Sie sind auf Seite 1von 43

614 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

14; B it e n c o u r t , Cezar Roberto. M anual de Direito benéfica. Boletim IBC C RIM , v. 8, n. 100, p. 11 e 12,
penal: parte geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. São Paulo, mar. 2001. Disponível em: <http://www.
111; F r a g o s o , Christiano. Norma penal em branco: ibccrim.org.br>. Acesso em: 10 jul. 2007; P r a d o ,
alguns aspectos processuais. Boletim IBC C RIM , v. Luis Regis. Curso de Direito penal brasileiro: parte
12, n. 145, p. 8-9, São Paulo, dez. 2004. Disponível geral. 6.ed. rev., atual, eampl. São Paulo: RT, 2006.
em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 13 v. 1, p. 173; Q u e ir o z , Paulo. Leis penais em branco
jul.2007; F r a n c o , Alberto Si Iva; S t o c o , Rui (coords.). eprin cípio da reserva legal. Disponível em: <http://
Código penal e sua interpretação jurisprudência/: www.ibccrim.org.br>, 29 maio 2003. Acesso em:
parte geral. 7. ed. São Paulo: RT, 2001. v. 1, p. 83; 10jul. 2007 e Jus Navigandi, ano 7, n. 66, Teresina,
G r e c o , Rogério. Curso de Direito penal: parte geral. jun. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.
9. ed. Riodejaneiro: Impetus, 2007. v. 1, p. 22; J e s u s , br/doutrina/texto.asp?id=41 81 >. Acesso em: 17
Damásio Evangelista de. Lei antitóxicos, norma jul. 2007; Z a f e a r o n i , Eugênio Raúl; P ie r a n c e l i , José
penal em branco e a questão do lança-perfume: Henrique. Manual de Direito penal. 6. ed. São Paulo:
cloreto de etila. Boletim IBC C RIM , v. 9, n. 102, p. RT, 2006. p. 386.
08, São Paulo, maio 2001. Disponível em: chttp://
www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 13 jul. 2007; FUNÇÃO OU FUNÇÕES DA NORMA PENAL
____ . Normas penais em branco, tipos abertos e
elementos normativos.lu s Navigandi, ano 5, n. 51, C a rbo n ell M ateu, Juan Carlos. D erech openal: con-
Teresina, out. 2001. Disponível em: <http://jus2. ceptoy principiosconstitucionales. 3. ed.Valencia:
uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2286>. Acesso Tirant Io Blanch, 1999; M u n o z C o n d e , Francisco.
em: 17 jul. 2 0 0 7 ;____ . Direito penal: parte geral. Função motivadora da norma penal e marginali-
28. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 1, p. 21 e 1QÒ; zação. Ciência Penal, v. 6, fase. 2, p. 33-46, São
Lascuraín S ánchez , Juan Antonio. La proporciqna- Paulo, 1980; O r t s B e r e n g u e r , Enrique; G o n z á l e z
lidad de Ia norma penal, Revista Ibero-Americana C u s s a c , José Luis. Com pêndio de D erecho penal:

de Ciências Penais, v. 1, p. 223-250, Porto Alegre, parte general y parte especial. Valencia: Tirant Io
maio-ago. 2000; L eal, João José. Curso de Direito Blanch, 2004; S a n t o s , Lycurgo de Castro. Culpabi-
penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor & lidadeepena na Lei 9.099/95. Revista Brasileira de
Editora da FURB, 1991. p. 74; M aggio , Vicente de Ciências Criminais, ano 4, n. 13, p.130-143, São
Paula Rodrigues. Direito penal: parte geral. 5. ed. Paulo, jan.-mar. 1996.
Campinas-SP: Millennium, 2005. p. 36; M arques ,
José Frederico. Tratado de Direito penal. Campinas-
SP: Bookseller, 1997. v. 1, p. 188; M irabete, Júlio
Capítulo 1
Fabbrini; Fabbr in i , Renato N. M anual de D ireito C o n c e i t o e e s p é c ie s d e n o r m a p e n a l :
penal: parte geral. 24. ed. rev. e atual. São Paulo:
NORM A E PRECEITO O U EN UN C IAD O LEGAL
Atlas, 2007. v. 1, p. 31; M odesto, Danilo Von Be-
ckerath. A norma penal em branco e seus limites
Estaticamente contemplado, o Direito
temporais. Jus Navigandi, ano 9, n. 817, Teresina,
28 set. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com. penal objetivo nada mais significa que um
br/doutrina/texto.asp?id=7345>. Acesso em: 17 jul. conjunto ordenado de normas, isto é, um
2007; M oura , Grégore Moreira de. Reflexões sobre ordenamento (que faz parte do ordenamento
a norma penal em branco e o princípio da legalida­ jurídico global). Examinaremos em seguida a
de. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>, natureza e estrutura de tais normas, observan­
12 abr. 2004. Acesso em: 10 jul. 2007; N oronha ,
do que esse problema não é especificamente
Edgard Magalhães. Direito penal: introdução e parte
geral. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1985. v. 1, p. 78; penal, senão da Teoria Geral do Direito.
Nucci, Guilherm e de Souza. M anual de D ireito Impõe-se, desde logo, distinguir “norma”,
penal: parte geral e parte especial. 3. ed. São Paulo: “princípio”, “regra” e “preceito”.1
RT, 2007. p. 103;____ . Código penal com entado.
7. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 70; P a t r íc io , Rui. Nor­ O Direito se expressa por meio de normas.
ma penal em branco: em comentário ao acórdão As normas emanam das regras e dos princí­
do Tribunal da Relação de Évora de 17.04.2001. pios. Toda norma, de outro lado, é composta
Revista do M inistério Público, v. 22, fase. 88, p. de um preceito primário e de um preceito
137-154, Lisboa, out.-dez. 2001; P e d r o s o , Fernando secundário. Norma, princípio, regra e pre-
de Almeida. Direito penal: parte geral: estrutura do
crime. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de
Direito Ltda., 1993. p. 197ess.; PELuso,Viniciusde 1. Cf. Mir Puig, Santiago. Derecho penal: parte gene­
Toledo Piza. Norma penal em branco: retroatividade ral. 5. ed. Barcelona: Tecfoto, L998. p. 26 e ss.
Teoria da norma penal 615

ceito, como se vê, são conceitos interligados, cabe a quem faz a alegação, a responsabilidade do
porém, distintos. acusado só pode ser comprovada constitucional,
legal e judicialmente etc.). Mas há princípios com
Os princípios - diferentemente das regras menor campo de incidência, como por exemplo
-n ã o prescrevem uma determinada conduta, o da insignificância (que rege tão-somente as in­
porque não contêm a especificação suficiente frações bagatelares).
de uma situação fática e sua correlativa con­ Funções dos princípios: fundamentadora, in-
seqüência jurídica.2 Os princípios expressam terpretativa e supletiva ou integradora: por força
critérios e razões para uma determinada de­ da função fundamentadora dos princípios, é certo
cisão, mas não a definem detalhadamente.3 que outras normas jurídicas neles encontram o seu
fundamento de validade. O artigo 261 do CPP (que
Distintamente do que se passa com as regras,
assegura a necessidade de defensor ao acusado)
os princípios podem se realizar em maior ou tem porfundamento os princípios constitucionais
menor medida, porque são “mandamentos da ampla defesa, do contraditório, da igualdade
de otimização” que têm uma “dimensão de etc. Os princípios, ademais, não só orientam a
peso”.4 interpretação de todo o ordenamento jurídico, se­
não também cumprem o papel de suprir eventual
Regras eprincípios: as regras disciplinam uma
lacuna do sistema (função supletiva ou integrado­
determinada situação fática e definem suas con­
ra). No momento da decisão o juiz pode valer-se
seqüências; quando ocorre essa situação fática, a
da interpretação extensiva, da aplicação analógica
norma tem incidência; quando não ocorre, não
bem como do suplemento dos princípios gerais
tem incidência. Para as regras vale a lógica do tudo
de direito (CPP, art. 3.°). Considerando-se que a lei
ou nada ( D w o r k i n ). Quando duas regras colidem,
processual penal admite"interpretação extensiva,
fala-se em "conflito de regras"; ao caso concreto
aplicação analógica bem como o suplemento dos
uma só será aplicável (uma afasta a aplicação da
princípios gerais de direito" (CPP, art. 3.°), não
outra). O conflito entre regras deve ser resolvido
havendo regra específica regente do caso torna-
pelos meios clássicos de interpretação: a lei es­
se possível solucioná-lo só com a invocação de
pecial derroga a lei geral, a lei posterior afasta a
um princípio.
anterior etc.
Princípios constitucionais, infraconstitucio-
Princípios, por seu turno, são as diretrizes
nais e internacionais: de todos os princípios (que
gerais de um ordenamento jurídico (ou de parte
configuram as diretrizes gerais do ordenamento
dele). Seu espectro de incidência é muito mais
amplo que o das regras. Entre eles pode haver jurídico), gozam de supremacia (incontestável)
"colisão", não conflito. Quando colidem, não se os constitucionais. Exemplos: princípio da ampla
excluem. Como "mandados de otimização" que defesa (CF, art. 5.°, LV), do contraditório (CF, art.
são ( A l e x y ), sempre podem ter incidência em casos 5.°, LV), da presunção de inocência (CF, art. 5.°,
concretos (às vezes, concomitantemente dois ou LVII) etc. Mas isso não significa que não existam
mais deles). princípios infraconstitucionais (leia-se: emana­
dos de regras legais). Por exemplo: princípio do
Situação concreta versus m ultiplicidade de
tantum devolutum quantum apellatum, que está
situações: a diferença marcante entre as regras
contemplado no art. 599 do CPP. Os princípios
e os princípios, portanto, reside no seguinte: a
constitucionais contam com maior valor e eficácia
regra cuida de uma situação concreta. Exemplo:
e são vinculantes (para o intérprete, para o juiz e
o inquérito policial destina-se a apurar a infra­
para o legislador). Também existem princípios
ção penal e sua autoria - CPP, art. 4.°; o inquérito
que derivam de regras internacionais. Por exem­
policial serve para instruir a futura ação penal
(CPP, art. 12). Os princípios, em regra, norteiam plo: princípio do duplo grau de jurisdição, que
está contemplado na Convenção Americana de
uma multiplicidade de situações. O princípio da
presunção de inocência, por exemplo, cuida da Direitos Humanos (Pacto de San Jose), art. 8.°, II,
forma de tratamento do acusado bem como de /j.Todo o Direito internacional posto em vigência
uma série de regras probatórias (o ônus da prova no Direito interno é fonte do Direito e deve ser
considerado para a solução de conflitos.
As súmulas vinculantes são regras? Sim, são
2. Cf. Santiago M i r P u i g , citando a opinião de L a r e n z regras criadas por força de interpretação do Su­
(Derecho penal: parte general, cit., p. 26). premo Tribunal Federal. A interpretação eleita
3. Cf. Santiago Mir Puig, seguindo a Dworkin (De- pelo STF passa a ser a regra do caso concreto,
recho penal: parte general, cit., p. 26). não podendo o juiz deixar de observá-la. Cabe
4. Idem, ibidem. reclamação ao STF em caso de descumprimento
616 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

da súmula vinculante (sobre a extensão das súmu­ enunciado legal ou preceito legal expressa uma
las vinculantes e sua natureza cf. Décima sétima norma penal completa; de outro lado, nem
seção-v. 2).
todo enunciado legal ou proposição jurídica ou
A norma penal é, como toda norma jurídi­ preceito legal serve de base para uma só norma
ca, uma mensagem prescritiva (um comando jurídico-penal. Ademais, não se pode confun­
impositivo) que se expressa por meio de deter­ dir preceito legal (que é o enunciado legal)
minados símbolos, consistentes em preceitos. com o preceito normativo (que é o comando
Mas tais preceitos constituem só o veículo de normativo veiculado pelo enunciado legal ou
expressão das normas e não devem ser con­ da proposição jurídica). Em outras palavras:
fundidos com as próprias normas. a lei não se confunde com a norma.
O enunciado ou proposição legal (a lei), como O primeiro acontece, por exemplo e em ge­
conjunto de símbolos lingüísticos, distingue-se da ral, com as disposições da Parte Geral do Código
mensagem ou comando prescritivo ("norma"). Ele Penal, que não transmitem mensagens prescriti-
contém e transmite5a norma, entretanto, com fre­ vas completas, mesmo porque a finalidade delas
qüência, enunciado e norma são expressões utili­ é "instrumental" e "esclarecedora", isto é, não
zadas indevidamente como sinônimas. Como diz pretendem ditar normas completas, senão - em
V iv e s A n t ó n , a lei penal é, portanto, o instrumento conexão com os preceitos da denominada Parte
pelo qual as normas penais se expressam ou, dito Especial - precisar a com preensão destes últimos,
de outra maneira, sua fonte. A lei não é, com efeito, delimitando desse modo o alcance das normas
a norma, senão que a norma se expressa por meio que proíbem ou castigam os distintos delitos.
da lei e é o que a lei significa ou parte do que a lei Mas nem sequer os preceitos da Parte Especial
significa. Identificar norma e lei corresponde a um determinam, por si sós, com plena autonomia,
uso lingüístico corrente. E nada há que se objetar a todos os extremos das respectivas normas penais
esse uso, desde que se tenha consciência de que o -por mais que tenham sentido normativo-jáque
que justificaasinonímiaé uma mera figura retórica a norma surge, muitas vezes, da relação que se es­
e não uma equivalência conceituai.6 tabelece entre vários enunciados legais.8A norma
secundária, ou seja, a punibilidade da tentativa no
Precisamente por isso - partindo-se da Direito penal brasileiro, por exemplo, só pode ser
distinção entre “preceito” e “norma” que, compreendida quando se conjuga o preceito da
por certo, não é majoritária em nenhuma parte especial com a regra correspectiva da parte
parte do mundo,7cabe observar que nem todo geral (art. 14 e seu parágrafo único). É da conju­
gação de vários preceitos legais que comumente
se descobre a norma vigente (ou seja, o âmbito
5. Assim, M i r P u i g , Santiago. Derecho penal: parte da norma).
general, cit., p. 27.
De outro lado, que um mesmo enunciado
6. Tomas S. Fundamentos dei sistema
V iv e s A n t ó n ,
ou preceito legal sirva de base para mais de uma
penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996. p. 339. norma penal é o que acontece com todas as pro­
7. Assim, M i r P u i g , Santiago. Derecho penal: parte posições jurídicas ou disposições da Parte Especial
general, cit., p. 27. Na doutrina brasileira é muito do Código, que contêm, com efeito, duas normas:
comum o uso das expressões preceito primário e uma dirigida ao juiz, obrigando-o a impor uma
preceito secundário. Em primeiro lugar o que se pena caso alguém venha a cometer determinado
chama de preceito secundário nada mais é que a delito (norma secundária) e outra (norma pri­
conseqüência para o descumprimento do precei­ mária), que se dirige ao cidadão, proibindo-lhe
to primário. Não se pode confundir preceito com o cometimento do fato delituoso. Do preceito
conseqüência (ou seja, preceito com sanção). De legal contido no art. 121 do Código penal ("Matar
outro lado, as locuções citadas só retratam uma alguém") emanam duas normas (sendo certo que
das normas em questão, a primária. Ocorre que todas possuem seu preceito e sua sanção): uma
todo enunciado legal dá ensejo a duas normas: a primária (que tem como preceito ou situação fá-
primária e a secundária. A doutrina que se con­ tica o seguinte:"é proibido matar"; e como sanção
tenta com o uso de preceito primário e preceito ou conseqüência a pena de reclusão de seis a vinte
secundário, portanto, é reducionista e equivo­ anos) e outra secundária (dirigida ao juiz, que deve
cada, porque não explica em sua integralidade a imporasançãocominada-esseé o preceito-,sob
teoria da norma penal. Não distingue a primária
da secundária, embora tenham destinatários e fi­
nalidades distintas, como veremos em seguida. 8. Idem, ibidem.
Teoria da norma penal 617

pena de responder penal e administrativamente (dirigida a todos) como para a secundária


pela sua omissão - essa é a sanção). (dirigida ao juiz). Cada uma delas conta com
Norma prim ária e norma secundária: a nor­ preceito primário e preceito secundário.
ma penal, de outro lado, pode ser prim ária Do art. 121 do Código Penal (“matar al­
(dirigida a todos) ou secundária (dirigida ao guém”) extraímos, assim, duas normas: “é
juiz). A norma primária conta com preceito proibido matar” (esse é o preceito primário ou
primário (“é proibido matar”, v.g.) e secundá­ normativo ou pressuposto da norma primária
rio (pena de seis a vinte anos de reclusão). A dirigida a todas as pessoas, que tem como
norma secundária (dirigida ao juiz) também
conseqüência a pena de seis a vinte anos de
conta com preceito primário (o juiz deve im­
reclusão); a norma secundária é um comando
por a sanção respectiva a quem viola a norma
dirigido ao juiz, que tem a obrigação legal de
primária) e secundário (sanção ao juiz que
não cumpre o seu dever legal). impor a sanção, sob pena de responder penal
e administrativamente. O pressuposto da nor­
Espécies de normas penais: as normas pe­
ma secundária é a situação de obrigatoriedade
nais, ademais, são incriminadoras (as que
de imposição da sanção penal; a conseqüência
definem delitos) ou não incriminadoras. Estas
é a responsabilidade do juiz, caso descumpra
últimas podem ser: (a) permissivas (normas
seu dever.
que permitem uma determinada conduta; CP,
art. f 28, II: permite a realização do aborto em O pressuposto fático da norma primária des­
caso de estupro); (b) justificantes (são normas creve a conduta que a lei contempla e proíbe
que autorizam a realização de conduta típicas. (nos crimes comissivos) ou determina (nos crimes
Por exemplo: as que cuidam da legítima defe­ omissivos). A conseqüência é a sanção que a lei
sa, estado de necessidade etc. - CP, arts. 23 a associa à norma primária. Terminologicamen-
te, costuma-se distinguir o preceito da sanção,9
25); (c) exculpantes (são normas que afastam
a "situação fática" - ou, simplesmente "pressu­
a culpabilidade - CP, art. 26, v.g.); (d) expli­
posto" - da "conseqüência jurídica".10 Não é de
cativas (são normas que aclaram o sentido se desconsiderar a terminologia mais ou menos
descritivo de outros dispositivos legais - CP, dominante que distingue o "pressuposto" da "con­
art. 327, que explica o conceito de funcioná­ seqüência". Cada norma (seja a primária, seja a
rio público; CP, art. 150, § 4o, que explica o secundária) tem seu pressuposto e sua conse­
conceito de casa etc.); (e) complementares qüência. O pressuposto também é chamado de
(que cuidam da aplicação da pena - CP, art. preceito primário; a conseqüência é denominada
59, v.g.). Além dessas, ainda se pode lembrar de preceito secundário.
das normas que afastam a punibilidade (ou
seja: a ameaça da pena), como é o caso das 9. Cf. S t a m p a B r a u n , J. M . lntroducción a la Ciência
normas que cuidam das escusas absolutórias dei Derecho penal. Valladolid: Minón, 1953. p.
(CP, art. 181), da desistência voluntária ou 27 e 28: o autor distingue entre “hipóteses” e
arrependimento eficaz (CP, art. 15) etc. “teses”, “preceito” e “sanção”. R o d r ig u e z M o u -
r u l l o , Gonzalo, para quem a norma aparece

como vinculação axiológica de dois fatos, de


Capítulo 2 forma que implica um conseqüente para seu
antecedente; perspectiva -diz- desde a que se
Estru tu ra " l ó g ic a " d a n o r m a substitui a tradicional dicotomia: preceito-san-
E SUA FORMULAÇÃO "H IP O T É T IC A " ção, pela de “pressuposto-conseqüência” (p. 75
e 76). C a m a r g o H e r n A n d e z , César. lntroducción al
O U INDIRETA
estúdio dei Derecho penal. Barcelona: Bosch, 1964.
p. 141; D e l R o s a l , J. Tratado de Derecho penal
Conforme a opinião majoritária, a norma
espanol: parte general I. 1969. p. 246; C u e l l o
penal conta com dois aspectos: o pressuposto C a l ó n , E. Derecho penal, cit., 1, p. 203.
ou situação fática (preceito primário) e a con­ 10. Por todos, Cf. Mir Puig, Santiago. lntroducción
seqüência ou sanção (preceito secundário). a las bases dei Derecho penal dei Derecho penal.
Isso é válido tanto para a norma primária Barcelona: Bosch, 1982. p. 30; nota 28.
618 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

Mas há muita polêmica em torno de todas Em outras palavras: cabe concluir que toda
essas nomenclaturas. Contra os que preferem a norma tem seu preceito normativo (preceito
distinção entre "preceito" e "sanção" são ende­ primário) e sua sanção (ou seja, sua “con­
reçadas muitas objeções, justificadas, que reco­
seqüência” ou preceito secundário). Isso se
mendam - para evitar equívocos-,a não utilização
de tais termos.11 Mir Puig entende ser preferível
passa tanto com a norma primária como com
prescindir dos dois conceitos citados, porque, a a secundária. Cada uma tem seus dois aspectos
seu juízo, correspondem a uma perspectiva dis­ inseparáveis.
tinta: os termos "pressuposto" e "conseqüência"
Assim, a formulação da proposição jurídico-
refletem a estrutura "lógica" da norma, enquanto
penaltem inequívoco caráter hipotético,13porque
que "preceito" e "sanção" são mais adequados
a norma primária que proíbe ou ordena ao cida­
para explicar a sua natureza "im perativa"; em
dão uma conduta, não é formulada diretamente
segundo lugar, porque, no seu entender, em toda
pela lei, senão que se depreende indiretamente
norma expressam-se - na realidade - dois precei­
da mesma.14A sanção para o descumprimento
tos distintos, e não só um: o dirigido ao cidadão
da norma primária é formulada de maneira di­
(norma primária) e o dirigido ao juiz (norma se­
reta (pena de seis a vinte anos de reclusão). Já o
cundária), de sorte que a terminologia criticada só
preceito normativo (ou pressuposto ou preceito
seria válida com relação à norma primária contida
primário) da norma primária é inferido do texto
na lei, oferecendo uma visão parciâl e incompleta
legal (do enunciado legal). O Código penal não
da mesma.12
diz"é proibido matar", sim, "matar alguém". Desse
De qualquer modo, uma coisa é a estru­ enunciado legal é que extraímos o pressuposto ou
preceito primário da norma primária ("é proibido
tura lógica da norma (que tem sempre um
matar"). A conseqüência para o descumprimento
pressuposto e uma conseqüência, ou seja, um desse preceito primário é a sanção cominada na
preceito primário e umpreceito secundário) e lei (que vem a ser o preceito secundário).
outra distinta aform ulação dos mandamentos
que dela se depreendem. A distinção entre norma primária e secun­
dária, comumente admitida pela doutrina,15
Com efeito, em toda norma penal, consi-
pretende clarificar o problema da estrutura,
derando-se sua formulação completa, cabe
formulação e destinatários da norma penal.
admitir dois comandos normativos distintos:
Daí a utilidade do acolhimento dessas duas
o primeiro é o que se dirige ao cidadão, proi-
categorias.
bindo-lhe atuar de determinada maneira ou
exigindo-lhe determinado comportamento Recordando: as proposições jurídicas (os
enunciados legais) transmitem as normas (são os
(normaprirnária) ; o segundo, é o que se dirige
veículos das normas). Mas, atendendo à literalida-
ao juiz, comando que o obriga a aplicar a con­
de delas, só transmitem de forma expressa, explíci­
seqüência jurídica, quando acontece o pres­ ta, um mandamento dirigido ao juiz, que o obriga
suposto fãtico respectivo (norma secundária). a impor uma pena se constata o cometimento do
Cada comando normativo tem sua sanção, delito. O artigo 121 do Código Penal, literalmente,
por isso, ambos são imperativos: na norma só obriga ao juiz a castigar o homicida com a pena
primária, a sanção é a prevista no tipo penal de prisão. Mas o preceito normativo não pode se
conformar somente com castigar o homicídio.
de que se trate; na norma secundária, a sanção
Pretende, antes de tudo, proibir o homicídio sob
(ao juiz omisso) é a sua responsabilização pe­ a ameaça de uma pena. A cominação penal para
nal e administrativa, em que podem incorrer
os órgãos que descumprem o mandamento
13. Idem,p. 32.
imperativo de aplicar a sanção legal.
14. Neste sentido: R o d r íg u e z D e v e s a , J.M . Derecho
penal espanol: parte general, cit., p. 147; Mir
11. N e s s e s e n t id o c r ít ic o cf. R o d r í g u e z D e v e s a , J . M . P u i g , Santiago. Introducción alas bases dei Derecho
Derecho penal espaiíol: p a r t e g e n e r a l. 9. ed . R e ­ penal dei Derecho penal, cit., p. 32.
v is t a e a t u a liz a d a p o r S e r r a n o G ó m e z . M a d r i d : 15. K e l s e n , pelo contrário, denominava norma pri­
D y k in s o n , 1985. p. 149. mária à dirigida ao juiz; e secundária à dirigida ao
12. M i r P u i g , Santiago. Introducción a las bases dei cidadão. Cf., M ir P u i g , Santiago. Derecho penal:
Derecho penal, cit., p. 31. parte general, cit., p. 28, nota 3.
Teoria da norma penal 619

o homicídio, em conseqüência, transmite não só Capítulo 3


um aviso ao cidadão - e a vontade normativa de
que o juiz castigue quando for o caso-senão tam­ N o r m a e lei p e n a l : a t e o r ia

bém um comando normativo de que os cidadãos DAS NORMAS DE B lN D IN G


não matem.16A formulação hipotética e mediata
da norma não deve obscurecer nem perturbar a 3 .1 N a t u r ez a e e s t r u t u r a da n o r m a em

compreensão da sua estrutura e destinatários. B i n d in g : e x p o s iç ã o d e su a t e s e

O enunciado legal ou proposição jurídica Dois autores potencializaram ao máximo


que castiga um fato deve ser interpretado, em a distinção entre “norma” e “lei”: Binding
conclusão, como forma de comunicação de (teoria das normas) e M .E . M ayer (teoria das
duas normas distintas: de uma norma proi­ normas de cultura).
bitiva ou mandamental dirigida ao cidadão S tampa s in t e t iz o u c o m p r e c is ã o a o p in iã o

(norma prim ária) e de uma norma (secundá­ p a r a d ig m á t ic a d e B in d in g :20

ria) dirigida ao juiz que o obriga a castigar o “A norma penal, segundo B in d in g , não
fato praticado pelo agente.17 constitui essa unidade de preceito e sanção.
Para compreender o verdadeiro caráter do
Portanto, a norma primária não deriva direta
Direito punitivo é preciso ter presente a im­
e imediatamente do teor legal, que só explicita a
portante distinção que existe entre a norma
norma secundária. Mas se reconhece sua existên­
(Norm) e a lei penal (Strafgesetz). Aquela é
cia pela doutrina e existem diversas razões para
isso.18A dogmática jurídico-penal gira em torno
um imperativo primário e autônomo, situado
da configuração do delito como infração da norma
fora do Direito penal e de qualquer outro ramo
(da norma dirigida ao cidadão, da norma que é do Direito: em um lugar especial dentro do
violada por ele). A existência de normas primárias Direito público; a lei penal, pelo contrário, é
como correlato das normas secundárias depre- um mero complemento da norma, enquanto
ende-se, também, do próprio Direito positivo limita-se a estabelecer as conseqüências que
que qualifica os delitos e contravenções como ^'derivam da violação desta e contém, unica­
"infrações" (portanto, de normas primárias) - cf. mente, a autorização para castigar, que corres­
o art. 1.° da Lei de Introdução ao Código penal. ponde ao Estado. O delinqüente, pois, viola a
Tudo isso careceria de sentido se só existisse a nor­ norma; de nenhuma maneira viola a lei penal;
ma secundária que o preceito penal exterioriza, a esta não só não a viola, senão que a coloca
poiso delinqüente não pode infringir uma norma em prática, atuando de acordo com o que na
dirigida ao juiz. De qualquer modo, é certo que mesma se dispõe: a norma, assim concebida,
tudo deriva da formulação mediata da norma, é como um preceito objetivo autônomo, favo­
uma questão de técnica legislativa, secundária
rece o Estado, impondo um direito subjetivo
e historicamente condicionada. Porque as leis
à obediência do imperativo que a mesma con­
penais mais antigas e primitivas, sim, explicitavam
tém. Quando se infringe tal direito subjetivo à
a norma primária, mas não as atuais que não têm
obediência do preceito, surgirá o ilícito ou an-
que ficar recordando princípios indiscutíveis e
tijuridicidade, cuja essência consistiria, por­
evidentes.19
tanto, na pura violação do Direito (Unrecht,
Para uma aproximação à distinção entre Rechtswidrigksit, Rechtsverletzung); o ato que
“lei” e “norma” vale a pena enfocar a sugestiva exterioriza tal violação seria um Delikt. A lei
teoria das normas de B in d in g . penal, pelo contrário, outorga ao Estado um
direito subjetivo ou autorização para castigar.
Quando essa autorização existe, a violação da
16. Assim, M ir P u i g , Santiago. Derecho penal: parte
general, cit., p. 28. norma (Delikt) tem como conseqüência uma
17. Idem, ibidem.
18. Idem, ibidem. 20. S t a m p a B r a u n , J. M. lntroducción a la Ciência dei
19. Idem, p. 29. Derecho penal, cit., p. 37 e38.
620 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

sanção penal, por constituir uma infração há de ser ou não castigado ou a ambos. A lei
delituosa: um Verbrechen". penal, pois, não é um imperativo: o imperativo
B in d in g parte da estrutura lógica das normas.
se encontra nas normas que precedem a lei; a
O delinqüente - afirma - não "viola" a "lei penal" lei limita-se a estabelecer as correspondentes
ao contrário, "realiza o tipo legal".21 A lei que o sanções.-6 A le i, diz B in d in g - a lei penal —é
delinqüente infringe é uma lei conceituai e -geral­ “a proposição jurídica que regula a origem,
mente - cronologicamente anterior à que dispõe o conteúdo e o fim da relação jurídico-penal
a classe e tipo de condenação que merece quem
existente entre aqueles que estão autorizados
atransgride.22Em outro tempo pode não ter sido
a aplicar a pena e o criminoso”.27
assim - continua B in d in g - mas em nossos dias o
delinqüente não infringe uma lei, em sentido es­ A missão da "lei penal" para o autor, é tripla:
trito, senão "um preceito do direito não legislado". determinar quais são as normas, cuja violação
Porque na atualidade, as normas mais importantes merece uma pena, estabelecer em que medida
para a construção do delito não se encontram, pre­ a violação de uma norma constitui um crime (já
cisamente e paradoxalmente, no Direito escrito, que só excepcionalmente a violação de uma nor­
senão fora dele, sendo uma premissa da época da ma resulta punível) e especificar a pena que as
codificação a tentativa de localizar as normas que respectivas infrações requerem, de acordo com
o delinqüente viola no direito legislado.23 a gravidade das mesmas.28
B in d i n g depreende a existência de tais "nor­
mas" de quatro "fontes": do desenvolvimento Quanto à origem das normas, é claro o
mediato da mesma "lei" penal, das necessidades pensamento de B in d in g . As normas são pro­
da legislação, das normas do direito escrito e de posições jurídicas. As normas são sempre
considerações sobre a história do Direito.24 No proposições jurídicas, embora não tenham
entanto, a existência das normas não é sua tese sido expressamente formuladas por uma fonte
mais questionada: o que mais se discute não é
do Direito. Pertencem ao Direito Público, e na
se existem ou não existem tais normas, senão a
essência, conteúdo e origem das mesmas.25 medida em que não estejam expressamente
contidas em uma lei são proposições do direito
Qual é o fundamento e o fim das normas, não legislado.29
segundo B in d in g ? Contém a lei penal uma
Não existem, para B i n d i n g , normas de Direito
“ordem” ou um “mandamento”? B inding res­
privado, porque "o direito de obediência não
ponde negativamente: se a lei penal fosse um é nunca um direito privado"; existem, isso sim,
imperativo - afirma o autor - teríamos que normas para a proteção de relações jurídicas pri­
perguntar a quem se dirige tal imperativo. vadas. Se de um lado é certo que as "leis" penais,
A lei, na verdade, somente contempla ex­ enquanto normas que estabelecem sanções, per­
pressamente a pena, pelo que o problema do tencem ao Direito Público, de outro, não menos
destinatário fica reduzido a esta alternativa: incorreto é afirmar que as "normas" que integram
as leis penais não pertencem tampouco ao Direito
a ordem se dirige a quem castiga ou a quem
penal, porque "não há tampouco nenhuma norma
criminal".30
21. K a u f m a n n , A. Lebendiges und totes in Bitidings Trata-se, como diz K a u fm a n n , 31 de mais uma
Normentheorie. Gõttingen, 1954, cit., p. 3, B in ­ conseqüência-congruente, de qualquer maneira
d i n g , K . Die Normen, cit., I, p. 4 . O . S c h w a r t z , p. - da distinção que faz o autor entre o mundo das
1. Há tradução ao castelhano de: E n r i q u e B a c i - "normas" e o das "sanções".
g a lu p o Z a p a te r e E r n e s t o G a r z ó n V a ld e z (Teoria
de las normas. Buenos Aires: Depalma, 1977).
22. B in d i n g , K. DieNormen, cit., l.,p. 4: “DasGesetz, 26. Assim, resume: J e s c h e c k o alcance da teoria das
welches derVerbrecher übertritt.gehtbegrifflich normas de B in d in g (cf: Lehrbuch des deutschen
und zeitlich dem Gesetze, welches die Art und Strafrecht, cit., p. 185, nota 2).
Weise seiner Verurteilung anordnet, voraus”. 27. Cf. K a u f m a n n , A. Lebendiges und totes, cit., p. 14.
23. B in d i n g , K.DieNormen,cit.,I,p .5. Cf., K a u f m a n n , 28. Idem, p. 15.
A. Lebendiges und totes, cit., p. 3 e ss. 29. Idem, p. 234.
2 4. K a u f m a n n , A. Lebendiges und das totes, cit., p. 4. 30. Idem, p. 237.
25. Idem, p. 46. 31. Idem, p. 238.
Teoria da norma penal 621

A tese de M . E. M ayer sobre as normas de É lógico, por isso, que a teoria das normas
cultura contam com indubitável parentesco tenha tido grande influência em toda a dogmá­
com a teoria das normas de B in d in g .32 São teses tica. B i n d i n g assinalou que teria que supor uma
revisão da ciência jurídico-penal.39 No marco da
muito similares.33
antijuridicidade, por exemplo, isso ficou muito
claro. Porque B i n d i n g conferiu independência ao
3 .2 V a lo ra çõ es c r ít ic a s conceito de antijuridicidade no Direito penal por
meio da sua concepção das normas, que lhe per­
Que valoração merece a teoria das normas mitiu daratal conceito um significado autônomo.
de B in d in g ? Tem validade e alguma utilidade Para B i n d i n g , com efeito, a conduta delituosa, na
nos dias atuais? Tinha razão H. M ayer quan­ realidade, não viola a lei penal, já que esta se limita
do afirmava que era “a única teoria jurídica a estabelecer as sanções correspondentes, senão
fundamental do seu tempo”?34 as normas, ou seja, os mandamentos e proibições
prévios à mesma; com isso toda a teoria da antijuri­
Certamente não se pode ignorar a transcen­ dicidade se realiza pelo conteúdo de tais normas.40
dência e o impacto do pensamento de B in d in g E, negativamente, importa também a teoria das
e da sua teoria das normas. Com acerto B in d in g normas quanto à relação tipo-antijudiricidade,
advertiu que o estudo desta matéria devia ser porque, conforme tal teoria, uma ação típica no
prévio ao das teorias penais, e, particularmen­ sentido do Código Penal deixará de ser antijurídica
te, ao da teoria do delito e da culpabilidade;35 - não é antijurídica - se no caso concreto não re­
afirmara a mesma coisa M . E. M a y e r .36 Ambos os presenta nenhuma realização do injusto.41A teoria
autores acham-se cobertos de razão; é da teoria das normas tem reflexos, também, no campo da
das normas que deve partir a teoria do delito, da culpabilidade, como diz M a u r a c h , 42 porque en­
culpabilidade etc.; a teoria constitucionalista do quanto o desconhecimento da cominação penal
delito, a propósito, tem sua origem na teoria das carece de relevância, a consciênciadaantijuridici-
normas, como veremos mais adiante. dade exige o conhecimento da norma. É lógico, de
Mas a principal contribuição de B in d i n g reside outro lado que a concepção das normas de B in d in g
no plano metodológico, embora não fosse majori- definiu sua particular concepção da pena, enquan­
tariamente apoiado pela doutrina,37poissua teoria to "conservação do senhorio do direito sobre os
das normas pôs em relevo que a teoria do Direito culpáveis, segundo a medida da culpabilidade".43A
penal é mais que uma teoria da pena. A teoria do finalidade da pena é castigo. Porque, certamente,
Direito penal deve versar sobre seu âmbito total a lei pretende, também, a coação psicológica, mas
de incidência (não só sobre a pena). Deve elaborar, cada crime é a demonstração mais palpável da
sobretudo, as suas estruturas lógico-objetivas, eficácia limitada daquela.44E, uma vez cometido o
assinalando as conexões necessárias dos dogmas delito-adesobediência-só resta a possibilidade
particulares e garantindo sua realização.38 de que o "direito à obediência" se transforme em
um "direito à coação" contra quem desobedeceu
e em razão da desobediência. O novo direito sub­
32. Cf. M a u r a c h , Reinhart. Deutsches Strafrecht. jetivo, portanto (o direito subjetivo à pena), não é
Allgemeiner Teil. 4 ed. Karlsruhe, 1971. p. 221 mais que um direito de submissão transformado.
e ss; K a u f m a n n , A. Lebendiges und totes, c it., p.
Assim explica B in d in g , em síntese, a razão de ser da
235 e ss; R o d r íg u e z D e v e s a , J.M. Derecho penal pena: o direito subjetivo à obediência se transfor­
espanol: parte general, p. 151.
ma, pela desobediência, em um direito à coação,
33. Cf. G u z m á n D a l b o r a , J.L. Bienjurídico y normas que implica o submetimento do culpável ao poder
de cultura: revisión de la teoria de M.E.M a y e r . jurídico que ele não respeitou, como castigo pela
RevistadeDerechopenaly Criminología, 3,1993.
p. 227ess.,e: V iv e s ANTóN,TomasS. Fundamentos
dei sistema penal, cit., p. 417 e ss. 39. Idem, p. 3.
34. H. M ayer . Strafrecht, A.T., 1953. p. 32. 40. Neste sentido, J e s c h e c k , Hans-Heinrich. Lehr-
35. Cf. K a u fm an n , A. Lebendiges und totes, cit., p. 3. buch des Strafrechts, cit., p. 160.
36. S t r a f r e c h t , Allg. T., 1953. p. 417. 41. Assim, M a u r a c h , Reinhart. Deutsches Strafrecht,
37. Cf. uma visão panorâmica da doutrina alemã em: A.T., cit., p. 220.
K a u f m a n n , A. Lebendiges und totes, cit., p. 289, 42. M a u r a c h , Reinhart. Deutsches Strafrecht, cit.,

nota 91. A.T., p. 220.


38. Apuei K a u f m a n n , A. Lebendiges und totes, cit.,p. 43. Cf. K a u f m a n n , A. Lebendiges und totes, cit., p. 17.
289. 44. Idem, ibidem.
622 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

violação jurídica irreparável cometida. O direito Direito penal pertencem, a juízo do autor, tanto
de submissão transforma-se, desse modo, em um as normas que impõem penas aos delitos como as
direito "à conservação do senhorio do direito". A que proíbem o cometimento destes (ambas per­
pena é "a conservação do senhorio do direito por tencem ao Direito penal, não ao Direito público
meio do submetimento do criminoso à coação geral, nem ao Direito político). Em conseqüência,
jurídica".45 não se deve sugerir a autonomia destas normas
em relação aos preceitos penais portadores das
Contra a teoria das normas de B inding e a mesmas, nem tampouco a natureza puramente
das normas de cultura de M . E. M ayer foram sancionatória do Direito penal. Este se manifesta
formuladas numerosas objeções, fundamen­ por meio dos preceitos em duas direções: proi­
talmente no concernente ao eixo comum de bindo os delitos e castigando-os mediante uma
ambas: a crença de que a lei penal não expressa regulamentação unitária.

um imperativo dirigido ao cidadão (norma Na doutrina alemã também se sustenta que


é discutível a necessidade de mandamentos nor­
primária), senão só um mandamento dirigido
mativos prévios à lei penal; que nada impede o
ao juiz (norma secundária), e de que a cha­ legislador de levar a cabo a proteção dos interesses
mada norma “primária” é previa e externa à de forma direta, por meio da configuração dos cor­
lei penal, não só em sentido lógico. Isto é: a respondentes tipos penais; que a cominação penal
norma penal - segundo a concepção de B in ­ já contém em si mesma a proibição que B in d i n g
ding e M . E. M ayer - não se deduz da lei penal, remete à norma prévia; que não é, em todo caso,
senão ao contrário: a lei penal pressupõe uma possível demonstrar a existência das tais normas
prévias às leis penais, pelo que a ciência penal
norma prévia, da que parte.46
tem que se limitar ao exame dos mandamentos
Sta m p a censurou a construção de B in d in g por­ contidos no Código Penal.50Todas essas críticas se
que, a seu juízo, conduz ao reconhecimento ine­ tornam mais contundentes em relação à teoria das
vitável do caráter secundário do Direito penal, normas de cultura de M . E. M a y e r , por seu maior
que seria acessório, cujo aparato, meramente ingrediente sociológico.51
sancionatório e coativo, se limitaria a velar pelo M a u r a c h , ao contrário, formulou interessantes
cumprimento de normas ou preceitos situados reflexões em torno da teoria das normas e da sua
em outro lugar, autônomo do Direito Político atualidade. Para o autor, um sistema de normas
geral.47 R o d r íg u e z D e v e s a reprovou a construção que sirvade base às leis penais justifica-se tanto do
bindingniana por sua insuficiência insanável, com­ ponto de vista lógico-jurídico como dogmático.
preensível só desde uma concepção puramente Do ponto de vista lógico porque a interpo-
estática da lei penal: B i n d in g e seus discípulos sição das normas permite o processo de seleção
-aponta-esqueceram de elaborar o catálogo das das lesões ao bem jurídico que, depois, o tipo
normas, sem o qual a teoria carece de conteúdo; e aperfeiçoa. Com efeito, se se quisesse estruturar
isso, apesar de que o próprio B in d in g afirmar que a cominação penal - diz M a u r a c h - em torno da
a ciência do Direito penal tem, precisamente, por exclusiva idéia do bem jurídico, deveria se castigar,
objeto fixar a forma, conteúdo e tipo de normas, então, toda ação que suponha algum dano ou
assim como determinar as relações internas e perigo para o mesmo; o que não acontece por­
externas entre tais normas e a lei penal.48 Para que os tipos costumam castigar só determinados
M i r P u i g , 49 a norma que o delinqüente infringe ataques ao objeto da proteção penal. Este efeito
- distinta da norma (secundária) que estabelece a limitado, segundo o autor, se conseguiria em vir­
pena-é uma norma jurídico-penal, precisamente tude da interposição da correspondente "norma"
porque conta com o respaldo da ameaça penal. Ao que operaria como critério de seleção. Segundo
M a u r a c h , pouco importa a prioridade cronológica
ou a cognoscibilidade da norma, embora seja esse
45. Idem, p. 15 e 16.
o ponto criticado em B i n d i n g .
46. Apud M ir P u i g , Santiago. Introducción a Ias bases
Em segundo lugar, afirma M a u r a c h , a teoria
dei Derecho penal dei Derecho penal, cit., p. 33 e
35. das normas é necessária e útil, inclusive do ponto
de vista estritamente dogmático: para a teoria
47. S t a m p a ,J.M. Introducción a la Ciência dei Derecho
penal, cit., p. 38.
48. Apud R o d r íg u e z D e v e s a ,J . M . Derecho penal cspa- 50. Cf. M a u r a c h , Reinhart. Deutsches Strafrecht, A.T.,
nol: parte general, cit, p. 14 e 15. p. 221.
49. Derecho penal: parte general, cit., p. 30. 51. Idem, ibidem.
Teoria da norma penal 623

da antijuridicidade, da culpabilidade e do erro. A preceito primário) e de uma “conseqüência”


existência de uma causa de justificação da conduta (leia-se: de um preceito normativo ou de uma
típica - diz - só pode ser explicada pelo fato de
sanção ou de um preceito secundário). De um
que a norma que está entranhada no tipo "cede", se
retira. O juízo de culpabilidade-continua M a u r a c h
modo geral isso é respeitado pelo legislador,
-pressupõe a possibilidade do conhecimento pelo porém, nem sempre. Por razões práticas, de
autor do injusto, isto é, o conhecimento potencial economia e de técnica legislativa33 nem sem­
da norma. Por último, conclui M a u r a c h , só se valen­ pre a estrutura legal (a base legal) da norma
do da teoria das normas é que se pode distinguir é completa. Especial atenção merece a teoria
com nitidez o conceito de erro de proibição.52 das chamadas leis “incompletas” assim como
De acordo com A. K a u f m a n n a principal a das “leis penais em branco”.
contribuição da teoria das normas reside no Como adverte Stam pa, distinguindo entre nor­
plano metodológico. O criticado “formalismo” ma (completa) e disposição:56"A norma penal con­
do autor consistiu em seu desejo de examinar tém sempre ambos momentos (preceito e sanção
as “estruturas lógico-objetivas” previamen­ na sua terminologia) mas nem toda disposição
te dadas à configuração e conformação da de caráter penal alberga uma norma completa.
Às vezes, a disposição descreve, unicamente, o
matéria jurídica.33 B in d in g não se limitou a
preceito ou a sanção, o que supõe que a norma
evidenciar a existência das normas ou a assi­ venha formada pela combinação de duas ou mais
nalar possíveis fontes de normas, com o fim de disposições (...) Em outras ocasiões o preceito e a
preencher eventuais lacunas do ordenamento sanção estão situados em documentos legislativos
jurídico, senão que demonstrou a presença de diferentes (...) Em tais casos, e em outros parecidos
uma lógica interna nas normas. Não se pode (normas de reenvio etc.), compete ao intérprete a
ignorar o mérito de quem, com uma metodo­ tarefa de recompor a norma, investigando onde
se encontram seus dois elementos dialéticos,
logia normológica, nos permitiu comprovar
reconstruindo-a em um todo harmônico". Em
que as normas encontram seu fundamento em termos muito semelhantes se expressa R o d r íg u e z
estruturas apriorísticas previamente dadas. O M o u r u l l o .57
significado essencial e permanente da teoria
das normas, por isso mesmo, não reside no/ 4 . 2 L e is in c o m p l e t a s
“enérgico aprofundamento e elaboração dò
material legal”, senão em seu estímulo para a M ir P u ig 38 eMuNOz C o n d e ,39 dentre outros,

construção de uma dogmática autêntica assim conferiram especial atenção ao fenômeno


como em seu reconhecimento das estruturas das chamadas leis incompletas. Afirma o pri­
lógico-objetivas (prévias à lei).54 meiro:
“Em geral a expressão completa do con­
teúdo da norma jurídico-penal não se cor-
Capítulo 4
A ESTRUTURA LÓGICA DA NORMA
55. Cf. R o d r íg u e z D e v e s a . J . M . Derecho penal: parte
E SITUAÇÕES ESPECIAIS general, cit., p. 140 e ss.
56. lntroducción a 1a Ciência dei Derecho penal, cit.,
4 .1 E st r u t u r a “ l ó g ic a ” e estr u tu ra p. 29. S t a m p a , por outro lado, adverte que as cha­
“l e g a l ” da n orm a madas “normas permissivas” não são realmente
tais “normas” senão “disposições" destinadas
Devemos distinguir a estrutura lógica da a integrar o conteúdo das normas “completas”
estrutura legal da norma. A estrutura “lógi­ (lntroducción a la Ciência dei Derecho penal, cit.,
ca” da norma, como vimos, é composta de p. 24 e 25).
um “pressuposto” (de uma situação fática ou 57. R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Derecho penal:
parte general. Madrid: Civitas, 1978. p. 86 e
87.
52. Idem, p. 221-223. 58. M i r P u i g , Santiago. lntroducción a las bases dei
53. K a u f m a n n , A . Lebendiges und totes, cit., p. 290. Derecho penal dei Derecho penal, cit., p. 40 e ss.
54. Idem, p. 292. ' 59. Idem, p. 40.
624 D ir e it o p enal - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

responde com os concretos artigos das leis preceitos da Parte Geral,63por serem estes os que
penais. As normas penais em branco são correspondem com maior evidência à finalidade
de"completar" ou "esclarecer"o pressuposto ou a
sempre lembradas como exemplo disso, mas
conseqüência das demais proposições jurídicas,64
é certo que essas normas não retratam mais missões conferidas aos preceitos "incompletos".
que situações extremas do que é comum na Referindo-se, a esses preceitos (da Parte G e­
legislação penal: os artigos legais não costu­ ral), M ir P uic destaca o caráter duplamente in­
mam coincidir com as normas jurídico-penais completo de alguns deles: concretamente, dos
que regulam as formas imperfeitas de execução
completas”.00
(consumação/tentativa), de participação e os
Em outras palavras, a estrutura legal das atos preparatórios puníveis; por um lado-afirma
normas, com freqüência, não espelha, de - porque, como todo delito, supõem a remissão
modo integral, a sua estrutura lógica (que às proposições que regulam as causas de exclusão
e modificação da responsabilidade criminal e o
exige preceito normativo e sanção, ou seja,
conteúdo das respectivas penas; por outro lado,
pressuposto e conseqüência, ou ainda, precei­ porque possuem a particularidade de que seu
to primário e preceito secundário). próprio tipo positivo resulta da coordenação dos
preceitos da Parte Especial com os que regulam
Não se pode confundir, por conseguinte, a
essas figuras na Parte Geral. Desse modo, assinala
"norma"-norma penal completa-com o "precei­
M ir, a necessária "coordenação" entre os diversos
to legal ou disposição" do Código Penal. O usual
preceitos da Parte Geral e os da Especial tem um
é, precisamente,61 que diversos artigos (de lei)
significado específico - mais agudo - em relação
sejam conjugados para conformar a norma penal a esses preceitos da Parte Geral.65
completa, pois o comum é que a norma"fracione"
Os preceitos da Parte Especial são os apresen­
e reparta os diversos elementos do seu pressupos­
tados como preceitos "completos".66 Entretanto,
to (situação fática) ou da sua conseqüência entre é certo que também eles hão de se colocar em
vários artigos, preceitos ou disposições. relação com outros preceitos para uma descrição
A rigor, poder-se-ia afirmar que todas as dis­ completa do conteúdo da norma: são, portanto,
posições legais espelham normas "incompletas", também, leis incompletas, embora descrevam o
se por norma completa entendemos somente a pressuposto e a conseqüência jurídica.
que determina exaustivamente o conteúdo do De outro lado, como assinala M ir P uig,67é certo
seu pressuposto assim como da sua conseqüência que os preceitos legais da Parte Especial (art. 121,
jurídica. por exemplo) dizem mais do que efetivamente
Formalmente, parecem normas completas são; pois não é verdade que aquele que matar
a maior parte das disposições contidas na Parte outrem será sempre castigado com a pena de seis a
Especial dos Códigos penais, visto que contêm vinte anos de reclusão, senão que isso acontecerá
só se não concorrerem causas de justificação nem
tanto o pressuposto (situação fática) como a con­
de exclusão da culpabilidade, nem tampouco
seqüência jurídica (sanção). No entanto, pode-se
afirmar, que nem as proposições contidas na Parte
Especial nem, logicamente, as que se acham na 63. Assim, com razão, idem, p. 41 e bibliografia ali
Parte Geral, encerram por si sós normas penais citada.
completas, quanto ao seu conteúdo.62Todas as 64. Esta interconexão entre os diversos preceitos do
proposições jurídicas, de algum modo, têm que ordenamento jurídico se ressalta, entre outros,
se colocar em relação com outras destinadas a por L a r e n z , K. Methodenlehre der Rechtswis-
completá-las. senschaft, Springer Verlag, 2. ed., 1969. p. 193 e
A doutrina, ao estudar as denominadas leis ss.
incompletas, fixou-se, fundamentalmente, nos 65. M ir P u i g , Santiago. Introducción a las bases dei
Derecho penal dei Derecho penal, cit., p. 44.
66. Por exemplo: M u n o z C o n d e , Francisco. Introduc-
60. M i r P u i g , S ., Introducción a las bases, cit., p. cíónal Derecho penal, cit., p. 14 e 15, respeito ao
40. homicídio do art. 407 do C . P espanhol. Tacita-
61. Partindo de que é a regra, o fenômeno normal: mente, em contra: S t a m p a B r a u n , J. M . lntroduc-
M ir P u i g , Santiago. Introducción a las bases dei ción a la Ciência dei Derecho penal, cit., p. 25.
Derecho penal, cit., p. 41. 67. M ir P u i g , Santiago. Introducción a las bases dei
62. Idem, p. 42. Derecho penal dei Derecho penal, cit., p. 40 e 41.
Teoria da norma penal 625

circunstâncias modificativas que alterem a pena conseqüências dogmáticas no campo do erro


típica. Tanto a penalidade do art. 121 como os sobre os pressupostos das causas de justificação,72
[imites da situação fática descrita ou mesmo a que vamos tratar mais adiante, na Segunda Parte
concreta sanção aplicável dependem do disposto deste livro.73
em outros preceitos da Parte Geral.68 Sintetizando: leis penais incompletas são as
Tudo isso, claro está, não significa que os pre­ que não formulam uma norma completa que se
ceitos da Parte Geral e da Especial sejam idênticos estrutura num pressuposto (preceito primário) e
quanto à descrição da matéria da proibição e grau na conseqüência jurídica subseqüente (preceito
de completude: os preceitos da Parte Especial são secundário). São incompletas ou imperfeitas as
incompletos, também, mas "principais"; os da leis penais que dependem da combinação ou do
Geral, incompletos, mas "complementares" em complemento de outras leis ou outros atos nor­
relação aos anteriores.65 mativos, seja para expressar na sua integralidade
Caberia perguntar o motivo (ou seja, a razão) o pressuposto normativo (a situação fática ou pre­
do fenômeno que estamos enfocando (por quê ceito primário), seja para exprimir a conseqüência
a maior parte dos preceitos penais não retratam jurídica (preceito secundário). Toda lei penal que
normas completas?). A resposta parece simples: faz remissão a outra lei para complementar uma
não há razões de caráter substantivo, senão sim­ das partes da norma (situação fática ou castigo)
plesmente de técnica e de economia legislativa. ou que dependa de outra lei para se alcançar a
Não é outra a origem da chamada Parte Geral definição da norma, é uma lei penal incompleta
dos Códigos. Um lento processo histórico foi se ou imperfeita, que é, portanto, um gênero que
desenvolvendo a partir do que hoje chamamos conta com muitas espécies. A mais eloqüente e
Parte Especial, que ainda constitui a coluna ver­ conhecida espécie de lei penal incompleta é, sem
tebral do direito punitivo; os componentes da lei sombra de dúvida, a lei penal em branco.
penal que se repetem em todos ou em vários de­
litos é que foram formando a "Parte Geral";70para 4.3 As “l e is p e n a is e m b r a n c o ”

evitar contínuas repetições, foi-se elaborando


uma espécie de catálogo de fatos que freqüente­ As chamadas “1eis penais em branco” (essa
mente modificam o pressuposto ou a conseqüên­ terminologia, como se sabe, procede de B in ­
cia jurídica de qualquer tipo, ou que servem para d ing - “Blankettstrafgesetze”)74 revelam uma
esclarecê-los.71 É, pois, uma questão de técnica hipótese muito singular de técnica legislati­
legislativa, acidental. va.'3De um modo geral, como afirmamos, não
Uma última questão: o fato de que as diversas é raro que as proposições jurídicas (preceito
leis penais sejam leis incompletas tem alguma
transcendência além do que esta particularidade
supõe no campo da lógica formal? Sim, consoan­ 72. M ir P u i g , Santiago. lntroducción a las bases dei

te M ir P u i g , para quem uma das conseqüências Derecho penal dei Derecho penal, cit., p. 43.
fundamentais do caráter incompleto dos tipos da 73. Adverte M i r P u i g , Santiago (idem, p. 43) que
Parte Especial seria a própria teoria dos elementos o tipo completo que propugnam aqueles que
negativos do tipo, teoria que entende por "tipo" sustentam a teoria dos elementos negativos não é
não só o tipo no sentido de B e l in g (tipo positivo), ainda a situação fática “completo” de uma norma
senão, ademais, o chamado tipo "negativo" ou penal (completa), já que teria que ter em conta,
ausênciade causas de justificação, que estaria coli­ ademais, a ausência de causas de exclusão da cul­
gado com o primeiro. Disso decorrem importantes pabilidade e de circunstâncias modificativas.
74. K. Díe Normen, cit., 1882 (Leipzig),
B in d in g ,
I, p. 71 e ss: especialmente, p. 76. Para o autor
68. Quanto à necessidade de ter em conta a totalida­ tratava-se de uma "construção pouco clara”.
de dos preceitos da Parte Geral: Cf., R o d r íg u e z
75. Assim: M a u r a c h , Reinhart.; Z i p f , Heinz. Deut­
D e v e s a , J.M . Derecho penal espanol, cit., p. 149 e
sches Strafrecht, A.T., cit., p. 113. A juízo de
150.
M a u r a c h , a técnica é excepcional porque o mais
69. Neste sentido, cf: M i r P u i g , Santiago, lntroducción freqüente é que as cominações penais sejam leis
a las bases dei Derecho penal dei Derecho penal, “completas”, no sentido de que determinam elas
cit., p. 45. mesmas o pressuposto e a conseqüência jurídica
70. Assim: R o d r í g u e z D e v e s a , J.M . Derecho penal ou remeteriam a outro artigo da mesma lei - o que
espanol, cit., p. 149 e 150. seria o mesmo, diz - para tal fim. Cf. também,
71. Assim: M u n o z C o n d e , E lntroducción al Derecho M i r P u i g , Santiago. lntroducción a las bases dei
penal, cit., p. 16 e 17. Derecho penal, cit., p. 47.
626 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

primário) não cheguem a formular uma nor­ o conceito de funcionário público estrangeiro
ma completa, sendo necessário recompô-la (CP, art. 337-D).
As chamadas "leis em branco ao revés ou in­
por meio da integração de fragmentos disper­
vertidas", segundo terminologia de Jiménez de
sos no ordenamento legal. A súa,78têm a particularidade de que a disposição
A técnica das leis penais em branco supõe penal define o pressuposto fático, remetendo-
um passo a mais. Com efeito, nelas, a dispo­ se a outro corpo legislativo a determinação da
pena. Em regra o complemento normativo exigido
sição legal (preceito primário) deixa total ou
pela lei penal em branco diz respeito ao âmbito
parcialmente de expressar a integralidade da do proibido (ao preceito primário). É o preceito
situação fática e faz remissão a (ou pressupõe primário que normalmente é incompleto. Na lei
a existência de) outras disposições que hão de penal em branco ao revés ou invertida o comple­
cobrir-lhe o vazio. Trata-se, pois, de uma par­ mento requerido relaciona-se com a pena. A rigor,
ticularidade estrutural facilmente perceptível, não seria correto falar em lei penal em branco
nesse caso. Melhor seria dizer"lei incompleta". De
porque afeta a face “externa” da lei,'0 isto é,
qualquer maneira, em geral, na doutrina é corrente
porque são leis que exigem um complemento a utilização da expressão lei penal em branco ao
normativo (para a compreensão da situação revés ou invertida.
típica ou fática incriminada). A remessa para outro corpo legislativo para
se definir a pena do delito ocorria, por exemplo,
Da lei penal em branco em sentido estri­
com o art. 95 da Lei 8.212/91 (que, ao cuidar an­
to (ou própria) distinguem-se as chamadas tigamente dos crimes previdenciários, quanto à
“leis penais em branco impróprias” assim pena, fazia referência à lei dos crimes tributários).
como as “leis penais em branco ao revés ou E ocorre ainda com a Lei 2.889/56, que define o
invertidas”. crime de genocídio (a sanção para esse crime é a
do homicídio ou da lesão corporal - cf. art. 1.° da
Leis penais em branco próprias (ou em senti­ lei citada).
do estrito) são as que exigem um complemento
Quando o legislador define o comportamento
normativo que emana de outra instância legis­
delituoso em um artigo e, em outro distinto, es­
lativa (ou seja, outra instância distinta do legis­ tabelece a pena79(Exemplo concreto: art. 295 do
lador). Exemplo: Lei de Drogas (arts. 28 e 33 da Código penal, que cuida do crime de "petrechos
Lei 11.343/2006). Quem define a lista das drogas de falsificação" (...) "se o agente do crime é fun­
não é o Poder Legislativo, sim, o Executivo (por cionário público (...) aumenta-se a pena de sexta
meio de Portarias da Anvisa: Agência Nacional de parte"; Apenaaquese refere o art. 295 está fixada
Vigilância Sanitária). no art 294), fala-se em lei penal em branco ao revés
Quando meio legislativo distinto for de natu­ ou invertida (que não deixa de ser uma forma de lei
reza administrativa ou regulamentar de categoria incompleta). Aliás, qualquer lei penal em branco
inferior ao da lei formal (esse é o caso das leis nada mais é que espécie de lei incompleta.
penais em branco próprias), não há dúvida que
Tampouco podem ser confundidas as leis
esta técnica merece graves reparos do ponto de
vista constitucional.77 Mais abaixo voltaremos a penais em branco com os requisitos nonnativos
esse tema. do tipo, embora a distinção não seja pacífica.80
As leis penais em branco "impróprias" (ou em Para S il v a S á n c h e z as leis penais em branco
sentido amplo), por seu turno, exigem um comple­ contêm uma remissão"expressa"aartigos de outra
mento normativo que emana da mesma instância lei (estrita ou ampla), enquanto que os elementos
legislativa. Por exemplo: nos crimes funcionais (CP, normativos pressupõem remissões "conclusivas"
art. 312 e ss.), o conceito de funcionário público é
dado pelo legislador, no art. 327. O complemen­
78. Tratado, cit., II., p. 352 e ss.
to é dado pela mesma instância legislativa (pelo
próprio Poder Legislativo). Dá-se o mesmo com 79. Cf. Q u in t e r i o O l iv a r e s , Gonzalo. Manual de De­
recho penal: parte general. Pamplona: Editorial
Aranzadi, 1999. p. 56.
76. Assim: B l e i , H, ( M e z g e r -Bl e i) , Strafrecht, A. T., 80. Sobre a distinção, e os critérios doutrinários que
I, 17. ed., p. 100. no texto se comentam, Cf., L u z ó n P e n a , D.M.
77. Assim, M i r P u i g , Santiago. Derecho penal: parte Curso de Derecho penal: parte general. Madrid:
general, cit., p. 35. Universitas, 1996, p. 149.
Teoria da norma penal 627

ou "tácitas". Há autores (Tiedem ann, C r a m e r , G a r c í a que em branco, não a extra-penal (complementar)


A rá netc.) que rejeitam esse critério de distinção, a que deve fixar com precisão as características do
por estimar que também os requisitos normativos delito: em outras palavras, o delito não pode ser
podem fazer remissões expressas a outras normas. descrito pelo complemente normativo.
Para diferenciar, sublinham o seguinte: a lei penal
em branco se remete em bloco (in toto) à norma 4.3.1 Origem desta particular técnica
extra-penal, é esta última a que determina o pres­
legislativa
suposto fático da primeira (a conduta típica é a
infração da norma extra-penal), enquanto que os Bem sublinhou S tampa 83 que o conceito
elementos normativos ou valorativos contêm uma
e tratamento das chamadas leis penais em
remissão a normas extra-penais para o só efeito de
interpretar um concreto fator ou elemento do tipo branco experimentou uma sensível evolução
que, desde logo, já foi estabelecido pela própria histórica. Aparece com B in d in g , que dele se
lei. Há, ademais, um outro setor doutrinário que, vale sobretudo para explicar certos casos de
não obstante, relativiza o interesse da distinção delegação e autorização da autoridade federal
conceituai examinada (assim, S c h l ü c h t e r ) . 81 O em favor da estadual (dos Lànder). Trata-se,
melhor critério de diferenciação talvez seja, entre­
pois, de um genuíno problema de hierarquia
tanto, o seguinte: a lei penal em branco depende
de um complemento normativo; o requisito nor­
de fontes, próprio dos sistemas federais, que
mativo do tipo requer um complemento valorati- obriga a questionar a legalidade e alcance
vo (uma valoração do juiz). O crime de tráfico de de certas autorizações a órgãos de categoria
entorpecentes (art. 33 da Lei 11.343/2006) vem inferior.
retratado numa lei penal em branco porque re­
Posteriormente, é certo, o conceito de lei pe­
quer um complemento normativo (que é a lista das
nal em branco sofreu uma notável ampliação,
substâncias entorpecentes). O tipo penal do art.
sobretudo a partir de M e z g e r , que acrescentou à
233 do CP (ato obsceno) funda-se em requisitos
hipótese anterior de lei penal em branco-queti-
normativos (praticar ato obsceno em via pública)
que exigem do juiz um complemento valorativo nha como essência a idéia de que o complemento
(leia-se: cabe ao juiz definir o que se entende por normativo se encontra em uma instância legislativa
ato obsceno). distinta-outras duas: quando o complemento da
lei penal em branco se encontra contido na mesma
Toda lei penal em branco é, sem dúvida, lei e quando se encontra contido em outra lei, mas
uma lei “incompleta”, mas nem toda lei in­ que emana de idêntica instância legislativa.84
completa é uma lei penal em branco.
4.3.2 D elim itação conceituai
A "estrutura" da lei penal em branco (lei que
demanda um complemento normativo) deve ser A doutrina alemã distingue dois conceitos
distinguida do seu "conteúdo" (ou seja, do conteú­ de lei penal em branco: o próprio e o impró­
do do "tipo estrito").82L u z ó n P e n a , a propósito, di­
prio, ou seja, conceito estrito e amplo:85 na
ferencia duas situações: (a) se a norma extra-penal
(complementar) regula ou contém só uma parte
lei penal em branco em sentido amplo (ou
da situação fática, então a lei penal em branco não impróprio) o complemento se encontra na
é estruturalmente incompleta, senão apenas em mesma lei ou em outra lei da mesma instância
seu conteúdo; (b) no entanto, se a lei penal em legislativa (fala-se aqui também em comple-
branco se remete in toto a outra lei extra-penal
para descrever seu pressuposto fático - o que
acontece só excepcionalmente-então, embora a 83. Introducción a la Ciência dei Derecho penal, cit.,
lei penal em branco se refira a seu conteúdo fático p. 30 e ss. Cf. também: R o d r í g u e z M o u r u l l o ,
mediante uma remissão formal, deverá conside- Gonzalo. Derecho penal: parte general, cit., p.
rar-se estruturalmente incompleta e, do ponto de 87-89; M ir P u i g , Santiago. Introducción a las bases
vista material, contrária às exigências derivadas do dei Derecho penal, cit., p. 47 e ss.
princípio da legalidade, porque é a lei penal, ainda 84. M e z g e r , E.Strafrecht.einLehrbuch. 2. ed., 1933,
Duncker, p. 196.
85. Assim: M e z g e r , Edmund; B l e i . Hermann. Deu-
81. Idem, ibidem. tchesStrafrecht, cit., p. 100 (em sentido “amplo”
82. L u z ó n P e n a , D.M. Curso de Derecho penal: parte e em sentido “estrito”); B a u m a n n , J. Strafrecht,
general, cit., p. 147. A.T., cit., p. 137 (“próprio” e “impróprio”).
628 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

mento normativo homogêneo ou homólogo); permite, normalmente, que o cidadão obtenha


na lei penal em branco em sentido estrito o necessário conhecimento da ilicitude da sua
(ou próprio) o complemento provém de uma conduta, dado que a matéria de proibição não
instância legislativa diferente e inferior (o é delimitada com exaustividade na própria
complemento normativo é heterogêneo ou lei. O intérprete e o juiz penal, de outro lado,
heterólogo). acabam tendo que operar com um coman­
A essa classificação tradicional devemos do normativo que, sendo extra-penal, lhes é
agregar uma terceira: lei penal em branco ao alheio e, não raro, de difícil compreensão.80
revés ou invertida, que ocorre quando a lei Do ponto de vista constitucional, por último,
descreve com precisão o preceito primário (a o reenvio indiscriminado a normas de inferior
situação típica) e remete para outra lei (para categoria normativa coloca em perigo o prin­
outro corpo legislativo) o preceito secundário cípio da legalidade (aliás, reserva de lei) bem
(a sanção). É o caso típico da Lei 2.889/56 como o da divisão de poderes pela ingerência
(crimes de genocídio), que prevê o preceito da Administração em competências típicas do
primário e remete para outras leis o preceito Poder legislativo.87
secundário. Em todo caso, a norma penal em branco con­
Na lei penal em branco em sentido amplo tinua sendo uma norma penal, ainda quando ne­
ou impróprio ou homogênea o complemento cessita do complemento de normas extra-penais
normativo provém da mesma instância(ou fonte) para determinar seu pressuposto fático. Isso sig­
legislativa: o conceito de funcionário público, que nifica dizer que há de ser interpretada conforme
está contido no art. 327 do CP, é um complemento as técnicas, categorias e exigências próprias de
normativo homogêneo em relação a todos os uma norma que define os delitos e estabelece
crimes que apontam como sujeito ativo referido as penas correspondentes. O fragmento do tipo
funcionário público. O conceito de funcionário que é regulado pela norma extra-penal passa a
público estrangeiro do art. 337-D é um comple­ integrar definitivamente o tipo penal; não é um
mento normativo homogêneo em relação aos conteúdo normativo autônomo ealheioà matéria
delitos previstos no art. 337-A, B e C. de proibição que deva ser regido por critérios e
Esse complemento normativo homogêneo, regras próprias do seu ordenamento de origem.
de outro lado, pode ser (a) homovitelíneo (é o Em conclusão, pois, nem sequer as hipóteses ex­
que se encontra na mesma estrutura normati­ tremas de lei penal em branco (remissão à norma
va da disposição legal carente de complemento extra-penal de categoria regulamentar) podem
- exemplo: art. 327 do CP) ou (b) heterovitelíneo
(é o complemento normativo que se encontra em
outra estrutura normativa, distinta da disposição 86. Neste sentido, Q u in t e r o O l iv a r e s , Gonzalo. Ma­
legal carente de complemento - exemplos: arts. nual de Derecho penal: parte general. Pamplona:
178 e 184 do CP). Editorial Aranzadi, 1999, p. 57. Também: M u n o z
C o n d e , Francisco; G a r c ia A r A n , M . Derechopenal:
Em contrapartida, na lei penal em branco
parte general. 3. ed. Valencia: Tirant lo Blanch,
em sentido estrito ou próprio ou heterogênea o
1998. p. 43, para os quais “o distinto alcance e
complemento normativo provém de outra ins­
conteúdo da norma penal em relação às demais
tância legislativa: é o caso das listas da Anvisa que
normas jurídicas produz uma discordância entre
demarcam o que é (e o que não é) substância
as próprias normas penais que não ajuda em
entorpecente.
absoluto à certeza e segurança jurídica”.
Na lei penal em branco ao revés ou invertida
87. Perigo unanimemente denunciado pela dou­
o que vem dado por outra lei é o preceito secun­
trina. Assim, M u n o z C o n d e , Francisco; G a r c ia
dário. É o caso da Lei 2.889/56 (crimes de genocí­
A r á n , M . Derecho penal: parte general, cit., p. 43;
dio), que prevê o preceito primário e remete para
Q u in t e r o O l iv a r e s , Gonzalo. Manual de Derecho
outras leis o preceito secundário.
penai: parte general, cit., 57 ess.; C o b o d e l R o s a l ,
A técnica das leis penais em branco, como Manuel; V iv e s A n t ó n , Tomas S. Derecho penal:
parte general. 4. ed. Valencia: Tirant lo blanch,
veremos em seguida, pode, muitas vezes, sus­
1996. p. 140; L u z ó n P e n a , D . M . Curso de Derecho
citar sérios problemas e complicações. A re­ penai:partegeneral,cit.,p. 150ess.; C e r e z o M i r ,
missão a disposições extra-penais, v.g., com José. Curso de Derecho penal espanol. 5. ed., cit.,
freqüência de categoria regulamentar, não p. 156.
Teoria da norma penal 629

constituir uma alegação em favor da suposta na­ categoria inferior, de natureza regulamentar. Não
tureza sancionatória do Direito penal.88 importa, pois, a natureza penal ou extra-penal da
disposição à qual a lei incompleta se remete, se­
De qualquer maneira, quando se estuda não a hierarquia ou categoria normativa daquela,
a natureza e categoria do complemento ne­ inferior por seu caráter regulamentar ao da lei em
cessário da lei penal em branco, existem três sentido formal. Aqui já não se trata de um proble­
posições diferenciadas: uma extensiva, outra ma de técnica legislativa, senão de competência.
De competências e garantias fundamentais, como
restritiva e uma terceira intermediária.89
se verá (legalidade, segurança jurídica, reserva da
A extensiva- próxima ao conceito de lei penal lei, divisão de poderes etc.).92Exemplo: artigos28 e
em branco de M e z g e r - inclui nesta categoria sui 33 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que exigem
generis de lei incompleta todos os casos em que norma complementar de natureza inferior para a
a disposição legal não consigna de modo inequí­ especificação do que se entende por substância
voco seu pressuposto fático; não importa se o entorpecente.
complemento necessário se encontra em outro Esta concepção restritiva do conceito de lei
preceito da própria lei. O art. 295 do Código penal penal em branco é a mais consonante, sem dúvida,
("se o agente é funcionário público e comete o com aorigem históricae significação jurídico-polí-
crime prevalecendo-se do cargo, aumenta-se a tica da técnica das leis penais em branco, enquanto
pena de sexta parte") seria uma hipótese de lei autorização a uma instância inferior para comple­
penal em branco porque se refere a um crime que mentar ou integrar excepcionalmente a descrição
está contemplado no art. 294. típica do preceito penal. Ademais, circunscreve
A tese extensiva ora em destaque, susten­ o conceito de lei penal em branco aos casos que
tada, dentre outros, por R o d r íg u e z D e v e s a , 90 não realmente revelam uma problemática complexa
convence. Acaba confundindo lei incompleta e delicada, descartando aqueles outros onde a
(gênero) e lei penal em branco (espécie). Essa remissão do preceito penal incompleto a dispo­
crítica é procedente91porque a tese supervaloriza sições com categoria de lei formal - penais ou
uma remissão a preceitos distintos que carece de extra-penais - não suscita questões de particular
especial relevância e se justifica por razões de relevância, nem ameaça garantias fundamentais
técnica legislativa. do cidadão.
V*

Na situação exemplificada como de lei penal Com efeito, a remissão do preceito penal (in­
em branco pela tese lata ou extensiva (CP, art. completo) a disposições de categoria regulamen­
tar -inferiorà lei formal em hierarquia normativa
295) não falta, em pureza, o pressuposto fático,
- apresenta sérios reparos, dúvidas e reservas.
senão que o legislador não o reitera ou explicita
Acrescente-se que a "legislação motorizada" é
para evitar repetições desnecessárias (no art. 295
ágil, célere e dinâmica. Seu procedimento de ela­
o legislador não quis transcrever tudo quanto já
boração, aprovação, modificação e derrogação
está descrito no art. 294). O reenvio ou remissão
também. Mas, precisamente por isso, o seu acesso
está plenamente justificado, mais ainda quando é
e conhecimento fica hoje reservado ao expert.
inequívoca a identificação do preceito que com­
No frondoso bosque da legislação administrativa
plementará o déficit técnico da lei remetente.
- da legislação motorizada - a prévia comprova­
Para uma segunda orientação doutrinária, par­ ção da lei em vigor aplicável ao caso tem tanta
tidária da interpretação restritiva do conceito de transcendência como a interpretação da referida
lei penal em branco, o essencial e definitivo desta lei. Tudo isso reduz até limites não desejáveis a
categoria não é a ausência ou falta de especificação faixa dasegurança jurídica e transforma o possível
do pressuposto fático, senão a sua determinação acesso do cidadão às proibições legais em uma
mediante a remissão a uma instância normativa de autêntica ficção.
Por outro lado, a técnica da remissão a normas
88. Cf. Q u in t e r o O l iv a r e s , Gonzalo. Manual de De­ de categoria inferior à lei, de caráter regulamen­
recho penal: parte general, cit., p. 58. tar, ameaça a própria essência do princípio da
legalidade e suas diversas garantias (hierarquia
89. Cf. M ir P u i g , Santiago. Derecho penal: parte ge­
normativa, reserva de lei, divisão de poderes etc.).
neral, cit., p. 34.
90. Derecho penal espanol: parte general, cit., p. 153.
91. Assim, R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Derecho 92. Neste sentido: Ro­
Stam pa B r a u n , A n tó n O n e c a ,
penal: parte general, cit., p. 88; M u n o z C o n d e , d r íg u e z Asúa, entre otros:
M o u r u l l o , J im é n e z d e
Francisco. Introducción al Derecho penal, cit., Cf. L u z ó n p e n a , D.M. Curso de Derecho penal:
p. 18. parte general, cit., p. 148.
630 D ir e it o p en a l - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

Pois, com efeito, e por mais que o decida a própria disposições regulamentares de inferior categoria
lei penal, em último caso o tipo penal se com ­ normativa).95Em segundo lugar, porque segundo a
pleta não por outra disposição com categoria de opinião majoritária todos os problemas relativos
lei, que procede do poder legislativo (expressão ao erro sobre o conteúdo e alcance da norma
da soberania popular), senão por preceitos de extra-penal, assim como sobre a retroatividade da
inferior hierarquia normativa, que emanam da lei penal mais favorável merecem o mesmo trata­
Administração Pública (poder executivo), de ca­ mento, solução que precisamente torna possível
ráter regulamentar. a tese examinada, ao não descriminar a natureza
De acordo com a terceira opinião, interme­ e categoria hierárquica da norma extra-penal
diária - e majoritária na doutrina - o conceito complementar.96
de lei penal em branco abarca todos os casos
em que o complemento necessário se encontra 4.3.3 Ju stificação e inconvenientes da
fora da disposição penal de que se trate, sem que
referida técnica
interesse a sua categoria hierárquica. Relevante
é, portanto, que o complemento da descrição Em todo caso, parece evidente a razão
típica se encontre fora da mesma disposição; não
importa a categoria hierárquica ou normativa da
de ser desta técnica legislativa. Com certa
disposição que completa e integra o tipo penal.93 freqüência, a realidade e a prudência exi­
São exemplos de norma penal em branco, nesse gem uma particular flexibilidade na redação
sentido: artigos 178, 184 e 269 do CP (que são e formulação dos diversos tipos legais. Há
carentes de complemento normativo para que se certas matérias, sobretudo no chamado Ne-
tenha acesso à sua compreensão). Também é lei
benstrafrecht9' (Direito penal dos interesses
penal branco a que descreve os delitos de drogas
(arts. 28 e 33 da Lei 11.343/2006). Não importa a
supraindividuais, acessório etc.), estreita­
categoria normativa do complemento. Essa ter­ mente vinculadas a setores muito dinâmicos
ceira corrente é a mais adequada. do ordenamento jurídico e distintos do Direito
penal, fortemente condicionadas, ademais,
É preferível a linha doutrinária da terceira
por circunstâncias histórico-sociais concretas
corrente: lei penal em branco é toda lei penal
(v.g. sanidade, ordem econômica etc.) ou pelo
que demanda um complemento normativo
seu tecnicismo (v.g. genética, meio ambiente,
para a compreensão da matéria proibida ou
energia nuclear etc.), cujo tratamento preciso
determinada, independentemente de qual
só pode ser garantido pela normativa extra-
seja a categoria ou hierarquia normativa des­
penal respectiva.
se complemento, isto é, inferior ou não à lei
form al descritiva da tipicidade. A atividade legiferante, nesses setores, costu­
ma ser contínua e com isso se produziria, inevita­
Como afirma M ir P u i g : lei penal em branco é
velmente, uma grave deteriorização legislativa,98
todo preceito definidor de um delito que deixe
se a lei penal-que parece, por natureza, destinada
a determinação de alguma parte específica da
a uma vigência mais estável - tivesse que cuidar
descrição típica para outras leis, regulamentos ou
de todas as condutas proibidas e seus porme­
atos da Administração.94 Existem, para isso, duas
nores. Ante à inevitável alternativa (permanente
razões fundamentais. Em primeiro lugar, o fato
modificação da lei penal ou sua"petrificação"),99
de que costuma ser puramente circunstancial a
parece mais recomendável que a lei penal seja só
concreta categoria normativa- lei ou regulamento
o "marco" básico da proibição, delegando-se a au-
- da disposição que complementa a descrição
típica preceito penal incompleto, pelo que não
existe razão alguma para sustentar a tese restri­ 95. A s s im , M u n o z C o n d e , F r a n c is c o ; G a r c ia A r á n ,
tiva (lei penal em branco é só a que se remete a M. Derecho penal: p a r t e g e n e r a l, c it ., p. 42.
96. Assim, M i r P u i g , Santiago. Derecho penal: parte
93. Assim, M ir P u i g , Santiago. Dcrecho penal: parte general, cit., p. 34 e 35.
general, cit., p. 34 e 35; L u z o n P e n a , D . M . Curso 97. Assim, J e s c h e c k , Hans-Heinrich. Lehrbuch, cit.,
de Derecho penal: parte general, cit., p. 148 (e p. 86.
resenha bibliográfica ali citada); M u n o z C o n d e , 98. Assim, M u n o z C o n d e , Francisco. lntroducción al
Francisco; G a r o a A r A n , M . Derecho penal: parte Derecho penal, cit., p. 19.
general, cit., p. 40 e 41. 99. R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Derecho penal:
94. Derecho penal: parte general, cit., p. 35. parte general, cit., p. 89.
Teoria da norma penal 631

toridades ou instâncias inferiores a determinação emprego descontrolado da técnica das leis


do seu "conteúdo" variável,100o que do ponto de penais em branco.
vista técnico-legislativo se traduz em inevitáveis
remissões do Código Penal a leis extra-penais. Consoante seu ponto de vista, a remissão do
Em determinados âmbitos da moderna cri­ pressuposto fático a outros setores, com freqüên­
minalidade (contra o meio ambiente, urbanismo, cia desconhecidos ou mais difíceis de conhecer,
ordenação do território, atividade sócio-econô- dificulta o trabalho do penalista; e, pode implicar
mica e financeira, funcionamento dos mercados, grave risco para a certeza e a segurança jurídica;
consumo e qualidade de vida etc.) a técnica das por outro lado, acrescenta que a norma penal em
branco supõe ou pode supor uma infração do
leis penais em branco constitui uma fórmula im­
princípio da legalidade e do princípio da divisão
prescindível de abertura e coordenação do Direito
de poderes que lhe deve servir de base, ao permitir
penal para os distintos setores e subsistemas do
que o caráter delituoso de uma conduta possa
ordenamento onde os novos bens jurídicos emer­
ser determinado por uma autoridade que, cons­
gentes encontram sua prima ratio jurídica.101 Isso
titucionalmente, não está facultada para isso. Por
constituiria, inclusive, um mecanismo normal de
isso, conclui o autor, o Direito penal deve criar, em
integração ou inter-relação do Direito penal nos
princípio, os pressupostos das suas normas de uma
modelos institucionais de organização e controle
maneira autônoma e, sempre que possível, sem
de determinados setores complexos de ativida­
remissões expressas a outros ramos do ordena­
de,102 útil e eficaz sempre que se submeta aos
mento jurídico: exceto se existem razões técnicas
limites e controles que veremos logo abaixo.
e político-criminais muito precisas e evidentes.
Para um forte setor da doutrina,103superados
Mas, em todo caso, com muita cautela.106
os excessos e limitando esta técnica às elementa­
res exigências garantistas, ela tem condições de
4.3.4 As questões da constitucionalidade
se transformar em uma fórmula ou procedimento
de integração do Direito penal com os conjuntos da “lei penal em bran co” e da
normativos extra-penais. Cuida-se de técnica rem issão a uma legislação
mais adequada e satisfatória que outros modelos supranacional ou estadual
utilizados pelo legislador (como são, por exemplo,
os requisitos normativos, cláusulas gerais, concei­ • Três situações concretas requerem um
tos jurídicos indeterminados, definições abertas, análise mais detida: a remissão a normas ex-
etc.). Nos últimos tempos o legislador "moderno" tra-penais regulamentares de categoria hie­
tem feito uso constante das leis penais em branco rárquica inferior à lei; a remissão a normas e
(exemplo: lei ambiental no Brasil, o vigente Código
instrumentos internacionais ou supranacio­
Penal de 1995 na Espanha104etc.).
nais e o reenvio à legislação estadual.
A técnica das leis penais em branco, como
afirma J e s c h e c k , 105não está proibida, por mais que 1. Quanto ã remissão a disposições regula
suponha a remissão a preceitos situados em outros mentares de categoria inferior normativa, a dou­
lugares e de conteúdo provavelmente incerto, trina10' acha-se muito dividida, manifestando
sempre que se satisfaçam (no marco da delegação uma atitude de inevitável resignação diante da
ou autorização correspondente) os requisitos de­ consolidação desta técnica legislativa.
rivados do princípio da determinação legal, isto é,
que o cidadão possa conhecer os pressupostos da Nosso STF, na mesma linha do Tribunal
punibilidade e a natureza e tipo da pena. Constitucional espanhol, tem convalidado
o que acaba de ser descrito sempre que a lei
M un o z C o n d e , d e q u a lq u e r m a n e ir a , te m
penal em branco contenhajá,porsisó, o “nú­
p o s t o e m r e le v o , c o m a c e r t o , o s p e r ig o s d o
cleo essencial da conduta proibida”, ou seja, a
conduta, o grau de afetação do bem jurídico
100. Neste sentido: B a u m a n n , J. Strafrecht, cit., p. 137.
101. Assim, Q u in t e r o O l iv a r e s , Gonzalo. Manual de
106. M u n o z C o n d e , Francisco. Introducción alDerecho
Derecho penal: parte general, cit., p. 59.
penal, cit., p. 20-23.
102. Idem, p. 59 e ss.
107. Respeito à estrangeira, cf.: L u z ó n P e n a , D.M.
103. Idem, p. 62. Curso de Derecho penal: parte general, cit., p. 149;
104. Idem, ibidem. - C o b o d e l R o s a l , Manuel; V iv e s A n t ó n , Tomas S.
105. Lehrbuch, cit., p. 86-87. Derecho penal: parte general, cit., p. 140.
632 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

etc. (Sentenças do Tribunal Constitucional crever, já não só o "núcleo essencial" da conduta


espanhol 127/1990, de 5 de julho; 118/1992, proibida, senão todos os elementos típicos obje­
tivos e subjetivos que delimitam o seu significado,
de lódesetembro; 111/1993, de 25 de março;
sem mais exceção que aqueles que só possam se
53/1994, de 24 de fevereiro etc.).108 precisar pela via regulamentar. Mais ainda, e com
Há um setor doutrinário que estima incons­ bom critério, estima que, ademais, a lei penal em
titucional essa técnica legislativa, por vulnerar o branco deve selecionar com critérios próprios
princípio da legalidade (reserva de le i, divisão de as parcelas relevantes da normativa extra-penal,
poderes etc.). Assim: C o b o / V iv e s A n t ó n , 109 M u n o z para incorporar ao tipo só as infrações mais graves
C o n d e , 110 M u n o z C o n d e / G a r c i a A r á n 111 etc. A opi­ daquela.115 Em todo caso, é imprescindível uma
nião majoritária, entretanto, admite as leis penais análise pormenorizada desta problemática com
em branco com certas reservas, seguindo neste base no Direito Positivo, sem generalizar, porque
sentido um critério mais restritivo. Assim: A r r o y o nem todas as remissões a normas regulamentares
e outros, condicionam a constitucionalidade da merecem o mesmo juízo.
lei penal em branco a que esta determine já por si
mesma a esfera e conteúdo de desvalor da norma De tudo quanto foi exposto se conclui: é
que se pretenda impor, relegando à normativa válida e correta “a colaboração regulamen­
regulamentar extra-penal exclusivamente a enun- tar na normativa sancionadora”, ou seja, a
ciação técnica detalhada dos seus pormenores remissão da norma penal (em branco) a dis­
(que, ademais, há de ser expressão e desenvol­ posições regulamentares quando isso é “obri­
vimento de um critério já definido na lei penal)
gado pela natureza das coisas” e sempre que
e a colocação em dia dos fatos ou objetos que
apresentam tal significado de desvalor.112' se cumpram certos requisitos: que o reenvio
L u z ó n P e n a , 113 partindo da absoluta excepcio-
normativo seja expresso e esteja justificado
nalidade desta técnica legislativa - como susten­ em razão do bem jurídico protegido; que a
tam, também outros autores -,114 afirma que só própria disposição penal já contenha o “nú­
se justifica quando ratione materiae seja o único cleo essencial da proibição'’, quer dizer, que
modelo técnico possível para delimitar o âmbito seja a “lei descritiva da tipicidade” e não a
do proibido. O autor, seguindo um louvável crité­
norma de inferior categoria hierárquica ou da
rio restritivo, considera inadmissíveis as remissões
in toto (remissão absoluta, em bloco) à normativa mesma categoria a que determine a matéria de
extra-penal, que, a seu juízo, nunca são necessá­ proibição; que se satisfaçam as exigências de
rias, já que a lei penal em branco sempre há de des­ certeza na delimitação da conduta delituosa,
salvaguardando-se assim a função de garantia
108. Cf. L u z ó n P e n a , D.M. Curso de Derecho penal, cit.,
do tipo, com a possibilidade de que o cidadão
p. 150; M u n o z C o n d e , Francisco; G a r c ia A r á n , conheça o comportamento que se incrimina
M . Derecho penal: parte general, cit., p. 123 e ss.; penalmente, de sorte que “só sejam infrações
Q u in t e r o O l iv a r e s , Gonzalo. Manual de Derecho (penais) as ações e omissões subsumíveis na
penal: parte general, cit., p. 62. norma com categoria de lei”.
109. Derecho penal: parte general, cit., p. 140.Dita téc­
nica, dizem, “pode implicar uma clara infração
2. Embora a legislação penal seja de com­
do princípio da legalidade, posto que a reserva petência exclusiva da União (CF, art. 22) im­
absoluta da lei impede a remissão normativa, põe-se questionar se a lei penal pode fazer
sendo, em princípio, contrária à Constituição”. remissão a normas internacionais ou comu­
110. M u n o z C o n d e , Francisco. lntroducción al Derecho nitárias para completar a descrição típica.
penal, cit., p. 20-23.
Considerando-se que a norma internacional
111. Derecho penal: parte general, cit., p. 124.
ou comunitária faz parte do nosso Direito
112. Cf. L u z ú n P e n a , D.M. Curso de Derecho penal:
interno, uma vez concretizada sua correta
parte general, cit., p. 150.
incorporação, não há impedimento para que
113. Idem, p. 151 e ss.
114. Assim, também, A r r o y o Z a p a t e r o , L u í s ; Z u g a l -
d ia E s p in a r , José Miguel; R o d r íg u e z M o u r u l l o , Curso de Derecho penal, cit., p.
1 15 . L u z ó n P e n a , D.M.
Gonzalo (quem exige que a remissão normativa 153. Em um sentido muito semelhante: Q u in t e r o
venha efetivamente “obrigada pela natureza das O l i v a r e s , Gonzalo. Manual de Derecho penal:
coisas”). Cf. L u z ó n P e n a , D.M., ult. op. cit. parte general, cit., p. 62.
Teoria da norma penal 633

uma norma internacional ou comunitária ve o legislador para, mais do que a qualida­


constitua complemento de uma lei penal em de externa da ação, descrever a infração de
branco. Complemento, afirmamos, porque determinados deveres derivados do papel
a descrição típica essencial deve emanar do que o sujeito desempenha no grupo social.118
legislador brasileiro (princípio da reserva Exemplo: art. 68 da Lei ambiental: “Deixar,
legal). aquele que tiver o dever legal ou contratual
3. Por último, normas legais ou regulamen-de fazê-lo, de cumprir obrigações de relevante
tares extra-penais dos Estados (e, às vezes, até interesse ambiental: Pena - detenção, de 1
do município) podem completar a descrição (um) a 3 (três) anos, e multa”.
típica quando a lei penal “formal” a elas faz E mister a existência de uma norma não penal
remissão (isso estã presente em vários tipos de caráter legislativo ou regulamentar para deter­
penais ambientais - art. 62, da lei ambiental, minar o dever que lhe serve de fundamento. Os
inconvenientes que disso derivam para o princípio
por exemplo).
da legalidade têm sua origem no fato de que o
tipo não descreve os deveres antes aludidos cuja
4.4 O utras h ipó teses con trovertidas vacuidade exige sua constatação por viajudicial,™
por meio muitas vezes até da criação livre do
Como hipóteses singulares de estrutura da Direito. Essa técnica, em regra, viola o princípio
lei penal incompleta costumam ser mencio­ da legalidade, sendo inconstitucional (CF, art. 5.°,
nadas, também, as seguintes: as de remissão XXXIX).
a outra norma para o efeito de determinar
a penalidade correspondente (lei penal em
Capítulo 5
branco ao revés ou invertida) e a dos “delitos
consistentes na infração de um dever” (Pfli- Estrutura " l ó g ic a " e " fu n ç ã o

chtdelikte). s o c ia l " d a n o r m a :
A DENO M INADA "ESTRU TU RA
4 .4 .1 Remissão a outra norm a p ara o efeito / C O M U N IC A T IV A " DA NORMA
de determ inar a penalidade
Não se pode confundir a estrutura “lógica”
No primeiro caso, trata-se de uma questão
da norma com a tese da sua “função social”. A
de técnica legislativa; ou, como já se disse,
concepção lógica, formal e estática da norma
de “preguiça legislativa”.116 Referida técnica, distingue o “pressuposto” (preceito norma­
que se demonstra insatisfatória em muitas tivo ou preceito primário) da “conseqüência”
situações, não é tida como inconstitucional ou (sanção ou preceito secundário). Também é
inválida (no art. 295 do CP se faz referência correta a distinção entre a norma “primária”
à pena do art. 294). A esse fenômeno dá-se (dirigida a todos) e a “secundária” (dirigida
o nome de lei penal em branco ao revés ou ao juiz).
invertida.
A construção “funcional” e “dinâmica”
da norma sugere o deslocamento radical da
4.4.2 Os delitos consistentes na “infração
problemática da norma para um terreno bem
de um d ever” (Pflichtdelikte)"'
diferente do atual.120Paradigmático é o ponto
O segundo caso - o dos Pflichtdelikte - é de vista de C a l l ie s s , conhecido especialista na
uma técnica também conhecida. Dela se ser­ teoria da execução da pena.

116. M u n o z C o n d e , Francisco. IntroduccióncdDerecho 118. C f . M u n o z C o n d e , Francisco. Introducción al

penal, cit., p. 17. Derecho penal, cit., p. 23.


117. S o b r e o s Pflichtdelikte, Cf.: S á n c h e z V e r a , J. 119. M u n o z C o n d e , Francisco. Introducción al Derecho

Pflichtdelikt und Beteiligune, Dunker Humbolt. penal, cit., p. 25.


Berlim, 1999; R o x i n , Cfaus. Strafrecht A.T., 3. 120. Neste sentido: M ir P u i g , Santiago. Introducción
Auflage. C.H. Beck. München, 1997. p. 283. a las bases dei Derecho penal, cit., p. 36.
634 D ir e it o p en a l - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

5.1 A te s e de C a llie s s : p ro g ram a alter; uma terceira pessoa - o terceiro dritter


“c o n d i c i o n a l ” o u “h i p o t é t i c o ” - deve reagir contra a ação do primeiro dos
( t r a d i c i o n a l ) v e r s u s p r o g r a m a “f i n a l ” sujeitos, logicamente, por meio da imposição
( c o m u n ic a t i v o ) da pena correspondente. Essa estrutura, acres­
centa C a l liess , exprime todo um processo de
Mister se faz, desde fogo, demarcar o pon­ interação e de intercomunicação entre os três
to de partida do autor e seus objetivos. “A
sujeitos mencionados (o ego, o altere o drit­
essência da pena, enquanto sanção criminal
ter) . Esse processo pode ser descrito, do ponto
- afirma C a lliess - , não pode jamais ser es­
de vista normativo, como um complexo de ex­
clarecida por meio da especulação nem da
pectativas recíprocas e interdependentes, ou
metafísica nem por intermédio do recurso às
seja, como uma “rede comunicativa”, em cujo
concepções extra-jurídicas ou pré-jurídicas.
marco se enquadra não só uma determinada
Toda análise em torno do problema da pena,
na verdade, deve partir do Direito Positivo e conduta, senão também as expectativas dos
encontrar neste sua legitimação.121 outros suj ei tos implicados no sistema; assim,
o ego há de esperar não só uma determinada
A C a l l ie s s interessa, desde logo, a problemática
conduta do “terceiro” (dritter) legitimado
da estrutura da norma, mas não quanto à sua es­
sência lógica ou formal, senão em relação à teoria para lhe impor uma sanção como resposta
do fundamento e fins da pena, que tem estrejta por sua conduta, senão também que o alter
aderência ao Direito Positivo.122 e o dritter esperem que se deixe determinar
• Vejamos como o autor explica a estruturaconforme o direito e de acordo com as expec­
da norma e o que significa sua natureza “co­ tativas deles.123
municativa”: três dados, diz, se depreendem 3. Por último, adverte C a l liess , os proces
da análise detida da estrutura de toda propo­ sos de interação e de comunicação regulados
sição jurídica completa: pela norma penal, coligam-se com outros
1. O caráter tridimensional ou intersub- tantos contextos sociais (em outros muitos
jetivo da norma. Frente à concepção - ainda “sistemas sociais”) . Em conseqüência, referi­
dominante - unidimensional, que vê no fato da estrutura dialogai, intersubjetiva, comuni­
delituoso um mero acontecimento entre o cativa da norma pode ser qualificada de típica,
autor e a vítima e, na pena, uma relação entre o porque é a estrutura que é subjacente a toda
autor e ajustiça, sustenta C alliess que a norma manifestação social, e, portanto, também, às
penal não contempla três sujeitos isolados proposições jurídico-penais. Estas - conti­
(autor, vítima e juiz), senão que pressupõe nua - , embora não necessariamente, podem
uma pluralidade de pessoas ou de grupos de refletir (inclusive em sua expressão “lógica”)
pessoas que se encontram em uma específica na estrutura comunicativa do ego, o alter e o
posição emrelação à ação punível, ou seja, em dritter, que lhes serve de base.124
uma determinada “conexão”.
A estrutura da norma penal, pois, fundamen­
2. Referida conexão se explica nos se­ ta-se na recíproca conexão bem como no jogo
guintes termos: um sujeito - a quem C alliess de expectativas mútuas entre os três sujeitos que
designa ego - atua de determinada forma, em intervém no sistema social, construção teórica
regra, de maneira ativa; a citada ação incide na que tem importantes conseqüências na teoria da
pessoa à qual se dirigiu a ação, pessoa que for­ pena. Calliess trata de demonstrá-lo contrapondo,
ma parte, igualmente, do marco das relações com ajuda da Cibernética, dois esquemas ou pro­
intersubjetivas e à qual denomina C a l liess gramas: o clássico ou tradicional de "condução"
("Steurung") e o de "regulação" ("Regelung"),
ou seja, o "programa condicional" ou "hipotéti-
121. Assim, C a l l i e s s , Rolf-Peter. Theorie der Strafe,
cit., p. 15.
122. M ir P u i g , Santiago. lntroducción a ia s bases dei 123. C a l l ie s s , Rolf-Peter. Theorie der Strafe, cit., p. 16.
Derecho penal, cit., p. 36. 124. Idem, p. 17.
Teoria da norma penal 635

co" (Konditionalprogramm ) e o programa "final" função de portador de uma condutaque se insere


(.Zweckprogramm ).125 no esquema estímulo/resposta ou estímulo/con­
A seu ver, só o esquema que se conhece com o seqüência.128Acrescenta C a l l ie s s que o modelo da
nomede"regulação"-oprograma"final"-corres- "condução" não é reflexivo e, ao mesmo tempo, é
ponde satisfatoriamente à estrutura comunicativa instrumentalizador, porque prescinde dos objeti­
da proposição jurídica: se se concebe - diz - o vos e conseqüências da ação ("até onde" e "para
ordenamento como uma rede de expectativas de quê"). E o que seria mais importante: o esquema
interação e intercomunicação no sistema social, da "condução" não permite compreender a "fun­
a pena seria então o que deve ser, um momento ção social" da pena suficientemente. A pena fica
desse complexo processo jurídico de "regulação" reduzida, no processo de concreção que realiza
(Regelung) das diversas e recíprocas ações comu­ o juiz, simplesmente a uma "conseqüência", ao
nicativas, um elemento constitutivo das estruturas momento ou "ponto final"129do referido processo.
jurídicas de interação e intercomunicação; com a
Por isso, conclui C a l l ie s s , a própria medição da
conseqüência de que se poderia fundamentar a
pena deverá se entender como de valoração livre,
função social da pena no próprio marco dos pro­
e não caberia delinear, sequer, a possibilidade de
cessos sociais intersubjetivos dos quais faz parte,
controlar a incidência e efeitos da pena.
sem necessidade de acudir, para isso, a concep­
ções extrajurídicas ou pré-jurídicas.126 Entende C a l l ie s s , em suma, que o moderno
Direito penal não é um Direito penal retributivo,
Mas esta conclusão obriga a esclarecer pre­
mas sim ressocializador, e que no momento da
viamente o sentido dos esquemas de "condução"
e "regulação" da Cibernética, no sentido que os eleição e no da medição da pena ganham rele­
entende C a l l ie s s . vância o bem jurídico e a reinserção do autor.
Por isso, não pode senão se basear no esquema
Como bem sintetizou M ir Puic,127para C a l l ie s s ,
o delineamento tradicional que distingue o pres­ denominado de "regulação" (Regelung),™ que é
suposto fático da conseqüência jurídica em uma o único coerente com a função "dialogai" que o
relação hipotética condicional e vê, ademais, em citado autor atribui ao Direito.
cada norma um imperativo dirigido aos cidadãos
sob a ameaça da pena, corresponde ao modelo 5 .2 R efle x õ es críticas em relação à tese
que ele denomina "condução" (Steurung). De de C alliess
acordo com esse modelo a pena é a conseqüência
última da proposição normativa, conseqüência A suposta natureza comunicativa da nor­
que se estabelece previamente nesta e que se apli­ ma não é mais que uma conseqüência da fun­
ca automaticamente, cegamente, sem controle
ção dialogai que C a l l ie ss atribui ao Direito, ou
algum sobre os resultados e efeitos da pena.
seja, do seu ponto de partida funcionalista131
Pelo contrário, no esquema que ele denomi­
na de "regulação" (Regelung), que é próprio dos assim como do caráter secundário de toda
fenômenos intersubjetivos e comunicativos, se a temática da estrutura da norma, desde o
produz um progressivo e contínuo acoplamento momento em que se subordina à teoria dos
da direção inicial da conseqüência jurídica em fins da pena.
função dos resultados que esta vai produzindo ao
incidir nas expectativas recíprocas dos sujeitos da Chama atenção, desde logo, o fato de que
relação dialogai, do sistema social. seus pontos de vista praticamente não tiveram
Com efeito, afirma C a l l ie s s , no esquema da eco na doutrina alemã132 e que os comentários
"condução" fica excluída - não se contempla, fica
à margem - a dimensão reflexiva e intersubjetiva
128. C a l l ie s s , Rolf-Peter. Theorie der Strafe, cit., p. 19.
que caracteriza a atuação humana, porque a única
129. Idem, p. 20.
coisa que importa é a eficiente aplicação da norma.
O sujeito não é contemplado como sujeito de um 130. C a l l i e s s , Rolf-Peter. Theorie der Strafe, cit., p. 21
fazer consciente e reflexivo, senão reduzido a uma e 22.
131. Quanto à influência do pensamento “funciona-
lista” em C a l l i e s s , cf.: M ir P u i g , Santiago. Intro-
125. Idem, p. 17 e ss. e 22 e ss. ducción a las bases dei Derecho penal, cit., p. 39.
126. Idem, p. 18. 132. Como adverte H e i n z Z i p f s ó citam dois Manuais
127. Rolf-Peter. Theorie der Strafe, cit., p.
C a l l ie s s , (cf. recensão deste autor na Zeitschrift für die
17 e ss. C f . M i r P u i g , Santiago. Introducción a las gesamteStrafrechtswissenschaft, 1978 (90), cit.,
bases dei Derecho penal, cit., p. 38. p. 459).
636 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

feitos foram predominantemente negativos.133 da sua construção - diz O s te r m e y e r 138-fundamen­


Existem sérios reparos de fundo que vão além tam-se em que se trata de um sistema meramente
da obscuridade com que Calliess formulou, às formalista e estrutural, carente de conteúdo e de
vezes, seu pensamento134ou dos receios com que critérios valorativos que permitam a solução dos
a doutrina dominante contempla toda tentativa de conflitos nos processos de comunicação e nas
trasladar para o mundo do Direito os esquemas expectativas de participação. Por isso, e não por
da Cibernética ou das Ciências Sociais. outras razões, C a llie s s teve que se valer do Direito
Desde o seu ponto de partida há objeção. Para Positivo para buscar conteúdo normativo e valo-
o Direito penal moderno-entenda-se, na
C a l l ie s s , rativo de que carecem suas opiniões.139
sua concepção: o Direito Positivo - é um direito Uma última objeção dirige-se contra o con­
orientado à"ressocialização"e não à retribuição, o ceito e fim que designa C a l l ie s s às sanções penais
que exigiria abandonar o esquema da"condução" e que o autor faz derivar da idéia de participação
(Steurung), incompatível com os fins ressocia- como postulado do Estado de Direito "democráti­
lizadores. Como falar de um Direito "positivo" co": a pena não seria "renúncia" nem "destruição"
ressocializador na Alemanha, quando se sabe que senão canal de instauração da liberdade nos siste­
85% penas que se contemplam no Código e que mas sociais; não"privação",senão-primariamente
se impõem são penas pecuniárias.135 -facilitação e possibilidade de oportunidades de
Também é criticável o modo como C a l l ie s s participação no sistema social.140De acordo com
concebe o seu processo tridimensional de in­ Z ip f , essa assertiva de C a l l ie s s peca pela falta de

teração e intercomunicação: ego-alter-dritter. idealismo e confunde o ser e o dever ser: o que as


Consoante Z ip f , o s processos entre os três sujeitos sanções são na realidade (destruição de expecta­
não podem ser da mesma natureza, classe e pro­ tivas de participação) e o que deveriam ser desde
porções; não podem ser equiparados nem receber uma perspectiva de política criminal.141
idêntico tratamento. Como é possível falar de Com efeito, adverte Z ip f , a tese de C a l l i e s s ,
"relação" entre "autor" e "vítima", de "interação", literalmente aceita, conduziria a renunciar a todo
quando é freqüente que nem sequer se conheçam, sistema de sanções, inclusive se se quisesse renun­
e quando a Vitimologia tem demonstrado que ciar ao Direito penal para construir, em substitui­
existem infinidade de possíveis casos, totalmente ção a ele, um sistema de sanções valorativamente
heterogêneos? Parece que aqui poderia se falar neutro. Porque - acrescenta - inclusive em uma
de "ação", mas não de "interação". Ademais, diz tal ordem de sanções neutra, estas sempre te­
o autor, C a l l ie s s esquece que as relações entre os riam sentido negativo no momento da sua apli­
três sujeitos da relação dialogai são, por outras cação, aparecendo não como prêmio ou canal
razões, heterogêneas: assim, enquanto o ego apa­ de participação, senão como "privação", a fim de
rece como "indivíduo", o alter (a vítima) pode ser que conservassem sua eficácia e caráter protetor.
constituído de uma instância estatal, e inclusive Porque não se pode conceber - conclusão que
anônima. Sem prejuízo de que, em todo caso, as acompanha o pensamento de K a i s e r - um sistema
expectativas do autor e da vítima, com relação sancionador valorativamente neutro, desde o mo­
ao d ritter - o Estado - são de conteúdo muito mento em que a desvaloração é a contrapartida-a
diferente, e em nenhum momento devem ser inevitável outra cara- necessariamente unida em
equiparadas.136 um sistema sancionador à conduta desviada.142
Reprovável é, de outro lado, o formalismo da Examinando-se neste momento a estrutura
tese de C a l li e s s . Se o Direito é definido por ele "lógica" da proposição normativa, parece-nos
como a "estrutura dos sistemas sociais" - afirma evidente que os pontos de vista de C a l l ie s s , cor­
Z ip f 137 - então já não é possível dar um conteúdo respondem a uma postura e a uma perspectiva
a suas palavras. Os inconvenientes e debilidades distintas. Porque ao autor não lhe interessa a es­
trutura lógica da norma, senão a sua dinâmica
social, ou seja, sua função no sistema social. E,
133. Cf.: Zipf, Heinz. Zstw, 1978 (90), cit., p. 468-471; sobretudo, porque o interesse do pensamento
e a recensão citada de O s t e r m e y e r , H . , em: Z.R.E, de C a l l ie s s reside em sua teoria da "pena" e não
1974 (Heft.10), p. 246 e 247.
134. Crítica dos dois autores citados: Z ipf , Heinz. Zstw,
cit., p. 459 e O s te rm e y e r, H., ZRP, cit., p. 246. 138. Recensão citada, ZRP, cit., p. 246.
135. Assim: Z ip f , Heinz. Zstw, cit., p. 460-461. 139. Assim: Z i p f , Heinz. Recensão citada, Zswt, p. 465.
136. Idem, p. 463. 140. Apud Z i p f , Heinz. Zswt, cit., p. 464.
137. Recensão citada, Zipf, Heinz. Zswt cit., p. 465 e 141. Z ip f , Heinz. loc. cit., p. 465.
466. 142. Idem, p. 464.
Teoria da norma penal 637

nas suas concepções sobre a estrutura da norma, 6 . 2 F u n d a m en to s da p o l ê m ic a atu a l e


claramente mediatizadas por aquela. su a m e d ia t iz a ç ã o : d e s l o c a m e n t o
Seria injusto, de qualquer maneira, ignorar
da q u e st ã o para o â m b it o da
os méritos de C a l l ie s s . Em primeiro lugar, o de
a n t iju r id ic id a d e
ter chamado a atenção sobre a necessidade de
aproximar o Direito das Ciências Sociais: isso é Para começar, é significativo o fato de a
particularmente valioso se se repara no tradicional
doutrina alemã enfocar esse tema não no con­
e pernicioso distanciamento entre a dogmática e a
texto lógico da teoria das fontes (da lei), senão
realidade social. Em segundo lugar, acríticaque faz
da concepção tradicional da estrutura da
C a l l ie s s
no âmbito da antijuridicidade.144
norma, em função dos postulados de um Direito A rigor, como veremos mais adiante, ele cons­
penal ressocializador. titui (efetivamente) o cerne da própria teoria do
Por último, creio que a tese do autor supõe delito (especialmente da teoria constitucionalista
uma tentativa muito valiosa de procurar uma do delito). Mas sua repercussão hoje não é tão
fundamentação "dem ocrática" do Direito pe­ relevante no âmbito da antijuridicidade, sim, des­
nal. Como bem sublinhou M i r P u ig , 143 F e u e rb a c h e de logo e acima de tudo no da tipicidade, que só
B in d in g formularam uma teoria do Direito penal pode ser entendida em sentido material quando
do Estado de Direito, desde a posição liberal e se pressupõe uma ofensa ao valor protegido pela
autoritária, respectivamente. V o n L i s z t inaugurou norma penal.
a concepção social-liberal do Estado de Direito,
Seguindo a linha da doutrina alemã cabe
que durante o nacional-socialismo adotou um ca­
asseverar, comjESCHECK,143 que a questão sobre
ráter autoritário. Faltava só incluir o componente
democrático, que é o mérito de C a llie s s .
a essência da antijuridicidade (objetiva ou
subjetiva, formal ou material) só se resolve
num ou noutro sentido consoante se carac­
Capítulo 6 terize a proposição jurídica como norma de
Função da n o rm a pen a l: valoração ou como norma de determinação
A NORMA PENAL COM O NORMA f
144. A s s im , p o r e x e m p lo : J e s c h e c k , H a n s - H e in r ic h .
DE (D ES) VALORAÇÃO E C O M O NORMA
Lehrbuch, c it., p . 1 8 8 e s s . ( c o n c e it o e e s s ê n c ia d a
DE DETERMINAÇÃO a n t i j u r i d i c i d a d e ) ; B o c k e l m a n n , P. Grundrisse des
Rechts. 2 .e d . C . H . B e c k , 1 9 7 5 .p .3 3 e s s . (p r o p ó s i­
6 .1 A n teced en tes h is t ó r ic o s g e n u ín o s da to d a s r e la ç õ e s e n tr e ‘ a n t i ju r id i c i d a d e ’' e “ c u lp a ­
b ilid a d e ” ), M e z g e r , E . Tratado de Derecho penal.
PO LÊM ICA (D EBA TE EN TRE IMPERATIVISTAS E
T r a d u ç ã o e n o ta s d e R o d r íg u e z M u n o z . 1 9 5 5 . p.
NÃO IM PERATIVISTAS) 3 3 9 e s s (n a tu r e z a e e s s ê n c ia d a a n t iju r id ic id a d e ) ;
B aum ann.J. Strafrecht, c it., p. 1 79 e ss (r e la ç õ e s
O estudo da natureza, estrutura e fun­ e n tr e “ a n t i ju r id i c i d a d e ” e " c u lp a b i li d a d e ” ) e 2 6 7
cionamento da norma penal ainda requer e ss (o j u í z o d a a n t i j u r id i c i d a d e ) ; N o w a k o w s k i ,
F. Z u r L e h r e v o n d e r R e c h t s w i d r i g k e i t , Z s t w
enfocar a problemática relacionada com a
1951 ( 6 3 ) , p . 2 8 8 e ss ( n o m a r c o d a e v o lu ç ã o d a
sua caracterização como norma de valoração t e o r ia d a a n t j u r i d i c i d a d e ) ; B l e i , H . S t r a f r e c h t I.,
(desvaloração) ou de determinação (a norma A l i. T . , E i n S t u d i e n b u c h , c it . , p . ( f u n d a m e n t o d a

é um imperativo). Essa é uma velha polêmi­ a n t i ju r id i c i d a d e ) ; H . M a y e r . Strafrecht, Ali, T . , c it


( 1 9 6 7 ) , p. 4 1 e ss (a a n t i ju r id i c i d a d e m a t e r ia l e
ca da Teoria Geral do Direito - estamos nos
f o r m a l ) ; S t r a t e n w e r t h , G . H a n d l u n g s - u n d E r-
referindo ao conhecido debate entre im pe­ f o lg s u n w e r t i m S t r a f r e c h t , e m : S c h w Z s t r 1 9 6 3
rativistas e não imperativistas - que adquire (7 9 ), p. 2 33 -2 5 6 (t e o r ia d a a n t iju r id ic id a d e );

particular significado e transcendência no M a u r a c h , R e in h a r t ; Z I P E D e u t s c h e s S tr a f r e c h t .


8. e d ., p . 3 5 7 ( f u n ç õ e s d a a n t i ju r id i c i d a d e ) .
campo penal.
1 45 . Lehrbuch, cit., p . 1 88 . Neste sentido, também,
E Zur Lehre der Rechtswidrigkeit,
N o w a k o w s k i,
143. Introducción alasbases delDerecho penal, c it . , p. 86. cit., p. 2 8 9 .
638 D ir e it o p en a l - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

ou, ainda, como norma de valoração e de de­ do resultado na teoria da antijuridicidade153 (ou
da tipicidade).
terminação.
Afirmou-se154 que a alternativa "norm a de
É notável a preocupação da moderna doutrina valoração"/"norma de determinação" resolve­
penal consistente em deduzir uma série de conse­ ria o problema da natureza imperativa ou não
qüências (para o sistema do Direito penal) alheias imperativa da norma penal. O certo, entretanto,
seria reconhecer, com Je s c h e c k , 155 que na moderna
à genuína polêmica histórica sobre a natureza da
doutrina alemã não se suscita a questão em ter­
norma, ou seja, sobre o seu caráter imperativo ou mos de uma tão drástica alternativa. Desprovida
não imperativo. Como se sublinhará em seu mo­ a polêmica da carga política que tivera em outros
mento, embora uns e outros autores citem T h o m , tempos,156 não há dúvida que se trata de uma
B in d in g e K elsen , o certo é que não perseguem questão relevante, mas não se pode exagerar.
outra coisa que adotar a postura que consideram Raras, nos dias atuais, são as posturas nitidamente
mais congruente para fundamentar ou ratificar partidárias de uma ou outra tese, porque as con­
cessões recíprocas são contínuas e predominam
suas premissas sustentadas em outros terrenos
as concepções mistas.157O risco sempre presente
alheios à polêmica.146O que preocupa realmente é o de desvincular a polêmica dos seus genuínos
não é o problema do destinatário da norma,147nem antecedentes e do seu marco histórico-jurídico,
se pertence ou não a ela a conseqüência jurídica,148 para transformá-la em mais um problema técnico,
sim, se de uma ou outra tese sobre a norma se que se contempla em função das necessidades
depreende uma concepção objetiva ou subjetiva dos respectivos "sistemas". Ou seja: se mediatiza
da antijuridicidade;149se - e de que modo - afeta a questão (porque detrás da original polêmicas
acham-se outras implicações).
a distinção tradicional entre antijuridicidade e
Na atualidade, depois de uma dilatada he­
culpabilidade;15" se, apoiando-se em umaou outra
gemonia da concepção da norma penal como
tese, torna-se possível construir posteriores racio­
norma de valoração,158ressurgem as concepções
cínios sobre a presença do dolo no tipo de injusto imperativistas, mais próximas das teses finalistas
nos delitos dolosos,151sobre o bem jurídico152ou e subjetivistas da antijuridicidade; embora já não
sobre a relação do desvalor da ação e do desvalor se trate do imperativismo "ingênuo" voluntarista
autêntico, senão de um pseudo imperativismo
(pouco parecido com o antecedente)159imposto
146. P o r e x e m p lo , le m b r a m a o r ig e m h is tó r ic a d a pelas exigências das novas correntes que domi­
p o lê m ic a e n tr e im p e r a tiv is ta s e n ã o im p e r a ti-
nam a teoria do delito.
v is ta s , c o m e x p r e s s a r e m is s ã o , e n tr e o u tr o s , a
E. Tratado, ci t . , p . 341; M a u r a c h ,
T h o m :M E Z c ,E R ,
Deutsches Strafrecht, c i t .,
R e in h a r t .; Z ip f , H e in z . 153. Cf: S t r a t e n w e r t h , G. Handlungs-und Erfolgs-
p. 357; B a u m a n n , J . Strafrecht, c i t . , p . 179 e t c . unwert im Strafrecht cit., p. 247 e ss. Também:
147. Problema que, segundo os partidários da nor­ J e s c h e c k , Hans-Heinrich. Lehrbuch, cit., p. 189.

ma como norma de valorização, revela o ponto 154. Assim: M ir P u i g , Santiago. lntroducción a las bases
débil das concepções imperativistas e das que dcl Derecho penal, cit., p. 53.
distinguem “lei” e “norma” ao estilo de B in d in g . 155. Lehrbuch, cit., p. 188.
Por todos, cf: K a u f m a n n , Armin. Lebendiges un 156. Veja-se a respeito: B a jo F e r n An d e z , M . Algumas
totes, cit., p. 121 e ss. observações sobre a teoria da motivação da nor­
148. Problema, no entanto, chave na polêmica entre ma (Temas Penales Universidad de Santiago de
imperativistas - por exemplo - e partidários da Compostela, 1977), p. 29 e 30.
teoria pura do Direito. Cf.: T h o m . Rechtsnorm 157. Nem os partidários da norma penal como norma
und subjektives Recht, cit., p. 5. de valoração negam que a norma seja, ademais,
149. Por todos: B ockelm a n n, P Grundrisse, cit., p. 33 “imperativo”: nem os imperativistas rejeitam
e ss. a idéia de que a valoração prévia é um “prius”
150. Assim, M a u r a c h , Reinhart.; Z i p f , Heinz. Deut- lógico da posterior ordem ou imperativo.
sches Strafrecht, cit., p. 357; M f z g f r , E. Tratado, 158. Por todos: N o w a k o w s k i , E ZurLehre derRechtswi-
cit., p. 341, nota 3. drihkeit, cit., p. 289; M e z g e r , E. Tratado, cit., p.
151. Assim: J e s c h f c k , Hans-Heinrich. Lehrbuch, cit., 339 e ss.
p. 189. 159. Sobre a mudança dos pressupostos históricos,
152. T a m b é m n e s t e s e n tid o :jE S C H E C K , H a n s - H e i n r i c h . políticos, etc., cf.: B a jo F e r n An d e z , M . Algunas
Lehrbuch, c i t . , p. 189. observaciones, cit., p. 29 e 30.
Teoria da norma penal 639

6 .3 E x p o s iç ã o e c r ít ic a das d iv e r sa s t e s e s que se pode reconduzir em última instância a


norma não é outra coisa que a aplicabilidade
do preceito jurídico ao pressuposto fático.171
6.3.1 A norm a penal com o norm a de (des)
A norma é, antes de tudo, o que significa seu
“v aloração”
próprio nome, na sua acepção genuína: medi­
Para a primeira corrente doutrinária a nor­ da, medida de valor da conduta humana.172
ma penal - a proposição jurídica, em geral - é As normas projetam uma ordem objetiva da
fundamentalmente norma de “valoração” (ou vida social: ao expressar o que é que o ordenamen­
melhor: de “desvaloração”, para ser mais exato to jurídico estima ajustado ao Direito e correto e
- Bewertungsnorm). o que é que desaprova, as normas vêm a mostrar
como devem atuar os homens. As normas do Di­
Fixam-se160no caráter "valorativo" da norma - reito penal, portanto, contêm juízos de desvalor
a norma é entendida como "juízo" valorativo e não ("é proibido matar", "é proibido roubar" etc.);
como "imperativo" —, dentre outros: M e z g e r , 161 certamente são os mais decisivos que conhece o
N a c l e r , 162 N o w a k o w s k i, 163 B a u m a n n , 164 B o c k e lm a n n 165 ordenamento jurídico, posto que as desaprova­
e M a u r a c h 166 L is z t - S c h m id t .167 ções que este declara se expressam por meio de
Essa corrente sustentou, durante muito tempo cominações penais.173
e de forma dominante,168que o ordenamento jurí­
dico não é mais que uma soma de juízos de valor,
Mas se a norma é norma objetiva de valo­
com ajuda dos quais pode-se distinguir a conduta ração, objeto desta pode ser tudo: a conduta
antijurídica da conduta conforme o Direito. As de seres humanos capazes e incapazes de ação,
normas jurídicas são normas de valoração obje­ culpáveis ou não culpáveis, a conduta de ou­
tivas, que permitem um julgamento do fazer hu­ tros seres inanimados, os acontecimentos e
mano desde a perspectiva da ordem comunitária; estados do mundo circundante.174
mas o Direito não conteria imperativos dirigidos
ao cidadão em concreto,169senão "dever ser" im- Há, inclusive, também "estados antijurídicos"
pessoais-unpersónlichesSollen, de acordo com a e "estados conformes ao Direito", já que a antijuri-
diçidade, nesta concepção, aparece configurada
fórmula de M e z g e r - limitando-se a designar fatos,
objetiva e externamente como "uma lesão objeti­
situações e acontecimentos simplesmente como
va das normas jurídicas de valoração".175Não cabe
"esperados" ou "não esperados".170
dúvida que a conduta de um menor, de um doente
Como diz graficamente N o w a k o w s k i , se­ mental, pode ser também "antijurídica".
guindo a fórmula de K e l s e n : o “dever ser” a Pois bem, embora lógica e cronologica­
mente1'6 a norma penal seja, antes de tudo,
160. Como aponta M ir P u i g , Santiago (Introducción a norma de “valoração”, opera também - em
las bases dei Derecho penal, cit., p. 54, nota 75) um marco próprio - como norma de “deter­
“na realidade apenas se defende esta postura em minação”. Com efeito, aqueles que se opõem
termos radicais: o normal é que se chegue só
à concepção imperativista não duvidam, no
a assinalar a preferência do aspecto valorativo
sobre o imperativo). entanto, que a norma conta também com um
161. Tratado, cit., p. 339 e ss. componente “determinador”, se bem este
162. N a g l e r . In: Bindings-Festschrift, p. 273-385. só teria relevância no âmbito posterior da
163. Zur Lehre der Rechtswidrigkeit, cit., em: Zstw,
1951 (63), p. 288 e ss. 171. Assim: B o c k e l m a n n , P. Grundrisse, cit., p. 36.
164. Strafrecht, cit., p. 267. 172. B ockelm a n n, R Grundrisse, cit., p. 36.
165. Grundrisse, cit., p. 33 e ss. 173. Assim: M ezg er, E. Tratado, cit., p. 340-341.
166. Deutsche Strafrecht, cit., p. 357. 174. M ezg er, E. Tratado, cit., p. 341, e bibliografia ali
167. Cf. N o w a k o w s k i , E Zur Lehre der Rechtswidrigkeit, citada.
cit., p. 289. 175. M aurach, Reinhart.; Z i p e , Heinz. Deutsche Straf­
168. Cf. a p u d : jE S C H E C K ,_ H a n s - H e in r ic h . Lehrbuch, recht, cit., p. 357.
c i t ., p . 188. 176. Assim: ap u d jE SC H E C K . Hans-Heinrich. Lehrbuch,
169. Apud B a u m a n n , J. Strafrecht, cit., p. 267. cit., p . 188 (exposição d e s t a d o u t r i n a , q u e o a u t o r
170. Zur Lehre der Rechtswidrigkeit, cit., p. 291. não compartilha).
640 D ir e it o p en a l - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

“culpabilidade”. Só então - e não no campo culpa (o inimputável) não poderia cometer ato
da antijuridicidade - caberia perguntar se - e injusto algum e inclusive não se poderia distinguir
o injusto da culpabilidade.181
em que medida - o sujeito em questão pôde
B o c k e l m a n n reforça o argumento enfatizando
ou não se deixar guiar realmente pelos juízos
que a lei parte de que existe o injusto não culpá-
de valor contidos na norma.17/As proposições vel (schuldloses Unrecht), pelo que não só tem
jurídicas seriam, também, - embora de forma que se distinguir conceitualmente, senão que
“mediata” - normas de “determinação”, se tem que se separar nitidamente as categorias da
bem que à antijuridicidade importaria só a antijuridicidade e da culpabilidade.182No entanto
função “valorativa”.1'8 - acrescenta desde a postura imperativista não
existiria uma conduta antijurídica não culpável,
Parte-se, por isso, da “duplafunção”da nor­ já que todas as circunstâncias que excluiriam, em
ma penal,179ou seja, de seus dois “momentos” seu caso, a reprovação da culpabilidade, são de
ou “elementos”: o valorativo e o determinan­ tal natureza que, ao mesmo tempo, excluiriam
te, que corresponderiam, respectivamente, também a possibilidade de estimar a conduta em
si como um ato de desobediência, e portanto,
aos âmbitos da antijuridicidade e da culpa­
como um ato antijurídico. E se para estes autores
bilidade. Dois âmbitos de distinta “função e a essência da antijuridicidade é a desobediência,
categoria”. então toda causa de exclusão da culpabilidade o
A propósito M e z g e r afirmava: "Das normas seria, também, da antijuridicidade.183
objetivas de valoração se deduzem as normas Também B a u m a n n chamou atenção para as
subjetivas de determinação, que se dirigem ap conseqüências sistemáticas que se depreende­
concreto súdito do Direito. A lesão destas normas riam de uma ou outra compreensão da estrutura
é de importância decisiva, não para a determi­ da norma penal. O autor abordou o problema a
nação do injusto, mas sim certamente para a da propósito da distinção entre "antijuridicidade" e
culpabilidade; o deslinde conceituai entre a norma "culpabilidade", o que lhe permitiu examinar con­
jurídica como norma de valoração que se dirige a juntamente quatro diretrizes doutrinárias muito
todos e a norma de dever como norma de determi­ heterogêneas que, a seu juízo, desconhecem tão
nação que se dirige só ao pessoalmente obrigado, fundamental distinção: o imperativismo histórico
torna possível, em conseqüência, o necessário e de T h o n e H o l d v o n F e r n e c k , a teoria ou concep­
claro contraste entre os dois pressupostos básicos ção subjetiva do injusto de M e r k e l , a escola de
K ie l e determinadas manifestações finalistas que
do delito, entre a antijuridicidade objetiva e a
reprovação pessoal".180 concebem o injusto como injusto pessoal em
sentido estrito.184
Os partidários desta concepção ressaltam
ao máximo as suas conseqüências "sistemáticas", A corrente que ora se analisa, como vi­
sendo este um dos argumentos favoritos contra mos, admite que a norma penal é norma de
os imperativistas: estamos nos referindo à nítida
valoração mas conta também com um aspecto
distinção entre antijuridicidade e culpabilida­
“imperativo”.
de, com todas as suas conseqüências. Observam
que se não se parte da existência de uma norma A norma penal, diz B a u m a n n , 185 enquanto nor-
objetiva de valoração, que é pressuposto lógico maque impõe um dever (Pflichtnorm) se dirige aos
imprescindível da norma subjetiva de determina­ súditos de Direito e lhes "ordena" uma determi­
ção, configurando-se, por conseguinte, o injusto nada conduta: du sollst ("você deve", "há de [...]":
(somente) como um ataque contra a norma de e não só: "se deve").
dever subjetivamente orientada, isto conduziria
à conseqüência de que o incapaz de atuar com Ocorre que os limites e fundamentação
do segundo aspecto da norma - o imperativo

177. Apud J e s c h e c k , Hans-Heinrich. Lehrbuch, cit.,


p. 188. 181. Idem, p. 343 e 344.
178. Neste sentido: B a u m a n n , J . Strafrecht, cit., p. 182. Assim: B o c k e l m a n n , R Grudrisse, cit., p. 34 (par­
267. M a u r a c h , Reinhart.; Z i p f , Heinz. Deutsches tindo de que o Direito “positivo” - diz- as distin­
Strafrecht, cit., p. 357 ( “Duplizitàt”). gue e atribui diferentes conseqüências).
179. Assim: M a u r a c h , Reinhart. Deutsches Strafrecht, 183. Assim: B o c k e l m a n n , P. Grundrisse, cit., p. 35.
cit., p. 357. 184. Cf. B a u m a n n , J. Strafrecht, cit., p. 179 e 180.
180. M ezg er, E. Tratado, cit., p. 343. 185. Strafrecht, cit., p. 267.
Teoria da norma penal 641

-sã o confusos e nunca foram bem delineados tecimento: So soll es sein, ita ius esto .188Seguindo
(pela corrente valorativa). a conhecidaformulação kelseniana dirá: referido
ao caso concreto, o "dever" (Sollen ) não significa
Assim, afirma B o c k e l m a n n : 186 "a norma tem, outra coisa que a aplicabilidade do preceito jurí­
naturalmente, um elemento imperativista. Pois dico ao pressuposto fático.189
não desaprova fatos, senão ações. Não diz, por
exemplo: os homens não hão de morrer antes de 6.3.2 A norm a penal com o norm a de
que lhes chegue sua hora. Se se entendesse assim
“determ inação”190
seria também objeto de seu juízo de desvalor
a destruição de uma vida humana por um raio, H á uma outra corrente na doutrina alemã
um incêndio (...) Os acontecimentos puramente (mais recente) que sustenta que a norma penal
naturais ficam à margem de toda valoração pe­
é fundamental e principalmente norma de
nal. A esta só lhe compete o atuar humano. Mas
a norma tampouco reza assim: os homens não
“determinação”, isto é , não um mero juízo de
devem ser causa de resultados danosos. Assim valor, senão um “im perativo” (uma ordem,
entendida, bastaria para um juízo de reprovação um comando, um mandamento).
jurídica inclusive simples movimentos reflexos que Cabe citar, como representantes desta di­
produzissem danos. E isso careceria de sentido. retriz, dentre outros: Je s c h e c k , 191 H. M a y e r , 192 A.
Antes bem, a norma diz assim: os homens devem K a u fm a n n ,193 E n g is c h , 194S t r a t e n w e r t h , 195Z ip p e liu s, 195
se abster de fazer isto ou aquilo (ou devem fazê- SCH Õ NCKE-SCH RÕ D ER , 197 LaR EN Z198 e S ílL E R .199
lo), devem não atuar desta ou daquela maneira (ou
devem atuar assim). A norma penal, assim, não é Diferentemente daqueles que concebem
só implantação de um valor, senão também im­ a proposição jurídica como norma de “valo­
perativo, norma que proíbe e norma que ordena. ração” - normar não é imperar, senão julgar200
E só por isso é uma norma jurídica". - os imperativistas concebem a norma como
Apesar de se reconhecer a evidência do
componente imperativista da norma, é certo 188. Zur Lehre der Rechtswidrigkeit, cit., ZStW, 1951
que a doutrina oposta (valorativista) lhe reduz (63), p. 29.
consideravelmente sua importância. 189. Zur Lehre der Rechtswidrigkeit, cit., p. 291.
1,00. Sobre as muito diversas concepções imperativis­
O próprio B o c k e l m a n n acrescenta que a norma tas, cf. V iv e s A n t ó n , Tomas S. Fundamentos dei
é um imperativo, mas um imperativo "generaliza­ sistema penal, cit., p. 347 ess.
do"; um imperativo cuja destinatária é, primeiro
191. Lehrbuch, cit., p. 188 e ss. Para o autor, a norma é,
e antes de tudo, a comunidade jurídica. Referida também norma de “valoração”, mas o elemento
norma enunciaria um mandamento "geral" do “valorativo” é só um momento no processo le­
qual se "deduziriam", ao mesmo tempo, as diretri­ gislativo que carece de relevância aos efeitos da
zes à que se deve ajustar a conduta de cada súdito virtualidade da norma.
singular concreto. Dito de outra maneira: "você" 192. Strafrecht, A. T., cit., p. 41.
não deve (...) porque não "se" deve (...).187
193. Normentheorie, p. 123 e ss.
E N o w a k o w s k i , autor que acentua também a
194. Einfürhrung in das juristisches Denken. 5. ed.,
natureza "valorativa" da norma penal, depois de 1971, p. 22 e ss; do mesmo autor: Aufder Suche
reconhecer que a função desta é, sem dúvida, nach der Gerechtigkeit., Hauptprobleme der
"determinar" a conduta dos súditos do Direito, Rechtsphilosophie, Piper, 1971, p. 29 ess.
conclui afirmando que a solução do problema
195. Handlungs-und Eifolgsunwert, cit., p. 247 e ss.
reside não na aceitação das premissas imperativis­
196. Der Aufbau der modernen Unrechtslehre. Re-
tas, senão na interpretação da categoria do"dever
gensburg, 1953.
ser" (Sollen ). A seu juízo, este não representa um
197. Kommentar, cit., 13, Vorbem. 51.
"imperativo" dirigido pessoalmente ao cidadão
198. Der Rechtssatz ais Bestimmungssatz, em: Fests-
concreto, senão uma declaração impessoal no
chrift für Engisch, p. 150-160.
sentido de que o Direito designa a conseqüência
como sucessão natural para determinado acon­ 199. Die Bedeutung dÉ Handlungsunwertes im Ver-
kehrsstrafrecht. Em: Festschrift für R. Maurach,
p. 75-89 (fundamentalmente, p. 81).
186 . Grundisse, c it., p. 3 6. 200. Por utilizar a fórmula expressiva de Cossio, C.
187 . B o c k e lm a n n . Grudrisse, c it., p . 36. La norma y el imperativo. Notas analíticas para
642 D ir e it o p en a l - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

“expressão deum querer”201e o próprio Direito proibida: expressa um mandamento, isto é, um


como “um complexo de imperativos ”.202Trata- imperativo.208Como mandamentos elas são for­
muladas pela comunidade e como mandamentos
se de uma concepção “voluntarista”,203 que
são percebidas pelos súditos do Direito.209
corresponde ao aforismo: sic volo, sic iubeo,
onde a proposição jurídica aparece como um Para fundamentar a tese impera tivista, di­
conjunto de “declarações de vontade” (Wil- versos autores costumam apelar para afunção
lensãusserungen), dirigidas e concebidas para do Direito, ou seja, se a função do Direito é
configurar a conduta dos súditos do direito na regular e configurar a vida em comunidade, só
forma desejada.204 desta maneira-reclamando imperativamente
Como adverte V iv e s ANTÓN,"imperativista, em determinada conduta dos seus membros - é
sentido estrito, é toda concepção das normas que se pode concretizá-la;210 isso é o que se
que as entenda, basicamente, como meios de quer dizer quando se afirma que a norma
impulsionar a conduta em um ou outro sentido jurídica é “norma de conduta” ( “Verhaltens-
(se atenha ou não à idéia de mandato como fonte norm”) ;211 com meras normas de valoração
desse impulso); que deixe, por conseguinte, fora
não poderia desempenhar o Direito o senhorio
do discurso jurídico (situando-a na ética ou na po­
lítica) a discussão racional acerca dos fins e valores
que lhe corresponde sobre a vida dos homens
e que, portanto, conceba a função valorativa das em comunidade, seria um conjunto de decla­
normas jurídicas como secundária, derivada da rações platônicas sem fo rça de convicção.212
função diretiva, dependente de decisões sobre
Em outras palavras: se o Direito deve incidir
fins prévios e alheios a ele''.205 E conclui: "Pois a
efetivamente na vida da comunidade - e parece
polêmica em torno da concepção imperativa da
que esta é uma das suas funções primordiais-sua
norma não é meramente verbal: não estamos
função "determinadora" é decisiva. Certo é que
diante de uma discussão sem conteúdo ou diante
o legislador, antes de formular o mandato, deve
de um novo problema de etiqueta, senão que,
ponderar-valorar-seu sentido e finalidade, mas
em torno dela, há um problema de fundo: saber
o prius lógico da "norma de valoração" não é mais
se as normas jurídicas tem que ser entendidas,
que um momento cronológico prévio no marco
basicamente, como decisões do poder ou se, pelo
do processo legislativo, que não joga papel algum
contrário, devem ser justificadas e interpretadas
para o efeito de determinar a essência da norma.
como determinações da razão''.206
Esta se mede por sua eficácia, para o que interessa
Resumindo o ponto de vista deste setor dou­
somente o fato de que o legislador lhe dê força de
trinário: o ordenamento penal consta de declara­
um "imperativo".213
ções de vontade do legislador, que reclamam uma
determinada conduta dos cidadãos; suas normas,
por isso, devem ser compreendidas como expres­ 208. M a y e r , H. Strafrecht, A. T., cit., p. 41. Para o autor,
são de um "dever ser" dirigidas a cada um, ou desta forma se explica só a estrutura formal, mas
seja, como "imperativos".207Ao cominar a lei com não a natureza “material” da antijurisdicidade.
uma pena a realização do tipo, então, realiza algo 209. Cf. E n g is c h , K. Auf der Suche nach der Gerechtig-
mais que uma mera "desvaloração" da conduta keit, cit., p. 29 e 30. Acentua o autor a correlação
que o cidadão experimenta em sua diária exis­
tência entre o “dever” ser e o correspondente
su estúdio. Anuário de Filosofia dei Derecho,
“querer” a que responde aquele.
separata do Tomo VII, Madrid, 1960. p. 93 e ss.
210. Delineamento generalizado desde B i e r l in g . Prin-
201. Assim, B ie r l i n g , Ernst Rudolf. Juristische Prin-
zipienlehre, cit., I., p. 27 e ss. Cf.: E n g i s c h , K.
zipienlehre, í, 1894. p. 29.
Auf der Suche nach der Gerechtigkeit, cit., p. 29.
202. Assim, T h o n , August. Rechtsnorm und subjek- Também: N o w a k o w s k i , E Zur Lehre der Rechts-
tives Recht, 1878. p. 8. widrigkeit, cit., p. 290.
203. Apud, E n g is c h , K. Auf der Suche nach der Gerech- 211. Assim, S t r a t e n w e r t h , G. Handlungs-undEifolgs-
tigkeit, cit., p. 29. unwert im Strafrecht., cit., SchZSt 1963 (79), p.
204. Cf., J e s c h e c k , Hans-Heinrich. Lehrbuch, cit., p. 247. De onde depreende o autor a necessidade
188 e 189. de uma “subjetivização” do problema.
205. Fundamentos dei sistema penal, cit., p. 341. 212. Assim: E n g is c h . K. Einführung in das juristische
206. Idem, ibidem. Dmhen, 5. ed., 1971. p. 28.
207. J e s c h e c k , Hans-Heinrich. Lehrbuch, cit., p. 188. 213. J e s c h e c k , Hans-Heinrich. Lehrbuch, cit., p. 189.
Teoria da norma penal 643

Historicamente o imperativismo coliga-se seja cumprido por outros", que se"impõe''a outros
com dois nomes de capital importância: Au- sem que para isso se leve em conta a pessoa da
qual procede o ato volitivo, nem o próprio ato de
g u s t T h o n e E r n e s t R u d o l f B i e r l i n g .214
vontade, enquanto tal. As normas são, portan­
Segundo T h o n , o Direito de uma comunida­ to, imperativos que ostentam a forma do "dever
de não é, em suma, mais que um complexo de ser". São imperativos, mas não necessariamente
imperativos, enlaçados estreitamente entre si, "ordens" ou "mandatos": as normas relativas aos
de forma que o descumprimento de um deles contratos, por exemplo,-acrescenta B ie r l in g -não
constitui, com freqüência, o pressuposto de outro são nunca "ordens". As normas são imperativos e
dos imperativos.215O Direito é o "querer" ("Wol- contra isso não se pode invocar a falsa crença de
len") da comunidade, querer que, certamente, se que todos os imperativos contêm um "momento
dirige novamente ao "querer"dos seus membros. individual e não transferível (...) um imperativo
Por intermédio das leis pretende o ordenamen­ pode bem se dirigir a todos os homens ou somente
to impulsionar os submetidos a suas normas à a um ser imputável".
realização de uma determinada conduta, condu­
ta desejada que pode consistir em um fazer ou Quais conseqüências decorrem, no campo
em um omitir. Referido impulso se transmite por penal, dessa opção imperativista? Quais van­
meio de mandatos, isto é, de "ordens" ( Befehle ), tagens implicaria?
que ostentam conteúdo positivo ou negativo, de
O problema deve ser examinado, desde
acordo com cada caso: mandatos e proibições
que pesam sobre a liberdade daqueles aos quais
logo, no campo da teoria da “antijuridici­
se dirigem. Toda proposição jurídica autônoma dade”: o imperativismo, ao conceber a an­
consiste no seguinte: "você deve" ou "você não tijuridicidade como “rebeldia”, como “deso­
deve"; embora, às vezes, isto não resulte evidente, bediência”, como não submissão ao mandato,
e só se depreenda de forma "mediata", o certo é obriga a sustentar que a resolução da vontade
que "conceitualmente", em cada proposição jurí­ do agente (“Handlungswille”) é o núcleo da
dica existe um imperativo, um preceptum legis,
antijuridicidade.
ou, por dizê-lo de outra forma - acrescenta T h o n
-: "uma norma". Com seus imperativos dirige-se Essa postura tenta demonstrar que o "dolo"
o ordenamento jurídico aos homens, porque, do pertence ao tipo de injusto dos delitos dolosos,
mesmo modo que o Direito só pode emanar dos sem necessidade de acolher as premissas "on-
homens, assim também só os homens podem se tológicas" do finalismo. A essa "conseqüência
submeter a seus preceitos. Pois bem, ò ordena­ prática" referiu-se expressamente Je s c h e c k 217 assim
mento jurídico não dita suas ordens cegamente, como M i r P u i g :218 se a norma penal é reclamação
sem objetivos; nem pretende, sem mais, colocar de obediência dirigida à vontade, o momento
sob prova a obediência dos submetidos a ele. subjetivo da desobediência integrará a essência
Antes bem, persegue evitar a conduta que proíbe da antijuridicidade.
e conseguir o que ordena: seus mandatos, em A esta "vantagem " sistemática cabe acres­
conclusão, são um "m eio" a serviço de tal fim. centar outras duas a favor da tese imperativis­
No mesmo sentido adverte B i e r l i n g 216 que a ta. A primeira, teórica: o imperativismo está em
norma é "expressão de um querer que se espera consonância com a "função motivadora" que é
atribuída à norma por um forte setor doutrinário.
Com efeito, se à norma lhe corresponde motivar
214. Segundo T o m a s S. V i v e s A n t ó n (Fundamentos o cidadão para que realize determinada condu­
dei sistema penal, cit., p. 382 e ss.), quando se ta, ou para que se abstenha de realizá-la, nada
fala do primeiro imperativismo aparecem, junto melhor que as teses imperativistas para explicar
aos autores da tradição continental ( B i n d i n g , como opera a norma e como leva a cabo esta
T h o n , H e r k e l (...), ou tros de tradição anglo-saxã função: a ameaça da pena cumpriria sua função
( A u s t in , B e n t h a m , etc.), cujos delineamentos são motivadora por meio de um imperativo, proibin­
paralelos. Para T o m a s S. V iv e s A n t ó n , no entanto, do ou ordenando sob aquela ameaça. A segunda
B in d in g (que costuma ser associado a A u s t i n ) vantagem219afetaria as bases político-criminais do
não é um imperativista (Fundamentos dei sistema
penal, cit., p. 383-386).
215. T ohn, A. Rechtsnorm und subjektives Recht., cit., 217. Lehrbuch, cit., p. 189.
p. 1-4. 218. M i r P u i g , Santiago. Introducción a las bases dei

216. B ie r l in g , Ernst Rudolf. Prinzipienlehre, cit., I, Derecho penal, cit., p. 58.


p. 29. 219. Idem, p. 58 e 59.
644 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

Direito penal: adotadas as bases imperativistas é trabalho dos especialistas, a influência das diversas
mais coerentemente afirmar (quanto ao Direito frações, dos pactos, da mesma rotina?224
penal) o sentido da proteção de bens jurídicos Uma segunda objeção, patrocinada inicial­
- da prevenção - do que da mera realização da mente por M e z g e r ,223 coloca em relevo a impossi­
Justiça (retribuição). bilidade conceituai e lógica de um imperativo não
precedido da correspondente valoração. O Direi­
São muitas, de qualquer maneira, as ob- to, enquanto norma de "determinação" (imperati­
jeções dirigidas ao imperativismo, tanto no vo), não é imaginável sem o Direito como norma
âmbito da Filosofia geral quanto no âmbito de "valoração", ou seja, o Direito como norma de
valoração é necessariamente pressuposto lógico
penal propriamente dito.
do Direito enquanto norma de determinação. Se
Afirma-se, desde logo - e essa é uma objeção se quer determinar algo a alguém, deve se saber
que vale só para as posturas imperativistas mais antes o quê se quer determinar; e, portanto, deve-
radicais-que o imperativismo é inviável enquanto se valorar previamente esse algo como positivo
"compreensão totalizadora do Direito".220De ou­ em certo sentido. Príus lógico do Direito como
tro lado, não se poderia compreender o Direito norma de determinação é sempre o Direito como
internacional público, já que cada um dos sujeitos norma de valoração, como ordenação objetiva da
da comunidade internacional são sujeitos sobera­ convivência.226
nos e as normas pelas que resultam vinculados não Agregue-se a tudo quanto foi dito o seguinte: o
podem, então, operar como "mandatos".221Tam­ "conteúdo" da proposição jurídica não pode esgo­
pouco certas fontes do Direito, como o costume j tar-se em sua natureza ou estrutura imperativa. O
Direito deve ser mais que um simples s/c volo, sic
e os princípios gerais, reconhecidos como tais em
iubeo, que não distinguiria o mandato do legislador
praticamente todos os ordenamentos jurídicos,222
da ordem do assaltante munido de revólver. Quando
que dificilmente ostenta uma vontade concreta da
se pensa naproposição jurídica parece implícita uma
qual surgiria o correspondente mandato. A varie­
alusão àsua legitimidade, àsua pretensão de validez,
dade das normas jurídicas que integram o orde­
ao seu caráter vinculador.227 E preferível, destarte,
namento estatal, ademais, impedem a redução de
falar-se mais que em "imperativos" em "normas que
todas elas a uma categoria única de mandatos.223E impõem um dever"22S- Pflichtnormen (Celtungsa-
se pensamos no Estado moderno, no Estado plural, nordnungerí) -,229denominações com as quais se
democrático e aberto; no Estado dos partidos e das tenta "qualificar" a insuficiente natureza da norma
forças políticas, dos pactos; o imperativismo não como mero "imperativo".
poderia explicar o próprio fato da legislação, se é
que pretende encontrar atrás de cada norma um
224. Neste sentido, E n g i s c h , K. Auf der Suche nach
ato concreto de "querer" um ato volitivo. Como se
der Gerechtigkeit, cit., p. 30; Q u in t e r o O l iv a r e s ,
pode desconhecer neste Estado a importância do
Gonzalo. Derecho penal: parte general, cit., p.
26. Segundo H a r t , o modelo simplificador da
220. Sobre o problema, cf.: B a jo F e r n An d e z , M. Algunas norma como mandato não permite explicar nem
observaciones sobre la teoria de lamotivación, cit., o Direito “Internacional”; nem o sentido das
p. 16 e ss. regras que conferem “poderes” aos particulares
ou “potestades” aos órgãos ou funcionários pú­
221. Assim, B o b b io , Norberto. La teoria de la norma
blicos (El concepto de Derecho. México, 1980, p.
giuridica, Torino, 1958, p. 174 e 175 (cit., apud
56 ess.). Cf. V iv e s A n t ó n , Tomas S. Fundamentos
B a jo F e r n An d e z , M. Algunas observaciones sobre
dei sistema penal, cit., p. 351.
la teoria de la motivación, cit., p. 16).
225. Tratado de Derecho penal, cit., p. 343.
222. Cf. D íe z P i c a z o , L. Experienciasjurídicasy teoria
dei Derecho. Barcelona, 1973, p. 42 ess.; H a r t , H. 226. Apud, E n g is c h . Einführungin dasjuristiche Den-
L. A. El concepto dei Derecho. Trad. G.R. Carró. hen, cit.,p. 27e28. do mesmo autor: Aufder Suche
Buenos Aires, 1968. p. 33 e ss. (citados por B a jo nach der Gerechtigkeit, cit., p. 33.
F e r n An d e z , M. Algunas observaciones sobre la 227. Apud E n g is c h . Auf der Suche nach der Gerechtig­
teoria de lamotivación, cit., p. 16, nota 15). keit, cit., p. 31.
223. Por todos, H art, H .L.A . El concepto dei Derecho, 228. Assim, L a r e n z , K. cf. apud, E n g is c h . Aufder Suche
cit., p. 61, cit., apud, B a jo F e r n An d e z , M. Algunas nach der Gerechtigkeit, cit., p. 31.
observaciones sobre la teoria de lamotivación, cit., 229. Assim, S c h m id h à u s e r , E. apud E n g i s c h . Auf der
p. 19. Suche der Gerechtigkeit, cit., p. 31.
Teoria da norma penal 645

As objeções que acabam de ser ventiladas ce dúvida a possibilidade de que os inimputáveis


foram levadas em conta-e, em parte, aceitas-por possam atuar contra o Direito, antijuridicamente;
autores imperativistas. Assim, E n c i s c h , depois de mas é claro, também, que não são destinatários
dar razão a M e z g e r quanto ao "prius lógico" da idôneos de uma ordem dirigida pessoalmente a
norma de valoração, adverte que seria falso, no eles.234 Não tem sentido querer determiná-los
entanto, configurar a proposição normativa "ex­ por meio de normas jurídicas; nem cabe falar de
clusivamente" como norma de "valoração". Para "desobediência" em relação ao inimputável que
dizê-lo com as palavras do próprio autor: "O man­ não observa o disposto na norma. Por isso, ainda
dato legal aprova algo e por isso - porque o aprova que se lhes pudesse motivar psicologicamente
- exige um fazer positivo, e aprova esse fazer se com preceitos obrigatórios (imperativos) - o que
corresponde às exigências que o justificaram. A não é factível, como não o é em relação aos ani­
proibição desaprova tal fazer, e por isso, exige sua mais -, o problema não se resolveria e as ficções
omissão, da mesma forma que desaprova também ou as pretensões pouco razoáveis carecem de
uma conduta contrária à referida proibição". A sentido.235
valoração ou desvaloração é um momento prévio, A existência de mandatos "permissivos" ou
essencial, inclusive para a interpretação da lei, e meramente descritivos ou conceituais, por últi­
para sua própria aplicação, já que a delimitação mo, é mais uma objeção contra o imperativismo.
do querer do imperativo legal deve tomar como Isto é, parece que nem toda proposição jurídica
medida, preferentemente, as valoraçõesquesub- reveste as características de um "imperativo".Todo
jazem no mandato.230 ordenamento jurídico conhece determinadas
Quanto a outras objeções, o próprio E n g is c h , proposições que, sem deixar de sê-lo, carecem,
depois de afirmar que as proposições jurídicas
são, primariamente, "imperativos", adverte que Gonzalo. Derecho penal: parte general,
O l iv a r e s ,
o "q u erer" imperativo do legislador não é um cit., p. 26.
querer arbitrário e carente de vinculações, senão
234. Assim, N o w a k o w s k i , E Zur Lehre der Rechtswid­
que os mandatos e as proibições legais fundam
rigkeit, cit., p. 291.
suas raízes nas denominadas normas de valoração
235. Sobre o problema, cf.: N o w a k o w s k i , E Zur Lehre
transformando-se, por sua vez, em autorizações
der Rechtswidrigkeit, cit., p. 291.
ou desaprovações, se é que não se quer ver no
Em sentido contrário, a favor da tese imperativis­
Direito a mera expressão do despótico humor do
ta: E n g is c h . Auf der Suche nach der Gerechtigkeit,
legislador, senão o resultado de lógicas e racionais
cit., p. 31 (seguindo a A r m in K a u f m a n n ) . Para o
deliberações.231
autor, todos os cidadãos - todos - seriam destina­
Uma outra observação fundamental contra
tários da norma. Estas - em um plano “abstrato
o imperativismo reside no problema do "desti­ - se promulgam como normas “gerais”, isto é,
natário" da norma. Cuida-se de um problema dirigidas a todos. Claro que, eventualmente, se
aparente, mas criado, sem necessidade, pela teoria dirigem só a determinados grupos de pessoas,
dos imperativos.232A quem se dirigem os impe­ mas não se concebem já de antemão limitadas a
rativos legais? As normas jurídicas "regem " os determinados destinatários idôneos, senão que
atos inclusive das crianças, dos doentes mentais, prescindem da capacidade concreta e singular
dos embriagados etc., e, no entanto, tais pessoas dos mesmos para cumprir os imperativos). Se
não são, em geral, destinatários "adequados" de no caso concreto falta dita capacidade, em razão
ordens ou mandatos, pois se nem sequer podem da inimputabilidade do sujeito, então pode-se
compreender as proibições e os imperativos, tam­ deduzir disso uma determinada “conseqüência”
pouco podem segui-los.233Legalmente, não ofere­ jurídica, o que não significa que os imperativos,
de antemão, tenham ficado excluídos respeito
aos inimputáveis, que não tenham valido para
230. E n g is c h . AufderSuchenachderGerechtigkeit,cit..
estes. Emsentido p a r e r id o jE S C H E C K , Hans-Hein-
p. 33 e 34.
rich. Lehrbuch, cit., p. 189 e, entre nós, M i r P u i g ,
231. E n g is c h . EinführungindusjwistischeDenken, cit., Santiago. Introducción a las bases dei Derecho
p. 27 e 28. E n g is c h , de fato, considera difícil de penal, cit., p. 56. Emsentido contrário, e, expres­
rebater a tese de L a r e n z (cf., a respeito, Auf der samente contra a tese de J e s c h e c k : B a u m a n n , J.
Sucheder Gerechtigkeit, cit., p. 32 e 33). Strafrecht, cit., p. 267, nota 9; T o r i o L o p e z , A . El
232. Neste sentido: L a r e n z , cit., por E n g is c h . Auf der deber objeto de cuidado en los delitos culposos:
Suchenach der Gerechtigkeit, cit., p. 35. Anuário de Derecho penal, p. 34, nota 17, 1974;
233. Cf., apud E n g i s c h . Auf der Suche nach der Ge­ B a jo F e r n An d e z , M. Algunas observacioties, cit.,
rechtigkeit, cit., p. 31. Neste sentido: Q u in t e r o p. 32.
646 D ir e it o p en a l - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

no entanto, de natureza imperativa em sentido configurando-a como mera desobediência,


estrito. como rebeldia ao Direito e.não como lesão
E o que dizer daquelas proposições que regu­ ao bem jurídico.240 Isso, de outro lado, não
lam a constituição de um poder de representação,
permitiria distinguir a antijuridicidade da
as que determinam detalhadamente o status de
culpabilidade,241 o que é inaceitável nos dias
uma pessoa e, fundamentalmente, as que conce­
dem, sob determinados pressupostos, um direito atuais. Não poderiam existir, ademais, manda­
a alguém, ou modificam, ou limitam ou inclusive o tos antijurídicos não culpáveis, apesar de que
denegam.236Estes últimos-os que outorgam um a lei parte da existência deles;242nem caberia,
direito subjetivo - são os mais problemáticos, os em conseqüência, a legítima defesa contra a
mais difíceis de justificar coerentemente desde agressão do inimputável.243Por último, se diz,
premissas imperativistas.237 Porque, evidente­
o imperativismo não pode explicar a existên­
mente, referidas proposições (por exemplo: os
cia de normas dirigidas aos inimputáveis, a
preceitos do Direito civil sobre a propriedade)
pertencem ao Direito objetivo e são mais que existência de mandatos permissivos, nem a
meras autorizações, outorgam uma verdadeira punibilidade da culpa inconsciente.244
esfera de poder. O imperativismo parece, pois,
desconhecer ou ocultar essa cara "positiva" do 6.3.3 Teses conciliadoras
Direito.238
Algumas objeções foram rebatidas de for­
Importa assinalar que todas as objeções ma satisfatória pelo imperativismo. Outras,
contra o imperativismo encontram eco na com excessivo artifício. De qualquer maneira,
esfera penal. Sublinha-se, desde logo, que o o certo é que, como costuma acontecer, a
imperativismo conduz a um conceito subj eti- polêmica deu lugar a posturas ecléticas ou
vo de antijuridicidade, que é impraticável,239 mistas, que são hoje amplamente dominantes.
■Esse ecletismo, aliás, aconteceu por meio de
236. Cf., M ir P u i g , Santiago. Introducción a las bases diversos caminhos.
dei Derecho penal, cit., p. 54.
A começar pelo reconhecimento da interde­
237. Uma explicação sobre o ponto de vista da teoria
pendência recíproca entre a norma de valoração e
dos imperativos em: E n g is c h . Einführung in das
a norma de determinação. Mister se faz, portanto,
juristische Denken, p. 2 6 e 2 7. Segundo o autor o
relativizar o problema.
problema é só aparente. Se trataria de uma mera
façon deparler, no sentido dos direitos subjetivos E n g is c h , referindo-se à teoria dos imperativos

- essa cara “positiva” do Direito - em definitiva, - da qual é partidário - afirmou que ela é correta
viria dada pelo jogo recíproco dos “imperativos”. sempre que seja entendida em seus justos termos,
O Direito - diz E n g is c h - não possui uma sacola sem exageros245e exclusivismos. O próprio autor,
cheia de direitos “subjetivos”, senão que estes
nascem e se outorgam através dos imperativos.
240. Por todos: B a jo F e r n á n d e z , M .Algunas observacio-
Com cada preceito permissivo se restringem as
n e s ,c it .,p . 1 9 e s s .;B L O C K E L N L A N N ,P G í‘un drísserfes
proibições, perdem terreno os imperativos. Pelo
Rechts, c it., p . 35. Q u in t e r o O l iv a r e s , Gonzalo.
contrário, ao se dispensar e se outorgar direitos
Derecho penal: p a r te g e n e r a l, c it., p . 26.
subjetivos, se potencializam aqueles.
241. Neste sentido: B o c k e l m a n n , P Grundrisse des Re­
2 3 8 . A p u d E N G is c H . EinfürhrungmdasjuristischeDen-
chts, cit., p . 35; M a u r a c h , Reinhart.; Z i p f , Heinz.
ken, c it., p. 2 5 . 0 a u to r, n o e n ta n to , n ã o c o m p a r ­
Strafrecht, cit., p. 357; B a jo F e r n á n d e z , M . Algu­
t i l h a e sta tese.
nas observaciones, cit., p . 20.
239. Tratado de Derecho penal, cit., p. 341.
M e z g e r , E.
242. Assim: N o w a k o w s k i , F. Zur Lehre der Rechtswi­
nota 3. Q u i n t e r o O l i v a r e s , Gonzalo (Derecho
drigkeit, cit., p. 295; Também Q u i n t e r o O l iv a -
penal: parte general, cit., p. 26) reprova o impe­
r e s , Gonzalo (Derecho penal: parte general, cit.,
rativismo por desprezar o conteúdo “objetivo”
p. 26).
da norma e a obrigada referência ao bem jurídico.
Adverte M e z g e r que T h o n e B i e r l i n g , inclusive, 243. B a u m a n n , J. Strafrecht, cit., p. 179.
apesar de que partem da teoria dos imperativos, 244. Assim: B o c k e l m a n n , P. Grundrisse des Rechts, cit.,
e contra a lógica “formal” (pois esta conduz ao p. 35.
subjetivismo) se vêm obrigados ao objetivismo 245. Assim: E n g i s c h . Einfürhung in das juristische
“pelas necessidades da prática”. Denken, cit., p. 22.
Teoria da norma penal 647

na linha eclética assinalada, sustenta a íntima in­ têm origem em B ie r l in g , que diferenciava "ordem"
terdependência entre a norma de valoração e a de ("Befehle") e "imperativo" ("mperativ").252
determinação.246S t r a t e n w e r t h , que propugna um Significativa, ademais, é a postura de dois au­
novo tratamento do problema, desde perspecti­ tores imperativistas: E n g is c h e L a r e n z .
vas subjetivistas, tampouco opta drasticamente E n g is c h distingue entre "imperativo", em sen­
por um dos termos da alternativa (pela norma tido estrito, e preceitos ou proposições "autôno­
de determinação), senão que trata de conciliar mas", que não são "imperativos". Ele parte de que
ambas. Afirma esse autor que: "as normas de as proposições jurídicas são "imperativos" que
determinação são normas de valoração, conce­ expressam o "querer" do legislador, e dos quais
bidas imperativamente".247 O mesmo acontece procedem os correlativos"deveres jurídicos". Mas
em relação ao lado oposto: B a j o F e r n á n d e z , que é ressalta expressamente que a teoria dos impera­
um forte crítico da teoria dos imperativos - mais tivos não tem que ser colocada em conexão com
exatamente do imperativismo "ingênuo" - não cada uma das proposições ou frases de um Código
prescinde tampouco da natureza imperativa da penal, que podem não ser "autônomas", ou que
podem ter como única função a de delimitar os
norma. E define a proposição jurídica como um
mandatos legais ou a punibilidade.Aseu juízo, por
"dever ser imperativo" como "uma valoração que
isso, tanto as proposições que contêm definições
se faz valer, que se impõe".248
legais como as "permissões" ("Erlaubnisse"), são
O segundo caminho consiste em relativizar exclusivamente proposições heterônomas. Para
a afirmação simplista de que toda norma é um E n g i s c h , em suma, imperativos são só aqueles
imperativo, reconhecendo-se que no ordena­ mandatos e proibições que portam realmente o
mento jurídico existe uma grande variedade de sentido do ordenamento jurídico e que se prepa­
proposições, de natureza heterogênea, que re­ ram e reconstroem partindo das formulações do
clama tratamento discriminado, segundo a função Código.253Dito de outra maneira: aquelas outras
que cada uma desempenha. Nem toda expressão proposições que não contêm de modo "imediato"
gramatical de um Código é um imperativo; tam­ uma ordem ou uma proibição, senão autorizações
pouco se pode equiparar uma norma proibitiva ("Ermãchtigungen"), permissões ("Erlaubnisse")
e preceptiva com uma norma permissiva ou com etc., seriam preceitos não autônomos, ou seja,
a que confere um direito subjetivo ou com a que não imperativos.254
determina uma proibição penal ou com a quec L a re n z , por seu turno, distingue entre "impera­

cuida de um mero conceito.249 tivo" e "norma de determinação". Para L a r e n z toda


proposição jurídica, inclusive se não contém direta
Por último, o próprio conceito de "impera­
ou imediatamente uma proibição ou mandato, é
tivo" deve ser suavizado e jamais entendido em
um preceito ou norma de "determinação" (B es-
termos de uma relação psicológica entre superior
tim m ungesetz), uma ordem com pretensão de
e inferior. Entende-se mais como "adjetivo" que
vigência (Geltungsanordnung ) .2 55L a r e n z evidencia,
como "substantivo"250sem prejuízo das oportunas
pois, a distinção entre imperativo e pretensão
referências ao seu "conteúdo",251a sua legitimida­ de validez ou vigência, entre "norma de deter­
de, pretensões de vigência, caráter vinculante etc. minação" ("Bestimmungsnorm") e "ordem " ou
Daí uma série de distinções e relativizações, que "mandato" (Befehle). O mandato se dirige a uma
ou várias pessoas com a finalidade de influenciar
de forma imediata na vontade delas. A norma de
2 4 6 . E n g is c h . AufderSuchenach der Gerechtigkeit, c it.,
p. 36 e 37.

247. G. Handlungs-und Erfolgsunwert


S t ra ten w erth , 252. Prinzipienlehre, cit., p. 27, nota 3 (o autor distin­
in Strafrecht, cit., SchZStr, 1963 (79), p. 248. gue entre: “Befehle” e “Imperativ”).
248. B a jo F e r n á n d e z , M. Algunas observaciones, cit., 253. Einfürhrung in das juristische Denken,
E n g is c h .
p. 25. cit., p. 23: “Die eigentliche Sinntràger der Re-
249. Sobre o problema, cf: E n g is c h . Einfürhung in das chtsordnung sind die aus den grammatischen
juristischeDenken, cit., p. 22 e ss. Sàtzen des Gesetzbuches herauspráparierten und
250. Sobre a distinção, cf. L e g a z L a c a m b r a , L . Filosofia herauskonstruirten Verbote und Gebote (...)”.
dei Derecho. 2. ed. Barcelona, 1961. p. 356. Cit., 254. Segundo interpreta L a r e n z , o pensamento de
por Bajo Fernández, M. Algunas observaciones, E n g is c h , em: DerRechtssatzals Bestimmungssatz,
cit., p. 15, nota 11. Festschrift für Engisch, cit., p. 150.
251. Sobre o problema, cf. E n g is c h . Aufder Suche nach 255. Assim: L a r e n z , K. Der Rechtssatz ais Bestim­
der Gerechtighkeit, cit., p. 31-33. mungssatz, cit., p. 150 e 152.
648 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

determinação pode pretender, também, em últi­ implicações que podem derivar para a sistemática
ma instância, influenciar a conduta de terceiros, do delito de uma ou outra opção.259
mas, de forma imediata, o que persegue é que Metodologicamente discute-se se o problema
seja observada, respeitada (porque tem vigência da estrutura da norma admite-ou não-um trata­
e validez). O efeito primeiro de um mandamento mento específico no âmbito penal (que enfocaria
- isto é, seu cumprimento - se encontra no terre­ a questão de maneira diferenciada).
no do que deve acontecer efetivamente, de fato;
O primeiro critério é o que adota M ir P u i g ,
enquanto que o efeito imediato da norma de
para quem estamos em presença de um problema
determinação, ou seja, a vigência do que se quer
especificamente penal que não pode ser resolvido
com ela determinar, pertence exclusivamente ao
sobre as bases da teoria geral do Direito.260 Para
mundo dos pressupostos e das conexões jurídicas.
o autor, é possível que nem toda norma jurídica
O mandato é um ato singular, que se explica e
seja um imperativo, mas, é certo que toda norma
compreende totalmente por si só, enquanto que
a norma de determinação costuma formar parte "penal" é forçosamente um imperativo.261
de uma regulação mais ampla, onde ela conta Em sentido contrário, R o d r í g u e z M o u r u l l o
com sentido e eficácia.256 E daqui conclui L a r e n z afirma a necessidade de um tratamento unitário
que todas as proposições jurídicas são normas da problemática da norma jurídica, com indepen­
de "determinação" no sentido exposto, porém, dência do setor do ordenamento jurídico a que
dentre elas, há algumas que contêm um mandato ela pertença.262
ou uma proibição: são os genuínos "mandatos" B a j o F e r n á n d e z , por seu lado, reprovou a tese
ou "imperativos".257 diferenciadora de M ir P u ig que conduziria a duas
PAUSA EXCURSIVA: A POLÊMICA concepções do Direito e do injusto. Porque-afir-
SOBRE A NATUREZA DA N O RM A PENAL ma B a j o - se a concepção imperativa traz como
NA D O UTRIN A ESPANHOLA / conseqüência dogmática a necessidade de incluir
no centro do injusto o momento subjetivo da de­
O problema da natureza da norma penal de­ sobediência (o dolo), então caberia admitir uma
senvolveu-se na doutrina espanhola com singu­ concepção da antijuridicidade distinta, segundo
laridades dignas de menção. Daí a conveniência se trate de uma norma geral ou de uma norma
de uma pausa excursiva.
jurídico-penal; no Direito civil, a antijuridicidade
7. Particularidades sistemáticas e m etodoló­seria um juízo de valor objetivo sobre o fato; no
gicas da polêmica Direito penal uma desobediência dolosa ou culpo­
Do ponto de vista sistemático, a polêmica se sa. Com isso se produziria a ruptura do que M e z g e r
transcorre não no campo da teoria jurídica do de­ chamou de "dileta unidade da antijuridicidade", e
lito, especialmente no âmbito da antijuridicidade, se manteria-insustentavelmente-duas concep­
senão com maior autonomia no marco da teoria ções distintas do Direito.263
das fontes e, concretamente, na área da norma pe­
Impõe-se, de outra parte, distinguir a norma
nal ou da lei,258sem prejuízo de que se assinalem as
que comina com determinada pena uma con­
duta daquela outra norma que estabelece uma
256. Idem, p. 157. medida de segurança. Para alguns autores isso
257. Idem, ibidem. implica exclusivamente um enfoque suigenerís
258. Por exemplo: R o d r í g u e z D e v e s a , J.M . Derecho
penal espanol, cit., p. 151 e ss. R o d r íg u e z M o u ­
259. R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Derecho penal,
r u l l o , Gonzalo. Derecho penal, cit., p. 75 e ss; M ir
cit., p. 83. M ir P u i g , Santiago. Introducción a las
P u i g , Santiago. Introducción alas bases dei Derecho
bases dei Derecho penal, cit., p. 54, nota 75. B a jo
penal, cit., p. 53. M u n o z C o n d e , Francisco. Intro-
F e r n á n d e z , M . Algunas observaciones, cit., p. 19.
duccíón al Derecho penal, cit., p. 14 e ss. Q u in t e r o
Por todos, L u z ó n P e n a , D . M . Curso de Derecho
O l iv a r e s , Gonzalo. Manual de Derecho penal:
penal, 1996, cit., p. 339 e ss.
parte general, 1999, cit., p. 49 ess.; L u z ó n P e n a ,
260. M ir P u i g , Santiago. Introducción a las bases dei
D . M . Curso de Derecho penal: parte general, cit.,
Derecho penal, cit., p. 53.
p. 63 e ss.; P o l a in o N a v a r r e t e , M . Derecho penal:
parte general. 3. ed. Barcelona: Bosch, 1 9 9 6 .1.1, 261. Idem, p. 54 e 55.
p. 95 e ss.; M u n o z C o n d e , Francisco; G a r c ia A r á n , 262. R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Derecho penal,
M . Derecho penal: parte general, cit., p. 63 e ss.; cit., p. 82.
M ir P u i g , Santiago. Derecho penal: parte general, 263. B a jo F e r n á n d e z , M . Algunas observaciones, cit.,
cit., p. 36 e ss. p. 28 e 29.
Teoria da norma penal 649

do problema do "destinatário" da norma;264para numerosos adeptos nos últimos anos,269embora


outros, ao contrário, essa questão afetaria em sua encontra-se submetida a duras críticas. Menção
essência o problema da natureza imperativa ou especial merece a original e valiosa contribuição
não imperativa da norma.265 de V iv e s A n t ó n , que constitui uma exposição crí­
As conclusões, de qualquer maneira, são se­ tica dos fundamentos do sistema penal, levada a
melhantes: existem várias classes de "norma". Para cabo desde uma reconstrução de suas categorias
básicas (ação e norma), à luz do "giro pragmáti­
R o d r í g u e z M o u r u l l o , as normas são normas obje­
co" efetuado por boa parte da Filosofia a partir
tivas de valoração e subjetivas de determinação;
da obra de Wittgenstein, que implicou o enqua­
as que contemplam "penas" teriam duas classes
dramento da discussão interna da sistemática
de "destinatários": o cidadão e o juiz; e as normas
penal no novo cenário do atual debate filosófico
que contemplam medidas de segurança, teriam,
e sociológico.270
no entanto, um único destinatário: o juiz.266 Para
2. A opinião majoritária: a norma e sua dupla
M ir P u i g , tanto as normas que contêm penas como
função (desvaloração e determinação)
as que contemplam medidas de segurança, são
A doutrina espanhola tradicional é partidária
"imperativos". Mas, enquanto as primeiras vão
de uma concepção eclética, mista: a norma penal
dirigidas ao cidadão (mandato primário) e ao juiz
aparece, desse modo, como norma de valoração
(norma secundária), as normas que estabelecem
assim como norma de determinação.271Valoração
medidas de segurança seriam imperativos exclusi­
e determinação são dois "momentos",272dois "as­
vamente dirigidos aos órgãos do poder judiciário,
pectos",273 duas perspectivas,274 da norma penal,
como único destinatário das mesmas.267 que não interferem na sua insuperável unida­
Na Espanha o imperativismo ganhou muito de.275
impulso268 em razão do auge e acolhimento do Assim, R o d r í g u e z D e v e s a , ao fazer referência à
pensamento finalista. Isso aconteceu também "estrutura" da lei penal, afirma que ela pode ser
em virtude da teoria da "motivação", que ganhou considerada desde dois pontos de vista: estático
e dinâmico. Estaticamente, a norma penal corres­
ponde à estrutura "hipotética" ou "condicional"
264. Assim: R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Derecho
penal, cit., p. 83 e 55. acima abordada. A norma conta, portanto, com
um pressuposto "descritivo" (conduta humana)
265. Aparentemente, assim: M i r P u i g , Santiago, ln­
troducción a las bases dei Derecho penal, cit.^p. e com uma conseqüência "imperativa" (que se
59. Para o autor, umas e outras - não obstan­ coliga com o pressuposto). Mas, dinamicamente, a
te - são “imperativos”. Para L u z ó n P e n a , D.M. lei é um juízo de "valoração" (juízo desvalorativo).
(Curso de Derecho penal: parte general, cit., p. Um juízo de valoração com o qual o legislador
67 e 68) as normas que assinalam medidas de
segurança não são normas de “determinação”,
269. Assim, R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Derecho
não contêm nenhum mandato dirigido ao cida­
penal, cit., p . 8 0 . B a jo F e r n á n d e z , M . Algunas
dão. Mas tampouco são “normas de valoração”,
observaciones, cit., p. 11.
em sentido estrito, que descansam no juízo de
antijurisdicidade. Falta, pois, nas citadas normas 270. Fundamentos dei sistema penal, c it.
o mandato primário, e o conteúdo imperativo 2 7 1 . R o d r íg u e z D e v e s a , J. M. Derecho penal espanol,
próprio de toda norma que se circunscreve ao c it . , p . 152, R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Dere­

mandato secundário. cho penal, c it ., p. 8 3 , B a jo F ern án d ez, M . Algunas


266. R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Derecho penal, observaciones, c it ., p . 25.
cit., p. 84 e 86. 272. Assim: B a jo F e r n á n d e z , M. Algunas observaciones,
267. M ir P u i g , Santiago. lntroducción a las bases dei cit., p. 25.
Derecho penal, cit., p. 59 e 60. Para R o d r íg u e z 273. A s s im : R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Derecho

D e v e s a , J . M., “estaticam ente” a norma é um penal, c it., p . 76.


imperativo dirigido ao Juiz, para que aplique a 2 7 4 . R o d r íg u e z D e v e s a ,J.
M. Refere-se às duas formas
“conseqüência” jurídica se se dá o pressuposto. de considerar a Lei penal: estaticamente e dina­
“Dinamicamente, conteria uma proibição dirigi­ micamente.
da ao cidadão, um mandato que alcança a todos 275 . Sobre a unidade estrutural da norma, expres­
(Derecho penal espanol, p. 152). samente: R o d r íg u e z D e v e s a , J. M. Derecho penal
268. Como diz R o d r íg u e z M ou ru llo , Gonzalo. Dere­ espanol, cit., p. 149. R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gon­
cho penal, cit., p. 79. zalo. Derecho penal, cit., p. 83.
650 D ir e it o p en a l - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

-embora só de forma mediata- proíbe determi­ B a jo F e r n á n d e z , por seu turno, também acen­
nadas condutas.276 tua o "momento" valorativo da norma. A norma
Do que foi exposto o autor conclui: (a) Que, é um "dever ser imperativo".282 Primeiro e, antes
do ponto de vista estático, a lei é um "imperativo" de tudo, um "dever ser", porque "normar não é
que se dirige ao juiz para que aplique a pena (con­ imperar, senão julgar". A norma é juízo de valor,
seqüência), desde que aconteça o pressuposto mas referido juízo de valor não é ainda norma
(delito); enquanto que, do ponto de vista dinâ­ jurídica, se não lhe acompanha uma força que
mico, a lei contém uma "proibição", que alcança lhe faça valer, se não é imperativo. A norma penal,
todos os submetidos a ela; (b) Que a lei é, antes de continua, é um dever ser imperativo porque há
tudo, uma norma de "valoração" de determinadas um valor que deve ser realizado em uma con­
condutas, mas, ao proibi-las, é claro que trata de duta; é imperativo, imposição, porque impera
"determinar"aos destinatários que se abstenham submetendo algo a uma ordem. Mas que a norma
de levá-las a cabo. Isto é: a norma penal constitui seja imperativa não significa que se trate de uma
tanto uma norma de valoração como uma norma ordem que vincula a vontade do soberano com as
de determinação, que se estabelecem de forma dos súditos, tal como a entendiam os partidários
coesa, embora a primeira anteceda a segunda do imperativismo voluntarista. A norma é norma
desde uma perspectiva lógicu conceituai.277 de "determinação", mas não "mandato", naquele
sentido:283 é "pretensão de validade", mas não
R o d r í g u e z M o u r u l l o admite, também, os dois
imperativo, ordem.
"aspectos" da norma, o valorativo e o imperativo.
A norma é, para o autor, uma vinculação histórica Ademais, ainda de acordo com B a j o F e r n á n d e z ,
de sentido axiológico, que se impõe como forma é uma contradição conceber a norma como norma
da vida social, isto é, norma de valoração que se de valoração e como imperativo voluntarista ao
impõe imperativamente.278 Mas a norma, acres­ mesmo tempo, especialmente se se reconhece o
centa, não é puro juízo de valor, senão também um primado lógico e conceituai da norma de valora­
imperativo no sentido de que se acha em contato ção. Porque então, afirma, o mandato emanado
direto com as funções públicas do Estado e com da vontade do soberano se justifica só por ser um
os fenômenos de ordem, comando e organiza­ mandato respaldado pela força, sem necessidade
ção. Mas não é imperativo no sentido tradicional de referência à valoração do seu conteúdo. Se
de mandato imposto por uma vontade a outra, a norma é mandato da vontade do soberano,
conclui, não se explica por que necessariamente
vinculação psicológica de vontades.279
tal vontade venha a exigir como prius lógico uma
De outro lado, distingue dois aspectos ou­
valoração. É certo que a valoração só se consegue
tros relevantes: que é a norma e como opera ou
por meio do imperativo, no sentido de que em
costuma operar a norma. A norma, adverte, não
outro caso não seria uma norma jurídica, senão
é um imperativo dirigido à vontade dos súditos,
um mero "desejo" do legislador: mas a norma
senão "fórmulas de generalização indicativa para
requer, ademais, a "pretensão de validade" da
a satisfação de pretensões (...): enunciação dos
conseqüência jurídica.284
critérios gerais de decisão dos conflitos".280Quanto
Uma postura eclética mas singular é a susten­
a seu modo de operar, se estrutura de tal modo que
tada por Q u in t e r o O l iv a r e s , nos seguintes termos:
pode funcionar como "motivo de atuar" dos seus
"A infração da norma depende da vontade que
destinatários, embora não seja necessário que de
guiou a ação e a lesão objetiva realizada. Estes dois
fato opere como imperativo (porque não se requer
aspectos da norma podem estar proporcionados
que o sujeito represente o conteúdo da norma), e
variavelmente nas infrações concretas, colocan­
embora de fato tampouco costuma contra-moti-
do-se com maior intensidade a importância de um
var o destinatário. Com isso o autor contempla a
ou outro aspecto. Segundo se atenda à infração
realidade unitária da norma como norma objetiva
da norma em sua projeção como imperativo ou
de valoração e como norma subjetiva de determi­
à violação da mesma como juízo objetivo, esta­
nação, distinção que se corresponde à dos campos
remos em presença de um desvalor da ação ou
da antijuridicidade e da culpabilidade.281

282. Algunas observaciones, c it., p. 25.


276. Derecho penal espanol cit., p. 149 e 150.
283. B a jo F e r n á n d e z , M. Algunas
observaciones, cit.,
277. Idem, p. 152.
p. 2 4 (Seguindo o pensamento de L a r e n z , K .
278. Derecho penal, cit., p. 77. Der Rechstssatz ais Bestimmungssatz, cit., p.
279. Idem, p. 78. 1 5 0 e ss.).
280. Idem, p. 83. 2 8 4 . B a jo F e r n á n d e z , M . Algunas observaciones, c it.,
281. Idem, ibidem. p. 27.
Teoria da norma penal 651

de um desvalor do resultado (...) Normalmente o instância valorativa (introjetada no indivíduo) que


desvalor da ação deve ser prius lógico do desvalor impulsiona o adulto a dirigir suas ações conforme
do resultado; mas pode acontecer que uma figura as exigências que emanam dela; é uma instância
concreta se funde total ou principalmente em que se forma depois de um longo processo que
um ou outro: a averiguação de qual é o elemento se inicia com a introjeção do poder paterno na
preponderante (...) corresponde ao estudo dos criança. A norma penal é um dos fatores determi­
delitos em particular (...)".285 nantes do "super ego", que se caracteriza, frente
3. A teoria da "m otivação": exposição e crí­ aos restantes, por poder se impor coativamente
ticas e de forma institucionalizada. O principal meio
A chamada teoria da motivação foi introduzida de coação - característica essencial do Direito
na Espanha por G im b e r n a t O r d e i g 286 e é seguida, - seria a norma penal, que cumpre, por isso, uma
com algumas variações, dentre outros, por M u n o z função motivadora, na medida em que amea­
C o n d e , 287 M i r P u ig , 288 O c t a v i o de T o l e d o 289 e L u z ó n
ça com uma pena a realização de determinadas
P e n a .290 Por força da teoria em destaque a norma
condutas. Referida função "motivadora" é, pri­
jurídico-penal operaria, para conseguir a proteção
mordialmente, "social", porque incide em cada
dos bens jurídicos bem como os efeitos preven­
indivíduo concreto. Os processos pelos quais a
tivos, motivando o indivíduo a uma determinada
estrutura motivacional de uma personalidade
conduta por meio da ameaça de uma pena. Em
chega a ser o que é, são, fundamentalmente, pro­
outras palavras, a norma penal persegue a pro­
teção de bens jurídicos e, para alcançar esse fim, cessos sociais, que implicam a interação do "ego"
acaba desencadeando nos indivíduos determi­ com uma pluralidade de "alter".292
nados processos psicológicos que lhes induzirão Ateoria da motivação, em última análise, deve
a respeitá-los; tais mecanismos psicológicos, por ser enquadrada na esfera das concepções "im ­
outro lado, não se apresentam isolados, senão perativistas",293como bem sublinhou M ir P u ig ao
formando parte de um processo complexo cha­ afirmar que o caráter "imperativo" da lei penal
mado "m otivação"291 que a psicanálise explica corresponde à função motivadora que ela deve
sem dificuldade. cumprir: a ameaça da pena cumpre sua função
A autoridade em geral e, de modo especial, a motivadora por meio de um imperativo.294
autoridade estatal - cuja face mais dramática é o Mas a teoria da motivação, de qualquer manei­
Direito penal - se internalizam (se introjetam nos ra, tem importantes conseqüências que transcen­
indivíduos) pela criação do "super ego". O "super dem a problemática da estrutura da norma penal:
ego" é um órgão de controle, ou melhor, uma
não é só nem fundamentalmente uma explicação
da função da norma.
285. Q u in t e r o O l iv a r e s , Gonzalo. Derecho penal: parte Para G im b e r n a t , a função motivadora da norma
general. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 1989. p. oferece um precioso critério para explicar porque
31. Do mesmo: Manual de Derecho penal: parte o inimputável pode atuar, também, antijuridica-
general, cit., p. 51 e ss. mente, apesar de não possuir acesso ao mandato,
286. El sistema dei Derecho penal en la actualidad. ou seja, ao imperativo. Serve ainda para explicar
Anuário de Ciência Jurídica, y, 1971/1972, p. quando uma causa de exclusão da responsabili­
278. dade é uma causa de justificação (justificante) ou
287. Funktion der Strafnormund Strafrechtsreform. uma causa de exclusão da culpabilidade (excul-
In: Strafrecht und Strafrechtsreform, Kõln, 1974, pante).295Afunção motivadora do "tipo" de outro
p. 312 e ss., do mesmo autor: lntroducción, cit., lado, fundamenta a inclusão do dolo ao tipo de
p. 46 e ss.; do mesmo e G a r c ía A r á n , M. Derecho injusto nos delitos dolosos, sem necessidade de
penal: parte general, 1999, cit., p. 67 e ss. e bi­ subscrever os postulados ontológicos do fina-
bliografia na página 72.
288. lntroducción a las bases dei Derecho penal, cit., p.
57; do mesmo: Derecho penal: parte general, cit., 292. Idem, p. 52.
p. 37. 293. Assim, B a jo F e r n An d e z , M . Algunas observaciones,
289. Sobre el concepto dei Derecho penal, cit., p. 102. cit.. p. 12.
290. L uzón P en a ,D. M. Prevención general y psi- 294. M ir P u i g , Santiago. lntroducción a las bases dei
coanálise. In: Derecho penal y Ciências Sociales. Derecho penal, cit., p. 57.
Barcelona, 1982 (edit. Mir Puig). 295. '‘Der Notstand: ein Rechtswidrigkeitsproblem”,
291. M u n o z C o n d e , Francisco, lntroducción al Derecho em: F estschriftfür H. Welzel zum 70, Geburstag,
penal, cit., p. 50. 1974, p. 492 e ss.
652 D ir e it o p en al - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

lismo.296Por último, da função motivadora que o legal; trata-se de motivação efetiva que poderia
autor confere, também, à "pena" depreende G i m - ser comprovada pela experiência.301G im b e r n a t , por
b e r n a t : (a) a irresponsabilidade dos inimputáveis e seu turno, negando o efeito motivador da norma
daqueles que padecem do erro invencível de proi­ no inimputável, mas afirmando a sua existência
bição (porque frente aos mesmos carece a pena de em relação aos demais; estando perfeitamente
eficácia inibitória); (b) a necessidade de uma pena definidos os casos em que certas pessoas não
proporcional à gravidade do fato distinguindo o se deixam motivar pela norma, pode prescindir
dolo da culpa (porque a severidade dos controles (nesses casos) da imposição da pena sem que
tem que estar em função da nocividade social das sofra detrimento algum a prevenção geral, pois,
condutas que se quer evitar); (c) a não punibilidade os imputáveis sabem que, para eles, não rege
do resultado imprevisível ou inevitável,297ou seja, a impunidade e, em conseqüência, continuam
do caso fortuito. tendo os mesmos motivos para se comportarem
São muitas as críticas endereçadas à teoria da conforme o Direito.302
função motivadora da lei penal.296 Em primeiro O ponto de vista de M ir P u i g , entretanto, tem
lugar qualifica-se de fictício o ponto de partida da sido criticado por ser indefensável303 (basta ape­
teoria da motivação. Com efeito, afirma R o d r íg u e z lar precisamente ao fator "experiência" que foi
M o u r u l l o , a vontade do destinatário só se pode invocado pelo autor). E o de G im b e r n a t por ser
sentir vinculada se o sujeito conhece previamente artificioso. Em pura lógica, a teoria da motivação
o mandato legal. E mais: para que o imperativo teria que reconhecer que quem é inacessível à inci­
motive realmente o cidadão este deveria conhe­ dência psicológica da norma, ou seja, à motivação,
cer, ademais, o alcance exato do mandato, sua não poderia obrar antijuridicamente, conclusão a
interpretação doutrinária ejurisprudencial. O que que chegava congruentemente a velha teoria dos
não só é absurdo, senão que, ademais, é contrário imperativos ao fazer depender a antijuridicidade
à realidade. Porque o normal é que o cidadão não da imputabilidade.304
conheça as leis, seja pela complexidade de que Em terceiro lugar, critica-se também a preten­
elas se revestem em nossos dias, seja pela im­ são de fundamentar na teoria da motivação-essa
possibilidade de manejo que as técnicas jurídicas é uma das teses de G im b e r n a t - a localização do
reclamaria do cidadão médio.299 dolo no tipo de injusto nos delitos dolosos. Segun­
Em segundo lugar, e entrando já no campo do G im b e r n a t , o dolo é um elemento do tipo dos
da teoria do delito, sustenta-se que a teoria da delitos dolosos, já que é um elemento essencial
motivação conta com as mesmas dificuldades na descrição da conduta proibida e seu fim é o de
da teoria dos imperativos no momento de dis­ motivar mediante a ameaça com uma pena para
tinguir a antijuridicidade da culpabilidade ou de que referida conduta não seja cometida. De onde
fundamentar a antijuridicidade da conduta de resultaria que o dolo é requisito essencial do tipo
quem não se deixa motivar pela norma.300Tanto nos delitos dolosos porque nestes o que se trata
M ir P u ig como G im b e r n a t enfrentou esta objeção. de motivar é o não cometimento doloso do fato,
M ir P u ig afirmando que também os inimputáveis e como aquela conduta cujo não cometimento
se deixam motivar pela norma, pelo imperativo, se trata de motivar constitui conteúdo do tipo,
posto que a eles também está dirigido o mandato o dolo é parte integrante do tipo.305 Contra este
raciocínio argumenta B a j o F e r n á n d e z que tanto a
argumentação como as conclusões são desneces-
296. El sistema dei Derecho penal en Ia actualidad, cit.,
p. 277 e ss.
297. jTiene un futuro la dogmática Penal?. Problemas 301. Introducción a las bases dei Derecho penal, cit.. p.
actuales de Derecho penaly Procesal, Salamanca, 56. Coisa distinta-diz o autor-seria as “conse­
1971. p . 103.Cf., B a jo F e r n á n d e z , M. Algunas qüências jurídicas” que o ordenamento queira
observaciones, cit., p . 40 e 41. atar a quem infrinja dito imperativo.
298. Cf. O c t a v io d e T o l e d o y U b ie t o , E. Sobre el con- 302. El sistema dei Derecho penal, cit., p. 287.
cepto dei Derecho penal. Madrid: Publicaciones 303. Assim: B a jo F e r n á n d e z , M .Algunas obsewaciones,
de la Facultad de Derecho de la Universidad de cit., p. 32, acolhendo o ponto de vista de T o r io
Madrid, 1981. p. 102. L ó p e z , A. El deber objetivo de cuidado en los

299. Assim, R o d r íg u e z M o u r u l l o , Gonzalo. Derecho delitos culposos. Anuário de Derecho penal, p.


penal, cit., p . 81, nota 17. também: B a jo F e r n á n ­ 34, nota 17, 1974.
d e z , M . Algunas observaciones, cit., p. 47. 304. Assim: B a jo F e r n á n d e z , M. Algunas obsen>aciones,
300. Assim, B a jo F e r n á n d e z , M. Algunas observaciones, cit., p. 34 e 35.
c it., p . 3 1. 305. Sistema dei Derecho penal, cit., p. 277-279.
Teoria da norma penal 653

sárias, porque ninguém nega nem uma nem outras. expediente da motivação, sem apoio legal algum
A juízo de B a j o , G im b e r n a t não se refere ao "tipo de - porque não é um problema de "culpabilidade"
injusto" senão ao tipo de "garantia", isto é, aqueie -, senão por intermédio da desejada reforma do
que inclui todas as características que devem estar Direito positivo. Por outro lado, acrescenta Córdo­
determinadas na lei, em virtude do princípio da ba, o efeito motivador da norma parece expressar
legalidade. E ninguém duvida que o dolo (como a mais um "pressuposto" da culpabilidade do que
pena, por exemplo) pertence, também, ao "tipo a noção mesma de culpabilidade. O fato de se
de garantia", conceito muito mais amplo que o do condicionar a culpabilidade à efetiva motivação
"tipo de injusto". do sujeito, permite fundamentar a impunidade
Acrescenta B a j o F e r n A n d e z 306 que o tipo de de certas infrações cuja manutenção no Código é
injusto - a mera descrição da antijuridicidade - insatisfatória, mas pode conduzir, também, a uma
não pode"motivar"nada nem a ninguém, porque inadmissível extensão das causas de não culpabi­
o que motiva é a "pena". Logo, com a teoria da lidade (causas exculpantes) por não participação
motivação teria demonstrado G im b e r n a t a locali­ nos valores elementares da comunidade, sem que
zação do dolo ao "tipo de garantia" (não ao tipo a substituição da pena por medida de segurança
de injusto, que não contêm o elemento motiva­ nestes casos seja uma solução em princípio com­
dor: a pena). E isso não é colocado em dúvida por patível com as garantiasda pessoa. Finalmente, na
ninguém. opinião de Córdoba, a capacidade motivadora e
Em quarto lugar, afirma-se que, com freqüên­ inibitória das normas estaria em função não-nem
cia, é sobrevalorado o significado da "motivação" sobretudo - da interiorização e aceitação delas
quando se traslada esta idéia para o campo da te­ pela consciência do sujeito, senão do grau de
oria da pena. Critica-se, concretamente, a postura realização de tais normas na vida social, do grau
de G im b e r n a t , quando este autor justifica a pena de controle desenvolvido pela administração da
por sua "necessidade", depreendendo-a da sua justiça e da crença dos indivíduos sobre a eficácia
capacidade de motivar. Contra isso se sustenta alcançada com esse controle; nem as normas in­
que, sem êxito possível, tenta-se conciliar as exi­ teriorizadas motivam sempre nem só as normas
gências da proporcionalidade da pena com o seu efetivamente acatadas e compartilhadas pelo
caráter motivador, níveis irreconciliáveis porque indivíduo o motivam.309
se movem em planos distintos, já que a função de Para além de tudo quanto foi exposto, cabe
motivação pode ser conseguida fielmente sem ainda sublinhar que valem para a teoria da moti­
necessidade da proporcionalidade; e que a cha­ vação, mutatis mutandis, as objeções formula­
mada função motivadora não explicaria a distinta das por incontáveis autores contra a teoria dos
penalidade em situações onde as necessidades de imperativos.
motivação são idênticas, justificando - por outro 4. A posição de Vives A ntón: ação, norma e
lado-a maior penalidade de condutas muito me­ sistema
nos transcendentes só por necessidades práticas Em seus "Fundamentos do sistema penal" de­
de uma mais intensa motivação.307 senvolve V iv e s A n t ó n uma brilhante exposição crí­
Finalmente, censura-se também a aplicação tica do sistema penal e suas categorias, seja contra
concreta da teoria da motivação no campo da o positivismo analítico, seja contra as dogmáticas
"culpabilidade", mais concretamente na forma clássicas (causalistas, neokantianas e finalistas)
que o faz M u n o z C o n d e , ao condicioná-la à efetiva assim como contra as dogmáticas funcionalistas
motivação, à aceitação pelo sujeito dos valores da (do funcionalismo moderado ou teleológico de
comunidade. Segundo Córdoba, este posiciona­ R o x in ou do mais radical e estratégico ou sistêmico
mento persegue fundamentar a absolvição (por de J a k o b s ).
falta de culpabilidade) em certas situações justa­ O autor, partindo de uma reconstrução de suas
mente criticadas porque, em conformidade com duas categorias básicas - a ação e as normas - e
o Direito positivo, caberia depreender uma res­ inspirado, sobretudo, pelo giro pragmático que
ponsabilidade criminal.308Excesso ou abuso do ius impregna o debate filosófico e sociológico con­
puniendi, que não se pode solucionar com base no temporâneo (destacadamente, pela contribuição
de W it g e n s t e in ) , 310 traslada a discussão interna da

306. Algunas observaciones, cit., p. 37.


307. B a jo F e r n An d e z , M. Algunas observaciones. cit., 309. Idem, p. 31.
p. 4 0 e 4 1 . 310. reconhece a influência de W it g e n s -
V iv e s A n t ó n
308. C órdoba R o d a , J. Culpabilidady pena. Bosch, —autor que sublinha a idéia fundamental de
te in

1977, p. 29 é ss. “significado” mas, também, a de outros autores


654 D ir e it o p en al - In t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

sistemática penal ao novo cenário científico da por conseguinte, fora do discurso jurídico (po-
Filosofia geral e da Sociologia. sicionando-a na Ética ou na Política) a discussão
O ponto de partida do autor reside nos con­ racional acerca dos fins e valores e que, portanto,
ceitos de norma, dogmática e sistema. As normas conceba a função valorativa das normas jurídicas
jurídicas, para V iv e s A n t ó n , não são"meras diretivas como secundária, derivada da função diretiva,
de conduta (mandatos), senão que, em virtude da dependente de decisões sobre fins prévios ao
sua mesma gramática, a dimensão diretiva que Direito e alheios a ele.317
lhes é inerente vai acompanhada de uma preten­ Para o autor, o problema da natureza da nor­
são de validade, que cabe julgar no marco de um ma penal obriga a responder a outras questões
processo de argumentação racional. Mas nem essa
que se relacionam com o papel que se outorga
pretensão de validade - acrescenta - é uma pre­
à razão e ao poder no Direito: ou seja, saber se
tensão de verdade, nem pode, em última instância,
os imperativos são concebidos como "mandatos
reduzir-se a uma pretensão de verdade.311
respaldados por sanções" ou como "juízos de
De acordo com V iv e s A n t ó n , a dogmática "não
dever"; e, no segundo caso, se se entendem como
é nenhum tipo de ciência, mas apenas um modo
"juízos condicionais ou hipotéticos" ou como
de argumentar em torno de uns tópicos que não
"incondicionais ou categóricos".318
são senão determinações do que entendemos
por ação e o que concebemos por norma, e do A investigação de V iv e s A n t ó n , como ele mes­

processo em virtude do qual podemos julgar as mo adverte, toma como primeiro fio condutor
ações desde as normas jurídicas e desde os valores •■o pensamento de H a r t , em cuja obra culmina o
veiculados por elas".312 imperativismo da Escola analítica de jurispru­
O sistema, por último, "não representa-nem dência; e o de L u h m a n n , que representa a análise
pode, segundo o exposto, representar- nenhuma funcionalista.319
classe de estrutura objetiva: não é uma imagem es­ O autor começa seu raciocínio expondo criti­
tilizada do delito, senão só um conjunto ordenado camente os postulados do positivismo analítico,
de tópicos, que permitem agrupar racionalmente para rebater tanto o modelo simples ou ingê­
os problemas que podem surgir no momento de nuo320comoateoriakelseniana,321seguindo nessas
se aplicar a lei ao caso concreto".313 objeções a doutrina de H a r t . Analisa, a seguir, a
Para V iv e s A n t ó n , uma norma é "uma regra de doutrina dos "imperativos independentes e o
conduta, que pode ser expressada lingüisticamen- "reducionismo" de H a r t ; 322 analisa criticamente
te ou ser inferida do que habitualmente se faz".314 também a dogmática penal clássica: o impera­
A"lei" penal, pelo contrário, éo"instrumento" por tivismo penal, o imperativismo continental e a
meio do qual as "normas" penais se expressam,
ou seja, é sua "fonte".315 E o quê se deve entender
por "regra de conduta"? Quais regras de conduta 317. Idem, p. 341.
são as normas penais?.316Não basta afirmar que se 318. Idem, ibidem.
trata de "imperativos" como costuma sustentar 319. Idem, p. 342.
um setor da doutrina. O imperativismo significa 320. Idem, p. 350.
mais que isso: significa não só entender as normas
321. Idem, p. 357. Segundo K e l s e n , o ato de vonta­
jurídicas como "meios de impulsionar a condu­
de não basta para produzir normas. Para que o
ta em um ou outro sentido (se atenha ou não à
sentido de um ato de vontade possa ter valor
idéia de mandato como fonte desse impulso)",
normativo, precisa estar, por sua vez, autorizado
senão, sobretudo, fazê-lo de forma "que deixe,
por uma norma, processo ascendente que, de
forma escalonada, remitaà Norma Fundamental
que não seguem tal orientação entre os que cita hipotética. Ajulzo de V iv e s A n t ó n (Fundamentos
a H a b e r m a s , A p e l , Q u in e e D a v id so n . Fundamentos dei sistemapenal, cit., p. 357 e ss.). O sistema de
dcl sistema penal, cit., p. 480. K e l s e n sobrevêm incongruente, traz o recurso
à “Norma fundamental"’, pois a “Norma fun­
311. Idem, p. 482.
damental”, da que toda normatividade deriva,
312. Idem, ibidem.
não se apóia sobre o ato de nenhuma vontade
313. Idem, p. 483. empírica, enquanto que as normas derivadas,
314. Idem, p. 3 3 9 .0 autor, toma a definição de norma continuam sendo o sentido de atos de vontade
de L e v i - S t r a u s s , C. Las estmcturas elementales dcl empíricos de sujeitos empíricos.
parentesco. Buenos Aires, 1969. p. 68 e ss. 322. Fundamentos dei sistema penal, cit., p. 359 (im­
315. Fundamentos dei sistemapenal, cit., p. 339 e ss. perativos independentes) e 377 e ss. ( H a r t e o
316. Idem, p. 340. reducionismo).
Teoria da norma penal 655

jurisprudência analítica;323enfoca, por último, os -na concepção roxiniana-resulta ser o lugar dessa
postulados neokantianos,324 os finalistas325 e os confusão: tudo, em seu interior, se situa no mesmo
funcionalistas,326 desde uma perspectiva clara­ plano.Àincongruência gramatical sobrevêm assim
mente crítica. uma "insuficiência epistemológica".332
Particular interesse emerge das observações Também é criticável o funcionalismo estraté­
de V iv e s A n t ó n ao pensamento funcionalista, por­ gico (ou sistêmico) de J a k o b s . Em primeiro lugar,
que permitem melhor delimitar a sua própria em razão do parentesco do conceito de prevenção
tese. O autor reprova o funcionalismo moderado geral positiva e a tese welzeliana tão reprovável,
roxiniano (que se chama teleológico), sua incon­ desde uma ótica liberal, da reafirmação dos valo­
gruência gramatical-diz: é moderado porque não res ético-sociais, da convivência como missão do
chega a ser funcionalismo327- e sua insuficiência Direito penal.333E uma segunda e chamativa simili-
epistemológica. Censura também o funcionalismo tude reside entre a concepção de J a k o b s dos fins da
estratégico ou radical de J a k o b s , seu reducionismo pena, que deve ser interpretada desde a afirmação
epistemológico e raciocínio circular que remete da validade da norma - tanto no plano do injus­
inevitavelmente ao ponto de partida.328 to como no da culpabilidade - e o pensamento
A proposta de sistema de R o x in é examinada retributivo de H e g e l , quem também assume as
"desde a perspectiva gramatical", única que lhe finalidades empíricas da pena.334Mas, sobretudo, é
interessa.329E chega à conclusão de que em R o x in criticável o reducionismo epistemológico da obra
os fins da pena determinam o conceito de bem de J a k o b s ; obra que-afirma V iv e s A n t ó n -desenvol­
jurídico (que para isso se acha funcionalmente ve não uma idéia, senão duas: a idéia de sistema de
concebido, acrescenta), a antinormatividade e a L u h m a n n e a idéia de injusto pessoal de W e l z e l . Por
culpabilidade. Mas os fins da pena em R o x i n - ad­ certo, a seu juízo, esta última, ao operar no marco
verte V iv e s A n t ó n -vêm dados pelo sistema social, do pensamento sistêmico, dá aos imperativos
que gravita não só sobre a pena, senão também jurídicos o mesmo tipo de fundamentação que
sobre os estágios do delito anteriores a ela.330 lhes outorgava o sistema de H a r t : sua localização
R o x in - argumenta V iv e s A n t ó n 331 - delimita num sistema de regras que é, justamente, o que
o conceito de "bem jurídico" desde parâmetros a sociedade reconhece como Direito. Mas isso
"constitucionais" entendidos valorativamente, supõe que os imperativos jurídicos sejam mera­
axiologicamente. E vincula sua idéia de "culpabi­ mente relativos. O Direito penal não se encontra
lidade", como limite da responsabilidade, à Cons­ imerso em um mundo de valores ótimos, mas em
tituição assim como à idéia de "dignidade" do ho­ um determinado sistema social, e a Ciência do
mem. Mas com isso incorre em uma incongruência Direito penal deve, portanto, permanecer alheia
gramatical, porque se o fundamento da norma ju­ às variações políticas.335A influência luhmaniana
rídica deve ser unitário, não cabe entender as nor­ explicaria a insuficiência epistemológica do pen­
mas "constitucionais"axiologicamente (referência samento de J a k o b s , déficit que se detecta como
à dignidade humana) e as penais, empiricamente mal endêmico do funcionalismo e que funda suas
(a teor dos fins da pena). A mencionada incon­ raízes no problema do conhecimento;336é a típica
gruência seria especialmente óbvia na categoria
circularidade do raciocínio.
da tipicidade roxiniana. E não pela sobrecarga de
Consoante o pensamento de V iv e s A n t ó n
funções heterogêneas que R o x in confere a este
seria necessário trasladar o debate interno da
estágio do delito (função epistemológica, axio-
dogmática penal ao novo cenário da Ciência, da
lógica, diretiva e contra-motivadora), senão pela
falta de coordenação gramatical entre elas e a falta
de critérios que evitem a confusão de umas com 332. Idem, p. 449 e 450.
outras. Pelo contrário, conclui V iv e s A n t ó n , o tipo
333. Idem, p. 445.
334. Fundamentos dei sistema penal, cit., p. 446 e 447.
323. Idem, p. 382 e ss. Com a particularidade, adverte V iv e s A n t ó n , de
324. Idem, p. 412 e ss. que em J a k o b s a idéia de retribuição se rebaixa
conceitualmente à simples “prevenção geral po­
325. Idem, p. 428 e ss.
sitiva" , quejá não expressa nenhuma reprovação
326. Idem, p. 433 e ss.
incondicional, a culpabilidade não pode justifi­
327. Idem, p. 449. car a pena além das necessidades de prevenção
328. Idem, p. 450-452. (Fundamentos dei sistema penal, cit., p. 447).
329. Idem, p. 442. 335. Fundamentos dei sistema penal, cit., p. 450 e
330. Idem, p. 441 e 442. 451.
331. Idem, p. 448 e ss. 336. Idem, p. 452.
656 D ir e it o p enal - I n t r o d u ç ã o e p rin cíp io s fu n d a m e n ta is

Filosofia e da Sociologia contemporâneas, supe­ surpresa, tem que ser emsentido afirmativo,341
rando preconceitos e falsos raciocínios, tais como mesmo porque, como já dizia v o n L i s z t , desde
a imagem inadequada da mente como um objeto
o século XIX,342 “bem jurídico e norma são os
do mundo ou a imagem inadequada do infrator
da norma.337
dois conceitos fundamentais do Direito penal”
Da incorreta imagem da mente, surgiria - diz
(sobre o vínculo entre norma, bem jurídico
o autor - a ação concebida como fato especial, e, e princípio da ofensívidade cf. supra Décima
por sua vez, as normas, como teorias singulares primeira e Décima segunda seções).
acerca do mundo. Uma vez restituída a ação a
Idêntico progresso que a civilização expe­
seu caráter próprio de significado ligado a uma
rimentou particularmente nas últimas décadas
conduta humana em virtude das práticas em que
no âmbito das comunicações, da tecnologia, da
se concreta nossa forma de vida, restava ainda
informática etc. não se verificou, pari passu, na
por abordar um segundo problema: a imagem do
obtenção de uma teoria garantista da legislação
infrator. Desde a situação do infrator, as normas ti­
penal. Pelo contrário, a impressão que se tem
nham-se entendido como mandato, cuja validade
é que, quanto mais a tecnologia e a sociedade
jurídica não iria requerer apelar à racionalidade
avançam (na perspectiva da denominada "socie­
prática. E a tradução do mandato puro e simples
a imperativo sistêmico reveste a Dogmática de dade de riscos" - U l r ic h B e c k -), mais retrocesso
uma nova racionalidade teórica (a funcionalista). se constata na legislação penal,343 que hoje se
Novamente a racionalidade prática veste uma caracteriza (como vimos nas seções pertinentes
fantasia que não lhe convém. A Dogmática penal, sobre a globalização e hipertrofia do Direito penal
conclui V iv e s A n t ó n , vem se equivocando em suas - Oitava e Nona seções) pelo abuso do castigo
pretensões.338 penal (vivemos a era do Risikostrafrecht ).344
Como conclusão: as normas jurídicas não são No atual clima de violência difusa e endêmica
meras diretivas de conduta (mandatos):"em virtu­ e de quase total desrespeito aos direitos humanos
de de sua própria gramática339a dimensão diretiva fundamentais, particularmente nos Estados latino-
que lhes é inerente vem sempre acompanhada de americanos, reenfatizar o conteúdo bem como
uma pretensão de validade, que cabe julgar no a validade e a imprescindibilidade da teoria da
marco de um processo de argumentação racional. norma assim como dos princípios básicos delimi-
Referidas pretensões de validade, p a r a V iv E S A n t ó n , tadoresdo/us puniendi, por conseguinte-e esse
se concretizariam em: pretensão de relevância, é o caso dos princípios da exclusiva proteção de
ilicitude, reprovação e necessidade de pena.340 bens jurídicos, da ofensividade etc.-, constitui não
só um hercúleo esforço de retomar (como ponto
de partida ao menos) a filosofia iluminista, senão
Capítulo 7 também uma das tarefas essenciais do penalista
N o r m a p e n a l , b e m ju r íd ic o , (humanistamente engajado) neste princípio de
novo século.345
PRIN C ÍPIO DA OFENSIVIDADE
E TEORIA DO DELITO
341. Sobre a importância de se recuperar a teoria do
bemjurídico para o centro das discussões e deba­
7 .1 N orm a p e n a l , b e m ju r íd ic o e p r in c íp io
tes penais, P r a d o , Luiz Regis. Bemjurídico-pencil
DA OFEN SIVIDA D E
e Constituição. São Paulo: RT, 1997. p. 23.
342. Tratado de Derecho penal. 3. ed. Trad.Jiménez de
Seria válido, na atualidade, estar retoman­
Asúa [da 20. ed. alemã]. t. II, p. 7.
do e rediscutindo a teoria das normas assim
343. O legislador, particularmente o brasileiro, nunca
como a teoria do bem jurídico, que já con­ se apegou a critérios legislativos razoáveis norte-
tam com mais de um século de existência? adores de sua tarefa no âmbito penal ( T a v a r e s ,Ju-
A resposta, ainda que possa causar alguma arez. Critérios de seleção de crimes e cominação
de penas. RIBCCRIM n. 0, p. 75, dez.-1992).
344. T o r o n , Alberto Zacharias. Crimes hediondos: o
337. Idem, p. 450 e 451. mito da repressão penal. São Paulo: R T , 1996. p.
338. Idem, p. 481. 69 e ss.
339. Idem, p. 482 e ss. 345. T a v a r e s , Juarez.
Critérios de seleção de crimes e
340. Idem, p. 483-487. cominação de penas, cit., p. 76 e ss.

Das könnte Ihnen auch gefallen