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literatura europeia - ou, hoje em dia, também da literatura norte americana – e a
aclimatação dessas mesmas formas à matéria social brasileira. Textos já canônicos da
crítica literária brasileira, como “Literatura e Cultura de 1900 a 1945” de Antonio
Candido ou “Nacional Por Subtração”, de Roberto Schwarz, demonstram que essa
relação entre influência recebida e produção nacional se deu sempre como um
processo, através do qual o sujeito brasileiro foi construindo uma imagem ora mais
real ora de maior idealização, ora mais positiva ou mais negativa, de si próprio.
Momentos como o Romantismo ou o Modernismo expressam períodos dessa relação,
e marcam diferentes posicionamentos dos escritores brasileiros em relação à matéria
nacional que procuravam dar forma.
Nos dois excertos utilizados como ponto de partida para esse trabalho, Paulo
Arantes e Roberto Schwarz discutem o surgimento do narrador machadiano. 1 No
primeiro, ao citar a problematização do ponto de vista narrativo como consequência
dos acontecimentos de 1848, na França, citando Lukács, Paulo Arantes fala em
“honestidade narrativa posta em questão pelo novo estágio europeu da luta de
classes”. O surgimento da literatura naturalista, e do método de descrição objetiva que
Lukács opõe à atitude narrativa realista, revela uma “ambivalência objetiva” que, do
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Excerto 1: trecho de Sentimento da Dialética, Paulo Arantes (1992). Excerto 2: trecho de “Sobre a
Formação da Literatura Brasileira, de Roberto Schwarz, em Sequências Brasileiras (1999).
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lado brasileiro, expressa “uma sociedade bidimensional como a nossa”, ou seja, uma
experiência social de caráter ambivalente e contraditório. Roberto Schwarz, no
segundo excerto, traça uma linhagem de influências na literatura que permitiu o
desvelamento da problemática da “honestidade narrativa” como um processo de
consideração, por parte dos autores, da tradição anterior recebida, ao mesmo tempo
em que uma elaboração da matéria social através de uma nova proposição de
fórmulas que rompiam com essa mesma tradição. No caso francês, traça uma
linhagem mais equilibrada entre Stendhal, Balzac e, como ponto de culminância,
Flaubert. No caso brasileiro, O narrador de Machado surge dos erros e acertos do
romance de Alencar, mas oferece um salto maior. Segundo um processo de
racionalização da tradição e de procedimentos outros, Machado pôde concretizar em
forma literária a ambivalência percebida em nossa sociedade. O salto aqui
representado é a diferença entre um narrador profundamente ligado com as
ideologias da sociedade que ao mesmo tempo deseja criticar – como é o caso do
narrador de Senhora, de Alencar, e a questão da mercantilização das relações humanas
– e a criação de uma voz narrativa que emula o ponto de vista ideológico da elite para,
através do uso da ironia e do humor como procedimentos formais, desvendar essas
ideologias e suas contradições em ação no processo social.
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narrador na sua intenção de dominar e manipular completamente os fatos e a
consideração de todos os outros personagens a seu favor e com o objetivo de causar
uma boa figura de si mesmo; em uma escala maior, serve ao autor possibilitando uma
exposição da voz narrativa no processo de manipulação dos fatos e dos outros ao seu
redor, refletindo, assim, um processo social onde uma classe centraliza uma teia de
relações de dependência, submissão e consideração ideológica.
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enfrentado e ultrapassado por nossa literatura, refletindo a questão da ocupação do
lugar do marginal em nossa sociedade.
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Lukács, respectivamente páginas 53 e 80 de “Narrar ou Descrever?” (Ver bibliografia).
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Se fizermos uma breve periodização da representação da pobreza em nossa
literatura, veremos que o assunto foi tratado de maneiras diversas, seguindo
diferentes ideologias e preocupações por parte dos escritores. O primeiro momento se
dá com o naturalismo, em fins do século XIX. A solução dos autores foi a adoção de um
ponto de vista científico, e às vezes, com ares de reportagem, que se colocava como
observador de um universo tomado como um objeto a estudar, uma espécie de viveiro
social – com todo grau de preconceito que essa expressão pode acarretar. Na
literatura de 1930, com o surgimento do romance engajado, dois problemas surgiam:
de um lado, no romance regionalista, a representação da desigualdade regional do
país através da miséria dos trabalhadores rurais assolados pela fome, a seca e a falta
de condições básicas de sobrevivência; de outro, no romance urbano, a necessidade da
revolução política, da transformação das condições de vida e trabalho dos operários.
Na década de 1930, é essencial destacar, também, a problematização da figura do
escritor, do intelectual como herdeiro de uma elite tradicional fadada ao
desaparecimento, em seu confronto com a realidade sócio-histórica desigual, cuja
origem sua classe tem responsabilidade. Na década de 1970, em plena ditadura
militar, a representação dos meios de vida paralelos à oficialidade do Estado repressor
começa a surgir como tema, através dos marginalizados urbanos, mendigos e ladrões,
e mesmo com o surgimento de certa literatura policial, caso de algumas obras de
Rubem Fonseca. O que se percebe é a representação do crime, da contravenção como
um aspecto interno específico à configuração social brasileira. É o momento, também,
do realismo cru de Plínio Marcos no teatro, em contraposição ao modernismo
conservador de Nelson Rodrigues - à época, já transformado em pastiche no cinema de
chanchada.
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dentro da problemática da constituição da esfera social brasileira. Ao mesmo tempo
em que a elite condena e persegue os meios de vida da periferia, com um grande
desenvolvimento de uma economia ilegal e criminosa, ela estimula esse tipo de
organização, ao consumir a droga comercializada nas favelas, ou mesmo estabelecer
outros tipos de relação de negócios, como vemos no romance de Paulo Lins, por
exemplo, do detetive Belzebu, que fornece armas para serem revendidas ilegalmente
aos assaltantes que ele mesmo persegue em Cidade de Deus, ilustrando assim um
círculo de relação próxima e direta entre lei e criminalidade, ordem e contravenção. Se
estabelecermos essa relação sob os termos de “ordem” e “desordem”, veremos
reposta a relação que Antonio Candido lê como estruturante das Memórias de Um
Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, em seu clássico ensaio “Dialética
da Malandragem”. Ou seja, o assunto é a evolução de uma problemática nacional já
antiga, que toma uma nova forma no complexo das relações sociais e, por
consequência, precisa encontrar um novo meio de expressão literária.
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narrativo forjado da familiaridade direta com esse espaço, o que possibilita não só um
tratamento menos convencional, como também mais específico do assunto, da
linguagem e da estrutura a ser erguida com a manipulação da forma romanesca.
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Seria interessante, aliás, estudar com mais atenção a representação simbólica do espaço periférico dos
grandes centros urbanos na literatura contemporânea através da insistência nos elementos
emprestados do discurso religioso. Basta lembrar, por exemplo, do romance do paulistano Ferréz,
Capão Pecado (2000).
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comparação entre os romances, cada autor confere ao universo que representa. Na
trajetória de Reizinho, protagonista de Inferno, a demonstração da ilusão infantil,
através da fantasia e do sonho, é constituinte do romance. Os sonhos que Reizinho
tem com o pai desconhecido quebram a todo instante a narrativa. Por extensão à
fantasia infantil, a influência da televisão e do mundo das celebridades extrapola o
caráter negativo do sonhar acordado para todas as famílias, em todas as casas do
Morro do Berimbau. Em Cidade de Deus, a relação entre fantasia, ou ilusão, e
realidade é estabelecida como um confronto que faz o autor quebrar sua narrativa
logo de início, para poder continuar a realizá-la.
A primeira cena do livro abre com duas crianças conversando à toa, na beira do
rio, sobre a possibilidade de um deles ser fotógrafo. A conversa é interrompida quando
o olhar-íris de Busca-Pé focaliza um cadáver que a correnteza carrega em suas águas
vermelhas: “Era a guerra que navegava em sua primeira premissa” (pág. 14). A
recapitulação nostálgica do surgimento da comunidade é povoada, junto com os
primeiros habitantes, pela descrição de diversas brincadeiras executadas pelas
primeiras crianças do lugar, e é nesse instante que o autor interrompe sua narrativa
para sentenciar “...Mas o assunto aqui é o crime, eu vim aqui por isso...” (pág. 20). O
parágrafo que se segue, é uma fala direcionada à Poesia – à maneira da evocação com
a qual os poetas épicos gregos abriam suas epopeias. Nessa evocação o narrador pede
licença à sua “tia” Poesia, dizendo que arrisca a prosa “mesmo com balas atravessando
os fonemas”. A matéria de sua literatura parece ser pouco afeita para uma expressão
puramente poética. A palavra, no ambiente de Cidade de Deus, não tem a aura
encantada das epopeias dos tempos antigos ou da expressão das intimidades
românticas burguesas, mas “massacrada no estômago com arroz e feijão a quase-
palavra é defecada ao invés de falada.” A sentença é definitiva: ”Falha a fala. Fala a
bala.” (pág. 21). Porem, mesmo após quebrar a linha narrativa e dialogar com a Poesia
para expressar um caráter outro de consciência, o narrador assume às vezes uma fala
de caráter sonoro, ritmado e rimado – próprios à expressão poética – assim como não
abandona algumas descrições de brincadeiras infantis, como o anúncio dos tempos de
pipa, que persiste por todo o romance. O pedido de licença à Poesia foi o anúncio do
emprego de uma linguagem de caráter mais sonoro e criativo, na concatenação de
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som e sentido e efeito musical e rápido, uma linguagem própria da utilizada pelos
rappers e MC´s da cultura do funk e do hip hop, expressões periféricas e urbanas por
excelência.
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Ver “A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio”, em Pós-Modernismo – A Lógica Cultural do Capitalismo
Tardio, de Fredric Jameson, Editora Ática, 1996, tradução de Maria Elisa Cevasco e Iná Camargo Costa.
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Roberto Schwarz, em texto escrito no lançamento de Cidade de Deus5, chama a
atenção para a importância decorrente de o romance representar a “ativação e um
ponto de vista de classe diferente”. Ao realizar a passagem, dos dados recolhidos para
um projeto de pesquisa antropológica na qual Paulo Lins participou como assistente,
para um romance, ou seja, da pesquisa documental sociológica para, não só um relato
ficcionalizado, mas literatura de fato, o autor realizou a passagem de objeto de estudo
para ponto de vista constitutivo de uma narrativa. Roberto Schwarz, ao descrever essa
passagem, diz que essas aproximações com o material narrado, a vizinhança com o
estudo, com a pesquisa social e de linguagem traz atitudes “que não cabem na noção
acomodada de imaginação criadora que a maioria dos nossos escritores cultiva” (pág.
168). Essa noção de criatividade autoral é o que se percebe na estilização “de fora”
realizada por Patrícia Melo na linguagem de sua narrativa, como solução pessoal para
um problema de origem social e exterior, e ajuda a demarcar a distância que a autora
e, por conseguinte, sua obra, tem em relação à matéria que representa.
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“Cidade de Deus”, em Sequências Brasileiras (Ver bibliografia). Originalmente publicado no Caderno
Mais! do jornal Folha de São Paulo, em 1997.
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Com o uso do verbo “infestar” para a ação das coisas enumeradas, como apresentação de um cenário,
é impossível não lembrar o famoso parágrafo que encerra o primeiro capítulo de O Cortiço, de Aluísio
Azevedo: “E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a
minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar
espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas de esterco.” (pág. 30 da edição da
Nova Fronteira para o Saraiva de Bolso, Rio de Janeiro, 2011)
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habitantes da comunidade, segue-se uma longa enumeração das coisas trazidas por
eles.7 Na lista, objetos - “lixo”, “lata”, “jesus cristos em cordões arrebentados”,
“lamparina de azeite para iluminar o santo”... – se misturam a crenças – “exus e
pombagiras em guias intocáveis”, “orixás enroscados em pescoços”, “missa de sétimo
dia” – , aspectos físicos, do próprio corpo dos habitantes – “as pernas para esperar
ônibus, as mãos para o trabalho pesado”, “lombo para polícia bater” - , atitudes
comportamentais e sentimentais – “soco antigo para ser descontado”, “traição”,
”coragem para virar a esquina” – e hábitos – “forró quente para ser dançado”. Ao fim
da enumeração: “Transportaram também o amor para dignificar a morte e fazer calar
as horas mudas”. A relação de aspectos concretos – objetos, membros do corpo – com
aspectos abstratos – crenças, sentimentos, atitudes, reações – fecha um círculo de
significação do espaço representado e dos habitantes deste espaço, numa relação em
duas vias, de coisificação da vida, através da esfera dos objetos que se acumula, e
expressão profunda de uma cultura própria que se forma específica ao lugar. Na
enumeração que abre Inferno, a esfera mais determinante é o aspecto coisificado do
espaço de convivência transformado em mero lixão a céu aberto da sociedade
capitalista, e o único aspecto cultural é o ridículo da reprodução de nomes famosos
nos próprios filhos.
Há uma diferença de base que deve ser apontada entre as duas obras. Inferno,
por mais que se preste à representação do ambiente onde se passa a história, e de vez
em quando assuma brevemente pontos de vista de outros personagens, é a história de
Reizinho. Em uma espécie de romance de formação no narcotráfico, a narrativa
acompanha o personagem desde sua infância, seu encanto pelos bandidos, a prática
de ver do alto, para observar a chegada de possíveis policiais, como primeira tarefa na
hierarquia do tráfico, o desenvolvimento de uma raciocínio calculista na prática de
lidar com dinheiro e mercadorias até o momento em que assume o posto de chefe do
tráfico. Como um típico romance burguês, é a trajetória de formação de um indivíduo
e seu confronto com a sociedade que o rodeia na sua busca por felicidade e realização.
Cidade de Deus assume um objetivo mais amplo, de caráter coletivo. Originado no
7
Págs. 16 e 17.
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trabalho de assistência às pesquisas sobre a história do desenvolvimento da
criminalidade periférica no Rio de Janeiro, da antropóloga Alba Zaluar, Paulo Lins tenta
constituir uma discussão sobre a origem e o desenvolvimento não só da prática da
criminalidade, mas de toda uma cultura periférica ao redor da contravenção, paralela e
ao mesmo tempo entranhada na expressão cultural da sociedade fluminense do século
XX – além do tráfico, estão lá o carnaval, o samba, as imigrações de nordestinos para o
trabalho na construção civil, a convivência entre a religiosidade afro-brasileira e as
religiões neopentecostais, etc.
Para citar ainda Lukács, podemos ver o esforço do romance como uma
narrativa que funciona como uma visada histórica do cenário para o qual volta o seu
olhar. Em oposição aos procedimentos descritivos de uma tradição literária naturalista,
mais afeita à observação – conforme Lukács discute no já citado “Narrar ou
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Descrever?” – o procedimento de recapitulação histórica de Cidade de Deus opera
também, em uma escala de distanciamento temporal menor, mais próxima do
presente, uma seleção objetiva dos fatos e personagens da comunidade para montar
um processo de formação do lugar. Para falar nos termos de Lukács, mostrar o
passado como “pré-história do presente”. Ao focalizar um passado de quase trinta
anos atrás, ou seja, historicamente recente, Paulo Lins apenas segue a linha possível
para desvendar uma problemática social da modernidade mais pulsante no país, ainda
que de raízes antigas em nossa sociedade.
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conta, de uma maneira mais direta, ampla e honesta – para recuperar o termo de
Paulo Arantes usado acima – das ambivalências e complexidades da sociedade
brasileira como um todo, a partir de diversos possíveis pontos de localização e
referência da voz que elabora a expressão literária de uma experiência social direta e
familiar. Uma expressão, enfim, sem mediadores na relação entre experiência social e
formalização literária.
BIBLIOGRAFIA:
LINS, Paulo, Cidade de Deus, 2002, 2ª edição revista pelo autor, Companhia das Letras,
São Paulo
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