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4/16/2017 FOCO - O QUE É A MISE EN SCÈNE?

, por Alexandre Astruc

 
O QUE É A MISE EN SCÈNE?
por Alexandre Astruc
 
Não  é  necessário  ter  feito  muitos  filmes  para  dar­se  conta  de  que  a  mise  en
scène  não  existe,  que  os  atores  se  dirigem  muito  bem  sozinhos,  que  qualquer
operador  de  câmera  sabe  onde  colocá­la  para  obter  um  enquadramento
conveniente,  que  o  acordo  entre  os  planos  faz­se  sozinho,  etc.  Mizoguchi  e
Ophüls devem ter compreendido isso muito rápido para passar logo ao que lhes
interessava.  Observar  as  pessoas  agirem?  Não  exatamente.  Apresentá­las,
observá­las tanto ao agir como ao mesmo tempo serem levadas à ação.
 
A  diferença  do  cinema  para  não  importa  o  quê,  incluso  o  romance,  é
primeiramente  a  impossibilidade  da  mentira;  em  segundo,  a  absoluta  certeza,
partilhada por espectador e autor, que na tela tudo se arranjará com o tempo. Se
o metteur en scène, o realizador, intervém em qualquer coisa na realização de
um  filme,  ele  intervém  nisto,  antes  de  tudo.  Ele  se  aventura  entre  estas  duas
evidências:  a  da  imagem  por  onde  ele  espreita  e  a  da  duração  pela  qual  ele  a
conclui.
 
Com isto, todavia, ele não destrói: a lenta erosão da verdade, que é a arte de um
Proust, ou a explosão desta como em Faulkner, pressupõe que o romance seja
escrito com palavras, fragmentos de eternidade. Se ele fixa o real, é à custa de
um  constante  esforço  de  decomposição,  destruição  de  formas,  marcha  de
encontro a um vocabulário cujos detritos serão levados pelo rio.
 
A  câmera  fixa  não  transcende,  observa:  é  preciso  ser  ingênuo  para  crer  que  o
uso  sistemático  de  lentes  18,5  mudará  o  rumo  das  coisas.  Em  troca  disso,  ela
não  mente.  O  que  é  surpreendido  pela  objetiva  é  o  movimento  dos  corpos,
imediatamente revelador, como tudo o que é físico, a dança, um olhar feminino,
uma alteração de ritmo nos passos, a beleza, a verdade etc.
 
O cinema supõe uma certa confiança feita ao mundo tal como ele é. Mesmo em
meio  à  feiúra,  mesmo  em  meio  à  miséria.  Ele  revela  esta  estranha  e  cruel
ternura,  a  doçura  terrível  de  Hiroshima,  onde,  após  a  evocação  de  tantos
horrores, são suficientes alguns travellings rápidos no coração de uma cidade e
uma voz de mulher para que muito naturalmente as linhas de uma paisagem se
organizem  segundo  uma  perspectiva  humana,  como  se  muito  naturalmente  e
por  qual  estranha  armadilha  tudo  aquilo  que  aqui  era  ansiado  fosse  um  dia
resolvido.
 
Um  dos  mais  belos  filmes  do  mundo  foi  realizado  por  um  velho  metteur  en
scène  japonês,  autor  de  quase  uma  centena  de  filmes,  feitos  sem  dúvida  com
nenhum  outro  desejo  senão  o  de  exercer  bem  o  seu  trabalho.  Após  cinco
minutos de projeção, Contos da Lua Vaga fazem compreender claramente o que
é  a  mise  en  scène  ­  ao  menos  para  alguns:  um  meio  de  prolongar  os  elãs  da
alma  nos  movimentos  dos  corpos.  Ela  é  um  canto,  um  ritmo,  uma  dança.
Mizoguchi sabe que aquilo que se exprime pela violência corporal é algo com o
qual  não  se  pode  mentir:  não  o  caráter,  não  a  compreensão  de  si,  mas  este
irresistível movimento adiante que prossegue sempre nos mesmos caminhos em
busca  da  plenitude  ­  ou  da  destruição.  Imagino  que  o  interesse  dele  ­  após
tantos  filmes  ­  já  não  está  nesse  espetáculo,  mas  no  fato  de  não  conseguir
desviar os olhos do mesmo: um autor escreve talvez para libertar­se; para um
cineasta, nunca é assim. Na ternura ou no horror do universo que ele explora,
ele  deverá  encontrar  aquilo  a  que  chama­se  uma  certa  complacência  ou  uma
cumplicidade, mas que para o artista não é nada senão a fonte da grandeza que
o obceca e que ele acredita poder revelar.
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4/16/2017 FOCO - O QUE É A MISE EN SCÈNE?, por Alexandre Astruc

 
O que acontece então à técnica? Ela deixa de ser uma forma de mostrar ­ ou de
esconder. Estilo não é uma maneira de deixar belo o que inicialmente é feio e
vice­versa:  nenhum  cineasta  no  mundo  fará  confiança  à  fotografia,  se  sua
ambição  não  for  concorrer  com  Yvon.  Ela  não  será  sequer  uma  tomada  de
consciência:  travellings  não  são  notas,  nem  referências  no  rodapé  da  página.
Parece­me  que  a  técnica  só  tem  por  função  fazer  nascer  esta  distância
misteriosa  entre  o  autor  e  seus  personagens,  cujas  oscilações  e  deambulações
pela  floresta  parecem  acompanhadas  muito  fielmente  pelos  movimentos  de
câmera.
 
Parecem: pois a força e a grandeza deste universo que reaparece de obras em
obras  advém  do  autor  dominar  constantemente  seus  elementos.  Ele  os  curva,
talvez não à sua visão própria ­ Mizoguchi é um cineasta, não um romancista ­,
mas a uma certa necessidade de assumir um recuo em relação a eles: sabedoria,
ou  vontade  de  sabedoria.  Assim  o  poema  trágico  adquire  sua  força  na
insensibilidade  ou  frieza  aparente  do  artista,  que  parece  instalado  em  sua
posição,  câmera  à  mão,  na  curva  do  rio,  vigiando  a  planície  de  onde
despontarão os atores do drama.
 
A  requintada  e  tocante  doçura  dos  Contos  da  Lua  Vaga  consiste,  como  em
alguns  westerns,  desta  lentidão  irremediável  que  carrega,  seja  através  da
violência  ou  da  cólera,  um  punhado  de  indivíduos  cujos  destinos  são
insignificantes.
 
No entanto, Mizoguchi bem sabe que importa pouco se esses filmes terminam
bem, não mais que o cuidado em saber se, entre ele e seus personagens, os laços
mais fortes serão de ternura ou de desprezo. Ele é como o voyeur que busca o
lampejo  de  prazer  no  rosto  daqueles  que  ele  espreita,  ainda  que  não  seja
somente  esse  o  lampejo  que  ele  procura:  talvez  seja  tão  simplesmente  a
confirmação reconfortante de algo que ele conhecia desde sempre, mas que ele
não pode se impedir de verificar.
 
Desse modo, eu imagino a mise en scène como um meio de dar a si mesmo o
espetáculo  ­  embora  todo  artista  saiba,  instintivamente,  que  o  que  é  visto
importa  menos,  nem  tanto  do  que  a  forma  como  é  visto,  mas  que  de  uma
necessidade de ver e mostrar.
 
Entre  a  tela  e  as  coisas  que  o  obcecam,  a  mão  do  pintor  adiciona  não  uma
maneira diferente de vê­las, mas uma nova dimensão. Um quadro de Manet não
é  a  “natureza  vista  por  um  temperamento”;  é  a  zona  de  passagem  de  uma
vontade estética, irredutível  tanto  aos  temas  quanto  às  motivações  secretas  do
artista, dos quais ela talvez se alimente, mas que jamais a esgotam. A mise en
scène não é necessariamente a vontade de conferir um sentido novo ao mundo,
mas, nove a cada dez vezes, ela se organiza em torno da secreta certeza de deter
uma parcela de verdade, primeiro sobre o homem, em seguida sobre a obra de
arte ­ indissoluvelmente ligados. Mizoguchi usa da violência, da ganância ou do
desejo sexual para colocar na tela tudo aquilo que ele não pode exprimir sem o
reencontro com esses elementos. Mas seria absurdo dizer que a violência seja o
tema  dos  seus  filmes:  se  ele  precisa  dela,  é  como  o  alcoólatra  precisa  beber:
para  alimentar  sua  embriaguez,  não  para  saciá­la.  Nele,  como  nos  outros
grandes  mestres  do  cinema,  o  que  importa  nunca  é  a  intriga,  a  forma  ou  o
efeito,  nem  ainda  a  possibilidade  de  colocar  personagens  loucos  em  situações
extremas:  Mizoguchi,  como  todos  os  orientais,  caçoa  da  psicologia  e  da
verossimilhança.  Ele  precisou  da  violência  como  uma  alavanca  para  adentrar
outro universo. Mas como na pintura barroca, a tempestade que cai sobre esses
rostos  conturbados  e  esses  corpos  desmantelados  anuncia  o  apaziguamento.
Além  do  desejo  e  da  violência,  o  mundo  do  diretor  japonês,  como  aquele  de
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Murnau, deixa recair o véu da “indiferença” pelo qual, num cinema que poderia
ser descrito como “exótico”, a metafísica faz uma súbita intrusão.
 
Há alguma diferença entre um realizador japonês suficientemente hábil no seu
trabalho para que lhe seja oferecido por Hollywood um contrato de sete anos, e
que mais assemelha­se a um engenheiro pago por mês, e um poeta “maldito” do
fim  do  século  XIX?  O  ópio  de  Baudelaire  e  o  trabalho  de  Mizoguchi  têm
definitivamente  a  mesma  função:  servem  de  pretexto,  como  a  asma  e  a
homossexualidade de Proust, como o amarelo que intoxicava Van Gogh ­ mas
quem  dirá  que  o  amarelo  foi  alguma  vez  o  tema  da  obra  de  Van  Gogh,  seu
propósito? O artista procura, lá onde ele pensa poder achá­las, as condições de
sua criação; o realizador, no estúdio, no bordel ou no museu...
 
O universo do artista não é aquele que o condiciona, mas aquele do qual ele tem
necessidade para criar e transformar­se perpetuamente em alguma coisa que o
obceca mais ainda do que aquilo pelo qual ele já é obcecado.
 
A obsessão do artista é a criação artística.
 
(Cahiers du Cinéma nº 100, outubro 1959, pp. 13­16. Traduzido por Matheus
Cartaxo)
 
 
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2012 – Foco
 

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