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Resumo: Este artigo objetiva analisar o episódio Brazil do documentário seriado sobre turismo
Gaycation. A produção estadunidense, gravada no Rio de Janeiro durante o Carnaval e exibida
em março de 2016, poucos meses antes da realização das Olimpíadas na cidade, desconstrói a
ideia da metrópole como destino gay-friendly ao abordar as violências físicas e simbólicas às
quais as pessoas LGBTs são submetidas no cotidiano brasileiro. O episódio trabalha a todo
momento com a ideia de contrastes, mostrando tanto uma cidade que é um “paraíso urbano”
quanto suas contradições e a violência que coloca o país como lugar com o mais alto número de
homicídios de pessoas LGBT no mundo.
Palavras-chave: City branding; imaginários; turismo gay; consumo; megaeventos.
Abstract: This article aims to analyze the episode Brazil of the travel documentary TV series
Gaycation. This American production was recorded in Rio de Janeiro during Carnival and
exhibited in March 2016, a few months before the Summer Olympics take place in the city. It
deconstructs the idea of the metropolis as a gay-friendly destination in addressing the physical
and symbolic violence to which LGBTs people are submitted in daily life in Brazil. The episode
is based on the idea of contrasts, showing both a city that is an "urban paradise" as its
contradictions and the violence that puts the country as the place with the highest number of
homicides of LGBT people in the world.
Keywords: City branding; imaginaries; gay tourism; consumption; mega-events.
INTRODUÇÃO
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Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ. Mestre em Comunicação pela
UERJ. Relações Públicas na UFF. E-mail: aninhate@gmail.com.
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Algumas fontes pesquisadas: <https://www.villagevoice.com/2012/04/13/grindr-awards-for-gayest-
cities-beaches-and-marital-destinations/> (pesquisa realizada e divulgada pelo aplicativo Grindr, acesso em
17 jul. 2017); <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/11/rio-e-eleito-pela-segunda-vez-destino-
gay-mais-sexy-do-mundo.html> (acesso em 17 jul. 2017); <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/
noticia/2016-09/cidade-do-rio-e-eleita-melhor-destino-de-praia-LGBT-da-america-latina> (acesso em 17
jul. 2017); <http://www.travelchannel.com/interests/beaches/photos/best-gay-beach-destinations> (acesso
em 17 jul. 2017).
3
Fonte: <https://www.theguardian.com/travel/2011/jul/11/rio-de-janeiro-gay-tourism>. Acesso em 17 jul.
2017.
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em sua quase totalidade o Rio de Janeiro, abrindo uma pequena exceção à visita a São
Paulo para uma entrevista com uma atriz transexual), os sentidos sobre o consumo
turístico da cidade e suas relações com a cultura LGBT, sob a ótica de dois estrangeiros.
Para os produtores, somos um outro que deve ser desvelado, compreendido, para então,
ser consumido ou modificado, “ajustado para o consumo”.
Duas questões particularmente atraíram meu interesse para Gaycation: a
primeira, o recorte a um público-alvo em expansão para o mercado turístico. Essa questão
torna-se especialmente importante na medida em que todas as intervenções na cidade e
os investimentos em city branding são realizados com a justificativa de atrair mais divisas
para o país. A segunda, a proposta do canal Viceland, descrito em seu site como um “canal
de perspectivas pessoais. Estamos aqui pela música, comida, sexo, moda, tecnologia.
Todas as coisas que compõem a vida”. Lançado em 2016, o canal diz que sua missão é
“tentar entender o mundo em que vivemos por meio da produção de peças sobre coisas
as quais nos intrigam, ou nos confundem, ou sobre aquelas que achamos engraçadas” 8.
Esse posicionamento mercadológico da empresa parece refletir os termos de Maffesoli
(1998, p.193):
8
Fonte: https://www.vice.com/sv/article/exqqd4/were-launching-a-tv-channel-194. Acesso em 30 jul 2017.
9
Fonte: https://www.vice.com/en_us/article/xdmqmw/welcome-to-viceland-v23n1. Acesso em 30 jul.
2017.
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Considero, tal como Rose (2002, p. 343), que “os meios audiovisuais são um
amálgama complexo de sentidos, imagens, técnicas, composição de cenas, sequência de
cenas e muito mais”; e, tal como Aumont e Marie (2004, p.39), que “não existe um
método universal para analisar filmes” e que “a análise de um filme é interminável”.
Assim, busco realizar análises das narrativas de forma a desconstruí-las sob a luz da
perspectiva teórica, buscando identificar os “modos como imagens, figuras e discursos da
mídia funcionam dentro da cultura em geral” (KELLNER, 2001, p.77), sob a perspectiva do
consumo desta cidade-mercadoria cuja marca foi reconstruída por meio do city branding.
Desta forma, ainda de acordo com Aumont e Marie (2004), procuro realizar a análise do filme
como uma maneira de explicar de forma racionalizada os fenômenos observados nos filmes,
com vistas à produção do conhecimento e à interpretação.
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criar valor por meio dos referidos ativos, visando “construir uma percepção que evoque
certos benefícios, qualidades e emoções sobre o que oferece esse território” (GARCÍA;
GÓMEZ; MOLINA, 2013, p.112). Os megaeventos, neste processo, tornam-se meio e
fim para as mudanças “necessárias”, sob a lógica do city branding, em busca do
posicionamento “desejado” da cidade/país no cenário do consumo turístico mundial,
estratégia essa que é clara no Plano Aquarela10, da Embratur11.
Este processo, no entanto, não é exclusivo desta última década. O Rio de Janeiro
já passou por reforma semelhante no início do século XX, também para abrigar grandes
eventos – a Exposição Nacional de 1908 e Exposição Internacional de 1922. Na ocasião,
era necessário mudar a imagem de país colonial, projeto tão “bem-sucedido” que
transformou o Rio de Janeiro em cartão de visitas do país, condensação da ideia de
brasilidade, imagem-síntese da nação em toda sua potência e características, cidade que
une beleza natural e modernidade urbana. Desde então, “ser do Rio não dependeria da
naturalidade, mas de um estado de espírito e da adoção de seus modismos” (LESSA,
2005, p.13).
Alguns dos ativos intangíveis percebidos nesta nova busca de reconstrução da
marca-cidade remontam a esta época – e, segundo Amâncio (2000), podemos encontrar
referências até nas narrativas fundadoras, como a Carta de Caminha, tais como a ideia do
paraíso idílico, da sensualidade, do exótico, imagens estas que se projetam nas telas dos
espectadores em Gaycation, assim como nos mais diversos produtos audiovisuais
estrangeiros. Na série em questão, os apresentadores visitam o Rio durante o carnaval,
grande evento que compõe um dos imaginários mais cristalizados sobre a cidade nos
cenários nacional e internacional. Festividade, alegria, liberdade sexual são componentes
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INSTITUTO BRASILEIRO DE TURISMO (Brasil). Plano Aquarela 2020: marketing turístico
internacional. Brasília: Assessoria de Comunicação da Embratur, 2009. Disponível em: <
http://www.turismo.gov.br/export/sites/default/turismo/o_ministerio/publicacoes/downloads_publicacoes/
Plano_Aquarela_2020.pdf>. Acesso em 13 abr. 2015.
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Estas afirmações fazem parte da pesquisa desenvolvida em meu mestrado no PPGCOM/UERJ, sob
orientação do prof. Ricardo Ferreira Freitas, cujos resultados podem ser verificados em: GOTARDO, Ana
Teresa. Rio para gringo: a construção de sentidos sobre o carioca e a cidade para consumo turístico. 2016.
164 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Faculdade de Comunicação Social, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <http://www.ppgcom.uerj.br/wp-
content/uploads/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Ana-Gotardo.pdf>. Acesso em 22 jul. 2017.
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desse imaginário sobre esta festa que atrai milhares de turistas e bilhões em divisas todos
anos, sendo, conforme dito anteriormente, mais de 30% atribuídos ao público LGBT.
Gaycation inicia com paisagens clássicas do Rio: o Morro Dois Irmãos em luz
contra, que esconde o Vidigal; praia lotada; pessoas correndo, nadando no mar; homens
e mulheres com sungas e biquínis, exibindo seus corpos bronzeados e esculpidos,
enquanto Ellen Page narra: “A praia de Ipanema, no Rio, é a meca para os festeiros
bronzeados, musculosos, de sunga”. A apresentadora usa essas características como
forma de contrapor a cultura do Brasil à estrangeira quando se compara com os
brasileiros: a cor da pele, as roupas que vestem, o comportamento na praia. Enquanto
imagens de fácil reconhecimento são exibidas – desfile das escolas, escadaria Selarón,
praias e bundas femininas que rebolam – a narradora ainda afirma que o carnaval é “uma
das festas mais liberalmente sexuais do planeta”. Explica sua origem religiosa e afirma,
junto com Ian Daniel: “é por isso que estão todos aqui bebendo. Ostentando. Na praia.
Vivendo o sonho”. O uso contínuo das paisagens e de outras imagens que constituem um
repertório de imagens-clichê da cidade situa o telespectador no Rio de Janeiro e dá uma
sensação de “‘paisagem do ócio’, fornecida pela ideia de não exigência do trabalho, a
visão consumidora do deleite tropical, da generosidade da flora, da fauna e dos nativos,
[nas quais] projetam-se as fantasias idílicas europeias de várias gerações” (AMÂNCIO,
2000, p.29).
“Eu posso entender o que faz do Rio um dos destinos mais desejáveis do mundo
para os LGBTQs, principalmente durante o Carnaval. O carnaval toma conta de toda a
vastidão da cidade, mas o evento principal acontece no Sambódromo [...]. O carnaval
atrai a comunidade LGBTQ em bandos”. Ellen compartilha suas sensações: apesar de se
avaliar como ligeiramente desconsertada e citar a hiperssexualização, reconhece que há
uma atmosfera familiar no evento. O que mais impressiona a atriz é o fato de não serem
bailarinos profissionais, mas pessoas comuns que ensaiam o ano inteiro e fazem um belo
espetáculo. Enquanto isso, uma música eletrônica faz a trilha sonora do desfile,
substituindo a paisagem sonora local (o samba-enredo). Ellen segue até a concentração
de uma das escolas para entrevistar um coreógrafo, vê uma passista sambando e
experimenta um esplendor. Ao perguntar ao coreógrafo sobre a influência da cultura
LGBT na festa, ele diz que em sua escola isso é algo normal. Ela então refaz a pergunta,
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Segundo o autor, não se trata de uma “postura crítica dos excessos civilizatórios”
(idem, p.405), mas de uma forma “natural” de conduzir a vida, “sem as agonias
metafísicas ou as obsessões materiais que atormentam europeus e norte-americanos”.
(idem, p.405). E essas representações não são apenas reproduzidas pelo olhar estrangeiro,
mas também pelos brasileiros – vide os componentes da Marca Rio, citados
anteriormente.
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O site da campanha (www.marcarj.com.br) não está mais disponível para consulta (tentativa de acesso
em 26 de jul de 2017). Em pesquisas anteriores, nota-se que houve uma descontinuidade do programa após
a mudança de governo (fim das postagens no Facebook, por exemplo).
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O episódio encerra com mais imagens clássicas do Rio: o Cristo Redentor, praia,
favela, carnaval, contrastando com imagens do ódio a pessoas LGBT – um resumo do
que se propôs durante seus 44min. Em seu discurso final, Ellen Page diz: “como em tantos
aspectos da vida brasileira, os contrastes aqui são extremos. Mas é impossível não se
inspirar por pessoas que vivem tão livremente e em uma celebração tão alegre de quem
eles são, principalmente diante da violência e intimidação. Espero que o espírito do
Carnaval, o espírito do amor, da aceitação e da alegria, seja o que vença no final”.
Essa imagem construída da alegria, reiterada durante todo episódio é, no entanto,
um mito, segundo Castells:
Esse “mito”, embora não seja contestado (conforme vemos nas afirmações finais
do episódio), é contrastado durante todo episódio com dados, cenas e depoimentos
violentos e sobre violências. Embora Gaycation assimile e reforce muitos dos discursos
hegemônicos, estereotipados e mercadológicos sobre a Marca Rio, a série também
promove uma desconstrução de certas “verdades”, tal como poderá ser visto na próxima
seção deste artigo.
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agredir o outro na escola, ou seja, as crianças crescem com uma ideia pejorativa sobre a
homossexualidade.
Após a celebração do carnaval, Ellen narra a morte da passista transexual Piu da
Silva (torturada e baleada em uma favela perto de sua casa), considerada uma das mais
“proeminentes dançarinas do carnaval”, em contraste com a ideia de que a festa é um
local que aceita todos os tipos de pessoas. Ela ressalta que ninguém foi preso e que, apesar
da motivação incerta, a suspeita é de transfobia. Ela ressalta, com diversas imagens de
notícias publicadas em jornais, o crescente número de pessoas transexuais assassinadas
no Brasil, o país com o maior número de pessoas trans assassinadas no mundo. Conclui,
então, que o carnaval passa uma “sensação de segurança” por sua “extravagância sem
limites”, mas, conversando com algumas pessoas, ela percebe que “o mundo lá fora é
bem diferente disto”. Na continuação das tomadas noturnas, diversos personagens narram
as dificuldades de aceitação das pessoas LGBT no país, especialmente entre familiares.
Um deles diz: “veio um cara e me deu um tapa, me mandando parar, deixar de ser viado.
Eu não entendi, mas essa é a sociedade brasileira”. Um trovão anuncia a chuva que inicia,
em um simbolismo sobre a tristeza em uma terra de sol, pessoas fantasiadas que correm
da chuva como se fugissem da tristeza e da violência que acabam com a festa.
Ellen entrevista também sua amiga Ana Rezende, da banda Cansei de Ser Sexy
– um encontro que noturno que segue para a residência da baixista. Ela, uma mulher
lésbica, reconhece sua experiência “privilegiada”, que não reflete o que é ser gay no Brasil
para a maior parte das pessoas – o brasileiro médio que “não existe, num certo sentido”.
Ainda assim, ela diz que não anda de mãos dadas com sua namorada na rua, pois sabe o
quanto isso chama a atenção, não é normal para as pessoas verem. Mas ressalta seu
otimismo, apesar do crescente número de evangélicos e da ascensão da política de
extrema-direita. Ellen brinca com a situação: “ah, vocês precisam dessas loucuras de
direitos humanos? Caramba!”
De volta à praia, após evidenciarem a “autoestima sexual” dos brasileiros, novas
entrevistas sobre o que as pessoas pensam acerca de “ser gay” são exibidas. O primeiro
entrevistado diz que não acredita que as pessoas nasçam gays, mas sim, que seja uma
opção. A segunda dupla de entrevistadas comenta sobre a estranheza que causa ver um
casal gay se beijando. Duas opiniões contrárias à causa, mas “leves”, se compararmos à
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Luana morreu em 06 de maio de 2017, aos 59 anos. Fonte: <http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-
05-06/morre-a-travesti-luana-muniz-simbolo-da-lapa.html>. Acesso em 02 ago. 2017.
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garantir a ordem e a paz, mas que atualmente ele não é mais policial. El Grande relata
que, quando fazia a patrulha, só não gostava de gay: se visse um, atropelava, ou “dava
uma coça, fazia o que tinha que ser feito... são certas coisas que a gente não deve
pronunciar”. Ele diz, dentre outras coisas, que matar gays é “limpar o chiqueiro”. Ellen e
Ian, então, perguntam à produção se é seguro assumirem a homossexualidade a El
Grande. O bloco termina após a revelação. Os apresentadores demonstram visivelmente
seu medo. No bloco seguinte, o entrevistado diz que nenhum gay deve cruzar seu
caminho, ele quer distância de pessoas gays. Diz que tomou “ojeriza” depois que
descobriu que seu filho era gay. Ele ainda assume que há muitas pessoas como ele na
cidade. E finaliza dizendo que as coisas que foram ditas durante a entrevista não são
coisas para serem faladas em público. “Mas a verdade é pra ser dita. Eles precisam saber
que existem pessoas que se eles cruzarem o caminho, talvez seja uma ida sem volta”. El
Grande deixa o recinto após sua fala e Ian tenta entender o momento vivido: “Deixa você
sem palavras, de verdade [limpa uma lágrima de seu olho]. É difícil, porque ele parece
um velhinho frágil, parece que tem algum tipo de coração ali que... essa é a sensação:
podemos entrar aí e tirar um pouquinho de amor de você, por pessoas que são diferentes
de você? [...] Como você para isso?”. Paisagens da favela encerram o grande momento
de tensão e medo vivido pelos apresentadores e o episódio se encaminha para seu
encerramento.
Os contrastes constantes entre alegria, beleza, tristeza, medo constroem uma
narrativa de fácil consumo (os estereótipos sobre a cidade, tanto da ordem do belo quanto
da ordem do medo, facilitam seu reconhecimento e identificação por parte dos
espectadores), mas também colocam em discussão um tema de grande relevância para a
sociedade – a LGBTfobia. Não há como ficar indiferente à narrativa – ela se enquadra
perfeitamente no que diz Maffesoli (1998, p.193): “no quadro da megalópole, a imagem
televisual se inscreverá numa relação táctil, emocional e afetual”. E, por meio da emoção
e afeto, a busca do vínculo para uma possível compreensão: “só se compreende no
comum. [...] O requisito essencial da compreensão é, assim, o vínculo com a coisa que se
aborda, com o outro, com a pluralidade dos outros, com o mundo.” (SODRÉ, 2006, p.68,
grifos do autor). As narrativas buscam tocar o espectador, de forma a despertar
sentimentos e a empatia.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como pesquisadora, pouco me deparo com produções de TV que não sirvam aos
discursos hegemônicos e à lógica do consumo capitalista. No entanto, ao assistir
Gaycation, foi impossível deixar de lado a emoção e minha crença pessoal de que é
necessário desconstruir a ideia de que o Brasil é um país aberto às minorias. O episódio,
apesar de exibir os mais sólidos clichês da cidade, questiona importantes verdades
naturalizadas, especialmente aquelas que dizem respeito ao Brasil como um país
sexualmente livre e seu povo como amistoso e receptivo.
Em um momento que documentários internacionais de turismo tentam vender a
ideia de que as UPPs resolveram os maiores problemas de criminalidade e que a cidade é
segura para receber os Jogos Olímpicos com seus milhares de turistas, Gaycation não faz
questão nenhuma de “mascarar” a violência física e simbólica a que são submetidas as
pessoas LGBTs no país da “liberação sexual”. E fazem isso naquele que seria o maior
momento desta liberação: durante um outro grande evento que atrai milhares de turistas
todos os anos e possui grande repercussão internacional, o Carnaval.
O documentário contradiz, ainda, a ideia de que as UPPs resolveram os
problemas da violência na favela ao apresentar uma entrevista com um ex-policial que
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mata LGBTs quase como um “esporte”, mas também como ofício. Ainda assim, a favela
também é explorada como lugar a ser consumido, um lugar de festa, com clima de
aceitação e paz. Como a violência do tráfico não é exibida, as Unidades de Polícia
Pacificadora não chegam nem a ser mencionadas.
Entendo que o fato de o clímax do episódio, próximo de seu fim, ter explorado
um momento de extrema violência (tanto do entrevistado quanto do espaço em que é
realizada a entrevista, pelos imaginários de violência e medo a eles ligados), deixa mais
presente uma imagem negativa que positiva da cidade e do país, considerando o Rio como
tradicional representante da nação – e lembrando também que o episódio é intitulado
Brazil, apesar de se passar quase exclusivamente no Rio de Janeiro.
É necessário ressaltar, ainda, o interessante trabalho jornalístico do episódio, que
dá fala às mais diversas fontes: de Jean Willis a Bolsonaro, de uma musicista renome
internacional ao morador da favela, passando por pessoas comuns das mais diversas
orientações sexuais. Apesar disso, vemos o uso constante de certos clichês e estereótipos,
talvez no intuito de simplificar para garantir a compreensão, a organização e antecipação
da experiência, além da simpatia do público. Mas assume, no entanto, o risco de que essas
ideias pré-concebidas não estejam de acordo com a dinâmica experiência da vida
cotidiana, com a organização das formas como vemos o outro e contribuem para nosso
reconhecimento, em contraposição aos estereótipos que contribuem para a produção de
preconceitos.
Referências
AMANCIO, Tunico. O Brasil dos gringos: imagens no cinema. Niterói: Intertexto,
2000.
AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme. 3ª ed. Lisboa: Edições Texto
e Grafia, 2004.
FREIRE-FILHO, João. Era uma vez o “país da alegria”: mídia, estados de ânimo e
identidade nacional, Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 34, p. 401-420, set./dez. 2015.
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GAYCATION: Brazil. Temporada 01, episódio 02. Apresentado por Ellen Page e Ian
Daniel. Estados Unidos: Viceland, 2016. Disponível em: <https://pt-
br.facebook.com/purpurinado/videos/ 587150158118500/>. Acesso em 11 jul. 2017.
GOTARDO, Ana Teresa. Rio para gringo: a construção de sentidos sobre o carioca e a
cidade para consumo turístico. 2016. 164 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação),
Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2016.
SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis, RJ: Vozes,
2006.
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