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Uma das expectativas do fundador era que os próprios trabalhadores pudessem comprar os
veículos que produziam. Além disso, esses trabalhadores precisavam seguir o perfil desejado
pela empresa, o modelo subjetivo proposto por ela.
Para tanto, os funcionários da Ford Motor Company deveriam comprovar que seguiam um
estilo de vida condizente com a empresa e aprovado por um departamento especializado que
examinaria a vida privada dos trabalhadores, impondo valores como fidelidade conjugal,
estabilidade familiar e emocional, repulsa ao álcool e à vida boêmia, apego à religião e ao
patriotismo.
Décadas depois, sem desprezar as escolas que lhe antecederam, a Toyota do pós-guerra
inovou e recuperou a capacidade flexível da produção artesanal, regulada pela demanda (just
in time), sem perder a capacidade da produção em massa, além de promover um novo projeto
de engajamento.
Para perpetuar tal harmonia nas relações entre empresa e trabalhador, principalmente nos
países ocidentais, essa prática sabiamente recorreu à escola das Relações Humanas e
disseminou as ideias da gestão participativa, da cooperação, do consenso, da integração e da
participação, além da retórica da valorização dos grupos informais.
Não há nenhuma novidade na busca capitalista pelo resultado — a busca racional pelo lucro,
segundo Weber (2004). O fordismo, sob as condições de racionalização propiciadas pelo
desenvolvimento tecnológico no início do século XX, principalmente nos EUA, tornou-se o
pioneiro na articulação entre coerção capitalista e consentimento da classe trabalhadora.
Os entusiastas desses modelos flexíveis de gestão, como John Naisbitt (1982) e Alvin Toffler
(1980), acreditavam que a superação do fordismo pelos conceitos do toyotismo nos levaria a
uma sociedade mais democrática para além dos muros e das paredes das grandes fábricas.
Hoje, no entanto, a realidade daqueles que vivem do trabalho evidencia que tais previsões
estavam equivocadas e que o que temos é uma sociedade mais desigual do que no período
fordista, seja nos países centrais ou periféricos, com raras exceções.
Logrou-se atribuir ritmos intensos em condições precárias de trabalho sem a total consciência
do trabalhador e de grande parte da rede de terceiros.
A gestão uberizada
Depois da gestão fordista e toyotista, é a vez de a empresa Uber emprestar o seu nome para
denominarmos o novo paradigma da gestão contemporânea: a empresa uberizada. Nesse
novo processo de reestruturação organizacional, as empresas inovam a partir de conceitos da
economia de plataforma, também conhecida como economia compartilhada e economia do
bico.
Um modelo que se espalha por todo o mundo são as milhares de iniciativas como
a TaskRabbit, a Zazcar, a Parkingaki, a Holidog e a famosa Airbnb. Essa última, uma empresa
que presta serviço para pernoite e que nunca construiu um hotel nem mesmo contratou um
profissional de turismo, já é a maior rede de prestação desse tipo de serviço no mundo.
Fundada em 2009, a empresa oferece 1,2 milhão de vagas por noite, 500 mil vagas a mais do
que a maior rede de hotéis do mundo, a InterContinental (Slee, 2017).
No Brasil, a Zazcar tem feito sucesso: mesmo sem nunca ter comprado um automóvel, oferece
carros de aluguel de pessoas que não estão sendo utilizados – veículos on demand, segundo a
própria empresa.
A Parkingaki faz o mesmo, não possui estacionamento e também não contrata nenhum
manobrista, mas oferece, “em um click”, vagas em garagens para locação mensal ou de apenas
algumas horas. Outra conhecida empresa brasileira presente na economia do
compartilhamento é a Holidog. A organização é uma espécie de Airbnb para cachorros, onde
você pode encontrar pessoas dispostas a receber e hospedar o seu “amigão” enquanto você
viaja.
São empresas que se beneficiam de forma criativa dos avanços tecnológicos, promovidos e
guiados pelo capital, “destroem” mercados tradicionais através de estratégias que consideram
apenas a ética dos negócios, sem levar em conta as relações, inclusive legais, que estabelecem
com as comunidades onde estão inseridas, sejam com os seus concorrentes, consumidores,
fornecedores ou trabalhadores.
Segundo a PWC, 44% dos americanos já estavam familiarizados com o termo da economia do
compartilhamento. Destes, 86% confirmaram o menor custo dos serviços e produtos
oferecidos pelas empresas uberizadas.
Afinal, para que uma furadeira se o que precisamos são apenas furos? Para que um carro se o
que precisamos é apenas nos deslocar?
Por outro lado, as empresas uberizadas logram a conquista de corações e mentes amargurados
da classe trabalhadora, os partners – desempregados ou empregados precarizados em busca
de um complemento para a sua renda ou de um ambiente menos despótico. As empresas da
economia do compartilhamento navegam nas oportunidades que a sociedade do trabalho, em
crise, oferece: consumidores em busca de baixo preço e trabalhadores em situação de
desespero.
Economia compartilhada
Mesmo empresas tradicionais da era digital como a Microsoft oferecem aos seus
consumidores ajuda de outros clientes experts que trabalham gratuitamente para a empresa.
Rádios, jornais e TVs solicitam informações e notícias dos seus próprios ouvintes, leitores e
telespectadores, como, por exemplo, a revista norte-americana Time. A revista cede espaços
em seu site para que os clientes colaboradores gratuitamente contribuam com conteúdo.
O laboratório disponibilizou grande parte da sua pesquisa de três anos para domínio público e
solicitou em contrapartida e gratuitamente o trabalho de cientistas e empresas do mundo
todo (Tapscott, Willians, 2010).
Para que contratar profissionais se temos milhares de pessoas disponíveis para trabalhar
gratuitamente ou quase?
Essa é uma prática conhecida e já amplamente explorada há décadas pelos bancos e pelas
fábricas de móveis, em que tais empresas transferem parte do trabalho para o cliente, seja por
meio do sistema internet banking ou do ‘monte você mesmo’ o seu mobiliário, criado pela
empresa de móveis sueca Ikea.
As tradicionais e conhecidas Natura e Avon, entre tantas outras empresas, nunca contrataram
um profissional de vendas, utilizam-se das suas próprias clientes como “consultoras” (na
prática, simplesmente vendedoras) (Abílio, 2017).
Outra antiga do mundo digital, a Amazon, cada vez mais se insere na economia do
compartilhamento por meio de empresas como a Flex, um serviço de entregas que usa
pessoas comuns, e não funcionários treinados, para entregar caixas e pacotes nos EUA. Ela
também lançou o Home Services, que localiza encanadores, pintores, montadores de móveis,
entre outros serviços.
Cooperativismo de plataforma
A terceirização e a produção em rede foram para o toyotismo o que novo consumidor, agora,
como parceiro empreendedor, está sendo para as empresas uberizadas: a possibilidade de se
reduzir ainda mais o custo da mão de obra.
As constantes reestruturações organizacionais transformam a morfologia do trabalho, e dos
seus resultados derivam as principais implicações para a degradação das condições de vida,
dada a precarização crescente das condições de trabalho. São reestruturações que se inserem
na própria dinâmica do capitalismo do século XXI.
Portanto, as novas formas de organizar e de remunerar a força de trabalho fazem com que a
regularidade do assalariamento formal e a garantia dos direitos sociais e trabalhistas sejam
reduzidas drasticamente (Abílio, 2017; Fleming, 2017; Pochmann, 2017) e nos obriguem a
indagar: que tempos são esses em que ser explorado e ter um trabalho formal tornou-se um
privilégio?
Rafael Zanata (2017), Trebor Scholz (2017), Tom Slee (2017), entre outros, entendem que as
plataformas de compartilhamento não são novidades, são apenas grandes classificados
digitais, em que pessoas que precisam de um bem ou serviço encontram os que possam
oferecê-los por intermédio de grandes empresas. Portanto, o intermediário que possibilita
esse encontro de troca deveria ser o menos importante nesse elo.
Para contrapor essa lógica, os autores propõem que os(as) próprios(as) trabalhadores e
trabalhadoras desenvolvam as suas plataformas, com a ajuda de prefeituras, sindicatos e
iniciativas autônomas.
São plataformas como a de serviço de transporte realizado pela Transunion Car Service de
Newark, a Bliive, em São Paulo, e a Coopify, de Nova York, na conexão entre pessoas da
mesma comunidade com o objetivo de trocar competências e conhecimentos, a Cooperative
Cleaning, de Nova York, onde as trabalhadoras da limpeza residencial e comercial criaram a
sua própria plataforma, ou mesmo, a La’Zooz, de Tel Aviv, que atua na oferta de caronas
dentro da cidade. São diversos exemplos de iniciativas similares pelo mundo como contrapeso
aos modelos de negócios da Uber, Airbnb e tantas outras.
Destarte, o modelo que se alastra mundo afora é o da Uber, pois dá sequência à lógica da
reestruturação contínua do sistema capitalista que permite a momentânea superação das suas
crises, propiciando novamente o excedente de capital.
No entanto, as relações de trabalho nas organizações fordistas, e mesmo nas toyotistas,
valorizam, no limite, o trabalhador e a garantia de uma dose de direitos, com destaque para a
previdência social.
O uberismo marca o retorno das condições de trabalho semelhantes àquelas praticadas antes
das conquistas da classe trabalhadora. Ou seja, estamos diante da recapitulação da economia
de bico – um “negócio da China” para os “neopatrões”.
Referências
Mészáros, I. (2002) Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo:
Boitempo.
Slee, T. (2017) Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução João Peres. Editora
Elefante.
Vincent, S. (2011) The emotional labour process: An essay on the economy of feelings. Human
Relations 64(10): 1369–1392.