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Maria Trigoso
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Centro de História da Cultura
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Maria Trigoso, « A (não) questão do tempo na tradição chinesa », Cultura [Online], Vol. 23 | 2006, posto
online no dia 03 Abril 2014, consultado a 01 Outubro 2016. URL : http://cultura.revues.org/1437 ; DOI :
10.4000/cultura.1437
Maria Trigoso
9 A situação ocidental, em relação ao tempo, não tem paralelo na China, em cuja tradição
filosófica, o tempo não se coloca como uma questão. A ideia de que o tempo não constitui
um enigma, e, como tal, não é responsável pelo drama existencial humano (se é que nesta
tradição se pode falar em drama existencial humano) pode ser comprovada de vários
modos entre os quais começo por destacar o facto de muita da produção artística, da
pintura à poesia, passando pela cerâmica, se caracterizar por um estilo impressionista que
Claude Larre (1975: 44) define como forma «de saborear o tempo».
10 Por outro lado, é importante pensar que se trata de uma tradição que não concebeu o
mundo como criação mas como processo auto-regulado, decorrente da interacção entre
dois princípios opostos e complementares (o yin e o yang); assim, o tempo não aparece
como intervalo entre um ponto de partida (a criação do mundo) e um ponto de chegada (o
fim do mundo).
11 Ao mesmo tempo, trata-se de um pensamento produzido por uma/numa língua na qual,
não havendo separação nem oposição entre tempos verbais, a abordagem da continuidade
dos processos é possível e, como tal, o presente é dotado de uma consistência e espessura,
eu diria de uma acessibilidade, sem paralelo na tradição ocidental. 12 Em chinês, não se
sendo forçado a escolher um tempo gramatical determinado, pode-se falar, não de fora do
tempo, mas de fora da oposição temporal.
12 Finalmente, o pensamento chinês não apreendeu a natureza como movimento, à
semelhança de Aristóteles, mas como interacção permanente entre energias opostas e
complementares (o yin e yang). Daí que ele se tenha virado para a ideia do processo
interessando-o sobretudo as formas como ele é auto-regulado, o mecanismo que lhe
permite nunca ser interrompido. Estas foram as questões fundadoras do pensamento
chinês.
13 Não separando o temporal do atemporal, a China não concebeu o eterno mas o constante.
Tal como o eterno, a noção de chang também denota a permanência mas fá-lo de outra
forma já que não remete para o ser, isto é para o fora do tempo, mas para a viabilidade e
não interrupção dos processos. O constante, que se manifesta através do que muda, é da
ordem da capacidade e corresponde à virtude natural das próprias coisas. No mundo
chinês não encontramos qualquer separação entre a aparência e o que seria, por oposição
a esta, a sua essência, ou Ser, na qual se funda a metafísica. De resto, a questão do Ser, no
centro do debate filosófico ocidental, não é uma questão na filosofia chinesa. O que tem
levado muitos filósofos ocidentais a defender que a China clássica não tem filosofia. Sem
entrar nesse debate,13 vale no entanto a pena referir, a este respeito, que em chinês
clássico, a língua (escrita) na qual se desenvolve o pensamento chinês até ao início do
século XX, não existe o verbo «ser».
14 Mais do que a abordagem pela negativa (o que é a que a China não pensou), interessa ver
o que é que a China pensou (que o Ocidente não pensou).
15 No domínio daquilo a que chamamos «tempo», encontramos muito pouco. Numa
definição canónica, é-nos dito, no estilo paralelístico tão do agrado dos chineses, que se
chama zhou (tempo) «(aquilo que) vai (como) passado, (aquilo que) vem (como) presente; 14
(aquilo que) vem (como) presente é chamado zhou. O tempo aparece aqui concebido como
uma relação em curso. É na relação entre estes dois termos, simultaneamente nocionais e
verbais, opostos (virados um contra o outro) e complementares (virados um para o outro),
que se processa o seu curso, isto é, a passagem contínua de um para o outro.
16 É interessante ver como tradutores ocidentais,15 ao porem a frase nas suas línguas, são
determinados pelo seu quadro teórico de origem. Harbsmeier, ao traduzir «The past, the
present and the future are called zhou», transforma os dois tempos (chineses) nos três
(ocidentais); alem disso, ele coloca-os em oposição mútua e não em passagem de um para
o outro. Needham, por seu lado, ao traduzir a mesma frase por «on appelle zhou tout le
temps qui c’est écoulé de l’antiquité jusqu’à nos jours», introduz, no curso do tempo, dois
pontos, um ponto de partida e outro de chegada, tal como na representação aristotélica
do tempo como movimento.16
A indissociabilidade entre o tempo e o espaço é outro aspecto fundamental da
representação de tempo na tradição chinesa. Disso é exemplo, na língua, a palavra yuzhou
O chinês clássico tinha duas palavras para dizer o tempo: shi ( ), no sentido de
período qualitativo de tempo (a palavra denota tanto o momento-sazonal, ou a ocasião,
como a estação,20 em sentido forte, isto é, a época para fazer X e Y), e jiu ( ) ou
duração (sempre de algo e não em abstracto).
sendo , isto é, sabendo estar atento ao momento que se lhe oferece.24 É de resto
adjective 'timeous' to translate here, meaning that Confucius did at every time
what the circumstances of it required, possessing the qualities of all other sages, and
displaying them at the proper time and place».26
18 E é para a mesma ideia que a personagem Confúcio, do Lunyu, aponta ao descrever-se
como sendo uma pessoa sem «nada que deva fazer nem nada que não deva fazer». 27
Também neste caso o tradutor ocidental se sente na obrigação de precaver os leitores
contra a interpretação menos avisada: «Confucius’s openness to act according to
circumstances is to be understood as being always in subordination to right and
propriety».28
A segunda palavra por que o tempo é dito é a de jiu, que significa «muito tempo»
ou «duração de». O caractere é por vezes descrito como uma pessoa ( ) cujo
movimento, a andar, é travado. Jiu é descrito como um crescimento sem princípio nem
fim: «O que cresce mas sem raízes ou ramos».33 Tal como aconteceu com a noção de
Opção explicável pelo facto do primeiro (o tempo como qualidade), ser inconstante, e o
segundo (o tempo como quantidade) se caracterizar por uma regularidade mais
susceptível de ser teorizada.37 No quadro da estação é possível descrever o processo do
mundo como um curso, não regular mas regulado, que se renova sem ter de se repetir; já
que a estação «intègre globalement, par sa découpe, la variabilité inexpugnable, voire
imprévisible, du «temps qu’il fait» dans la logique (par alternance) permettant la
continuité du «temps qui passe» (Jullien 2001: 65-66).
Foi através do conceito de processo que a China explicou a transição permanente entre
dois pólos na base da qual funciona o devir processivo. O funcionamento do devir
processivo foi pensado através de duas categorias correlativas: a modificação-
BIBLIOGRAPHY
CREEL, Herrlee G., Chinese Thought, From Confucius to Mao Tse-tung, Chicago, The University of
Chicago Press, 1953.
DEFOORT, Carine, «Is There Such a Thing as Chinese Philosophy? Arguments of an Implicit
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LEGGE, James, (trans.), The Chinese Classics (5 volumes), Taibei, SMC Publishing Inc., 1994.
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VAN-NORDEN, Bryan W, 'What should Western Philosophy learn from Chinese Philosophy?' in
IVANHOE, Philip J. (ed.) Chinese Language, Thought and Culture. Nivison and His Critics, Chicago and
La Salle. Open Court, 1996.
NOTES
1. É François Jullien (2003:3) quem faz esta distinção: «Tandis que la différence peut se percevoir
et s’interpréter à partir d'un cadre commun, ce qu’on appelle l’«altérité chinoise» ne tient pas au
fait qu'il y’a ait plus de différence que de similitudes (par rapport à «nous»), mais que fait
préalablement défaut tout cadre commun d’interprétation (à moins d’imposer ingénument le
sien comme norme)». A heterotopia que a China constitui para o Ocidente prende-se com o facto
da sua tradição se ter desenvolvido, pelo menos até ao século XVI, em separado da tradição
europeia; o que não acontece com as outras duas grandes civilizações mundiais, como a indiana,
com a qual partilhamos o indo-europeu, ou o islamismo que cresceu no mesmo caldo cultural.
2. Foi nesta perspectiva que não se entrou em linha de conta com as alternativas através das
quais costuma ser esquematizado o pensamento ocidental do tempo, nomeadamente em tempo
«cíclico» versus tempo «linear» ou tempo «contínuo» versus tempo «descontínuo». Apesar de ser
através delas que muito do actual discurso chinês sobre o tempo constrói a «diferença» entre as
duas tradições: a China teria uma concepção cíclica do tempo por oposição ao ocidente que dele
teria uma concepção linear. Trata-se de uma visão essencialista que ignora o facto da China ter
adoptado, no século XIX (aquando da sua ocidentalização) a visão linear do tempo; tal como
ignora o facto do Ocidente só no Iluminismo ter tido a ideia de substituir o círculo pela linha para
representar o tempo, uma nova concepção que só se torna dominante no século XIX.
3. Facilitando a identificação e a lógica de funcionamento de assumpções culturais mais ou menos
inconscientes ou pelas quais a cultura chinesa se desinteressou durante o seu processo evolutivo.
4. Esta constatação é difícil de aceitar, pela sinologia ocidental, já que onde a concepção (linear)
de tempo entra na China não como um conceito particular (formulado no seio de uma tradição
específica) e histórico (surgido no século XVII e apenas predominante no século XIX) mas como
conceito básico e universal de toda a cultura que se preze; e pela sinologia ocidental, dividida
entre o receio de que o pensamento chinês, sem o conceito de tempo, seja infantil (ou, noutra
formulação, que a China não tenha pensamento abstracto) e a perplexidade com a sua
reconhecida mestria na escrita da história necessariamente assente no princípio da
sincronicidade. Subjacente ao qual está a noção de simultaneidade tida como impossível sem a
concepção de um tempo universal. Harbsmeier, por exemplo, resolve a questão afirmando que os
mestres chineses reflectiram de forma implícita sobre o tempo guardando as conclusões para si
próprios (Jullien 2001).
5. O calendário chinês é baseado na combinação dos movimentos da lua e do sol. Como os meses
são equivalentes ao ciclo lunar (cerca de 29.5 dias) é preciso, para acertar com o calendário lunar,
inserir, de tempos a tempos, um mês extra. É por isso que de acordo com o calendário solar, o ano
novo chinês é uma festa móvel.
6. O relógio astronómico inventado na China muito antes da Europa ter descoberto o relógio
mecânico, no século XVII, é considerado por Joseph Needham (in Jullien 2001: 50) como o
primeiro protótipo de relógio no mundo.
7. Heidegger dirá, em contra-corrente, que «se é tempo».
8. Jullien 2001: 91-92.
9. Confissões, Livro onze.
10. Ibid.
11. Não parecendo disposta a sair do campo nocional da língua na sua interrogação sobre o
enigma do tempo: pense-se nas concepções do tempo do século XX, como as de Bergson (intuição
da duração) e Heidegger (que concebe o tempo a partir da nossa experiência de ser aqui). E, mais
recentemente, na polémica entre as teorias do tempo «tensed» e «tenseless». Para as primeiras,
também chamadas «presentistas» apenas o presente existe (em todos os sentidos da palavra) não
havendo propriedades susceptíveis de serem usadas como exemplo do «ser futuro» ou «ser
passado». O grande debate desta filosofia analítica do tempo fazendo-se em torno de saber se o
tempo consiste apenas em relações de simultaneidade e sucessão (mais cedo ou mais tarde) ou se
também consiste em propriedades de futuro, presente ou passado.
12. Falta que está na base da questão do tempo enquanto questão do viver. Ver, a este respeito a
distinção feita por Jullien (2001) entre o «viver em si» e o «viver uma vida».
13. Ver a este respeito DeFoort 2001.
ABSTRACTS
A filosofia chinesa, tal como de resto a língua (em que ela é elaborada), sugerem que o Tempo,
desde sempre no centro do debate filosófico ocidental, não é uma questão colocada na e pela
tradição chinesa. Livre da categoria linguística da flexão verbal, que obriga a opor/separar os
tempos (presente, passado e futuro) entre si e a escolher, necessária e exclusivamente, uma
modalidade temporal, a língua chinesa presta-se melhor a dar conta do processo contínuo das
coisas. Não será, portanto, de admirar que a filosofia chinesa tenha pensado o viver no presente,
interessada como esteve, não no Ser ('ser' é, de resto, um verbo inexistente em chinês clássico)
mas no Processo. No pensamento do Devir Processivo, como lhe chama François Jullien, no qual o
tempo é entendido como 'momento(s) propicio(s)' , os domínios do objectivo e do subjectivo não
aparecem separados. Assim, a arte de viver assenta, antes do mais, na correlação entre as
categorias da 'oportunidade' (o que vem ao nosso encontro – o tempo como momento
qualitativo) e a 'disponibilidade' (a abertura que temos de ter para o acolher).
Chinese philosophy, as well as the Chinese language, suggests that Time, always in the centre of
the Western philosophical debate, is not a question raised by or in the Chinese tradition. Free
from the linguistic category of verbal flexion that obliges us to oppose/ separate amongst times
(present, past and future), and to necessarily choose one temporal modality, Chinese language is
abler to convey the continuous process of things. It is no wonder, then, that Chinese philosophy
has thoroughly thought about how to live in the present, interested as it was, not in the idea of
Being (there was no verb 'to be' in classical Chinese), but in the idea of the Process. In this way of
thought, time is conceived as seasonal moments, the subjective and objective domains are not
kept apart. On the contrary, the art of living is based on the correlation between the categories of
'opportunity' (what comes to us as qualitative time) and 'openness' (our humane capacity to
receive it).
INDEX
Keywords: China, time, space, language, calendar, sinology, cultural difference, heterotopy,
being, transformation, process, season, seasonal moment
Palavras-chave: tempo, espaço, língua, calendário, sinologia, diferença cultural, heterotopia,
transformação, processo, ser, estação, momento sazonal
AUTHOR
MARIA TRIGOSO
Instituto de Estudos Orientais Universidade Católica Portuguesa
Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Universidade de Lisboa, 1983) e diplomada em
Língua Chinesa (Universidade Sun Yat-Sen, Cantão, 1996) fez o curso de mestrado em Linguística
Chinesa (Universidade de Macau, 1994) e obteve o grau de Mestre em Relações Interculturais
(Universidade Aberta, 2004) com unia tese sobre as práticas chinesas de nomeação pessoal.
Exerce actualmente funções docentes na Universidade Católica Portuguesa (Instituto de Estudos
Orientais). Colabora com diversas escolas e instituições, nomeadamente com a Fundação Oriente,
de quem foi bolseira na China e nos EUA e para quem tem organizado e leccionado cursos na área
da Sinologia.