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Cultura

Revista de História e Teoria das Ideias


Vol. 23 | 2006
Ideia(s) de Tempo(s)

A (não) questão do tempo na tradição chinesa


The (non) question of time in Chinese tradition

Maria Trigoso

Publisher
Centro de História da Cultura

Electronic version Printed version


URL: http://cultura.revues.org/1437 Date of publication: 1 janvier 2006
DOI: 10.4000/cultura.1437 Number of pages: 209-219
ISSN: 2183-2021 ISSN: 0870-4546

Electronic reference
Maria Trigoso, « A (não) questão do tempo na tradição chinesa », Cultura [Online], Vol. 23 | 2006, posto
online no dia 03 Abril 2014, consultado a 01 Outubro 2016. URL : http://cultura.revues.org/1437 ; DOI :
10.4000/cultura.1437

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© Centro de História da Cultura


A (não) questão do tempo na tradição chinesa 1

A (não) questão do tempo na tradição


chinesa
The (non) question of time in Chinese tradition

Maria Trigoso

«La Chine obscurcit», dites-vous. Et je réponds: «La


Chine obscurcit, mais il y a clarté à trouver;
cherchez-la»
PASCAL
1 Vários desafios se colocaram a esta reflexão sobre a concepção do tempo no pensamento
chinês. Desde logo, a questão básica de estudar uma cultura «outra», sobretudo quando se
trata, como é o caso, de uma tradição caracterizada, face ao ocidente, não tanto por
diferenças mas pela alteridade.1 Desde logo como contornar o uso de categorias de
pensamento pertencentes ao quadro teórico preestabelecido na e pela tradição própria?2
Mas, ao mesmo tempo, usando as categorias chinesas, como evitar a mera repetição do
discurso chinês para, aproveitando as condições de exterioridade (que são as minhas),
poder levantar questões não colocadas do e no interior da tradição nativa?3 Outro desafio
advém do entendimento (que é o meu) da prática sinológica como um investimento global
de base ao qual a China interessa mais como questão ou sentido do que pelo estudo de este
ou outro objecto de per si. Finalmente, o último, e talvez mais importante desafio
colocado a este estudo, advém da inexistência do seu próprio objecto de estudo. Com
efeito, e como notou Marcel Granet, logo no início do século XX, a filosofia chinesa não
elaborou um conceito (universal, homogéneo e abstracto) de tempo.4 O que, no entanto,
não impediu a China de o medir e de nele se situar, através do uso do calendário 5 e do
relógio.6
2 O que me proponho fazer, com este estudo é tentar ultrapassar os desafios referidos com
vista à (re)construção de uma visão do mundo que não assenta naquilo a que chamamos
«tempo». O que significa, por um lado, «libertar o pensamento chinês do conceito imposto
do tempo», na expressão de François Jullien (2001), e, ao mesmo tempo, libertar-me a

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mim própria de uma mundividência na qual o tempo aparece, simultaneamente como


uma «evidência» e como um «enigma».
3 O Ocidente pensou o tempo em três planos diferentes: físico, metafísico e linguístico. No
entanto, as definições feitas sob as diferentes perspectivas (física, filosófica e linguística)
não deixaram de se influenciar entre si no que será decerto o mais antigo, e menos
interrompido debate, no seio da tradição ocidental.
4 No plano da física, o tempo foi concebido a partir do movimento de um corpo entre dois
pontos – um ponto de partida e um ponto de chegada. Sob esta perspectiva, na qual o
tempo aparece ligado ao espaço (não se vê mas mede-se), o tempo é mentalmente
representado como uma trajectória entre um princípio e um fim. O tempo é um lapso de
tempo, isto é, um intervalo.
5 No plano metafísico o tempo confunde-se com a eternidade. Sem princípio nem fim, o
tempo é o fora do tempo. Sob esta perspectiva, o tempo equivale ao Ser. O tempo aparece
separado do espaço já que se pode ser no espaço mas não no tempo.7 Opondo o «temporal»
ao «atemporal», a tradição europeia, representada por St. Agostinho, no século IV, mas
também por Isaac Newton, no século XVII, com o seu conceito de 'tempo absoluto',
conferiu ao tempo uma dimensão transcendental que o aproxima de Deus. Jullien8 vê na
noção actual de tempo, das pós teorias da relatividade, um «resíduo não evacuado da
transcendência», já que, substituindo em parte os deuses, ele fornece uma explicação
global do mundo. Explicação diferente das anteriores apenas porque feita «no limite do
«natural» e no seio de um pensamento votado à racionalidade».
6 O tempo foi também pensado no plano da língua. Não se trata aqui de uma língua mais ou
menos universal, mas das línguas europeias, entre cujas características gramaticais se
destaca a flexão verbal assente na oposição entre diferentes modalidades de tempo
(passado, presente e futuro). Neste quadro linguístico, o falante é sempre obrigado a
escolher uma determinada modalidade temporal já que não se fazem frases gramaticais
com o verbo sem a marca de (um) tempo.
7 Foi da gramática que a filosofia recebeu o tempo, como uma evidência, e foi pela gramática
que o transformou em «enigma». St. Agostinho pergunta-se: «Qu’est-ce que le temps? Si
personne ne me le demande, je le sais; mais si on me le demande et que je veuille
l’expliquer, je ne le sais plus». E é também St. Agostinho que constrói uma noção de
tempo através da sintaxe do latim, fazendo corresponder os tempos aos diferentes casos
do lugar (unde, qua, quo): 'de onde vem' o futuro, 'por onde passa' o presente, 'para onde
vai' o passado.9 De fora fica, como acentua Jullien, o ubi , o lugar onde a ausência de
movimento permite a estabilidade necessária ao residir. É ainda no e pelo quadro
linguístico que o presente (des)aparece reduzido a um mero ponto: «De ce qui n’est pas
encore, à travers ce qui est sans étendue, il court vers ce qui n’est plus». 10
8 Por se ter desenvolvido num quadro linguístico que impõe a separação e a oposição de
tempos,11 o pensamento ocidental do tempo acabou por tornar inacessível o presente,
reduzido (no plano físico) a um ponto sem extensão (instante) ou condenado (no plano
metafísico) ao fora do tempo (eterno). É do enigma do tempo, reiteradamente elaborado
pela filosofia, que se sustenta o drama existencial, já que viver, implicando, por princípio,
a continuação, exige que o presente tenha espessura. Viver não é da ordem da travessia
entre dois extremos, o «viver em si» não é pensável do exterior, no sentido em que se fala
(de fora) de «viver uma vida» (Jullien 2001: 112-113).

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9 A situação ocidental, em relação ao tempo, não tem paralelo na China, em cuja tradição
filosófica, o tempo não se coloca como uma questão. A ideia de que o tempo não constitui
um enigma, e, como tal, não é responsável pelo drama existencial humano (se é que nesta
tradição se pode falar em drama existencial humano) pode ser comprovada de vários
modos entre os quais começo por destacar o facto de muita da produção artística, da
pintura à poesia, passando pela cerâmica, se caracterizar por um estilo impressionista que
Claude Larre (1975: 44) define como forma «de saborear o tempo».
10 Por outro lado, é importante pensar que se trata de uma tradição que não concebeu o
mundo como criação mas como processo auto-regulado, decorrente da interacção entre
dois princípios opostos e complementares (o yin e o yang); assim, o tempo não aparece
como intervalo entre um ponto de partida (a criação do mundo) e um ponto de chegada (o
fim do mundo).
11 Ao mesmo tempo, trata-se de um pensamento produzido por uma/numa língua na qual,
não havendo separação nem oposição entre tempos verbais, a abordagem da continuidade
dos processos é possível e, como tal, o presente é dotado de uma consistência e espessura,
eu diria de uma acessibilidade, sem paralelo na tradição ocidental. 12 Em chinês, não se
sendo forçado a escolher um tempo gramatical determinado, pode-se falar, não de fora do
tempo, mas de fora da oposição temporal.
12 Finalmente, o pensamento chinês não apreendeu a natureza como movimento, à
semelhança de Aristóteles, mas como interacção permanente entre energias opostas e
complementares (o yin e yang). Daí que ele se tenha virado para a ideia do processo
interessando-o sobretudo as formas como ele é auto-regulado, o mecanismo que lhe
permite nunca ser interrompido. Estas foram as questões fundadoras do pensamento
chinês.
13 Não separando o temporal do atemporal, a China não concebeu o eterno mas o constante.
Tal como o eterno, a noção de chang também denota a permanência mas fá-lo de outra
forma já que não remete para o ser, isto é para o fora do tempo, mas para a viabilidade e
não interrupção dos processos. O constante, que se manifesta através do que muda, é da
ordem da capacidade e corresponde à virtude natural das próprias coisas. No mundo
chinês não encontramos qualquer separação entre a aparência e o que seria, por oposição
a esta, a sua essência, ou Ser, na qual se funda a metafísica. De resto, a questão do Ser, no
centro do debate filosófico ocidental, não é uma questão na filosofia chinesa. O que tem
levado muitos filósofos ocidentais a defender que a China clássica não tem filosofia. Sem
entrar nesse debate,13 vale no entanto a pena referir, a este respeito, que em chinês
clássico, a língua (escrita) na qual se desenvolve o pensamento chinês até ao início do
século XX, não existe o verbo «ser».
14 Mais do que a abordagem pela negativa (o que é a que a China não pensou), interessa ver
o que é que a China pensou (que o Ocidente não pensou).
15 No domínio daquilo a que chamamos «tempo», encontramos muito pouco. Numa
definição canónica, é-nos dito, no estilo paralelístico tão do agrado dos chineses, que se
chama zhou (tempo) «(aquilo que) vai (como) passado, (aquilo que) vem (como) presente; 14
(aquilo que) vem (como) presente é chamado zhou. O tempo aparece aqui concebido como
uma relação em curso. É na relação entre estes dois termos, simultaneamente nocionais e
verbais, opostos (virados um contra o outro) e complementares (virados um para o outro),
que se processa o seu curso, isto é, a passagem contínua de um para o outro.

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16 É interessante ver como tradutores ocidentais,15 ao porem a frase nas suas línguas, são
determinados pelo seu quadro teórico de origem. Harbsmeier, ao traduzir «The past, the
present and the future are called zhou», transforma os dois tempos (chineses) nos três
(ocidentais); alem disso, ele coloca-os em oposição mútua e não em passagem de um para
o outro. Needham, por seu lado, ao traduzir a mesma frase por «on appelle zhou tout le
temps qui c’est écoulé de l’antiquité jusqu’à nos jours», introduz, no curso do tempo, dois
pontos, um ponto de partida e outro de chegada, tal como na representação aristotélica
do tempo como movimento.16
A indissociabilidade entre o tempo e o espaço é outro aspecto fundamental da
representação de tempo na tradição chinesa. Disso é exemplo, na língua, a palavra yuzhou

( )formada por 'mundo enquanto extensão' e 'mundo


enquanto duração'. O «universo» constitui-se da relação permanente, da interpenetração,
entre estas duas dimensões (Wu: 1995).17
17 Esta associação explica, em grande medida, o entendimento do tempo como sendo dotado
de qualidade(s). Não sendo concebido em si próprio, nem em abstracto, nem desligado do
mundo físico, o tempo não é neutro, ele partilha as características do espaço. Ambos são
vistos como formas concretas, associadas ao mundo físico.18 A cada porção de tempo
(co)responde uma porção de espaço, a cada período um clima, a cada direcção, uma
estação. Diferentemente do tempo linear ocidental, o tempo chinês não aparece como
uma duração monótona, porque constituída pela sucessão de momentos qualitativamente
iguais, mas como um conjunto de diferentes eras, estações ou épocas. Cada um destes
períodos possui rubricas simbólicas e atributos próprios que lhes dão uma consistência
particular e os individualizam uns dos outros. Em resumo, os chineses conceberam «non
point l’espace ou le temps en soi, mais des 'sites' et des 'occasions'. 19

O chinês clássico tinha duas palavras para dizer o tempo: shi ( ), no sentido de
período qualitativo de tempo (a palavra denota tanto o momento-sazonal, ou a ocasião,

como a estação,20 em sentido forte, isto é, a época para fazer X e Y), e jiu ( ) ou
duração (sempre de algo e não em abstracto).

O caractere denota o tempo qualificado, isto é, dotado de qualidade(s) concreta(s)


e diferenciada(s) entre si, o tempo responsável pelo engendramento permanente de vida.
Para Larre (1975: 44), o tempo foi visto pela tradição chinesa como «un amas de souffles
actifs producteurs de la vie». Isso mesmo nos diz a constituição etimológica do próprio

caractere: o sol a fazer desabrochar as sementes enterradas na terra.

Na acepção de momento, significa momento sazonal, momento caracterizado por


um carácter, simultaneamente conjuntural (é histórico e particular de uma situação) – o
que permite a adaptação, e evolutivo (contém uma promessa de desenvolvimento) – o que
permite a previsão. É um momento para agir, o momento favorável ou ocasião propícia
para. Empregado verbalmente significa adaptar-se às circunstâncias, chegar ao bom

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momento.21 O momento não é visto, a partir da física, como contracção do movimento,


mas como ocasião, isto é, como conjuntura particular para agir. Além de conter em si uma
oportunidade (para a qual devemos estar disponíveis), o momento (re)presenta a
tendência da sua evolução interna, ou propensão.22 Assim sendo, ele permite-nos
simultaneamente a adaptação ao presente e a previsão do futuro.
A identificação entre «tempo» e «tempo oportuno para» aparece em várias obras

clássicas. No Clássico da Via e da Virtude ( Daodejing), é-nos dito que o

supremo bem, em termos de acção, é , isto é, o aproveitamento do tempo

oportuno.23 Nas Conversas Seleccionadas ( Lunyu), Confúcio é elogiado como

sendo , isto é, sabendo estar atento ao momento que se lhe oferece.24 É de resto

por esta qualidade que em Mêncio ( Mengzi) se valoriza Confúcio classificado


como o mais sábio de entre os sábios por saber estar atento ao tempo. 25 Legge, na sua
tradução da obra, faz o seguimento comentário sobre este ponto: «I have invented the

adjective 'timeous' to translate here, meaning that Confucius did at every time
what the circumstances of it required, possessing the qualities of all other sages, and
displaying them at the proper time and place».26
18 E é para a mesma ideia que a personagem Confúcio, do Lunyu, aponta ao descrever-se
como sendo uma pessoa sem «nada que deva fazer nem nada que não deva fazer». 27
Também neste caso o tradutor ocidental se sente na obrigação de precaver os leitores
contra a interpretação menos avisada: «Confucius’s openness to act according to
circumstances is to be understood as being always in subordination to right and
propriety».28

Na acepção de «estação»,29 denota, a par do tempo qualitativo, o tempo


quantitativo: as estações são, por definição, períodos de tempo que se sucedem uns aos
outros. São as estações que, através dos seus elementos próprios, asseguram o processo,
auto-regulado, do mundo. Assim se diz que a primavera contribui com a chuva, o verão
com o sol, o outono com o vento e o inverno com a neve. Numa civilização agrícola, como
era a chinesa, a estação determinava os trabalhos agrícolas e também o comportamento
individual e social. Nesse imaginário cultural, a estação não só constitui o princípio orde
nador do mundo, como «cria um mundo segundo uma ecologia particular, em evolução,
cujos modos de adaptação devem ser rigorosamente fixados pelo ritualista». 30
19 Não admira portanto que entre as regras da política chinesa se destaque o respeito pela
estação, de que o texto Yueling, ou Ordenações para o Mês (Li ji, ou Registo do Ritual), é
um exemplo acabado. O dirigente é o último responsável por que, na Primavera, não
sejam cortadas as árvores (nem partes do corpo dos condenados), por que só se recrutem
homens para a guerra fora da estação dos trabalhos agrícolas, etc. A razão não é apenas
de ordem económica (a boa gestão dos recursos físicos ou humanos) mas também da

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ordem política. Ao proclamar o calendário, o soberano manifesta e garante a adaptação


do mundo humano à ordem da natureza. É que entre ambos há uma total equivalência, a
(des)ordem de uma reflectindo-se na outra: «De même que si l’on respecte les saisons de
la nature, le monde naturel est conduit à prospérer, de même, si les commandements
politiques sont «de saison», le peuple «sera uni» et les gens de bien «seront soumis». 31
20 É pelas estações que se manifesta a coerência do processo do mundo, que, por ser auto-
regulado, nunca se esgota.32
Interessa ressaltar que foi por nunca se ter cortado a filiação do momento com a estação (de
resto atestado pelo facto das duas noções serem representados pelo mesmo caractere

) que o momento é sempre um momento para, uma oportunidade. E que, como


tal, ele pode ser descrito como relevando de uma qualidade própria e circunstancial que o
transforma em ocasião.

A segunda palavra por que o tempo é dito é a de jiu, que significa «muito tempo»

ou «duração de». O caractere é por vezes descrito como uma pessoa ( ) cujo
movimento, a andar, é travado. Jiu é descrito como um crescimento sem princípio nem
fim: «O que cresce mas sem raízes ou ramos».33 Tal como aconteceu com a noção de

shi, também da noção de jiu não foi abstraído um conceito de tempo


homogéneo e abstracto, simultaneamente quadro do viver e agente (do seu progresso ou
destruição), já que ela nunca funcionou como entidade própria no sentido de ser vista
como independente das durações individuais e específicas.
21 Ser-se sazonal, enquanto fenómeno trans-individual e infra-subjectivo, vai ao arrepio das
escolhas linguísticas e culturais da tradição ocidental cujo pensamento é elaborado
através de línguas dominadas pela noção de um Eu-sujeito.34 A sua concepção, psicológica,
do ser humano como sujeito dotado de iniciativa também não vai a favor da experiência
do ser «da estação». O próprio processo da modernidade, com a emergência do mundo
pós industrial e urbano, contribui para o apagamento das próprias estações na sua
pretensão de dominar a natureza. Ainda que, mesmo os habitantes das cidades não
deixem de responder ao tempo que faz, quando, por exemplo, na chegada da primavera,
começam a encher as esplanadas. A diferença, entre uma cultura e a outra, está no facto
de uma ter teorizado «isso» e a outra não. Jullien35 pergunta-se, a este respeito, se foi
porque «la notion nous en manque, que cette invitation momentanée du monde, nous ne
l’analysons pas – et même nous ne la percevons pas?»
22 Apesar de, em chinês, haver uma palavra para o tempo que faz e outra para o tempo que
passa (à semelhança do inglês e diferentemente do português), a China não separou o
curso da duração, isto é a sucessão infinita dos dias, meses e anos, do estado da atmosfera
num determinado momento, ao qual reconheceu a capacidade de influenciar a vida
humana. A vida (ao contrário da existência concebida no plano da generalidade, da
essência e de um ponto de vista metafísico) relevando tanto da variação como da
sucessão.36
23 Em vez de teorizar o tempo que passa, a China teorizou a variação subjacente ao tempo
que faz (a partir da noção de estação como fundo de imanência de onde surge a vida.

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Opção explicável pelo facto do primeiro (o tempo como qualidade), ser inconstante, e o
segundo (o tempo como quantidade) se caracterizar por uma regularidade mais
susceptível de ser teorizada.37 No quadro da estação é possível descrever o processo do
mundo como um curso, não regular mas regulado, que se renova sem ter de se repetir; já
que a estação «intègre globalement, par sa découpe, la variabilité inexpugnable, voire
imprévisible, du «temps qu’il fait» dans la logique (par alternance) permettant la
continuité du «temps qui passe» (Jullien 2001: 65-66).
Foi através do conceito de processo que a China explicou a transição permanente entre
dois pólos na base da qual funciona o devir processivo. O funcionamento do devir
processivo foi pensado através de duas categorias correlativas: a modificação-

transformação ( bianhua) e a modificação-continuação (


biantong). Correlativas porque, além de se oporem entre si, cada uma delas assegura a
continuidade da outra: a continuação desenvolve e manifesta a transformação iniciada; a
transformação restaura a continuação quando ela está em risco de se esgotar, por excesso
de desenvolvimento. «La «modification» (bian) a lieu, en effet, quand l’un devient 1’autre
et que change de facteur dominant, du yin au yang, du yang au yin; tandis que la
«continuation» (tong) a lieu quand l’un ou l’autre facteur apparu va se confortant et se
déploie, le yin venant renforcer le yin, le yang venant renforcer le yang».38
24 O curso do ano, representado pelo binómio Outono-Primavera, ilustra bem o
funcionamento das categorias do devir processivo: o frio (Inverno) transforma-se em calor
(Primavera), tal como o calor (Verão) se transforma em frio (Outono); o Grande Frio
(Inverno) desenvolve e manifesta o Pequeno Frio (Outono) tal como o Grande Calor (Verão)
desenvolve e manifesta o Pequeno Frio (Primavera).
Também o curso do processo histórico é entendido através das categorias da inovação e
continuação. As «transformações silenciosas», que Wang Fuzhi diz operarem (n)o
processo histórico, enquanto tendências de longo prazo,39 funcionam como as
transformações operadas pelo sol, quando, activa mas invisivelmente, prepara a

Primavera no seio do Inverno. Como nos conta o caractere chun, primavera,

constituído pelo sol ( ) enterrado no solo, debaixo da vegetação; e confirma o facto


de a China celebrar o Festival da Primavera no Inverno.
25 A China pensou o «momento» sazonal e a «duração» mas não inventou uma espécie de
envelope contendo as duas noções, que seria o «tempo» homogéneo e abstracto. A
questão do tempo é portanto uma não-questão para esta tradição filosófica em cujo
centro se encontra a noção de «processo», isto é, de curso auto-regulado das coisas, do
mundo. Trata-se de uma questão, que, por não ter sido pensada na tradição europeia de
pensamento, pode ser vista como uma não-questão ocidental. Talvez a não questão
ocidental, se pensarmos que o processo, ao contrário do tempo, permite a transição, o
que, por sua vez, permite o viver no presente.
Talvez a prova principal de que a tradição chinesa não tinha o conceito de tempo esteja
no facto da China ter tido de inventar uma palavra para o traduzir quando encontrou o

pensamento europeu, no final do século XIX. O neologismo criado, shijian,

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que significa literalmente 'entre-momentos' , reproduz o que pareceu determinante na


concepção ocidental de tempo: a ideia de um lapso de tempo entre um ponto de partida e
um ponto de chegada. Isto é, o tempo como intervalo, com princípio e fim. Concepção que
vai claramente ao arrepio do pensamento chinês que releva de outras escolhas e induz
outro ponto de vista sobre o mundo e a vida. O filosofo contemporâneo Wu Kuang-Ming 40
dá conta disso mesmo ao acusar o pensamento europeu do tempo de privar o tempo
concreto «da carne e do sangue».
26 A perspectiva chinesa, que aqui se tentou reproduzir em linhas gerais, não é
completamente desconhecida no Ocidente. No entanto, na tensão histórica entre a
concepção do tempo que poderíamos designar por agrária e a concepção moderna, do
mundo industrial e urbano, foi a última que se tornou hegemónica. Quando Montaigne,
constatando a impossibilidade de viver «au présent» sugere que se viva «a propos»
(perspectiva qualitativa do tempo próxima da tradição chinesa), ele está a propor que se
descole a vida do tempo como forma para escapar ao drama existencial que ele, enquanto
"enigma" filosófico, organiza para nós.

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NOTES
1. É François Jullien (2003:3) quem faz esta distinção: «Tandis que la différence peut se percevoir
et s’interpréter à partir d'un cadre commun, ce qu’on appelle l’«altérité chinoise» ne tient pas au
fait qu'il y’a ait plus de différence que de similitudes (par rapport à «nous»), mais que fait
préalablement défaut tout cadre commun d’interprétation (à moins d’imposer ingénument le
sien comme norme)». A heterotopia que a China constitui para o Ocidente prende-se com o facto
da sua tradição se ter desenvolvido, pelo menos até ao século XVI, em separado da tradição
europeia; o que não acontece com as outras duas grandes civilizações mundiais, como a indiana,
com a qual partilhamos o indo-europeu, ou o islamismo que cresceu no mesmo caldo cultural.
2. Foi nesta perspectiva que não se entrou em linha de conta com as alternativas através das
quais costuma ser esquematizado o pensamento ocidental do tempo, nomeadamente em tempo
«cíclico» versus tempo «linear» ou tempo «contínuo» versus tempo «descontínuo». Apesar de ser
através delas que muito do actual discurso chinês sobre o tempo constrói a «diferença» entre as
duas tradições: a China teria uma concepção cíclica do tempo por oposição ao ocidente que dele
teria uma concepção linear. Trata-se de uma visão essencialista que ignora o facto da China ter
adoptado, no século XIX (aquando da sua ocidentalização) a visão linear do tempo; tal como
ignora o facto do Ocidente só no Iluminismo ter tido a ideia de substituir o círculo pela linha para
representar o tempo, uma nova concepção que só se torna dominante no século XIX.
3. Facilitando a identificação e a lógica de funcionamento de assumpções culturais mais ou menos
inconscientes ou pelas quais a cultura chinesa se desinteressou durante o seu processo evolutivo.
4. Esta constatação é difícil de aceitar, pela sinologia ocidental, já que onde a concepção (linear)
de tempo entra na China não como um conceito particular (formulado no seio de uma tradição
específica) e histórico (surgido no século XVII e apenas predominante no século XIX) mas como
conceito básico e universal de toda a cultura que se preze; e pela sinologia ocidental, dividida
entre o receio de que o pensamento chinês, sem o conceito de tempo, seja infantil (ou, noutra
formulação, que a China não tenha pensamento abstracto) e a perplexidade com a sua
reconhecida mestria na escrita da história necessariamente assente no princípio da
sincronicidade. Subjacente ao qual está a noção de simultaneidade tida como impossível sem a
concepção de um tempo universal. Harbsmeier, por exemplo, resolve a questão afirmando que os
mestres chineses reflectiram de forma implícita sobre o tempo guardando as conclusões para si
próprios (Jullien 2001).
5. O calendário chinês é baseado na combinação dos movimentos da lua e do sol. Como os meses
são equivalentes ao ciclo lunar (cerca de 29.5 dias) é preciso, para acertar com o calendário lunar,
inserir, de tempos a tempos, um mês extra. É por isso que de acordo com o calendário solar, o ano
novo chinês é uma festa móvel.
6. O relógio astronómico inventado na China muito antes da Europa ter descoberto o relógio
mecânico, no século XVII, é considerado por Joseph Needham (in Jullien 2001: 50) como o
primeiro protótipo de relógio no mundo.
7. Heidegger dirá, em contra-corrente, que «se é tempo».
8. Jullien 2001: 91-92.
9. Confissões, Livro onze.
10. Ibid.
11. Não parecendo disposta a sair do campo nocional da língua na sua interrogação sobre o
enigma do tempo: pense-se nas concepções do tempo do século XX, como as de Bergson (intuição
da duração) e Heidegger (que concebe o tempo a partir da nossa experiência de ser aqui). E, mais
recentemente, na polémica entre as teorias do tempo «tensed» e «tenseless». Para as primeiras,
também chamadas «presentistas» apenas o presente existe (em todos os sentidos da palavra) não

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havendo propriedades susceptíveis de serem usadas como exemplo do «ser futuro» ou «ser
passado». O grande debate desta filosofia analítica do tempo fazendo-se em torno de saber se o
tempo consiste apenas em relações de simultaneidade e sucessão (mais cedo ou mais tarde) ou se
também consiste em propriedades de futuro, presente ou passado.
12. Falta que está na base da questão do tempo enquanto questão do viver. Ver, a este respeito a
distinção feita por Jullien (2001) entre o «viver em si» e o «viver uma vida».
13. Ver a este respeito DeFoort 2001.

14. Huainanzi: (wang gu lai, jin wei zhi


zhou).
15. Não se trata de quaisquer tradutores mas de sinólogos eruditos e experimentados.
16. Ibid.
17. Para Wu, a interpenetração do tempo e do espaço é a 'História'. Acentuando que o pensamen
to chinês nunca larga as coisas concretas (e com 'concreto' ele quer dizer a concrescência do
espaço e do tempo) ele mostra como o espaço é definido pelo tempo vivido (leva tempo a ir de
'aqui' para 'ali') e o tempo é definido pelo espaço experimentado (sem progressão de o 'isto' para
o 'aquilo' não haveria espaço.

18. O símbolo (telhado), presente nos dois caracteres, , assinala essa


concretude.
19. Jullien 2001: 35.
20. Daí que si shi, à letra, quatro shi, ou quatro tempos, signifique «quatro estações».
21. Larre 1975:46.
22. A noção de propensão, elaborada pela filosofia chinesa, está na base do seu pensamento
estratégico. Ver, a este respeito Jullien 1992.

23. A frase em chinês é , o que numa tradução literal, significa «(no)


movimentar-se, a excelência (é) ser-shi (Daodejingi Cap. 8).

24. Lunyu XVII.1 , frase na qual é um verbo


(estar atento ao tempo).

25. Mengzi VB1: .


26. Legge 1994.

27. Lunyu, XVIII.8: .


28. Ibid.

29. Si shi ( ) à letra, «quatro tempos», significa «as quatro estações».


30. Jullien 2003:41.
31. Xunzi, Si wang in Jullien 2001.
32. Jullien 2001: 63.
33. Ibid.
34. Ibid: 59.
35. Ibid: 60, nota de rodapé.

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36. Jullien 2001:61 nota de rodapé.


37. Ibid: 65.
38. Ibid: 83.
39. Wang Fuzhi in Ibid 50.
40. Ibid.

ABSTRACTS
A filosofia chinesa, tal como de resto a língua (em que ela é elaborada), sugerem que o Tempo,
desde sempre no centro do debate filosófico ocidental, não é uma questão colocada na e pela
tradição chinesa. Livre da categoria linguística da flexão verbal, que obriga a opor/separar os
tempos (presente, passado e futuro) entre si e a escolher, necessária e exclusivamente, uma
modalidade temporal, a língua chinesa presta-se melhor a dar conta do processo contínuo das
coisas. Não será, portanto, de admirar que a filosofia chinesa tenha pensado o viver no presente,
interessada como esteve, não no Ser ('ser' é, de resto, um verbo inexistente em chinês clássico)
mas no Processo. No pensamento do Devir Processivo, como lhe chama François Jullien, no qual o
tempo é entendido como 'momento(s) propicio(s)' , os domínios do objectivo e do subjectivo não
aparecem separados. Assim, a arte de viver assenta, antes do mais, na correlação entre as
categorias da 'oportunidade' (o que vem ao nosso encontro – o tempo como momento
qualitativo) e a 'disponibilidade' (a abertura que temos de ter para o acolher).

Chinese philosophy, as well as the Chinese language, suggests that Time, always in the centre of
the Western philosophical debate, is not a question raised by or in the Chinese tradition. Free
from the linguistic category of verbal flexion that obliges us to oppose/ separate amongst times
(present, past and future), and to necessarily choose one temporal modality, Chinese language is
abler to convey the continuous process of things. It is no wonder, then, that Chinese philosophy
has thoroughly thought about how to live in the present, interested as it was, not in the idea of
Being (there was no verb 'to be' in classical Chinese), but in the idea of the Process. In this way of
thought, time is conceived as seasonal moments, the subjective and objective domains are not
kept apart. On the contrary, the art of living is based on the correlation between the categories of
'opportunity' (what comes to us as qualitative time) and 'openness' (our humane capacity to
receive it).

INDEX
Keywords: China, time, space, language, calendar, sinology, cultural difference, heterotopy,
being, transformation, process, season, seasonal moment
Palavras-chave: tempo, espaço, língua, calendário, sinologia, diferença cultural, heterotopia,
transformação, processo, ser, estação, momento sazonal

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AUTHOR
MARIA TRIGOSO
Instituto de Estudos Orientais Universidade Católica Portuguesa
Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Universidade de Lisboa, 1983) e diplomada em
Língua Chinesa (Universidade Sun Yat-Sen, Cantão, 1996) fez o curso de mestrado em Linguística
Chinesa (Universidade de Macau, 1994) e obteve o grau de Mestre em Relações Interculturais
(Universidade Aberta, 2004) com unia tese sobre as práticas chinesas de nomeação pessoal.
Exerce actualmente funções docentes na Universidade Católica Portuguesa (Instituto de Estudos
Orientais). Colabora com diversas escolas e instituições, nomeadamente com a Fundação Oriente,
de quem foi bolseira na China e nos EUA e para quem tem organizado e leccionado cursos na área
da Sinologia.

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