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1. Contextualizando
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Epitáfio métrico, datado do século X ou XI, escrito numa pedra de mármore de Verona, onde se encontram os
restos mortais de Boécio (In: BOÉCIO. Escritos (Opuscula Sacra). São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 127-128,
tradução de Juvenal Savian Filho).
2
Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius.
3
Opuscula Sacra é o título latino de cinco pequenos textos de Boécio – com exceção do escrito De fide
catholica, todos os outros eram cartas –, produzidos aproximadamente entre os anos 512 e 523. Esta coletânea de
textos versa sobre questões teológicas, contudo, seus escritos não constituem necessariamente tratados
teológicos. Por essa razão, Juvenal Savian Filho resolveu traduzir o título desta obra para a língua portuguesa
simplesmente como Escritos, sem uso de adjetivação, pospondo entre parênteses o título latino da obra. São
cinco os escritos reunidos nos Opuscula Sacra, a saber, De fide catholica – FC (A fé católica); Contra Eutychen
et Nestorium – CEN (Contra Êutiques e Nestório); Quomodo substantiae in eo quod sint bonae sint cum non sint
substantialia bona, ou simplesmente, De hebdomadibus – DH (Como as substâncias, nisto que elas são, são
boas, embora não sejam bens substanciais ou Septenários); Vtrum Pater et Filius et Spiritus Sanctus de divinitate
Filho 4 destaca que “o grego era a língua ‘na qual’, isto é, ‘com a qual’, ele pensava,
permitindo-lhe exprimir, com mais exatidão do que lhe permitia o latim, aquilo que se
apresentava ao seu espírito” (nota 4, p. 228). Apesar de viver num período de crise, Boécio
encontrou condições favoráveis para realizar seus estudos. Ele pôde se beneficiar do acervo
bibliográfico de Roma, cujas bibliotecas mantinham numerosas obras da literatura antiga e
cristã. Além disso, Boécio obteve o beneplácito do então governante, o ostrogodo Teodorico 5
– o mesmo que, anos seguintes, o lançou na prisão.
De extraordinária capacidade intelectual, Boécio iniciou sua produção bibliográfica
com a publicação de um comentário à Isagoge, de Porfírio. Seu interesse pelos estudos da
cultura greco-romana se torna patente em seus tratados de aritmética, música, geometria e
astronomia, que resumem as ciências do quadrívio. Boécio se destacou ainda por suas
traduções, destacando-se o grande empreendimento, por ele concluído, de traduzir todo o
Organon aristotélico (cf. SAVIAN FILHO, p. 121).
Além de Aristóteles, interessou-se por Cícero, comentando seus Topica e vivendo
um período que seus comentadores designaram de ciceroniano, provavelmente entre os anos
518 e 520. Sem embargo, sua curiosidade intelectual não lhe permitia restringir-se apenas a
um pensador. Neste sentido, vale destacar o conhecimento que Boécio tinha do pensamento
neoplatônico, em especial, de Plotino e Proclo. Também conhecia os escritos dos padres
latinos e gregos. Como pontua Savian Filho:
Seu conhecimento dos antigos lhe permitirá, como ‘teólogo’, contribuir com
uma argumentação direta, fundamentalmente analítica e incapaz de furtar-se
à sequidão da forma silogística, na busca de aplicar sistematicamente a
lógica das categorias ao pensamento religioso, fazendo-o inaugurar uma
abordagem que encontra no aparato aristotélico um instrumental seguro para
fundamentar as expressões de fé (p. 29).
substantialiter praedicentur (Se Pai e Filho e Espírito Santo predicam-se substancialmente da divindade); De
sancta Trinitate – DT (A santa Trindade). Destes, apenas em Contra Êutiques e Nestório (CEN) Boécio aborda o
conceito de pessoa.
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Serviremo-nos de sua tradução neste trabalho, bem como de seus estudos introdutórios e notas (BOÉCIO, op.
cit.). Para citação dos estudos ou notas do tradutor, inseriremos sua referência diretamente no corpo do texto,
dando entrada pelo seu sobrenome SAVIAN FILHO, seguido da página. Citaremos igualmente no corpo do
trabalho as referências de Boécio, fazendo uso das siglas supracitadas, e em conformidade com a estruturação
em capítulos e em linhas da edição crítica de Claudio Moreschini, publicada no ano 2000 pela Bibliotheca
Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, seguida pela tradução brasileira. As informações biográficas
sobre Boécio, encontradas nesta seção, serão tomadas do referido estudo introdutório do tradutor (cf. p. 3-145).
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“(...) conquanto estivesse no horizonte o risco de abandono e dilapidação do patrimônio cultural greco-romano,
pode-se dizer que o rei dos ostrogodos permitiu um tempo de paz que beneficiou certo desenvolvimento da vida
cultural (493-526). Sua estratégia de dominação consistia em respeitar a ordem social do vencido, detendo
apenas o controle dos poderes civil e militar, e esforçava-se por apresentar-se como promotor das tradições
clássicas, na tentativa de reconciliar a sociedade antiga com seu governo” (Introdução, p. 27).
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O rico arcabouço conceptual e teórico de Boécio o permitiu traduzir com maestria o
vocabulário grego metafísico do ser para a língua latina. Assim procedendo, ajudou os de
língua latina a solucionarem grandes impasses e a evitarem maiores confusões. Nos Opuscula
Sacra, Boécio consagrou a tradução de termos como essentia, substantia, subsistantia,
persona, natura – especificamente em Contra Êutiques e Nestório –, bem como, esse e id
quod est – em Septenários (cf. SAVIAN FILHO, p. 11-12). Ao traduzir, ele busca não apenas
um correspondente semântico do termo grego para o latim, mas também conceituar o termo
em questão 6. É o que verificaremos com o conceito de pessoa, cuja definição não apenas,
como etimologicamente poderíamos esperar, põe um fim (de-finire) ao sentido do termo,
buscando antes compreendê-lo em sua inter-relação com outros conceitos e, assim,
preservando o rico potencial semântico que porta o termo persona. Portanto, paradoxalmente,
sua tradução define teoricamente o termo persona, mas sem enclausurá-lo, o que permitirá,
séculos depois, a Tomás de Aquino pormenorizá-lo e enriquecê-lo.
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“Chenu [La théologie au douzième siècle. Paris: Vrin, 1957, p. 142ss] ilustra a importância de Boécio dizendo
que, do mesmo modo como o século XII foi chamado de aetas ovidiana, também se pode qualificá-lo, não
menos justamente (...) como aetas boetiana, pois Boécio, ‘criador de vocabulário’, terá definido os termos
precisos para as discussões filosófico-teológicas (...) de maneira que os tradutores dos século XII, por exemplo,
adotaram, com consciência, sua terminologia (...) como é o caso, dentre outros, (...) de Burgúndio de Pisa,
respeitável tradutor de João Crisóstomo, [que] enuncia (...) como regra: traduzir tal como fazia Boécio, de verbo
ad verbum, ou seja, respeitando a estrutura do texto original e sua verdade (...) Chenu lembra que, por isso tudo,
até o ‘difícil Bacon’ considerou Boécio o tradutor modelo” (SAVIAN FILHO, p. 71-72). Tudo isso sem falar da
importância da obra de Boécio no pensamento do grande Tomás de Aquino. Por essa razão costumou-se chamá-
lo de último dos romanos e o primeiro dos filósofos escolásticos.
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Boécio se refere a um sínodo que participara em torno do ano 512. Nesta ocasião, foi apresentada uma carta
dirigida ao papa Símaco – amigo de Boécio – por um grupo de bispos orientais a favor de Calcedônia, que se
encontrava pressionado a aceitar o monofisismo por imposição do imperador Anastácio I. Os bispos se
perguntavam acerca da possibilidade de conciliar a expressão de Calcedônia, “em duas naturezas”, com a
defendida pelos eutiquianos, “a partir de duas naturezas”. Pretendiam ainda que o sínodo se pronunciasse sobre a
afirmação polêmica dos eutiquianos: ex duabus sed non in duabus – a partir de duas, mas não em duas
[naturezas]. (cf. KOTERSKI, Joseph W. Boethius and the theological origins of the concept of person.
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porque estavas impedido de vir até mim (...) mando por escrito o que tinha
para dizer pessoalmente. Lembras-te, certamente, de como foi dito, quando
se leu a carta no concílio, que os eutiquianos confessam a constituição de
Cristo “a partir de duas” naturezas, mas negam que ele consista “em duas”
naturezas, enquanto os católicos prestam fé às duas asserções, pois de acordo
com os seguidores da verdadeira fé, crê-se tanto que ele seja constituído a
partir de duas naturezas, como que ele consista em duas naturezas. (...)
Naquela ocasião, todos disseram, em alto e bom som, que a diferença era
clara e que não havia nenhuma obscuridade ou confusão ou motivo de
perplexidade no assunto, mas nem sequer uma pessoa houve, no meio do
tumulto, que tocasse, ao menos de leve, na questão (...) Meditava, então, do
meu lugar, comigo mesmo, toda as questões e não engolia o que escutava,
mas ruminava pela vigilância de uma constante ponderação. (...) [Por isso]
dirijo-me a ti, enviando-te este pequeno e modesto texto (...). [Nele,] refutar-
se-ão, primeiro, os erros de Nestório e Êutiques, contrários e opostos entre
si; depois, ajudando Deus, combinarei a mediania da fé cristã. E porque, na
verdade, em toda questão de heresias contrárias entre si, debate-se sobre
pessoas e naturezas, esses termos devem ser definidos, logo de saída, e
distinguidos pelas diferenças próprias (CEN, 1-55).
In: American Catholic Philosophical Quarterly, v. 78, n. 2, p. 203-224, 2004, p. 219; SAVIAN FILHO, p. 68-
70).
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Em grego “e.n du,o fu,sesin”. O texto continua: “sem mistura, sem mudança, sem divisão, sem separação, não
sendo de modo algum anulada a diferença das naturezas por causa da sua união, mas, pelo contrário,
salvaguardada a propriedade de cada uma das naturezas e concorrendo numa só pessoa e numa só hipóstase; não
dividido ou separado em duas pessoas, mas um único e o mesmo Filho, unigênito, Deus Verbo, o Senhor Jesus
Cristo” (DH 302).
9
Cf. BAUER, Johannes B.; STOCKMEIER, Peter. A luta em torno da fórmula de Calcedônia. In: AMON, Karl
et. al. História da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2006, p. 104.
4
União ou Henotikón. Com o Edito, Acácio punha em xeque as definições de Calcedônia ao
exigir apenas a observação do que se disse em Nicéia. Interessado em pôr fim ao conflito
cruento entre nestorianos e eutiquianos, o imperador de Constantinopla, Zenão, promulgou o
Henotikón em 482, dando origem ao que, na história da Igreja, se denomina cisma acaciano 10.
Tal é a razão da indignação de Boécio frente à afirmação de que não havia
necessidade de se esclarecer a questão proposta na carta do grupo dos bispos do Oriente pró-
Calcedônia. Boécio compreendia com clareza que todo aquele conflito se enraizava numa
confusão entre os conceitos de natureza e pessoa. Entre as extremidades das posições
monofisitas e duofisitas, Boécio via a necessidade de se afirmar uma “mediania da fé cristã”.
Para tanto, ele havia de definir os termos natureza e pessoa, pois a discordância em torno da
afirmação de uma ou duas naturezas em Cristo correspondia a uma comum confusão, da parte
de eutiquianos e nestorianos, entre os conceitos de natureza e pessoa como sendo
equivalentes 11.
10
Cf. BAUER, Johannes B.; STOCKMEIER, Peter, op. cit., p. 104-106; SAVIAN FILHO, p. 68-71; 118.
Apenas em 519 o papa Hormisdas reatará a comunhão com Constantinopla, em acordo com o imperador
ortodoxo Justino. “Por esse período, Boécio mantivera correspondência não apenas com ele, Justino, mas
também com outras autoridades do Oriente, tratando de questões teológicas e buscando esclarecer os aspectos da
cristologia que eram comumente motivo de confusão. Por essas cartas, no futuro, e por outras forjadas
enganosamente, Boécio será acusado, pelo Senado, de conspirar contra Teodorico, e por isso, como se sabe, será
preso e executado” (SAVIAN FILHO, p. 71).
11
“Para Boécio, tanto os Eutiquianos como os Nestorianos não podem elucidar a unidade da humanidade e da
divindade no Cristo porque confundem natureza e pessoa” (HOUSSET, Emmanuel. Les apories de la définition
de Boèce. In: _________. La vocation de la personne: l’histoire du concept de personne de sa naissance
augustinienne à sa redécouvert phénoménologique. Paris: PUF, 2007, p. 109).
5
ele distingue as matérias, para somente em seguida reuni-las em seu discurso. É assim que, no
primeiro capítulo, ele buscará definir natureza, partindo dos sentidos comuns empregados ao
termo até chegar à sua definição. Do mesmo modo, no segundo capítulo, ele trabalhará o
conceito de pessoa, deixando, contudo, a definição propriamente dita para o terceiro capítulo,
com o intuito de, nesta parte, desdobrar a definição alcançada, matizando-a ainda mais. Os
três primeiros capítulos da obra são de importância capital. Eles constituem o alicerce
conceptual que permitirá compreender não apenas a posição de Boécio diante da discussão
cristológica em questão, mas também a terminologia que a posteridade latina fará uso, ao
discutir o vocabulário metafísico do ser dos antigos, a exemplo dos conceitos de essentia,
substantia, subsistantia, persona e natura.
Por fim, do quarto ao oitavo capítulo, Boécio aplicará o resultado de sua investigação
terminológica dos capítulos iniciais à discussão da unidade da pessoa de Cristo em duas
naturezas. A partir de agora, o autor se passará de uma argumentação filosófico-conceptual a
outra de ordem teológico-especultiva, servindo-se em sua reflexão dos dados escriturísticos
do nascimento e da ressurreição de Jesus Cristo. Tudo isso em vista de responder a
nestorianos e eutiquianos.
Fiel à progressividade da argumentação, se no quarto capítulo Boécio se refere aos
erros de Nestório, no quinto, será a vez de Êutiques. Já no sexto capítulo, Boécio iniciará a
discussão acerca da procedência da humanidade de Jesus em razão do descrédito de que seu
corpo houvesse sido assumido de Maria. Como compreender que em Cristo permanecessem
perfeitas humanidade e divindade, tendo ele recebido seu corpo de Maria? O objetivo de
Boécio é aprofundar sua crítica à sentença de Êutiques. Do ponto de vista da lógica, ele
argumenta a insensatez de se pensar a possibilidade de uma natureza humana ser transformada
em divina e vice-versa, preocupação dos eutiquianos diante da formulação “em duas
naturezas”. Porém, o autor deixa a questão em aberto para desenvolvê-la nos capítulos
seguintes.
No sétimo capítulo, Boécio passa então a explicar “como, segundo a fé católica,
Cristo não apenas é constituído ‘a partir de’ duas naturezas, mas também consiste ‘em’ duas
naturezas” (585). É interessante observar que, desde a introdução, Boécio manifestou que a
possibilidade de conciliação entre as duas fórmulas, como gostaria de saber o grupo de bispos
do Oriente que escrevera a carta destinada ao sínodo, não era apenas possível, mas em
conformidade com a fé católica. Ele assim procede mesmo sabendo que a expressão “a partir
de duas naturezas” constitua uma anfibologia, “designando diversos, por uma dupla
6
significação: segundo uma significação, não permanecem as substâncias 12 a partir das quais
aquilo que foi unido pode se dizer composto; segundo a outra significação, aquilo se diz
composto a partir de ambas, de maneira que elas permanecem” (620-625). Por fim, no último
capítulo, Boécio se dirige àqueles que sustentam a tese de que o corpo de Jesus não foi
assumido de Maria, mas de outro elemento, entrando numa casuística curiosa, que mostra o
quanto ele estava inteirado da discussão cristológica da época, a exemplo do problema da
vontade de Cristo. Este dado nos permite afirmar a inclinação do último capítulo para o lado
de Nestório, dando maior equilíbrio ao conjunto do texto em razão da mediania da fé cristã
almejada pelo autor.
“Natureza” tem, também, outra significação, pela qual dizemos ser diferente
a natureza do ouro e da prata, querendo mostrar, com isso, a propriedade das
coisas. Essa outra significação de natureza definir-se-á deste modo:
“natureza é a diferença específica14 que informa cada coisa” (...) é segundo
essa última definição que tanto os católicos como Nestório afirmam haver
duas naturezas em Cristo (105-110).
13
Física, 192b-193a; Metafísica 1014b-1015a.
14
“ ‘Específico’ é a tradução de Boécio para o termo aristotélico eivdopoio,j (de ei=doj, forma, e poio,j, que não
apenas remete ao verbo poie,w, ‘fazer’, ‘produzir’, mas também se identifica com o adjetivo interrogativo poio,j, -
a,, -o,n, ‘qual, de qual natureza, de qual classe?’) e, com ela, Boécio pretende indicar a distinção de espécies
dentro de um mesmo gênero” (SAVIAN FILHO, p. 74).
15
Ao contrário do que pensam eutiquianos e nestorianos.
16
“Quem, por acaso, dirá haver alguma pessoa da alvura, da negritude ou da grandeza?” (130).
8
portanto, ser conveniente que se diga ‘pessoa’ entre as substâncias”. Aqui, Boécio há de fazer
nova matização, pois as substâncias são ditas corpóreas e incorpóreas, compreendendo, entre
aquelas, realidades viventes, sencientes e racionais. Como não pode haver pessoa de uma
árvore ou de um cachorro, resta afirmar entre os seres racionais o conceito de pessoa. Quanto
às substâncias incorpóreas, Boécio também afirma haver diferenciação, pois existem algumas
irracionais, a exemplo da alma dos animais, e outras racionais. A restrição às substâncias
racionais, corpóreas ou incorpóreas, leva, então, o autor a dizer “uma pessoa do homem, de
Deus e do anjo” (150).
Mas isto ainda não basta, pois as substâncias podem ainda ser compreendidas como
universais ou particulares. “Universais são as que se predicam das particulares, como homem,
animal, pedra (...) que são gêneros ou espécies (...) Particulares, ao contrário, são as que não
se predicam de outras, como Cícero, Platão” (155-160). Ora, como não se pode dizer “pessoa”
do que é universal, uma vez que, a humanidade, por exemplo, não constitui uma pessoa, resta
a Boécio restringir o conceito de pessoa às substâncias que são singulares, aos “indivíduos
singulares” (160).
Premissas levantadas, cabe a conclusão:
17
Boécio faz uso de várias expressões gregas nesta seção, buscando seu correlato na tradução latina.
18
Observe-se, porém, que, mais adiante, Boécio fará uso inteligente de pro,swpon, enriquecendo ainda mais a
noção de pessoa.
9
latino, traduzindo-o por “substância”. No entanto, tal procedimento ainda não é suficiente
devido à equivocidade do termo “substantia”. A dificuldade do sabelianismo em aceitar três
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“substâncias” em Deus explicita bem a preocupação de Boécio. Desse modo, ele terá de
encontrar um correspondente latino para o termo ouvsi,a [ousía], evitando sua correspondência
ao termo “substância”. Para tanto, Boécio se servirá do termo essentia, distinguindo-o da
substância do seguinte modo: ai, ouvsi,ai evn me.n toi/j kaqo,lou ei=nai du,nantai\ evn de. toi/j
avto,moij kai. kata. me,roj mo,noij u`fistantai 20 (195).
Disso se segue que Boécio compreende “substância” em relação ao que é particular,
ao contrário da “essência”, relacionada ao universal. Observe-se, no entanto, que o autor faz
aqui uso do verbo u`fistasqai [hyphístasthai], cuja tradução seria “estar sob”, encontrando-
se, por essa razão, dentro do mesmo campo semântico de “substância”. O que é da ordem da
“substância” ou do “estar sob” é aquilo que “... subministra um certo sujeito 21 para outros, a
saber, os acidentes, a fim de que possam ser” (210). Aproximando esses dois termos, Boécio
os afasta do campo semântico de ousía. Enquanto essência, ousía se situa entre os universais,
não podendo, portanto, ser subjectum, relacionando-se, antes, ao que os gregos chamavam
ouvsi,wsij [ousíosis] ou ouvsiou/sqai [ousioûsthai], cuja tradução Boécio propõe,
respectivamente, como “subsistência” e “subsistir”. Para melhor compreensão do vocabulário
empreendido até aqui, Boécio explicita:
Subsiste, pois, aquilo mesmo que não carece de acidentes para poder ser;
está sob, porém, aquilo que subministra um certo sujeito para outros, a saber,
os acidentes, a fim de que possam ser (...) Assim, os gêneros e as espécies
apenas subsistem; os acidentes, então, não ocorrem nem aos gêneros nem às
espécies. Os indivíduos, ao contrário, não apenas subsistem, como também,
estão sob, pois não carecem dos acidentes para ser, uma vez que já foram
informados por suas diferenças próprias e específicas, ao mesmo tempo que,
sendo, por certo, sujeitos, permitem aos acidentes que eles possam ser” (205-
215. Grifos nossos).
a razão por que o grego não diz u`póstasin dos animais irracionais, assim
como nós predicamos o nome ‘substância’ deles, é esta: aquele nome
[u`póstasij] é aplicado ao que é superior, para que, de alguma forma,
aquilo que é mais excelente seja distinguido, se não pela descrição da
natureza, segundo o sentido de u`fistasqai, ‘estar sob’, ao menos o seja
pelos termos u`posta,sewj ou substâncias (235-240. Grifos nossos).
11
que o termo persona porta 22. Seu intento não é restringir “pessoa” ao sentido teatral de
prósopon, mas antes explicitar a racionalidade subentendida no termo. Prosópon faz lembrar
que a singularidade de “pessoa” não se restringe a ser sujeito ôntico, sobre quem se atribuem
acidentes, mas alguém capaz de inquirir, julgar, dialogar, enfim, tudo o que pode
desempenhar um ser racional.
No entanto, não basta apenas a afirmação da racionalidade para que se expresse a
singularidade da pessoa, uma vez que, mesmo existindo em indivíduos, ela é própria do ser
humano em geral. Daí a necessidade de Boécio em afirmar que a “pessoa” é, antes de tudo,
uma “substância individual”, querendo com isso significar que a “pessoa” é marcada por uma
singularidade peculiar, não passível de generalização, residindo aqui sua dignidade
inalienável. Lembremo-nos do que afirma Boécio: não se diz pessoa do ser humano, que é
racional por natureza, mas de Platão, de Cícero, enfim, de cada indivíduo em sua
irrepetibilidade ou, como preferimos denominar, singularidade.
Desse modo, Boécio deixa claro que pretende, ao fazer uso do termo “pessoa”,
enfatizar uma realidade, ao mesmo tempo, consistente – própria do que é “substância” – e
individual ou singular – no sentido de uma existência única. No entanto, se o termo
“substância” consegue traduzir o que é próprio da consistência de uma pessoa, o mesmo não
acontece se considerarmos pessoa como uma existência singular. Em outras palavras, a
definição de pessoa como “substância individual de natureza racional” não parece capaz de
açambarcar o significado de pessoa pretendido por Boécio. Especificamente, sua principal
dificuldade reside no termo “substância”. Boécio parece ser cônscio disso, de modo que, em
sua segunda definição de pessoa, ele troca o termo “substância” por “subsistência” 23. Importa,
para Boécio, afirmar que a singularidade da pessoa constitui uma existência única que não é
determinada, em última instância, pelos acidentes predicados da “substância individual”.
Em seu texto, Boécio busca contornar essa dificuldade, articulando sempre o termo
“substância” com seu correspondente grego “hypóstasis”, que, por sua vez, em conformidade
com o objetivo central do opúsculo, está sendo considerado à luz do mistério de Cristo, cuja
hipóstasis subsiste em duas naturezas. Por essa razão, fica subentendido que, em Boécio, a
aplicação do conceito de pessoa para o caso humano deve ser considerada à luz, ou antes em
dependência, da unicidade do próprio Cristo. Nele, torna-se patente que a singularidade da
hipóstasis não se reduz a mero “supósito” de características acidentais. Justamente por isso,
Boécio pospõe à aplicação do conceito de pessoa ao caso humano (cf. supra, p. 11), uma
22
Cf. KOTERSKI, Joseph, op. cit., p. 221-222.
23
“... naturae rationabilis individuam subsistentiam [subsistência individual de natureza racional]” (185).
12
consideração sobre o conceito de pessoa em Deus. O “estar sob” divino, por exemplo, só pode
ser compreendido no sentido de que é dele que tudo procede, sendo Deus aquele que, por
excelência, “subsiste sem precisar de nada” (250). É, portanto, a partir de Deus que o ser
humano, como criatura, deve compreender sua pessoalidade. No entanto, encontramo-nos
aqui já distanciados do texto de Boécio, buscando compreender as lacunas deixadas em CEN.
Portanto, passemos agora a um rápido balanço do conceito de pessoa em Boécio, destacando
seu mérito bem como as questões que permaneceram abertas para a posteridade.
Paul McPartlan, no verbete “pessoa” do Dicionário Crítico de Teologia 24, afirma que
Boécio, apesar de ter tido o mérito de conceituar “pessoa” como “uma subsistência individual,
que (...) existe em si e para si”, não chega a muitos resultados em sua definição. Segundo
McPartlan, por não dizer nenhuma palavra acerca da relacionalidade, o conceito de pessoa
dado por Boécio não é utilizável nem para a cristologia, pois “... não permite pensar o ser-
num-outro próprio à natureza humana de Cristo”; nem para a teologia trinitária, pois destaca
“o ser junto de si (a asseidade) e não a inter-relação (o ser-para, esse ad)”. Sendo assim,
prossegue McPartlan, a definição de Boécio se encontra “fadada (...) a governar a
antropologia, mas também a legitimar uma antropologia que, num ponto crucial, o status da
relação corta de fato o homem de Deus”.
McPartlan tece julgamento severo à definição de pessoa de Boécio. De fato, como
ele bem notou, ao afirmar a pessoa como o “em si e para-si” da “substância individual”,
Boécio olvida a dimensão relacional da pessoa humana. No entanto, é-nos permitido afirmar,
de modo enfático, que o conceito de pessoa, em Boécio, não diz nada à teologia trinitária nem
à cristologia? Melhor ainda, a não explicitação da relacionalidade, na definição de pessoa
dada por Boécio é, por si, suficiente para se afirmar que este conceito não comporta abertura
alguma para a alteridade?
Em relação à primeira questão, parece-nos, no mínimo, descabida a afirmação do
autor de que o conceito de Boécio não tem nenhuma utilidade nem para a cristologia nem para
teologia trinitária quando, justamente, foi em vista de uma querela cristológica que sua
investigação conceptual iniciou. Mais ainda, seu conceito será retomado por Tomás Aquino,
como o próprio McPartlan salienta pouco depois. De fato, o aquinate haverá de corrigir a
definição de Boécio, no intuito de aplicá-la a Deus. Desse modo, conceberá o adjetivo
24
Todas as citações deste parágrafo têm a mesma referência bibliográfica: São Paulo: Loyola, 2044, p. 1396.
13
“racional” como “intelectual” e mudará “individual” por “incomunicável” 25. Mas, bem
observada, a operação de Tomás de Aquino não procede senão ao modo de um
aperfeiçoamento conceptual da definição de Boécio, buscando escapar a algumas
ambiguidades terminológicas em vista, evidentemente, de avançar a discussão. Portanto,
ainda que venha a introduzir correções à definição de pessoa de Boécio, Tomás de Aquino
chegará à sua elaboração pessoal apropriando-se dela e não a seu despeito, como se ela não
oferecesse utilidade alguma.
O conceito de indivíduo que trabalha Boécio, por exemplo, tem antes como escopo
afirmar a pessoa como “singularidade” do que como uma individualidade inteiramente
fechada sobre si mesmo. Tomás de Aquino percebe bem o pensamento de Boécio, de modo
que, para evitar uma possível leitura de que há em Deus três “substâncias individuais”,
considera-as como incomunicáveis. Note-se bem que “incomunicabilidade” não significa aqui
ausência de comunicação ou de relação entre as hipóstases trinitárias, mas antes o caráter
singular e inalienável de cada hipóstase. Para se referir a essa realidade, Boécio empregou
como exemplo o caso singular de Platão que não pode comunicar sua pessoalidade a outrem,
isto, porém, não é o mesmo que afirmá-lo como um indivíduo isolado dos outros, a exemplo
de uma mônada leibzniana. Tomás de Aquino parece, portanto, dar-nos o exemplo de como
compreendermos Boécio, especificamente sua definição de pessoa, indo para além do autor
ou da expressão categorial de sua definição, ajudando-o a expressar o que, em suas categorias,
não logrou exprimir, mas apenas aventar o sentido.
Com relação à crítica de McPartlan a respeito da ausência de uma dimensão
relacional no conceito de pessoa de Boécio, é importante considerar, antes tudo, que não
podemos julgar um autor que escreveu nos primórdios do século VI da era cristã à luz do
personalismo ou das filosofias da alteridade do século XX. Como com propriedade afirma
Emmanuel Housset, cuja reflexão seguiremos a partir de agora, a definição de pessoa humana
dada por Boécio deixa em aberto
a ideia de uma individuação própria da pessoa humana que não deve ser
comparada nem à individuação acidental das coisas, nem à individuação
absoluta de um ser que existe para e por si. Neste sentido, demonstrando que
25
“… Dios puede ser llamado naturaleza racional en cuanto que no implica proceso discursivo, sino naturaleza
intelectual. Individuo, en cambio, no puede corresponderle a Dios en cuanto referido a la materia como principio
de individuación, sino sólo en cuanto que implica incomunicabilidad. Sustancia, por otra parte, le corresponde a
Dios en cuanto que significa existir por sí mismo. Algunos dicen que la definición de Boecio que hemos citado
anteriormente (a.l), no es una definición de persona en el sentido en el que lo atribuimos a Dios. Por lo cual,
Ricardo de San Víctor, queriendo corregir dicha definición, dijo que persona, aplicado a Dios, es la existencia
incomunicable de la naturaleza divina” (Suma de Teología, I, q. 29, a. 3, ad. 4).
14
essa individuação é impossível no plano da natureza, Boécio abre a
possibilidade de compreender que ela não pode ter lugar senão nas relações
interpessoais sem que ele próprio desenvolva tal perspectiva 26.
26
Op. cit., p. 118.
27
Ibid..
28
Ibid., p. 120.
29
Cf. Ibid.
15
não pode ser dissociado de sua fé. Na verdade, o próprio Boécio, no opúsculo CEN, passa de
um registro a outro sem grande dificuldade, de modo que a hipótese levantada por Housset,
subentendendo que a origem do tornar-se pessoa do ser humano não pode advir senão de
Deus, não constitui uma extrapolação do pensamento do autor. Em razão disso, ao prosseguir
sua reflexão acerca da relação entre Deus e pessoa humana, agora à luz do De sancta Trinitate
de Boécio, Housset aponta para a necessidade de se pensar a relação do homem com Deus
como concernindo o ser mesmo do homem. Evidentemente, Housset não procede afirmando
que o conceito de pessoa de Boécio permite afirmar o ser humano como relação. O fato é que
essa relação, se não o constitui substancialmente, também não pode ser a ele atribuída como
meramente circunstancial ou acidental.
Tentativas de interpretação à parte, o fato é que, em Boécio, o conceito de pessoa
ganha novo impulso, de modo que se pode afirmar, na esteira de Maurice Nédoncelle, que
“Boécio é um intermediário no caminho que segue de Santo Agostinho às ‘relações
subsistentes’ de Tomás” 30, pois não poderíamos pensar as relações sem que houvesse uma
realidade consistente em si mesma capaz de fundamentá-las. Por essa razão Emmanuel
Housset afirma que “não podemos conceber a história do conceito de pessoa na filosofia
medieval como a simples passagem da substância à relação” 31. Ou seja, a afirmação da pessoa
em Boécio compreende uma realidade cuja singularidade não é apenas substancial, no sentido
aristotélico do termo, mas constitutiva do seu ser pessoa, isto é, de seu modo de subsistir
(ousiosis), de modo que a singularidade da pessoa, ou se quisermos, sua alteridade diante de
outra, deve ser pensada como uma característica inerente à sua existência. Por essa razão,
continua Housset,
não faz sentido afirmar que Boécio regride para aquém de Santo Agostinho
em sua reflexão simples sobre a substância, uma vez que ele mostra, ao
contrário, que a característica essencial da relação na pessoa não pode ser
verdadeiramente estabelecida sem que se parta da permanência em si
[maintien de soi], sem a qual a pessoa não teria realidade 32.
30
Les variations de Boéce sur la personne. In: Revue des Sciences Religieuses, v. 29, n. 3, p. 201-238, 1955,
p. 233, apud HOUSSET, E., op. cit., p. 124. Este artigo de M. Nédoncelle abriu caminhos na para a discussão do
conceito de pessoa em Boécio. Em seu artigo, ele chega a enumerar seis concepções distintas de pessoa ao longo
da obra de Boécio.
31
Ibid., p. 124.
32
Ibid.
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fim ao discurso sobre a pessoa, deixando-o em aberto. Não parece despropositada sua
afirmação, no início (45-50) e no final (770) da carta dirigida ao diácono João (CEN), de que
submetia seu texto à avaliação crítica, afirmando o desejo de ser corrigido onde necessário.
Querendo se esforçar ao máximo para expor sua concepção de pessoa, Boécio não pretendia
exaurir a discussão 33. Assim sendo, permanecem abertas várias questões. A principal delas,
afirmada e reiterada aqui, reside no fato de que sua definição de pessoa, a partir de categorias
como “substância individual”, “natureza racional” e mesmo “subsistência”, não logra
desdobrar a relacionalidade que lha é inerente. Este foi o preço que teve de pagar ao se servir
de categorias metafísicas para explicar o que cria, segunda sua fé (cf. CEN 770), interpretando
“pessoa” a partir de hypóstasis. Constatando várias aporias deixadas por Boécio, Housset se
pergunta se elas poderão ser resolvidas através do discurso metafísico ou, ao contrário, se elas
não constituem, na verdade, o mistério mesmo da pessoa 34. Deixando abertas interrogações e
aporias, Boécio chegou até onde seus instrumentos conceptuais poderiam lhe conduzir,
legando o desafio de dar continuidade a seu esforço à posteridade, doravante enriquecida com
uma reflexão sobre a pessoa que abre caminhos para pensá-la no contexto das relações.
Bibliografia
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da Igreja Católica. Trad. Fredericus Stein. São Paulo: Loyola, 2006.
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São Paulo: Loyola, p. 318-319.
KOTERSKI, Joseph W. Boethius and the theological origins of the concept of person.
In: American Catholic Philosophical Quarterly, v. 78, n. 2, p. 203-224, 2004.
33
“Eis, pois, o que te apresentei, a respeito do creio em minha fé. Se algo foi dito sem acerto, não sou tão amante
de mim mesmo para me esquivar de submeter a um juízo mais perspicaz aquilo que escrevi uma vez”
(CEN, 770).
34
“As aporias de Boécio sobre a pessoa fizeram época porque elas deixaram elaborar no coração da metafísica a
tensão entre subsistência individual e alteridade pura, entre ser por si e relação, entre ser em ato e gênese...” (Op.
cit., p. 124).
17
MCPARTLAN, Paul. Pessoa. In: LACOSTE, Jean-Yves (Org.). Dicionário crítico de
teologia. São Paulo, Loyola, 2004, p. 1393-1399.
NÉDONCELLE, Maurice. Les variations de Boéce sur la personne. In: Revue des Sciences
Religieuses, v. 29, n. 3, p. 201-238, 1955.
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma de teología I: part. I. 4 ed. Madrid: BAC, 2001.
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