheres, além de não terem direitos garantidos, o que conseqüência é que essas mulheres, além de não terem direitos garantidos, o que
agrega insegurança à atividade, têm de permanecer mais tempo no mercado de agrega insegurança à atividade, têm de permanecer mais tempo no mercado de

6. Ibid. 6. Ibid.
7. Ibid. 7. Ibid.
8. Ibidem, p. 11 8. Ibidem, p. 11
9. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa mensal de emprego. Comunicação Social 26 9. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa mensal de emprego. Comunicação Social 26
de Abril de 2006. IBGE traça o perfil dos trabalhadores domésticos. Disponível em: < http://www. de Abril de 2006. IBGE traça o perfil dos trabalhadores domésticos. Disponível em: < http://www.
ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=586 >. Acesso em: 12 ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=586 >. Acesso em: 12
out. 2006. out. 2006.
346 Samira Oliveira Noronha 346 Samira Oliveira Noronha

trabalho e são excluídas de direitos previdenciários mais urgentes como licença- trabalho e são excluídas de direitos previdenciários mais urgentes como licença-
maternidade, auxílio-doença, entre outros10. Outro problema também é a dificul- maternidade, auxílio-doença, entre outros10. Outro problema também é a dificul-
dade de fiscalização da atividade, o que faz com que boa parte trabalhe além da dade de fiscalização da atividade, o que faz com que boa parte trabalhe além da
jornada legal de 44 horas semanais, principalmente entre as que possuem carteira jornada legal de 44 horas semanais, principalmente entre as que possuem carteira
de trabalho assinada, que, normalmente, dormem no emprego. de trabalho assinada, que, normalmente, dormem no emprego.
Para regular a situação das domésticas frente a essa grande proliferação deste Para regular a situação das domésticas frente a essa grande proliferação deste
tipo de emprego, foi editada a Lei nº. 5.859, de 11 de dezembro de 1972, regula- tipo de emprego, foi editada a Lei nº. 5.859, de 11 de dezembro de 1972, regula-
mentada pelo Decreto nº. 71.885, de 9 de março de 1973. Mais tarde, a Constituição mentada pelo Decreto nº. 71.885, de 9 de março de 1973. Mais tarde, a Constituição
Federal de 1988, através do parágrafo único do art. 7º, ampliou os direitos das Federal de 1988, através do parágrafo único do art. 7º, ampliou os direitos das
empregadas domésticas, mas tornou-as trabalhadoras de segunda categoria, cuja empregadas domésticas, mas tornou-as trabalhadoras de segunda categoria, cuja
discriminação é constitucionalmente garantida. discriminação é constitucionalmente garantida.
No entanto, no caput do art. 5º, a Constituição consagra o princípio da igual- No entanto, no caput do art. 5º, a Constituição consagra o princípio da igual-
dade numa cláusula pétrea. Diante de tal princípio, a Carta Maior não poderia dade numa cláusula pétrea. Diante de tal princípio, a Carta Maior não poderia
discriminar a empregada doméstica, o que gera uma contradição jurídica dentro discriminar a empregada doméstica, o que gera uma contradição jurídica dentro
da própria Constituição11, e, portanto, uma grande insegurança jurídica, manifesta da própria Constituição11, e, portanto, uma grande insegurança jurídica, manifesta
nas polêmicas a respeito de praticamente toda a legislação que “tutela” a domés- nas polêmicas a respeito de praticamente toda a legislação que “tutela” a domés-
tica. A par dos motivos já expostos sobre o histórico preconceito sofrido por elas, tica. A par dos motivos já expostos sobre o histórico preconceito sofrido por elas,
é importante salientar como a doutrina majoritária justifica a sua discriminação é importante salientar como a doutrina majoritária justifica a sua discriminação
“constitucional”. Nas palavras de Otávio Amaral Calvet12: “constitucional”. Nas palavras de Otávio Amaral Calvet12:
Dessa forma, surge importante diferenciação da relação de emprego doméstica para Dessa forma, surge importante diferenciação da relação de emprego doméstica para
a relação ordinária de emprego, pois nesta vigora a impessoalidade em relação à a relação ordinária de emprego, pois nesta vigora a impessoalidade em relação à
figura do empregador, que viabiliza inclusive o fenômeno da sucessão de empre- figura do empregador, que viabiliza inclusive o fenômeno da sucessão de empre-
gadores. Já no emprego doméstico, não há dúvida de que existe uma vinculação gadores. Já no emprego doméstico, não há dúvida de que existe uma vinculação
diferenciada em relação ao empregador, pois a inexistência de atividade empresarial diferenciada em relação ao empregador, pois a inexistência de atividade empresarial
faz com que a relação se perfaça diretamente com o núcleo familiar que se beneficia faz com que a relação se perfaça diretamente com o núcleo familiar que se beneficia
da energia de trabalho. da energia de trabalho.
Reconhecemos que essa é uma grande dificuldade pela qual a profissão de Reconhecemos que essa é uma grande dificuldade pela qual a profissão de
empregada doméstica passa, qual seja, a personalização de uma relação profis- empregada doméstica passa, qual seja, a personalização de uma relação profis-
sional. Esse fato acarreta inúmeros problemas, tanto para a família, quanto para a sional. Esse fato acarreta inúmeros problemas, tanto para a família, quanto para a
empregada, mas de forma muito mais cruel para ela. Se por um lado, a intimidade empregada, mas de forma muito mais cruel para ela. Se por um lado, a intimidade
e privacidade da família, valores assegurados como fundamentais pelo art. 5º, X, e privacidade da família, valores assegurados como fundamentais pelo art. 5º, X,
da Constituição da República, nas palavras de Calvet, são completamente expostas, da Constituição da República, nas palavras de Calvet, são completamente expostas,
o que dizer da empregada doméstica? A moradora da residência onde trabalha não o que dizer da empregada doméstica? A moradora da residência onde trabalha não
tem acesso à família, namorado, amigos, nem colegas com os(as) quais realize o tem acesso à família, namorado, amigos, nem colegas com os(as) quais realize o

10. DIEESE, op. cit., p. 25; 10. DIEESE, op. cit., p. 25;
11. SILVA, Roberto. Empregada doméstica. Direito à estabilidade gestante prevista no art. 10 do ADCT. 11. SILVA, Roberto. Empregada doméstica. Direito à estabilidade gestante prevista no art. 10 do ADCT.
Possibilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 336, 8 jun. 2004. Disponível em: <http://jus2. Possibilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 336, 8 jun. 2004. Disponível em: <http://jus2.
uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5180>. Acesso em: 24 out. 2006. uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5180>. Acesso em: 24 out. 2006.
12. CALVET, Otavio Amaral. A Estabilidade da Doméstica Gestante: Reintegração Forçada? Ju- 12. CALVET, Otavio Amaral. A Estabilidade da Doméstica Gestante: Reintegração Forçada? Ju-
ristas.com.br, João Pessoa, a. III, n. 88, 22/08/2006. Disponível em: <http://www.juristas.com. ristas.com.br, João Pessoa, a. III, n. 88, 22/08/2006. Disponível em: <http://www.juristas.com.
br/revista/coluna.jsp?idColuna=1990>. Acesso em: 19/11/2006. br/revista/coluna.jsp?idColuna=1990>. Acesso em: 19/11/2006.
Questionamentos a respeito da estabilidade provisória da empregada doméstica gestante… 347 Questionamentos a respeito da estabilidade provisória da empregada doméstica gestante… 347

direito constitucionalmente assegurado de intimidade e privacidade. Não bastas- direito constitucionalmente assegurado de intimidade e privacidade. Não bastas-
se isso, em geral, as empregadas domésticas ficam restritas às áreas da cozinha, se isso, em geral, as empregadas domésticas ficam restritas às áreas da cozinha,
serviço e, principalmente seu quarto: quase sempre um cubículo mal ventilado serviço e, principalmente seu quarto: quase sempre um cubículo mal ventilado
e iluminado, dividido entre ela e os entulhos da casa, às vezes até animais. Não e iluminado, dividido entre ela e os entulhos da casa, às vezes até animais. Não
muito diferente da senzala de onde saíra. Diante de toda a discriminação, também muito diferente da senzala de onde saíra. Diante de toda a discriminação, também
é uma trabalhadora que constantemente sofre assédio moral por parte dos(as) é uma trabalhadora que constantemente sofre assédio moral por parte dos(as)
empregadores(as), e, não raro, assédio e abuso sexual. Por ser de baixa renda e empregadores(as), e, não raro, assédio e abuso sexual. Por ser de baixa renda e
escolaridade, geralmente essas mulheres sequer têm conhecimento sobre seus escolaridade, geralmente essas mulheres sequer têm conhecimento sobre seus
direitos. E, visto o número das que conseguiram conquistar a formalidade, não é direitos. E, visto o número das que conseguiram conquistar a formalidade, não é
estranho que, as poucas que os conhecem, não consigam realizá-lo. estranho que, as poucas que os conhecem, não consigam realizá-lo.
A atividade realizada no domicílio também limita as relações com outros A atividade realizada no domicílio também limita as relações com outros
membros de sua categoria profissional, o que faz com que seja uma profissão de membros de sua categoria profissional, o que faz com que seja uma profissão de
baixa sindicalização. A relação com o empregador, sendo fortemente interpessoal baixa sindicalização. A relação com o empregador, sendo fortemente interpessoal
e familiar, descaracteriza profissionalmente a relação. Ou seja, é uma atividade e familiar, descaracteriza profissionalmente a relação. Ou seja, é uma atividade
que vulnera a trabalhadora, reduzindo o acesso a seus direitos, suas colegas, seus que vulnera a trabalhadora, reduzindo o acesso a seus direitos, suas colegas, seus
familiares, enfim, o acesso a um trabalho digno. familiares, enfim, o acesso a um trabalho digno.
Essa é a situação das trabalhadoras domésticas brasileiras: mulheres, negras, Essa é a situação das trabalhadoras domésticas brasileiras: mulheres, negras,
pobres, sem educação formal, sem acesso a seus direitos, inclusive o de ter a pobres, sem educação formal, sem acesso a seus direitos, inclusive o de ter a
intimidade e a privacidade, e, mais ainda, sem saber como consegui-los. intimidade e a privacidade, e, mais ainda, sem saber como consegui-los.
Agora passamos à discussão sobre um dos muitos pontos polêmicos sobre Agora passamos à discussão sobre um dos muitos pontos polêmicos sobre
seus direitos: o direito à estabilidade provisória da trabalhadora gestante. seus direitos: o direito à estabilidade provisória da trabalhadora gestante.

3. A estabilidade provisória da doméstica gestante 3. A estabilidade provisória da doméstica gestante


3.1. A realidade jurídica versus a realidade social 3.1. A realidade jurídica versus a realidade social
Antes da aprovação da Medida Provisória 284, a estabilidade provisória ges- Antes da aprovação da Medida Provisória 284, a estabilidade provisória ges-
tante já era polêmica, dividindo os doutrinadores e a jurisprudência. A primeira tante já era polêmica, dividindo os doutrinadores e a jurisprudência. A primeira
posição, majoritária, sustentava o argumento da legalidade, asseverando que a posição, majoritária, sustentava o argumento da legalidade, asseverando que a
Constituição não estendeu a estabilidade gestante às empregadas domésticas, Constituição não estendeu a estabilidade gestante às empregadas domésticas,
pois, quando pois, quando
pretendeu se referir e englobar em suas normas a categoria doméstica, fé-lo expressa pretendeu se referir e englobar em suas normas a categoria doméstica, fé-lo expressa
e topicamente (parágrafo único do art. 7º, CF/88). Assim, descaberia produzir-se in- e topicamente (parágrafo único do art. 7º, CF/88). Assim, descaberia produzir-se in-
terpretação extensiva onde a Constituição conferiu tratamento restrito e excetivo. terpretação extensiva onde a Constituição conferiu tratamento restrito e excetivo.
A par disso, o art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (que A par disso, o art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (que
cria a garantia de emprego à gestante) reporta-se e vincula-se expressamente ao cria a garantia de emprego à gestante) reporta-se e vincula-se expressamente ao
art. 7º, inciso I da mesma carta – inciso esse que não foi estendido à categoria art. 7º, inciso I da mesma carta – inciso esse que não foi estendido à categoria
doméstica.13 doméstica.13

13. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho / Maurício Godinho Delgado. – 3. 13. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho / Maurício Godinho Delgado. – 3.
ed. – São Paulo: LTr, 2004. p. 378 ed. – São Paulo: LTr, 2004. p. 378
348 Samira Oliveira Noronha 348 Samira Oliveira Noronha

Alice Monteiro de Barros traz um outro argumento, o da fidúcia necessária Alice Monteiro de Barros traz um outro argumento, o da fidúcia necessária
no emprego doméstico, asseverando que no emprego doméstico, asseverando que
andou bem a norma constitucional ao excluir a doméstica da referida garantia, pois andou bem a norma constitucional ao excluir a doméstica da referida garantia, pois
é sabido que seu trabalho, na maioria das vezes, constitui, além de uma simples é sabido que seu trabalho, na maioria das vezes, constitui, além de uma simples
relação jurídica, “uma complexa relação humana”. Como o serviço é prestado no relação jurídica, “uma complexa relação humana”. Como o serviço é prestado no
âmbito residencial, o doméstico desfruta de uma íntima convivência com a família, âmbito residencial, o doméstico desfruta de uma íntima convivência com a família,
e o elemento pessoalidade fica ressaltado, traduzindo-se na simpatia, confiança, e o elemento pessoalidade fica ressaltado, traduzindo-se na simpatia, confiança,
afinidade e afetividade entre o empregado e o empregador. Trata-se, portanto, de afinidade e afetividade entre o empregado e o empregador. Trata-se, portanto, de
um empregado de extrema con­fian­ça. Logo, obrigar uma família a manter um em- um empregado de extrema con­fian­ça. Logo, obrigar uma família a manter um em-
pregado doméstico, a pretexto de uma estabilidade provisória, quando a confiança pregado doméstico, a pretexto de uma estabilidade provisória, quando a confiança
deixa de existir, afronta a natureza humana, violando a privacidade, invadindo o deixa de existir, afronta a natureza humana, violando a privacidade, invadindo o
domicílio e contrariando os preceitos constitucionais.14 domicílio e contrariando os preceitos constitucionais.14

Também os tribunais têm decidido nesse sentido: Também os tribunais têm decidido nesse sentido:
“Os trabalhadores domésticos, não gozam de todos os direitos previstos no art. 7º “Os trabalhadores domésticos, não gozam de todos os direitos previstos no art. 7º
da Magna Carta tendo esta assegurado, apenas, aqueles elencados nos incisos do § da Magna Carta tendo esta assegurado, apenas, aqueles elencados nos incisos do §
único do art. 7º. Ora, não se incluindo neles a proteção contra a despedida arbitrária único do art. 7º. Ora, não se incluindo neles a proteção contra a despedida arbitrária
ou sem justa causa (inc. I) é inviável buscar a proteção mínima já prevista no art. ou sem justa causa (inc. I) é inviável buscar a proteção mínima já prevista no art.
10, II, b, § 1º das Disposições Transitórias. 10, II, b, § 1º das Disposições Transitórias.

TRT – 15ª Reg. RO 8.276/89 (Ac. 2ª T. 8.324/90, 14.8.90), Rel. José Pedro Camargo TRT – 15ª Reg. RO 8.276/89 (Ac. 2ª T. 8.324/90, 14.8.90), Rel. José Pedro Camargo
R. de Souza. LTR 55-09/1.119.15 R. de Souza. LTR 55-09/1.119.15

“Não se aplica à doméstica gestante a garantia da proibição da dispensa arbitrária “Não se aplica à doméstica gestante a garantia da proibição da dispensa arbitrária
ou sem justa causa prescrita no art. 10, II, letra b do ADCT, por se referir este ou sem justa causa prescrita no art. 10, II, letra b do ADCT, por se referir este
dispositivo exclusivamente aos empregados beneficiados por esse direito previsto dispositivo exclusivamente aos empregados beneficiados por esse direito previsto
no inc. I, do art. 7º, da CF/88, dos quais a doméstica foi excluída pela omissão do no inc. I, do art. 7º, da CF/88, dos quais a doméstica foi excluída pela omissão do
§ único deste preceito constitucional. § único deste preceito constitucional.
TRT – 10ª Reg. RO 5.386/89 (Ac. 2ª T. 2.693/90, 13.11.90), Rel. Juiz Sebastião TRT – 10ª Reg. RO 5.386/89 (Ac. 2ª T. 2.693/90, 13.11.90), Rel. Juiz Sebastião
Machado Filho. LTR 55.04/480.16 Machado Filho. LTR 55.04/480.16
Segundo esse entendimento, a empregada doméstica teria direito apenas à Segundo esse entendimento, a empregada doméstica teria direito apenas à
licença-maternidade. Caso houvesse dispensa obstativa, ou seja, se o empregador licença-maternidade. Caso houvesse dispensa obstativa, ou seja, se o empregador
demitisse a empregada grávida para impedir seu acesso ao direito da licença- demitisse a empregada grávida para impedir seu acesso ao direito da licença-
maternidade, então caberia indenização correspondente ao salário-maternidade maternidade, então caberia indenização correspondente ao salário-maternidade
não percebido17. não percebido17.

14. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho / Alice Monteiro de Barros. – 2. ed. 14. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho / Alice Monteiro de Barros. – 2. ed.
– São Paulo: LTr, 2006. p. 332 – São Paulo: LTr, 2006. p. 332
15. “In” Julgados Trabalhistas Selecionados, de Irany Ferrari e Melchíades Rodrigues Martins, Ed. 15. “In” Julgados Trabalhistas Selecionados, de Irany Ferrari e Melchíades Rodrigues Martins, Ed.
LTR, São Paulo, 1.992, pág. 227. LTR, São Paulo, 1.992, pág. 227.
16. DELGADO, op. cit p. 228. 16. DELGADO, op. cit p. 228.
17. CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa; JORGE NETO, Francisco Ferreira. A dispensa da 17. CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa; JORGE NETO, Francisco Ferreira. A dispensa da
empregada doméstica gestante como obstativa de direitos. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43, jul. empregada doméstica gestante como obstativa de direitos. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43, jul.
2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1200>. Acesso em: 12 out. 2006. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1200>. Acesso em: 12 out. 2006.
Questionamentos a respeito da estabilidade provisória da empregada doméstica gestante… 349 Questionamentos a respeito da estabilidade provisória da empregada doméstica gestante… 349

A segunda posição é bastante minoritária, baseando-se principalmente na in- A segunda posição é bastante minoritária, baseando-se principalmente na in-
terpretação da Constituição através de seus princípios. Atualmente, é reconhecida a terpretação da Constituição através de seus princípios. Atualmente, é reconhecida a
normatividade dos princípios, e aqueles constitucionais são “a síntese dos valores normatividade dos princípios, e aqueles constitucionais são “a síntese dos valores
abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus
postulados básicos, seus fins18.” Assim, os princípios constitucionais devem, além postulados básicos, seus fins18.” Assim, os princípios constitucionais devem, além
de condensar valores, dar unidade ao sistema e condicionar a atividade daquele de condensar valores, dar unidade ao sistema e condicionar a atividade daquele
que interpreta o Direito.19 que interpreta o Direito.19
Parece ilógico, portanto, que todas as trabalhadoras tenham direito à esta- Parece ilógico, portanto, que todas as trabalhadoras tenham direito à esta-
bilidade gestante, mas a empregada doméstica, tão trabalhadora quanto todas as bilidade gestante, mas a empregada doméstica, tão trabalhadora quanto todas as
outras, na mesma situação biológica, que obviamente necessita de especial aten- outras, na mesma situação biológica, que obviamente necessita de especial aten-
ção, não tenha o mesmo direito. Assim, de acordo com uma série de princípios ção, não tenha o mesmo direito. Assim, de acordo com uma série de princípios
constitucionais como a isonomia, razoabilidade, dignidade da pessoa humana, constitucionais como a isonomia, razoabilidade, dignidade da pessoa humana,
proteção à maternidade e à infância, o valor fundamental do trabalho, a vedação proteção à maternidade e à infância, o valor fundamental do trabalho, a vedação
à discriminação, entre tantos outros e seus postulados, a doméstica gestante, desde à discriminação, entre tantos outros e seus postulados, a doméstica gestante, desde
1988, tem direito à estabilidade provisória, a não ser que se considere haver duas 1988, tem direito à estabilidade provisória, a não ser que se considere haver duas
categorias de mulheres, para que não se aplique o art. 10, Ato das Disposições categorias de mulheres, para que não se aplique o art. 10, Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, a elas. Constitucionais Transitórias, a elas.
Uma interpretação sistemática da Constituição e baseada nos princípios prote- Uma interpretação sistemática da Constituição e baseada nos princípios prote-
tivos do Direito do Trabalho encontrará a razão de ser da norma, e é esta proteger tivos do Direito do Trabalho encontrará a razão de ser da norma, e é esta proteger
a trabalhadora gestante, bem como o nascituro, dando-lhes segurança financeira a trabalhadora gestante, bem como o nascituro, dando-lhes segurança financeira
desde a gestação até cinco meses após o parto20. Entender que a condição de do- desde a gestação até cinco meses após o parto20. Entender que a condição de do-
méstica retira da mãe e do nascituro a proteção que a CF definiu para a empregada méstica retira da mãe e do nascituro a proteção que a CF definiu para a empregada
gestante em geral, fere, no mínimo, a razoabilidade.21 gestante em geral, fere, no mínimo, a razoabilidade.21
Além dos argumentos acima, é necessário observar a situação real da tra- Além dos argumentos acima, é necessário observar a situação real da tra-
balhadora doméstica grávida. Caso não tenha acesso à estabilidade gestante, se balhadora doméstica grávida. Caso não tenha acesso à estabilidade gestante, se
demitida neste momento maior fragilidade para a mulher, certamente esta traba- demitida neste momento maior fragilidade para a mulher, certamente esta traba-
lhadora terá chances baixíssimas (se é que, de fato, elas existirão) de conseguir lhadora terá chances baixíssimas (se é que, de fato, elas existirão) de conseguir
um novo emprego enquanto grávida. Ainda que alguns argumentem que lhe vale um novo emprego enquanto grávida. Ainda que alguns argumentem que lhe vale
a indenização em caso de dispensa obstativa, a doméstica, em realidade, não teria a indenização em caso de dispensa obstativa, a doméstica, em realidade, não teria
a mesma proteção de uma trabalhadora que tem emprego garantido até o quinto a mesma proteção de uma trabalhadora que tem emprego garantido até o quinto
mês após o parto. Cumprindo o papel tradicional de mãe, e, normalmente, sem mês após o parto. Cumprindo o papel tradicional de mãe, e, normalmente, sem
apoio ou dinheiro para que alguém cuide dela e/ou da criança, com certeza ela apoio ou dinheiro para que alguém cuide dela e/ou da criança, com certeza ela
e seu bebê estariam completamente expostos a toda série de intempéries, justo e seu bebê estariam completamente expostos a toda série de intempéries, justo

18. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional 18. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional
brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com. brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.
br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em: 25 nov. 2006. br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em: 25 nov. 2006.
19. Ibid. 19. Ibid.
20. Caputo; Pinheiro Neto apud SILVA, op. cit. 20. Caputo; Pinheiro Neto apud SILVA, op. cit.
21. FILHO, Rodolpho Pamplona; VILLATORE, Marco Antônio César. Direito do Trabalho Doméstico, 21. FILHO, Rodolpho Pamplona; VILLATORE, Marco Antônio César. Direito do Trabalho Doméstico,
2ª ed., São Paulo: LTr, p. 104. 2ª ed., São Paulo: LTr, p. 104.
350 Samira Oliveira Noronha 350 Samira Oliveira Noronha

no seu momento mais frágil. Assim, negar à doméstica a estabilidade gestante no seu momento mais frágil. Assim, negar à doméstica a estabilidade gestante
ofenderia o objetivo da Carta Maior, exposto em seu preâmbulo: ofenderia o objetivo da Carta Maior, exposto em seu preâmbulo:
(...) instituir um Estado Democrático, destinado à assegurar o exercício dos direitos (...) instituir um Estado Democrático, destinado à assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista
e sem preconceitos (...).22 e sem preconceitos (...).22

Apesar de minoritária, há posições de tribunais no sentido de proteger devi- Apesar de minoritária, há posições de tribunais no sentido de proteger devi-
damente a doméstica gestante: damente a doméstica gestante:
GESTANTE – EMPREGADA DOMÉSTICA – ESTABILIDADE PROVISÓRIA GESTANTE – EMPREGADA DOMÉSTICA – ESTABILIDADE PROVISÓRIA
– APLICAÇÃO DO ART. 10, INCISO II, ALÍNEA B DO ATO DAS DISPOSI- – APLICAÇÃO DO ART. 10, INCISO II, ALÍNEA B DO ATO DAS DISPOSI-
ÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. À gestante despedida sem justa ÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. À gestante despedida sem justa
causa, mesmo na condição de doméstica são devidos os salários e vantagens cor- causa, mesmo na condição de doméstica são devidos os salários e vantagens cor-
respondentes ao período estabilitário, aplicando-se-lhes a norma constante do art. respondentes ao período estabilitário, aplicando-se-lhes a norma constante do art.
10, inciso II, alínea b do ADCT (Acórdão por unanimidade da 2ª Turma do TRT 10, inciso II, alínea b do ADCT (Acórdão por unanimidade da 2ª Turma do TRT
– 12ª Região, Recurso Ordinário 2064/98 – Rel. Juiz João Cardoso, J. 10.8.1998 – 12ª Região, Recurso Ordinário 2064/98 – Rel. Juiz João Cardoso, J. 10.8.1998
– DJ/SC, de 19.8.1998, p. 181). – DJ/SC, de 19.8.1998, p. 181).
EMPREGADA DOMÉSTICA – GESTANTE – GARANTIA DE EMPREGO. EMPREGADA DOMÉSTICA – GESTANTE – GARANTIA DE EMPREGO.
Constituição negou à empregada doméstica a proteção da relação de emprego Constituição negou à empregada doméstica a proteção da relação de emprego
contra despedida arbitrária ou sem justa causa como especifica o parágrafo único contra despedida arbitrária ou sem justa causa como especifica o parágrafo único
do art. 7º. Todavia, o dispositivo contempla, dentre os direitos reservados às do- do art. 7º. Todavia, o dispositivo contempla, dentre os direitos reservados às do-
méstica, o inc. XVIII e esse assegura à gestante a licença-maternidade de cento méstica, o inc. XVIII e esse assegura à gestante a licença-maternidade de cento
e vinte dias sem prejuízo do emprego e do salário. O art. 10 do ADCT, no inc. II, e vinte dias sem prejuízo do emprego e do salário. O art. 10 do ADCT, no inc. II,
alínea b, veda a dispensa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez alínea b, veda a dispensa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez
até cinco meses após o parto, sem discriminar a empregada doméstica. (TRT – 2ª até cinco meses após o parto, sem discriminar a empregada doméstica. (TRT – 2ª
Região – 8ª T.; RO nº 029.901.606-76 (20000259033); rel. Juiz José Carlos Arouca; Região – 8ª T.; RO nº 029.901.606-76 (20000259033); rel. Juiz José Carlos Arouca;
DOESP 4/7/2000 ST 137/65) DOESP 4/7/2000 ST 137/65)
GESTANTE – EMPREGADA DOMÉSTICA. A licença de 120 dias à ges- GESTANTE – EMPREGADA DOMÉSTICA. A licença de 120 dias à ges-
tante, sem prejuízo do emprego e do salário, constitui direito e garantida tante, sem prejuízo do emprego e do salário, constitui direito e garantida
fundamental expressamente conferidos à categoria dos trabalhadores do- fundamental expressamente conferidos à categoria dos trabalhadores do-
mésticos pelos incs. XVIII e XXXIV, parágrafo único, do art. 7º, da CF. mésticos pelos incs. XVIII e XXXIV, parágrafo único, do art. 7º, da CF.
Assim, a norma contida no art. 10, b, do ADCT, não pode ser interpreta- Assim, a norma contida no art. 10, b, do ADCT, não pode ser interpreta-
da de forma a contrariar o próprio texto da CF. Dispensada injustamente da de forma a contrariar o próprio texto da CF. Dispensada injustamente
se encontra sob o manto da proteção constitucional a reclamante, doméstica, faz se encontra sob o manto da proteção constitucional a reclamante, doméstica, faz
jus à indenização correspondente ao período estabilitário. (TRT – 3ª Região – 5ª jus à indenização correspondente ao período estabilitário. (TRT – 3ª Região – 5ª
T.; RO nº 5.080/00; Rela. Juíza Maria A Duarte de Las Casas; DJMG 16/9/2000) T.; RO nº 5.080/00; Rela. Juíza Maria A Duarte de Las Casas; DJMG 16/9/2000)
ST 138/84). ST 138/84).

Como pudemos ver, a polêmica sobre a estabilidade gestante para as domés- Como pudemos ver, a polêmica sobre a estabilidade gestante para as domés-
ticas era grande. Imagina-se, então, que ela seria superada com o advento da Lei ticas era grande. Imagina-se, então, que ela seria superada com o advento da Lei

22. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Preâmbulo. Mini Vade Mecum de 22. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Preâmbulo. Mini Vade Mecum de
Direito 7 em 1. Vol. I. / Anne Joyce Angher organização. 2 ed. São Paulo: Rideel, 2005. (Coleção Direito 7 em 1. Vol. I. / Anne Joyce Angher organização. 2 ed. São Paulo: Rideel, 2005. (Coleção
de leis Rideel. Série mini 3 em 1) de leis Rideel. Série mini 3 em 1)
Questionamentos a respeito da estabilidade provisória da empregada doméstica gestante… 351 Questionamentos a respeito da estabilidade provisória da empregada doméstica gestante… 351

11.324, de 19 de julho de 2006, que, expressamente, lhe concedeu esse direito, 11.324, de 19 de julho de 2006, que, expressamente, lhe concedeu esse direito,
espancando qualquer dúvida sobre sua legitimidade. Ledo engano. espancando qualquer dúvida sobre sua legitimidade. Ledo engano.
A polêmica agora não versa mais a respeito do direito da doméstica à estabili- A polêmica agora não versa mais a respeito do direito da doméstica à estabili-
dade gestante, mas à reintegração no caso de demissão no período da estabilidade. dade gestante, mas à reintegração no caso de demissão no período da estabilidade.
Apesar de bastante recente, já se pode notar a repercussão dessa nova Lei. Apesar de bastante recente, já se pode notar a repercussão dessa nova Lei.
Aqueles que afirmavam não ter direito a doméstica à estabilidade gestante, Aqueles que afirmavam não ter direito a doméstica à estabilidade gestante,
agora teorizam sobre a impossibilidade de não lhe conceder a reintegração, no agora teorizam sobre a impossibilidade de não lhe conceder a reintegração, no
caso de demissão durante a estabilidade. Argumenta-se que pela fidúcia exigida caso de demissão durante a estabilidade. Argumenta-se que pela fidúcia exigida
no emprego doméstico, a família ficaria exposta à empregada reintegrada em no emprego doméstico, a família ficaria exposta à empregada reintegrada em
seu trabalho. Consideremos melhor, nas palavras de Alice Monteiro de Barros, seu trabalho. Consideremos melhor, nas palavras de Alice Monteiro de Barros,
prevendo a aprovação da citada lei: prevendo a aprovação da citada lei:
Impor a reintegração de uma empregada doméstica no emprego, como conseqüência Impor a reintegração de uma empregada doméstica no emprego, como conseqüência
de uma estabilidade provisória, implica violação à vida privada do empregador e de uma estabilidade provisória, implica violação à vida privada do empregador e
atenta contra o preceito constitucional. atenta contra o preceito constitucional.

Calvet, em sua exposição contrária à reintegração, é, no mínimo, mais pas- Calvet, em sua exposição contrária à reintegração, é, no mínimo, mais pas-
sional: sional:
Seria no mínimo estranho imaginar-se uma decisão judicial impondo o retorno Seria no mínimo estranho imaginar-se uma decisão judicial impondo o retorno
da empregada doméstica ao trabalho em ambiente de extremo constrangimento, da empregada doméstica ao trabalho em ambiente de extremo constrangimento,
onde a família não mais suporta a presença de um estranho a testemunhar seus onde a família não mais suporta a presença de um estranho a testemunhar seus
fatos mais íntimos, o que levaria à inimaginável situação dos próprios integrantes fatos mais íntimos, o que levaria à inimaginável situação dos próprios integrantes
da família começarem a evitar o uso da residência em função da presença da em- da família começarem a evitar o uso da residência em função da presença da em-
pregada reintegrada. pregada reintegrada.

Após reiteradas críticas à estabilidade da gestante doméstica, gostaríamos de Após reiteradas críticas à estabilidade da gestante doméstica, gostaríamos de
fazer algumas reflexões. fazer algumas reflexões.

3.2. Empregada doméstica: algoz ou vítima? 3.2. Empregada doméstica: algoz ou vítima?
Sobre essas duas posições, e estando cientes dos argumentos anteriormente Sobre essas duas posições, e estando cientes dos argumentos anteriormente
expostos enquanto a estabilidade gestante não era expressamente concedida à expostos enquanto a estabilidade gestante não era expressamente concedida à
empregada doméstica, fazemos alguns questionamentos para que o leitor reflita empregada doméstica, fazemos alguns questionamentos para que o leitor reflita
conosco. Em primeiro lugar, é necessário se perguntar quem é o lado fragilizado conosco. Em primeiro lugar, é necessário se perguntar quem é o lado fragilizado
da relação: uma família que demitiu a empregada sem justa causa, ou a domés- da relação: uma família que demitiu a empregada sem justa causa, ou a domés-
tica, grávida, desempregada e sem perspectiva próxima de emprego? Quem são, tica, grávida, desempregada e sem perspectiva próxima de emprego? Quem são,
realmente, as empregadas domésticas brasileiras? As Julianas de Eça de Quei- realmente, as empregadas domésticas brasileiras? As Julianas de Eça de Quei-
roz23, brancas, escolarizadas, amargas e vingativas? Ou as Vevés de João Ubaldo roz23, brancas, escolarizadas, amargas e vingativas? Ou as Vevés de João Ubaldo
Ribeiro24, negras, exploradas, maltratadas, mas com a coragem de quem enfrenta Ribeiro24, negras, exploradas, maltratadas, mas com a coragem de quem enfrenta

23. Juliana é empregada doméstica no romance “Primo Basílio”, de Eça de Queiroz. 23. Juliana é empregada doméstica no romance “Primo Basílio”, de Eça de Queiroz.
24. Vevé é escrava, mãe da personagem principal de “Viva o Povo Brasileiro”, livro de João Ubaldo 24. Vevé é escrava, mãe da personagem principal de “Viva o Povo Brasileiro”, livro de João Ubaldo
Ribeiro. Ribeiro.
352 Samira Oliveira Noronha 352 Samira Oliveira Noronha

os abusos sozinha? Qual vida é realmente violada? A do(a) empregador(a), ou a os abusos sozinha? Qual vida é realmente violada? A do(a) empregador(a), ou a
da empregada, desempregada, desprotegida e sem opção? Quem passa o extremo da empregada, desempregada, desprotegida e sem opção? Quem passa o extremo
constrangimento? A família obrigada a ter de volta uma empregada, ou esta, que constrangimento? A família obrigada a ter de volta uma empregada, ou esta, que
aceita novamente submeter-se a esses(as) empregadores(as), certamente por não aceita novamente submeter-se a esses(as) empregadores(as), certamente por não
ter alternativa? Com as atuais taxas de desemprego, não seria surpreendente se ter alternativa? Com as atuais taxas de desemprego, não seria surpreendente se
uma doméstica exigisse a reintegração judicialmente, apenas para ter tempo de uma doméstica exigisse a reintegração judicialmente, apenas para ter tempo de
conseguir um novo emprego. Mas, questionamos mais uma vez: quantas dessas conseguir um novo emprego. Mas, questionamos mais uma vez: quantas dessas
mulheres têm carteira de trabalho assinada, conhecem seus direitos, têm acesso à mulheres têm carteira de trabalho assinada, conhecem seus direitos, têm acesso à
justiça e, depois de toda a jornada que é um processo judicial, ainda conseguem justiça e, depois de toda a jornada que é um processo judicial, ainda conseguem
uma sentença a seu favor? Por fim, uma última pergunta: os(as) doutrinadores(as) uma sentença a seu favor? Por fim, uma última pergunta: os(as) doutrinadores(as)
acima fizeram-se essas e outras perguntas? É de acreditar-se que não. acima fizeram-se essas e outras perguntas? É de acreditar-se que não.
Neste momento, fica patente a discriminação que cerca a doutrina e a juris- Neste momento, fica patente a discriminação que cerca a doutrina e a juris-
prudência a respeito das empregadas domésticas. Desnecessário falar da absurda prudência a respeito das empregadas domésticas. Desnecessário falar da absurda
legislação, melhorada apenas através de ações bastante pontuais, e depois de legislação, melhorada apenas através de ações bastante pontuais, e depois de
extensas negociações e, principalmente, concessões. extensas negociações e, principalmente, concessões.
Depois de tantos questionamentos e reflexões, parece-nos claro que a empre- Depois de tantos questionamentos e reflexões, parece-nos claro que a empre-
gada doméstica goza do direito à reintegração, como toda trabalhadora gestante. gada doméstica goza do direito à reintegração, como toda trabalhadora gestante.
Não se justifica sua discriminação por expor a família, visto que, nesta relação Não se justifica sua discriminação por expor a família, visto que, nesta relação
empregatícia tortuosa, a maior prejudicada é ela, e, sendo este direito em seu empregatícia tortuosa, a maior prejudicada é ela, e, sendo este direito em seu
favor, ela tem direito de escolher a reintegração. Muito menos é aceitável que a favor, ela tem direito de escolher a reintegração. Muito menos é aceitável que a
reintegração seja convertida em indenização, a não ser que esta seja equivalente ao reintegração seja convertida em indenização, a não ser que esta seja equivalente ao
salário e benefício correspondente a todos os meses desde a demissão até o quinto salário e benefício correspondente a todos os meses desde a demissão até o quinto
depois do parto, e que seja por opção da própria empregada doméstica. depois do parto, e que seja por opção da própria empregada doméstica.
Enquanto o Estado é incapaz de garantir aos(às) cidadãos(ãs) emprego, cre- Enquanto o Estado é incapaz de garantir aos(às) cidadãos(ãs) emprego, cre-
ches, lavanderias comunitárias, restaurantes populares, entre outras possibilidades ches, lavanderias comunitárias, restaurantes populares, entre outras possibilidades
de desenvolvimento social, deverá, no mínimo, equiparar os direitos desses(as) de desenvolvimento social, deverá, no mínimo, equiparar os direitos desses(as)
cidadãos(ãs). A atual situação deplorável da trabalhadora doméstica não será re- cidadãos(ãs). A atual situação deplorável da trabalhadora doméstica não será re-
solvida sem uma verdadeira profissionalização desta profissão, com oferecimento solvida sem uma verdadeira profissionalização desta profissão, com oferecimento
de cursos de qualificação pelo governo. É necessária a valorização desse trabalho de cursos de qualificação pelo governo. É necessária a valorização desse trabalho
para que se concorra para o fim do preconceito, que, como ficou muito claro, não para que se concorra para o fim do preconceito, que, como ficou muito claro, não
é apenas relativo a este tipo de trabalho: as empregadas domésticas sofrem o pre- é apenas relativo a este tipo de trabalho: as empregadas domésticas sofrem o pre-
conceito de ser mulher, de ser negra e de ser pobre. Fundamental é oferecer a essas conceito de ser mulher, de ser negra e de ser pobre. Fundamental é oferecer a essas
mulheres todo o aporte social que a sociedade deve a elas historicamente. E aqui mulheres todo o aporte social que a sociedade deve a elas historicamente. E aqui
começamos melhor interpretando a “esmola jurídica” que lhes foi concedida. começamos melhor interpretando a “esmola jurídica” que lhes foi concedida.

4. Conclusão 4. Conclusão
A empregada doméstica é brutalmente discriminada pelo Direito: seja através A empregada doméstica é brutalmente discriminada pelo Direito: seja através
da legislação, da doutrina, ou das próprias decisões judiciais, essas trabalhadoras da legislação, da doutrina, ou das próprias decisões judiciais, essas trabalhadoras
sofrem um preconceito que tem origem na histórica discriminação de raça, gênero sofrem um preconceito que tem origem na histórica discriminação de raça, gênero
e classe em nossa sociedade. e classe em nossa sociedade.
Questionamentos a respeito da estabilidade provisória da empregada doméstica gestante… 353 Questionamentos a respeito da estabilidade provisória da empregada doméstica gestante… 353

Entre os pontos mais críticos do debate sobre os direitos das empregadas Entre os pontos mais críticos do debate sobre os direitos das empregadas
domésticas, destaca-se o da estabilidade gestante. Mesmo após uma esperada pa- domésticas, destaca-se o da estabilidade gestante. Mesmo após uma esperada pa-
cificação da discussão sobre a possibilidade da concessão desse direito para essas cificação da discussão sobre a possibilidade da concessão desse direito para essas
empregadas através da Lei 11.324/2006, doutrinadores(as) insistem em interpretar empregadas através da Lei 11.324/2006, doutrinadores(as) insistem em interpretar
a lei de modo a retirar da doméstica o direito à reintegração, que constitui a es- a lei de modo a retirar da doméstica o direito à reintegração, que constitui a es-
tabilidade gestante. No entanto, o fundamento do próprio Direito do Trabalho é tabilidade gestante. No entanto, o fundamento do próprio Direito do Trabalho é
proteger o(a) hipossuficiente da relação, e uma análise das condições de trabalho proteger o(a) hipossuficiente da relação, e uma análise das condições de trabalho
da empregada doméstica esclarece a fragilidade dessa trabalhadora no emprego da empregada doméstica esclarece a fragilidade dessa trabalhadora no emprego
doméstico. Assim, cabe ao Direito tutelar de fato essas mulheres, protegendo-as doméstico. Assim, cabe ao Direito tutelar de fato essas mulheres, protegendo-as
das arbitrariedades e exploração de seus(suas) empregadores(as). das arbitrariedades e exploração de seus(suas) empregadores(as).
A igualdade jurídica da trabalhadora doméstica certamente é um horizonte A igualdade jurídica da trabalhadora doméstica certamente é um horizonte
distante para o Direito brasileiro. O violento conservadorismo em todas as esferas distante para o Direito brasileiro. O violento conservadorismo em todas as esferas
jurídicas em que a doméstica é tratada é demonstrado pelo lento avanço da legisla- jurídicas em que a doméstica é tratada é demonstrado pelo lento avanço da legisla-
ção, através de concessões, na maioria das vezes. Além de equiparar constitucio- ção, através de concessões, na maioria das vezes. Além de equiparar constitucio-
nalmente os direitos das empregadas domésticas aos outros(as) trabalhadores(as), nalmente os direitos das empregadas domésticas aos outros(as) trabalhadores(as),
o Estado também deve realizar políticas de desenvolvimento social para valorizar o Estado também deve realizar políticas de desenvolvimento social para valorizar
e profissionalizar o emprego doméstico, pois o Brasil tem uma dívida histórica e profissionalizar o emprego doméstico, pois o Brasil tem uma dívida histórica
com essas trabalhadoras, e esta dívida urge ser reparada. com essas trabalhadoras, e esta dívida urge ser reparada.

5. Referências Bibliográficas 5. Referências Bibliográficas


Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeco- Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeco-
nômicos (DIEESE). O emprego doméstico: uma ocupação tipicamente feminina nômicos (DIEESE). O emprego doméstico: uma ocupação tipicamente feminina
/ Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE); / Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE);
Programa de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e Raça, Erra- Programa de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e Raça, Erra-
dicação da Pobreza e Geração de Emprego (GRPE). – [Brasília] : OIT – Secretaria dicação da Pobreza e Geração de Emprego (GRPE). – [Brasília] : OIT – Secretaria
Internacional do Trabalho, 2006. 52 p. : il. – (Cadernos GRPE; n.3). p. 12. Internacional do Trabalho, 2006. 52 p. : il. – (Cadernos GRPE; n.3). p. 12.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa mensal de em- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa mensal de em-
prego. Comunicação Social 26 de Abril de 2006. IBGE traça o perfil dos trabalhadores prego. Comunicação Social 26 de Abril de 2006. IBGE traça o perfil dos trabalhadores
domésticos. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/no- domésticos. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/no-
ticia_impressao.php?id_noticia=586 >. Acesso em: 12 out. 2006. ticia_impressao.php?id_noticia=586 >. Acesso em: 12 out. 2006.
SILVA, Roberto. Empregada doméstica. Direito à estabilidade gestante prevista no art. 10 SILVA, Roberto. Empregada doméstica. Direito à estabilidade gestante prevista no art. 10
do ADCT. Possibilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 336, 8 jun. 2004. Disponível do ADCT. Possibilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 336, 8 jun. 2004. Disponível
em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5180>. Acesso em: 24 out. 2006. em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5180>. Acesso em: 24 out. 2006.
CALVET, Otavio Amaral. A Estabilidade da Doméstica Gestante: Reintegração Forçada?. CALVET, Otavio Amaral. A Estabilidade da Doméstica Gestante: Reintegração Forçada?.
Juristas.com.br, João Pessoa, a. III, n. 88, 22/08/2006. Disponível em: <http://www. Juristas.com.br, João Pessoa, a. III, n. 88, 22/08/2006. Disponível em: <http://www.
juristas.com.br/revista/coluna.jsp?idColuna=1990>. Acesso em: 19/11/2006. juristas.com.br/revista/coluna.jsp?idColuna=1990>. Acesso em: 19/11/2006.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho / Maurício Godinho Delgado. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho / Maurício Godinho Delgado.
– 3. ed. – São Paulo: LTr, 2004. p. 378. – 3. ed. – São Paulo: LTr, 2004. p. 378.
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho / Alice Monteiro de Barros. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho / Alice Monteiro de Barros.
– 2. ed. – São Paulo: LTr, 2006. p. 332. – 2. ed. – São Paulo: LTr, 2006. p. 332.
354 Samira Oliveira Noronha 354 Samira Oliveira Noronha

FERRARI, Irany; Martins, Melchíades Rodrigues. Julgados Trabalhistas Selecionados, FERRARI, Irany; Martins, Melchíades Rodrigues. Julgados Trabalhistas Selecionados,
de Irany Ferrari e Melchíades Rodrigues Martins, Ed. LTR, São Paulo, 1.992, pág. de Irany Ferrari e Melchíades Rodrigues Martins, Ed. LTR, São Paulo, 1.992, pág.
227. 227.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Preâmbulo. Mini Vade BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Preâmbulo. Mini Vade
Mecum de Direito 7 em 1. Vol. I. / Anne Joyce Angher organização. – 2 ed. – São Mecum de Direito 7 em 1. Vol. I. / Anne Joyce Angher organização. – 2 ed. – São
Paulo: Rideel, 2005. – (Coleção de leis Rideel. Série mini 3 em 1) Paulo: Rideel, 2005. – (Coleção de leis Rideel. Série mini 3 em 1)
CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa; JORGE NETO, Francisco Ferreira. A dis- CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa; JORGE NETO, Francisco Ferreira. A dis-
pensa da empregada doméstica gestante como obstativa de direitos. Jus Navigandi, pensa da empregada doméstica gestante como obstativa de direitos. Jus Navigandi,
Teresina, ano 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. Teresina, ano 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.
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FILHO, Rodolpho Pamplona; VILLATORE, Marco Antônio César. Direito do Trabalho FILHO, Rodolpho Pamplona; VILLATORE, Marco Antônio César. Direito do Trabalho
Doméstico, 2ª ed., São Paulo: LTr, p. 104 Doméstico, 2ª ed., São Paulo: LTr, p. 104
COUTINHO, Sérgio. Garantia de emprego e estabilidade em caso de discriminação. Jus COUTINHO, Sérgio. Garantia de emprego e estabilidade em caso de discriminação. Jus
Navigandi, Teresina, ano 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com. Navigandi, Teresina, ano 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.
br/doutrina/texto.asp?id=2833>. Acesso em: 12 out. 2006. br/doutrina/texto.asp?id=2833>. Acesso em: 12 out. 2006.
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Consti- BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Consti-
tucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: tucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out. 2002. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina texto.asp?id= 3208>. Acesso em: 25 nov. 2006. <http://jus2.uol.com.br/doutrina texto.asp?id= 3208>. Acesso em: 25 nov. 2006.
Capítulo XXV Capítulo XXV
Formas de violência extralegal: Formas de violência extralegal:
linchamentos e execuções sumárias linchamentos e execuções sumárias
Fazendo “justiça” pelas próprias mãos na Bahia1 Fazendo “justiça” pelas próprias mãos na Bahia1

Tagore Trajano de Almeida Silva* Tagore Trajano de Almeida Silva*


Ceci Vilar Noronha** Ceci Vilar Noronha**

Sumário • 1. Introdução – 2. Metodologia: 2.1. Coleta de dados; 2.2. Análise de dados – 3.Explo- Sumário • 1. Introdução – 2. Metodologia: 2.1. Coleta de dados; 2.2. Análise de dados – 3.Explo-
rando os conceitos – 4. Resultados: 4.1. Grupos de Extermínio; 4.2. Linchamento – 5. Discussão – 6. rando os conceitos – 4. Resultados: 4.1. Grupos de Extermínio; 4.2. Linchamento – 5. Discussão – 6.
Considerações finais – 7. Referências. Considerações finais – 7. Referências.

1. Introdução 1. Introdução
Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessa- Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessa-
riamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única “mensagem” que riamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única “mensagem” que
o fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema o fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema
capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. [...]. Cada capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. [...]. Cada
novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós. (Han- novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós. (Han-
nat Arendt)2 nat Arendt)2
De 2005 a 2006, pesquisadores do Instituto de Saúde Coletiva e da Faculdade De 2005 a 2006, pesquisadores do Instituto de Saúde Coletiva e da Faculdade
de Direito se uniram, a partir do Programa de Iniciação Científica da UFBA – PI- de Direito se uniram, a partir do Programa de Iniciação Científica da UFBA – PI-
BIC/UFBA, para debater as temáticas da Violência, Saúde Coletiva e dos Direitos BIC/UFBA, para debater as temáticas da Violência, Saúde Coletiva e dos Direitos
Humanos. Os objetivos traçados para o estudo partiram dos impactos sociais das Humanos. Os objetivos traçados para o estudo partiram dos impactos sociais das
mortes violentas, provocadas por ações de extermínio e linchamentos, analisando mortes violentas, provocadas por ações de extermínio e linchamentos, analisando
as informações da imprensa, que representam uma das esferas públicas de debate as informações da imprensa, que representam uma das esferas públicas de debate
e a visão dos policiais da Bahia. Ao mesmo tempo, explorou-se as definições e e a visão dos policiais da Bahia. Ao mesmo tempo, explorou-se as definições e
as formas de classificação dos crimes em estudo, principalmente por meio das as formas de classificação dos crimes em estudo, principalmente por meio das
entrevistas com policiais, a fim de atender ao objetivo e promover a capacitação entrevistas com policiais, a fim de atender ao objetivo e promover a capacitação
em pesquisa científica de novos pesquisadores. em pesquisa científica de novos pesquisadores.
Assim, cabe informar que o presente trabalho é um desdobramento dos re- Assim, cabe informar que o presente trabalho é um desdobramento dos re-
sumos apresentados nos “Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC – Florianópolis, sumos apresentados nos “Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC – Florianópolis,

* Mestrando e pesquisador da Faculdade de Direito da UFBA. * Mestrando e pesquisador da Faculdade de Direito da UFBA.
** Professora, pesquisadora e socióloga do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. Mestre e Doutora ** Professora, pesquisadora e socióloga do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. Mestre e Doutora
em Saúde Coletiva ISC/UFBA. em Saúde Coletiva ISC/UFBA.
1. Os autores agradecem às pessoas que ajudaram nesta empreitada: Eduardo Paes-Machado, Rafael 1. Os autores agradecem às pessoas que ajudaram nesta empreitada: Eduardo Paes-Machado, Rafael
Torres de Cerqueira, Iuri Falcão Xavier Mota e Jarbas Maia Linhares. Torres de Cerqueira, Iuri Falcão Xavier Mota e Jarbas Maia Linhares.
356 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha 356 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha

SC – Julho/20063”, no “II Encontro de Direito e Cultura Latino-Americanos: SC – Julho/20063”, no “II Encontro de Direito e Cultura Latino-Americanos:
Diversidade, Identidade e Emancipação4” e no “VII Seminário de Pesquisa e Diversidade, Identidade e Emancipação4” e no “VII Seminário de Pesquisa e
Pós-graduação (VII SEMPPG). Pós-graduação (VII SEMPPG).
XXV Seminário Estudantil de Pesquisa (XXV SEMEP) da UFBA5”, onde os XXV Seminário Estudantil de Pesquisa (XXV SEMEP) da UFBA5”, onde os
autores buscaram apresentar o número de casos de linchamentos e execuções autores buscaram apresentar o número de casos de linchamentos e execuções
noticiados na impren­sa baiana, fenômeno que tem reflexos nos atendimentos de noticiados na impren­sa baiana, fenômeno que tem reflexos nos atendimentos de
urgência dos hospitais e unidades de saúde. Considerando a imprensa como fonte, urgência dos hospitais e unidades de saúde. Considerando a imprensa como fonte,
meio de comunicação que apresenta os números mais elevados, pois no período de meio de comunicação que apresenta os números mais elevados, pois no período de
1997 a 2001, tivemos 166 matérias relativas a linchamentos ou tentativas que não 1997 a 2001, tivemos 166 matérias relativas a linchamentos ou tentativas que não
levaram à morte das vítimas por conta da intervenção policial6. Por conseguinte, levaram à morte das vítimas por conta da intervenção policial6. Por conseguinte,
a complexidade do objeto de estudo se revela pela dificuldade mesma em obter a complexidade do objeto de estudo se revela pela dificuldade mesma em obter
números precisos. números precisos.
A mesma dificuldade em obter estatísticas fidedignas se aplica às mortes e A mesma dificuldade em obter estatísticas fidedignas se aplica às mortes e
lesões provocadas pelas ações dos grupos de extermínio. De 1996 a 1999, segun- lesões provocadas pelas ações dos grupos de extermínio. De 1996 a 1999, segun-
do a imprensa, 332 mortes foram atribuídas à ação dos grupos de extermínio na do a imprensa, 332 mortes foram atribuídas à ação dos grupos de extermínio na
Bahia7. Ademais, a recente criação do Grupo Especial de Repressão aos Grupos Bahia7. Ademais, a recente criação do Grupo Especial de Repressão aos Grupos
de Extermínio, pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia, leva a crer que o de Extermínio, pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia, leva a crer que o
problema assumiu maior visibilidade nas políticas de Estado. problema assumiu maior visibilidade nas políticas de Estado.
Consta no Relatório da Sociedade Civil sobre Execuções Sumárias no Brasil8 Consta no Relatório da Sociedade Civil sobre Execuções Sumárias no Brasil8
que a prática de extermínio pode existir sem ligação direta com a polícia, todavia, que a prática de extermínio pode existir sem ligação direta com a polícia, todavia,

2. ARENDT. Hannat, Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das 2. ARENDT. Hannat, Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. p. 531. Letras, 1989. p. 531.
3. A reunião anual da SBPC aconteceu na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Flo- 3. A reunião anual da SBPC aconteceu na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Flo-
rianópolis, entre 16 e 21 de julho de 2006. Para visualização do resumo apresentado pelos autores, rianópolis, entre 16 e 21 de julho de 2006. Para visualização do resumo apresentado pelos autores,
favor acessar: http://www.sbpcnet.org.br/livro/58ra/SENIOR/RESUMOS/resumo_2939.html . favor acessar: http://www.sbpcnet.org.br/livro/58ra/SENIOR/RESUMOS/resumo_2939.html .
4. O II Encontro de Direito e Cultura Latino-Americanos: diversidade, identidade e emancipação 4. O II Encontro de Direito e Cultura Latino-Americanos: diversidade, identidade e emancipação
ocorreu entre os dias 25 a 28 de julho na Universidade Federal do Paraná, sendo uma realização ocorreu entre os dias 25 a 28 de julho na Universidade Federal do Paraná, sendo uma realização
do Centro de Estudos Jurídicos do programa de pós-graduação em Direito da UFPR – CEJUR. do Centro de Estudos Jurídicos do programa de pós-graduação em Direito da UFPR – CEJUR.
Neste encontro, discutiram-se temas como sistema público de comunicação, os sentidos dos Neste encontro, discutiram-se temas como sistema público de comunicação, os sentidos dos
Direito Humanos na América Latina; língua, cultura e dominação; segurança pública no Brasil Direito Humanos na América Latina; língua, cultura e dominação; segurança pública no Brasil
e nos demais países latino-americanos. Paralelamente, são realizadas diversas apresentações de e nos demais países latino-americanos. Paralelamente, são realizadas diversas apresentações de
atividades culturais como hip hop, fandango, exposições fotográficas e mostra de cinema. atividades culturais como hip hop, fandango, exposições fotográficas e mostra de cinema.
5. Seminário de pesquisa anual realizado pela Pró-reitoria de pesquisa e pós-graduação da UFBA. 5. Seminário de pesquisa anual realizado pela Pró-reitoria de pesquisa e pós-graduação da UFBA.
Para visualização do resumo apresentado pelos autores, abrir o link: http://www.pibic.ufba. Para visualização do resumo apresentado pelos autores, abrir o link: http://www.pibic.ufba.
br/seminario/principal.php3?f_funcao=exibe_resumo&a_resumo=53170-A3A. br/seminario/principal.php3?f_funcao=exibe_resumo&a_resumo=53170-A3A.
6. CERQUEIRA, Rafael Torres de; NORONHA, Ceci Vilar. Cenas de Linchamento: reconstrução 6. CERQUEIRA, Rafael Torres de; NORONHA, Ceci Vilar. Cenas de Linchamento: reconstrução
dramática da violência coletiva. In Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 2, p. 163-172, mai./ago. dramática da violência coletiva. In Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 2, p. 163-172, mai./ago.
2004. p. 01. Para visualização, favor acessar: http://www.scielo.br/pdf/pe/v9n2/v9n2a03.pdf. 2004. p. 01. Para visualização, favor acessar: http://www.scielo.br/pdf/pe/v9n2/v9n2a03.pdf.
7. RIBEIRO. Lutz Mulert Souza, Pesquisa sobre Crimes de Homicídio na Bahia. In: OLIVEIRA, 7. RIBEIRO. Lutz Mulert Souza, Pesquisa sobre Crimes de Homicídio na Bahia. In: OLIVEIRA,
Nelson de; RIBEIRO, Lutz Mulert Sousa; ZANETTI, José Carlos (org.). A Outra face da Moeda: Nelson de; RIBEIRO, Lutz Mulert Sousa; ZANETTI, José Carlos (org.). A Outra face da Moeda:
Violência na Bahia. Salvador: CJP-BA, 2000. p. 72-91. Violência na Bahia. Salvador: CJP-BA, 2000. p. 72-91.
8. LIMA JR, Jayme Benvenuto. (Org.); PIOVESAN, Flávia; CAVALLARO, James Louis; BRITO, 8. LIMA JR, Jayme Benvenuto. (Org.); PIOVESAN, Flávia; CAVALLARO, James Louis; BRITO,
Valdênia; OLIVEIRA, José Fernando da Silva Luciano. Relatório Da Sociedade Civil Sobre Valdênia; OLIVEIRA, José Fernando da Silva Luciano. Relatório Da Sociedade Civil Sobre
Execuções Sumárias No Brasil De 2001. Execuções Sumárias No Brasil De 2001.
Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 357 Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 357

os levantamentos estatísticos demonstram que quase sempre há o envolvimento de os levantamentos estatísticos demonstram que quase sempre há o envolvimento de
um ou mais integrante policial e mesmo quando não, há o apoio discreto da polícia. um ou mais integrante policial e mesmo quando não, há o apoio discreto da polícia.
Deste modo, o referido relatório denomina estes casos de grupo de extermínio Deste modo, o referido relatório denomina estes casos de grupo de extermínio
como casos de execução sumária, arbitrária ou extrajudicial. como casos de execução sumária, arbitrária ou extrajudicial.
Dados do Ministério da Justiça de 1999 confirmam a participação de policiais Dados do Ministério da Justiça de 1999 confirmam a participação de policiais
em práticas de grupos de extermínio, sejam chefiando grupos ou como forma de em práticas de grupos de extermínio, sejam chefiando grupos ou como forma de
ações particulares motivadas pelo mote de justiça privada. Consoante informa- ações particulares motivadas pelo mote de justiça privada. Consoante informa-
ções desse Ministério, no Brasil ocorreram, no primeiro semestre de 1999, 1.148 ções desse Ministério, no Brasil ocorreram, no primeiro semestre de 1999, 1.148
casos de mortes noticiados como sendo cometidos por policiais em atividades casos de mortes noticiados como sendo cometidos por policiais em atividades
rotineiras de combate ao crime ou por grupos de extermínio, o que equivalem a rotineiras de combate ao crime ou por grupos de extermínio, o que equivalem a
8,25 % do total. 8,25 % do total.
Tais dados configuram, assim, na sociedade atual, tentativas de constituição Tais dados configuram, assim, na sociedade atual, tentativas de constituição
de uma justiça paralela, onde todas as fases devidas do processo legal são subtra- de uma justiça paralela, onde todas as fases devidas do processo legal são subtra-
ídas e a regra passe a ser as diversas práticas heterodoxas de punição, entre elas ídas e a regra passe a ser as diversas práticas heterodoxas de punição, entre elas
o linchamento e as ações dos grupos de extermínio. o linchamento e as ações dos grupos de extermínio.
Portanto é diante desta preocupação que se justifica o interesse pelo tema de Portanto é diante desta preocupação que se justifica o interesse pelo tema de
investigação, como forma de compreender as diversas visões dos fenômenos, a investigação, como forma de compreender as diversas visões dos fenômenos, a
partir dos organismos detentores da missão de inibir tais práticas criminosas: o partir dos organismos detentores da missão de inibir tais práticas criminosas: o
Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Militar e a Polícia Civil. Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Militar e a Polícia Civil.

2. Metodologia 2. Metodologia
Este estudo coletou e analisou informações sobre execuções sumárias e lin- Este estudo coletou e analisou informações sobre execuções sumárias e lin-
chamentos na Bahia, com especial atenção para os eventos ocorridos na Região chamentos na Bahia, com especial atenção para os eventos ocorridos na Região
Metropolitana de Salvador, no período de 2002 a 2005, tomando como fontes a Metropolitana de Salvador, no período de 2002 a 2005, tomando como fontes a
imprensa escrita e as polícias Militar e Civil. imprensa escrita e as polícias Militar e Civil.
Inicialmente, pensou-se em fazer um levantamento de informações publicadas Inicialmente, pensou-se em fazer um levantamento de informações publicadas
na imprensa nos anos de 2002 a 2004, porém o objeto foi ampliado para a inclusão na imprensa nos anos de 2002 a 2004, porém o objeto foi ampliado para a inclusão
de 2005. Nesse período reuniram-se 152 matérias relativas às execuções sumárias, de 2005. Nesse período reuniram-se 152 matérias relativas às execuções sumárias,
enquanto que foram coletadas 200 matérias correspondentes a linchamentos. A enquanto que foram coletadas 200 matérias correspondentes a linchamentos. A
coleta de matérias da imprensa demandou algum tempo, visto o grande número coleta de matérias da imprensa demandou algum tempo, visto o grande número
de notícias a serem depuradas para identificação dos casos ocorridos na Região de notícias a serem depuradas para identificação dos casos ocorridos na Região
Metropolitana de Salvador. Metropolitana de Salvador.
Dada a complexidade do objeto a ser estudado, as estratégias metodológicas Dada a complexidade do objeto a ser estudado, as estratégias metodológicas
foram quantitativas e qualitativas, visando a tanto levantar o número de mortos e foram quantitativas e qualitativas, visando a tanto levantar o número de mortos e
feridos, o de inquéritos iniciados para a punição dos envolvidos como agressores, feridos, o de inquéritos iniciados para a punição dos envolvidos como agressores,
quanto a compreender as lógicas que presidem tais eventos. quanto a compreender as lógicas que presidem tais eventos.
Tentou-se, por fim, obter uma reconstrução ampla das implicações sociais Tentou-se, por fim, obter uma reconstrução ampla das implicações sociais
e legais das execuções sumárias e das práticas de linchamento: Quem participa e legais das execuções sumárias e das práticas de linchamento: Quem participa
358 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha 358 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha

das agressões? Por que participa? Quem é vítima desses atos? O que pensam os das agressões? Por que participa? Quem é vítima desses atos? O que pensam os
policiais sobre esses eventos? policiais sobre esses eventos?

2.1. Coleta de dados 2.1. Coleta de dados


O desenvolvimento do projeto implicará em levantar informações junto a: O desenvolvimento do projeto implicará em levantar informações junto a:
a) Jornais – identificando e organizando um banco de dados com todas as a) Jornais – identificando e organizando um banco de dados com todas as
matérias relativas aos eventos em estudo, analisando também as narrativas matérias relativas aos eventos em estudo, analisando também as narrativas
dos jornalistas. Acredita-se que estes profissionais não apenas descrevem dos jornalistas. Acredita-se que estes profissionais não apenas descrevem
os fatos, mas emitem valores em relação às vítimas e às motivações dos os fatos, mas emitem valores em relação às vítimas e às motivações dos
agressores. agressores.
b) Polícia Militar – entrevistas com policiais que fazem o policiamento b) Polícia Militar – entrevistas com policiais que fazem o policiamento
ostensivo para conhecer o que eles pensam sobre estas formas de violência. ostensivo para conhecer o que eles pensam sobre estas formas de violência.
c) Polícia Civil – coleta das estatísticas de ocorrências de homicídios ou c) Polícia Civil – coleta das estatísticas de ocorrências de homicídios ou
lesões corporais, bem como o levantamento do número de inquéritos. lesões corporais, bem como o levantamento do número de inquéritos.
Outra estratégia metodológica utilizada foi entrevistas com policiais da corpo- Outra estratégia metodológica utilizada foi entrevistas com policiais da corpo-
ração Civil e Militar. Escolheram-se duas Companhias Independentes da Polícia ração Civil e Militar. Escolheram-se duas Companhias Independentes da Polícia
Militar, situadas na área do subúrbio ferroviário da cidade de Salvador, local que Militar, situadas na área do subúrbio ferroviário da cidade de Salvador, local que
as matérias jornalísticas indicavam como área em que ocorreu grande número as matérias jornalísticas indicavam como área em que ocorreu grande número
de linchamentos e mortes por grupos de extermínio. Para a realização dessas de linchamentos e mortes por grupos de extermínio. Para a realização dessas
entrevistas, foi redigido um roteiro de perguntas que englobava os dois eventos, entrevistas, foi redigido um roteiro de perguntas que englobava os dois eventos,
e, principalmente, o modo pelos quais, os policiais viam as características destes e, principalmente, o modo pelos quais, os policiais viam as características destes
delitos e o envolvimento da própria corporação nestes eventos. delitos e o envolvimento da própria corporação nestes eventos.
Realizamos 13 entrevistas, apesar de insistentes idas e contatos às delegacias Realizamos 13 entrevistas, apesar de insistentes idas e contatos às delegacias
e sede de CIA. Quanto à receptividade à pesquisa, notamos que a Policia Mili- e sede de CIA. Quanto à receptividade à pesquisa, notamos que a Policia Mili-
tar foi mais disponível às nossas solicitações, e houve maiores dificuldades em tar foi mais disponível às nossas solicitações, e houve maiores dificuldades em
relação à Polícia Civil, instituição em que foram freqüentes as recusas por parte relação à Polícia Civil, instituição em que foram freqüentes as recusas por parte
dos profissionais. Com tais dificuldades, conseguiu-se entrevistar, apenas, cinco dos profissionais. Com tais dificuldades, conseguiu-se entrevistar, apenas, cinco
policiais civis que atuavam na região da Chapada do Rio Vermelho, Santa Cruz policiais civis que atuavam na região da Chapada do Rio Vermelho, Santa Cruz
e Nordeste de Amaralina. e Nordeste de Amaralina.

2.2. Análise de dados 2.2. Análise de dados


Com as estatísticas policiais, foram organizadas tabelas e calculados os per- Com as estatísticas policiais, foram organizadas tabelas e calculados os per-
centuais de casos de linchamento e execução sumária, dentre os demais. centuais de casos de linchamento e execução sumária, dentre os demais.

3. Explorando os Conceitos 3. Explorando os Conceitos


O linchamento caracteriza-se como uma forma de fazer ações de vigilantismo, O linchamento caracteriza-se como uma forma de fazer ações de vigilantismo,
ou seja, eliminação ou punição física dos indesejáveis. O termo “linchamento” ou seja, eliminação ou punição física dos indesejáveis. O termo “linchamento”
Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 359 Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 359

deriva-se de CHARLES LYNCH, fazendeiro norte-americano da Virgínia que deriva-se de CHARLES LYNCH, fazendeiro norte-americano da Virgínia que
dirigia uma organização, na época da Revolução Americana, que se destinava a dirigia uma organização, na época da Revolução Americana, que se destinava a
julgar e punir bandidos e simpatizantes dos colonizadores ingleses. Esta justiça sem julgar e punir bandidos e simpatizantes dos colonizadores ingleses. Esta justiça sem
formalidades, rápida e natural, prosperou com o passar dos anos como forma de formalidades, rápida e natural, prosperou com o passar dos anos como forma de
intimidação às minorias que na época eram caracterizadas pelos negros libertos. intimidação às minorias que na época eram caracterizadas pelos negros libertos.
A prática de linchamento de pessoas, hodiernamente, caracteriza-se por ser A prática de linchamento de pessoas, hodiernamente, caracteriza-se por ser
um fato relacionado à falta de confiança dos grupos sociais quanto ao exercício um fato relacionado à falta de confiança dos grupos sociais quanto ao exercício
da justiça. É um fenômeno de evento de difícil conceituação, já que a própria da justiça. É um fenômeno de evento de difícil conceituação, já que a própria
multiplicidade dos aspectos envolvidos na definição pode gerar controvérsias. multiplicidade dos aspectos envolvidos na definição pode gerar controvérsias.
Contudo, podem-se identificar características comuns: Contudo, podem-se identificar características comuns:
[...] os linchamentos são “crimes” cometidos por cidadãos em estado de multidão, [...] os linchamentos são “crimes” cometidos por cidadãos em estado de multidão,
contra pessoa ou grupos menores que romperam uma norma pré-estabelecida. São contra pessoa ou grupos menores que romperam uma norma pré-estabelecida. São
ações motivadas por mentes conservadoras, de indivíduos descrentes do poder dos ações motivadas por mentes conservadoras, de indivíduos descrentes do poder dos
aparelhos judiciais que tentam, pela morte dos “expurgos sociais”, restabelecer a aparelhos judiciais que tentam, pela morte dos “expurgos sociais”, restabelecer a
ordem perdida9. ordem perdida9.

Atos de linchamento são praticados no Brasil desde o período colonial, sendo Atos de linchamento são praticados no Brasil desde o período colonial, sendo
identificadas muitas motivações para os mesmos. Nesse sentido, HASS (2003), identificadas muitas motivações para os mesmos. Nesse sentido, HASS (2003),
estudando um caso concreto de linchamento ocorrido em Chapecó, Santa Catarina, estudando um caso concreto de linchamento ocorrido em Chapecó, Santa Catarina,
em 1950, descobriu que neste tipo de fato, por vezes, registra-se o envolvimento em 1950, descobriu que neste tipo de fato, por vezes, registra-se o envolvimento
de mentes conservadoras que visam assegurar formas de poder local perante um de mentes conservadoras que visam assegurar formas de poder local perante um
grupo que se sentiu vilipendiado. grupo que se sentiu vilipendiado.
Nada obstante, juridicamente, este tipo de conduta coletiva configura uma Nada obstante, juridicamente, este tipo de conduta coletiva configura uma
atenuante Penal à prática de um crime, ou seja, a pena será reduzida quando for atenuante Penal à prática de um crime, ou seja, a pena será reduzida quando for
praticado um crime sob influência de multidão em tumulto, se não provocado pelo praticado um crime sob influência de multidão em tumulto, se não provocado pelo
próprio agente10. Existe uma menor força na reprovação da conduta11. próprio agente10. Existe uma menor força na reprovação da conduta11.
Reconhecendo o sentimento de onipotência gerado pela clandestinidade Reconhecendo o sentimento de onipotência gerado pela clandestinidade
provocada pela participação da turba, é como se o Direito reconhecesse que o provocada pela participação da turba, é como se o Direito reconhecesse que o
estado de multidão é elemento caracterizador para distinguir o linchamento de estado de multidão é elemento caracterizador para distinguir o linchamento de
outras formas de execução sumária, pois nele há um distintivo que é o componente outras formas de execução sumária, pois nele há um distintivo que é o componente
basicamente emocional e c­ oletivo. basicamente emocional e c­ oletivo.
[...] O que vem a ser denominado de multidão é um conceito complexo, que envolve [...] O que vem a ser denominado de multidão é um conceito complexo, que envolve
mais do que um simples aglomerado de pessoas. A verdadeira multidão o é menos mais do que um simples aglomerado de pessoas. A verdadeira multidão o é menos

9. CERQUEIRA, Rafael Torres de; NORONHA, Ceci Vilar. Cenas de Linchamento: reconstrução 9. CERQUEIRA, Rafael Torres de; NORONHA, Ceci Vilar. Cenas de Linchamento: reconstrução
dramática da violência coletiva. In Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 2, p. 163-172, mai./ago. dramática da violência coletiva. In Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 2, p. 163-172, mai./ago.
2004. p. 01 2004. p. 01
10. BRASIL, Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Artigo 65, 10. BRASIL, Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Artigo 65,
III, e III, e
11. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V.01. parte geral. 3ªed. São Paulo: Editora 11. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V.01. parte geral. 3ªed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002.p. 437. Revista dos Tribunais, 2002.p. 437.
360 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha 360 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha

pelo número dos que a compõem do que pelas características de sua mobilização pelo número dos que a compõem do que pelas características de sua mobilização
e participação nos atos de linchar12. e participação nos atos de linchar12.

Quanto ao que concerne às motivações para o linchamento, um dos autores Quanto ao que concerne às motivações para o linchamento, um dos autores
deste trabalho já teve a oportunidade de escrever sobre o tema, destacando que deste trabalho já teve a oportunidade de escrever sobre o tema, destacando que
diversas são as formas de motivação13, uma vez que a prática do linchamento hoje é diversas são as formas de motivação13, uma vez que a prática do linchamento hoje é
mais utilizada como uma forma de controle social e eliminação dos “indesejáveis”. mais utilizada como uma forma de controle social e eliminação dos “indesejáveis”.
Para a autora, os cidadãos clamam por resgatar o controle social no cotidiano Para a autora, os cidadãos clamam por resgatar o controle social no cotidiano
dos bairros e de centros comerciais. Contudo, influenciados pelo medo social dos bairros e de centros comerciais. Contudo, influenciados pelo medo social
que cada vez mais se expande, a própria comunidade manifesta-se intolerante às que cada vez mais se expande, a própria comunidade manifesta-se intolerante às
pessoas que causam desconforto aos círculos de relações sociais. Incluem-se entre pessoas que causam desconforto aos círculos de relações sociais. Incluem-se entre
os “indesejáveis” aqueles que, despertando suspeitas, têm comportamentos não os “indesejáveis” aqueles que, despertando suspeitas, têm comportamentos não
aceitos no círculo social, traços de personalidade ou aparência, não sendo estes aceitos no círculo social, traços de personalidade ou aparência, não sendo estes
bem acolhidos no bairro por suas condutas14. Contudo, as formas como os cidadãos bem acolhidos no bairro por suas condutas14. Contudo, as formas como os cidadãos
vivenciam esta forma de medo, não devem influenciar a maneira de atuação dos vivenciam esta forma de medo, não devem influenciar a maneira de atuação dos
órgãos institucionais legítimos. órgãos institucionais legítimos.
Conseqüentemente, uma concepção que orienta os grupos sociais que praticam Conseqüentemente, uma concepção que orienta os grupos sociais que praticam
ou aprovam atos de violência, como execuções sumárias ou linchamentos, é que ou aprovam atos de violência, como execuções sumárias ou linchamentos, é que
só se poderia responder a esta violência com outra forma de violência, seja insti- só se poderia responder a esta violência com outra forma de violência, seja insti-
tucionalizada ou não. No Brasil, este posicionamento tem sido muito difundido e tucionalizada ou não. No Brasil, este posicionamento tem sido muito difundido e
propagado, sobretudo nas camadas menos abastardas e descrentes de justiça, por propagado, sobretudo nas camadas menos abastardas e descrentes de justiça, por
intermédio dos meios de comunicação. intermédio dos meios de comunicação.
A guerra social está presente no cotidiano do Brasil com a existência de cha- A guerra social está presente no cotidiano do Brasil com a existência de cha-
cinas. Contudo, o uso da força por grupos privados não pode ser visto, pois, como cinas. Contudo, o uso da força por grupos privados não pode ser visto, pois, como
resultado exclusivo da ausência do Estado, mas também de profundas mudanças resultado exclusivo da ausência do Estado, mas também de profundas mudanças
na sociedade. A sociedade mudou as formas de vida de seus grupos sociais, seja na sociedade. A sociedade mudou as formas de vida de seus grupos sociais, seja
com uma segmentação da população, como, também, com a diminuição de com- com uma segmentação da população, como, também, com a diminuição de com-
promissos com interesses gerais15. promissos com interesses gerais15.
Este arrefecimento do coletivo para o individual colabora para que órgãos Este arrefecimento do coletivo para o individual colabora para que órgãos
institucionalizados, como Polícia Militar, Polícia Civil, que devem em princípio institucionalizados, como Polícia Militar, Polícia Civil, que devem em princípio
proteger toda a sociedade, preste-se a práticas de segregação e eliminação física proteger toda a sociedade, preste-se a práticas de segregação e eliminação física
de pessoas. de pessoas.

12. Apud HASS, Mônica. O Linchamento que muitos querem esquecer. Chapecó: Argos, 2003. 12. Apud HASS, Mônica. O Linchamento que muitos querem esquecer. Chapecó: Argos, 2003.
13. As motivações podem ser caracterizadas contra honra das famílias, como o estupro, até a vingança 13. As motivações podem ser caracterizadas contra honra das famílias, como o estupro, até a vingança
contra assaltantes de transportes coletivo, perturbadores do patrimônio e praticantes de crimes contra assaltantes de transportes coletivo, perturbadores do patrimônio e praticantes de crimes
como: furto e/ou roubo. como: furto e/ou roubo.
14. NORONHA, C. V. Domínios do medo social: Violência, crime e pobreza na Grande Salvador, 14. NORONHA, C. V. Domínios do medo social: Violência, crime e pobreza na Grande Salvador,
(Tese de Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da (Tese de Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da
Bahia, 2000 pg. 150-160. Bahia, 2000 pg. 150-160.
15. FALEIROS, Vicente de Paula. Questão da Violência. In SOUZA JR, José Geraldo de. [et.al] (orgs.) 15. FALEIROS, Vicente de Paula. Questão da Violência. In SOUZA JR, José Geraldo de. [et.al] (orgs.)
Educando para os Direitos Humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na Universidade. Educando para os Direitos Humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na Universidade.
Porto Alegre: Síntese, 2004. p.83-98. Porto Alegre: Síntese, 2004. p.83-98.
Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 361 Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 361

Consta no Relatório da Sociedade Civil sobre Execuções Sumárias no Brasil Consta no Relatório da Sociedade Civil sobre Execuções Sumárias no Brasil
de 200116 que a prática de extermínio pode existir sem ligação direta com a po- de 200116 que a prática de extermínio pode existir sem ligação direta com a po-
lícia; todavia, os levantamentos estatísticos demonstram que quase sempre há o lícia; todavia, os levantamentos estatísticos demonstram que quase sempre há o
envolvimento de um ou mais integrante policial, e mesmo quando não, há o apoio envolvimento de um ou mais integrante policial, e mesmo quando não, há o apoio
discreto da polícia. Deste modo, o referido relatório denomina estes casos de grupo discreto da polícia. Deste modo, o referido relatório denomina estes casos de grupo
de extermínio como casos de execução sumária, arbitrária ou extrajudicial. de extermínio como casos de execução sumária, arbitrária ou extrajudicial.
Tratam-se de casos em que as autoridades ou agentes particulares contam com Tratam-se de casos em que as autoridades ou agentes particulares contam com
o apoio explícito ou implícito das instituições, transformando estes aparelhos em o apoio explícito ou implícito das instituições, transformando estes aparelhos em
organismos legitimadores de tais condutas. organismos legitimadores de tais condutas.
Tanto a polícia como o Judiciário agem refletindo valores conservadores da Tanto a polícia como o Judiciário agem refletindo valores conservadores da
sociedade. Valores preconceituosos que marginalizam pela raça/etnia, gênero/sexo, sociedade. Valores preconceituosos que marginalizam pela raça/etnia, gênero/sexo,
classe, dentre outros; e que criam uma espécie de venda aos olhos do Estado, classe, dentre outros; e que criam uma espécie de venda aos olhos do Estado,
proliferando o medo e a injustiça. Há uma violência simbólica que se institui e proliferando o medo e a injustiça. Há uma violência simbólica que se institui e
generaliza-se. generaliza-se.
Essa violência é percebida nos estabelecimentos prisionais, onde a pena não Essa violência é percebida nos estabelecimentos prisionais, onde a pena não
apenas “reprimiria” pura e simplesmente as ilegalidades; ela as “diferenciaria”, apenas “reprimiria” pura e simplesmente as ilegalidades; ela as “diferenciaria”,
faria sua “economia” geral. O sistema penal, depois de fazer, os condenados pa- faria sua “economia” geral. O sistema penal, depois de fazer, os condenados pa-
garem suas penas, continua a segui-los através de toda uma série de marcações garem suas penas, continua a segui-los através de toda uma série de marcações
que persegue o “delinqüente”. A penalidade seria então uma maneira de gerir que persegue o “delinqüente”. A penalidade seria então uma maneira de gerir
as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer
pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra17. pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra17.
Pesquisa sobre crimes de homicídios na Bahia, descreve que o perfil da vítima Pesquisa sobre crimes de homicídios na Bahia, descreve que o perfil da vítima
é homem, negro, trabalhador, com idade entre 15 e 35 anos, morador de bairro é homem, negro, trabalhador, com idade entre 15 e 35 anos, morador de bairro
pobre e quase sempre sem antecedentes criminais. Tais dados são ainda visíveis, pobre e quase sempre sem antecedentes criminais. Tais dados são ainda visíveis,
em Salvador, pela divisão entre um “centro” policiado, seguro e iluminado, e em Salvador, pela divisão entre um “centro” policiado, seguro e iluminado, e
a “periferia” mal-policiada, insegura e ausente de serviços básicos. Tudo isso, a “periferia” mal-policiada, insegura e ausente de serviços básicos. Tudo isso,
colabora para que sujeitos já estigmatizados, como “bandidos”, “marginais”, colabora para que sujeitos já estigmatizados, como “bandidos”, “marginais”,
“estupradores”, sejam exterminados pela brutalidade policial como uma forma “estupradores”, sejam exterminados pela brutalidade policial como uma forma
de combater a criminalidade e de fazer justiça18. de combater a criminalidade e de fazer justiça18.
Dados do Ministério da Justiça, de 1999, confirmam a participação de policiais Dados do Ministério da Justiça, de 1999, confirmam a participação de policiais
em práticas de grupos de extermínios, sejam chefiando grupos ou como forma de em práticas de grupos de extermínios, sejam chefiando grupos ou como forma de

16. Para maiores informações, acessar site: http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/dh/br/jglobal/ 16. Para maiores informações, acessar site: http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/dh/br/jglobal/
relatorio1.html. relatorio1.html.
17. FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes. 1987. p. 226- 17. FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes. 1987. p. 226-
227. 227.
18. RIBEIRO. Lutz Mulert Souza, Pesquisa sobre Crimes de Homicídio na Bahia. In: OLIVEIRA, 18. RIBEIRO. Lutz Mulert Souza, Pesquisa sobre Crimes de Homicídio na Bahia. In: OLIVEIRA,
Nelson de; RIBEIRO, Lutz Mulert Sousa; ZANETTI, José Carlos (org.). A Outra face da Moeda: Nelson de; RIBEIRO, Lutz Mulert Sousa; ZANETTI, José Carlos (org.). A Outra face da Moeda:
Violência na Bahia. Salvador: CJP-BA, 2000. p. 72-91. Violência na Bahia. Salvador: CJP-BA, 2000. p. 72-91.
362 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha 362 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha

ações particulares motivadas pelo mote de justiça privada. Consoante informação ações particulares motivadas pelo mote de justiça privada. Consoante informação
deste Mi­nistério: deste Mi­nistério:
[...] no primeiro semestre de 1999 aconteceram 23,3 mil homicídios no Brasil, o que [...] no primeiro semestre de 1999 aconteceram 23,3 mil homicídios no Brasil, o que
daria um total de 46,6 mil no ano. Desse total, em 18 estados, a imprensa noticiou daria um total de 46,6 mil no ano. Desse total, em 18 estados, a imprensa noticiou
13.917 casos em 1999, o ano base da nossa pesquisa. Entre esse universo, houve 13.917 casos em 1999, o ano base da nossa pesquisa. Entre esse universo, houve
1.148 casos noticiados como sendo cometidos por policiais ou por grupos de exter- 1.148 casos noticiados como sendo cometidos por policiais ou por grupos de exter-
mínio, o que equivale 8,25 % do total. Se aplicasse essa razão (de 8,25%) ao total mínio, o que equivale 8,25 % do total. Se aplicasse essa razão (de 8,25%) ao total
aproximado de 46,6 mil homicídios em 1999, daria aproximadamente 3,840 casos aproximado de 46,6 mil homicídios em 1999, daria aproximadamente 3,840 casos
de homicídios cometidos por policiais e grupos de extermínio, naquele ano[...]. de homicídios cometidos por policiais e grupos de extermínio, naquele ano[...].

Deste modo, o conceito de execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais, Deste modo, o conceito de execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais,
traz em seu bojo referência explícita a instituições do Estado, como a policial. traz em seu bojo referência explícita a instituições do Estado, como a policial.
Assim, conceitua-se execuções sumárias como sendo: Assim, conceitua-se execuções sumárias como sendo:
[…] todo e qualquer homicídio praticado por forças de segurançado Estado (poli- […] todo e qualquer homicídio praticado por forças de segurançado Estado (poli-
ciais, militares, agentes penitenciários, guardas municipais) ou similares (grupos de ciais, militares, agentes penitenciários, guardas municipais) ou similares (grupos de
extermínio, justiceiros), sem que a vítima tenha a oportunidade de exercer o direito extermínio, justiceiros), sem que a vítima tenha a oportunidade de exercer o direito
de defesa num processo legal regular, ou, embora respondendo a um processo legal, de defesa num processo legal regular, ou, embora respondendo a um processo legal,
a vítima seja executada antes de seu julgamento ou com algum vício processual; a vítima seja executada antes de seu julgamento ou com algum vício processual;
ou ainda, embora respondendo a processo legal, a vítima seja executada sem que ou ainda, embora respondendo a processo legal, a vítima seja executada sem que
lhe tenha sido atribuída uma pena capital legal. lhe tenha sido atribuída uma pena capital legal.

Contextualizando com o nosso estudo, Rafael Cerqueira19 descreve que o Contextualizando com o nosso estudo, Rafael Cerqueira19 descreve que o
conceito de grupo de extermínio, na imprensa, confunde-se com o de linchamento, conceito de grupo de extermínio, na imprensa, confunde-se com o de linchamento,
gerando ambigüidades na definição da autoria do fato social. Ambos devem ser gerando ambigüidades na definição da autoria do fato social. Ambos devem ser
entendidos, segundo o autor, sob a ótica da teoria do vigilantismo. O vigilantismo entendidos, segundo o autor, sob a ótica da teoria do vigilantismo. O vigilantismo
presume a existência de grupos sociais dispostos a disputar com o Estado consti- presume a existência de grupos sociais dispostos a disputar com o Estado consti-
tuído o monopólio do uso da força para utilizá-la contra os “indesejáveis”. tuído o monopólio do uso da força para utilizá-la contra os “indesejáveis”.
As ações do vigilantismo incluem também os esquadrões da morte com o As ações do vigilantismo incluem também os esquadrões da morte com o
envolvimento de policiais em atuação na segurança pública ou em ocupações pa- envolvimento de policiais em atuação na segurança pública ou em ocupações pa-
ralelas. Para CHEVIGNY (2000), a violência policial é tanto mais comum quando ralelas. Para CHEVIGNY (2000), a violência policial é tanto mais comum quando
há um governo civil fraco, incapaz de manter seu braço armado sob controle e de há um governo civil fraco, incapaz de manter seu braço armado sob controle e de
exigir punição para os transgressores20. exigir punição para os transgressores20.
Buscou-se, na presente pesquisa, portanto, caracterizar cada um desses Buscou-se, na presente pesquisa, portanto, caracterizar cada um desses
eventos: o linchamento e as execuções sumárias, tentando fazer uma abordagem eventos: o linchamento e as execuções sumárias, tentando fazer uma abordagem
sociológica deste evento na Região Metropolitana de Salvador. sociológica deste evento na Região Metropolitana de Salvador.

19. CERQUEIRA, Rafael Torres de. Linchamento e criminalidade: Agressões e Mortes num quadro 19. CERQUEIRA, Rafael Torres de. Linchamento e criminalidade: Agressões e Mortes num quadro
de Medo e Insegurança Social. (Dissertação de Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Saúde de Medo e Insegurança Social. (Dissertação de Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Saúde
Coletiva, Universidade Federal da Bahia, 2004. Coletiva, Universidade Federal da Bahia, 2004.
20. CHEVIGNY, Paul. Definindo o papel da Polícia na América Latina. In: Juan E. Méndez; Guillermo 20. CHEVIGNY, Paul. Definindo o papel da Polícia na América Latina. In: Juan E. Méndez; Guillermo
O´Donnell & Paulo Sérgio Pinheiro (orgs.). Democracia, violência e injustiça: O Não-Estado de O´Donnell & Paulo Sérgio Pinheiro (orgs.). Democracia, violência e injustiça: O Não-Estado de
direito na América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 2000., p. 65-87. direito na América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 2000., p. 65-87.
Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 363 Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 363

4. Resultados 4. Resultados
4.1. Grupos de Extermínio 4.1. Grupos de Extermínio
No período estudado, foram encontradas 152 matérias, das quais 83% foram No período estudado, foram encontradas 152 matérias, das quais 83% foram
casos ocorridos na Bahia. No espaço baiano, destaca-se a Região Metropolitana casos ocorridos na Bahia. No espaço baiano, destaca-se a Região Metropolitana
de Salvador em número de ocorrências correspondendo a 63% dos eventos. Vê-se, de Salvador em número de ocorrências correspondendo a 63% dos eventos. Vê-se,
no quadro 01, que foi noticiado esse tipo de ocorrência em todos os quatro anos do no quadro 01, que foi noticiado esse tipo de ocorrência em todos os quatro anos do
período pesquisado, tendo uma leve acentuação em 2003. Este ano correspondeu período pesquisado, tendo uma leve acentuação em 2003. Este ano correspondeu
a um caso atípico, chamando a atenção de organismos internacionais, culminando a um caso atípico, chamando a atenção de organismos internacionais, culminando
com uma representante das Nações Unidas para investigar uma morte no município com uma representante das Nações Unidas para investigar uma morte no município
de Santo Antônio de Jesus. Sobre esta ocorrência foram noticiadas 15 matérias. de Santo Antônio de Jesus. Sobre esta ocorrência foram noticiadas 15 matérias.

QUADRO 01 QUADRO 01
Grupos de Extermínio Grupos de Extermínio
Reportagens Reportagens
2002 2003 2004 2005 Total 2002 2003 2004 2005 Total
Nº de matérias 49 81 43 48 178 Nº de matérias 49 81 43 48 178
Nº de casos na Bahia 47 30 39 31 147 Nº de casos na Bahia 47 30 39 31 147
Nº de casos na região Metropolitana 40 19* 25 22 87 Nº de casos na região Metropolitana 40 19* 25 22 87
Nº de casos no Interior 7 7 10 9 33 Nº de casos no Interior 7 7 10 9 33
Nº de casos fora da Bahia 2 4 4 17 27 Nº de casos fora da Bahia 2 4 4 17 27
* 15 reportagens sobre o caso de Santo Antônio. * 15 reportagens sobre o caso de Santo Antônio.

As matérias descrevem que a atuação dos agressores é orientada para matar As matérias descrevem que a atuação dos agressores é orientada para matar
pessoas jovens envolvidas em atividades criminosas ou pessoas que detêm infor- pessoas jovens envolvidas em atividades criminosas ou pessoas que detêm infor-
mações sobre as redes de tráfico, roubo de cargas e outros ilícitos. mações sobre as redes de tráfico, roubo de cargas e outros ilícitos.
É intensa a atividade dos grupos, pois quando um deles é preso os números de É intensa a atividade dos grupos, pois quando um deles é preso os números de
mortes atribuídas ao mesmo, por vezes, chega a dezenas de pessoas. Entre 2003 e mortes atribuídas ao mesmo, por vezes, chega a dezenas de pessoas. Entre 2003 e
2005, o Conselho Estadual de Direitos Humanos da Bahia estimou que 30% dos 2005, o Conselho Estadual de Direitos Humanos da Bahia estimou que 30% dos
homicídios têm características de ações perpetradas por exterminadores. Contudo, homicídios têm características de ações perpetradas por exterminadores. Contudo,
todo um sistema de proteção e sigilo envolve as atividades destes esquadrões da todo um sistema de proteção e sigilo envolve as atividades destes esquadrões da
morte, tornando difícil sua identificação, o que permite que os grupos perdurem morte, tornando difícil sua identificação, o que permite que os grupos perdurem
e criem identidade própria como a “Associação de Messias”, “5ª Elite da Rua e criem identidade própria como a “Associação de Messias”, “5ª Elite da Rua
Nova” ou “Carro do Rodo”. Nova” ou “Carro do Rodo”.
Já as entrevistas feitas com os policiais militares e civis levantaram evidências Já as entrevistas feitas com os policiais militares e civis levantaram evidências
sobre a participação de membros da Polícia Militar e da Polícia Civil na pratica sobre a participação de membros da Polícia Militar e da Polícia Civil na pratica
de ocorrências de extermínio. Nenhum dos entrevistados negou o envolvimento de ocorrências de extermínio. Nenhum dos entrevistados negou o envolvimento
de colegas: de colegas:
O grupo de extermínio geralmente é composto por policiais, é feito por policiais. O grupo de extermínio geralmente é composto por policiais, é feito por policiais.
No extermínio, geralmente a vítima é desovada. Ela não fica no local, geralmente, No extermínio, geralmente a vítima é desovada. Ela não fica no local, geralmente,
os criminosos pegam a vítima e levam para outro local e deixam o corpo da pessoa os criminosos pegam a vítima e levam para outro local e deixam o corpo da pessoa
364 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha 364 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha

em outro bairro, claramente para baratinar as investigações. Então, a investigação em outro bairro, claramente para baratinar as investigações. Então, a investigação
é feita na identificação da vítima, porque uma das preocupações é que as vítimas é feita na identificação da vítima, porque uma das preocupações é que as vítimas
são colocadas no local sem identificação. Então o primeiro passo, é identificar a são colocadas no local sem identificação. Então o primeiro passo, é identificar a
vítima, daí, identificando a vítima vamos ver se essa vítima tem antecedentes, já vítima, daí, identificando a vítima vamos ver se essa vítima tem antecedentes, já
cometeu um delito. Para que, nós possamos trabalhar na linha que foi um grupo cometeu um delito. Para que, nós possamos trabalhar na linha que foi um grupo
de extermínio que atuou. O Extermínio se identifica pelo local de desova, porque de extermínio que atuou. O Extermínio se identifica pelo local de desova, porque
nós localizamos um corpo em determinado local, o CIA, por exemplo, Ipitanga. nós localizamos um corpo em determinado local, o CIA, por exemplo, Ipitanga.
Principalmente no CIA, naquelas estradas abandonadas aparece muitos corpos Principalmente no CIA, naquelas estradas abandonadas aparece muitos corpos
ali. [Pol 04] ali. [Pol 04]

Além de admitir a participação de policiais nas ações de extermínio, os en- Além de admitir a participação de policiais nas ações de extermínio, os en-
trevistados tentaram enfatizar que essas práticas são objetos de aferição de ganho, trevistados tentaram enfatizar que essas práticas são objetos de aferição de ganho,
mas que por meio de políticas públicas elas estão diminuindo. mas que por meio de políticas públicas elas estão diminuindo.
Agora, com a criação de um grupo especializado, diminuiu essa pratica, e inclusive, Agora, com a criação de um grupo especializado, diminuiu essa pratica, e inclusive,
os grupos de extermínio criam hábitos, vamos dizer, tem grupos que só desovam os grupos de extermínio criam hábitos, vamos dizer, tem grupos que só desovam
e tal local, então a gente já tira a conclusão de que quem desovou aquele corpo e tal local, então a gente já tira a conclusão de que quem desovou aquele corpo
ali, foi determinado grupo de determinado bairro e geralmente esses grupos agem, ali, foi determinado grupo de determinado bairro e geralmente esses grupos agem,
agem, não é de graça. Eles são policiais e eles agem financiados por comerciantes. agem, não é de graça. Eles são policiais e eles agem financiados por comerciantes.
Ninguém vai matar ninguém de graça! Financiados por comerciantes, eles se sentem Ninguém vai matar ninguém de graça! Financiados por comerciantes, eles se sentem
amedrontados e perseguidos, já foram assaltados 15 vezes e na suporta mais, aí, ao amedrontados e perseguidos, já foram assaltados 15 vezes e na suporta mais, aí, ao
invés de procurar o Estado, procuram o grupo de extermínio. E quanto a pratica invés de procurar o Estado, procuram o grupo de extermínio. E quanto a pratica
de atos como estes por policiais civis, não em que haver corporativismo não, tem de atos como estes por policiais civis, não em que haver corporativismo não, tem
que apurar e todos responderem pelos seus atos. Não pode haver corporativismo. que apurar e todos responderem pelos seus atos. Não pode haver corporativismo.
E o que leva a isso é a impunidade. [Pol 04] E o que leva a isso é a impunidade. [Pol 04]

Além de apontar a participação de policiais como agressores, um dos entre- Além de apontar a participação de policiais como agressores, um dos entre-
vistados enfatizou a participação de comerciantes locais, seja no pagamento ou vistados enfatizou a participação de comerciantes locais, seja no pagamento ou
na organização direta dessas ações como mandantes. na organização direta dessas ações como mandantes.
O que ocorre, geralmente, é que comerciantes locais, que são vítimas desses mar- O que ocorre, geralmente, é que comerciantes locais, que são vítimas desses mar-
ginais, acabam pagando e até participando diretamente com grupos de marginais ginais, acabam pagando e até participando diretamente com grupos de marginais
armados, policiais corruptos cometendo esses crimes na tentativa de diminuir o armados, policiais corruptos cometendo esses crimes na tentativa de diminuir o
número de roubos e de marginais no local. Reprovo, totalmente, porque a finalidade número de roubos e de marginais no local. Reprovo, totalmente, porque a finalidade
da Polícia Militar é preservar e proteger e não se envolver na prática de crimes da Polícia Militar é preservar e proteger e não se envolver na prática de crimes
e a PM tem se empenhado bastante em prender todos os policiais que acabam se e a PM tem se empenhado bastante em prender todos os policiais que acabam se
envolvendo com estas praticas e por isso, nos últimos anos, tem conseguido acabar envolvendo com estas praticas e por isso, nos últimos anos, tem conseguido acabar
e até zerando o número de policiais envolvidos com estes crimes. [Sgt 03] e até zerando o número de policiais envolvidos com estes crimes. [Sgt 03]

Por fim, como mecanismo de auto-justificativa para as violências praticadas, Por fim, como mecanismo de auto-justificativa para as violências praticadas,
um policial disse: um policial disse:
Na verdade, a sociedade cria esses mecanismos para depois exterminá-los. Porque Na verdade, a sociedade cria esses mecanismos para depois exterminá-los. Porque
quem cria o exterminador é a própria sociedade descrente de medidas e que para quem cria o exterminador é a própria sociedade descrente de medidas e que para
sobreviver recorre ao exterminador. Para manter ela estável, mata-se os ratos para sobreviver recorre ao exterminador. Para manter ela estável, mata-se os ratos para
que o resto sobreviva, mas quem deu alimento aos ratos? Aqui mesmo, teve um que o resto sobreviva, mas quem deu alimento aos ratos? Aqui mesmo, teve um
caso de um policial que se chamava Rambo. Era motorista e passou por acesso caso de um policial que se chamava Rambo. Era motorista e passou por acesso
a policial. Não teve preparação prévia para ser policial. Começou a ter poder na a policial. Não teve preparação prévia para ser policial. Começou a ter poder na
Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 365 Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 365

mão, ganhar confiança de delegado e outros policiais. Então tudo que ele falava mão, ganhar confiança de delegado e outros policiais. Então tudo que ele falava
era verdade, acabou envolvendo, delegado e outros policiais, já que acreditavam era verdade, acabou envolvendo, delegado e outros policiais, já que acreditavam
no que ele falava. [Pol 05] no que ele falava. [Pol 05]

4.2. Linchamentos 4.2. Linchamentos


Quanto aos linchamentos, encontramos 200 matérias que narram a atuação dos Quanto aos linchamentos, encontramos 200 matérias que narram a atuação dos
agressores, cujas ações visam aos criminosos reincidentes, já que representam um agressores, cujas ações visam aos criminosos reincidentes, já que representam um
“perigo para a comunidade”. Movidos por sentimentos de ódio e revolta cidadãos “perigo para a comunidade”. Movidos por sentimentos de ódio e revolta cidadãos
em estado de multidão cometem tais ações. em estado de multidão cometem tais ações.
As entrevistas apontam no mesmo sentido; ora os entrevistados enfatizam os As entrevistas apontam no mesmo sentido; ora os entrevistados enfatizam os
meios que são utilizados, ora as motivações, que estariam nos “crimes bárbaros”, meios que são utilizados, ora as motivações, que estariam nos “crimes bárbaros”,
bem como enfatizam a descrença nos mecanismos do Estado, como a própria bem como enfatizam a descrença nos mecanismos do Estado, como a própria
Polícia e o Poder Judiciário. Polícia e o Poder Judiciário.
São delitos que causam uma revolta maior na população, ou seja, um estupro São delitos que causam uma revolta maior na população, ou seja, um estupro
com menor, os chamados crimes bárbaros. Crimes que venham a atingir a própria com menor, os chamados crimes bárbaros. Crimes que venham a atingir a própria
família, ou então, quando ele já um marginal contumaz naquela área. Sempre ali, família, ou então, quando ele já um marginal contumaz naquela área. Sempre ali,
com a população, ela se revolta e em uma oportunidade consegue pegá-lo. Fazer com a população, ela se revolta e em uma oportunidade consegue pegá-lo. Fazer
justiça pelas próprias mãos. [Ten 01]. justiça pelas próprias mãos. [Ten 01].
Crime bárbaro. Um elemento que pega alguém, uma criança, ou uma pessoa fraca, Crime bárbaro. Um elemento que pega alguém, uma criança, ou uma pessoa fraca,
pessoas indefesas. È fruto do momento, da ira que faz ter esse tipo de reação. Uma pessoas indefesas. È fruto do momento, da ira que faz ter esse tipo de reação. Uma
mãe, um pai por um filho, mata por questão da emoção. Tem pessoa que não dá mãe, um pai por um filho, mata por questão da emoção. Tem pessoa que não dá
nem conta do que fez. [Sd 01] nem conta do que fez. [Sd 01]

Os entrevistados da polícia civil, também, foram enfáticos assinalando os Os entrevistados da polícia civil, também, foram enfáticos assinalando os
sentimentos de ódio de uma comunidade que se segue à constatação da ocorrência sentimentos de ódio de uma comunidade que se segue à constatação da ocorrência
de um crime violento. de um crime violento.
O linchamento, ele ocorre no flagrante. Após o criminoso cometer o crime. A O linchamento, ele ocorre no flagrante. Após o criminoso cometer o crime. A
multidão pega, no momento de ódio, da raiva, da ira e comete o crime. Então a multidão pega, no momento de ódio, da raiva, da ira e comete o crime. Então a
investigação não tem dificuldade, porque os comentários são muito grandes, logo investigação não tem dificuldade, porque os comentários são muito grandes, logo
de imediato consegue as informações identificando dois ou três e estes identificam de imediato consegue as informações identificando dois ou três e estes identificam
o resto do grupo, já que eles vão denunciando o outro. Linchamento é no momen- o resto do grupo, já que eles vão denunciando o outro. Linchamento é no momen-
to, não é uma coisa premeditada, no momento que o individuo comete o crime a to, não é uma coisa premeditada, no momento que o individuo comete o crime a
multidão vem e ataca. Não existe uma coisa premeditada, organizada como no multidão vem e ataca. Não existe uma coisa premeditada, organizada como no
caso de linchamento. [Pol 04] caso de linchamento. [Pol 04]
O delegado pode atuar solicitando perícia no local, provas técnicas. E na verdade, O delegado pode atuar solicitando perícia no local, provas técnicas. E na verdade,
ficar no pé do perito para que ele realize os exames necessários. A perícia no local é ficar no pé do perito para que ele realize os exames necessários. A perícia no local é
imprescindível, já que ali pode se coletar dados, como: as digitais e pólvora combus- imprescindível, já que ali pode se coletar dados, como: as digitais e pólvora combus-
ta das pessoas que se encontravam naquela região, além da coleta dos instrumentos. ta das pessoas que se encontravam naquela região, além da coleta dos instrumentos.
É o perito que tem um olhar técnico do crime, ele que desvenda pequenas situações. É o perito que tem um olhar técnico do crime, ele que desvenda pequenas situações.
O linchamento é um crime movido pela emoção, não calculam, nem pensam nos O linchamento é um crime movido pela emoção, não calculam, nem pensam nos
efeitos do que estavam fazendo. Pode acontecer a qualquer tempo, sendo sempre efeitos do que estavam fazendo. Pode acontecer a qualquer tempo, sendo sempre
crimes bem cruéis já que são movidos por demasiada emoção. [Pol 01] crimes bem cruéis já que são movidos por demasiada emoção. [Pol 01]
366 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha 366 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha

5. Discussão 5. Discussão
As conseqüências da violência extralegal levantaram desafios à própria ordem As conseqüências da violência extralegal levantaram desafios à própria ordem
constitucional, pois as estratégias de “justiça popular” encontraram-se dissemina- constitucional, pois as estratégias de “justiça popular” encontraram-se dissemina-
das com a participação de policiais e outras instâncias de poder. Desvendar para a das com a participação de policiais e outras instâncias de poder. Desvendar para a
sociedade as estreitas articulações entre as práticas de linchamentos e execuções sociedade as estreitas articulações entre as práticas de linchamentos e execuções
arbitrárias, interpretando-os sobre a ótica da teoria do vigilantismo: grupos sociais arbitrárias, interpretando-os sobre a ótica da teoria do vigilantismo: grupos sociais
dispostos a disputar com o Estado constituído o monopólio do uso da força para dispostos a disputar com o Estado constituído o monopólio do uso da força para
utilizá-la contra os “indesejáveis”; foi o objetivo deste trabalho. utilizá-la contra os “indesejáveis”; foi o objetivo deste trabalho.
Os discursos da imprensa analisados indicam que as vítimas de exterminado- Os discursos da imprensa analisados indicam que as vítimas de exterminado-
res ou de linchamentos são, em parte, adolescentes ou adultos jovens, envolvidos res ou de linchamentos são, em parte, adolescentes ou adultos jovens, envolvidos
com atividades ilegais, por vezes, crimes contra o patrimônio ou tráfico de dro- com atividades ilegais, por vezes, crimes contra o patrimônio ou tráfico de dro-
gas. Todas essas situações seriam casos a serem resolvidas com a mediação das gas. Todas essas situações seriam casos a serem resolvidas com a mediação das
agências de controle social. agências de controle social.
Já quanto às conseqüências do linchamento, elas são diversas, tanto para os Já quanto às conseqüências do linchamento, elas são diversas, tanto para os
agressores que pouco figuram como indiciados nesses eventos, já que há uma agressores que pouco figuram como indiciados nesses eventos, já que há uma
dificuldade em se identificar os autores; tanto para as vítimas que não tiveram o dificuldade em se identificar os autores; tanto para as vítimas que não tiveram o
Direito à defesa em um devido processo legal. Direito à defesa em um devido processo legal.
A vingança individual e desproporcional do homem, no lugar de um processo A vingança individual e desproporcional do homem, no lugar de um processo
legal Estatal, gera aceitação de uma população descrente do poder judiciário. Resta legal Estatal, gera aceitação de uma população descrente do poder judiciário. Resta
restabelecer a confiança no exercício da justiça formal e reduzir a impunidade no restabelecer a confiança no exercício da justiça formal e reduzir a impunidade no
país, a fim de que se estabeleça uma segurança aos indivíduos e um respeito à país, a fim de que se estabeleça uma segurança aos indivíduos e um respeito à
constituição, às leis e princípios do país21. constituição, às leis e princípios do país21.
Desta forma, o Estado não pode se transformar em agressor aos direitos huma- Desta forma, o Estado não pode se transformar em agressor aos direitos huma-
nos, como também não pode deixar de exercer sua função precípua de proteger e nos, como também não pode deixar de exercer sua função precípua de proteger e
manter a segurança da sua população. Trata-se de um pacto de convivência onde manter a segurança da sua população. Trata-se de um pacto de convivência onde
a obrigação moral de respeitar tais princípios e normas nasce do reconhecimento a obrigação moral de respeitar tais princípios e normas nasce do reconhecimento
recíproco de seres com um valor interno, do respeito pela própria dignidade e dos recíproco de seres com um valor interno, do respeito pela própria dignidade e dos
demais cidadãos22. demais cidadãos22.
No caso do Brasil, visualiza-se a participação de agentes públicos em práticas No caso do Brasil, visualiza-se a participação de agentes públicos em práticas
de execução sumária e baixa eficiência no controle de atos como os de linchamen- de execução sumária e baixa eficiência no controle de atos como os de linchamen-
to. Há, por conseguinte, uma necessidade emergente, nos dias atuais, de entender to. Há, por conseguinte, uma necessidade emergente, nos dias atuais, de entender
as instituições sociais, mediante pesquisas empíricas dos modos de atuação dos as instituições sociais, mediante pesquisas empíricas dos modos de atuação dos
órgãos do sistema de controle social. órgãos do sistema de controle social.

21. DALLARI. Dalmo. O que são direitos da pessoa. São Paulo: Brasiliense (Col. Primeiros Passos), 21. DALLARI. Dalmo. O que são direitos da pessoa. São Paulo: Brasiliense (Col. Primeiros Passos),
1995. 1995.
22. SILVA, Marilucia Flenik da, Direitos Humanos como fundamento ético para a construção de 22. SILVA, Marilucia Flenik da, Direitos Humanos como fundamento ético para a construção de
uma nova cidadania, à luz do pensamento Arendtiano. In PIOVESAN. Flávia, (coord.). Direitos uma nova cidadania, à luz do pensamento Arendtiano. In PIOVESAN. Flávia, (coord.). Direitos
Humanos. Curitiba: Juruá, 2006. p. 76-101. Humanos. Curitiba: Juruá, 2006. p. 76-101.
Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 367 Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 367

Deste modo, somente com o reconhecimento de que todo o ser humano é Deste modo, somente com o reconhecimento de que todo o ser humano é
detentor dos mesmos direitos que são atribuídos a ele mesmo, será possível alçar detentor dos mesmos direitos que são atribuídos a ele mesmo, será possível alçar
todo e qualquer um à dignidade de pessoa humana, proclamando-se a igualdade todo e qualquer um à dignidade de pessoa humana, proclamando-se a igualdade
e o valor das pessoas, como primado axiológico sobre o qual se funda a justiça e o valor das pessoas, como primado axiológico sobre o qual se funda a justiça
social23. social23.

6. Considerações finais 6. Considerações finais


Na Bahia visualiza-se, ao decorrer dos últimos 15 anos, um crescimento Na Bahia visualiza-se, ao decorrer dos últimos 15 anos, um crescimento
simultâneo dos índices de criminalidade urbana e da violência extralegal, seja a simultâneo dos índices de criminalidade urbana e da violência extralegal, seja a
praticada por multidões de civis movidos pela ira em relação aos transgressores, praticada por multidões de civis movidos pela ira em relação aos transgressores,
ou as ações de grupos de extermínio. A discussão na esfera dos direitos humanos ou as ações de grupos de extermínio. A discussão na esfera dos direitos humanos
cresce. cresce.
A mídia e outros estudiosos indicam que estes fenômenos aumentam. Perce- A mídia e outros estudiosos indicam que estes fenômenos aumentam. Perce-
beu-se, assim, que nos últimos anos, ainda é alto o número de casos de linchamentos beu-se, assim, que nos últimos anos, ainda é alto o número de casos de linchamentos
e execuções noticiados na imprensa baiana e que estes fenômenos se refletem em e execuções noticiados na imprensa baiana e que estes fenômenos se refletem em
pressões por atendimentos de urgência nos hospitais e unidades de saúde, bem pressões por atendimentos de urgência nos hospitais e unidades de saúde, bem
como demandam pelos aparatos de justiça formal. como demandam pelos aparatos de justiça formal.
Apesar de todos os avanços registrados na proteção internacional dos direitos Apesar de todos os avanços registrados na proteção internacional dos direitos
humanos, persistem violações graves e maciças. São inegáveis alguns avanços, humanos, persistem violações graves e maciças. São inegáveis alguns avanços,
como uma maior “jurisdicionalização” dos direitos humanos e garantias de igual- como uma maior “jurisdicionalização” dos direitos humanos e garantias de igual-
dade processual24, sendo que na Bahia, a criação do Grupo Especial de Repressão dade processual24, sendo que na Bahia, a criação do Grupo Especial de Repressão
a Crimes de Extermínio (Gerce) vem obtendo bons resultados. a Crimes de Extermínio (Gerce) vem obtendo bons resultados.
Deste modo, deve-se buscar uma diminuição desses eventos e uma eficaz Deste modo, deve-se buscar uma diminuição desses eventos e uma eficaz
ação do Estado a fim de coibir tais práticas, diminuindo a participação de agentes ação do Estado a fim de coibir tais práticas, diminuindo a participação de agentes
públicos em práticas de execução sumária e aumentando a eficiência no controle públicos em práticas de execução sumária e aumentando a eficiência no controle
de atos como os de linchamento. de atos como os de linchamento.

7. Referências 7. Referências
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania, Direitos Humanos e Democracia: Re- ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania, Direitos Humanos e Democracia: Re-
construindo o Conceito-Liberal de Cidadania. construindo o Conceito-Liberal de Cidadania.

ARENDT. Hannat, Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia ARENDT. Hannat, Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989. p. 531. das Letras, 1989. p. 531.

AZEVEDO, Thales. Linchamentos no Brasil. Universidade Federal da Bahia. Revista Istoé AZEVEDO, Thales. Linchamentos no Brasil. Universidade Federal da Bahia. Revista Istoé
Em: 19 de junho de 1991. Linchamento – a pena de morte já existe. Em: 19 de junho de 1991. Linchamento – a pena de morte já existe.

23. Ibidem. p. 99 23. Ibidem. p. 99


24. TRINDADE. Antônio Augusto Cançado. Dilemas e desafios da Proteção Internacional dos Direitos 24. TRINDADE. Antônio Augusto Cançado. Dilemas e desafios da Proteção Internacional dos Direitos
Humanos. In: SOUZA JR, José Geraldo de. [et.al] (orgs.) Educando para os Direitos Humanos: Humanos. In: SOUZA JR, José Geraldo de. [et.al] (orgs.) Educando para os Direitos Humanos:
pautas pedagógicas para a cidadania na Universidade. Porto Alegre: Síntese, 2004. p. 31-32. pautas pedagógicas para a cidadania na Universidade. Porto Alegre: Síntese, 2004. p. 31-32.
368 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha 368 Tagore Trajano de Almeida Silva | Ceci Vilar Noronha

BENEVIDES, Maria Victoria &¨FERREIRA, Rosa Maria Fischer. Respostas Populares e BENEVIDES, Maria Victoria &¨FERREIRA, Rosa Maria Fischer. Respostas Populares e
violência urbana: o caso de linchamento no Brasil (1979-1982) violência urbana: o caso de linchamento no Brasil (1979-1982)

BRASIL, Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. BRASIL, Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940.
Artigo 65, III, e; Artigo 65, III, e;

CERQUEIRA, Rafael Torres de; NORONHA, Ceci Vilar. Cenas de Linchamento: recons- CERQUEIRA, Rafael Torres de; NORONHA, Ceci Vilar. Cenas de Linchamento: recons-
trução dramática da violência coletiva. In Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 2, trução dramática da violência coletiva. In Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 2,
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HASS, M., O linchamento que muitos querem esquecer: Chapecó, 1950-1956. Santa HASS, M., O linchamento que muitos querem esquecer: Chapecó, 1950-1956. Santa
Catarina: Argos – ed. Universitária, 2003, 184 pgs. Catarina: Argos – ed. Universitária, 2003, 184 pgs.

LIMA JR, Jayme Benvenuto. (Org.); PIOVESAN, Flávia; CAVALLARO, James Louis; LIMA JR, Jayme Benvenuto. (Org.); PIOVESAN, Flávia; CAVALLARO, James Louis;
BRITO, Valdênia; OLIVEIRA, José Fernando da Silva Luciano. Relatório Da Socie- BRITO, Valdênia; OLIVEIRA, José Fernando da Silva Luciano. Relatório Da Socie-
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NELSON-LEMOS, Ana Tereza. Grupos de extermínio e accountability ao nível municipal. NELSON-LEMOS, Ana Tereza. Grupos de extermínio e accountability ao nível municipal.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Núcleo Interdisciplinar de Democracia Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Núcleo Interdisciplinar de Democracia
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PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v.01. parte geral. 3ªed. São Paulo: PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v.01. parte geral. 3ªed. São Paulo:
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Salvador, (Tese de Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Saúde Coletiva, Salvador, (Tese de Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Saúde Coletiva,
Universidade Federal da Bahia, 2000 pg. 247. Universidade Federal da Bahia, 2000 pg. 247.
Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 369 Formas de violência extralegal: linchamentos e execuções sumárias… 369

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face da Moeda: Violência na Bahia. Salvador: CJP-BA, 2000. p. 72-91. face da Moeda: Violência na Bahia. Salvador: CJP-BA, 2000. p. 72-91.
SILVA, Marilucia Flenik da, Direitos Humanos como fundamento ético para a construção SILVA, Marilucia Flenik da, Direitos Humanos como fundamento ético para a construção
de uma nova cidadania, à luz do pensamento Arendtiano. In PIOVESAN. Flávia, de uma nova cidadania, à luz do pensamento Arendtiano. In PIOVESAN. Flávia,
(coord.). Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2006. p. 76-101 (coord.). Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2006. p. 76-101
SOUZA, Lídio & MENANDRO, Paulo Rogério Meira. Vidas apagadas: vítimas de lin- SOUZA, Lídio & MENANDRO, Paulo Rogério Meira. Vidas apagadas: vítimas de lin-
chamentos ocorridos no Brasil (1990-2000). In Revista de Psicologia. chamentos ocorridos no Brasil (1990-2000). In Revista de Psicologia.
TRINDADE. Antônio Augusto Cançado. Dilemas e desafios da Proteção Internacional dos TRINDADE. Antônio Augusto Cançado. Dilemas e desafios da Proteção Internacional dos
Direitos Humanos. In: SOUZA JR, José Geraldo de. [et.al] (orgs.) Educando para Direitos Humanos. In: SOUZA JR, José Geraldo de. [et.al] (orgs.) Educando para
os Direitos Humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na Universidade. Porto os Direitos Humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na Universidade. Porto
Alegre: Síntese, 2004. p. 27-34. Alegre: Síntese, 2004. p. 27-34.
Capítulo XXVI Capítulo XXVI
A Cláusula de Barreira A Cláusula de Barreira
no Direito Constitucional Brasileiro no Direito Constitucional Brasileiro

Vinícios Conceição Silva Silva* Vinícios Conceição Silva Silva*

Súmario • 1. Aspectos introdutórios – 2. Finalidade – 3. Direito comparado e história da legislação Súmario • 1. Aspectos introdutórios – 2. Finalidade – 3. Direito comparado e história da legislação
brasileira 4. Regramento atual – 5. Constitucionalidade da cláusula de desempenho: A posição do stf: brasileira 4. Regramento atual – 5. Constitucionalidade da cláusula de desempenho: A posição do stf:
5.1. Dos elementos fáticos; 5.2. Do pluralismo político e da soberania popular; 5.3. Dos direitos da 5.1. Dos elementos fáticos; 5.2. Do pluralismo político e da soberania popular; 5.3. Dos direitos da
minoria; 5.4. A lei ordinária em face do poder reformador; 5.5. Do princípio da proporcionalidade e da minoria; 5.4. A lei ordinária em face do poder reformador; 5.5. Do princípio da proporcionalidade e da
igualdade de chances; 5.6. Da densidade axiológica do texto constitucional; 5.7. Do conflito de normas; igualdade de chances; 5.6. Da densidade axiológica do texto constitucional; 5.7. Do conflito de normas;
5.8. Do sistema bicameral perfeito; 5.9. Da decisão final – 6. Conclusão – 7. Referências. 5.8. Do sistema bicameral perfeito; 5.9. Da decisão final – 6. Conclusão – 7. Referências.

1. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS 1. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS


A cláusula de barreira, também conhecida como cláusula de exclusão ou de A cláusula de barreira, também conhecida como cláusula de exclusão ou de
desempenho, consiste na disposição legal que impõe restrições aos partidos polí- desempenho, consiste na disposição legal que impõe restrições aos partidos polí-
ticos quando eles não conseguirem alcançar um determinado número de votos. ticos quando eles não conseguirem alcançar um determinado número de votos.
Importante fazer a distinção doutrinária1 sobre a denominação do presente Importante fazer a distinção doutrinária1 sobre a denominação do presente
instituto. A cláusula de barreira propriamente dita, seria quando a conseqüência instituto. A cláusula de barreira propriamente dita, seria quando a conseqüência
legal fosse o impedimento de ser lançada qualquer candidatura para cargo do poder legal fosse o impedimento de ser lançada qualquer candidatura para cargo do poder
executivo ao parlamentar que pertencesse a partido político que não tenha atingido executivo ao parlamentar que pertencesse a partido político que não tenha atingido
um determinado percentual de votos. Ao passo que, a cláusula de exclusão teria um determinado percentual de votos. Ao passo que, a cláusula de exclusão teria
como efeito o cancelamento do registro da sigla no Tribunal Superior Eleitoral. como efeito o cancelamento do registro da sigla no Tribunal Superior Eleitoral.
No direito eleitoral brasileiro como foi assegurada pelo legislador constituinte No direito eleitoral brasileiro como foi assegurada pelo legislador constituinte
a liberdade de funcionamento das agremiações políticas, somente sendo condicio- a liberdade de funcionamento das agremiações políticas, somente sendo condicio-
nada a sua criação a comprovação da representatividade nacional2, tem–se verda- nada a sua criação a comprovação da representatividade nacional2, tem–se verda-
deiramente uma cláusula de desempenho uma vez que, conforme será demonstrado deiramente uma cláusula de desempenho uma vez que, conforme será demonstrado
no presente trabalho, o resultado do insucesso eleitoral trará apenas limitações de no presente trabalho, o resultado do insucesso eleitoral trará apenas limitações de
ordem funcional ao exercício do mandato parlamentar. ordem funcional ao exercício do mandato parlamentar.

2. FINALIDADE 2. FINALIDADE
É de fácil percepção que a cláusula de desempenho busca coibir a existência É de fácil percepção que a cláusula de desempenho busca coibir a existência
de um número muito grande de partidos políticos, especialmente em um sistema de um número muito grande de partidos políticos, especialmente em um sistema

* Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia * Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia
1. MÉRO, Carlos Henrique Tavares. A cláusula de barreira no direito eleitoral. Revista Paraná 1. MÉRO, Carlos Henrique Tavares. A cláusula de barreira no direito eleitoral. Revista Paraná
Eleitoral, Curitiba, n. 62,out. 2006. Eleitoral, Curitiba, n. 62,out. 2006.
2. Art.17, inciso I da CF-88. 2. Art.17, inciso I da CF-88.
372 Vinícios Conceição Silva Silva 372 Vinícios Conceição Silva Silva

como o ­brasileiro, que adota o pluripartidarismo, evitando assim a fragmentação como o ­brasileiro, que adota o pluripartidarismo, evitando assim a fragmentação
dos parlamentares, levando ao enfraquecimento das legendas. dos parlamentares, levando ao enfraquecimento das legendas.
O móvel desta disposição é evitar também a atuação das chamadas “legendas O móvel desta disposição é evitar também a atuação das chamadas “legendas
de aluguel”, bloqueando elas, haverá um nítido favorecimento a governabilidade de aluguel”, bloqueando elas, haverá um nítido favorecimento a governabilidade
e ao exercício do poder político cujo titular certamente é o povo3, diminuindo as e ao exercício do poder político cujo titular certamente é o povo3, diminuindo as
“barganhas políticas”, a “divisão do bolo” ou o que comumente ouvimos na mídia “barganhas políticas”, a “divisão do bolo” ou o que comumente ouvimos na mídia
com o nome de “governo de coalizão”, e que na verdade representa um verdadeiro com o nome de “governo de coalizão”, e que na verdade representa um verdadeiro
aparelhamento do Estado, com um preenchimento excessivo dos cargos públicos aparelhamento do Estado, com um preenchimento excessivo dos cargos públicos
por critérios políticos, em detrimento do critério técnico que seria mais adequado por critérios políticos, em detrimento do critério técnico que seria mais adequado
ao exercício de uma função pública. ao exercício de uma função pública.
Entretanto, esta disposição poderá atacar vigorosamente a diversidade política Entretanto, esta disposição poderá atacar vigorosamente a diversidade política
e a pluralidade de representação, pois impede o funcionamento de pequenos par- e a pluralidade de representação, pois impede o funcionamento de pequenos par-
tidos políticos, chamados de “ideológicos”, favorecendo os partidos que tiverem tidos políticos, chamados de “ideológicos”, favorecendo os partidos que tiverem
um número significativo de votos. um número significativo de votos.
Desta maneira, a inserção dela no nosso sistema político não pode ser tão Desta maneira, a inserção dela no nosso sistema político não pode ser tão
rígida a ponto de inviabilizar a atuação de “agremiações de opinião”, se assim rígida a ponto de inviabilizar a atuação de “agremiações de opinião”, se assim
fosse ocorreria uma violação expressa ao princípio da democracia representativa, fosse ocorreria uma violação expressa ao princípio da democracia representativa,
porque haveria exclusão de parcela significativa da população nas decisões mais porque haveria exclusão de parcela significativa da população nas decisões mais
relevantes do país. relevantes do país.

3. DIREITO COMPARADO E HISTÓRIA DA LEGISLAÇÃO BRASI­ 3. DIREITO COMPARADO E HISTÓRIA DA LEGISLAÇÃO BRASI­
LEIRA4 LEIRA4
Surgida da Alemanha5, devido à República Weimar, onde se instalou um Surgida da Alemanha5, devido à República Weimar, onde se instalou um
Parlamento com grande representatividade popular, porém não havia condições Parlamento com grande representatividade popular, porém não havia condições
para a formação de uma maioria parlamentar capaz de governar. Havia consenso para a formação de uma maioria parlamentar capaz de governar. Havia consenso
para derrubar o governo, mas não para formar um novo. Foi inventada assim a para derrubar o governo, mas não para formar um novo. Foi inventada assim a
cláusula de barreira para se ter um sistema minimamente funcional. cláusula de barreira para se ter um sistema minimamente funcional.
Isso representou a existência de apenas quatro partidos. No sistema eleitoral Isso representou a existência de apenas quatro partidos. No sistema eleitoral
alemão só tem representação no Bundestag (Parlamento) ou no Landër (Parlamen- alemão só tem representação no Bundestag (Parlamento) ou no Landër (Parlamen-
tos regionais dos Estados), aquele partido que obtiver no mínimo 5% dos votos tos regionais dos Estados), aquele partido que obtiver no mínimo 5% dos votos
no total nacional ou eleger pelo menos três deputados distritais. no total nacional ou eleger pelo menos três deputados distritais.

3. Art. 1º § único da CF-88 “Todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes 3. Art. 1º § único da CF-88 “Todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
4. A base do estudo feita neste tópico é o voto magistral do ministro Gilmar Mendes nas Adins 4. A base do estudo feita neste tópico é o voto magistral do ministro Gilmar Mendes nas Adins
1.351-3/DF e 1.354-8/DF. 1.351-3/DF e 1.354-8/DF.
5. ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda do mandato parlamentar. Rio de Janeiro : Lumen 5. ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda do mandato parlamentar. Rio de Janeiro : Lumen
Juris, 2006. Juris, 2006.
A Cláusula de Barreira no Direito Constitucional Brasileiro 373 A Cláusula de Barreira no Direito Constitucional Brasileiro 373

Na Alemanha6, a cláusula de barreira está contida no artigo 6º, da Lei Federal Na Alemanha6, a cláusula de barreira está contida no artigo 6º, da Lei Federal
de Regime Eleitoral da Alemanha. O número de representantes de cada Estado não é fi- de Regime Eleitoral da Alemanha. O número de representantes de cada Estado não é fi-
xo, pois as eleições se dividem em uma parte decidida por votação majoritária xo, pois as eleições se dividem em uma parte decidida por votação majoritária
e a outra proporcional (sistema distrital misto), que poderá variar conforme o e a outra proporcional (sistema distrital misto), que poderá variar conforme o
comparecimento do eleitorado, já que o voto é facultativo. A partir disso, são comparecimento do eleitorado, já que o voto é facultativo. A partir disso, são
desconsiderados os votos dos partidos que não receberem, pelo menos, 5% nas desconsiderados os votos dos partidos que não receberem, pelo menos, 5% nas
eleições proporcionais, ou partidos que não elegerem individualmente candidatos eleições proporcionais, ou partidos que não elegerem individualmente candidatos
em três distritos, no mínimo. em três distritos, no mínimo.

Registre-se o fato de com a unificação com o Leste dada em 1990, houve uma Registre-se o fato de com a unificação com o Leste dada em 1990, houve uma
mitigação da regra, sendo admitida a permanência do PDS (Partido do Socialismo mitigação da regra, sendo admitida a permanência do PDS (Partido do Socialismo
Democrático), que reúne os ex-comunistas da Alemanha oriental, possibilitando Democrático), que reúne os ex-comunistas da Alemanha oriental, possibilitando
a pluralidade política, o que de uma certa forma foi uma garantia de manutenção a pluralidade política, o que de uma certa forma foi uma garantia de manutenção
da estabilidade institucional do novo país. da estabilidade institucional do novo país.

No ordenamento jurídico pátrio7 a origem da cláusula de barreira deu-se com a No ordenamento jurídico pátrio7 a origem da cláusula de barreira deu-se com a
promulgação do Decreto-Lei 8835/56, no seu art. 5º, bem como o Código Eleitoral promulgação do Decreto-Lei 8835/56, no seu art. 5º, bem como o Código Eleitoral
de 1950, cujo art. 148º negava existência ao partido político que não elegesse um de 1950, cujo art. 148º negava existência ao partido político que não elegesse um
representante no Congresso Nacional ou não obtivesse ao menos 50 mil votos. representante no Congresso Nacional ou não obtivesse ao menos 50 mil votos.

A Constituição Federal de 1967, dita ditatorial, foi à única na nossa história A Constituição Federal de 1967, dita ditatorial, foi à única na nossa história
constitucional a disciplinar expressamente a cláusula de desempenho, pois a constitucional a disciplinar expressamente a cláusula de desempenho, pois a
intenção do regime militar era evitar realmente a pluralidade política organizada intenção do regime militar era evitar realmente a pluralidade política organizada
através de partidos políticos, obstruindo o direito da oposição se manifestar con- através de partidos políticos, obstruindo o direito da oposição se manifestar con-
trariamente às decisões que definiam os destinos do país. trariamente às decisões que definiam os destinos do país.

Segundo o art. 149 da Carta de 1967, não teria vida a agremiação que não Segundo o art. 149 da Carta de 1967, não teria vida a agremiação que não
atingisse 10% dos votos do eleitorado que votou na ultima eleição geral da Câmara atingisse 10% dos votos do eleitorado que votou na ultima eleição geral da Câmara
dos Deputados distribuídos em 2/3 dos Estados, com o mínimo de 7% em cada dos Deputados distribuídos em 2/3 dos Estados, com o mínimo de 7% em cada
um deles, além disso tinha requisitos cumulativos, que tornavam a disposição um deles, além disso tinha requisitos cumulativos, que tornavam a disposição
excessivamente rígida pois ainda seria necessário eleger no mínimo 10% dos excessivamente rígida pois ainda seria necessário eleger no mínimo 10% dos
senadores e 10% de deputados em pelo menos 1/3 dos Estados. senadores e 10% de deputados em pelo menos 1/3 dos Estados.

A Emenda Constitucional nº 01/1969, no seu art. 152º, inciso VII, diminuiu A Emenda Constitucional nº 01/1969, no seu art. 152º, inciso VII, diminuiu
a exigência para 5% dos votos do eleitorado votante na eleição, distribuídos no a exigência para 5% dos votos do eleitorado votante na eleição, distribuídos no
mínimo em 7 Estados, sendo necessário 7% em cada um deles. mínimo em 7 Estados, sendo necessário 7% em cada um deles.

A Emenda Constitucional 11/1978, alterando o art. 152º da Emenda 01/1969, A Emenda Constitucional 11/1978, alterando o art. 152º da Emenda 01/1969,
restringe o funcionamento dos partidos ao apoio expresso em voto de 5% do restringe o funcionamento dos partidos ao apoio expresso em voto de 5% do

7. CARVALHO, Kátia de. Cláusula de Barreira e Funcionamento Parlamentar. Consultoria Legislativa 7. CARVALHO, Kátia de. Cláusula de Barreira e Funcionamento Parlamentar. Consultoria Legislativa
a Câmara dos Deputados, Brasília, fev 2003. a Câmara dos Deputados, Brasília, fev 2003.
8. Voto nas ADIN 1351-3/DF e 1.354-8/DF. 8. Voto nas ADIN 1351-3/DF e 1.354-8/DF.
374 Vinícios Conceição Silva Silva 374 Vinícios Conceição Silva Silva

eleitorado, distribuídos em pelo menos 9 Estados, com o mínimo de 3% em cada eleitorado, distribuídos em pelo menos 9 Estados, com o mínimo de 3% em cada
um deles. um deles.
Por fim, a Emenda Constitucional nº 25/1985, promulgada durante o governo Por fim, a Emenda Constitucional nº 25/1985, promulgada durante o governo
civil de transição democrática, diminuiu o percentual para 3%, distribuídos em civil de transição democrática, diminuiu o percentual para 3%, distribuídos em
pelo menos 5 Estados, com o mínimo de 2% em cada um deles, advertindo o pelo menos 5 Estados, com o mínimo de 2% em cada um deles, advertindo o
direito do candidato manter o mandato desde que opte no prazo de sessenta dias direito do candidato manter o mandato desde que opte no prazo de sessenta dias
por qualquer dos partidos remanescentes. por qualquer dos partidos remanescentes.

4. REGRAMENTO ATUAL 4. REGRAMENTO ATUAL


A Constituição Federal de 1988 não disciplinou expressamente a cláusula de A Constituição Federal de 1988 não disciplinou expressamente a cláusula de
barreira, contudo no seu art. 17, inciso IV, garantiu o funcionamento parlamentar de barreira, contudo no seu art. 17, inciso IV, garantiu o funcionamento parlamentar de
acordo com a lei. Tendo por base esta disposição o art. 13 da LPP (Lei de Partido acordo com a lei. Tendo por base esta disposição o art. 13 da LPP (Lei de Partido
Político) institui o direito ao funcionamento parlamentar a todo partido político que Político) institui o direito ao funcionamento parlamentar a todo partido político que
em cada eleição obtenha o apoio de no mínimo 5% dos votos válidos (excluídos em cada eleição obtenha o apoio de no mínimo 5% dos votos válidos (excluídos
os brancos e nulos) em cada eleição para Câmara dos Deputados, distribuídos em os brancos e nulos) em cada eleição para Câmara dos Deputados, distribuídos em
09 Estados, com no mínimo 2% do total de cada um deles. 09 Estados, com no mínimo 2% do total de cada um deles.
A grande questão que se coloca é o fato de não existir definição legal ou dou- A grande questão que se coloca é o fato de não existir definição legal ou dou-
trinária acerca da expressão “funcionamento parlamentar”, a Ministra Carmem trinária acerca da expressão “funcionamento parlamentar”, a Ministra Carmem
Lúcia chama atenção do problema “ funcionamento parlamentar é o exercício de Lúcia chama atenção do problema “ funcionamento parlamentar é o exercício de
funções parlamentares ou se é o preenchimento dos cargos de função-função no funções parlamentares ou se é o preenchimento dos cargos de função-função no
sentido de cargo”8. sentido de cargo”8.
O que se sabe é que o funcionamento se dará através de bancada, e para a O que se sabe é que o funcionamento se dará através de bancada, e para a
formação desta o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, no seu art. 9º formação desta o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, no seu art. 9º
estabelece apenas a necessidade do partido ter 05 deputados eleitos. Verifica-se estabelece apenas a necessidade do partido ter 05 deputados eleitos. Verifica-se
assim um critério distinto e menos rigoroso do estabelecido pela lei dos partidos assim um critério distinto e menos rigoroso do estabelecido pela lei dos partidos
políticos. Célio Borja9 defende a aplicação exclusiva do regimento interno, pois políticos. Célio Borja9 defende a aplicação exclusiva do regimento interno, pois
haveria a superposição de normas, devendo prevalecer à disposição do art. 51, haveria a superposição de normas, devendo prevalecer à disposição do art. 51,
inciso IV, da CF-88, que estatuí competência privativa da Câmara para dispor inciso IV, da CF-88, que estatuí competência privativa da Câmara para dispor
sobre o seu funcionamento. sobre o seu funcionamento.
A aplicação da LPP traz como principais efeitos para os parlamentares e A aplicação da LPP traz como principais efeitos para os parlamentares e
os partidos políticos que não atingirem a cláusula de desempenho o seguinte: a os partidos políticos que não atingirem a cláusula de desempenho o seguinte: a
perda do direito de participar de comissões e integrar mesa diretora, bem como perda do direito de participar de comissões e integrar mesa diretora, bem como
a restrição do direito de discursar em plenário, a proibição de formar bancadas, a restrição do direito de discursar em plenário, a proibição de formar bancadas,
nem justapor em blocos, além de não poderem eleger liderança. nem justapor em blocos, além de não poderem eleger liderança.
O maior problema, todavia, está relacionado ao fundo partidário e a propa- O maior problema, todavia, está relacionado ao fundo partidário e a propa-
ganda eleitoral gratuita, tendo em vista que, 1% do fundo partidário será dividido ganda eleitoral gratuita, tendo em vista que, 1% do fundo partidário será dividido

9. No parecer do eminente jurista datado de 27/01/1999, em resposta a Presidência da Câmara dos 9. No parecer do eminente jurista datado de 27/01/1999, em resposta a Presidência da Câmara dos
Deputados. Deputados.
A Cláusula de Barreira no Direito Constitucional Brasileiro 375 A Cláusula de Barreira no Direito Constitucional Brasileiro 375

entre todos os partidos que tenham registro no TSE e os 99% restantes caberá aos entre todos os partidos que tenham registro no TSE e os 99% restantes caberá aos
que atingirem a percentagem legal. As agremiações vencedoras terão por semes- que atingirem a percentagem legal. As agremiações vencedoras terão por semes-
tre, um programa de 20 minutos em cadeia nacional e de igual tempo em cadeia tre, um programa de 20 minutos em cadeia nacional e de igual tempo em cadeia
estadual, além de fazer inserções de 30 segundos ou 1 minuto, perfazendo o total estadual, além de fazer inserções de 30 segundos ou 1 minuto, perfazendo o total
de 40 minutos, restando aos demais partidos apenas 2 minutos por semestre para de 40 minutos, restando aos demais partidos apenas 2 minutos por semestre para
divulgarem a sua plataforma programática, sem direito a inserções. divulgarem a sua plataforma programática, sem direito a inserções.
A sanção pelo mau desempenho eleitoral não condenará a sigla a atuar na A sanção pelo mau desempenho eleitoral não condenará a sigla a atuar na
clandestinidade, e não afetará o direito do parlamentar votar e nem impede o direito clandestinidade, e não afetará o direito do parlamentar votar e nem impede o direito
de ser diplomado e tomar posse, conforme ficou assentado na Resolução do TSE de ser diplomado e tomar posse, conforme ficou assentado na Resolução do TSE
de nº 20.198 de 19/05/1998, todavia sua atuação será bastante limitada. de nº 20.198 de 19/05/1998, todavia sua atuação será bastante limitada.

5. CONSTITUCIONALIDADE DA CLÁUSULA DE DESEMPENHO: A 5. CONSTITUCIONALIDADE DA CLÁUSULA DE DESEMPENHO: A


POSIÇÃO DO STF POSIÇÃO DO STF
A discussão acerca da norma do art. 13 da LPP ficou durante muito tempo A discussão acerca da norma do art. 13 da LPP ficou durante muito tempo
estagnada, tendo em vista que no art. 56 e 57 da referida lei, a aplicação da cláusula estagnada, tendo em vista que no art. 56 e 57 da referida lei, a aplicação da cláusula
de barreira somente ocorreria na legislatura que fosse iniciada no ano de 2007. de barreira somente ocorreria na legislatura que fosse iniciada no ano de 2007.
Em dezembro de 2006 diante da eminência da entrada em vigor da norma, e Em dezembro de 2006 diante da eminência da entrada em vigor da norma, e
diante de tantos questionamentos da doutrina, dos partidos e dos candidatos fazia- diante de tantos questionamentos da doutrina, dos partidos e dos candidatos fazia-
se necessário uma manifestação do plenário do Supremo Tribunal Federal acerca se necessário uma manifestação do plenário do Supremo Tribunal Federal acerca
da compatibilidade da regra com o texto constitucional, especialmente pelo fato da compatibilidade da regra com o texto constitucional, especialmente pelo fato
de diversos partidos começarem a se unir para driblar a disposição legal. de diversos partidos começarem a se unir para driblar a disposição legal.
O PRONA (Partido da Reedificação da Ordem Nacional) e o PL (Partido Libe- O PRONA (Partido da Reedificação da Ordem Nacional) e o PL (Partido Libe-
ral) formaram o PR (Partido da República). A Mobilização Democrática reuniu o ral) formaram o PR (Partido da República). A Mobilização Democrática reuniu o
PPS (Partido Popular Socialista),o PHS (Partido Humanista da Solidariedade) e o PPS (Partido Popular Socialista),o PHS (Partido Humanista da Solidariedade) e o
PMN (Partido da Mobilização Nacional). Ao passo que, o PTB (Partido Trabalhista PMN (Partido da Mobilização Nacional). Ao passo que, o PTB (Partido Trabalhista
Brasileiro) incorporou o PAN (Partido dos Aposentados da Nação). Desta forma, Brasileiro) incorporou o PAN (Partido dos Aposentados da Nação). Desta forma,
estes partidos atingiram a cláusula de barreira e teriam funcionamento parlamentar. estes partidos atingiram a cláusula de barreira e teriam funcionamento parlamentar.
Essas alianças, contudo, foram desfeitas, com exceção da primeira, após a decisão Essas alianças, contudo, foram desfeitas, com exceção da primeira, após a decisão
do Supremo Tribunal Federal, revelando assim a inexistência de qualquer afini- do Supremo Tribunal Federal, revelando assim a inexistência de qualquer afini-
dade programática e ideológica, sendo apenas uma “jogada” política eleitoreira. dade programática e ideológica, sendo apenas uma “jogada” política eleitoreira.
A relatoria das ADIns nº 1.351-3/DF e 1.354-8/DF, coube ao eminente Mi- A relatoria das ADIns nº 1.351-3/DF e 1.354-8/DF, coube ao eminente Mi-
nistro Marco Aurélio, que deixou claro de logo, que o ponto central das ações nistro Marco Aurélio, que deixou claro de logo, que o ponto central das ações
seria a compatibilidade do art. 13 da Lei 9.096/95(Lei dos Partidos Políticos) seria a compatibilidade do art. 13 da Lei 9.096/95(Lei dos Partidos Políticos)
com a Constituição Federal, os demais dispositivos atacados, por remeterem ao com a Constituição Federal, os demais dispositivos atacados, por remeterem ao
citado artigo, são alcançados pelo critério da conseqüência por arrastamento. Em citado artigo, são alcançados pelo critério da conseqüência por arrastamento. Em
seguida expôs os principais argumentos trazidos pelos autores para defenderem seguida expôs os principais argumentos trazidos pelos autores para defenderem
a inconstitucionalidade quais sejam: a ofensa ao pluralismo político, ao princípio a inconstitucionalidade quais sejam: a ofensa ao pluralismo político, ao princípio
da razoabilidade, ao princípio da igualdade e o desrespeito às minorias. da razoabilidade, ao princípio da igualdade e o desrespeito às minorias.
376 Vinícios Conceição Silva Silva 376 Vinícios Conceição Silva Silva

A Advocacia-Geral da União, sustentou a compatibilidade do artigo impug- A Advocacia-Geral da União, sustentou a compatibilidade do artigo impug-
nado com a liberdade de criação de partidos políticos inscrita no art. 17 da Cons- nado com a liberdade de criação de partidos políticos inscrita no art. 17 da Cons-
tituição Federal, que inclusive teria uma dimensão maior, somente resguardaria tituição Federal, que inclusive teria uma dimensão maior, somente resguardaria
a existência de partidos autênticos (qualificados por um caráter nacional). Além a existência de partidos autênticos (qualificados por um caráter nacional). Além
do que, o dispositivo atacado regularia tão somente a questão do funcionamento do que, o dispositivo atacado regularia tão somente a questão do funcionamento
parlamentar prevista no texto constitucional. parlamentar prevista no texto constitucional.
A tese de violação do princípio da isonomia seria insustentável, haja vista que A tese de violação do princípio da isonomia seria insustentável, haja vista que
a inconstitucionalidade residiria numa repartição equânime do fundo partidário e a inconstitucionalidade residiria numa repartição equânime do fundo partidário e
do horário eleitoral entre todos os partidos políticos, desconsiderando a disparidade do horário eleitoral entre todos os partidos políticos, desconsiderando a disparidade
de representatividade popular entre eles. Nesse diapasão, os partidos políticos não de representatividade popular entre eles. Nesse diapasão, os partidos políticos não
teriam direito adquirido a um tratamento isonômico, dado que haveria uma situação teriam direito adquirido a um tratamento isonômico, dado que haveria uma situação
de tratamento desigual justificado pela dessemelhança de representatividade. de tratamento desigual justificado pela dessemelhança de representatividade.
O parecer da Procuradoria Geral da República teve direcionamento semelhan- O parecer da Procuradoria Geral da República teve direcionamento semelhan-
te àquele sustentado pela AGU, levando-se em consideração que a criação dos te àquele sustentado pela AGU, levando-se em consideração que a criação dos
partidos, apesar de livre, não seria ilimitada, havendo a necessidade de respeito partidos, apesar de livre, não seria ilimitada, havendo a necessidade de respeito
ao requisito “caráter nacional”, auferido durante o pleito eleitoral. ao requisito “caráter nacional”, auferido durante o pleito eleitoral.

5.1. Dos elementos fáticos 5.1. Dos elementos fáticos


Apesar da Adin ser um processo objetivo, sem partes e sem lide, o Ministro Apesar da Adin ser um processo objetivo, sem partes e sem lide, o Ministro
Marco Aurélio levou em consideração os resultados eleitorais como elementos Marco Aurélio levou em consideração os resultados eleitorais como elementos
fáticos necessários a fundamentar seu voto. Em síntese, expõe que apenas sete fáticos necessários a fundamentar seu voto. Em síntese, expõe que apenas sete
dos vinte e nove partidos políticos inscritos no Tribunal Superior Eleitoral conse- dos vinte e nove partidos políticos inscritos no Tribunal Superior Eleitoral conse-
guiram preencher os requisitos exigidos na lei ordinária em espeque, sendo eles: guiram preencher os requisitos exigidos na lei ordinária em espeque, sendo eles:
Partido dos Trabalhadores – PT; Partido do Movimento Democrático Brasileiro Partido dos Trabalhadores – PT; Partido do Movimento Democrático Brasileiro
– PMDB; Partido da Social Democracia Brasileiro – PSDB; Partido da Frente – PMDB; Partido da Social Democracia Brasileiro – PSDB; Partido da Frente
Liberal – PFL; Partido Progressista – PP; Partido Socialista Brasileiro – PSB; Liberal – PFL; Partido Progressista – PP; Partido Socialista Brasileiro – PSB;
Partido Democrático Trabalhista – PDT. Partido Democrático Trabalhista – PDT.
O referido ministro traz ao debate também o fato do Presidente da Câmara O referido ministro traz ao debate também o fato do Presidente da Câmara
dos Deputados, o Deputado Aldo Rebelo, fazer parte do PC do B, agremiação que dos Deputados, o Deputado Aldo Rebelo, fazer parte do PC do B, agremiação que
não atingiu a cláusula de desempenho, em vista disto o mesmo se quisesse manter não atingiu a cláusula de desempenho, em vista disto o mesmo se quisesse manter
fiel as suas convicções políticas – ideológica, seria praticamente um deputado fiel as suas convicções políticas – ideológica, seria praticamente um deputado
zumbi, sem grande poder de atuação e articulação, ao passo que se mudasse de zumbi, sem grande poder de atuação e articulação, ao passo que se mudasse de
sigla poderia disputar a reeleição. sigla poderia disputar a reeleição.
A outra questão refere-se ao PSOL, partido de opinião, que nasceu de uma A outra questão refere-se ao PSOL, partido de opinião, que nasceu de uma
dissidência do PT, e que teve a oportunidade de lançar candidatura própria à Pre- dissidência do PT, e que teve a oportunidade de lançar candidatura própria à Pre-
sidência da Republica nas eleições presidenciais de 2006, passando a ter grande sidência da Republica nas eleições presidenciais de 2006, passando a ter grande
projeção nacional, principalmente pela participação nos debates promovidos pelas projeção nacional, principalmente pela participação nos debates promovidos pelas
emissoras de televisão. Segundo o relator este partido estaria “condenado a não emissoras de televisão. Segundo o relator este partido estaria “condenado a não
subsistir sem ter experimentado espaço de tempo indispensável a lograr grau de subsistir sem ter experimentado espaço de tempo indispensável a lograr grau de
acatamento maior frente ao eleitorado”. E não sairia do estágio embrionário, pois acatamento maior frente ao eleitorado”. E não sairia do estágio embrionário, pois
A Cláusula de Barreira no Direito Constitucional Brasileiro 377 A Cláusula de Barreira no Direito Constitucional Brasileiro 377

teria pouquíssimo tempo no horário eleitoral gratuito para se manifestar sobre teria pouquíssimo tempo no horário eleitoral gratuito para se manifestar sobre
temas nacionais, divulgar o programa partidário e enviar informes e mensagens temas nacionais, divulgar o programa partidário e enviar informes e mensagens
aos filiados sobre eventos do partido. aos filiados sobre eventos do partido.

5.2. Do pluralismo político e da soberania popular 5.2. Do pluralismo político e da soberania popular
Arrazoando o voto para declarar a inconstitucionalidade do mencionado artigo, Arrazoando o voto para declarar a inconstitucionalidade do mencionado artigo,
o Relator lança como primeiro argumento o pluralismo político, que é um dos o Relator lança como primeiro argumento o pluralismo político, que é um dos
fundamentos da Constituição, consoante disposto no art. 1º, inciso V. fundamentos da Constituição, consoante disposto no art. 1º, inciso V.
A democracia impõe formas plurais de organização da sociedade, onde se pri- A democracia impõe formas plurais de organização da sociedade, onde se pri-
vilegia o valor intrínseco do pluralismo de idéias e opiniões no campo político. vilegia o valor intrínseco do pluralismo de idéias e opiniões no campo político.
O pluralismo político é conceituado por José Cretella Júnior10 como “o sis- O pluralismo político é conceituado por José Cretella Júnior10 como “o sis-
tema em que as opções derivam da competição de vários grupos, representantes tema em que as opções derivam da competição de vários grupos, representantes
de tendências sociais diversas, cabendo ao Estado, tão só, servir como árbitro de tendências sociais diversas, cabendo ao Estado, tão só, servir como árbitro
harmonizador dos conflitos eventualmente surgidos”. harmonizador dos conflitos eventualmente surgidos”.

Desse modo, o pluralismo é característica do Estado Democrático de Direito Desse modo, o pluralismo é característica do Estado Democrático de Direito
que visa uma maior participação popular nos destinos do país, assim como asse- que visa uma maior participação popular nos destinos do país, assim como asse-
gurar a liberdade de criação de partidos políticos. gurar a liberdade de criação de partidos políticos.

Ademais, a Carta Maior prevê a liberdade na criação, fusão, incorporação Ademais, a Carta Maior prevê a liberdade na criação, fusão, incorporação
e extinção dos partidos políticos, como forma de garantir a soberania nacional, e extinção dos partidos políticos, como forma de garantir a soberania nacional,
o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa
humana. humana.

Além disso, o art. 17 da Constituição Federal refere-se a qualquer partido Além disso, o art. 17 da Constituição Federal refere-se a qualquer partido
político legitimamente constituído, não fazendo distinção entre os mesmos de político legitimamente constituído, não fazendo distinção entre os mesmos de
acordo com o número de votos obtidos em eleições. acordo com o número de votos obtidos em eleições.

Assim, se for constatado que o candidato atendeu todos os requisitos para Assim, se for constatado que o candidato atendeu todos os requisitos para
se candidatar e foi eleito pelo povo para o exercício do mandato, não há como se candidatar e foi eleito pelo povo para o exercício do mandato, não há como
se afastar do cenário nacional essa parcela da população que o elegeu como seu se afastar do cenário nacional essa parcela da população que o elegeu como seu
representante, haja vista que o parágrafo único do art. 1º da Constituição prevê representante, haja vista que o parágrafo único do art. 1º da Constituição prevê
que o poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou que o poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente. diretamente.

A Ministra Cármen Lúcia, em sucinto e esclarecedor voto, destacou que A Ministra Cármen Lúcia, em sucinto e esclarecedor voto, destacou que
o voto de todos os cidadãos tem a mesma importância, independentemente de o voto de todos os cidadãos tem a mesma importância, independentemente de
caracteres como raça, credo, ideologia ou classe social, nos termos do artigo caracteres como raça, credo, ideologia ou classe social, nos termos do artigo

10. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Rio de Janeiro: 10. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1988, p. 142. Forense Universitária, 1988, p. 142.
378 Vinícios Conceição Silva Silva 378 Vinícios Conceição Silva Silva

1º, caput da Constituição da República. É o que também afirma Alexandre de 1º, caput da Constituição da República. É o que também afirma Alexandre de
Moraes11, segundo o qual “todos os cidadãos têm o mesmo valor no processo Moraes11, segundo o qual “todos os cidadãos têm o mesmo valor no processo
eleitoral, independentemente de sexo, cor, credo, idade, posição intelectual, social eleitoral, independentemente de sexo, cor, credo, idade, posição intelectual, social
ou situação econômica. ONE MAN, ONE VOTE”. ou situação econômica. ONE MAN, ONE VOTE”.

Portanto, admitir que só terão funcionamento parlamentar os partidos que Portanto, admitir que só terão funcionamento parlamentar os partidos que
preencherem as exigências do art. 13, feriria o exercício do poder da população preencherem as exigências do art. 13, feriria o exercício do poder da população
que elegeu determinado candidato, mas não atingindo seu partido à cláusula de que elegeu determinado candidato, mas não atingindo seu partido à cláusula de
desempenho, não teria direito a exercer este poder que lhe foi outorgado. desempenho, não teria direito a exercer este poder que lhe foi outorgado.

Outrossim, se a intenção de tal norma é evitar a proliferação de partidos, a Outrossim, se a intenção de tal norma é evitar a proliferação de partidos, a
medida faz-se desnecessária, pois o rol é automaticamente enxuto, visto que se o medida faz-se desnecessária, pois o rol é automaticamente enxuto, visto que se o
partido político não conseguir eleger nenhum representante, logicamente, não terá partido político não conseguir eleger nenhum representante, logicamente, não terá
funcionamento parlamentar. Assim, é o próprio povo quem escolhe quais partidos funcionamento parlamentar. Assim, é o próprio povo quem escolhe quais partidos
terão ou não exercício nas Casas Legislativas. terão ou não exercício nas Casas Legislativas.

Por conseguinte, a divisão partidária proposta no art. 13, bem como o modo Por conseguinte, a divisão partidária proposta no art. 13, bem como o modo
de repartição do fundo partidário e o tempo de propaganda eleitoral levariam a de repartição do fundo partidário e o tempo de propaganda eleitoral levariam a
extinção de vários partidos tradicionais, nas palavras dos Ministros do Supremo, extinção de vários partidos tradicionais, nas palavras dos Ministros do Supremo,
levaria a morte por inanição das siglas que não obtivessem um bom desempenho levaria a morte por inanição das siglas que não obtivessem um bom desempenho
nas eleições. nas eleições.

5.3. Dos direitos da minoria 5.3. Dos direitos da minoria


O STF aborda com grande profundidade a violação dos direitos das minorias. O STF aborda com grande profundidade a violação dos direitos das minorias.
A cláusula de barreira – nos moldes estabelecidos pela Lei nº. 9.096/1995 – esta- A cláusula de barreira – nos moldes estabelecidos pela Lei nº. 9.096/1995 – esta-
beleceu uma verdadeira ditadura da maioria, contrariando a Constituição Federal beleceu uma verdadeira ditadura da maioria, contrariando a Constituição Federal
de 1988, a qual não estabelece distinções entre os partidos políticos (como de de 1988, a qual não estabelece distinções entre os partidos políticos (como de
primeira ou de segunda classe) nem outorga ao legislador ordinário a faculdade primeira ou de segunda classe) nem outorga ao legislador ordinário a faculdade
de fazê-las. de fazê-las.
Ainda na opinião do Min. Relator, Ainda na opinião do Min. Relator,
“No Estado Democrático de Direito, a nenhuma maioria organizada em tono de “No Estado Democrático de Direito, a nenhuma maioria organizada em tono de
qualquer ideário ou finalidade – por mais louvável que se mostre –, é dado tirar qualquer ideário ou finalidade – por mais louvável que se mostre –, é dado tirar
ou restringir direito e liberdades fundamentais dos grupos minoritários dentre os ou restringir direito e liberdades fundamentais dos grupos minoritários dentre os
quais estão a liberdade de se expressar, de se organizar, de denunciar, de discordar quais estão a liberdade de se expressar, de se organizar, de denunciar, de discordar
e de se fazer representar nas decisões que influem nos destinos da sociedade como e de se fazer representar nas decisões que influem nos destinos da sociedade como
um todo, enfim, de participar plenamente da vida pública, inclusive fiscalizando um todo, enfim, de participar plenamente da vida pública, inclusive fiscalizando
os atos determinados pela maioria”. os atos determinados pela maioria”.

Segundo o Ministro Gilmar Mendes, a cláusula de barreira violou o princípio Segundo o Ministro Gilmar Mendes, a cláusula de barreira violou o princípio
da proporcionalidade, uma vez que negaria funcionamento a partidos políticos da proporcionalidade, uma vez que negaria funcionamento a partidos políticos

11. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 237. 11. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 237.
A Cláusula de Barreira no Direito Constitucional Brasileiro 379 A Cláusula de Barreira no Direito Constitucional Brasileiro 379

que obtiveram uma expressiva votação, sacrificando o direito das minorias. O que obtiveram uma expressiva votação, sacrificando o direito das minorias. O
Ministro Carlos Ayres Britto destaca ainda com maestria que o sistema de freios Ministro Carlos Ayres Britto destaca ainda com maestria que o sistema de freios
e contrapesos também encontra guarida no Parlamento, conferindo às minorias e contrapesos também encontra guarida no Parlamento, conferindo às minorias
parlamentares espaços de atuação. parlamentares espaços de atuação.

5.4. A Lei Ordinária em face do Poder Reformador 5.4. A Lei Ordinária em face do Poder Reformador
Outro ponto interessante é o fato que, quando da época dos trabalhos de re- Outro ponto interessante é o fato que, quando da época dos trabalhos de re-
visão da Constituição Federal de 1988, o então relator e deputado Nelson Jobim, visão da Constituição Federal de 1988, o então relator e deputado Nelson Jobim,
propôs o que seria uma emenda que trataria sobre a cláusula de desempenho, propôs o que seria uma emenda que trataria sobre a cláusula de desempenho,
que, caso fosse aprovada, acrescentaria, entre outros, o parágrafo 5º ao art. 17 da que, caso fosse aprovada, acrescentaria, entre outros, o parágrafo 5º ao art. 17 da
Carta Magna: Carta Magna:
“§ 5º Somente terá direito à representação na Câmara dos Deputados o partido que “§ 5º Somente terá direito à representação na Câmara dos Deputados o partido que
obtiver o apoio mínimo de cinco porcento dos votos válidos, excluídos os brancos obtiver o apoio mínimo de cinco porcento dos votos válidos, excluídos os brancos
e os nulos, apurados em eleição geral e distribuídos em pelo menos um terço dos e os nulos, apurados em eleição geral e distribuídos em pelo menos um terço dos
Estados, atingindo dois por cento em cada um deles.” Estados, atingindo dois por cento em cada um deles.”

O texto não foi aprovado pelo Congresso Nacional, em sessão unicameral. O texto não foi aprovado pelo Congresso Nacional, em sessão unicameral.
Ocorre que um ano depois, o legislador ordinário promulgou o Estatuto dos Parti- Ocorre que um ano depois, o legislador ordinário promulgou o Estatuto dos Parti-
dos Políticos, cujo artigo 13 trazia o mesmo conteúdo sem o advérbio “somente”. dos Políticos, cujo artigo 13 trazia o mesmo conteúdo sem o advérbio “somente”.
Dessa maneira, o Ministro Marco Aurélio observa que aquilo que foi reprovado Dessa maneira, o Ministro Marco Aurélio observa que aquilo que foi reprovado
para emendar a Constituição, foi aprovado para viger como lei infra-constitu- para emendar a Constituição, foi aprovado para viger como lei infra-constitu-
cional, como se o legislador ordinário tivesse mais poder do que o constituinte cional, como se o legislador ordinário tivesse mais poder do que o constituinte
derivado. derivado.

5.5. Do princípio da proporcionalidade e da igualdade de chances 5.5. Do princípio da proporcionalidade e da igualdade de chances
Tem-se que os 5% dos votos válidos exigidos pela lei para que o partido Tem-se que os 5% dos votos válidos exigidos pela lei para que o partido
político pudesse exercer o funcionamento parlamentar na Câmara dos Deputados político pudesse exercer o funcionamento parlamentar na Câmara dos Deputados
mostrou-se irrazoável, tendo como parâmetro os números das eleições de 2006. mostrou-se irrazoável, tendo como parâmetro os números das eleições de 2006.
Os dados demonstram que as agremiações partidárias teriam de alcançar mais de Os dados demonstram que as agremiações partidárias teriam de alcançar mais de
quatro milhões e meio de votos. quatro milhões e meio de votos.
O PC do B, partido importante na nossa história atingiu quase dois milhões O PC do B, partido importante na nossa história atingiu quase dois milhões
de votos, número esse substancial e expressivo, distribuídos em nove Estados- de votos, número esse substancial e expressivo, distribuídos em nove Estados-
membros, como por exemplo, Amazonas, Rio Grande do Sul, Ceará, Bahia, membros, como por exemplo, Amazonas, Rio Grande do Sul, Ceará, Bahia,
Pernambuco e Amapá. Entretanto, mesmo tendo sido eleito 13 deputados, com a Pernambuco e Amapá. Entretanto, mesmo tendo sido eleito 13 deputados, com a
incidência do art. 13 da lei 9.096/95, o PC do B não teria direito de participar de incidência do art. 13 da lei 9.096/95, o PC do B não teria direito de participar de
comissões e da Mesa da Câmara. comissões e da Mesa da Câmara.
Sendo assim, percebe-se que a cláusula de barreira do modo como foi disposta Sendo assim, percebe-se que a cláusula de barreira do modo como foi disposta
mostra-se desproporcional, pois ocorrerá o esvaziamento da atuação de nada menos mostra-se desproporcional, pois ocorrerá o esvaziamento da atuação de nada menos
que 22 partidos políticos, atuando efetivamente apenas 7 deles. E não se fale de que 22 partidos políticos, atuando efetivamente apenas 7 deles. E não se fale de
partidos de legenda de aluguel, posto que o PV, PC do B, PSOL ficariam de fora. partidos de legenda de aluguel, posto que o PV, PC do B, PSOL ficariam de fora.
380 Vinícios Conceição Silva Silva 380 Vinícios Conceição Silva Silva

Diferentemente do Ministro Marco Aurélio, o Ministro Gilmar Mendes en- Diferentemente do Ministro Marco Aurélio, o Ministro Gilmar Mendes en-
tende que seria possível sim, o legislador ordinário estabelecer uma cláusula de tende que seria possível sim, o legislador ordinário estabelecer uma cláusula de
desempenho, não sendo necessário que isso se desse em sede da Constituição, desempenho, não sendo necessário que isso se desse em sede da Constituição,
até mesmo porque a concretização do sistema de modelo proporcional já limita até mesmo porque a concretização do sistema de modelo proporcional já limita
os partidos políticos a ingressarem no poder. Todavia, defende que a via eleita os partidos políticos a ingressarem no poder. Todavia, defende que a via eleita
pelo legislador foi extremamente delicada, haja vista ter eliminado in totum o pelo legislador foi extremamente delicada, haja vista ter eliminado in totum o
funcionamento parlamentar. Nos dizeres do Ministro: funcionamento parlamentar. Nos dizeres do Ministro:
“Não se deixou qualquer espaço, não se fez qualquer mitigação, mas, simplesmente, “Não se deixou qualquer espaço, não se fez qualquer mitigação, mas, simplesmente,
negou-se o funcionamento parlamentar das instituições ou agremiações partidárias negou-se o funcionamento parlamentar das instituições ou agremiações partidárias
que, como vimos, obtiveram um expressivo cabedal de votos. Portanto, aqui, há que, como vimos, obtiveram um expressivo cabedal de votos. Portanto, aqui, há
um sacrifício radical da minoria. Isto realmente parece comprometer o próprio art. um sacrifício radical da minoria. Isto realmente parece comprometer o próprio art.
17. É evidente que aqui há um comprometimento da própria cláusula democrática. 17. É evidente que aqui há um comprometimento da própria cláusula democrática.
porque ao garantir 1% do fundo partidário para essas agremiações e dois minutos porque ao garantir 1% do fundo partidário para essas agremiações e dois minutos
para divulgação dos seus programas, na verdade, o modelo acabou por comprometer para divulgação dos seus programas, na verdade, o modelo acabou por comprometer
aqui o princípio da igualdade de chances ou da igualdade de oportunidades, que aqui o princípio da igualdade de chances ou da igualdade de oportunidades, que
entendo presente na legislação brasileira.” entendo presente na legislação brasileira.”
O Ministro Ricardo Lewandowski argumentou que a discussão da cláusula de O Ministro Ricardo Lewandowski argumentou que a discussão da cláusula de
barreira deve se dar dentro de um contexto maior, dentro do que seria a reforma barreira deve se dar dentro de um contexto maior, dentro do que seria a reforma
política, envolvendo a discussão acerca da fidelidade partidária, do voto distrital política, envolvendo a discussão acerca da fidelidade partidária, do voto distrital
misto ou puro, entre outros aspectos, pois caso fosse feita a análise isoladamente, misto ou puro, entre outros aspectos, pois caso fosse feita a análise isoladamente,
haveria sempre privilégios às agremiações partidárias maiores e materialmente haveria sempre privilégios às agremiações partidárias maiores e materialmente
melhor estruturadas, ferindo, assim, o princípio republicano, democrático e da melhor estruturadas, ferindo, assim, o princípio republicano, democrático e da
igualdade. igualdade.

5.6. Da densidade axiológica do texto constitucional 5.6. Da densidade axiológica do texto constitucional
Interessante ainda, o posicionamento do Ministro Carlos Britto, que en- Interessante ainda, o posicionamento do Ministro Carlos Britto, que en-
tende que toda essa discussão se dá porque a nossa Constituição é densamente tende que toda essa discussão se dá porque a nossa Constituição é densamente
axiológica, de modo que sustenta nela própria diversos valores, que quando axiológica, de modo que sustenta nela própria diversos valores, que quando
confrontados na prática, terminam por se mostrarem antagônicos entre si. Assim, confrontados na prática, terminam por se mostrarem antagônicos entre si. Assim,
por exemplo, os valores A e B, ambos previstos da Constituição são conflituosos por exemplo, os valores A e B, ambos previstos da Constituição são conflituosos
quando analisados do ponto de vista prático. Tem-se, contudo, que se optarmos quando analisados do ponto de vista prático. Tem-se, contudo, que se optarmos
pelo valor B, estará de acordo com lei maior, e o mesmo se dá com o valor A. O pelo valor B, estará de acordo com lei maior, e o mesmo se dá com o valor A. O
que fazer diante dessas situações? Consoante o Ministro Carlos Britto, devemos que fazer diante dessas situações? Consoante o Ministro Carlos Britto, devemos
nos socorrer ao “chamado princípio da proporcionalidade em sentido estrito, ou nos socorrer ao “chamado princípio da proporcionalidade em sentido estrito, ou
seja: entre o certo e o certo, qual a opção que menos ofende os outros valores da seja: entre o certo e o certo, qual a opção que menos ofende os outros valores da
Constituição? Dizendo de modo reverso: qual a opção mais afirmativa dos demais Constituição? Dizendo de modo reverso: qual a opção mais afirmativa dos demais
valores da Constituição?”. valores da Constituição?”.

5.7. Do conflito de normas 5.7. Do conflito de normas


Restringir o funcionamento parlamentar causaria uma incongruência práti- Restringir o funcionamento parlamentar causaria uma incongruência práti-
ca, visto que existiriam partidos que seriam legitimados a propor ação direta de ca, visto que existiriam partidos que seriam legitimados a propor ação direta de
A Cláusula de Barreira no Direito Constitucional Brasileiro 381 A Cláusula de Barreira no Direito Constitucional Brasileiro 381

inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade, via credenciamento inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade, via credenciamento
popular, porém não teriam atuação parlamentar. popular, porém não teriam atuação parlamentar.

5.8. Do sistema bicameral perfeito 5.8. Do sistema bicameral perfeito


Deve ser levado em conta também, o fato de o funcionamento parlamentar Deve ser levado em conta também, o fato de o funcionamento parlamentar
não o é apenas nas Assembléias e Câmaras, alcançando o Senado da República, não o é apenas nas Assembléias e Câmaras, alcançando o Senado da República,
e nestes os partidos que não alcançaram a cláusula, elegeram senadores e outros e nestes os partidos que não alcançaram a cláusula, elegeram senadores e outros
já estão com o mandato em curso. Em vista disso, haveria uma distinção injusta, já estão com o mandato em curso. Em vista disso, haveria uma distinção injusta,
pois o Brasil adota o Bicameralismo Perfeito, onde ambas as casas estão em pé pois o Brasil adota o Bicameralismo Perfeito, onde ambas as casas estão em pé
de igualdade no desenrolar do processo legislativo, e haveria dois pesos e duas de igualdade no desenrolar do processo legislativo, e haveria dois pesos e duas
medidas se o partido pudesse atuar livremente no Senado e não tivesse direito a medidas se o partido pudesse atuar livremente no Senado e não tivesse direito a
funcionamento parlamentar nas demais Casas, o sistema ficaria capenga. funcionamento parlamentar nas demais Casas, o sistema ficaria capenga.

5.9. Da decisão final 5.9. Da decisão final


Assim, diante de todos estes argumentos o STF declarou à unanimidade a Assim, diante de todos estes argumentos o STF declarou à unanimidade a
inconstitucionalidade do art. 13 da lei 9.096/95; derrubando a cláusula de desem- inconstitucionalidade do art. 13 da lei 9.096/95; derrubando a cláusula de desem-
penho e como conseqüência todas as disposições que a ela se referiam e estavam penho e como conseqüência todas as disposições que a ela se referiam e estavam
contidas na lei. Todavia foram mantidas apenas algumas regras de transição, a contidas na lei. Todavia foram mantidas apenas algumas regras de transição, a
fim de se evitar o vácuo legislativo em matéria de fundo partidário e propaganda fim de se evitar o vácuo legislativo em matéria de fundo partidário e propaganda
eleitoral gratuita, disposições estas que terão tempo de vida até o Congresso Na- eleitoral gratuita, disposições estas que terão tempo de vida até o Congresso Na-
cional editar nova lei que regule o tema. cional editar nova lei que regule o tema.

6. CONCLUSÃO 6. CONCLUSÃO
De todo exposto, concluímos que a cláusula de barreira é uma tentativa legis- De todo exposto, concluímos que a cláusula de barreira é uma tentativa legis-
lativa de evitar a proliferação de partidos políticos sem ideologia e sem propostas lativa de evitar a proliferação de partidos políticos sem ideologia e sem propostas
programáticas. Ela é bastante propícia no sistema político brasileiro, pois a idéia programáticas. Ela é bastante propícia no sistema político brasileiro, pois a idéia
de multipartidarismo não significa fortalecimento da democracia, inclusive em de multipartidarismo não significa fortalecimento da democracia, inclusive em
países de tradição bipartidária é possível o estabelecimento de uma pluralidade países de tradição bipartidária é possível o estabelecimento de uma pluralidade
política séria, em que existe várias tendências e posições políticas dento de uma política séria, em que existe várias tendências e posições políticas dento de uma
mesma agremiação. mesma agremiação.
Todavia, o estabelecimento de barreiras legais ao funcionamento parlamentar Todavia, o estabelecimento de barreiras legais ao funcionamento parlamentar
não pode ser de tal ordem que retire a possibilidade de participação de partidos não pode ser de tal ordem que retire a possibilidade de participação de partidos
com forte tradição histórica como o PV, o PC do B e PPS, pois dessa forma have- com forte tradição histórica como o PV, o PC do B e PPS, pois dessa forma have-
ria uma obstrução grave da democracia representativa, tendo em vista que estes ria uma obstrução grave da democracia representativa, tendo em vista que estes
partidos não poderiam participar ativamente das funções típicas do Poder Legis- partidos não poderiam participar ativamente das funções típicas do Poder Legis-
lativo como legislar e fiscalizar, além de realizar o controle político, financeiro e lativo como legislar e fiscalizar, além de realizar o controle político, financeiro e
contábil, aprovar contas, participar da comissão de orçamento e na distribuição do contábil, aprovar contas, participar da comissão de orçamento e na distribuição do
dinheiro público. Além da limitação na atuação ativa no julgamento dos crimes de dinheiro público. Além da limitação na atuação ativa no julgamento dos crimes de
responsabilidade cometidos pelas maiores autoridades da República. responsabilidade cometidos pelas maiores autoridades da República.
382 Vinícios Conceição Silva Silva 382 Vinícios Conceição Silva Silva

Em vista disso, somos favoráveis à constitucionalidade da cláusula de Em vista disso, somos favoráveis à constitucionalidade da cláusula de
desempenho, contudo o percentual estabelecido foi ruim, pois prejudicou o desempenho, contudo o percentual estabelecido foi ruim, pois prejudicou o
funcionamento de bons partidos. E não levou ao desaparecimento das legendas funcionamento de bons partidos. E não levou ao desaparecimento das legendas
de aluguel, e sim a fusão delas com partidos de tradição, gerando uma maléfica de aluguel, e sim a fusão delas com partidos de tradição, gerando uma maléfica
polivalência política, desnaturando ainda mais o caráter ideológico, estimulando polivalência política, desnaturando ainda mais o caráter ideológico, estimulando
a infidelidade partidária. a infidelidade partidária.

7. REFERÊNCIAS 7. REFERÊNCIAS
ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda do mandato parlamentar. Rio de Janeiro: ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda do mandato parlamentar. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. Lumen Juris, 2006.
CARVALHO, Kátia de. Cláusula de Barreira e Funcionamento Parlamentar. Consultoria CARVALHO, Kátia de. Cláusula de Barreira e Funcionamento Parlamentar. Consultoria
Legislativa a Câmara dos Deputados, Brasília, fev 2003. Legislativa a Câmara dos Deputados, Brasília, fev 2003.
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Rio de Janeiro: CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1988, v.1. Forense Universitária, 1988, v.1.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2001. Saraiva, 2001.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
RABAT, Márcio. Efeitos do art. 13 da Lei dos Partidos. Consultoria Legislativa a Câmara RABAT, Márcio. Efeitos do art. 13 da Lei dos Partidos. Consultoria Legislativa a Câmara
dos Deputados, Brasília, dez. 2002. dos Deputados, Brasília, dez. 2002.
RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 4ed., rev. e atual. até a EC n. 46/2005, 2.tir. – Rio RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 4ed., rev. e atual. até a EC n. 46/2005, 2.tir. – Rio
de Janeiro : Impetus, 2005. de Janeiro : Impetus, 2005.
RODRIGUES, Ricardo. Barreira Legal nos Sistemas Eleitorais Proporcionais. Revista de RODRIGUES, Ricardo. Barreira Legal nos Sistemas Eleitorais Proporcionais. Revista de
Informação Legislativa, Brasília , v. 32, p.52, jul./set. 1995. Informação Legislativa, Brasília , v. 32, p.52, jul./set. 1995.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22 ed. São Paulo: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22 ed. São Paulo:
Malheiros, 2002. Malheiros, 2002.
TAVARES, José Antonio Giusti. Sistemas Eleitorais nas Democracias Contemporâneas. TAVARES, José Antonio Giusti. Sistemas Eleitorais nas Democracias Contemporâneas.
Teorias, Instituições, Estratégias. Rio de Janeiro: Relumbe-Dumará, 1994. Teorias, Instituições, Estratégias. Rio de Janeiro: Relumbe-Dumará, 1994.
Capítulo XXVII Capítulo XXVII
A intervenção anômala A intervenção anômala
e a dispensa de interesse jurídico e a dispensa de interesse jurídico
para ingresso no processo para ingresso no processo

Yves West Behrens* Yves West Behrens*

Sumário • 1. Introdução – 2. Intervenção especial das pessoas de direito público – 3. Ressalva quanto Sumário • 1. Introdução – 2. Intervenção especial das pessoas de direito público – 3. Ressalva quanto
à dispensa de interesse econômico – 4. A Intervenção anômala e a isonomia: 4.1 O Regime jurídico- à dispensa de interesse econômico – 4. A Intervenção anômala e a isonomia: 4.1 O Regime jurídico-
administrativo; 4.2 Interesses público primário e secundário; 5. Possibilidade de enquadramento como administrativo; 4.2 Interesses público primário e secundário; 5. Possibilidade de enquadramento como
amicus curiae – 6. Conclusões – 7. Referências Bibliográficas amicus curiae – 6. Conclusões – 7. Referências Bibliográficas

1.INTRODUÇÃO 1.INTRODUÇÃO
A lei 9.469/97 criou, em seu artigo 5º, parágrafo único, instituto bastante A lei 9.469/97 criou, em seu artigo 5º, parágrafo único, instituto bastante
controverso, que permite às pessoas de direito público ingressar em processos controverso, que permite às pessoas de direito público ingressar em processos
mesmo sem interesse jurídico, sendo suficiente apenas o econômico. mesmo sem interesse jurídico, sendo suficiente apenas o econômico.
A polêmica em torno dessa figura jurídica já se anuncia desde a alcunha que A polêmica em torno dessa figura jurídica já se anuncia desde a alcunha que
lhe foi dada (intervenção anômala), reflexo da grande discussão com relação à lhe foi dada (intervenção anômala), reflexo da grande discussão com relação à
sua natureza. Percorre ainda os debates a respeito de eventuais deslocamentos de sua natureza. Percorre ainda os debates a respeito de eventuais deslocamentos de
julgamento em casos de pessoas públicas do nível federal e chega às considerações julgamento em casos de pessoas públicas do nível federal e chega às considerações
sobre se a criação de tal prerrogativa fere a isonomia. sobre se a criação de tal prerrogativa fere a isonomia.
É sobre esta última fonte de controvérsia que se pretende discorrer aqui. É sobre esta última fonte de controvérsia que se pretende discorrer aqui.
A princípio, poder-se-ia alegar que o regime jurídico-administrativo a que está A princípio, poder-se-ia alegar que o regime jurídico-administrativo a que está
sujeita a Administração Pública, sustentado pelo princípio da supremacia do sujeita a Administração Pública, sustentado pelo princípio da supremacia do
interesse público, permite que seu interesse econômico seja mais valorizado que interesse público, permite que seu interesse econômico seja mais valorizado que
o dos particulares. o dos particulares.
É esse, todavia, o argumento que se pretende refutar aqui, pois deve ser con- É esse, todavia, o argumento que se pretende refutar aqui, pois deve ser con-
siderada a distinção entre o interesse público primário e o secundário. Na medida siderada a distinção entre o interesse público primário e o secundário. Na medida
em que o segundo não investe necessariamente o Estado da mesma supremacia que em que o segundo não investe necessariamente o Estado da mesma supremacia que
o primeiro, o enquadramento do instituto criado pelo parágrafo único do artigo 5º o primeiro, o enquadramento do instituto criado pelo parágrafo único do artigo 5º
como interesse secundário leva à conclusão de que ele institui uma discriminação como interesse secundário leva à conclusão de que ele institui uma discriminação
injusta, sendo contrária ao preceito constitucional de isonomia. injusta, sendo contrária ao preceito constitucional de isonomia.

* Graduando de Direito da Universidade Federal da Bahia. * Graduando de Direito da Universidade Federal da Bahia.
384 Yves West Behrens 384 Yves West Behrens

Por fim, refuta-se um argumento que poderia sanar a constatação de lesão Por fim, refuta-se um argumento que poderia sanar a constatação de lesão
à isonomia: aquele que define o instituto como forma de amicus curiae, não de à isonomia: aquele que define o instituto como forma de amicus curiae, não de
intervenção. Por possuir interesse na vitória de uma das partes, no entanto, não intervenção. Por possuir interesse na vitória de uma das partes, no entanto, não
poderia a pessoa de direito público funcionar dessa forma no processo. poderia a pessoa de direito público funcionar dessa forma no processo.

2. INTERVENÇÃO ESPECIAL DAS PESSOAS DE DIREITO PÚBLICO 2. INTERVENÇÃO ESPECIAL DAS PESSOAS DE DIREITO PÚBLICO
A lei 9.469, fruto da conversão de uma série de medidas provisórias reeditadas A lei 9.469, fruto da conversão de uma série de medidas provisórias reeditadas
em lei, tinha a finalidade de regulamentar o inciso VI do artigo 4° da Lei orgânica em lei, tinha a finalidade de regulamentar o inciso VI do artigo 4° da Lei orgânica
da Advocacia-Geral da União. Originalmente, ela definiria os contornos para a da Advocacia-Geral da União. Originalmente, ela definiria os contornos para a
desistência, transigência, feitio de acordos e firmamento de compromissos nas desistência, transigência, feitio de acordos e firmamento de compromissos nas
causas de interesse da União. Entretanto, extrapolou-se esta competência com causas de interesse da União. Entretanto, extrapolou-se esta competência com
a criação de duas modalidades de intervenção de terceiros especiais para entes a criação de duas modalidades de intervenção de terceiros especiais para entes
públicos. Este é o texto: públicos. Este é o texto:
“Art. 5º A União poderá intervir nas causas em que figurarem, como autoras ou “Art. 5º A União poderá intervir nas causas em que figurarem, como autoras ou
rés, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas rés, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas
públicas federais. públicas federais.

Parágrafo único. As pessoas jurídicas de direito público poderão, nas causas cuja Parágrafo único. As pessoas jurídicas de direito público poderão, nas causas cuja
decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir, decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir,
independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões
de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao
exame da matéria e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de desloca- exame da matéria e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de desloca-
mento de competência, serão consideradas partes.” mento de competência, serão consideradas partes.”

Ambas novas modalidades especiais de intervenção causaram reações de Ambas novas modalidades especiais de intervenção causaram reações de
estranhamento da comunidade jurídica. Várias impropriedades foram encontradas estranhamento da comunidade jurídica. Várias impropriedades foram encontradas
nos conteúdos de ambas. Destaca-se o expresso rebaixamento do requisito para nos conteúdos de ambas. Destaca-se o expresso rebaixamento do requisito para
ingresso de terceiro no processo no parágrafo único. ingresso de terceiro no processo no parágrafo único.
Sempre se exigiu que houvesse possibilidade de envolvimento, ainda que Sempre se exigiu que houvesse possibilidade de envolvimento, ainda que
indireto, do patrimônio jurídico de terceira pessoa na lide para que ela se habili- indireto, do patrimônio jurídico de terceira pessoa na lide para que ela se habili-
tasse a intervir voluntariamente ou fosse convocada para tanto. É, aliás, o fato de tasse a intervir voluntariamente ou fosse convocada para tanto. É, aliás, o fato de
relacionar-se juridicamente com uma ou ambas as partes que confere legitimidade relacionar-se juridicamente com uma ou ambas as partes que confere legitimidade
para posterior transformação em parte. para posterior transformação em parte.
Interesses extrajurídicos, como o sentimental e o econômico, nunca tiveram Interesses extrajurídicos, como o sentimental e o econômico, nunca tiveram
esse tipo de conseqüência. Por mais que queira que um devedor ganhe uma esse tipo de conseqüência. Por mais que queira que um devedor ganhe uma
causa para poder adimplir dívida, o credor não poderá intervir como assistente causa para poder adimplir dívida, o credor não poderá intervir como assistente
se a discussão for completamente estranha ao título que possui, pois seu direito se a discussão for completamente estranha ao título que possui, pois seu direito
permanece intacto. permanece intacto.
A inovação enfrentou forte resistência por parte de juristas que consideram A inovação enfrentou forte resistência por parte de juristas que consideram
inadmissível a instituição de prerrogativa que subverte uma parte da teoria geral inadmissível a instituição de prerrogativa que subverte uma parte da teoria geral
A intervenção anômala e a dispensa de interesse jurídico para ingresso no processo 385 A intervenção anômala e a dispensa de interesse jurídico para ingresso no processo 385

do processo para favorecer a Administração Pública. A isonomia estaria violada do processo para favorecer a Administração Pública. A isonomia estaria violada
diante da importância dada pela lei ao patrimônio do Estado. Passa-se a avaliar diante da importância dada pela lei ao patrimônio do Estado. Passa-se a avaliar
este suposto ataque à ordem constitucional. este suposto ataque à ordem constitucional.

3. RESSALVA QUANTO À DISPENSA DE INTERESSE ECONÔMICO 3. RESSALVA QUANTO À DISPENSA DE INTERESSE ECONÔMICO

Antes, porém, cabe fazer uma ressalva. Aqui a argumentação não caminha Antes, porém, cabe fazer uma ressalva. Aqui a argumentação não caminha
para declarar inconstitucional ruptura com a forma clássica de intervir. A mudança para declarar inconstitucional ruptura com a forma clássica de intervir. A mudança
em relação à modalidade consagrada de ingresso de terceiro no processo, por si em relação à modalidade consagrada de ingresso de terceiro no processo, por si
só, não engendra defeito. Concorda-se, neste ponto, com Leonardo José Carneiro só, não engendra defeito. Concorda-se, neste ponto, com Leonardo José Carneiro
da Cunha (2004 , p.634) da Cunha (2004 , p.634)
“Não parece haver inconstitucionalidade numa lei que cria nova forma de interven- “Não parece haver inconstitucionalidade numa lei que cria nova forma de interven-
ção de terceiros, fundada num interesse econômico, ainda que indireto. Pode-se, ção de terceiros, fundada num interesse econômico, ainda que indireto. Pode-se,
talvez, lamentar a regra, por desatender a um postulado secular, segundo o qual talvez, lamentar a regra, por desatender a um postulado secular, segundo o qual
a intervenção de terceiro resulta da demonstração de um interesse jurídico. Mas a intervenção de terceiro resulta da demonstração de um interesse jurídico. Mas
inconstitucionalidade não parece haver na criação de uma intervenção de terceiros inconstitucionalidade não parece haver na criação de uma intervenção de terceiros
fundada num mero interesse econômico. Trata-se, ao que tudo indica, de regra fundada num mero interesse econômico. Trata-se, ao que tudo indica, de regra
decorrente de simples política legislativa.” decorrente de simples política legislativa.”

4. A INTERVENÇÃO ANÔMALA E A ISONOMIA 4. A INTERVENÇÃO ANÔMALA E A ISONOMIA

Para avaliar se há inconstitucionalidade por lesão à isonomia, é necessário Para avaliar se há inconstitucionalidade por lesão à isonomia, é necessário
realizar algumas ponderações. realizar algumas ponderações.

Argúi-se inconstitucionalidade contra essa norma por ela instituir vantagem Argúi-se inconstitucionalidade contra essa norma por ela instituir vantagem
exclusiva para pessoas de direito público. O patrimônio delas conta agora com exclusiva para pessoas de direito público. O patrimônio delas conta agora com
mais instrumentos de proteção, já que se torna passível de proteção ainda que a mais instrumentos de proteção, já que se torna passível de proteção ainda que a
ameaça não seja direta e ainda que não se dê no plano jurídico e não se conseguiria ameaça não seja direta e ainda que não se dê no plano jurídico e não se conseguiria
vislumbrar critério justo para tal especialidade no tratamento. vislumbrar critério justo para tal especialidade no tratamento.

Opõe-se a esse argumento a presença de interesse público na atuação da Opõe-se a esse argumento a presença de interesse público na atuação da
Fazenda Pública, bem como na preservação de um patrimônio que pertenceria à Fazenda Pública, bem como na preservação de um patrimônio que pertenceria à
coletividade. A partir daí é que Leonardo José Carneiro da Cunha (2004, p. 634) coletividade. A partir daí é que Leonardo José Carneiro da Cunha (2004, p. 634)
traça a divisão entre privilégios e prerrogativas. Segundo ele, os primeiros seriam traça a divisão entre privilégios e prerrogativas. Segundo ele, os primeiros seriam
vantagens sem “fundamento razoável”. A Administração estaria munida, para vantagens sem “fundamento razoável”. A Administração estaria munida, para
defender o interesse público, de prerrogativas, que uma vez justificadas pela supre- defender o interesse público, de prerrogativas, que uma vez justificadas pela supre-
macia deste interesse sobre o privado, princípio constante em nosso ordenamento, macia deste interesse sobre o privado, princípio constante em nosso ordenamento,
apenas efetivariam a própria isonomia, por tratar desigualmente os desiguais. apenas efetivariam a própria isonomia, por tratar desigualmente os desiguais.

Essa manifestação do princípio da isonomia, porém, é sempre um argumento Essa manifestação do princípio da isonomia, porém, é sempre um argumento
de diferença sutilíssima para a verdadeira desigualdade, por não se poder evitar de diferença sutilíssima para a verdadeira desigualdade, por não se poder evitar
a grande discussão sobre quem é ou não igual, muitas vezes residente em deta- a grande discussão sobre quem é ou não igual, muitas vezes residente em deta-
lhes. lhes.
386 Yves West Behrens 386 Yves West Behrens

4.1. O Regime Jurídico-Administrativo 4.1. O Regime Jurídico-Administrativo


De fato, a Administração Pública possui uma série de benefícios, seja no direito De fato, a Administração Pública possui uma série de benefícios, seja no direito
material, seja no direito processual, que lhe conferem uma posição favorável. Esta material, seja no direito processual, que lhe conferem uma posição favorável. Esta
condição decorre de sua regulação pelo Regime Jurídico-Administrativo. Ocorre condição decorre de sua regulação pelo Regime Jurídico-Administrativo. Ocorre
que, embora em alguns casos esteja submetida ao direito comum, age geralmente que, embora em alguns casos esteja submetida ao direito comum, age geralmente
sob a incidência de normas especializadas. A especialização consiste não apenas sob a incidência de normas especializadas. A especialização consiste não apenas
na concessão de maiores poderes, mas também em restrições exclusivas para na concessão de maiores poderes, mas também em restrições exclusivas para
as pessoas de direito público. Como exemplos de benefícios, podem-se citar a as pessoas de direito público. Como exemplos de benefícios, podem-se citar a
contagem dos prazos em dobro para apelar e em quádruplo para contestar (art. contagem dos prazos em dobro para apelar e em quádruplo para contestar (art.
188 do Código de Processo Civil), e a necessidade de intimação pessoal de seus 188 do Código de Processo Civil), e a necessidade de intimação pessoal de seus
representantes (Lei complementar 73, art. 38). Já entre as sujeições, encontramos representantes (Lei complementar 73, art. 38). Já entre as sujeições, encontramos
a necessidade de licitação para contratação ( art. 37, XXI, Constituição Federal) a necessidade de licitação para contratação ( art. 37, XXI, Constituição Federal)
e de concurso público para seleção de pessoal (art. 37, II, CF). e de concurso público para seleção de pessoal (art. 37, II, CF).
A razão de ser da instituição do Regime Jurídico-Administrativo é propiciar ao A razão de ser da instituição do Regime Jurídico-Administrativo é propiciar ao
Estado a possibilidade de melhor atender a seus fins, bem como impedir que deles Estado a possibilidade de melhor atender a seus fins, bem como impedir que deles
se desvie. No primeiro caso, abrem-se as prerrogativas, no segundo, impõem-se se desvie. No primeiro caso, abrem-se as prerrogativas, no segundo, impõem-se
as limitações, em especial, o princípio da legalidade. as limitações, em especial, o princípio da legalidade.
Maria Sylvia Zanella di Pietro(2003 , p. 65), justificando esse conjunto norma- Maria Sylvia Zanella di Pietro(2003 , p. 65), justificando esse conjunto norma-
tivo diferenciado, constata o seguinte paradoxo: o Direito Administrativo surgiu tivo diferenciado, constata o seguinte paradoxo: o Direito Administrativo surgiu
, ao mesmo tempo para proteger os indivíduos de eventuais pretensões tirânicas , ao mesmo tempo para proteger os indivíduos de eventuais pretensões tirânicas
de seus governantes e para possibilitar que o Estado pudesse atingir a satisfação de seus governantes e para possibilitar que o Estado pudesse atingir a satisfação
dos interesses coletivos. dos interesses coletivos.
Celso Antônio Bandeira de Melo (2006, p. 43-75), pretendendo sistematizar Celso Antônio Bandeira de Melo (2006, p. 43-75), pretendendo sistematizar
o Regime Jurídico-administrativo, coloca dois princípios como sustentadores de o Regime Jurídico-administrativo, coloca dois princípios como sustentadores de
toda a ordem desse campo do direito: a indisponibilidade do interesse público e a toda a ordem desse campo do direito: a indisponibilidade do interesse público e a
já citada supremacia do direito público sobre o privado. Por não se poder dispor já citada supremacia do direito público sobre o privado. Por não se poder dispor
do interesse público, que se não é alheio ao administrador, ao menos não lhe é do interesse público, que se não é alheio ao administrador, ao menos não lhe é
exclusivo, deve ele obedecer a uma série de regras e princípios não vigentes na exclusivo, deve ele obedecer a uma série de regras e princípios não vigentes na
ordem privada. Concomitantemente, o ordenamento permite que se tenha margem ordem privada. Concomitantemente, o ordenamento permite que se tenha margem
de atuação maior que o dessa mesma ordem privada para consecução de fins pú- de atuação maior que o dessa mesma ordem privada para consecução de fins pú-
blicos: confere-se uma posição privilegiada (e aqui um defensor da intervenção blicos: confere-se uma posição privilegiada (e aqui um defensor da intervenção
anômala a justificaria) e uma posição de supremacia, que significa a possibilidade anômala a justificaria) e uma posição de supremacia, que significa a possibilidade
de, na relação com particulares, exercitar poderes de que estes não gozam. de, na relação com particulares, exercitar poderes de que estes não gozam.

4.2. Interesses Público Primário e Secundário 4.2. Interesses Público Primário e Secundário
Não é absoluta a justificação das prerrogativas concedidas pela necessidade Não é absoluta a justificação das prerrogativas concedidas pela necessidade
de satisfação dos interesses públicos. A ressalva está em não igualar interesse de satisfação dos interesses públicos. A ressalva está em não igualar interesse
público e interesse do Estado. Deve-se observar a definição de interesse público. público e interesse do Estado. Deve-se observar a definição de interesse público.
Segundo o professor Celso Antônio, ela é a seguinte (2006 p. 51): Segundo o professor Celso Antônio, ela é a seguinte (2006 p. 51):
A intervenção anômala e a dispensa de interesse jurídico para ingresso no processo 387 A intervenção anômala e a dispensa de interesse jurídico para ingresso no processo 387

“Donde o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do “Donde o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do
conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados
em sua qualidade de membros da sociedade e pelo simples fato de o serem.” em sua qualidade de membros da sociedade e pelo simples fato de o serem.”

Este é o interesse público primário, consistente na realização de “valores Este é o interesse público primário, consistente na realização de “valores
como justiça, segurança e bem-estar social”, confome Luís Roberto Barroso ( como justiça, segurança e bem-estar social”, confome Luís Roberto Barroso (
2005, p XIII-XIV) 2005, p XIII-XIV)
Entrando em choque o interesse do particular com o de toda a coletividade, Entrando em choque o interesse do particular com o de toda a coletividade,
deve prevalecer o segundo munido da já citada “posição privilegiada”, pois até deve prevalecer o segundo munido da já citada “posição privilegiada”, pois até
mesmo o particular tem, em abstrato, interesse na realização do bem-estar social, mesmo o particular tem, em abstrato, interesse na realização do bem-estar social,
embora concretamente se oponha a ele se lhe prejudicar em alguma situação embora concretamente se oponha a ele se lhe prejudicar em alguma situação
específica. específica.
Para poder promover interesses primários, não pode deixar o Estado de cuidar Para poder promover interesses primários, não pode deixar o Estado de cuidar
também de assuntos que só dizem respeito à sua manutenção enquanto pessoa também de assuntos que só dizem respeito à sua manutenção enquanto pessoa
jurídica, sem representar verdadeiro interesse da sociedade. São os diversos inte- jurídica, sem representar verdadeiro interesse da sociedade. São os diversos inte-
resses individuais do Estado, resultantes das relações jurídicas nas quais ingressa resses individuais do Estado, resultantes das relações jurídicas nas quais ingressa
para sua própria conservação. para sua própria conservação.
Quando forem estas as relações jurídicas nas quais pretende se defender, no Quando forem estas as relações jurídicas nas quais pretende se defender, no
entanto, não poderá dispor de posição privilegiada. Certamente, a defesa do patri- entanto, não poderá dispor de posição privilegiada. Certamente, a defesa do patri-
mônio público não deve ser subestimada, até porque é justamente ela que viabiliza mônio público não deve ser subestimada, até porque é justamente ela que viabiliza
a efetivação dos interesses primordiais. Contudo, possibilitar sempre à atuação a efetivação dos interesses primordiais. Contudo, possibilitar sempre à atuação
secundária o que se possibilita à primária transforma o Direito Administrativo secundária o que se possibilita à primária transforma o Direito Administrativo
num “aglutinador de poderes desfrutáveis” para o Estado, para que ele possa num “aglutinador de poderes desfrutáveis” para o Estado, para que ele possa
“despender o mínimo de recursos e abarrotar-se deles ao máximo”. Essa a razão “despender o mínimo de recursos e abarrotar-se deles ao máximo”. Essa a razão
para que Luís Roberto Barroso afirme o seguinte (2005, p XIII-XIV).: para que Luís Roberto Barroso afirme o seguinte (2005, p XIII-XIV).:
“(...)o interesse público secundário jamais desfrutará de uma supremacia a priori “(...)o interesse público secundário jamais desfrutará de uma supremacia a priori
e abstrata em face do interesse particular.” e abstrata em face do interesse particular.”

No mesmo sentido, expõe Celso Antônio Bandeira de Melo (2006, p 69): No mesmo sentido, expõe Celso Antônio Bandeira de Melo (2006, p 69):
“Em face do exposto, fácil é ver-se que as prerrogativas inerentes à supremacia do “Em face do exposto, fácil é ver-se que as prerrogativas inerentes à supremacia do
interesse público sobre o privado só podem ser manejadas legitimamente para o al- interesse público sobre o privado só podem ser manejadas legitimamente para o al-
cance de interesses públicos; não para satisfazer apenas interesses ou conveniências cance de interesses públicos; não para satisfazer apenas interesses ou conveniências
tão-só do aparelho estatal e, muito menos dos agentes governamentais.” tão-só do aparelho estatal e, muito menos dos agentes governamentais.”

Não se pode, então, aceitar o interesse público como “fundamento razoável” Não se pode, então, aceitar o interesse público como “fundamento razoável”
para a dispensa do requisito do interesse jurídico para intervir em uma ação. Mais para a dispensa do requisito do interesse jurídico para intervir em uma ação. Mais
do que qualquer outra prerrogativa, esta não atende ao interesse da sociedade, do que qualquer outra prerrogativa, esta não atende ao interesse da sociedade,
pois desde seu texto já está declarado o interesse econômico que a ela faria jus. pois desde seu texto já está declarado o interesse econômico que a ela faria jus.
Ora, interesse econômico redunda exatamente no interesse de auto-conservação, Ora, interesse econômico redunda exatamente no interesse de auto-conservação,
que embora seja, nesse caso, de pessoa estatal, poderia muito bem ser de empresa que embora seja, nesse caso, de pessoa estatal, poderia muito bem ser de empresa
comum ou de cidadão comum. comum ou de cidadão comum.
388 Yves West Behrens 388 Yves West Behrens

Portanto, quando agir como eles, só se deve admitir o ingresso de pessoa Portanto, quando agir como eles, só se deve admitir o ingresso de pessoa
jurídica de direito público mediante a forma comum: detendo interesse jurídico. jurídica de direito público mediante a forma comum: detendo interesse jurídico.
Como a própria norma já foi editada apenas para interesses secundários, percebe- Como a própria norma já foi editada apenas para interesses secundários, percebe-
se que não se pode aceita-la em qualquer caso. se que não se pode aceita-la em qualquer caso.

5. POSSIBILIDADE DE ENQUADRAMENTO COMO AMICUS CURIAE 5. POSSIBILIDADE DE ENQUADRAMENTO COMO AMICUS CURIAE
Pode-se apelar-se a um último argumento para fundamentar a intervenção Pode-se apelar-se a um último argumento para fundamentar a intervenção
anômala. Ele reside no seu enquadramento como nova forma de amicus curiae. anômala. Ele reside no seu enquadramento como nova forma de amicus curiae.
Esta figura consiste num assistente do julgador em assuntos que exigem co- Esta figura consiste num assistente do julgador em assuntos que exigem co-
nhecimentos jurídicos especializados. Chama-se “amigo da cúria” por auxiliar os nhecimentos jurídicos especializados. Chama-se “amigo da cúria” por auxiliar os
juízes a lidarem com legislações específicas com as quais não estão acostumados, juízes a lidarem com legislações específicas com as quais não estão acostumados,
ajudando-os a entender o impacto de suas decisões nesses casos. ajudando-os a entender o impacto de suas decisões nesses casos.
O amicus curiae não tem qualquer pretensão, apenas servindo de instrumento O amicus curiae não tem qualquer pretensão, apenas servindo de instrumento
para a qualificação das decisões jurídicas. Não é terceiro, visto que lhe é indiferente para a qualificação das decisões jurídicas. Não é terceiro, visto que lhe é indiferente
o resultado do processo. o resultado do processo.
“O próprio étimo da expressão – amigo da cúria, ao pé da letra; friend of court, para “O próprio étimo da expressão – amigo da cúria, ao pé da letra; friend of court, para
os americanos – já revela que estamos diante muito mais de um auxiliar do juízo os americanos – já revela que estamos diante muito mais de um auxiliar do juízo
do que de um postulante, sujeito parcial do processo com interesse específico em do que de um postulante, sujeito parcial do processo com interesse específico em
determinado resultado para o julgamento.” (DIDIER JR., 2005 , p. 346) determinado resultado para o julgamento.” (DIDIER JR., 2005 , p. 346)

Entender ser a intervenção anômala modalidade de amicus curiae, significa Entender ser a intervenção anômala modalidade de amicus curiae, significa
dar ênfase à finalidade expressa no parágrafo único do artigo 5º para a intervenção: dar ênfase à finalidade expressa no parágrafo único do artigo 5º para a intervenção:
esclarecer questões de fato e de direito, o que sugere um papel de auxiliar esclarecer questões de fato e de direito, o que sugere um papel de auxiliar
Ressalte-se: o próprio legislador quis impor a feição de amicus curiae à nova Ressalte-se: o próprio legislador quis impor a feição de amicus curiae à nova
figura, como se depreende da exposição de motivos da Medida Provisória Nº figura, como se depreende da exposição de motivos da Medida Provisória Nº
1.561-4, que mais tarde tornou-se a lei em questão: 1.561-4, que mais tarde tornou-se a lei em questão:
“Inscreveu-se um parágrafo único no art. 5º regrando a participação de pessoas “Inscreveu-se um parágrafo único no art. 5º regrando a participação de pessoas
jurídicas de direito público como “amicus curiae, ou seja, permitindo-lhes a in- jurídicas de direito público como “amicus curiae, ou seja, permitindo-lhes a in-
tervenção nas causas cuja decisão ainda que indiretamente possa vir a ter reflexos tervenção nas causas cuja decisão ainda que indiretamente possa vir a ter reflexos
de natureza econômica, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo de natureza econômica, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo
juntar documentos e memoriais ao esclarecimento da matéria sub judice, autori- juntar documentos e memoriais ao esclarecimento da matéria sub judice, autori-
zando-lhes ainda recorrer, se for o caso, como se partes fossem, deslocando-se a zando-lhes ainda recorrer, se for o caso, como se partes fossem, deslocando-se a
competência para a Justiça Federal.” (MENSAGEM Nº 232, DE 1997-CN apud competência para a Justiça Federal.” (MENSAGEM Nº 232, DE 1997-CN apud
RONCAGLIA, 2007) RONCAGLIA, 2007)

Eventual enquadramento dessa intervenção como amicus curiae não im- Eventual enquadramento dessa intervenção como amicus curiae não im-
plicaria em desigualação injusta. Afinal, não haveria privilégio algum para a plicaria em desigualação injusta. Afinal, não haveria privilégio algum para a
Administração em tornar-se auxiliar do juízo, seu patrimônio não estaria sendo Administração em tornar-se auxiliar do juízo, seu patrimônio não estaria sendo
considerado especial frente aos outros. Pelo contrário, teria lugar busca pela considerado especial frente aos outros. Pelo contrário, teria lugar busca pela
melhoria do serviço público, interesse público primário, pois é importante para melhoria do serviço público, interesse público primário, pois é importante para
todos os membros da sociedade que a solução de conflitos pelo Estado se dê com todos os membros da sociedade que a solução de conflitos pelo Estado se dê com
todos os meios possíveis. todos os meios possíveis.
A intervenção anômala e a dispensa de interesse jurídico para ingresso no processo 389 A intervenção anômala e a dispensa de interesse jurídico para ingresso no processo 389

Mas não se pode dizer que seja o caso. A própria lei coloca às claras que nessa Mas não se pode dizer que seja o caso. A própria lei coloca às claras que nessa
intervenção a pessoa de direito público possui o que é básico faltar ao amicus intervenção a pessoa de direito público possui o que é básico faltar ao amicus
curiae: interesse. O parágrafo único do artigo 5º da lei 9.469, ao estabelecer o in- curiae: interesse. O parágrafo único do artigo 5º da lei 9.469, ao estabelecer o in-
teresse econômico como necessário à utilização do instituto que cria, impossibilita teresse econômico como necessário à utilização do instituto que cria, impossibilita
qualquer configuração dele como “amigo da cúria”. Não é de se imaginar que se qualquer configuração dele como “amigo da cúria”. Não é de se imaginar que se
auxilie o ofício do juiz e ao mesmo tempo uma das partes. auxilie o ofício do juiz e ao mesmo tempo uma das partes.

6. CONCLUSÕES 6. CONCLUSÕES
Pelo que foi exposto, pode-se concluir: Pelo que foi exposto, pode-se concluir:
1) A criação de modalidade especial de intervenção que exige somente 1) A criação de modalidade especial de intervenção que exige somente
interesse econômico não fere, a priori, a isonomia. interesse econômico não fere, a priori, a isonomia.
2) A restrição deste instituto somente para pessoas de direito público, todavia, 2) A restrição deste instituto somente para pessoas de direito público, todavia,
viola este princípio. viola este princípio.
3) A invocação do regime jurídico-administrativo da Administração Pública 3) A invocação do regime jurídico-administrativo da Administração Pública
para justificar esta prerrogativa não é suficiente, visto que interesse eco- para justificar esta prerrogativa não é suficiente, visto que interesse eco-
nômico é reflexo do interesse secundário, não coberto por tal regime. nômico é reflexo do interesse secundário, não coberto por tal regime.
4) Considerar a intervenção do parágrafo único do artigo 5º da lei 9.469 4) Considerar a intervenção do parágrafo único do artigo 5º da lei 9.469
forma nova de amicus curiae evitaria acusações de inconstitucionalidade, forma nova de amicus curiae evitaria acusações de inconstitucionalidade,
mas é inviável diante da parcialidade de que está revestida essa figura. mas é inviável diante da parcialidade de que está revestida essa figura.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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17/07/07 17/07/07
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