Muito se tem discutido, desde a década de 90, sobre o esgotamento criativo
dos sambas-enredo. Estilo de samba fincado na memória afetiva de gerações de
brasileiros, em todos os cantos do país, sobretudo nos anos 70 e 80, tesouro opulento multiplicado em ricas e diversas jóias, o samba-enredo entrou num beco sem saída há mais de duas décadas: passou a repetir fórmulas melódicas, harmônicas e poéticas, transformando-as em clichês, ao mesmo tempo em que viu definhar sua expressividade e poder de comunicação. De lá pra cá, o samba-enredo até se movimentou, musicalmente, em duas principais direções: ou no caminho do samba "marcheado" – apoiado em divisão rítmica de colcheias, típica das marchinhas carnavalescas, acomodando-se a um andamento cada vez mais acelerado que passou a ser imposto pelas baterias desde o final dos anos 80; ou, então, na direção do samba “pagodeado”, com influência nítida do pagode romântico – suas melodias têm recorrência de notas longas (outra maneira de se negociar com o andamento acelerado) e de cadências harmônicas características das baladas pop de origem norte-americana, que, afinal, são a principal matriz melódica do pagode romântico. Mas estes dois caminhos, em vez de impulsionar o samba-enredo, acabaram por limitar ainda mais as possibilidades criativas do estilo, entrincheiradas em novos clichês. A prova apontada pelos críticos é sempre a mesma, e bastante eloquente: os sambas atuais não são lembrados espontaneamente pelo grande público. Ouvidos hoje somente em meios aos desfiles, passaram a ser descartados tão logo o Carnaval acaba. Entram por um ouvido, saem pelo outro. Apenas os sambas antigos – os “históricos” e “antológicos”, cujos registros partem dos anos 40, se adensam na década de 60 e encontram o apogeu nas duas décadas seguintes – são capazes de se fixar na memória de ouvintes de várias gerações. Há quem lembre, em defesa do samba-enredo, que o panorama musical mudou no Brasil, de lá pra cá. Os sambas não são mais divulgados maciçamente na TV e no rádio, a vendagem dos discos despencou, o Carnaval das escolas de samba cariocas já não tem o mesmo peso de outrora no panorama cultural brasileiro. Mas aí nos vemos diante do paradoxo de Tostines: o samba-enredo perdeu espaço porque deixou de ser tão bom? Ou deixou de ser tão bom porque perdeu espaço? Algumas pistas nos ajudam a entender melhor o quadro. Por exemplo: a partir da gravação dos LPs das escolas de samba cariocas, em 1968, e do televisionamento dos seus desfiles, no final da década de 70, o samba-enredo passou a render um bom dinheiro a seus compositores, por meio do pagamento de direitos autorais. Os sambas foram se transformando então numa espécie de galinha dos ovos de ouro do Carnaval. Disputar samba-enredo passou a ser um investimento, requerendo, além dos compositores de fato, a inclusão de outros nomes na parceria: o do camarada da gráfica, que imprimia os panfletos; o que custeava o transporte e a cervejinha da torcida, nas quadras; o que tinha boas relações com a diretoria da escola, ou com a bateria, ou com o carnavalesco, ou mesmo o que tinha trânsito entre outros círculos menos oficiais de poder. Foi aí, talvez, que começaram a esganar a galinha dos ovos de ouro, pra ver o que mais saía de dentro dela. Ainda nos anos 90, as escolas passaram a obrigar todos os compositores a assinar um documento abrindo mão de uma parte substancial de seus direitos autorais. Quem não assina o papel pode desistir, nem entra na disputa do samba. Já foi um susto danado na galinha, coitada. Depois vieram os carnavalescos, cada vez mais centralizadores e importantes na dinâmica da criação dos desfiles, em geral interferindo nos sambas, detalhando suas sinopses e exigindo que a partir delas as letras dos sambas contivessem certas expressões, às vezes até numa ordem determinada, correspondente à sucessão de alegorias elaboradas para a avenida. Sambas “brifados”, menos liberdade para os compositores. A galinha foi ficando mais desesperada. Como se não bastasse, as alas de compositores passaram a ser desvalorizadas como um todo. Antigamente, para serem admitidos na escola, os sambistas faziam testes, tinham seu talento posto à prova. Mas aí começaram a ver depois que tinha gente de fora entrando no ônibus e sentando logo na janela. A política interna das escolas, com vários interesses em jogo, passou a nortear a escolha dos sambas, quase sempre colocando para escanteio a prata da casa, ou favorecendo determinados grupos em detrimento dos demais. Pra não falar dos atuais “sambas de escritório”, em que parcerias consagradas emplacam sambas em diversas escolas ao mesmo tempo. A prática, ao pé da letra, é proibida. Não é permitido a um mesmo compositor concorrer em mais de uma escola por ano. Mas o pessoal dá um jeitinho, colocando uns laranjas aqui e ali. Todo mundo sabe, mas o santo do pessoal do escritório é forte. Assim a galinha não aguenta! De qualquer jeito, há gente por aí buscando alguma luz no fim do túnel. No início desta década, os andamentos vertiginosos das baterias começaram a retroceder discretamente. Primeiro, nas gravações do disco. Depois, nos desfiles. Os andamentos puderam hoje se aproximar novamente da rítmica do samba “de verdade”, com sua cadência natural e toda sua complexidade. Esse novo cenário já prepara terreno, esperamos, para um reflorescimento criativo do samba-enredo. Outra iniciativa alentadora, por parte de algumas escolas, tem sido a de encorajar sambistas “de meio de ano” a participarem da disputa do Carnaval. Estes sambistas, em geral, são compositores profissionais respeitados, que, justamente por não estarem habituados a compor dentro do estilo, trazem novas ideias, tendem a sair do lugar-comum e conseguem inclusive servir de estímulo a alguns dos compositores veteranos das escolas por onde passam. Vamos ver no que dá. As principais instâncias de poder nas escolas são representadas por gente muito conservadora, mas, ao mesmo tempo, muito pragmática. Se esse pessoal acordar para a questão, a fila vai andar. Os compositores voltarão a ser prestigiados e a liberdade de criação vai se impor naturalmente. Aposto. Sou um otimista incurável, afinal, e não desisto nunca.