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ROGÉRIO FERREIRA MARQUEZAN
Universidade Federal do Tocantins
ODAIR GIRALDIN
Universidade Federal do Tocantins
Marquezan, R. F. | Giraldin, Odair
Odair Giraldin
E-mail: giraldin@uft.edu.br
que define “sistema cultural de saúde”, tados, bem como acarreta mudanças
como a dimensão simbólica que se tem nas percepções daqueles que partici-
sobre saúde, incluindo os conhecimen- pam dessa organização social acerca
tos, percepções e cognições utilizadas do campo da saúde, seja como pro-
para definir, classificar e explicar a do- fissionais, seja como usuários do sis-
ença; e “sistema social de saúde”, com- tema.
posto pelas instituições relacionadas à
Ferreira (2013) discute o que denomina
saúde, bem como os profissionais que
“políticas das tradições”, referindo-se
nelas atuam e suas relações de poder e
às legislações que se valem do termo
regras de funcionamento.
“tradicional” para validar seu objeto.
Langdon e Wilk (2010), chamam a Uma reflexão com a qual compartilha-
atenção para o fato de que o sistema mos é a de que essas políticas acabam
de atenção à saúde, enquanto modelo por criar novos campos à medida em
conceitual e analítico, não é uma reali- que interferem nas realidades sociais e
dade em si para os grupos sociais com na intenção do Estado de exercer seu
os quais se convive ou estuda. Porém, poder simbólico-administrativo através
esse modelo auxilia a sistematização e dos símbolos oficiais.
compreensão dos diversos elementos
experimentados de forma complexa e Sahlins (1987) nos traz à luz o conceito
subjetiva, seja em nossa sociedade ou de indigenização da modernidade ao refle-
em outras que não nos são familiares. tir sobre as transformações culturais
Assim, nos utilizamos desse construto ocorridas em grupos locais através da
analítico para lançar reflexões acer- articulação com os sistemas ocidentais
ca das interfaces entre o PMMPB e a modernos. No âmbito de nossa dis-
saúde indígena, a partir da experiência cussão esse processo se dá pela incor-
com o povo Akwe~/Xerente. poração dos discursos oficiais aos in-
teresses culturalmente situados. Desse
É necessário compreender que o que
modo, num jogo dialético, o valor insti-
aqui denominamos sistema social de
tuído oficialmente passa a ser interpre-
saúde configura-se, para além dos
tado por aqueles a quem se destinam,
arranjos institucionais, um campo
a favor dos seus interesses culturais,
de constante disputas de poder en-
criando novas representações acerca
volvendo de um lado o Estado e, de
do fenômeno saúde.
outro, os povos indígenas. Aqui nos
remetemos ao conceito de campo de Por outro lado, ao discutir a emergência
Bourdieu (1989), no sentido de agen- do tradicional como objeto das políti-
tes sociais com posições em disputa cas públicas, Ferreira (2013:38) advoga
em torno dos símbolos que garan- que a relação dialética entre Estado e
tem uma determinada representação seus subordinados, no caso, os indíge-
e uma narrativa empoderadora. Isso, nas, produz o que a autora denomina
obviamente, tem implicações para a híbridos culturais que representam novas
resultante desse sistema, ou seja, os normas que emergem dessa relação
serviços de saúde efetivamente pres- passando a constituir “[...]novos locais
de cultura, que tendem a fugir do con- políticas públicas de modo que se so-
trole administrativo governamental.” bressaia sua visão de mundo.
Nesse contexto, a despeito das estru- Temos então uma relação entre Esta-
turas de poder simbólico e administra- do-nação e seus subordinados que se
tivo do Estado que tenderiam a esta- dá no campo das políticas públicas, vi-
belecer uma ordem gnosiológica (Bourdieu sando de um lado estabelecer uma do-
1989:10), o que se verifica é um cená- minação e um homogeneização e, de
rio que possibilita o agenciamento dos outro, a prevalência dos interesses indi-
atores indígenas levando a novas for- viduais ou coletivos (nos casos das co-
mas de interação entre os sistemas. munidades indígenas e outros grupos
Assim, como assevera Ferreira não-hegemônicos) dos agentes sociais.
(2013:31), Um dado importante à essa altura é
“[...] é por meio dos discursos ofi- que todos os médicos atuantes em
ciais que o Estado exerce esse po- área indígena no período de realização
der criador e impõe sobre o mundo desse estudo eram de nacionalidade
os seus sistemas de classificação cubana. Isso se deve à própria dinâmi-
sob as aparências legítimas das ta- ca do Programa e também ao histórico
xonomias oficiais. Desse modo, o
desinteresse dos médicos brasileiros
mundo social em que os agentes in-
teragem é instituído pelas políticas em atuar junto a população indígena.
públicas.” Ressalta-se que durante a implementa-
ção do PMMPB todas as vagas foram
Se de um lado o Estado utiliza-se
ofertadas inicialmente à médicos bra-
do poder simbólico para produzir
sileiros; uma vez não preenchidas, fo-
elementos de homogeneização, por
ram oferecidas aos médicos brasileiros
outro lado há que se assegurar - ou
formados no exterior, para, somente
ao menos tentar assegurar - a ma-
então, recrutar profissionais de Cuba
nutenção desse status quo, o que se
através de um termo de cooperação
dá através do poder administrativo.
internacional firmado entre o governo
Nesse sentido o sistema administra-
brasileiro e a Organização Panameri-
tivo do estado capitalista, e dos esta-
cana de Saúde (OPAS). Findado esse
dos modernos em geral, tem que ser
processo, o resultado foi 100% das
interpretado em termos do controle
vagas referentes à atenção básica na
coordenado que ele consegue sobre
saúde indígena no estado do TO pre-
arenas territoriais delimitadas (Gid-
dens 1991:54). O desafio da manu- enchidas por profissionais intercam-
tenção do poder administrativo está bistas cooperados, denominação que
no fato de que o Estado é estrutu- recebem os profissionais de Cuba que
ralmente heterogêneo. Isso implica atuam no Brasil pelo PMMPB.
que os agentes sociais estabelecem Ao colocar sob sua égide profissionais
relações e alianças de acordo com de nacionalidade estrangeira e povos
interesses e motivações distintos, indígenas, o Estado estabelece um
buscando influenciar o campo das cenário complexo e heterogêneo, que
considerarmos os elementos criados Esse subsistema, por sua vez, está inte-
pelo PMMPB, constatamos que eles grado ao Sistema Único de Saúde que
surgem a partir de um processo histó- deve complementar os atendimentos à
rico (colonização, desenvolvimento do população indígena. Dessa forma, no
capitalismo colonial, homogeneização sentido mais amplo, a zona de contato
da visão biomédica, carência de pro- perpassa também a própria relação en-
fissionais de saúde) e culmina numa tre a política pública de atenção à saúde
resultante de traduções culturais em indígena e a visão tradicional. Delinea-
jogo no contato de indígenas e médi- do o contexto no qual se observa o de-
cos cubanos que atuam com o povo senrolar de uma nova realidade trazida
Xerente do Tocantins, no nosso nível pelo contato dos indígenas com os mé-
de análise.2 dicos do PMMPB, é possível descrever
Se considerarmos o cenário de prática e refletir sobre alguns elementos etno-
da atenção básica na saúde indígena gráficos dessa zona de contato.
podemos inicialmente imaginar a rela- A fala de uma gestora de nível estadu-
ção que ocorre na “ponta” do serviço al feita no Congresso Mais Médicos
como a zona de contato mais direta. para o Brasil no Tocantins mostrou-
Ou seja, as aldeias e unidades de saúde -se expressiva em relação ao signifi-
nas quais são realizados os atendimen- cado da presença dos profissionais
tos são onde, de fato, ocorrem os en- do PMMPB na saúde indígena. Preo-
contros entre os atores desse processo. cupada com o fim do período de per-
Porém esse cenário em particular está manência dos profissionais em área
intimamente ligado ao contexto que o após os três anos iniciais previstos,
precede. É preciso lembrar que o pro- ela indaga aos profissionais como
fissional que atua na saúde indígena eles haviam conseguido melhorar os
está ligado à um subsistema de atenção índices de mortalidade infantil3. A
diferenciada com características pró- fala nos revela um distanciamento
prias que interferem e determinam, em na relação entre quem gere e quem
parte, o seu fazer. Toda a organização cuida, ou seja, apesar de demonstrar
logística, administrativa e financeira interesse em compreender a atuação,
para a execução das ações da atenção falta a vivência na realidade do cená-
básica está vinculada aos Distritos Sa- rio de prática. Aqui entende-se um
nitários Especiais Indígenas (DSEI), processo de mudança significativo
que são responsáveis por articular não nas relações de poder. Uma relação
somente a execução, como a formação onde o gestor passa de “determinan-
dos profissionais envolvidos. Assim, te” para “determinado” uma vez que
por exemplo, para chegar à aldeia o mé- o profissional médico está empode-
dico depende do transporte agendado rado pelo seu fazer. E ainda que os
pelo DSEI. Seu tempo de permanência indígenas não estejam diretamente
nas aldeias é determinado pela organi- presentes nesse contexto a relação de
zação logística de transporte o que às poder foi modificada através do con-
vezes constitui um fator limitante. tato entre médicos e indígenas.
Nos relatos obtidos em campo uma Por outro lado, esse processo de objeti-
reivindicação frequente é de maior vação não ocorre de maneira passiva, o
acesso à medicação, já que ela é vista que se faz notar pela posição do pai no
como eficaz no combate aos sintomas relato acima, que ao se perceber “mal
do adoecimento, segundo a maioria atendido” passa a agir de maneira di-
dos Akwe~/Xerente. A partir de um ferente, reivindicando um “bom aten-
relato de um pai Xerente, cujo filho re- dimento”.
cém-nascido precisara passar por uma Da mesma forma, em conversa com
intervenção cirúrgica, o que acarretou um Xerente na aldeia, ao relatar sobre
a necessidade de um longo período de seu tratamento para uma hérnia com
internação, ouvimos o seguinte relato: indicação cirúrgica, reclamava que os
“no dia que eu cheguei lá tudo que eles médicos (ressalta-se que esse relato não
falavam eu concordava, depois eu fui se refere aos profissionais do PMM-
aprendendo, entendendo melhor e eu PB, mas do atendimento recebido no
vi que quando era alguma coisa errada hospital) diziam que ele precisava ser
eu tinha que falar.” Indagado sobre que operado, mas que para isso precisava
tipo de coisa errada, ele afirma: “ah... tomar os remédios para controle de
tipo o remédio já ia logo pra ele, não pressão alta. Porém, ele desejava que os
passava por mim antes. Tinha que bri- médicos receitassem um remédio que
gar pra ser bem atendido”. solucionasse o problema da hérnia sem
O bom atendimento é atribuído prin- a necessidade de intervenção cirúrgica.
cipalmente ao fornecimento adequa- Mesmo compreendendo a relação en-
do de medicamentos, já que os nexos tre a medicação como uma etapa inter-
causais das doenças os médicos nem mediária (controle da pressão arterial)
sempre alcançam, por seu desconhe- para a cura (cirurgia), ele não desejava
cimento dos seres e a diplomacia cós- ser submetido à cirurgia. Interpreta-
mica de que participam os Xerente. mos sua posição devido à perspectiva
Nesse contexto, a medicação passa a de agenciamento da doença compre-
constituir ao mesmo tempo uma re- endida como uma subjetivação atu-
presentação de acesso ao serviço de ando sobre seu corpo. O processo da
saúde, mas também a emergência de cura, portanto, passaria por uma ação
uma relação assimétrica entre aqueles intersubjetiva para a retirada do agente
que fornecem o medicamento, e os que causador da doença. Nessa perspecti-
necessitam dele. Tal compreensão vai va, o remédio poderia ser o meio pelo
ao encontro do que descreve Ferreira qual se retiraria o agente causador da
(2013:43) ao apontar que “a expansão doença, como faria um pajé Xerente.
da biomedicina afeta a relação com os Esse relato sugere que a comunicação
outros modelos de atenção vigentes, entre os atores foi prejudicada diante
subalternizando-os”. Para a autora, um das diferentes perspectivas da doença
dos efeitos dessa relação é que a medi- e da cura.
calização assume um caráter coloniza- Os relatos a seguir foram extraídos do
dor de corpos e de subjetividades. documentário “Mais Médicos no To-
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