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Os instrumentos de controle urbano definidos por nossos Planos Diretores têm sido duramente
postos à prova – alguns diriam, com imensas dificuldades – face a desafios como a explosão de
crescimento urbano desde a segunda metade do século XX, ainda em progressão em algumas
regiões do país1; padrões espaciais complexos que mesclam contínua densificação e expansão nas
bordas (dispersão espacial), com grande quantidade de vazios intraurbanos em tecidos apenas
parcialmente planejados e moldados substancialmente pelas dinâmicas do mercado formal e dos
mercados informais e seus tecidos autoproduzidos;2 a saturação de nossas redes de ruas,
responsáveis por integrar o espaço edificado e seus diferentes tecidos, marcadas entretanto por
baixa acessibilidade, segregação e ruptura entre “retalhos”; as crescentes distâncias internas
geradas por padrões edilícios resultantes da aplicação de índices urbanísticos abstratos
frequentemente moldados por requerimentos do mercado imobiliário, e reflexos de incentivos a
determinadas tipologias constantes nos planos diretores e leis de uso e ocupação do solo, os quais
têm resultado em relativa – mas crescente – erosão e rarefação de quarteirões e áreas; os atritos
sobre a mobilidade e interatividade dos atores urbanos em suas atividades cotidianas, sua
produtividade e suas possibilidades de apropriação do espaço; as infraestruturas urbanas, como
redes de esgotamento e água apenas parcialmente instaladas mesmo em nossas metrópoles,
mostrando ainda sinais claros de exaustão. Essas são algumas entre tantas outras urgências em
nossas cidades – e problemas para seu planejamento.
Face aos desafios desse complexo padrão de urbanização, como se comportam instrumentos
normativos tradicionais como zoneamentos e outras regras de ocupação e uso do solo ?
Instrumentos tradicionais têm buscado restringir possibilidades de ocupação do espaço e definir a
direção adequada para processos urbanos futuros incluindo, em princípio, uma ideia de “forma
desejável” para a cidade. Consistem também de guias para prescrição de usos e condicionantes,
geralmente de natureza estritamente quantitativa, para as formas arquitetônicas. Entretanto, ao
reconhecermos o problemático quadro da urbanização brasileira, a questão que se apresenta é:
como modelos normativos podem guiar as dinâmicas cada vez mais complexas e potencialmente
contraditórias da cidade brasileira?
3
Veja Leung (2002).
2
O zoneamento tradicional, entretanto, sofre críticas sistemáticas desde a década de 1960. Essas
críticas têm ganhado mais suporte em novas abordagens ao urbano como fenômeno complexo, a
partir do trabalho de Batty e outros.4 No contexto brasileiro, podemos apontar ainda as
dificuldades na capacidade dos zoneamentos em lidar espacialmente com a complexidade da
relação entre práticas e interações urbanas e sua demanda por localização e suporte arquitetônico.
O problema da localização na verdade se refere intimamente ao da acessibilidade da rede de ruas.
Acessibilidade, por sua vez não é uma propriedade homogênea: certas ruas tendem a oferecer mais
acessibilidade dentro da estrutura urbana que outras. A economia urbana e estudos de interação
espacial reconheceram ainda nos anos 1960 esse fator como um problema de redução de distância
(atividades competem por localizações que minimizem distâncias de seus agentes de interesse), ao
passo que estudos configuracionais urbanos reconheceram (nos anos 1980 e 1990) o papel da
própria estrutura topológica interna da cidade: a posição relativa entre lugares, a conectividade e
comprimento de vias e seu papel nas relações internas da rede como fatores de definição das
distâncias internas e, portanto, da competição por localização.5 A correlação consistente entre
padrões de acessibilidade e de distribuição de usos do solo é hoje largamente reconhecida pela
literatura:6 ruas acessíveis oferecem benefício locacional para atividades como comércio e serviços
(figura 1).
As frequentes tentativas de Planos Diretores (PDs) de ora reprimir, ora intensificar localizações
(digamos, através de índices e outros estímulos ao solo criado) frequentemente falham exatamente
por chocarem-se com as tendências de relação entre acessibilidade e usos do solo na estruturação
das cidades. Na pior (e talvez mais comum) situação, o zoneamento tradicional pode sufocar os
estímulos mútuos entre a distribuição heterogênea de acessibilidade na rede de ruas e a
distribuição de atividades e densidades nessa rede. Por exemplo, de um lado, um zoneamento
conservador pode incluir ruas com potencial de comércio local em certa área ou polígono destinado
a usos exclusivamente residenciais, sufocando a possibilidade de serviços necessários em função de
demanda pela população da área – uma expressão urbana da microeconomia ativa em toda a
4
Batty e Longley (1994).
5
Veja, em economia espacial, Anas (1992); em estudos configuracionais urbanos, Hillier e Hanson (1984) e Hillier et al (1993).
6
Veja os pioneiros da economia urbana, Isaard (1956) e Hansen (1959); veja Krafta (1996); Hillier (1996) e Desyllas (2000) nos
estudos configuracionais urbanos.
3
cidade. De outro lado, intenções de reforçar localizações em áreas menos servidas de acessibilidade
tenderão a trazer mais dificuldade de uso aos atores, assim como a provável necessidade de seus
deslocamentos em maiores distâncias internas, aumentando ainda os custos para suas interações
socioeconômicas.
As últimas décadas nos ofereceram instrumentos que tornam possíveis tais análises e certa redução
do grau de incerteza. Mas, para tanto, dependem da aproximação das esferas técnica e política do
planejamento à esfera teórica e investigativa – outra imensa fissura, sobretudo no Brasil.
Essas observações apontam a complexidade do problema da estrutura urbana e sua relação com
padrões de localização emergentes da interação entre atores urbanos e atividades, impossíveis de
serem restritos aos limites das áreas poligonais preconizadas pelo zoneamento tradicional.
O
problema
dos
padrões
de
localização
mais
complexos
que
as
“zonas
funcionais”
A economia urbana nos ensinou que as relações de interdependência entre atores e atividades
acontecem em função da distância/proximidade, – distância/proximidade inerente à própria
malha urbana enquanto estrutura de localização de trabalhadores, consumidores e firmas, como
7
Batty (2005).
8
Veja Bertuglia et al (1994).
9
Netto e Krafta (2009).
4
apontam estudos configuracionais. Na escala local, a dificuldade da definição de zonas funcionais
homogêneas fica evidente: as redes na microeconomia de atendimento a populações residenciais
demandam usos que podem conflitar com a definição de áreas exclusivamente residenciais – sob
pena de induzir a necessidade de deslocamentos diários dos moradores para outras áreas,
induzindo ao uso do veículo para tanto.
Entretanto, quando a trama espacial de interações dos atores ocorre literalmente sobre toda a
cidade, ela tende a configurar-se em caminhos de localização – em uma estrutura dendrítica de
concentrações ao longo do esqueleto de ruas principais da cidade. Esta estrutura dendrítica
termina ainda frequentemente capilarizada intersticialmente nos tecidos locais dos bairros,
formando geometrias complexas no tecido urbano.
10
Lembramos dos estudos das estruturas lineares urbanas em Morrill (1972) e estruturas intersticiais em Goffete-Nagot (2000) na
economia espacial; dos caminhos e nós de Lynch (1960) nos estudos da percepção urbana; e da ênfase axial de Hillier e Hanson
(1984) e Hillier (1996) nos estudos configuracionais.
5
para a “cidade futura”. Essa espécie de axioma do planejamento, menos questionado do que
deveria, tem como premissa a condução do desenvolvimento urbano para além dos “descaminhos
possíveis” gerados pela ação diversa dos atores. Entretanto, uma vez que reconheçamos a
complexidade tanto nas relações de estímulo entre morfologia e processos socioeconômicos quanto
das contingências e imprevisibilidades produzidas pela multiplicidade de ações e sua relação com a
estrutura urbana, essa visão torna-se claramente insuficiente. Nas imensas frestas entre idealização
top-down (“de cima para baixo”) da cidade do planejamento e a cidade real e efervescente
produzida pelas ações bottom-up (“de baixo para cima”) dos seus atores, a forma da cidade vai
cristalizando-se guiada preponderantemente por interesses dos atores do setor imobiliário, atentos
à cidade como campo do jogo socioeconômico. A densificação e distribuição de usos do solo
terminam frequentemente sendo determinadas por lógicas de crescimento guiadas por forças entre
as quais o zoneamento é apenas uma – e provavelmente não a mais determinante.
A forma urbana será, portanto, impactada por essa relação entre forças de transformação urbana,
as prescrições de densidades homogeneizantes e a ausência de guias de desenho urbanístico
sensíveis aos padrões complexos da cidade. Tais guias seriam capazes de gerar conjuntos mais
qualificados que aqueles gerados pelas taxas abstratas dos planos que têm moldado a forma dos
edifícios, dos anos 1970 em diante. Esse problema pode ser mais facilmente entendido na forma de
uma pergunta: todas as tipologias e formas são possíveis, mas quais seriam as desejáveis
considerando seus impactos? Os parâmetros urbanísticos tradicionalmente definidos por regras de
ocupação urbana são limitados no que diz respeito à composição dos elementos da forma urbana,
às relações de interação entre a forma construída e espaços abertos, à noção de conjunto formal, à
leitura do espaço e a uma série de outros aspectos importantes sob o ponto de vista dos impactos
da forma urbana, dos estéticos aos de desempenho urbano11.
§ Déficit habitacional em escala gigantesca para populações de baixa renda. PDs têm falhado
sistematicamente no atendimento dessas populações, pela não previsão de áreas
urbanizáveis destinadas a elas, com parâmetros adequados à sua realidade e localização
compatível com os deslocamentos diários aos pólos de trabalho. Por essa omissão, podem
ser considerados corresponsáveis pela ocupação desordenada e a favelização de enormes
áreas, com impactos sobre o ambiente e o desempenho da cidade como um todo. A
proposição de Planos Nacional, Regionais e Locais de Habitação de Interesse Social traz o
reconhecimento de um problema largamente ignorado anteriormente e da mais alta
importância.
11
Veja Vargas (2003).
6
público, baixo desempenho quanto à densificação,12 alta demanda de área de lote com
criação de espaços residuais pouco utilizados, alta relação perímetro-área construída – e,
portanto, baixa economicidade.
Finalmente, há um grave risco em favelas que hoje se verticalizam sem projeto e cálculo
estrutural. Temos de levar em conta que tais estruturas podem entrar em colapso. Sua vida
útil também tende a ser menor que a das edificações com cálculos e processos de construção
adequados. Dada a impossibilidade de substituir tal volume edificado, considerando ainda
as questões sociais envolvidas, e atender tal demanda,13 é necessário o tratamento dessas
construções e áreas e, se necessário, o reassentamento de moradores em novas áreas
próximas. Aqui, a melhor alternativa – dados os impactos negativos de mover residências
para localizações periféricas tanto para moradores quanto para a cidade em geral – é insistir
em boas localizações intraurbanas: buscar áreas adequadas para a habitação de interesse
social, como os vazios urbanos e áreas subutilizadas.
12
Veja o estudo clássico de Martin e March (1972): seus diagramas de esquemas de implantação e volumetrias demonstram
matematicamente que a forma edilícia isolada tem menor eficiência pra absorver área quanto à altura necessária e taxa de ocupação
do solo. Formas edilícias de borda de quarteirão absorvem densidades com médias significativamente menores de altura. Veja ainda
March e Steadman (1971), March (1976) e Netto (no prelo).
13
Observação de Regina Bienenstein (NEPHU-UFF), em comunicação pessoal.
7
desacompanhado de cuidados na urbanização: (a) novas glebas são acrescentadas
indiscriminadamente via mercado formal, informal ou autoprodução, formando áreas cuja
relação com o todo urbano será frequentemente dificultada em função das crescentes
distâncias e descontinuidades morfológicas impostas pela fragmentação da rede viária; (b)
muitas dessas áreas serão precárias infraestruturalmente. Vemos em nossas cidades
loteamentos comercializados desacompanhados de redes de infraestrutura, onerando
Estado, população e ambiente. O Poder Público não consegue urbanizar tais áreas com a
mesma velocidade com que mercados as produzem14 – e nem o poderia: tais extensões
envolverão alto custo de cobertura da infraestrutura e ineficiência na relação entre área de
cobertura e densidade populacional. Baixas densidades também dificultam a eficiência do
transporte coletivo e a implantação de transportes de massa como metrôs.
§ Dispersão urbana: nossa legislação não exerce controle da dispersão urbana, problema que
aflige a cidade brasileira e pode comprometer a equidade e eficiência de seu desempenho e
sustentabilidade. Naturalmente, há dependências entre processos de crescimento por
expansão e por adensamento urbano interno.15 Mas parece difícil ignorar as práticas de
conversão indiscriminada de áreas não-urbanas e a permissividade no processo de
aprovação de novos loteamentos não infraestruturados em cidades de diversos portes no
Brasil. Há fragilidade na fiscalização e controle in loco da urbanização e conversão de áreas
naturais e rurais em urbanas, e no controle do parcelamento do solo.Este é feito, em muitos
casos, através de “saltos” sobre áreas semi-rurais imediatamente adjacentes ao tecido
urbano consolidado, criando numerosos vazios intersticiais que oneram a instalação de
infraestrutura de saneamento básico e transportes, ao mesmo tempo em que aumentam o
tempo e o custo de deslocamentos e penalizam com longas jornadas ao trabalho, na maioria
dos casos, justamente aquela parcela da população mais frágil do ponto de vista
socioeconômico. Nesse processo, eleva-se o valor dos terrenos e glebas situados nesses
espaços intersticiais, cuja localização qualifica-se a partir dos investimentos públicos,
incentivando a retenção especulativa desses imóveis e criando uma escassez artificial de
terras para moradia e outros usos do solo importantes para a dinâmica urbana. Não
bastasse isso, os terrenos vazios tendem a diminuir a possibilidade de vigilância natural
proporcionada pela interação entre edificações e espaços públicos, aumentando a
insegurança.16
14
Conforme pesquisa do NEPHU-UFF sobre o CONLESTE, no Estado do RJ, 2009.
15
Krafta (em comunicação pessoal); veja Abramo (2009).
16
Veja Vivan e Saboya (2012).
17
Veja Medeiros e Holanda (2008).
8
estrutura e infraestrutura urbanas para além das capacidades de tais ruas. A análise urbana,
assim, deve incluir a identificação de pontos-chave de reconexão viária para intervenção e
ampliação progressiva da capacidade de distribuição das ruas, recosturando as
microrrupturas entre trechos de bairros ou áreas em nossas cidades.
§ Externalidades negativas dos padrões espaciais urbanos decorrentes dos aumentos nas
distâncias na cidade, da fragilidade das redes de acessibilidade urbana e dos sistemas
desintegrados de transporte, como o aumento da dependência veicular, crescentes
congestionamentos, tempo e custos de transporte, com possível queda de produtividade e
atividade microeconômica.18
§ Novos padrões arquitetônicos que estabelecem frágeis relações com o espaço público.
Temos assistido uma tendência preocupante em cidades de todo o país: a proliferação de
tipos arquitetônicos definidos por largos afastamentos e barreiras como grades e muros,
implantados em tecidos urbanos e condomínios fechados. Para compensar os largos recuos,
essas características são associadas à verticalização. Há motivações financeiras para esses
modelos: (i) A reprodução da planta em vários pavimentos maximiza o uso da mão-de-obra,
maquinário e tecnologia instalada no sítio da obra, e reduz o tempo de construção. Os
custos relativos de cada andar adicionado diminuem, enquanto, por outro lado, os valores
de venda do imóvel aumentam em decorrência de fatores como vista e minimização de
ruídos. (ii) Esses tipos são comumente replicados em condomínios ou em diferentes lotes
para eliminar custos de projetos arquitetônicos específicos para lugares específicos. (iii)
Desse fator decorre a preferência por grandes lotes capazes de oferecer espaço suficiente
para torres e seus afastamentos, e o interesse no remembramento de pequenos lotes.
Parcelamentos do solo acabam adequando-se a essa tipologia, com lotes de largas testadas,
implicando que as novas áreas não mais terão as morfologias contínuas da cidade
tradicional em condições de demanda de densidades. (iv) Finalmente, temos a associação
18
Veja estudos de Chen et al (2008) sobre as correlações entre variáveis como densidade sobre transporte e habitabilidade, entre
outros fatores, em 45 cidades chinesas, e Cintra (2008) sobre impactos dos congestionamentos na economia da cidade de São Paulo.
9
desses fatores em “pacotes” atraentes ao estilo de vida baseado em status e medo,
reproduzidos junto a seu público-alvo.19
Essas são algumas das razões para nossas cidades terem seu tecido progressivamente
substituído por este tipo – em fórmulas fixadas desde os anos 1990. O problema é que tais
práticas de construção têm tido efeitos de escala potencialmente graves. Dados de estudos
empíricos em capitais brasileiras apontaram correlações fortemente negativas entre
pedestres e muros, afastamentos frontais e laterais; assim como a correlação positiva entre
presença de interfaces de baixa visibilidade (tais como os muros) e a incidência de crimes.20
Desejo de segregação à parte, é evidente que atores produtores de espaço urbano não
desejariam a queda do desempenho urbano em geral – salvo se em contradição com seus
próprios interesses. Argumentos em defesa dessa arquitetura isolada evocam a ideia de que
elas consistem de tendências espontâneas, naturais, coletivas. Entretanto, emergências
coletivas não são garantia de adequação e melhor resultados para a maioria (lembremos da
opção generalizada pelo uso do veículo individual e seus resultados coletivos, como
congestionamentos). Emergências coletivas não são, portanto, necessariamente auto-
legitimizadoras. Resultados negativos podem emergir da interação entre atores. A
possibilidade de efeitos não-intencionados de larga-escala é bem-conhecida desde os
estudos pioneiros de Schelling sobre motivos individuais e comportamento coletivo.21 Para
contrapor tais possibilidades, agências de observação e avaliação de resultados coletivos
emergentes (como a academia) e gestão (como o Estado e suas escalas de governança) são
criadas – evidentemente sujeitas ao erro e ao debate. Portanto, não se trata de propor a
alternativa de um projeto normativo absoluto, top-down. A acumulação de pequenas
decisões tenderá a ter melhores resultados – mas é preciso o exame e confronto de visões
urbanas, e reconhecer a possibilidade de efeitos sistêmicos não intencionais.
Há um dado que evidencia as contradições envolvidas nesse problema. Áreas usadas para a
tipologia condominial têm origem privada. Em princípio, seu destino seria decisão do
proprietário. Entretanto, em condições urbanas tradicionais, o parcelamento dessas áreas
implicaria na criação de ruas e espaços livres que garantiriam acesso público a elas,
garantido pela lei 6766/79. Esse acesso é perdido na solução dos condomínios, que
interiorizam e promovem a exclusão dessas áreas de uso coletivo, ao mesmo tempo em que
contribuem para prejudicar a já frágil conectividade do tecido, criando enclaves
intransponíveis que dificultam as costuras urbanas. Além disso, tendem a gerar longos
perímetros cegos, sem relação visual com a rua, aumentando a sensação de insegurança22 e
desestimulando o movimento de pedestres. Ainda mais preocupante é a tendência de
justaposição desses elementos em amplas porções do território e suas consequências
espaciais: áreas desvitalizadas, inseguras e refratárias à utilização dos espaços públicos
(figura 2). Em que pese seu caráter privado, não é justo transferir essas externalidades
negativas para o público e o coletivo. Por todos esses motivos, os condomínios contrariam
o interesse social do solo urbano.
Gravemente, esses princípios danosos têm pautado as decisões sobre a forma arquitetônica
e urbana. Novos Planos Diretores Brasil afora têm sido moldados de forma a excluir o tipo
construído na divisa, menos vertical e mais específico a seus contextos. Introduzem
normativamente reduções da possibilidade de diversidade morfológica e funcional
19
Veja Bauman (2009).
20
Veja Netto, Saboya e Vargas (2012); Saboya e Vargas (2012); Vivan e Saboya (2012).
21
Veja Schelling (1978), Giddens (1984) e Couclelis (1989), entre outros.
22
Jacobs (2000); Newman (1996); Vivan e Saboya (2012).
10
urbana, do potencial da apropriação pedestre do espaço público, da urbanidade e do bom
desempenho urbano.
É necessário retomar a discussão nacional sobre uma legislação capaz de atentar para a
implantação arquitetônica e para a proliferação de condomínios, baseada no interesse social
do solo urbano como instrumento contrário a essa restrição de espaços potencialmente
públicos, e controlar os danos implicados por tendências arquitetônicas irrefletidas e
irresponsáveis com o senso público e o desempenho urbano (figuras 2 a 5). Precisamos de
uma legislação capaz de cobrar a responsabilidade do projeto arquitetônico com o espaço
público, limitando o uso dos muros (e seus impactos negativos sobre a segurança na rua) e
garantindo que edificações ofereçam suporte em seus térreos a atividades microeconômicas
que garantam o atendimento a demandas locais. Arquitetos e construtores não estão
pensando e atuando sistemicamente.23 A legislação tem o papel de demandar e garantir a
qualidade das implicações sistêmicas da arquitetura.
23
Vivemos em uma cultura que não reconhece a importância do caráter sistêmico da ação e não valoriza a cooperação, e nossa
legislação atual expressa essas características. Os modelos arquitetônicos em voga não consistem, entretanto, de modos irreversíveis
de ocupação: há possibilidade de “reparo urbano” e mesmo de retorno ao paradigma tradicional de cidade. A modificação desses
modelos demanda, no entanto, flexibilidade normativa – regras urbanas que a permitam alterações nesses tecidos. Temos visto ações
urbanas nesse sentido, como a reação à dispersão suburbana da cidade americana: o “sprawl repair”.
11
Figuras 2 a 5 – Cidades de torres, condomínios e muros: Natal (RN – figuras 2 e 3); Rio de
Janeiro (RJ) e Campo Grande (MS) – suas espacialidades e a desvitalização do espaço público:
no que exatamente estamos transformando nossas cidades?
(Fonte das figuras 2, 3 e 4: Google Street View).
Diante dessas urgências, buscar instrumentos com mais elaboração tanto de suas bases teóricas
quanto de sua aplicabilidade em relação à difícil gerência da complexidade urbana passa a ser uma
necessidade constante.
Entretanto, a pergunta inicial permanece: como modelos normativos fixados sob forma de textos e
mapas podem atender tal número de processos e problemas contínuos? A própria definição de
controle urbano parece estática frente à complexidade da cidade e suas dinâmicas simultâneas.
Temos, portanto, de endereçar a própria concepção por trás dos instrumentos urbanos
tradicionais, sintetizada da seguinte maneira:
(i) PDs são conjuntos de regras que se aplicam verticalmente e de modo relativamente genérico a
processos múltiplos de produção e apropriação espacial – processos que, na verdade, são
constituídos de ações na sua maior parte microestruturais e cotidianas, que terminam por produzir
coletivamente padrões urbanos.24
24
Batty (2007).
12
(ii) Seus instrumentos de controle definem modelos espaciais da forma e usos urbanos25 baseados
no expertise de técnicos em gestão das relações entre atores e estrutura urbana, objetivando
restringir as ações de ocupação, densificação e atividade de modos diferentes em espaços
diferentes, bem como controlar seus impactos sobre estrutura e infraestrutura, e sobre outros
atores. Objetivam uma ordenação explícita da espacialidade dos processos socioeconômicos.
(iii) São instrumentos que representam o entendimento da cidade atual e expectativas da cidade
futura. Para tanto, assumem uma relação ao menos parcialmente causal entre regramento e seus
impactos na direção esperada ou desejada – um direcionamento sobretudo frente aos
“descaminhos possíveis” da ação diversa dos atores. Entretanto, temos de entender tal diversidade
não como caos indesejado, mas como complexidade inevitável em sistemas socioespaciais.
(iv) Finalmente, esses instrumentos, apesar de hoje frequentemente guiados por diretrizes sociais,
raramente ligam-se a projetos concretos de desenvolvimento, articulados na geração de um
comportamento equânime das cidades vis-à-vis a atividade de seus diferentes grupos sociais. Há
dois imensos déficits urbanos que impactam a possibilidade de justiça social potencializada pela
cidade e requerem ação imediata. Temos necessidade de distribuição da mobilidade entre
diferentes grupos sociais, através de programas de intervenção física nas redes urbanas
objetivando o aumento da conectividade e acessibilidade interna, de projetos de sistemas de
transporte de massa integrados, e programas de localização residencial priorizando boa
acessibilidade. E temos a necessidade de definição de estratégias de habitação social mais
qualificadas e bem localizadas, prevendo ainda controle efetivo da dispersão urbana, a ocupação de
vazios urbanos e o estímulo à densificação intraurbana através de tipologias multifamiliares com
desempenho apropriado quanto à compacidade, habitabilidade e economicidade, e como suporte
para a diversidade da vida social e microeconômica de suas áreas.
Para tanto, o planejamento deve aproximar-se cada vez mais da esfera da pesquisa: o
conhecimento sobre os pontos onde cada cidade tem problemas, ineficiências ou riscos à sua
equidade e sustentabilidade. Deve, assim, basear-se no estudo de aspectos do comportamento
25
Pode-se argumentar, por outro lado, que há dificuldade em identificar modelos espaciais distinguíveis, ou minimamente coerentes,
nos zoneamentos comumente produzidos nos PDs. Estes, na maioria das vezes, parecem mais adequar-se à lógica do mercado e à
cidade “espontânea” do que propriamente buscar um modelo espacial complexo o bastante para interpretar adequadamente as forças
de transformação urbana e as relações e atores em jogo.
13
arquitetônico e urbano para a geração de instrumentos mais precisos e interativos com a realidade
mutável dos padrões e dinâmicas urbanos (figura 6).
Fig. 6 – Configuração espacial e seus efeitos sobre o desempenho urbano: influência mútua da
forma arquitetônica sobre o comportamento dos conjuntos urbanos e seus impactos sobre
dinâmicas sociais, microeconômicas e ambientais retroativos na forma da cidade.
Esses estudos devem orientar zoneamentos funcionais mais abertos, sensíveis e microestruturais,
em revisão periódica, via confronto com análises de padrões e desempenho urbanos, capazes de
estimular a localização de agentes (trabalhadores, firmas); zoneamentos capazes ainda de
distribuir as vantagens dessas localizações para interações e movimentações, cotejando-as com os
demais aspectos socioespaciais relevantes, como a necessidade de preservação ambiental,
características topográficas, padrões de segregação, capacidade das infraestruturas disponíveis e
projetadas.
14
relação com a rua e demais espaços públicos)26 e seu comportamento de conjunto, identificando
áreas a adensar (ou a ter densificação limitada) de acordo com os impactos estimados de novas
edificações no desempenho social, microeconômico e ambiental da área. De fato, os efeitos de
densidades arquitetônicas têm sido investigados em diversos estudos recentes.27 Estratégias de
definição da forma e tipologias de interesse e de contenção da expansão urbana devem operar
através do estudo dos ganhos e perdas de diferentes morfologias, assim como da conversão de
território não-urbano em urbano, e dos aumentos de distâncias internas e o consumo médio de
combustível e tempos em transporte.
Mobilidade e redes de ruas: nossas cidades têm tido suas malhas urbanas estruturadas por ações
individualizadas e desarticuladas de agentes dos mercados formal e informal, ou dos atores
envolvidos em autoprodução. Essas ações frequentemente ampliam a malha urbana ao produzirem
loteamentos e trechos de bairro sem preocupação com efeitos possivelmente negativos das
descontinuidades entre ruas sobre a movimentação veicular e de pedestres, e suas consequências
sobre as redes de interação social e econômica à escala local. Tais rupturas afetam também a
acessibilidade aos equipamentos urbanos e comunitários.
Citamos algumas medidas urgentes de intervenção em nossas redes urbanas: (i) aumentar a
distributividade da malha, com a ampliação da conectividade em escalas local e global da cidade
através de planos de conexões viárias e requisitos de acessibilidade; (ii) localizar descontinuidades
fundamentais entre trechos e bairros, e intervir no sentido de costurá-las; (iii) estender e ampliar a
capacidade das vias de potencial de distribuição ampla nas cidades, sem incorrer no erro de
priorizar exclusivamente o transporte individual; (iv) controlar a conversão de terras não-urbanas
em urbanas e da expansão periférica; (v) intervir nos sistemas de transporte levando-se em conta
as múltiplas relações destes com os padrões de uso do solo e de interações sociais; o que nos leva ao
próximo item:
15
Nossos municípios ainda precisam constituir sua estrutura institucional interna de modo
adequado para a implementação de ações urbanas, com corpo técnico em número suficiente e em
constante capacitação. É também imperativa a criação de sistemas de informações urbanas, como
cadastros técnicos e outras bases de dados espaciais e socioeconômicos, capazes de oferecer
suporte para a análise, monitoramento, orientação e decisões técnicas e políticas.
O IPTU progressivo, por exemplo, pode ser um instrumento estratégico no sentido de reduzir a
dispersão das cidades brasileiras, estimulando o aproveitamento de terras urbanas subutilizadas
localizadas em tecido consolidado, que encarecem a infraestrutura e aumentam as distâncias
internas. Tornando o imposto mais caro para esses terrenos, há a tendência de que eles sejam
disponibilizados no mercado, promovendo o adensamento e possivelmente estimulando a redução
dos valores praticados no próprio mercado.
A Outorga Onerosa do Direito de Alteração do Uso do Solo, prevista no Estatuto da Cidade, apesar
de ter recebido pouca atenção nos debates sobre os instrumentos urbanísticos (ao menos em
comparação com a Outorga Onerosa do Direito de Construir), também pode contribuir para tornar
as cidades mais compactas. Aplicando a outorga nas franjas urbanas, nos processos de conversão
do uso rural para uso urbano, é possível inibir a conversão desenfreada de terras em áreas
urbanizadas, minimizando a dispersão. Obviamente, isso deve estar em consonância com um limite
urbano cuidadosamente definido, com dimensões que evitem as ocupações distantes das áreas
mais consolidadas. Além disso, devem ser pensadas áreas de transição (ou de expansão urbana)
nas bordas, com regras mais rígidas com relação aos novos parcelamentos, especialmente no que
diz respeito à proximidade e integração viária com a ocupação pré-existente.
28
Veja Saboya e Cattoni (2000) e Saboya (2006).
29
Hopkins (2001).
30
Veja Nueno e Cymbalista (2007) e Cymbalista (1999).
16
As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) são instrumentos valiosos na minimização
progressiva do déficit habitacional. Nesse sentido, a adoção de ZEIS que reservem áreas para
habitação social em áreas próximas aos polos de trabalho e dotadas de infraestrutura qualificada
pode contribuir para a provisão desse tipo de habitação e para a proteção das áreas de preservação
permanente31, bem como para a diminuição das necessidades de deslocamento dos grupos de
menor renda, frequentemente empurrados para as periferias pelos mecanismos do mercado da
terra, tendo os impactos das distâncias, tempo e custos sobre sua produtividade e capacidade de
gerar renda.
As operações urbanas, por seu caráter mais particularizado, podem contribuir para um tratamento
mais cuidadoso das tipologias a serem implantadas em determinadas áreas da cidade. Entretanto,
esse instrumento deve ser utilizado com cuidado, uma vez que sua definição pelo Estatuto da
Cidade condiciona a aplicação dos recursos auferidos pela operação urbana dentro do próprio
limite a ela demarcado na lei específica. Uma vez que a operação é normalmente viabilizada apenas
em áreas de interesse para o mercado imobiliário, corre-se o risco de aumentar as desigualdades já
existentes em termos de infraestrutura e qualidade urbanística.
Além desses instrumentos regulamentados pelo Estatuto da Cidade, estão surgindo novos
instrumentos mais flexíveis, que abrem novas possibilidades para o enfrentamento de problemas
urbanos. O ajuste fundiário (land readjustment), por exemplo, é útil em áreas onde o parcelamento
do solo é problemático, nas quais os lotes possuem formas de difícil aproveitamento e o sistema
viário está comprometido, com largura insuficiente e poucas conexões. Através dele, é possível
viabilizar ações em que um conjunto de lotes é remembrado e então novamente parcelado, desta
vez seguindo uma nova configuração potencialmente mais interessante do ponto de vista
urbanístico.32 Assim, na prática, cada proprietário acaba abrindo mão de uma fração da área do seu
lote, que será utilizada para a constituição de novas áreas públicas e reconexão e ampliação do
sistema viário. Em contrapartida, ao final do processo recebe de volta um lote com formato e
proporções mais adequados à construção e melhor infraestruturado, mais próximo a espaços
públicos e com melhor acesso viário. O ajuste fundiário é baseado no conceito de replotting, que
pode ser traduzido livremente como “reparcelamento”.
O controle de usos pelo sistema viário também é um instrumento que pode auxiliar na eficácia das
ações sobre o desenvolvimento urbano. Ao contrário do zoneamento tradicional, que usa zonas
homogêneas, esse instrumento utiliza o sistema viário como unidade espacial para controlar as
possibilidades de alocação dos usos urbanos, o que corresponde de maneira muito mais direta à
estrutura de tendência complexa e dendrítica da localização das atividades exposta acima. O Plano
Diretor de Santo André e sua Lei de Uso e Ocupação do Solo33 utilizam esse sistema, atribuindo
graus de incomodidade às atividades urbanas e definindo tolerâncias diferentes às incomodidades
de acordo com a hierarquia da via.
Dessa forma, vias mais importantes são mais tolerantes à incomodidade, permitindo usos com
maior impacto, enquanto vias mais locais, por outro lado, são menos tolerantes às incomodidades,
permitindo usos residenciais e outros usos de baixo impacto, tais como pequenos comércios e
serviços. Com esse funcionamento, o controle de usos pelo sistema viário foge da rigidez e
arbitrariedade das zonas tradicionais e incorpora em sua estrutura traços da dinâmica do próprio
sistema urbano. A utilização do conceito de áreas especiais de interesse comerciais (AEIC)
complementa esse sistema linear com áreas de intensificação das atividades de comércios e
serviços, bem como de densidades construtivas e populacionais, fazendo surgir uma estrutura
31
Veja, por exemplo, Baltrusis (2003); Cymbalista et al (2009).
32
Souza (2009).
33
Veja o Plano Diretor de Santo André. Lei n.º 8.696, de 17/12/2004 e a Lei de Uso, Ocupação e Parcelamento do Solo da
Macrozona Urbana - Lei nº 8.836, de 10 de maio de 2006.
17
muito parecida com a dendrítica (figura 7), permitindo, portanto, um tipo de controle mais
refinado e mais ajustado aos processos urbanos.
Os form-based codes (FBC) são códigos semelhantes ao zoneamento tradicional que, entretanto,
têm como foco a tipologia das edificações e suas relações com o espaço público. Portanto, além de
estabelecer índices máximos tais como gabaritos e afastamentos, os FBCs definem tipos aceitáveis
para as diversas áreas da cidade, estabelecendo relações que privilegiam a proximidade entre as
edificações e a rua, a permeabilidade interior/exterior, a continuidade das fachadas e a criação de
áreas amigáveis aos pedestres, entre outros aspectos. O FBC de Benicia, na Califórnia, por exemplo,
divide a parte central da cidade em cinco distritos e define parâmetros específicos de desenho para
as edificações (figura 8).
18
Fig. 8– Parâmetros do plano para o Centro Urbano de Benicia, Califórnia. (Fonte: OPTICOS
DESIGN. Downtown Mixed Use Master Plan. Benicia, Califórnia: 2007 – tradução nossa).
Vemos na figura 8 que os parâmetros definem a linha em que o edifício deve ser construído (no
caso, coincidente com o limite do lote) e os recuos laterais e de fundos. Interessante notar que, com
relação à continuidade da fachada, o FBC define uma porcentagem mínima da testada do lote que
deve ser conformada pela fachada da edificação. Há ainda vários outros parâmetros (não contidos
na figura) que estabelecem os usos permitidos no térreo, a altura máxima e mínima, o tipo de
acesso frontal, e assim por diante. Esse instrumento, portanto, reconhece a importância da forma
edificada para a ambiência e as dinâmicas sociais e microeconômicas nos espaços públicos a serem
potencializadas pelas tipologias adotadas ou permitidas, atuando no sentido de dificultar a
implementação de tipologias que possam prejudicar essas dinâmicas e diluir as relações que
constituem a essência da vitalidade da rua e demais espaços abertos de uso público.
19
Entre
os
caminhos
possíveis
ao
planejamento:
observações
finais
Em nossas observações conclusivas, gostaríamos de lembrar que instrumentos recentes de
planejamento têm buscado trazer a esfera da prática cotidiana e da participação para junto da
esfera da decisão. O planejamento oferece um modo de aproximação da população às instâncias
locais do governo, uma forma de democratização e intensificação do controle sobre a
administração. Entretanto, há uma forte tendência de substituição da ênfase técnica pela ênfase
participativa, em detrimento da técnica, como se ambas fossem de alguma maneira conflitantes
ou mutuamente excludentes. Novos instrumentos pouco têm trazido quanto a procedimentos e
critérios de análise urbana atualizados, ou sobre modos de tratar o urgente tema do
comportamento e desempenho de nossas cidades.
Um desafio particular que emerge aqui é o de solucionar a aparente contradição entre (i) a
necessidade de qualificar o conhecimento, práticas e métodos de planejamento, e (ii) a necessidade
de incluir os conhecimentos gerados a partir das formas de vida urbana locais. Em outras palavras,
enfrentamos um problema largamente ignorado: os modos de relacionar as culturas do expertise
com as formas de conhecimento vindas das grassroots ou da experiência de atores e grupos sociais
em seus contextos. Claramente, a primeira forma de saber/prática não pode ser ignorada: ela
acumula formas sistemáticas produzidas por gerações e envolvendo (em princípio) amplas
perspectivas para avaliação de problemas urbanos. A segunda forma, por sua vez, traz as
perspectivas de um número expressivo de atores atuando em suas realidades por dentro das
complexidades e instâncias da experiência, com formas de saber produzidas de modo endógeno, e
modos de lidar com problemas urbanos construídos através de habilidades sociais desenvolvidas
localmente.
Podemos romper com tal aparente contradição ao ver esses dois processos coletivos e históricos
(ambas as formas de conhecimento são construções coletivas e históricas), mesmo que gerados em
instâncias e meios diferentes, como conjuntos de ganhos cognitivos e práticos estruturados e
compartilhados através da linguagem e da comunicação. Enquanto tais saberes e práticas tiverem
essa natureza, há potencial para conexão e busca de complementaridades. A forma linguística que
essas formas de saber tomam são a condição para ligar as visões práticas ricas geradas pela
experiência cotidiana e individual da cidade às visões teórica e empiricamente alimentadas e
sistematizadas pela técnica e pela pesquisa urbana. Nesse sentido, defendemos a aproximação
entre as culturas do expertise e dos praticantes no cotidiano no processo de planejamento. Ganhos
práticos e cognitivos tendem a emergir quando campos dessas naturezas específicas são postos de
fato em interação.
Os caminhos levantados neste texto são possibilidades dentro de um universo mais amplo de
alternativas as quais, obviamente, não pretendemos esgotar aqui. Acreditamos que a hipótese mais
20
promissora consiste no reconhecimento do potencial de auto-organização política dos atores
urbanos, em oposição à visão de que mecanismos pensados (e, em grande parte dos casos,
impostos) verticalmente são eficientes na orientação do desenvolvimento urbano. Instrumentos e
ações pensados na escala local podem desencadear novos arranjos espaciais com impactos
positivos sobre o sistema urbano como um todo, desde que realizados em consideração às
dinâmicas da cidade e suas complexidades.
Arquitetos, construtores e planejadores têm um privilégio único: o de deixar impressos seus atos
no espaço, impactando dessa forma uma multiplicidade de atores, nas esferas privada e pública, ao
longo do tempo. Mas esse privilégio demanda responsabilidade com os atos e os objetos da
construção: uma responsabilidade com o futuro da cidade – sua vida pública, seu desempenho
social, econômico e ambiental, e seu patrimônio espacial e cultural.
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