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O Brasil está preparado para o ebola? aéreas disseram que não receberam orientação nem treina-
mento das empresas sobre como proceder nos casos de sus-
Cristiane Segatto; Vinícius Gorczeski peita de ebola em voo ou solo. Todos se disseram apreensi-
vos. “Os funcionários, especialmente os que limpam os ba-
Felizmente, ainda não foi desta vez. A confirmação nheiros das aeronaves ou que têm contato com passageiros
de que o africano Souleymane Bah, de 47 anos, não tem o de voos internacionais, dizem que estão sem informações.
vírus ebola permitiu que a população brasileira e as autori- Têm medo”, diz Selma Balbino, diretora executiva do Sin-
dades respirassem aliviadas. Pode ser por pouco tempo. A dicato Nacional dos Aeroviários. A Associação Brasileira
capacidade de reação do Brasil diante da possibilidade de das Empresas Aéreas (Abear) afirma que as companhias aé-
chegada do mais temível dos vírus transmissíveis entre hu- reas conduziram dois testes simulados, no Rio de Janeiro e
manos foi posta à prova quando Bah, sentindo-se febril, pro- em São Paulo, para treinar os profissionais. A falta de aten-
curou uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em Cas- ção ao risco de chegada do ebola causou estranheza ao an-
cavel, no interior do Paraná. Os funcionários dispararam o golano Antônio Gervásio, de 21 anos. Ele mora no Brasil
alerta geral assim que ele revelou ter chegado da Guiné três desde 2011. “Se a doença chegou a um país como os Esta-
semanas antes. Com Libéria e Serra Leoa, a Guiné é um dos dos Unidos, tão rigoroso no controle de passageiros na fron-
três países afetados pelo mais grave surto de ebola em toda teira, imagine o que pode acontecer em países onde os pas-
a história. Uma tragédia que já deixou 8 mil infectados e sageiros entram sem grandes dificuldades”, disse, enquanto
4400 mortos – a maioria nesses três países africanos. Segun- cumprimentava a amiga Clara da Silva, de 23 anos. Ela aca-
do a previsão sombria da Organização Mundial da Saúde bara de desembarcar de um voo vindo de Luanda, capital de
(OMS), nos próximos dois meses o número de novas infec- Angola. Clara não passou por triagem nem ouviu nenhuma
ções poderá chegar a 10 mil por semana. A transmissão do menção ao vírus. “Nada, nem panfletos sobre uma doença
ebola em países desenvolvidos, como Estados Unidos (duas que pode matar de repente”, disse ela. Passageiros argenti-
enfermeiras foram infectadas ao cuidar de doentes vindos nos, americanos e brasileiros relataram a mesma situação.
da África) e Espanha, revela que essa é uma emergência glo- Se um caso suspeito for identificado dentro do avião, ele de-
bal. Para surpresa dos brasileiros, acostumados às fragilida- ve pousar em local reservado, e seus passageiros isolados.
des do SUS, a equipe paranaense soube agir de acordo com O suspeito de portar a doença deve ser transportado para
o plano de contingência estabelecido pelo Ministério da Sa- hospital de referência (como o Hospital Emílio Ribas, na ca-
úde. A reação rápida foi um bom indício. Em se tratando de pital paulista, ou o Instituto Evandro Chagas, na capital flu-
ebola, uma praga que, no atual surto africano, mata um em minense). Uma rigorosa esterilização tem de ser feita imedi-
cada dois infectados, até mesmo aquilo que parece cuidado atamente. Funcionou numa simulação. Na vida real, a coisa
excessivo pode ser insuficiente. “Sempre é melhor agir em pode ser mais complicada. Se um passageiro com os sinto-
excesso que não agir”, diz o cientista Peter Piot, um dos des- mas típicos da doença chegar ao aeroporto de Guarulhos e
cobridores do vírus, em 1976. O sucesso na condução do tiver a boa vontade de relatar seu caso no posto de atendi-
primeiro caso suspeito não significa que o Brasil esteja blin- mento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvi-
dado. Nenhuma nação está. Desde que o mundo se tornou sa), será avisado de que deveria procurar um posto de aten-
pequeno, graças à intensa movimentação de viajantes entre dimento da GRU Airport, administradora do aeroporto. Se
os continentes, a disseminação de vírus é apenas questão de persistisse na determinação de relatar o caso, o estrangeiro
tempo. É provável que o ebola chegue ao país nas próximas ouviria um jogo de empurra numa língua desconhecida. A
semanas. É possível que os primeiros contaminados em solo GRU informa que a responsabilidade em casos como esse é
brasileiro sejam os profissionais de saúde escalados para a- da Anvisa. O Ministério da Saúde afirma que a equipe da
tender doentes vindos do exterior. Ainda assim, infectolo- Anvisa já está apta a atender a casos de ebola. O bate-cabeça
gistas, entidades médicas e governo afirmam que não há ra- também ocorre nas dezenas de portos marítimos. Desde ja-
zão para pânico. “Nenhum país do mundo está livre de rece- neiro, só Santos, no litoral paulista, recebeu 3400 embarca-
ber um viajante com o vírus”, diz Jarbas Barbosa, secretário ções e mais de 485 mil passageiros. A temporada de cruzei-
de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. “Mas o ris- ros começará em novembro, com previsão de alcançar 790
co de um surto de ebola no Ocidente é praticamente zero.” mil turistas. Até este mês, passaram pelo porto 23 embarca-
O Brasil tem condições de isolar os primeiros casos e evitar ções de carga da Guiné, 19 de Serra Leoa e nove da Libéria.
a expansão da ameaça – desde que tudo corra como o plane- Os trabalhadores brasileiros temem ser infectados por tripu-
jado em cinco importantes etapas. A análise de cada uma lantes estrangeiros, embora ebola só seja transmitido duran-
delas revela que há muito a aprimorar se o Brasil quiser evi- te o período em que o doente apresenta sintomas (leia a ilus-
tar o pior. Todos os dias, 250 mil pessoas circulam pelo Ae- tração na página 74). Os mais preocupados são os práticos,
roporto Internacional de Guarulhos, na Grande São Paulo. profissionais que manobram navios pelo cais do porto. “Só
São 106 mil passageiros, o maior número em toda a Améri- sabemos a origem do navio no momento em que ele chega,
ca Latina. É alta a probabilidade de que o primeiro caso che- e somos obrigados a entrar nele”, diz Everandy Cirino, pre-
gue ao Brasil por essa porta. Apesar disso, o assunto “ebola” sidente do Sindicato dos Empregados na Administração
parece não ter chegado ao aeroporto. O sistema de som avisa Portuária. “Tivemos reuniões técnicas com Anvisa e Minis-
que viajantes com febre, vômito, sangramentos, manchas no tério da Saúde, mas não recebemos nenhuma orientação
corpo, fraqueza e diarreia devem procurar atendimento mé- prática.” Não seria realista imaginar que todos os centros de
dico – mas a gravação não menciona a palavra ebola. Quar- atenção primária estejam preparados para cumprir o plano
ta-feira, dia 15, no aeroporto, não havia panfletos, cartazes definido pelo Ministério da Saúde. “Não podemos ser ufa-
ou funcionários que orientassem sobre a doença. Barbosa, nistas a ponto de dizer que o Brasil está plenamente prepara-
do Ministério da Saúde, diz que medidas como essa se mos- do para lidar com o ebola”, afirma o médico Érico Arruda,
traram pouco eficazes em outros surtos como a gripe H1N1. presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia. “É im-
A falta de investimento em informação pode cobrar um pre- provável que todas as unidades sejam capazes de identificar
ço alto. Pilotos, comissários e funcionários de companhias e lidar com um caso suspeito, como fez a equipe de Casca-
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vel.” Isso não quer dizer que o Brasil corra o risco de virar pas. Foi auxiliado por outros dois profissionais. “Fizemos o
a Libéria. Não corre. Ao contrário dos países atingidos na trabalho com tranquilidade”, diz ele. “Fomos treinados para
África, o sistema de saúde brasileiro tem uma boa capilari- trabalhar com outros vírus perigosos, como hantavírus, are-
dade. Até os menores municípios têm um programa de saú- navírus e muitos outros.” O resultado fica pronto em até seis
de da família ou unidades básicas de atendimento, por mais horas. Se der positivo, o material é lacrado e colocado num
que a qualidade dos serviços seja desigual. O que mais preo- freezer com cadeado. Depois, ele será enviado para o Centro
cupa os especialistas é a difícil relação entre os municípios, de Controle de Doenças (CDC), de Atlanta, nos EUA, pa-
Estados e União. Por mais que o Ministério da Saúde tenha ra ser cultivado e analisado. Nas Américas, apenas o CDC
estipulado um plano nacional para lidar com a chegada do dispõe de um laboratório nível 4, necessário para multipli-
ebola, o dinheiro para executar as ações sai dos orçamentos car o ebola em segurança. “Nunca cheguei perto do ebola,
municipais. “Muitas cidades não têm equipamentos para ga- nem mesmo num laboratório do exterior, mas não tenho me-
rantir a segurança dos profissionais nem foram informadas do”, diz o pesquisador Pedro Fernando da Costa Vasconce-
pelas secretarias estaduais sobre os fornecedores desse tipo los, diretor do Evandro Chagas. Segundo ele, o risco de o e-
de material”, diz Arruda. Há o questionamento também em bola se disseminar no país é mínimo. “Os brasileiros deveri-
relação à opção do governo federal por indicar apenas dois am estar mais preocupados com o vírus da dengue, uma do-
hospitais para o atendimento de pacientes com suspeita da ença endêmica que pode adquirir formas graves. Essa, sim,
doença – o Evandro Chagas, no Rio, e o Emílio Ribas, em afeta milhares de brasileiros por ano e provoca centenas de
São Paulo. Os infectologistas defendem a ampliação dessa mortes.” Se o ebola chegar, os serviços de saúde precisam
rede para unidades de referência em Minas Gerais, Goiás, estar preparados para aliviar seus sintomas. Foi o que faltou
Distrito Federal e cidades do Nordeste. Isso evitaria longos na África. Não havia médicos, leitos nem remédios básicos.
deslocamentos dos pacientes e rapidez no isolamento e iní- Muitos pacientes morreram de desidratação antes que o ebo-
cio do tratamento. Mapear quem teve contato com os doen- la provocasse problemas mais graves. Os infectados devem
tes é um item fundamental no controle de epidemias. O surto receber água, hidratação por soro, remédios, para evitar vô-
africano atingiu a proporção atual porque os países não ti- mitos, dores de cabeça e no corpo. É só o que se pode fazer.
nham estrutura para tomar essa e outras medidas básicas. Ainda não surgiu um tratamento específico para combater o
Para fazer o mapeamento como se deve, os Estados e muni- ebola. Um médico americano infectado na África recebeu a
cípios precisam contar com equipes adequadas de epidemi- droga experimental ZMapp, em testes iniciais nos Estados
ologistas. Eles entrevistam os pacientes e familiares, para i- Unidos, e se recuperou. Em outros pacientes, ela não foi efi-
dentificar todas as pessoas com quem o infectado possa ter caz. O governo brasileiro diz que entrou em contato com a
tido contato – antes mesmo da confirmação laboratorial da empresa que desenvolve essa droga, mas não chegou a com-
presença do vírus. Essas pessoas não precisam ficar em iso- prar nenhuma dose. “A empresa está em fase de experimen-
lamento, caso não tenham sintomas da doença. A tempera- tação e produz quantidades muito pequenas”, diz Barbosa,
tura de todas deve ser registrada diariamente durante 21 dias do Ministério da Saúde. O que há de mais promissor, no mo-
– o prazo máximo para o aparecimento de sinais da doença. mento, é a estratégia de fazer transfusão de sangue de paci-
Foi assim que a equipe de Cascavel chegou a 64 pessoas que entes que sobreviveram ao ebola. Isso pode levar à fabrica-
tiveram contato com Souleymane Bah. Quando esse traba- ção de soros, como acontece com doenças como a raiva e o
lho é bem feito, é improvável que o vírus se dissemine. O e- tétano. O doente receberia uma injeção de anticorpos. Se o
bola não é transmitido pelo ar nem por picada de mosquito. Brasil for capaz de repetir o exemplo de Cascavel quando
Só pega a doença quem tem contato com fluidos corporais surgirem os próximos casos suspeitos, essa chegada do ebo-
– lágrima, suor, vômito, sangue, sêmen – no período em que la poderá não ser um problema maior que a dengue. Cabe à
o paciente já manifesta sintomas. O maior risco de contami- população se informar, não aumentar o preconceito nem es-
nação ocorre no momento em que médicos e enfermeiros palhar o pânico.
retiram a roupa descartável. Foi assim que as enfermeiras
dos Estados Unidos e da Espanha se infectaram. Os profis- (Época, 29.10.2014)
sionais brasileiros ainda têm dúvidas sobre a melhor forma
de tirá-la. Não é fácil tirar duas luvas sobrepostas, um aven-
tal, dois macacões, capuz, bota, sobrebota, máscara, óculos
sem entrar em contato com qualquer mínimo fluido infecta-
do. As secretarias de Saúde precisam se empenhar para ensi-
nar os profissionais a trabalhar em segurança. Sempre que
surgir um caso suspeito de ebola no Brasil, a amostra de san-
gue do paciente será entregue ao Instituto Evandro Chagas,
em Belém. Lá, funciona o mais completo laboratório de vi-
rologia da América Latina. É o único no país que dispõe de
instalações com o nível de segurança 3, numa escala inter-
nacional de 0 a 4. A amostra do paciente de Cascavel che-
gou numa caixa-padrão da OMS. Ela é revestida de isopor
e contém três cápsulas de alumínio sobrepostas – uma me-
nor que a outra como nas bonecas russas. O sangue fica den-
tro da última, um cuidado para evitar qualquer vazamento
durante o transporte. Dentro de uma cabine de segurança, o
pesquisador Bruno Tardelli Nunes usou pipeta para transfe-
rir o conteúdo suspeito para outro frasco. Em seguida, o ma-
terial foi colocado numa máquina capaz de inativar o vírus.
O técnico leva cerca de dois minutos para cumprir essas eta-
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