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ADEMAR BOGO
TEIXEIRA DE FREITAS-BA
2011
ADEMAR BOGO
TEIXEIRA DE FREITAS-BA
2011
Monografia intitulada: “LINGUAGEM EM PROSA E VERSO: UMA MEDIAÇÃO
PARA A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA”, de autoria de Ademar Bogo, apresentada ao
Colegiado de Letras do Departamento de Educação/ Campus X/ UNEB como requisito parcial
para a obtenção do título de licenciado (a) em Letras Vernáculas, aprovada pela banca
examinadora pelas seguintes professoras:
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Profª Drª. Maria Neuma Mascarenhas Paes (orientadora)
_____________________________________________________
Profª. M.Sc. Luzeni Ferraz de O. Carvalho (UNEB/Campus X)
_____________________________________________________
Profª. Esp. Mirian Cléa Conte (UNEB/Campus X)
TEIXEIRA DE FREITAS-BAHIA
2011
Aos que por meio da luta tornaram-se
escrita, em notícias, livros e pesquisas, e
que, ao lerem seus nomes nas páginas
pálidas, sentiram-se ultrapassando o
próprio destino, alçando-se para além do
que foram em busca de deixarem de ser o
que eram.
AGRADECIMENTOS
Este trabajo tuvo como objetivo, comprender la importancia del lenguaje en prosa y en verso
en la organización y concienciación de los trabajadores Sin Tierra. Por lo tanto buscamos
comprender en qué medida el lenguaje en prosa y en verso desarrollado en los embates en la
lucha por la tierra (antes durante y después de realizados) se mantuvieron, desarrollaron y se
volvieron a crear en las conciencias de los sujetos sociales por la conquista de la tierra.
Recogemos como referencial teórico el materialismo histórico a través de autores como:
(MARX 1964;1982;1986;1996), (ENGELS 2004), (BAKHTIN 1999), (VIGOTSKI 2001),
(VAZQUEZ 1968). En el campo del lenguaje, fueron consultados: (ORLANDI 2007; 2008);
(MUSSALIM e BENTES 2004); (ROSSI-LANDI 1985) Como metodología, se siguió el
camino de la investigación bibliográfica, fundamentando los diferentes aspectos de la
formación del ser social y de la formación del lenguaje y por la realización de la investigación
de campo. El lócus de la investigación fue los asentamientos 4045, en Alcobaça y Quilombo
II en Mucuri em la región de estremo sul de Bahia. Constituyeron sujetos de la investigación
liderazgos y trabajadores asentados, así como representantes de la juventud, hijos o nietos de
asentados que permanecen en los asentamientos investigados. Los resultados indicaron que:
las manifestaciones artísticas y culturales son expresiones dependientes de otras mediaciones
estructuradoras de la vida social. En la medida en que estas mediaciones dejan de existir, los
aprendizajes por ellas producidos, a los pocos van saliendo de la conciencia de los sujetos,
que dejan de repasar tales enseñanzas para sus descendientes. Así se constató que la
formación de la conciencia se da a partir de las relaciones sociales y tiene en sí momentos de
retracción y superación. De tal forma que el lenguaje en prosa y verso se presenta con mayor
vigor en el periodo en que la lucha por la tierra es más intensa, después de la conquista de la
tierra muchos de los aprendizajes son olvidados. Los datos de la investigación dejaron
evidentes que el lenguaje en prosa y verso cuando es insertado en la lucha social cumple el
papel de encantar, reunir, y motivar la participación, pero ella depende de otras mediaciones
estructuradoras para mantenerse como elemento colaborador de la formación de la conciencia
social y política de los sujetos que luchan.
LISTA DE QUADROS
Quadro 8 – O que os pais queriam antes de alcançar irem para a terra – O que os mantém após
23 anos – O que os jovens praticam na visão dos pais...........................................................118
Quadro 9 - Nível de entendimento dos jovens entrevistados sobre os problemas sociais que os
pobres do campo vivem..........................................................................................................120
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10
CAPÍTULO I
1 O MOVIMENTO DE FORMAÇÃO DO SER E DA CONSCIÊNCIA
SOCIAL........................................................................................................................ 18
1.1 O DESENVOLVIMENTO DO SER SOCIAL............................................................18
1.2 A PRÁXIS NA OBJETIVAÇÃO DA CULTURA....................................................25
1.2.1 O papel da práxis do sujeito histórico ........................................................................ 25
1.2.2 A cultura e a práxis social ...................................................................................... ...28
1.3 A PRÁXIS NO FAZER ARTÍSTICO..........................................................................30
1.3.1 O belo no fazer do ser social .......................................................................................32
1.3.2 As funções da arte e da literatura na vida social ..........................................................33
1.3.3 A arte e os interesses de classe............................................. ........................................39
1. 4 A LITERATURA ORAL E ESCRITA.........................................................................43
CAPÍTULO II
2 A LINGUAGEM DO SUJEITO E O SUJEITO DA LINGUAGEM................... 54
2.1 AS DIFERENTES LINGUAGENS........................................................................... 54
2.2 A LINGUAGEM COMO FENÔMENO SOCIAL....................................................57
2.3 A LINGUAGEM COMO TRABALHO LINGUISTICO.........................................63
2.3.1 Produto e fator de produção............................................................................................ 65
2.3.2 A ligação da ação e da linguagem...................................................................................68
2.4 LINGUAGEM, IDEOLOGIA, ALIENAÇÃO E CONSCIÊNCIA.........................70
2.4.1 Ideologia e fetiche..........................................................................................................71
2.4.2 Ideologia e consciência..................................................................................................75
2.4.3 O sentido ideológico das palavras.................................................................................78
2.5 O ETHOS DA LINGUAGEM ...................................................................................81
2.6 AS MARCAS NA LINGUAGEM DO SUJEITO.....................................................85
2.7 AS FORMAS DE LINGUAGEM DO SUJEITO.....................................................88
CAPÍTULO III
3 AS MEDIAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA NO CONTEXTO DA
LUTA PELA TERRA...........................................................................................................94
3.1 A EXPERIÊNCIA COMO MEDIAÇÃO DA CONSCIÊNCIA................................94
3.1.1 Da necessidade à descoberta do direito .......................................................................98
3.1.2 Da tradição à luta presente..............................................................................................99
3.1.3 A integração na classe...................................................................................................101
3.2 A CONSCIÊNCIA E O TIPO DE CONVIVÊNCIA.................................................104
3.3 AS MEDIAÇÔES COMO CONEXÃO COM A TOTALIDADE ...........................111
3.3.1 A ocupação e o acampamento .....................................................................................112
3.3.2 A espontaneidade como pseudoconcreticidade.............................................................114
3.3.3 O fetiche da propriedade................................................................................................117
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................123
REFÊRENCIAS....................................................................................................................132
APÊNDICES..........................................................................................................................137
ANEXOS ..............................................................................................................................145
10
INTRODUÇÃO
Antes de ensinar ao filho a falar, ensinava-lhe a rir. Sabia que seria fácil rir aos
outros animais; porém só o homem podia exprimir a alegria pelo riso que é a
sonoridade d´alma. (ALMEIDA, 2004, p.136-137)
ganha esta expressão quando o objeto produzido está voltado para a conscientização que,
dialeticamente liga o particular da categoria com o universal da classe e da sociedade que vai
se constituindo. Assim é que Menegat (2002) entende essas relações:
Nós tratamos de arte porque ela faz parte da cultura, ao fazer parte da
cultura, ela faz parte de uma práxis social, se ela faz parte de uma práxis
social, significa que a arte se desenvolve junto com as sociedades e junto
com as técnicas que produzem a vida social. Portanto, falar de arte é sempre
falar de uma expressão particular que pertence ao universal. (MENEGAT,
2OO2, p. 3)
Para tanto, entendemos que, era necessário verificar, através da pesquisa empírica, se os
sujeitos Sem Terra, ao desenvolverem suas existências nos assentamentos: desenvolviam
aprendizados políticos e culturais que se configurariam como cultura da organização? Em que
medida, a capacidade criativa que os levaram a ocupar a terra e a produzir alimentos estender-
se-ia também para a prática de organização social? Conscientes do fazer necessário, até que
ponto, os sujeitos Sem Terra elevariam as formas de consciência, política, histórica, artística etc.
quando organizassem o espaço de convivência com seu próprio esforço?
Em nossa experiência na luta social e no trabalho de base com os camponeses,
percebemos que, havia um importante aprendizado forjado nas experiências marcadas pelos
conflitos. A partir daí, procuramos investigar se a linguagem poética utilizada nos embates
(antes, durante e depois de realizados) se transformava em consciência de classe e em contínuas
produções literárias, como criações motivadoras de novas ações; ou se, com o passar do tempo,
as motivações decaíam e faziam retroceder o próprio nível de consciência ao nível anterior?
Partindo desses questionamentos, a pesquisa teve como objetivo compreender a relação
existente entre a luta social, a linguagem do sujeito que luta para conquistar os seus direitos de
sobrevivência, e a formação da sua consciência. Procuramos compreender como a linguagem
em prosa e verso permanece como aprendizado após a participação efetiva dos referidos sujeitos
nos diferentes tempos históricos? Como essa manifestação cultural se reproduz nas gerações que
vêm depois? Seriam os jovens, filhos dos sujeitos que conquistaram a terra, continuadores do
mesmo processo de objetivação da conquista da mesma?
Para responder aos questionamentos acima elencados, procuramos respaldar nossas
preocupações, considerando como objeto de pesquisa: “Linguagem em prosa e verso como uma
mediação para a formação da consciência”. Fundamentalmente, porque os Trabalhadores Sem
Terra, atualmente assentados, originários de diferentes pontos geográficos e categorias,
constituíram uma organização social e política reconhecida perante as instâncias da sociedade
local. Através da conquista da terra, conseguiram organizar o sistema de trabalho
12
1
Ludwig Wittgenstein, filósofo austríaco que viveu entre 1889-1951, contribuiu com tratados sobre lógica,
filosofia da linguagem e epistemologia. Dentre suas principais obras (publicadas após a sua morte) encontra-se A
Gramática Filosófica. Edições Loyola, 2003.
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2
O Estágio e a referida pesquisa foram realizados entre os meses de maio e julho de 2009, com jovens, filhos de
assentados, residentes no Assentamento 4045, desde 1987, o qual fica situado no município de Alcobaça, Estado
da Bahia.
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No Assentamento Quilombo II, a pesquisa foi realizada somente com os adultos, por
ser uma experiência mais recente, como enfocado anteriormente. No entanto, procuramos
saber sobre as mesmas questões formuladas para os adultos do Assentamento 4045, ou seja,
como as mediações literárias continuavam sendo utilizadas após o assentamento. Na análise
dos dados, constatamos que os problemas se repetiram, tendo em vista que o projeto político
do MST que os orienta possui os mesmos limites.
Durante o Estágio Supervisionado I, no Assentamento 4045, guiados pelo projeto “O
uso das diferentes linguagens como metodologia da formação da consciência com jovens do
Assentamento 4045”, fizemos várias apresentações teatrais, criamos peças sobre textos
poéticos, entre eles, a poesia de Patativa do Assaré, A Morte de Nanã. Os trabalhos foram
acompanhados de declamações e dança de capoeira. Participaram também das atividades
muitos adultos, pais e mães dos estudantes, participantes do Estágio. Na oportunidade,
analisamos coletivamente os conteúdos poéticos e aprofundamos a importância das diferentes
linguagens para melhorar a convivência social.
Ressaltamos que, participaram das oficinas do estágio anteriormente mencionadas,
cerca de 40 jovens, sendo que, 10 destes, por serem filhos, netos ou parentes dos primeiros
assentados foram entrevistados a partir de um roteiro com perguntas previamente elaboradas.
Todas as perguntas e respostas foram gravadas e, posteriormente transcritas. Depois de
sistematizadas, as respostas compuseram uma síntese na qual foram registradas em forma de
quadros comparativos que foram utilizados para a elaboração deste trabalho, os quais serão
apresentados no Capítulo 3 deste estudo.
Posteriormente retornamos ao Assentamento e, juntamente com as lideranças do
assentamento, selecionamos 10 representantes dentre os remanescentes das 150 famílias que
participaram da ocupação e ainda residem no assentamento. Dessa maneira foi que visitamos
e entrevistamos os sujeitos em suas casas, fazendo uma breve apresentação de uma ficha,
contendo as várias perguntas, informando que, a entrevista seria gravada e posteriormente
transcrita. Para fins de uso dos conteúdos, utilizamos, para a identificação, números e letras,
seguindo a ordem alfabética.
Da mesma forma fizemos no Assentamento Quilombo II, entrevistamos um
representante de cada núcleo, em que cada um deles já estava nomeado por uma letra na
ordem alfabética com apenas uma repetição de um dos núcleos. A diferença para a seleção
dos 10 entrevistados se deu justamente porque o critério adotado foi que o entrevistado tivesse
algum grau de liderança no núcleo, este, em média, composto por 10 famílias. Embora no
assentamento a quantidade de famílias sejam 119, entrevistamos 10 de suas representantes.
15
linguagem criada e a utiliza para as relações sociais e de produção como algo dado, mas que
não é o único sujeito. Paralelamente, emerge na estrutura social, o “sujeito da linguagem”,
sendo aquele que utiliza a linguagem produzida por seres e relações anteriores, mas
acrescentam às palavras outros significados ideológicos, quando não inventa as suas próprias
palavras. Nesse sentido, percebemos que a linguagem é um fenômeno social e como tal ela se
apresenta também como trabalho linguístico. Inicialmente, a linguagem aparece como fator
de produção, depois como trabalho improdutivo, pois como a linguagem apenas acompanha
as mercadorias produzidas, dando a elas características verbais, artísticas e por já estar
incluída no valor-de-troca da própria mercadoria, não acrescenta valor e, em um terceiro
sentido, quando a própria linguagem se torna mercadoria, por trazer em si um valor-de-troca.
A descoberta do Ethos da linguagem que se revela como conteúdo da relação moral entre o
comunicador (orador) e o destinatário, possibilitou-nos aplicar os silogismos e compreender o
funcionamento da lógica poética.
No terceiro capítulo, “As mediações no interior da totalidade”, tratamos dos dados da
pesquisa de campo, onde entramos em contato com cerca de 30 entrevistados, trabalhadores,
lideranças e alunos das escolas de assentamentos. Nesse capítulo, procuramos relacionar as
mediações com as questões levantadas no projeto de pesquisa.
Nas Considerações Finais buscamos evidenciar os resultados da pesquisa procurando
sintetizar, quais de fato, foram os elementos centrais das contradições, buscando sempre
vincular as duas partes do conhecimento estabelecidas pela categoria dialética da aparência e
da essência. Verificamos que, a linguagem em prosa e verso pode contribuir com a formação
da consciência se esta estiver vinculada a outras mediações que são estruturais na vida social,
como por exemplo, a organização social, o espaço cultural e a participação das atividades.
No desenvolvimento da pesquisa, interessamo-nos em compreender a mediação da
linguagem literária em prosa e em verso, na relação com a consciência, a luta, a organização
social e a política. Mas, acima de tudo, procuramos investigar como essa consciência pode ser
ampliada e direcionada para a qualidade da práxis.
Compreendemos que, são as necessidades humanas que levam os seres sociais a
buscarem soluções de seus problemas: “o homem é o ser que tem de estar inventando ou
criando constantemente novas soluções” (Vásquez, 2007. p. 267). Foi nesse constante
inventar e reinventar que, se desenvolveu também a práxis da pesquisa, ou seja, a reflexão e
ação se combinaram para suprir as necessidades da finalidade do conhecimento.
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Este estudo acadêmico torna-se relevante, no sentido que nos permite compreender
certos fenômenos na organização social que permeiam as contradições revelando avanços e
também retrocessos que, apesar de terem ocorrido no particular, dão sinais das profundas
implicações universais que há na formação, estruturação e desenvolvimento do projeto
organizativo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
18
CAPÍTULO I
O MOVIMENTO DE FORMAÇÃO DO SER E DA CONSCIÊNCIA
SOCIAL
[...] A história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e história
dos homens. Os dois aspectos, contudo, não são separáveis; enquanto existirem
homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionarão
reciprocamente [...] (MARX; ENGELS [1845] 1986, p. 23-24)
Como podemos ver na epígrafe deste capítulo, é estreita a relação entre a história da
natureza e a história humana. Na fase pré-política da sociedade (antes do surgimento da
propriedade privada), o “homem” viveu um estado de natureza, partilhando das combinações
químicas, biológicas e físicas. O ser social e histórico sobrepôs-se à espontaneidade natural e
a ultrapassou. Desafiou os próprios limites enquanto espécie através do processo de
objetivação de si mesmo.
O materialismo histórico comprova enfaticamente que
[...] o primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência de
indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois a organização
corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da
natureza.” (MARX; ENGELS, [1845] 1986, p. 27).
Ao perceberem que não poderia haver história humana sem os seres humanos, teriam
os filósofos descoberto o óbvio? Não propriamente. Faltava acrescentar no tratado, o
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acima de tudo, ligado às percepções que nossos órgãos sensoriais recebem do mundo
externo.” (IASI, 2007, p. 14). É perceptível que o homem, no processo de desenvolvimento
da linguagem, conseguiu nomear os objetos a partir do reconhecimento de suas existências.
Ao nomeá-los, apropriou-se de maneira superficial de sua materialidade, dando a eles funções
apropriadas.
O ser consciente é aquele que reconhece e se relaciona com outros seres e objetos da
natureza. Ele é capaz de produzir novos conhecimentos superficiais e também essenciais.
Mas não se trata de processo simples, haja vista que o cérebro humano é constituído de
matéria que se transforma no decorrer do tempo e potencializa-se para as diferentes
exigências que as necessidades físicas e espirituais oferecem para o indivíduo e a sociedade
resolverem.
A psicologia contemporânea procura compreender a formação psicológica do
indivíduo na interação entre a matéria orgânica (o cérebro) e o mundo exterior (a sociedade):
complexas relações que há entre a “consciência em si” e “consciência para si” estabelecidas
por Marx:
[...] Portanto, em sua luta revolucionária, não basta o proletariado assumir-se
enquanto classe (consciência em si), mas é necessário se assumir para além de si
mesmo (consciência para si). Conceber-se não apenas como um grupo particular
com interesses próprios dentro da ordem capitalista, mas também se colocar diante
da tarefa histórica da superação dessa ordem. (IASI, 2007, p. 32).
Para que a atividade humana seja uma objetivação, é necessário que a atividade
humana sintetizada nesse resultado seja apropriada juntamente com ele. Ou seja,
outro traço definidor de uma objetivação é o de que sua apropriação implique em
apropriação da atividade social que ela sintetiza. Um produto da atividade humana
que não seja mediador entre a atividade dos homens, não pode ser considerado uma
objetivação. Ou, em outras palavras, toda objetivação é, ao menos potencialmente,
objeto de apropriação. (DUARTE, 1999, p. 135)
Isso não significa dizer que as objetivações feitas pelas gerações anteriores sejam
apropriadas pela totalidade das gerações vindouras. Até aqui, não consideramos as diferenças
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na sociedade por classes sociais, no sentido de que o objetivo era precisar o processo de
desenvolvimento humano enquanto gênero. Nesse momento, é fundamental introduzir o
elemento do conflito como categoria de análise do desenvolvimento como fator determinante
da objetivação política.
O materialismo histórico (idealizado por Marx e Engels) concebe a história da
humanidade como o resultado da luta de classes. No entanto, o confronto entre as classes, não
ocorreu de forma unilateral, mas na universalidade da constituição da sociedade por meio dos
modos de produção de cada época. De tal forma que, os conflitos de classes só existem em
uma sociedade de classes. Não cabiam, por exemplo, no “comunismo primitivo” porque as
classes sociais ainda não existiam. Mas isso não significa dizer que não existiam
contradições. Ao produzirem excedentes, determinadas tribos conflitaram com outras que
sentiam carências e necessidades de sobrevivência. Os conflitos ocorriam, normalmente,
entre as tribos que tinham estoques e procuravam se defender daquelas que, por não terem, se
armavam para expropriá-los.
A ampliação dos conflitos pela expropriação dos alimentos levou à prisão e
apropriação do ser humano como objeto de trabalho. Originou, como destacou Sérgio Lessa
(2008, p. 55), a “exploração do homem pelo homem”. Com o aumento de trabalhadores
escravizados, as tribos escravocratas, além de terem dado origem às classes sociais, tiveram
de organizar o Estado, com uma enorme quantidade de servidores, para vigiarem e
coordenarem o funcionamento “harmonioso” das sociedades. Tais sociedades para se
manterem, tiveram que estabelecer o sistema de cobrança de impostos. Portanto, a
propriedade de trabalhadores escravizados avançou e deu origem à propriedade privada da
terra, florestas e demais bens da natureza.
À proporção que as forças produtivas evoluem, as relações sociais tornam-se mais
complexas. Os modos de produção sucedem-se pelas contradições que se estabelecem e pela
intervenção organizada das forças sociais. Até o modo de produção capitalista, a relação
entre indivíduo e sociedade era imprescindível, pois um e outro eram partes da mesma
constituição.
Com o surgimento e desenvolvimento do capitalismo, esse tipo de conexão
indivíduo-sociedade é rompido. A vida social passa a ser predominantemente
marcada pela propriedade privada, e a razão da existência pessoal deixa de ser a
articulação com a vida coletiva, para ser mero enriquecimento privado. O dinheiro
passa a ser a medida e o critério de avaliação de todos os aspectos da vida humana,
inclusive os mais íntimos e pessoais. (LESSA, 2008, p. 80-81)
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O indivíduo não pode se objetivar sem que se aproprie das objetivações genéricas.
Antes de mais nada ele precisa se apropriar das objetivações genéricas em-si que
constituem a base (não o sentido econômico) da vida social. Sem apropriar-se da
linguagem, dos objetos e dos usos e costumes ninguém pode existir enquanto ser
humano. (DUARTE, 1999, p. 138)
Não é a criança que inventa a família, a função dos pais e dá nome aos objetos. Não é
o educando que estrutura a escola, faz os planos de aula, escolhe o diretor e faz o calendário
escolar. Também não será enquanto indivíduo, o crente que inventará a religião, os
sacramentos e as normas morais. Não é o operário que inventa o trabalho estruturado em
empresas, com patrões e empregados, que obrigam a receber salário e fazer contratos, nos
quais a disciplina e o empenho são fundamentais para garantir o emprego. Ou seja, o ser
individual, para se fazer um ser social, necessita ir apropriando-se daquilo que já foi
objetivado por outros indivíduos que o antecederam.
O ID do indivíduo, ao nascer, compreende ingenuamente que o “mundo” foi
organizado como tal para ele. Todas as coisas e as pessoas existem para servi-lo, de modo que
é permitido a ele escolher, aproveitar ou descartar como se a realidade fosse um brinquedo.
Aos poucos, o EGO irá mostrar-lhe que não é bem assim. Ele terá que disputar entre todos
para ter o seu lugar.
A experiência e a superação da visão da aparência levam o ser social a se inteirar das
contradições e consequências do movimento cotidiano. Surgirá aí aquilo que foi denominado
anteriormente de “consciência para-si”.
O contato com a ciência, a filosofia e a arte, direta ou indiretamente, permite que o ser
social, portador da consciência em si, que viveu favorecido pela objetivação dos outros, sem
deixar de apropriar-se de outras objetivações, supere a espontaneidade da consciência.
Nesse momento, o indivíduo percebe que não nasceu classe, mas precisa tornar-se
classe na reunião da coletividade contra o seu oposto.
A consciência para-si não elimina os aspectos da consciência em si que foram
assimilados. Não modifica o nome das coisas, nem destrói a família de origem. O indivíduo
não deixa de ir ao trabalho, tampouco deixa de fazer o que fazia antes. Mudam-se, apenas, as
perspectivas e domesticam-se as ilusões.
O ID é forçado a reconhecer que a coletividade tem importância, sem ela não terá
garantido a satisfação dos desejos. Como a consciência é individual, nem todos os indivíduos
conseguem chegar às mesmas conclusões ao mesmo tempo. Nem todos são capazes de
escapar da teia ideológica da classe dominante e desvendar os enleios da própria alienação.
Localiza-se aí o valor do “para-si” com os outros. Os que alcançam mais profundamente o
nível de consciência podem contribuir para que os outros cheguem ao patamar desejado, na
consciência para-si.
A confiança aparece como fator que interliga os seres da mesma classe, buscando
soluções para questões de interesses comuns. Assim, mesmo sem compreender todas as
contradições genéricas, enormes contingentes humanos se empenham em buscar, de maneira
coletiva, as mesmas soluções que supostamente somente poderiam ser dadas por seres
conscientes.
milhões de anos deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente
para manter os homens vivos. (MARX; ENGELS [1845] 1986, p. 39)
Visto dessa forma, é preciso depreender que os filósofos não reduzem a história
humana à produção da subsistência. Eles percebem que os homens fazem surgir outras
necessidades depois de satisfazerem as primeiras. Nesse sentido, podemos concluir que o
trabalho nunca poderá deixar de existir, porque as novas necessidades exigirão a sua
permanência para supri-las. Ao verificar a existência da necessidade, o ser humano, por ter
desenvolvido a capacidade de pensar, propõe-se a buscar soluções para tal necessidade. Nesse
processo, as respostas serão sempre os resultados das condições encontradas no próprio meio.
Para enfrentar o problema da necessidade, o ser humano utiliza a imaginação para
antecipar na idéia daquilo que vai fazer ou objetivar: “Essa antecipação na consciência do
resultado provável de cada alternativa possibilita às pessoas escolherem aquela que avaliam
como a melhor. Escolha feita, o indivíduo leva-a a prática, ou seja, objetiva a alternativa”
(LESSA, 2008, p. 18). Perante as várias alternativas imaginadas, o ser executante não poderá
realizá-las ao mesmo tempo, terá que escolher e definir-se por uma delas. Escolherá aquela
que lhe parece mais lógica. Dessa prévia ideação depende o resultado do esforço
empreendido, que poderá suprir a necessidade tanto de forma parcial como total, ou, até
mesmo, ampliá-la. Mas o pensar e o fazer para objetivar soluções necessitam de tempo. O
tempo garantirá o aperfeiçoamento das características do ser social, que cresce em qualidade
de conhecimentos e de habilidades. As habilidades mentais e físicas desenvolvem-se através
do trabalho. É através dele que ocorrem as objetivações. Ele é o processo entre homem e
natureza, assim afirma Marx, e se coloca como condição fundamental para a construção da
vida social.
Ao pensar, fazer, repensar e refazer, o ser social habilita-se para enfrentar as novas
contradições. O mesmo não pode ocorrer com os demais seres vivos, pelo simples fato de que
eles não têm a capacidade de antecipar na mente o que vão fazer:
Diante disso, depreendemos que se o pior arquiteto é melhor do que qualquer abelha,
as relações entre o ser humano e a natureza são muito mais complexas do que as estabelecidas
pelos insetos e animais. Esta superioridade dá-se em função da capacidade ideativa e
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inventiva do trabalhador. Ele inventa tanto os objetos que necessita para suprir as carências
físicas como os instrumentos que os produzem. Ao produzir os próprios meios de vida e os
instrumentos que os produzem, o ser social objetiva ideias e com isso organiza a própria
cultura. A cultura apresenta-se como o resultado das experiências feitas em continuação na
vida social.
Assim, um objeto, depois de inventado e colocado à disposição de uso, universaliza-
se, ganha dimensões reprodutivas, a partir das mudanças que sofrerá devido à necessidade de
outros seres, fundamentalmente, como meio de trabalho. No dizer de Marx (1996, p.203): “a
coisa de que o trabalhador se apossa imediatamente [...] não é o objeto de trabalho, mas o
meio de trabalho”. Os mecanismos que se estabelecem nessas relações fazem com que outros
indivíduos passem a produzir objetos semelhantes ao que foi feito anteriormente. Além do
mais, o meio de trabalho ou instrumento serve para inspirar a produção de outros
instrumentos diferentes na forma, mas semelhantes nas funções que desempenha nas sínteses
feitas pela capacidade humana.
O trabalho converte uma idéia que apenas existe na consciência, em um objeto. Em
outras palavras, o machado é uma síntese entre o mundo natural (a pedra e madeira),
que existe independentemente da consciência, e a idéia de machado. Esta síntese é
fundada pelo trabalho: ela depende da ação de, ao menos um indivíduo. Sem ela, o
machado não existiria. Em linguagem filosófica dizemos que o machado é a unidade
sintética da prévia ideação do machado com a madeira e a pedra. (LESSA, 2008, p.
30)
O machado enquanto síntese não é o fim das ideações, a partir do uso nas práticas
sociais, ele vai favorecer outras concepções. No manuseio, o trabalhador percebe que esse
instrumento de trabalho pode ser usado com outras finalidades que vão além daquelas
determinadas pela primeira síntese. Ao se colocar o objeto inventado à disposição da
coletividade, a necessidade de uso inspira o surgimento de objetos semelhantes, fazendo com
que a invenção ganhe dimensão universal. O machado ao se universalizar enquanto tal vai
estimular o surgimento de uma infinita variedade de instrumentos cortantes, que se
complementam ao longo da história pelo uso.
Diante do exposto, concluímos que a superioridade do homem em relação à abelha se
dá não somente porque o primeiro inventa o instrumento de trabalho, repassando como síntese
para a sociedade, mas também porque ele repassa a maneira de uso.
Tendo em vista que tanto as necessidades individuais como sociais necessitam de
invenções, o indivíduo inserido em uma determinada sociedade, ou grupo social, tende a
inventar para o uso de todos. Se um objeto inventado não tiver serventia, será desprezado
pela coletividade. No caso de o objeto inventado não ser usado porque a sociedade
28
tratando de um ser que reflete e pratica, é considerado um ser da práxis. Sendo um ser que
pensa e pratica, pode optar por fazer ou não, escolher uma alternativa ou outra.
Diferentemente dos animais que agem sob o domínio do instinto, o ser humano opta
conscientemente. O homem faz da atividade vital o objeto da vontade e da consciência.
Possui uma atividade vital consciente. Por isso ele é um ser genérico, “ser que considera o
gênero como seu próprio ser”. (MARX, 1964, p. 164)
Para Marx, a ação sobre o mundo objetivo é que permite ao homem expressar-se como
um verdadeiro ser genérico. A produção é sua expressão genérica. Sendo assim, objetivando
suas idéias através do trabalho, ele se reproduz física e intelectualmente, “[...] na medida em
que o trabalho alienado subtrai ao homem o objeto da sua produção, furta-lhe igualmente a
vida genérica, e sua objetividade real como ser genérico, e transforma em desvantagem a sua
vantagem sobre o animal.” (MARX, 1964, p. 166)
A práxis, portanto, é a ligação consciente entre o indivíduo e a natureza, no fazer
consciente. Ao ser impedido de compreender e se apropriar do objeto produzido, o indivíduo
se aliena dele e reduz a capacidade criativa, diminuindo com isto também a sua qualificação
de gênero. A práxis é uma categoria de referência fundamental na filosofia, pois, além da
função de interpretar o mundo, contribui para apontar os caminhos das transformações. Foi
assim que Marx e Engels ([1849] 1986, p. 128) concluíram com a elaboração da décima
primeira tese sobre Feuerbach que: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de
diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo”.
A práxis no cotidiano pode estar nos grandes movimentos de transformação como
também nos pequenos fazeres, que conduzem à produção dos meios de vida. Por isso é que
ela não pode ser considerada uma simples atividade da consciência, do pensar e refletir sobre
as coisas, mas sim como atividade reflexiva e, ao mesmo tempo, produtiva de objetos de uso,
trabalho e lazer do próprio ser social.
Explica Vázquez (1968a) que a práxis na Grécia antiga tinha outro entendimento,
justamente, porque o trabalho era concebido como uma atividade indigna para os homens
livres; a labuta era própria dos escravos. O que interessava aos gregos era o domínio do
universo humano, o desenvolvimento da polis e do ser político. Para os gregos, o
aprimoramento do homem dava-se “através da isenção de qualquer atividade prática material
e, portanto, separava a teoria, a contemplação e a prática” (VÁZQUEZ, 1968a, p. 17). Para os
gregos, a práxis não tinha os sentidos que lhes são atribuídos na sociedade contemporânea,
como:
30
A relação entre teoria e práxis é para Marx teórica e prática; prática, na medida em
que a teoria, como guia da ação, molda a atividade do homem, particularmente a
atividade revolucionária; teórica, na medida em que essa relação é consciente.
(VÁZQUEZ, 1968a, p.117)
Essa maneira de interpretar leva a integrar o pensar com a realidade. O fazer, nesse
sentido, dá-se através do ser consciente, que atua sobre a mesma realidade existente, mesmo
sem o seu conhecimento. As transformações da realidade exigem condições propícias e os
meios. Uma força que, no caso da sociedade universal, é compreendida como as classes
sociais. No dizer de Vázquez (1968a) o elemento diferenciador que conduz ao desfecho da
interpretação é a práxis. De modo que, “toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é
práxis” (VÁZQUEZ, 1968a, p. 185).
Para ele, a atividade é o conjunto das ações ou atos que modificam uma matéria. Mas,
onde está a diferença de ser a atividade sim ou não uma práxis? Ambas são atividades, porém
somente aquela que tem finalidade pré-estabelecida se configura como práxis. “Pelo fato de
propor-se objetivos, o homem nega uma realidade efetiva, e afirma outra ainda não existente”
(VÁZQUEZ, 1968a, p. 189). É essa prefiguração que diferencia a atividade humana da
atividade animal.
Voltamos ao ponto de origem da formação do ser social. As necessidades reais
determinam as respostas a serem dadas pelo ser social, que, ao estabelecer sobre a realidade,
uma finalidade, antecipa em sua consciência o resultado que pretende realizar. É no decorrer
desse fazer e fazer-se que se configura o desenvolvimento da práxis como ação e reflexão
consciente. No entanto, para que seja realmente práxis, entre o pensamento e a ação, há que
existir a finalidade estabelecida pela prévia-ideação e comunicada através da linguagem
daquilo que se quer alcançar. Na medida em que o ser humano não estabelecer, este processo
de relações em si, seja pela sua “inutilidade” produtiva, seja pela alienação no processo de
produção, regride enquanto gênero.
escravizados. Para Aristóteles, a ação que cria um objeto exterior ao sujeito não é práxis, é
poiésis. “Nesse sentido, o trabalho do artesão é uma atividade poética e não prática”
(VAZQUEZ, 1968a. p. 5). No entendimento de Leandro Konder (1992), ambos possuem
conhecimentos:
Tanto a práxis como a poiésis exigiam conhecimentos especiais, adequados à
efetivação de cada uma delas; mas esses conhecimentos permaneciam presos aos
objetivos de suas respectivas atividades. Para serem úteis, ficavam sendo, de algum
modo, conhecimentos limitados. Por isso, Aristóteles foi levado a conceber um
terceiro tipo de atividade, cujo objetivo era exclusivamente a busca da verdade: a
theoria. Existiam, então, três atividades humanas fundamentais: a práxis, a poiésis e
a theoria. (KONDER, 1992, p. 98)
Segundo os gregos, a arte era a imitação do real. A imitação aplicava-se aos atos das
personagens que variavam entre boas e más. “Daí resulta que as personagens são
representadas ou melhores ou piores ou iguais a nós”. (ARISTÓTELES, 2006, p. 26). A
representação do real se materializava nas expressões da pintura, na dança, nas obras de prosa
e verso, na tragédia e na comédia.
A Mimesis de Aristóteles foi mal traduzida para outras línguas e, ao invés de
“imitação”, seria “recriação”. “A arte recria o princípio criador das coisas criadas” (BOAL,
1991, p. 20). Aquilo que para os gregos era a recriação pela poiésis, para Marx dava-se
através da práxis que interliga as duas atividades e, acima de tudo, contempla o belo como
elemento importante que contém em si a finalidade. A projeção teleológica do objeto agrega
os aspectos estéticos como características criativas orientadas pelas leis da beleza.
Embora Marx não especifique quais são as “leis da beleza”, compreendemos que sua
preocupação não é apenas apresentar um ser humano que produz para a subsistência, mas um
ser que evolui para produzir com arte. Resta saber como poderia ser o homem criador e
recriador da realidade se as relações de produção o alienavam, colocando-o na produção em
escala e separando-o da obra produzida.
Pelo acúmulo de conhecimentos que Marx detinha sobre o ser humano em ralação as
demais espécies, compreendia que o poder criador dos homens (a capacidade de inventar e
transformar) tinha, nos objetos de trabalho, a expressão real de sua capacidade empregada. E,
ao perceber que, no capitalismo as pessoas produziam involuntariamente, concluiu que algo
havia sido quebrado entre a capacidade criativa e o resultado concreto. Ao invés do livre
32
fazer, o próprio ser vendia a sua própria força como uma mercadoria qualquer. Daí chegar à
conclusão de que a alienação não se manifestava apenas no resultado, mas também no
processo da produção, ou seja, no interior da própria atividade produtiva (MARX, 1964). A
alienação impede ao trabalhador criar por conta própria, estimula a “mortificação” do próprio
trabalhador.
Ao se referir ao trabalho alienado, Marx (1964) diz que o trabalho externo, o trabalho
em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de mortificação.
Sacrifício e mortificação são características que reduzem o sentido de gênero do ser humano.
Mortificar equivale a matar a criatividade. Deixar de forjar o belo. Deixar de crescer em si a
capacidade de reprodução e recriação de si e da realidade.
O belo para Marx (1964) deveria constituir-se como parte do ser social emancipado e
portador de características estéticas. Uma sociedade melhor com seres humanos livres não
poderia ser carente de beleza. Olhando de outra maneira, ninguém se propõe a criar o feio.
Está implícito na essência humana o gosto e a busca pelo belo de forma particular ou
universal. O cuidado com a própria espécie já é parte e incorpora o belo pelo instinto animal;
no homem essa dimensão ganhará o nome de arte.
O conceito de arte e técnica tinha o mesmo significado na antiguidade grega e romana.
Para os gregos a poiésis era a poética, o fazer com habilidade e agilidade, que, tanto servia
para as expressões laborativas como produtivas, (ars (arte) no latim corresponde ao termo
grego Techene (técnica) no grego).
Marilena Chauí (2000) verificou através de estudos a evolução e a separação das
finalidades das técnicas mecânicas e das artes. Segundo ela, entre os séculos XVII e XVIII,
com o desenvolvimento do capitalismo, distinguiram-se as finalidades das artes mecânicas -
que tinham como princípio ser úteis à sociedade, em áreas como agricultura, medicina,
culinária artesanato – a arte do belo expressa na pintura, escultura, poesia, música, teatro,
dança. A distinção entre artes de utilidade e artes da beleza acarretou uma separação entre
técnica (o útil) e arte (o belo). A idéia da beleza possibilitou o surgimento das sete artes ou
das belas artes. Nesse contexto, o artista é visto como gênio criador, dotado de inspiração, e o
técnico apenas como aplicador de regras.
33
Tal divisão não significa que na prática haja separação entre arte e técnica, uma vez
que a busca do belo e o fazer estético fazem parte da ontologia do ser social, ou seja, as
qualidades técnicas e as habilidades artísticas encontram-se combinadas na práxis.
Fundamentalmente, as atividades são desenvolvidas pelos mesmos órgãos, pelas mãos e,
segundo S. Tomás de Aquino, organum organorum (órgão dos órgãos), pelo cérebro onde se
estabelece a razão. Enfim, a arte nos primórdios era considerada uma atividade coletiva:
A arte, em todas as suas formas – era a atividade social par excellence, comum a
todos e elevando todos os homens acima da natureza, do mundo animal. A arte
nunca perdeu inteiramente esse caráter coletivo, mesmo muito depois da quebra da
comunidade primitiva e da sua substituição por uma sociedade dividida em classes.
(FISCHER, 2002, p. 47)
camping, tem de pagar pelo espaço. Assim seu ócio está a serviço do consumo estabelecido
pelo mercado que carrega consigo as idéias da classe dominante de cada época. É aí onde
podemos perceber que o belo “manipulado” entra como incentivo ao consumo, influindo para
que sejam compradas e não criadas as alternativas de sobrevivência. Diante disso,
questionamos se a arte e a literatura são meros reféns dos esquemas dominantes?
Em todas as épocas, a arte e a literatura estabeleceram íntimas relações com o
conhecimento e a vida social. Podemos observar pelas pesquisas que, o filosófico, o literário e
o histórico iniciaram-se na Grécia. “Na verdade, os gregos produziram duas das maiores
epopéias, e, no teatro, só foram talvez igualados na Era elisabetana por Shakespeare”.
(GONÇALVES;BELLODI, 2005, p. 31).
Sócrates considerava que embora a arte fosse uma imitação defeituosa da ideia, (assim
como o objeto depois de pronto, não reproduzia fielmente a ideia que se tinha dele) cumpria a
função de educar os cidadãos. A literatura, especificamente, tratava de imitar os seres e as
ações do mundo real. Já Platão, por confiar ainda mais na força das ideias, afirmou que a arte
estava duplamente distante da realidade, isto porque, se o ser já era a imitação primeira da
ideia de homem, a arte criada por ele era uma segunda imitação. Por isso, a obra era falsa e
maléfica. Aristóteles seguiu outro caminho e acabou percebendo os aspectos positivos da
imaginação. Defendeu então que a poesia era uma representação artística, nela encontrava-se
um saber filosófico ultrapassando os aspectos particulares, estendendo-se para o universal,
possivelmente antecipando o que viria acontecer. O retrato narrativo fiel do que de fato
aconteceu cabia ao historiador e não ao poeta.
[...] sendo o poeta um imitador, como o é o pintor ou qualquer outro criador de
figuras, perante as coisas será induzido a assumir uma das três maneiras de as imitar:
como elas eram ou são, como os outros dizem que são ou como parecem ser, ou
como deveriam ser. (ARISTÓTELES, 2006, p. 88)
Os romanos por sua vez dedicaram-se mais diretamente à retórica. No século I a.C,
Cícero destacou-se como o principal orador de Roma. Para ele, a oratória era mais do que um
conjunto de regras; exigia um conhecimento geral sólido principalmente da filosofia e do
direito, acompanhada de uma capacidade de elocução. Nesse mesmo período, Quintiliano
chegou a produzir um tratado de retórica. Para ele, era preciso escolher bem as palavras. No
entanto, o estudo deteve-se na importância do uso das metáforas, metonímias, hipérboles e
ironias.
Na Idade Média, conforme Gonçalves e Bellodi (2005), o pensamento teológico
predominou. Nele, o homem e a natureza são, igualmente, criações divinas. Foi quando os
padres da Igreja encarregaram-se de tratar das questões da estética. Tanto para Santo
Agostinho, como para São Tomás, o Belo levava à verdade, porque a verdade é Deus. O belo
e o bem estão ligados ao conhecimento. Eles estabeleceram uma relação direta com Platão
que defendia a origem superior da ideia. A arte para os padres da Igreja, embora num sentido
moralista, ensinava, aperfeiçoava, corrigia, elevava e sublimava. Nesse contexto, destacam-se
também, segundo Gonçalves e Bellodi (2005), Dante e Petrarca, que são vistos como
precursores do movimento da renascença. Dentre as contribuições de Petrarca encontra-se a
invenção do soneto como forma poética. Por considerarem a arte como manifestação do
divino, os pensadores da Idade Média incentivaram o desenvolvimento das artes plásticas (a
pintura e escultura), que possibilitava os ensinamentos às grandes massas de analfabetos,
substituindo a narrativa verbal. A arte foi, assim, colocada a serviço do poder político e da
religião.
Em geral o período medieval é visto como “uma longa noite de mil anos”, onde pouco
se criou. Há discordâncias sobre o assunto.
[...] De forma alguma a idade média foi um período obscuro e improdutivo. Muito se
fez, muito se estudou, muito se criou. Mas também é preciso reconhecer que, na
idade média, as sociedades européias giraram em torno da Igreja Católica e do
Cristianismo: a fé cristã passou a ser o principal guia da existência humana, a Razão
perdeu sua posição de condutora privilegiada do homem. (CORTELLA, 1988, p. 15)
37
os sentimentos podiam ser descritos. Nesse período, temos, ainda, o simbolismo que prezava
pela musicalidade dos versos.
A intensa criação cultural, segundo Antonio Cândido (2005, p. 181), proporcionou um
fenômeno que se pode chamar de “aceitação da cultura em geral, da literatura em particular,
pelos setores instruídos das classes dominantes e das camadas médias”. Os escritores passam
a ter aceitação, juntamente com sua obra como parte integrante da sociedade. A confirmação
disso está na criação da Academia Brasileira de Letras em 1897, como fator determinante da
oficialização da literatura. Para Antônio Cândido, o fato de os autores se tornarem
legitimados, trouxe vantagens e desvantagens, tendo em vista que ao tornar a literatura
reconhecida, dava-lhe o status oficial, incorporando-a aos ideais da classe dominante e
gerando o academismo.
Impulsionado pelo avanço da urbanização e procurando incorporar-se à velocidade do
mundo contemporâneo, a primeira fase do movimento Modernista (1922-1930) surge com a
realização (entre 13 e 17 de Fevereiro) da Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Os
modernistas com muita irreverência e ironia pregaram a livre expressão e a desobediência às
formas e às normas gramaticais nas produções literárias.
Naquele momento no contexto político, o movimento operário atuava intensamente e,
sob forte repressão, criou o Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1922.
Além das produções literárias, as musicais, pictóricas e arquitetônicas destacaram-se
na Semana de Arte Moderna. Na literatura apareceram com vigor: Mário de Andrade, Oswald
de Andrade e Ronald de Carvalho.
Na segunda fase do modernismo no Brasil (1930-1945), o contexto sócio-econômico é
ainda mais perverso. A crise de 1929, provocada pela queda da Bolsa de Nova York, fez com
que o preço do café despencasse, agravando, assim, a crise política, levando a realização do
que se chamou de “revolução de 1930”. Mesmo assim, até o final do período, a instabilidade
política foi intensa.
A universalização dos temas poéticos e a incorporação definitiva do verso branco
ganham força nesse período. Embora alguns autores, como é o caso de Graciliano Ramos,
atenham-se ainda a temas regionais, eles acabam inovando na aproximação do linguajar
brasileiro enriquecido pelas ideias declaradamente socialistas. A realidade nordestina
(materializada na seca, cangaço, migração e coronelismo) ofereceu elementos para o
enriquecimento da linguagem em versos e prosas de nossos escritores.
39
Desde o século XIV vigorou, a partir da Inglaterra de que a literatura em sua essência
se relacionava puramente com a escrita. A raiz da palavra vem do latim: Littera, ou uma letra
do alfabeto, significando, uma situação de leitura ou ser capaz de ler. A nomenclatura
posteriormente evoluiu para Litterature, substituindo de forma especializada as definições
44
anteriores da retórica e da gramática. A oralidade por sua vez, não detinha status de literatura,
manteve-se enquanto folclore ou como manifestações de grupos minoritários no exterior da
história oficial.
A literatura por sua vez a partir do século XVII passou a ser reconhecida e
considerada. “Ela se tornaria uma categoria mais geral do que Poetry ou a palavra mais antiga
poesy, que eram termos gerais para a composição imaginativa, mas que em relação à
literature, tornaram-se predominantemente especializadas a partir do século XVII.”
(WILLIAMS, 1977, p. 53).
Até o século XVIII predominou esta visão da literatura ser apenas “experiência de
leitura” quando despertaram três tendências de pensamento: primeira, uma passagem do
“conhecimento” para o “gosto” ou “sensibilidade”, segundo, a crescente especialização da
literatura através de obras “criativas” e de “imaginação”, terceiro, o desenvolvimento do
conceito de “tradição” de literatura nacional. Conforme Williams (1977), o marxismo
reconhece a literatura como uma categoria histórica social. Há muitos aspectos a considerar
quando se trata de situar as obras literárias e o seu tempo, compreendendo o que é criação e
visão autêntica.
(1968b), as respostas devem ser buscadas nas relações econômico-sociais que o capitalista
encarna que prejudicam o artista e o público.
Ao primeiro porque encurta o tom de sua voz, o raio de ação de sua palavra e, deste
modo, fecha-lhe a porta para chegar a um público cada vez mais amplo; ao público
porque mantém muitos homens numa atitude coisificada, alienada, que lhes impede
o gozo apropriado de um verdadeiro produto humano como é a obra de arte.
(VÁZQUEZ, 1968b, p. 294)
poeta, constatamos que embora conheça muito precariamente as normas da literatura erudita,
traz arquivado na memória uma biblioteca ambulante das vivências do sertão cearense. Por
usar prioritariamente a oralidade, nem sempre os artistas populares tiveram a compreensão e
receberam a devida atenção de intelectuais da academia. No entanto, a maneira de produzir e
de divulgar as produções poéticas encontrara meios de chegar, com uma linguagem matuta, às
feiras e envolver-se com a cultura popular.
Gilmar de Carvalho (2002), ao fazer estudos sobre a poesia de Patativa do Assaré,
relata as regressões que precisam ser feitas nas diretrizes metodológicas. Nem sempre o que
se considera justo aplica-se em qualquer realidade. Pelo caminho inverso também pode se
chegar à verdade. Ao perceber que Patativa em suas entrevistas alinhavava as respostas com
poesias de sua autoria, Gilmar de Carvalho se deu conta de que aquele estilo era de natureza
diferente daquela em que o entrevistador expõe racionalmente o conteúdo pedido: “Cheguei,
grosseiramente, desligar o gravador, por alguns instantes. Depois compreendi que Patativa se
concretiza na performance e que o que ele tem a dizer, e que lhe parece relevante, está nos
poemas.”(CARVALHO, 2002, p. 11).
Para o autor, Patativa é a voz que anuncia e concilia natureza e cultura, engenho e arte,
razão e emoção. A oralidade através da poesia e outras expressões como o folclore (Folklore,
de Folk, “Povo” e Lore “saber”), designando desde o século XVIII, “espírito, poesia, canção
do povo”, desenvolve as produções populares, junto à organização social e política de um
grupo social, que são imprescindíveis na literatura popular.
Literatura oral, para Cascudo é uma denominação dada em 1881 por Paul Sébillot3.
Deu-se conta o autor que, paralelamente à literatura escrita, circulava publicamente pela
oralidade, os provérbios, adivinhações, contos, frases-feitas, orações, cantos. (CASCUDO,
2006)
As manifestações da oralidade, mais adiante fortalecidas pela inclusão das danças de
roda, cantigas de embalar, aboios, anedotas, lendas etc., no Brasil, ganharam valorização por
meio dos livrinhos impressos vindos da Espanha e de Portugal, já existentes naquelas terras
desde o século XIII, que se mantêm vivos através da literatura oral.
Com ou sem fixação tipográfica essa matéria pertence à Literatura Oral. Foi feita
para o canto, para a declamação, para a leitura em voz alta. Serão depressa
absorvidos nas águas da improvisação popular, assimilados na poética dos desafios,
dos versos, nome vulgar da quadra nos sertões do Brasil. (CASCUDO, 2006, p. 22)
3
Paul Sébillot, folclorista, pintor e escritor francês, nascido em 1843 e falecido em Paris em 1918.
48
As sociedades ágrafas são ricos depósitos de traduções orais. Não só elas, porém.
Em muitos casos a exposição de um grupo à dominação de outros permite que as
tradições dos dominados se adaptem de maneira a criar mecanismos de
sobrevivência. (MEIHY, 2000, p. 71)
Em muitos casos, é que a tradição oral revela não apenas conhecimentos e valores,
mas fundamentalmente as formas organizativas e dimensões artísticas literárias, que, sem a
palavra, se tornariam impossíveis retirar determinados registros da memória coletiva. A
oralidade é o veículo que transmite, portanto, referências marcantes do passado para o
presente, através do formato de contos, fábulas e poesias em verso ou em prosa, a herança
daquilo que se torna literatura nas sociedades da linguagem escrita.
Reafirmando esse argumento Marcuschi (2008), estabelece uma relação íntima entre
“oralidade e letramento”, isto porque para ele “letramento” não significa aprender ou saber
escrever, mas sim reconhecer objetos pelo nome, como o valor do dinheiro ou o ônibus que
deve tomar. Enquanto que a oralidade “seria a prática social interativa para fins
comunicativos que se apresenta sob variadas formas ou gêneros textuais fundados na
realidade sonora; ela vai desde uma realização mais informal à mais formal nos mais variados
contextos de uso”. (MARCUSCHI, 2008, p. 25)
De certa forma, o clássico da literatura, registrado pela escrita, descende também da
oralidade, principalmente nos casos em que a capacidade de recolhimento das manifestações
50
específicas em grupos sociais determinados, que alimentaram por via das narrativas saberes
expressivos que marcaram, pela divulgação espontânea, as épocas onde a escrita não havia
chegado ainda. Ao recolher, através das narrativas, a memória histórica arquivada nas
lembranças dos mais velhos, a escrita registra como literatura clássica.
Contrariando o provérbio que diz: “Os escritos ficam, e as palavras são levadas pelo
vento”, a oralidade é a prova de que nem todas as palavras são levadas pelo vento. Elas
permanecem resistentes como as coisas sólidas, apesar do tempo. Estão aí, para servir de
prova, a Ilíada e a Odisséia de Homero4, “obras surgidas antes que o alfabeto chegasse à
Grécia e durante séculos só existiram pela repetição oral.” (MACHADO, 2002, p. 26). Isso foi
possível graças à memória coletiva daquela sociedade.
Depois de nos dizer que “o povo assimila a seu modo”, Bosi (1996) nos indica as
diferentes expressões ou conjuntos culturais, sendo eles: a) a cultura erudita, b) a indústria
cultural c) a cultura popular e, d) a cultura criadora individual. A última representada pelos
artistas, escritores, poetas, etc. e termina o seu texto dizendo: “A arte tem seus modos próprios
de realizar os fins mais altos da socialização humana, como autoconsciência, a comunhão com
o outro, a comunhão com a natureza, a busca da transcendência no coração da imanência”
(BOSI, 1996, p. 344).
Somente a arte seria capaz de sedimentar a harmonia perdida entre o homem e o
universo, antecipando a sua reconstituição, educando para a sua manutenção e, alertando para
não se descuidar do futuro.
Seja lá como identidade de gênero ou como identidade de classe, a arte e a literatura
exigem uma qualificação particular do sujeito histórico nas suas relações com o mundo. A lei
da dialética, de unidade e luta dos contrários, onde os opostos se afirmam e interdependem
para o salto de qualidade, não poderia estar alheia ao mundo da arte.
O mundo das necessidades superadas e das novas necessidades, criadas pela própria
existência do ser social, qualifica também as relações entre indivíduo e natureza, indivíduo
para indivíduo e, indivíduo e as áreas diversas do conhecimento, incluindo a arte e a literatura
em prosa e em verso.
É pela arte que o ser social se reinventa e se exterioriza expondo-se de outra maneira
que ainda não é aparentemente conhecida. É através da arte que o indivíduo se autoproduz,
4
Homero, poeta grego, que viveu no século IX antes de Cristo. Era cego e desenvolvera a habilidade de
memorizar os seus poemas. Dois deles são muito conhecidos: Ilíada, formada por 15.693 versos e a Odisséia
com 12.110 versos, os quais o poeta os sabia de cor e os declamava em espetáculos que demoravam dias para ser
concluídos, cujos espectadores às vezes eram curiosos que os seguiam para comprovar se de fato era capaz de
repetir exatamente os mesmos versos em uma e outra apresentação. A grande contribuição de Homero foi,
através da oralidade conferir unidade linguística à cultura grega.
51
como diz Vázquez (1968b, p. 57): “[...] se o homem só pode se realizar saindo de si mesmo
projetando-se fora, isto é, objetivando-se, a arte cumpre com este papel de humanização do
próprio homem”.
Quando Hegel trata do belo artístico e do belo natural, ele está apresentando
características de identidades diferentes de natureza valorativa. No seu entender, ao
afirmarmos o belo natural (por exemplo, o Sol) detectamos a sua colocação como elemento na
formação da natureza, mas ao percebermos qual é a sua função, excluímos a beleza e o
tomamos como uma existência necessária. Para ele, só o espírito engendra o belo artístico
que, como produto do espírito, é superior à natureza.
O que quer explicitar Hegel é que o homem tem poderes superiores, ou seja, através
do espírito que lhes comunica a “superioridade”, ele produz as materialidades e, ao produzi-
las, supera o “belo natural” com o próprio esforço.
Tudo o que vêm do espírito é superior ao que existe na natureza. A pior das idéias
que repasse pelo espírito de um homem é melhor e mais elevada do que a mais
grandiosa produção da natureza – justamente porque essa idéia participa do espírito,
porque o espiritual é superior ao natural .(HEGEL, 1991, p. 3)
Para Hegel todas as criações são obras do espírito. Portanto, a natureza do espírito
divino e o belo artístico do espírito humano são pertencentes ao espírito superior. A suposta
superioridade do belo artístico encontra-se no fato de o humano participar da concepção e
elaboração do trabalho artístico. Mas é preciso considerar que isso só é possível graças à
ajuda do elemento “superior” do espírito, que dá ao homem o poder criador. Assim, o
humano é visto como um simples meio para a execução do belo, e a arte funciona como o
meio que permite a auto-afirmação do homem na sua externalização enquanto capacidade
criativa.
No entanto, para Marx, a arte não tem esta essência espiritual externa ao homem, ou
seja, não é um espírito superior que lhe dá a inspiração, mas a sua própria inserção no mundo
real, no qual o homem desenvolve com o próprio esforço a criatividade.
A arte e a literatura, então, são meios primordiais que fazem com que o homem se
humanize. Para tanto, “força física” e “força espiritual” funcionam como poder criativo e
orientador da consciência. O criador ao criar a obra, cria-se a si como criador observado pelas
“leis da beleza”.
Neste primeiro capítulo, tomamos como ponto de partida o movimento da formação
do ser e da consciência social, através de quatro referências: na primeira, procuramos situar o
ser humano no processo de desenvolvimento social, quando, através do esforço físico para
52
produzir os seus meios de vida, produz os objetos e produz-se a si mesmo num acontecer
recíproco. Nesse processo de objetivação, descobre a importância das relações de cooperação
com os demais membros de sua espécie e com eles estabelece a comunicação através da
linguagem.
Na segunda referência, tomamos a práxis cotidiana na objetivação da cultura. Ela é a
realização das ideias, tomadas enquanto sínteses históricas e colocadas a serviço da sociedade
em que vive. Dessa maneira, o ser social com consciência social, além de produzir objetos,
produz cultura. A práxis aparece como a combinação entre a reflexão e a ação que tem uma
finalidade estabelecida.
A cultura é o resultado do conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos
valores, os quais são produzidos e transmitidos para as futuras gerações. Nisso consiste a
função social dos seres sociais em cada época.
Na terceira parte buscamos compreender o fazer artístico como práxis estética,
destacando que a arte também é produção humana e acompanha o trabalho realizador segundo
as leis da beleza.
Concluímos com base na teoria marxista que o belo é parte do processo de produção
social. Trata-se de um instrumento da emancipação dos seres sociais. A arte executada
livremente reinventa o ser humano a partir de sua própria criatividade.
Entendemos que a arte pode cumprir com diferentes funções na sociedade, ou seja, de
um lado, serve para fortalecer as idéias da classe dominante, por outro lado, de instrumento de
resistência e de proposições com as perspectivas estabelecidas pelas forças populares.
Por último, buscamos entender a relação que há entre arte, literatura e oralidade na
produção histórica. Nesse aspecto, ao compreendermos o processo de alienação do trabalho
produtivo, percebemos que a arte não se deixa prender e, o mesmo ser alienado no trabalho,
pode ser o artista consciente fora dele, instituindo livremente novas formas de trabalho.
A literatura, expressão escrita da criatividade humana, em todos os períodos literários
aparece, embora com nomes diferentes, desde a antiga Grécia, quando se expressava como
poética e oratória, chegando à fase do romantismo no qual tivemos a organização do conceito
e a ampliação dos gêneros literários, até chegar aos nossos dias. Cultivamos do modernismo
as inovações corajosas e ampliamos as manifestações em verso e prosa.
Mas isso não é tudo, ainda resta a maneira de expressão oral. As produções populares
que se desenvolvem junto com a organização social e política e ampliam o fazer literário,
através da linguagem com os dizeres e o jeito dos próprios sujeitos. A oralidade em todos os
53
períodos literários serviu como base para muitas obras de produção escrita em linguagem
erudita.
Este capítulo serviu, portanto, de base para entrarmos no ponto da linguagem em prosa
e em verso, como maneira particular da expressão do sujeito onde se articulam os saberes
como mediação para a formação da consciência.
54
CAPÍTULO II
A única linguagem compreensível que falamos entre nós é aquela que os nossos
objetos falam entre si. Não mais compreendemos uma linguagem humana, ela
permanece sem efeito; por um lado é vista e sentida como se fosse uma oração, uma
súplica, uma humilhação e por isso é proferida com um sentido de pejo e de repulsa;
por outro lado é tomada e recusada como imprudência ou loucura. Somos a tal ponto
reciprocamente estranhos para o ser humano, que a linguagem imediata deste ser
aparece-nos como uma ofensa à dignidade humana, enquanto, ao contrário, a
linguagem alienada dos valores objetivos aparece-nos como dignidade humana
justificada e confiante em si mesma, que reconhece a si mesma. (MARX apud
ROSSI-LANDI, 1985, p. 105).
Neste capítulo tratamos da linguagem do sujeito e do sujeito que usufrui e cria a sua
própria linguagem manifestada nas relações sociais, constituindo-se em um fenômeno social,
trabalho e ideologia. Na busca para compreender o interesse da mensagem do destinador pelo
destinatário, no intuito de decifrar o valor da linguagem, pesquisamos o ethos linguístico que
dá vigor às marcas e as formas de linguagem do sujeito em ação.
Percebemos, ao tratar da linguagem nas relações sociais, que há um sujeito que sofre a
ação, sendo afetado pela linguagem já estabelecida, ao falar aquilo que já é falado, dito pelos
outros e aprendido na convivência. E, o sujeito que faz a ação, age e fala enquanto elabora
parte dos sentidos da própria linguagem em formação, dando às coisas, nomes e significados
ideológicos diferenciados na forma poética, na forma política e nas demais formas.
ocorrendo também com pessoas que embora dominem a linguagem erudita valem-se da
linguagem “coloquial” para efetuarem a comunicação. Por fim, temos os falares cotidianos
que ocorrem nos campos onde, espontaneamente são criadas as próprias regras linguísticas,
levando em consideração a cultura local e não a gramática formal.
Podemos estabelecer ainda, segundo a diferenciação na linguagem, dois planos:
literário e não literário. A linguagem literária é sem dúvida uma maneira especial de ver e de
dizer sobre as coisas, incluindo sentimentos e ficções, metáforas, metonímias etc. Ao
contrário da linguagem não literária que se ocupa das expressões mais precisas, não se
deixando conduzir pelo sentido figurado das palavras. Em síntese, é a histórica divisão da
linguagem escrita, em dois planos: conotativo e denotativo, que podem ocorrer no referencial
padrão e também não padrão, quando se trata de fala e também de escrita.
No plano denotativo, de maneira genérica, temos o significado estável das palavras.
Elas são empregadas de tal modo que passam a ter o mesmo significado para um conjunto de
pessoas. No plano conotativo, manifestam-se mais constantemente os aspectos subjetivos,
fazendo com que as palavras mudem de significação de acordo com o contexto ou ambiente
em que são utilizadas. De uma maneira específica, o próprio sentido denotativo das palavras
pode sofrer variações no seu entendimento, mesmo não tendo conteúdo metafórico.
Fundamentalmente, em se tratando de palavras polissêmicas ou originárias de contextos
diferentes como, por exemplo, a palavra “rapariga”, dependendo de onde é usada, significa
uma jovem de boa ou má conduta. Já a palavra “ouro” pode indicar que se trata do metal, ou
de riqueza acumulada.
Em uma terceira diferenciação, no sistema de palavras, a linguagem dos sujeitos pode
ser encontrada no sentido verbal e não verbal, quando os interlocutores optam por usar
diferentes estratégias de gêneros discursivos na interação comunicativa: “[...] uma anedota,
um poema, um enigma, um requerimento, uma procuração, uma conversa telefônica [...]”
(KOCH, 2006, p.161). Esses gêneros, segundo a autora, levam os usuários a desenvolverem
uma competência metagenérica, adequando-se à conveniência de cada prática dos gêneros:
primário (de interação face a face) e secundário (de interação social, mediados pela escrita
como anúncios, receitas, catálogos, etc.). Trata-se de gêneros em constante movimento de
mudanças como qualquer outro produto social.
Embora a fala e a escrita sejam duas modalidades da língua que funcionam em um
continuum, fazendo parte do mesmo sistema linguístico, o que distingue o texto escrito do
texto falado é a forma como a produção textual se realiza:
56
Os estudos de Panini na Índia (séc. IV a. C), dos filósofos gregos, como Platão, que
assumia uma posição naturalista, defendendo a ideia de que as palavras refletiam muito de seu
significado, e Aristóteles, que acreditava ser a linguagem uma mera convenção entre os
homens (séc. IV a. C.), posição assumida depois por Ferdinand Saussure (séc. XIX) e seus
sucessores, que vão considerar a linguagem uma relação direta da língua com a fala,
permitem, com tais entendimentos que se considere a linguagem como um fenômeno social.
Entendemos que a linguagem e a consciência desenvolvem-se a partir das
necessidades práticas e se interligam em profundas interdependências, “[...] a linguagem só
nasce, como a consciência, da necessidade, da carência da ciência física do intercâmbio com
outros homens” (MARX/ENGELS [1845], 2002, p. 34). Ciência aqui, no dizer de Marx, é
“tornar consciente”, “dar-se conta da existência”. Sendo que a consciência é um produto
58
social e continuará a sê-lo, enquanto existirem homens; a linguagem acompanhará o ser social
promovendo sua existência.
No decorrer da história, na passagem de um modo de produção para outro, a
linguagem se estabeleceu como referência das experiências feitas, passou a ser assimilada
pela consciência das gerações vindouras, sem deixar de modificá-la e seguir com sua
evolução. Converteu-se então a linguagem, primeiramente, em um produto da convivência
social vista assim pelo estruturalismo:
A língua é uma instituição social, exterior ao indivíduo, a este não cabe nem criá-la
nem modificá-la, uma vez que existe como um contrato estabelecido entre os vários
membros de uma mesma comunidade. Somente com o auxílio da aprendizagem, e,
de maneira lenta, a criança vai aprendendo o funcionamento da linguagem.
(RAMANZINI, 1990, p. 26)
Constatamos com isso que é a existência do sujeito coletivo que produz e repassa aos
outros a língua, reproduzindo, mas também recriando a linguagem. A convivência social é
formadora da cultura, no sentido de apreender o que está assimilado pela consciência coletiva
anterior. No dizer de Ramanzini (1990), ao analisar o pensamento de Saussure (que vê a
língua como um todo estruturado e estático), ao produzir a linguagem, o sujeito produz a si
próprio e a sociedade em que vive. Amplia os conhecimentos e a própria cultura. Desvenda o
aspecto histórico da linguagem e, uma vez que o sujeito é histórico, sem ele não haveria
linguagem.
É importante reconhecer que a forma linguística adotada compõe-se, em qualquer
tempo histórico, de signos. Eles não apenas compõem a linguagem como também
possibilitam expressar determinada ideologia ou consciência.
Os signos e a ideologia são componentes de uma totalidade que é o modo de produção,
que se articula, nem tanto pelo que produzem os homens, mas com o que e como produzem.
Sendo assim “[...] O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua
produção”. (MARX/ENGELS [1845], 2002, p. 28)
Sem deixar de considerar as condições diferentes encontradas em cada época para
produzir os meios de vida, as classes dominantes, não somente determinam “o que produzir”,
como também o que se deve falar e como falar. Não significa que as classes dominantes
foram e são eficientes ao ponto de impedirem que surjam signos contra-ideológicos com
conteúdos diferentes e conscientes. Mas, a partir do controle dos meios de produção e dos
aparelhos de reprodução das ideologias, a classe dominante controla também as relações
sociais.
59
5
Conforme Travaglia (1998), as variações dialetais ocorrem em função das pessoas que usam a língua e nas
dimensões geográficas, social, de idade, histórica, de sexo e de função.
60
outros sistemas, como o alfabeto dos surdos-mudos, os ritos simbólicos, as formas de polidez,
os sinais militares e outros mais [...]”. (RAMANZINI, 1990, p. 26).
Para Saussure (2006), a língua é o principal sistema de signos. Trata-se de um produto
social da faculdade da linguagem, acrescida de convenções necessárias que são adotadas pelo
corpo social para permitir que o indivíduo exerça essa faculdade.
No dizer de Mussalin e Bentes (2003), para Saussure “a língua não é apreendida na
sua relação com o mundo, mas na estrutura interna de um sistema fechado sobre si mesmo.”
Conforme as autoras, o signo linguístico é arbitrário justamente porque o ser do objeto, por
exemplo, um lápis, nada tem a ver com o seu formato e composição.
Saussure (2006), que estrutura o pensamento linguístico sobre a dicotomia língua/fala,
e define dois eixos sobre os quais a Linguística pode estudar os fatos da língua: o eixo da
simultaneidade ou eixo sincrônico e o eixo das sucessividades ou eixo diacrônico6. Tudo
aquilo que se relaciona aos aspectos estáticos da língua e tudo aquilo que diz respeito à
evolução de uma determinada língua. Ou seja, designam um “estado da língua” e uma “fase
de evolução”. Para Saussure (2006), o sistema nunca se modifica diretamente; em si mesmo é
imutável; apenas alguns elementos são alterados.
Para fundamentar e estabelecer uma comparação entre a ligação que existe em relação
à realidade histórica e o estado de língua, Saussure (2006, p. 104) utiliza o jogo de xadrez:
“[...] De um lado e de outro, estamos em presença de um sistema de valores e assistimos às
suas modificações. Uma partida de xadrez é como uma realização artificial daquilo que a
língua nos apresenta sob forma natural”.
Por comparação, Saussure fundamenta que todas as mudanças são parciais e por isso,
sincrônicas, pois assim como no jogo se movimenta uma peça de cada vez, na língua as
mudanças se aplicam a elementos isolados. O lance do xadrez repercute sobre todo o sistema,
criando consequências para todas as demais peças.
Uma diferença aparece quando o autor se reporta à intenção. No jogo de xadrez o
jogador premedita a jogada, enquanto que na língua nem sempre ou nunca isso acontece.
Possivelmente esteja aqui o limite da teoria saussuriana, quando o sujeito é retirado do
sistema como se a estrutura da língua se movesse por si própria despida de qualquer
ideologia.
6
Sincrônico e diacrônico referem-se a questões temporais. O Sincrônico aplica-se a um estudo determinado de
um certo tempo dado, podendo ser ele muito antigo quando se opta por estudar o latim, o grego, etc. sem levar
em consideração a evolução da língua. Para Saussure, a que me atribuída esta formulação, à sincronia é a
consideração que dá a língua em um momento determinado. Por sua vez o diacrônico se refere à evolução dos
fatos lingüísticos localizando-os no tempo e que se desenvolveram colocando em ordem os diferentes períodos
históricos.
61
Por sua vez, além da ideologia da linguagem, existe o poder ideológico da linguagem.
Josef Stalin, dirigente da União Soviética (1924-1954), em uma entrevista dada ao jornal
Pravda, em 20 de junho de 1950, se predispôs a criticar Mikhail Bakhtin (que, por motivo de
perseguição política, identificava-se, desde 1929, com a assinatura de V. N. Volochínov),
valendo-se da seguinte anedota para explicar a imobilidade da língua:
Havia entre nós, num determinado momento, marxistas que pretendiam ver as
estradas de ferro, que sobraram depois da Revolução de Outubro, como estradas de
ferro burguesas; que não era conveniente, a nós marxistas, que nos servíssemos
delas; que era preciso destruí-las e construir novas estradas de ferro proletárias. Por
causa disto foram apelidados de trogloditas. (STALIN, 1950 apud VOGT, 1980, p.
80)
O interesse de Stalin era destacar a neutralidade da língua no sentido de que ela não se
distinguia de acordo com os meios de produção e, portanto, em sua intuição empírica
sincrônica, deveria servir tanto ao socialismo como servira ao capitalismo. Via a língua como
algo estático estruturado, ao contrário de Bakhtin que defendia:
[...] Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo
corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas ao contrário
destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade que lhe é exterior. Tudo o
que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo.
Tudo o que é ideológico é um signo. Sem signo não existe ideologia [...]
(BAKHTIN [1929], 1999, p. 31)
Ignorava Stalin que Bakhtin via além.Compreendia que um corpo físico isolado (no
caso a ferrovia) coincidia apenas com a sua própria natureza e, portanto, não carregava
ideologia consigo. A estrada por si só era um objeto qualquer que, como um instrumento de
trabalho, poderia permanecer estruturado, ao contrário da língua que não poderia permanecer
estática como os trilhos da estrada. A linguagem, através dos mesmos signos deveria adquirir
outro conteúdo, isto porque, todo signo reflete e refrata outra coisa. “[...] Ele pode distorcer
essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. [...]”
(BAKHTIN, 1999, p. 32).
A maneira particular de ver as coisas, dissociadas de suas causas e origens, impedia
Stalin de perceber conscientemente as coisas em sua totalidade. Levava-o a crer que a
linguagem era uma produção individual, dissociada da vida social, algo já dado e estabelecido
a serviço de qualquer sociedade. Para ele, o fenômeno político não se vinculava ao fenômeno
linguístico. Era justamente o oposto o que ocorria; com a mudança de sociedade, mudava
também o contexto e o sentido dos signos; mesmo as obras literárias escritas antes da
revolução, ao serem relidas poderiam apresentar novos argumentos. Bakhtin via claramente
62
que o mesmo signo servia à ideologia e à consciência, cumpria papel diferente quando
participava do contexto das relações sociais7.
Torna-se importante retomar o que disse Habermas (2000, p. 233): “a escritura garante
que um texto possa ser sempre relido nos mais diversos contextos”. Podemos acrescentar,
assim como qualquer signo. A escritura cumpre um papel importante, no sentido de que torna
independente o que foi dito pela visão do autor, e se amplia com outros significados na visão
do destinatário, não no sentido da falsificação do dizer original, mas da sugestão que os
contextos de produção e de leitura proporcionam no jogo da interpretação.
Como fenômeno social, as variantes linguísticas permitem conceber que é possível
registrar também através da escrita não “culta”, portanto, não formal, os dizeres e fatos com
as palavras de acordo como são pronunciadas, porque, assim, fala o sujeito da ação e da
linguagem.
É evidente que as expressões matutas, em linguagem não padrão, estão muito distante
das regras da gramática formal, mas isso não significa que inexistam regras, “muito pelo
contrário... ela tem uma clara lógica linguística, tem regras que são coerentemente obedecidas,
e serve de material para uma literatura popular muito rica”. (BAGNO, 2000, p. 49)
Compreendemos que, por termos como objeto de estudo “a linguagem em prosa e
verso como mediação para a formação da consciência dos trabalhadores Sem Terra”, o nosso
referencial será a linguagem não padrão, matuta, caipira ou sertaneja desenvolvida através de
“sinais”, naturais e convencionais, que aparecerão configurados em ícones, símbolos ou
signos, tendo ideologia, no sentido particular de cada signo, e consciência no sentido da
articulação entre os diferentes signos como parte de uma mesma totalidade, que não significa
que ela detenha o sentido de tudo, como diz Ciavata, (2001, p. 123). “[...] No sentido
marxiano, a totalidade é um conjunto de fatos articulados ou o contexto de um objeto com
suas múltiplas relações ou, ainda, um todo estruturado que se desenvolve e se cria como a
produção social do homem.[...]”.
Os objetos e seres humanos existem em relações interligadas, que se manifestam
através de fenômenos imediatos, em que a linguagem acompanha em qualquer circunstância
7
Devido à função de refletir ou representar outra coisa, além de si, para Bakhtin todo signo é ideológico, isto se
dá quando o objeto ganha o poder de representar outra coisa construída pelo poder da imaginação humana, mas
em si este significado é limitado, isto porque o signo por ser ideológico é um fragmento da realidade. Mas, neste
caso, a ideologia não se situa na consciência. A consciência também se afirma através dos signos, mas ao
contrário da ideologia ela aproxima o signo compreendido, de outros signos já conhecidos, quando um responde
ao outro sem se desligarem entre si. A ideologia por sua vez particulariza o signo, afastando um dos outros,
obscurecendo as relações possíveis entre eles.
63
representando, decifrando, ou refratando o signo. Por isto é que a linguagem pode ser
considerada como fenômeno social.
Na medida em que a língua é uma produção social, feita e organizada por sujeitos
sociais, poderia ela ser considerada parte do trabalho, em sentido amplo, ou como trabalho
linguístico em sentido restrito? “As palavras, enquanto unidades da língua são produtos do
trabalho linguístico; servimo-nos de tais produtos como materiais e instrumentos no decorrer
de um trabalho linguístico ulterior, graças ao qual se produzem mensagens”. (ROSSI-LANDI,
1985, p. 63).
No esforço de produzir a sua subsistência, o ser social produz a si e a sociedade em
que habita, mas não o faz em silêncio. Possivelmente, o esforço físico, que transforma a
matéria em objetos, também transforma a sua energia em sons e palavras.
Se retomarmos o pensamento de Marx (1818-1883) quando trata da “relação da
propriedade privada”, veremos que: “[...] O trabalhador produz o capital, o capital produz o
trabalhador. Assim, ele produz a si mesmo, e o homem enquanto trabalhador, enquanto
mercadoria constitui o produto de todo o processo [...]”. (MARX, 1964, p. 173). Nesse caso,
sendo o trabalhador o “produto de todo o processo”, porque, acima de qualquer coisa, produz
a si mesmo, é ele por inteiro, com corpo físico, consciência ou alienação e linguagem. É pela
atuação sobre a natureza externa que, ao modificá-la, o ser social modifica a sua própria
natureza interna.
Por sua vez, o trabalho não poderia ser realizado sem a capacidade interna do sujeito;
sem a presença da energia física, da inteligência e da linguagem, seja no sentido verbal, nos
aspectos do mando e da aplicação dos manuais, seja na linguagem não verbal, no sentido dos
gestos, aquecimento, ruídos etc.
produtivo. Diante disso, questionamos se a linguagem não seria parte do processo produtivo e
seu produto, as palavras, os meios de produção?
Sem fugirmos da referência, considerando que as palavras e as mensagens não existem
em estado natural, elas são produzidas pelo homem, como qualquer instrumento, não sendo
em primeiro sentido, mercadorias, mas objetos de uso, por isso não possuem valor-de-troca,
mas possivelmente tenham em si, valor de uso. Tal condição permite que consideremos a
possibilidade de colocar a linguagem como meio de produção e de trabalho.
“O meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas, que o trabalhador insere
entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre o objeto”.
(MARX, 1996, p. 203). Por essa maneira de ver, a linguagem funciona como meio de
trabalho como qualquer outro colocado entre o trabalhador e o objeto a ser produzido.
Segundo Marx (1996), um produto pronto para ser consumido pode se tornar matéria-
prima, cita como exemplo a uva, que pode ser transformada em vinho. Por outro lado, há
produtos do trabalho que somente podem ser utilizados como matéria-prima ou “semi-
produto” ou “produto intermediário”, por exemplo, o algodão, fios, linhas, etc. Ao percorrer
diferentes processos como matéria-prima, o produto atingirá o último processo, tornando-se
“[...] produto acabado, pronto para o consumo ou para ser utilizado como meio de trabalho”.
(MARX, 1996, p. 207).
Diante disso, como primeira conclusão, podemos considerar que as palavras têm um
valor-de-uso. Elas são produto do esforço humano e, ao mesmo tempo, estão à disposição
65
como meio de trabalho para serem utilizadas no processo de trabalho sem ter que pagar pelo
seu uso.
a) Fator de produção
b) Trabalho improdutivo
ele dado teriam produções independentes, pois seguem processos diferentes em suas
formulações.
Mas ao transformar um objeto em mercadoria, levando-o para o mercado, é preciso
nomeá-lo, ao fazer isso, o sentido “arbitrário” desaparece. Mesmo sendo produzido pela
combinação de “ideias e sons”, o produto estaria ainda vinculado às características diversas da
força de trabalho compradas pelo mesmo capitalista. A linguagem seria um meio auxiliar do
processo produtivo.
Por outro lado, se no processo produtivo da mercadoria a divisão social do trabalho
exige que alguns trabalhadores cuidem da estética do produto, valendo-se para isso de cores
atrativas ou sons convidativos, a linguagem pode ser considerada trabalho improdutivo. Ou
seja, o esforço físico empregado para melhorar a estética de uma mercadoria ou a organização
das normas gramaticais, pode ser considerado “trabalho linguístico improdutivo”, no sentido
de que, o objetivo não é extrair desse esforço, a mais-valia. É “trabalho linguístico
improdutivo” no sentido de que a produção de objetos se interliga com a produção de
transformações físicas e psíquicas do ser enquanto produtor de objetivações. Ao concretizá-
las, as nomeia para conseguir identificá-las posteriormente. O esforço para concretizar o
objeto e formular um nome, relaciona-se ao processo produtivo e ao sistema comunicativo.
c) Trabalho produtivo
A linguagem, portanto, faz parte do processo de trabalho, ora como fator, ora como
trabalho improdutivo e ora como trabalho produtivo, que opera transformações orientadas por
um determinado fim, seja no auxílio à formulação daquilo que será feito, seja na explicitação
ou na realização objetiva. Vejamos a definição de trabalho desenvolvida por Marx:
O trabalho produtivo e o trabalho improdutivo (aquele que produz e aquele que não
produz mais-valia) relacionam também a bipartição que existe entre o valor-de-uso e o valor-
de-troca da linguagem.
Entendemos que o valor-de-uso da linguagem ocorre quando ela é utilizada
naturalmente no processo de desenvolvimento das relações sociais. Em cada meio social, há
signos linguísticos próprios tanto na variante popular quanto na variante erudita. Na medida
em que o “mestre escola” ensina em uma “fábrica de ensinar”, cujo proprietário é um
capitalista, que cobra mensalidades dos consumidores, que vão à escola para “ouvirem” o
mestre citar proferir palavras e pensamentos, a linguagem adquire um valor-de-troca e é
vendida como mercadoria.
No entanto é importante agregar a este raciocínio o alerta que faz Lessa (2007),
quando observa a produção da mais-valia e a valorização do capital.
É claro que aquele aluno que paga pela aula, sendo também um professor em outra
fábrica de ensinar, poderá utilizar o mesmo conteúdo para vendê-lo a outro capitalista
comprador. Mesmo assim a quantidade de riqueza permanecerá a mesma.
Tanto o trabalho que transforma a matéria prima, dela extraindo um novo objeto,
quanto o trabalho do “mestre escola” geram mais-valia, no entanto na segunda forma de
trabalho não há geração nova de capital. Isso ocorre porque o dinheiro recolhido pelo dono da
escola tem outra origem, ou seja, vem do trabalho realizado em outras atividades: de pais ou
alunos que pagam as mensalidades.
68
Nesse sentido, percebemos claramente que, embora nas aulas, as palavras sejam
consideradas trabalho produtivo e gerador de mais-valia, por si só não se sustentariam, porque
elas dependem de outras relações de produção ou da prestação de serviço para que os alunos
ganhem o dinheiro que possibilita ao dono da escola a extração da mais-valia do trabalho do
“mestre escola”. Diferentemente de uma fábrica de salsichas onde a extração da mais-valia
ocorre diretamente do trabalho do proletariado. Em ambos os casos a linguagem está presente,
como fator, meio de produção ou como mercadoria acabada, representada pela força de
trabalho, manifestada em palavras do “mestre escola”.
A fala da criança é tão importante quanto a ação para atingir um objetivo. As crianças
não ficam simplesmente falando o que elas estão fazendo; sua fala e ação fazem parte
de uma mesma função psicológica complexa, dirigida para a solução do problema em
8
a) O sistema fonatório é constituído pela laringe. Nela localizam-se os músculos conhecidos como “cordas vocais” elas podem obstruir a
passagem do ar. A glote te ma função de atuar como uma válvula que obstrui a entrada de comida para os pulmões por meio do abaixamento
da epiglote. b) O sistema articulatório é composto pela faringe, língua, nariz, dentes é lábios c) O sistema respiratório, consiste nos pulmões,
músculos pulmonares, brônquios e da traquéia.
9
Não há por assim dizer uma única corrente estruturalista,. Elas possuem em comum muitas afinidades na concepção e métodos que
implicam na definição da estrutura lingüística. Os códigos linguísticos são tomados como referência fechada e irredutível. Saussure entende
que a língua é um sistema homogêneo, formada por um conjunto de signos que estão no exterior das pessoas e por tanto devem ser estudados
em separado da fala. Toda língua tem a sua estrutura própria.
10
O gerativismo teoria criada por Noam Chomski é um sistema de regras e princípios formalizado ou explícito, que somente podem ser
operados em condições específicas. Compreende-se como gerativo porque possibililita a partir de um conjunto limitado de regras, gerar um
número infinito de frases. A língua para Chomski, não se define somente pelas frases já produzidas, mas a possibilidade de serem novas
frases. Para o gerativismo, a linguagem é uma faculdade inata no indivíduo e por isto, pode ele, aprender uma língua a partir da exposição
da mesma.
70
questão. Quanto mais complexa a ação exigida pela situação e menos direta a solução,
maior a importância que a fala adquire na operação como um todo. Às vezes a fala
adquire uma importância tão vital que, se não for permitido seu uso, as crianças
pequenas não são capazes de resolver a situação. (VIGOTSKY, 1998, p. 34)
Não podemos comparar as atividades infantis com o processo de trabalho adulto, mas
a referência é ilustrativa. Na medida em que a ação desperta a necessidade da fala nas
crianças, permite-nos considerar que as palavras formadoras do raciocínio no decorrer do
exercício do trabalho, que produz um objeto, servem como guias para a ação. O pensamento é
uma fala silenciosa que o sujeito faz consigo mesmo.
Os próprios métodos de pesquisa, antecedentes à elaboração concreta, antecipam o fim
pretendido, embora o resultado final possa ser muito diferente do imaginado. Assim, a prévia-
ideação formulada na mente, caracterizando o objeto antes de ser construído, indica ser a
linguagem um instrumento de produção de objetos ou de conhecimentos.
A linguagem presente na produção de valores-de-uso e de troca é também fator de
articulação das relações sociais. “O que distingue o trabalho produtivo e improdutivo em
Marx, é sua função social produtora ou não de mais-valia” (LESSA, 2007, p. 200). Se não se
fazem produtos ou objetos sem ideias, pois elas têm a responsabilidade de antecipar na mente
aquilo que pretendemos fazer posteriormente, conforme vimos no capítulo primeiro deste
trabalho, a linguagem, seja no sentido direto ou simbólico, cumpre o papel de dar significado
ao significante e desempenhar uma função social imprescindível.
A linguagem por sua vez poderia ser comparada à força física que, empregada sobre a
matéria prima, transforma a ideação em um objeto de uso. Mas a história da formação do
aparelho fonador atesta que a sua formação se deu de maneira diferente da constituição das
mãos e dos braços. Ou seja, os órgãos da fala foram adequados posteriormente à formação
física do ser humano; logo, fazem parte da produção ontológica do próprio sujeito da
produção.
sociedade em dois níveis: o da infraestrutura, vista como base material produtiva, é quem
determina a superestrutura, que funciona através dos aparelhos públicos e privados,
promovendo uma ideologia dominante, que faz com que se perpetue a infraestrutura. O
materialismo histórico e o estruturalismo lingüístico, promovem a gênese da Análise do
Discurso althusseriano, que se explica pela metáfora da ligação entre “máquina discursiva e o
edifício social, na relação da infraestrutura com a superestrutura”, fazendo convergir para o
mesmo ponto ambos os projetos.
Para Althusser, na reprodução da força de trabalho é que se interrelacionam os
conhecimentos técnicos, científicos e práticos, levando a adaptação do indivíduo à ordem
vigente. No entanto, para que isto ocorra é necessário que haja um aparelho repressivo
público, conhecido como Estado. Dele fazem parte: o governo, a administração, o exército, a
polícia, tribunais, prisões, leis que se somam com outros aparelhos ideológicos de Estado,
privados, como: igrejas, escolas, partidos, sindicatos, empresas, famílias, meios de
comunicação etc. Na segunda relação, dos aparelhos com os indivíduos, é que funciona mais
eficientemente a ideologia que, em todas as sociedades estruturadas em classes ou não,
cumprem o papel de estabelecer a coesão social. Diz Althusser: “[...] A diferença entre os
dois é que o aparelho repressivo de Estado, „funciona pela violência‟ enquanto os Aparelhos
Ideológicos de Estado funcionam „pela ideologia‟” (ALTHUSSER, 1980, p. 46). E
complementa:
Enunciando este fato numa linguagem mais científica, diremos que a reprodução da
força de trabalho exige não só uma reprodução da qualificação desta, mas, ao
mesmo tempo, uma reprodução da submissão desta às regras da ordem estabelecida,
isto é, uma reprodução da submissão desta à ideologia dominante para os operários e
uma reprodução da capacidade para manejar bem a ideologia dominante para os
agentes da exploração e da repressão, a fim de que possam assegurar também, “pela
palavra”, a dominação da classe dominante. (ALTHUSSER, 1980, p. 21-22)
Vejamos por parte. O signo é ideológico porque está sujeito a avaliação pelos critérios
individuais (certo/errado; justo/ injusto). Logo não pode haver conhecimento sem ideologia.
O signo (palavra) é sempre uma criação humana, por si só não se explica, precisa de outros
signos para adquirir e diferenciar sentidos (semiótico) ou ideologias. Quem cumpre esta
função de realizar a interação social entre eles, é a consciência que adquire conteúdo
ideológico dos signos, e, ao mesmo tempo, “se reflete neles” (efetuando a sua interpretação)
“também se refrata” (sofre a refração, ou seja, é influenciado pelo significado já existente).
“O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata.” (BAKHTIN,
1999, p. 46)
11
Para Bakhtin, a palavra em si é um signo neutro, por si só, antes de ser usada, não está ligada a nenhum campo
ideológico. Ao ser utilizada na comunicação, ela passa a cumprir função ideológica, pois além de significado
apropriado terá que defender certos interesses.
77
As palavras são tecidas por infinitos fios ideológicos, elas articulam as relações
sociais, elas são sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais
(BAKHTIN, p. 41). De acordo com as palavras usadas na comunicação se percebe a tendência
das mudanças que estão ocorrendo.
A ideologia dominante é disseminada através da propaganda, das mercadorias e da
indústria cultural. Os interesses do império ajudam a obscurecer a visão sobre as causas e
consequências, nomeando, propositalmente, de “globalização” aquilo que é “imperialismo”,
que não integra, ao contrário, absorve sem complacência as pequenas empresas nacionais,
gerando desemprego, concentrando a renda e acentuando a perda da soberania dos países. A
globalização coloca, a serviço do lucro das empresas multinacionais, a defesa inocente dos
sujeitos absorvidos.
A consciência ao contrário da ideologia é a capacidade que o sujeito social tem de
perceber as contradições e sobre elas estabelecer o próprio sentido. Não importa a forma da
linguagem se em verso ou em prosa, nem tampouco o estilo, mas a revelação que desvenda o
não percebido, “ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não veem” (ALMEIDA, 1989,
p.3) tal como faz Patativa do Assaré, na vigésima primeira estrofe da poesia “A morte de
Nanã”:
O problema social torna-se consciência social. As palavras, pela própria forma como
são estruturas, ganham sentido crítico. De um lado, a combinação sintagmática evidencia o
sentimento de afetividade do sujeito (explorado) perante alguém muito querido. Por outro
lado, expõe a indiferença do sujeito (explorador) que se coloca no lugar de patrão.
A consciência cumpre, também, através da escolha das palavras, o papel de desalienar
o discurso, reunindo os sentidos que os interliguem. O patrão “ingrato” e não “bondoso”, está
claramente identificado. O nível de consciência do sujeito que fala torna-se evidente em uma
linguagem socialmente marcada, um sujeito não submisso, que não teme a Deus, nem é
obediente ao patrão.
81
2. 5 O ETHOS DA LINGUAGEM
Queremos neste tópico desvendar porque a linguagem em verso e prosa atrai mais
interessadamente o destinatário que silencia para ouvir, concentrando-se, emocionando-se ou
divertindo-se, de acordo com o conteúdo da mensagem exposta.
O ethos da linguagem, como categoria de análise, volta-se para a fala como elemento
da retórica para estabelecer entre o comunicador e o destinatário, uma relação de
reciprocidade emotiva em torno da mensagem.
O cuidado com as palavras, no sentido da oratória, já era conhecido na Grécia antiga.
Aristóteles, por considerar a fala uma técnica fundamental, criou a “escola de eloquência”,
onde ministrava ensinamentos sobre a oratória e mais tarde o próprio Aristóteles desenvolveu,
em forma de princípios, os conhecimentos sobre Retórica.
O ethos da retórica, baseada na teoria de Aristóteles, consiste em causar boa impressão
através das palavras proferidas com a finalidade não de persuadir, mas de ensinar e ganhar a
confiança dos ouvintes.
Para Aristóteles, a retórica apresentava analogia com a dialética, era parte dela,
nenhuma das duas era ciência. Elas tinham a capacidade para fornecer argumentos sobre
questões da competência de todos os homens. “Todos os homens participam, até certo ponto,
de uma e de outra [...]”. (ARISTÓTELES, 2005, p. 29). As duas áreas gozam de superioridade
82
sobre as ciências, pois conseguem facilmente persuadir pela fala. Ambas são portadoras do
“objeto do contrário”, por aplicar os silogismos. Dessa maneira, o orador precisa estar à altura
para convencer os ouvintes do contrário de sua posição, não para ficar indiferente diante das
questões, mas para reduzir ao nada a argumentação contrária.
Os meios para alcançar a persuasão são fundamentais na organização da arte da
retórica, nela o orador necessita da confiabilidade dos ouvintes para que os seus argumentos
sejam tomados como verdadeiros, ao serem apresentados através de provas. Assim, “entre as
provas fornecidas pelo discurso, distingue-se três espécies: umas residem no caráter moral do
orador; outras, nas disposições que se criaram no ouvinte; outras, no próprio discurso, pelo
que ele demonstra ou parece demonstrar”. (ARISTOTELES, 2005, p. 33). Tais provas se
combinam em uma só sintonia entre caráter, disposição e mensagem.
Se o orador é digno de confiança, a mensagem tende a ter aceitação, pela
confiabilidade que desperta o fiador da linguagem. Contra o orador não pode haver qualquer
tipo de preconceito. Sendo, assim, “obtém-se a persuasão nos ouvintes, quando o discurso os
leva a sentir uma paixão, porque os juízos que proferimos, variam, consoante experimentamos
aflição ou alegria, amizade ou ódio”. (ARISTOTELES, 2005, p.33).
Durante a enunciação do conteúdo, o ethos aparece para dar legitimidade à linguagem
falada. A credibilidade é promovida pela capacidade argumentativa do enunciador que se
utiliza de três razões para despertar a confiança: prudência, virtude e benevolência. Com isso,
ganha maior destaque o que é dito perante aquele que diz.
Tomemos como exemplo a décima quarta estrofe da Poesia “A morte de Nana”:
obvio que “ninguém reparou nem viu”, seria uma redundância inútil, mas o poeta usa do
recurso do silogismo12, para enredar o interlocutor e reforçar a gravidade do fato:
No imaginário do ouvinte ou leitor, o rosto aparece molhado, mas não é com qualquer
água. Aquela água tem como fonte, o amor materno. Logo, são verdadeiras, porque a mulher,
no senso comum, “pode até fingir a sua paixão”, a mãe não finge nunca.
Compreendemos que ocorre entre o orador e o destinatário da mensagem, uma
identidade moral, mas não apenas diretamente. Tanto o fato quanto o orador chamam a
atenção do destinatário, se este se sente um pouco abaixo, no sentido da expressividade do ser
ou da experiência alheia. “O ethos não age no primeiro plano, ele implica uma experiência
sensível do discurso, mobiliza a sensibilidade do destinatário [...]”. (MAINGUENEAU, 2008,
12
O silogismo, fórmula analítica criada por Aristóteles, consiste na estruturação lógica do raciocínio. Tem como
princípio partir sempre do geral para o particular, procurando relacionar três sentenças, quando combina duas
proposições, também conhecidas como premissas, que permite tecer uma conclusão com a combinação de uma
terceira premissa. As proposições são classificadas como “maiores”, as universais e, “menores”, as particulares.
Com isto, a conclusão do silogismo não pode ultrapassar o tamanho da premissa menor. O exemplo clássico de
silogismo é este: Todo homem é mortal; Sócrates é homem; Sócrates é mortal.
84
p.14). A partir da atitude de confiança, o destinatário considerará que aquele que fala, pela
identidade moral, “é um dos seus”, além de admirá-lo, quer tocá-lo e senti-lo.
Para Maingueneau, podemos ter alguns princípios mínimos sobre o ethos, como
“noção discursiva” que se constrói através do discurso; pode ser também sócio-discursivo,
quando certo comportamento é apreendido na conjuntura sócio-histórica ou pode ser
entendido como um processo interativo de influência sobre o outro. Para ele, essa concepção
se inscreve na teoria da Análise do Discurso, diferente, mas não infiel à retórica de
Aristóteles. Isto porque, no seu entender, a oratória tradicional ligou estritamente o ethos à
eloquência e à oralidade, mais diretamente vinculada à fala pública, enquanto que é possível
alargar o seu alcance abarcando textos orais e escritos.
Abre-se através do ethos da linguagem, o caminho para que as mensagens emitidas
pelo orador se tornem consciência no interlocutor. Mas não se trata de simples mensagem de
um indivíduo em relação a outro, é, antes de tudo, uma representação da formulação coletiva
do próprio grupo que os indivíduos pertencem.
Para compreender as mensagens e seus ethos, é fundamental conhecer o contexto em
que são produzidas. No caso em análise, “A morte de Nanã”, o contexto no qual vive o eu
lírico é o campo; mas não é qualquer campo, é aquele em que há seca, patrão ingrato e
desenganos (oitava estrofe, p. 40). As condições de vida e de produção estão presentes no
discurso coletivo.
Pelo tipo de expressão utilizada, o sujeito mostra que “A ideia de ethos implica,
portanto, assumir que não se diz, explicitamente como ou o que se é, mas mostra-se, por meio
de atitudes (físicas ou discursivas) como e o que se é”. (MORAES, 2008, p. 109). Assim
termina a história do narrador personagem, “A morte de Nanã” que o destinatário não quer
perder de saber:
Saluçando, pensativo,
Sem consolo e sem assunto,
Eu sinto que inda tou vivo,
Mas meu jeito é de defunto.
Invorvido na tristeza,
No meu rancho de pobreza,
Toda vez que eu vou rezá,
Com meus juêio no chão,
Peço em minhas oração:
Nanã, venha me buscá!
O personagem soluça pensativo, sem consolo e calado. Sente que está vivo, mas se
parece morto. Triste, em seu rancho pobre, ainda, reza. Não o faz por remorso ou temor, mas
para que a filha venha buscá-lo, tirá-lo daquela situação.
O estado do sujeito que fala é penoso e, aparentemente, sem nenhuma solução, a não
ser a morte, repetindo o que fizera a filha, sair da vida. Como não resta ninguém para chorar
por ele, choram, então, os interlocutores de sua história, que se comovem. O sujeito da
história não pede ajuda aos vivos, porque ninguém pode ajudá-lo. O pedido é feito à filha, e
ninguém pode se intrometer nessa relação. Primeiro, por ser um pedido de pai, segundo,
porque confiam que a filha está em um lugar melhor. No lugar onde se encontra, ela pode
recebê-lo e dar-lhe o conforto merecido. Morrer, nesse caso, é um alívio. Pela identificação
cultural e moral, os interlocutores concordam com a saída proposta pelo personagem.
O ethos proporciona o encontro entre o ficcional e o real. A história embora relate as
circunstâncias possivelmente reais, é ficção. O ethos do narrador personagem, ou do orador
que reproduz a mensagem, permite que se confirme para os interlocutores como uma história
real, por isso eles choram veridicamente.
A consciência individual após ter sido informada pelo conhecimento do orador,
tornando a história conhecimento no interlocutor, permite que este passe para o momento da
autoconsciência. Ao ouvir a história, o interlocutor identifica-se com o personagem da
história. A sequência narrativa conduz o ouvinte por cenários imaginários que ele mesmo
constrói “levado” pelo personagem, quase se tornando ele. Alcança com isso o momento da
consciência quando atinge o estágio da emoção. São momentos particulares, individualizados
que cada qual constrói à medida que se prende mais ou menos à narrativa. A compenetração,
o silêncio, é o lugar de onde o sujeito que houve, admira e se identifica com o sujeito da
história, contada pela voz do orador que, a depender de sua capacidade de entonação, pode
causar maior ou menor atenção.
Conforme Marcuschi (2000), a língua seja ela falada ou escrita, reflete a organização
da sociedade. Neste caso, língua e cultura possuem íntimas relações, pois o sujeito social
também expressa de maneira específica a linguagem social do meio onde vive. Ao mesmo
tempo em que o sujeito contribui para fazer a linguagem, recebe a contribuição da linguagem
feita para fazer-se a si mesmo.
As marcas da oralidade, que são referenciadas na linguagem não-padrão, são
transportadas para a escrita. As repetições, gestos e sinais subentendidos, mais frequentes na
fala, trazem em si as marcas do sujeito, do seu modo de ser, que carrega em si o meio em que
vive e é reconhecido por tais características.
A forma de ser do “sujeito poético”, Patativa do Assaré, é a nítida reprodução da
sociabilidade de seu meio, onde os metaplasmos não são expressões figurativas, mas reais, de
uso cotidiano por aquele grupo social.
palavra, como é o caso de “dô” no terceiro verso da primeira estrofe, onde o poeta quer dizer
“dor”.
Por sua vez, a palavra “históra” no primeiro verso da primeira estrofe, com a perda da
semivogal “i” configura um metaplasmo por monotongação.
Mas há como marcas da linguagem do poeta, metaplasmos por aumento de fonemas.
Aparecem no início da palavra e são conhecidos como “prótese”, como é o caso da palavra
“insistença” no terceiro verso da terceira estrofe, e, por “epêntese” quando o fonema é
aumentado no meio da palavra. Como se dá com a palavra “dificulidade” que não aparece na
poesia, mas que é de uso corrente no mesmo meio social.
O que nos interessa nesta caracterização, é perceber o padrão da linguagem cotidiana
de tal grupo social, como ele é utilizado na poesia. As relações de produção interligadas com
as relações sociais infundem as marcas da linguagem que se utiliza da forma poética para
transmitir mensagens elaboradas.
A extrema sinceridade poética, não expõe apenas as marcas da fala, mas deixa
transparecer as marcas ideológicas de inferioridade. Podemos ver no quarto e quinto versos da
quinta estrofe (“pois mesmo se alimentando, de feijão, mio e farinha”) a revelação da
impossibilidade de um empregado, roceiro, comer bem. Como também, no último verso da
décima quinta estrofe (“Do meu rancho esburacado”), a exposição moradia decadente, com a
qual se identifica o narrador personagem, condição que é vista, figuradamente, pela sociedade
urbana.
Este recurso o poeta utiliza para criar empatia com os interlocutores. Através da
revelação do sofrimento, o ethos poético com toda a simplicidade possível, garante a
veracidade dos fatos e por isto ganha a atenção dos seus ouvintes.
[... ] E continuei sempre na vida de agricultor e ali entre os meus irmãos e ao lado
de minha mãe. Com 16 anos, eu comprei uma viola e comecei a cantar de
improviso. Naquele tempo, 16 anos, eu já improvisava, mesmo glosando, sem ser
ao pé da viola. Comprei a viola e comecei a cantar também, não fazendo profissão.
Eu cantava assim como esporte atendendo convite especial, renovação de santo,
casamento que não ia haver dança, também aniversários de pessoas amigas. O certo
que eu só cantava ao som da viola atendendo convite especial (SILVA, 2001, p.19).
Ele trabalha como “agricultor” no contexto roceiro, mas paralelo à profissão que
exerce, no contexto sócio-econômico-cultural, aflora o lado artístico do sujeito, que descobre
em si, aos 12 anos, o potencial poético (repentista), comum no meio sertanejo. O nome
poético “Patativa” teria recebido por deferência de José Carvalho Brito, correspondente do
jornal “Correio do Ceará”, residente no Estado do Pará, quando o poeta lá esteve no ano de
1929. “... Então no final dos versos, ele faz a apreciação dele, fazendo uma referência sobre os
meus versos e disse que a espontaneidade da minha poesia tinha semelhança, se assemelhava
ao canto sonoro da patativa do Nordeste [...]”. (BRITO, 2001, p. 20)
O sujeito poético aparece, então, com a diversidade de características típicas da região:
agricultor, repentista, tocador de viola, acanhado, linguagem típica13 e nome poético, de
imitação do belo pássaro do sertão. Mais tarde, por exigência do público, ao procurar pelos
seus escritos para diferenciá-lo de outro poeta Patativa, que existia na região, agregaram-lhe a
referência do lugar, Assaré.
Neste sentido não tem razão José de Souza Martins, quando diz que “não é o
verdadeiro caipira quem compõe e canta. Cada compositor e cantor procura adequar-se à
imagem do caipira, fazendo de conta que é caipira” (MARTINS, 1975, p. 133-134). Patativa
do Assaré é justamente o oposto, consegue ser o sujeito que produz e divulga sua obra.
Além de não prestar-se a caricaturas, Patativa do Assaré trazia, através da formação de
sua consciência, os valores e a cultura de seu mundo. Percebemos claramente que o sujeito da
forma poética é o mesmo sujeito da forma política. Antônio e Patativa fundem-se e falam de
um lugar de experiências comuns, como se evidencia na poesia: “Cante lá que eu canto cá.”
13
É provável que a linguagem escrita no livro “Ispinho e fulô” (apareça na variante erudita), pela transcrição e
revisão de uma equipe de professores da Universidade Federal do Ceará, aparentemente fora do contexto e do
linguajar do sertão.
90
A linguagem poética revela o lugar de onde o poeta fala. O sertão que considera seu,
traz a posição política do mesmo: “não mexa aqui”, sentimento de defesa do seu lugar, com
seus ensinamentos e métodos de aprendizados próprios.
Podemos dizer que não importa a forma como são ditas as palavras, elas sempre
aparecem carregadas de sentidos referentes aos lugares onde circulam “[...] Para que nossas
palavras tenham sentido é preciso que já tenham sentido”. (ORLANDI, 2005, p. 59).
Significa que o ser que fala é antes um ser que ouve e assimila sentidos. Desta maneira
podemos considerar que não há “um sentido apenas”, mas vários sentidos podem estar
associados à mesma palavra. O referencial para a sua qualificação, além do contexto, depende
das categorias de análise nas quais o sujeito da interpretação se ancora.
Se tomarmos como referência a palavra sem-terra, pela análise gramatical, veremos
que ela é apenas um substantivo composto, caracterizando um lugar que não há terra, ou
pessoas que estão sem terra para trabalhar. Mas se considerarmos a palavra “sem-terra”,
funcionando em um determinado contexto social, composto por classes sociais, ela significará
uma pessoa sem condição social para ter a posse da terra. Sendo assim, a palavra sem-terra
poderá representar movimento, conflito, pessoas que lutam contra a condição imposta de
serem sem-terra. Além disso, as pessoas passam a ser identificadas pelo nome da própria
condição social. Diante disso, é que entendemos que não existe ação sem sujeito, ao
denunciarem a situação ou agirem em sentido de conquistar a terra, o substantivo composto se
transforma em sujeito e em nome próprio: Sem Terra.
Para Orlandi (2007) funciona no interior dos discursos o interdiscurso, por aquilo que
já foi dito antes em outro lugar, alimentado por uma “memória discursiva”. De modo que o
saber discursivo torna possível o dizer e retorna sob a forma do pré-construído que sustenta a
palavra. “O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em
uma situação discursiva dada [...]”. (ORLANDI, 2007, p. 31).
91
No aspecto social, o interdiscurso, como memória daquilo que foi dito, influencia no
sentido que é dado às palavras. Da maneira como a palavra “sem-terra” foi colocada pela
sociedade capitalista, levou a formação de uma memória, por um lado, negativa, por vir
sempre associada à violência. Por outro lado, serve de divulgação de uma luta justa e
necessária.
O que está presente na memória coletiva, “negativa”, é o sentido de que existem
sujeitos sem história e de situações sem causa. Não aparece como interdiscurso para esses
sujeitos, a origem do problema social que gerou os sem-terra, a partir da década de 1970, e
que por terem perdido o lugar de antigos sujeitos, como: posseiros, meeiros, arrendatários,
filhos de pequenos agricultores e mesmo agricultores com pouca terra etc. Os indivíduos que
antes ocupavam esses lugares converteram-se em novos sujeitos pelo lado positivo da busca
de um novo lugar de integração com a sociedade em outro território.
A carga ideológica da propriedade privada da terra, (o interdiscurso dos proprietários)
não permite que algo seja dito em defesa dos novos sujeitos. Por esta razão quando não
conseguem mudar o sentido das palavras acentuam as que lhes interessa e ignoram as que
possam favorecer os seus opositores, como é o caso de “invasão” e “ocupação”.
Conforme dizem Stédile e Frei Sérgio (1993), a imprensa insiste em chamar de
“invasão” as “ocupações”. “Invadir seria alguém que não precisa de terra, apossar-se de algo
que pertence a outro ou a sociedade e fazer-se dono [...]”. A ocupação é legitima porque tem
em vista a defesa da vida, dos instrumentos para conseguir a sobrevivência.
Vemos que não há neutralidade ideológica nas palavras, e isto nos leva a ter que fazer
escolhas. Mas porque escolhemos tais sentidos e não outros? Orlandi (2007) diz que,
certamente, o fazemos determinados pela língua, pela história, que temos feita pela
experiência simbólica do mundo que, acima de tudo, é ideológica. Trata-se de redes de
sentidos as quais nos filiamos, por meio de paráfrase ou polissemia. A paráfrase é que em
todo dizer há sempre algo que se mantém como sendo o retorno aos mesmos espaços do dizer,
por isto a tendência é a estabilização. Enquanto que a polissemia rompe com os processos de
significação.
Os diferentes sentidos extraídos da mesma ação demonstram que a ideologia se
articula através de duas forças em constante confronto: a estabilidade e a controvérsia.
Embora as palavras faladas e as ações sejam as mesmas, os sujeitos são diferentes, não apenas
na maneira de interpretar o objeto, mas pelo lugar onde se colocam.
Por fim, vimos às marcas da linguagem, tanto na fala quanto na escrita, quando os
metaplasmos identificam o sujeito com o seu meio. E as formas de linguagem do sujeito que é
influenciado pelo intradiscurso, utilizando-se daquilo que já foi dito e está em concordância
com a opinião do senso comum, tanto para formá-lo quanto para informá-lo. Nisso aparece o
sentido da linguagem do sujeito. Dependendo do lugar de onde fala, o sujeito adota certas
referências ideológicas, como é o caso das expressões “ocupação” e “invasão”, quando se
trata de qualificar as ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
94
CAPÍTULO III
jurídico e político que vai estabelecer formas de consciência. Portanto, é o modo de produção,
ou seja, a base econômica que condiciona o processo, em geral, da vida social, política e
espiritual dos homens.
O ser social na condição de sem-terra, sem-posse não se encontrava totalmente
despossuído de consciência, antes de se colocar em contato com o MST, porque atuava ele em
diferentes atividades para sobreviver. Necessitava e tinha interesse pela terra, mas não sabia
como conquistá-la. Foi o que demonstrou a pesquisa que fizemos no Assentamento 4045,
localizado no município de Alcobaça, no Estado da Bahia, iniciado com o acampamento em
setembro de 1987. Dos 100% dos entrevistados, participantes da primeira ocupação realizada
pelo MST no Estado da Bahia, ao serem perguntado: “porque entrou na luta pela terra em
1987?”, podemos dizer que as respostas mantiveram-se as mesmas: “Porque tinha necessidade
e queria uma vida melhor”. Os resultados apresentados no quadro a baixo comprovam que as
pessoas eram portadoras de necessidades, inclusive, pela revelação do ofício que
desempenhavam na produção econômica.
Fonte: Pesquisa realizada pelo autor com os assentados do Assentamento 4045, em 10/02/2010.
Qualquer ser social, na sociedade em que vive, para estabelecer relações de produção,
precisa aprender um ofício, uma profissão. Os ofícios por sua vez já trazem as características
da alienação e desorganização sindical, seja nos aspectos técnicos, no status da profissão ou
no valor pago pela força de trabalho. Pelas profissões dos entrevistados declaradas no Quadro
97
A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas
propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem
delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa
satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de
consumo, ou indiretamente, como meio de produção. (MARX, 1996, p. 42)
Na luta pela terra não poderia ser diferente, a busca por trabalho, colocação da família
para garantir o sustento dos filhos e melhores condições de vida, motivou os trabalhadores
sem-terra a buscarem alternativas concretas de sobrevivência. Mas as necessidades por si só
não poderiam gerar uma reação social organizada. Inicialmente, o espaço de articulação
foram as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs e os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais.
Eles “[ ...] foram os lugares sociais onde se constituíram os espaços de reflexão acerca da
realidade e onde se desenvolveram as experiências para a organização dos trabalhadores
rurais contra a política agrária em questão[...]”. (FERNANDES, 1996, p. 56).
A este esforço somou-se a Comissão Pastoral da Terra, CPT, fundada em 1975, pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que, sob a luz da Teologia da Libertação
procurou divulgar os direitos sociais contidos na Bíblia e, por outro lado, utilizando-se das
leis, fundamentalmente, do Estatuto da Terra, Lei 4.504 de 30 de novembro de 1964, que
defendia a necessidade de se fazer a reforma agrária no Brasil. Assim diz no seu artigo
primeiro: “Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais para
fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola”. (BORGES, 1979,
p.193). Tal Lei promulgada pelos militares, durante o governo da ditadura que se instalou no
Brasil entre os anos de1964-1985, se, por um lado, tinha a intenção de povoar as fronteiras
agrícolas do Centro Oeste e Norte do país, por outro lado, procurou inibir o crescimento das
forças sociais que defendiam a reforma agrária, sinônimo de revolução agrária. O interesse
dos militares era desvincular a reforma agrária do comunismo, mas acabou contribuindo
pedagogicamente para reorganizar posteriormente os camponeses. Pela pesquisa, pudemos
perceber que a linguagem ajudou a afirmar os direitos por dois caminhos: a) pelo Ethos
discursivo dos Agentes da Pastoral da Terra (ligados à Teologia da Libertação), os quais, se
99
As experiências feitas por gerações anteriores ecoam como chamados nas consciências
daqueles que, em outras circunstâncias, passam por situações semelhantes. O passado aparece
para as gerações presentes como um fio pelo qual se pode puxar a tradição para frente:
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”.
Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de
um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ele
se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha
consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a
recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como
seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição do conformismo que
quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem
também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas
da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os
mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esses inimigos não têm
cessado de vencer. (BENJAMIN, 2008, p. 224)
A gente sabe que a luta pela terra é bíblica, né. Na Bíblia também a gente acha estas
passagens, da luta pela terra. A gente ouvia falar muita história de lampião, daquele
outro que dá o nome de Zumbi dos Palmares. A gente ouvia contar muitas dessas
historias. (Entrevistada do núcleo J, Assentamento Quilombo II)
Não é mais. É uma organização. Ele tem uma estrutura, um corpo de funcionários.
Já não tem as características de um movimento social. A tendência dos movimentos
sociais é de desaparecerem, uma vez atingidos ou esgotados seus objetivos ou sua
capacidade de pressionar, ou de se transformarem em organizações, partidárias ou
outro tipo. Isso é próprio da dinâmica dos movimentos sociais. Os movimentos
102
sociais existem enquanto existe uma causa não resolvida. Se o problema se resolve,
acaba o movimento. Se ele não se resolve, a tendência é a de que o movimento se
institucionalize, se transforme numa organização poderosa. Eu diria que ele é o
primeiro e único partido popular agrário que temos no Brasil, apesar de não ter
programa e organização propriamente partidários. (MARTINS, 1997, p. 62-63)
Por mais que faça sentido o raciocínio do professor, suscita duas grandes contradições
não resolvidas, que podem representar dois grandes equívocos. O primeiro localizado na parte
explicitada que diz “Os movimentos sociais existem enquanto existe uma causa não
resolvida...”. Entendemos que a reforma agrária é uma causa não resolvida no Brasil, o que
seria suficiente para afirmar o contrário do que diz o professor. Não é porque uma parte dos
trabalhadores Sem Terra conquistou terra que “resolveram a sua causa”. É preciso reconhecer
que a reforma agrária não é somente distribuição de terra, mas também, escola de boa
qualidade, acesso às tecnologias, a agroindústria, comércio, acesso a todos os serviços e,
acima de tudo, desenvolvimento de um sistema produtivo que respeite a vida humana e a
natureza. Isso não se faz apenas com a luta imediata. Nada impede que um movimento
popular lute por questões estratégicas, desde quando constitua uma estrutura adequada para
isso.
Em segundo lugar, há uma questão implícita que nos interessa mais ainda, ou seja,
seria então impossível se formar a consciência social dos Sem Terra, considerando que sua
experiência é tão efêmera que a “convivência social”, colocada como condição por Marx, para
formar a consciência, não se realizaria?
A visão de Martins é uma maneira restrita de conceituar um movimento social, o vê
através de uma única mediação, como fenômeno isolado. Há outras maneiras de ver a questão
como o faz Scherer-Warren (1989, p. 9): “[...] Quando os grupos se organizam na busca da
libertação, ou seja, para superar alguma forma de opressão e para atuar na produção de uma
sociedade modificada, podemos falar na existência de um movimento social”. Mais adiante a
autora estrutura em um parágrafo o seu entendimento:
Definirei, assim, Movimentos Sociais como uma ação grupal para a transformação
(a práxis) voltada para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob a
orientação mais ou menos consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia)
e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua
direção). (SCHERER-WARREN, 1989, p. 20)
Ademais essas definições não resolvem de todo a questão, mesmo tendo-se simpatia
por uma ou por outra, o que importa, de fato, é se o ajuntamento de sujeitos constitui de fato
uma classe social, e se essa classe evolui através da experiência e das formas de
conhecimentos já desenvolvidas em sua consciência social e política.
Nesse sentido, é conveniente reafirmar o alerta de Thompson (2004, p.12), quando diz:
“Estou convencido de que não podemos entender a classe a menos que a vejamos como uma
formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estudados quando eles
mesmos operam durante um considerável período histórico”. O assentamento é uma formação
social onde os seus membros fazem a própria experiência de organização e produzem além
dos bens materiais a cultura que passa a fazer parte do aprendizado social, como formação do
sujeito coletivo.
O sujeito social Sem Terra encontra a sua função social, descrita em versos por um dos
entrevistados do Assentamento 4045, ainda no início da luta em 1987:
Eu trabalhando na terra
Trabalho com muita atenção
Eu sei que estou ajudando
Dá comida a nação
Eu trabalhando na terra
Eu trabalho muito com cuidado
Que eu sei que tô ajudando
Cobrir as necessidades
Eu trabalhando na terra
Eu trabalho com alegria
Que eu sei que tô produzindo
O pão pra minha família.
(Joaquim Gonçalves de Souza)14.
14
Poema recitado em entrevista concedida em 10 fev. de 2010.
104
medida em que leva o sujeito social e descobrir a sua função também política, incluindo-o em
um projeto onde há princípios e valores a serem seguidos e construídos.
O discurso poético do entrevistado demonstra claramente que há uma mediação do
sujeito político, ao expressar o desejo, que se materializa nos versos. Por se trata de uma
produção oral, a divulgação da mensagem, somente pode ocorrer no espaço das reuniões e
assembléias. Essas são as mediações encontradas pelo autor.
As convivências sociais e políticas ocorrem frequentemente em reuniões, assembléias
e manifestações culturais, por meio das festas comemorativas ou ações espontâneas. O
empenho na produção poética encontrava no acampamento o lugar para a divulgação das
mensagens captadas e produzidas pelos sujeitos da ação e também da narração de seus feitos.
Claro que é. Hoje a gente já tem as coisas. Tem a casa da gente morar. Lá tinha uma
lona, você sabe como é que era, né? Casa boa não, mas tem a minha casinha, minhas
vacas aí pra mim beber um leitinho. Galinha [...]. (Entrevistado do Assentamento
4045)
Para não ficarmos presos a um único lugar, buscamos confrontar a realidade histórica
dos entrevistados do Assentamento 4045, com outra experiência semelhante, mais recente,
que é o Assentamento Quilombo II, organizado a partir de 2002 no município de Mucuri,
situado também na região Extremo Sul da Bahia.
Após três anos de acampamento, através de estudos e discussões, o formato do
assentamento foi realizado com algumas diferenças. Todas as famílias receberam um lote
planejado para que as casas ficassem próximas umas das outras através da formação de
núcleos (em média de 10 famílias). Todos os núcleos escolhem a cada dois anos um homem e
uma mulher como coordenadores; a maioria dos membros de cada núcleo tem a função de
cuidar da saúde, educação, formação, comunicação, produção, das famílias do núcleo etc.
Após cinco anos de assentamento, ao entrevistar um representante de cada núcleo,
com a mesma pergunta, obtivemos as respostas que estão no quadro 5. O quadro é revelador
porque as respostas se assemelham, principalmente, no que diz respeito a duas questões. Em
primeiro lugar pela satisfação de ter conquistado a terra, em segundo lugar pela insatisfação
de ter ficado para trás as coisas boas, da convivência, da alegria, festa e animação.
Pelas entrevistas, percebemos que, com o passar do tempo, muitas informações das
experiências feitas são esquecidas, elas aparecem nas narrativas de maneira dispersa, como se
fossem lampejos que a memória emite para não desqualificar o sujeito.
Uma tentativa de explicação para esta situação está no movimento da consciência
provocado pela mudança nas condições de produzir os meios de vida do próprio sujeito que,
ao mudar de lugar, muda também a posição de classe.
Uma pessoa pode ser um assalariado por sua posição no interior das relações sociais,
portanto, um não-proprietário de meios de produção, mas, devido exatamente ao
ponto que ocupa nessas relações, ou, por outros motivos, atua e pensa como um
burguês, se soma ao partido burguês nas lutas concretas da história e se dispõe a
representar esta classe se uma oportunidade lhe apresentar, seja produzindo teoria,
ocupando um cargo parlamentar ou participando da gestão de uma empresa. Esse
Senhor é parte orgânica da burguesia, ou, melhor dizendo, compõe, nesse nível da
análise, o burguês coletivo. (IASI, 2007, p. 109)
Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e
tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desaparecerá de todo. Basta
olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e
que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a
do mundo ético sofreram transformações que antes não julgávamos possíveis [...].
( BENJAMIN, 2008, p. 198)
15
Nikolao Leskov (1831-1895) romancista russo que se dedicou a descrever a situação dos camponeses.
109
Na medida em que cada família recebeu sua terra, parece que nada de novo aconteceu
e nenhuma experiência fora feita, por isso nenhuma narrativa valorativa se tem a fazer. A
experiência válida é aquela do acampamento, que foi rompida pela liberação da terra, mas que
em si não significa libertá-la do jugo da propriedade e sim adequá-la ao sistema de posse,
agora, pela forma da conquista através da luta e não do mercado como costumeiramente é
feito na compra e venda da terra. Estaríamos aqui diante da afirmação de Lênin (1986, p. 29)
Quando ele diz que “o político segue docilmente o econômico”, e por isto o cultural e o
ideológico não evoluem?
Percebemos então que a consciência pode ser marcada tanto por sinais positivos
quanto negativos. Uma das perguntas de nossa pesquisa indagava justamente sobre as marcas
na consciência:
“Que músicas você houve e canta nos encontros e que músicas você ouve em casa e
nas festas da comunidade?”.
110
aqueles que viveram a experiência e muito mais desenraizadas para aqueles que não viveram
aquele período.
Embora as tentativas de rememorar a história se repitam todos os anos, através de uma
festa no dia do aniversário da ocupação, o ato rememorativo perde-se no meio das demais
atrações festivas, com bandas e consumo de bebidas alcoólicas que nada se compara à
experiência original, quando os próprios acampados animavam as suas assembléias e reuniões
porque tinham a necessidade de persistir e sobreviver.
Falamos de mediação primeiramente como meio ou algo que intermedeia duas partes
que precisam estabelecer um contato, ou estabelecer uma relação, como por exemplo, o caso
da necessidade da terra e a conquista com o apoio do MST, organização mediadora do
processo vitorioso.
Do ponto de vista da totalidade, não se trata de uma simples relação, nem de uma
“ponte” que leva e trás estímulos e respostas. A dialética não separa as conexões e nem
tampouco o movimento das contradições deixam de existir porque um instrumento ou algo
semelhante se colocou como fator de relação entre as partes. “A dialética é uma lógica e,
como tal, é a base de um modo de compreender o mundo. Em outros termos, não há como
compreender o mundo sem o concurso de uma lógica[...]”. (OLIVEIRA; ALMEIDA;
ARNONI, 2007, p. 80). Ao falar do mundo como referência ampla, os autores estão
remetendo a mediação para uma relação de totalidade. Não há como dissociar uma mediação
das demais mediações que estão envolvidas no mesmo movimento dialético. A totalidade é
sempre um conjunto orgânico.
Não há como separar a mediação trabalho, responsável pela ligação orgânica entre
homem e natureza, das mediações que surgem dessa relação, tais como, o conhecimento, a
linguagem, a cooperação e o objetivo que fizeram parte do mesmo processo de produção.
Além do mais, o esforço empreendido pelo homem para produzir um meio de vida, produziu
o próprio homem enquanto gênero que estabeleceu novas relações orgânicas e
interdependentes com as demais espécies e com a sua própria espécie. Antes de o trabalho
112
servir de mediação entre o homem e a natureza, ambos já existiam pela força de outras
mediações que, a mediação “trabalho” não as eliminou, pelo contrário, teve de considerá-las e
ampliá-las.
A mediação não é algo separado da totalidade, pois, sem a relação do particular com a
totalidade, a realidade não poderia existir ou seria como diz Kosik (2002, p. 15), uma
“pseudoconcreticidade”. Isto porque, segundo o autor, os fenômenos cotidianos vistos pelos
seres humanos com regularidade, imediatismo e evidência, entram na consciência de maneira
independente e natural.
O fenômeno da ocupação revela a necessidade das famílias Sem Terra de terem a terra
para produzir e criar os filhos. A partir do fenômeno inicial, os sujeitos da ação constituem
um acampamento, uma sociedade transitória, que possui estrutura, comando, normas e
valores. Mas a essência do fenômeno que é a disputa pela propriedade da terra, não fica
evidente, ou se esconde atrás da caracterização de justiça social que é a reforma agrária.
A essência16 do fenômeno se desvenda quando a pergunta é feita ao sujeito da ação:
Por que você entrou na luta pela terra em 1987? E ele responde:
16
Na relação das categorias da dialética descritas pelo materialismo histórico, encontramos a relação da
“essência e o fenômeno”. No campo da busca do conhecimento os aspectos visíveis e acessível a percepção
sensorial são os aspectos externos do fenômeno, ao passo que aquilo que está oculto e é inacessível a percepção
direta é entendido como a essência. “A variação da essência determina a variação do fenômeno. Ao mesmo
tempo a essência revela-se nos fenômenos e não pode revelar-se de outra forma senão nos fenômenos. O
113
O entrevistado deixa claro que ele queria “conquistar um pedaço de terra”; sonho
alimentado antes mesmo de conhecer o MST. Quem lhe propôs a forma de conquistá-la foi o
Movimento. Mas a luta coletiva e os demais interessados impuseram uma marca político
ideológica, expressada pelo signo da reforma agrária, deixando obscuro, dentro do fenômeno
da ocupação, a verdadeira essência do latifúndio e do interesse pela propriedade individual:
“um pedaço” pequeno do grande pedaço de terra que já era uma propriedade.
A ocupação e o acampamento são duas mediações fundamentais interligadas. Isso
porque ao se preparar a primeira ação, por conseguinte, planeja-se a segunda. E a partir delas
se estabeleceram outras relações com mediações até então desconhecidas pelos sujeitos da
ação, mas que tiveram de aprender a lidar com elas se quisessem alcançar o objetivo de
“conquistar o pedaço de terra. Estruturaram comissões (repetindo as orientações gerais do
MST), formadas pelos próprios ocupantes como: segurança, alimentação, saúde, religião,
barracas, trabalho, imprensa e coordenação geral (MST, 1986, p. 76)17.
Quando falamos da linguagem em prosa e verso como mediação para a formação da
consciência, nos referimos à categoria dialética do conteúdo e forma. Podemos comprovar
principalmente pelas letras das músicas, embora com certos limites no conteúdo, elas foram
de fácil divulgação pela forma poética em que estavam estruturadas e se misturavam às
formas já experimentadas.
A animação das assembléias enquanto lugar de celebração foi uma herança trazida das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), onde, nas cerimônias, não podia haver sujeito
passivo:
A preocupação com o humano, mais do que com as coisas materiais, foram marcas
que ficaram nos entrevistados, quando perguntados sobre o que tinham aprendido no MST?
As respostas foram surpreendentes: a organizar, trabalhar, viajar, ser amigo, companheiro e
ter fidelidade. Para alguns outros o movimento foi uma escola.
[...] Significa que um movimento iniciado em um país jovem só pode ter êxito se
assimilar a experiência dos outros países. Ora para tanto não é suficiente apenas
conhecer essa experiência ou limitar-se a copiar as últimas resoluções. É preciso saber
proceder à análise crítica dessa experiência e controlá-la por si próprio [...]. (LENIN,
1986, p. 19).
reivindicações não iam além das melhorias econômicas, por conseguinte a consciência não
evoluía nem em si mesma, nem em seus descendentes; os operários desejavam para seus
filhos uma vida melhor e não se ligavam automaticamente à luta revolucionária. Sendo
assim, não poderia haver encadeamento nas mediações concretas. As mediações funcionavam
umas isoladas das outras. Pela pesquisa podemos reafirmar o que disse Lênin, que o elemento
espontâneo não é mais do que a forma embrionária da consciência.
As letras das músicas cantadas pelos Sem Terra na década de 1980 retratam essa
realidade ideológica. A mensagem não vai além da denúncia e da solicitação do que alguém
deve fazer pela classe. A música “A classe Roceira”, considerada como o primeiro hino do
MST, não é uma elaboração dos sujeitos Sem Terra, mas assimilada por eles. A música reflete
e refrata o objetivo limitado da causa. Vejamos a seguir:
A GRANDE ESPERANÇA
Goiá e Francisco Lázaro
Essa letra de música, escrita durante a ditadura militar, no interior de São Paulo,
aborda a importância da reforma agrária para a “classe roceira”, que a espera ansiosa. Os
autores, embora assumam uma postura equivocada, individualista (dizendo que se “cada
roceiro plantar a sua área”), acreditam que a reforma agrária é a solução para a crise
econômica. Pois com a distribuição de terras, aumenta-se a produção e amenizam-se as
desigualdades sociais.
Já a segunda estrofe faz referência à classe operária, que se situa nas grandes
metrópoles (“morrem brasileiros de fome e de frio”), na sua maioria, levados pelo êxodo
rural. Uma vez instalados nas grandes cidades, o homem do campo assume uma posição de
sujeito operário, que irá disputar os empregos; como a demanda é maior do que a oferta os
salários mantêm-se muito baixos.
Em seguida, o roceiro é visto como “meeiro”, obrigado a dividir o que produz com o
“patrão ricaço”, que se apega à constituição para não deixar assinar o projeto da reforma
agrária. Fica assim, muito bem caracterizada a divisão de classe.
Na última estrofe, os autores concluem com a desqualificação do sujeito. Ao invés de
lutar pela reforma agrária, o “pobre” pedirá a Jesus que o guie e alimente. Por fim, imploram
a Jesus não deixe o capitalismo levarem a nação ao abismo.
Não se pode dizer que os autores estejam fazendo uma alusão ao socialismo, ao
contrário, eles apontam para que a redenção venha de fora e não da própria intervenção do
sujeito Sem Terra. A linguagem dos versos não interliga a causa da terra com as mudanças
sociais. Isso deveria ser feito com outra mediação, ou seja, o curso de formação deveria
instruir as lideranças, fazendo os líderes compreenderem que a conquista da terra somente,
não apresentaria resultados satisfatórios na evolução da consciência de classe daqueles
trabalhadores. Mas o MST, por excesso de espontaneidade e despreparo político de sua base,
não conseguia ter um projeto que aproveitasse a luta pela conquista imediata, com a luta pelo
poder político. Mesmo na década de 2000, quando já estava mais amadurecido, o fator
mobilizador, continua sendo a luta econômica. Logo, na falta da diretriz política, a mensagem
poética também se desqualificou.
117
Após a confirmação por diversas vezes (nos dois assentamentos pesquisados) ficou
evidente que a busca pela propriedade individual se colocou como uma mediação
desagregadora na passagem do acampamento para o assentamento.
Semelhantemente com o que ocorre com a produção de mercadorias, no Movimento
Sem Terra se gasta um tempo social para produzir a conquista da terra. O tempo empregado
dá ao ocupante o direito moral e jurídico de ser dono da terra individualmente.
Tal qual ocorre com a mercadoria, atribuí-se à propriedade individual, um poder
sobrenatural. Esse poder é que atraiu os entrevistados a ocuparem as duas fazendas que se
tornaram os assentamentos em que pesquisamos.
Ao tomarmos em mãos o resultado das pesquisas feitas, podemos constatar diversas
contradições na própria relação entre as mediações. Contradições que afetam as categorias
como: classe, convivência, participação, consciência e, de uma maneira ainda mais subjetiva,
a alegria, a afetividade e a atenção.
[...] Na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligação
local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade
alguma, ligação nacional alguma, nem organização política, nessa medida não
constituem uma classe. (MARX, 1978, p. 116)
Pelas pesquisas não podemos afirmar que os assentamentos não constituem nenhuma
comunidade, pelo contrário, depois de instituídos, não se dissolvem, embora haja
substituições de famílias, como é o caso do Assentamento 4045, em que a maioria das
famílias que deram origem ao assentamento foi substituída. O processo da formação da classe,
iniciado com a ocupação, claramente retrocedeu.
O interesse pela propriedade como essência do fenômeno da ocupação é o responsável
pela desarticulação das relações do acampamento e pelo “entristecimento”, “desorganização”
e “desprezo pela participação nas reuniões”, no assentamento. Logo, deixar de cantar as
músicas que animaram a busca da vitória, não é apenas um sinal de entristecimento, mas um
atentado de morte contra a memória e a preservação da tradição.
Podemos verificar no quadro 8 o que os pais queriam alcançar antes de irem para a
terra; o que eles mantêm após 23 anos de assentamento e o que os jovens praticam, na visão
dos pais, como forma de medir a continuidade histórica:
118
Quadro 8 – O que os pais queriam antes de alcançar irem para a terra – O que os mantém após
23 anos – O que os jovens praticam na visão dos pais
Vemos nesse quadro comparativo, que os pais, como sujeitos da luta imediata, sequer
conseguiram manter a dinâmica da causa que os levaram à conquista da terra em movimento,
articulada com outras experiências. A conquista da terra e a organização do assentamento
desmobilizaram a coletividade. Ademais, os jovens não estão sendo vistos como
continuadores da causa, que os mais velhos têm por ela saudade.
Podemos constatar que não há conscientemente a proposição de continuidade de uma
causa maior do que a conquista imediata, nem nos pais, nem nos filhos. Isso não somente fez
119
retroceder a experiência feita, como também não pôde, no olhar dos primeiros ocupantes, ter
sequência nas novas gerações.
Não tínhamos intenção desvendar se os filhos devem ser continuadores da causa dos
pais. Contudo, buscamos verificar perante a juventude sua opinião sobre o Assentamento
4045. Ao perguntar se no assentamento existe algum lugar onde se valorize a cultura, a poesia
e a arte ou outras manifestações artísticas, as respostas foram unânimes: não existe um lugar
para isso, o assunto é tratado apenas na escola, nas aulas de literatura. Ou seja, a mediação do
espaço para o lazer e para a cultura nunca despertou nas lideranças interesse de organizá-lo,
mesmo que fosse informalmente como ocorreu no acampamento, ao redor da fogueira, nas
noites culturais18 etc. Essas mediações não existem mais para os pais, e para os jovens o
momento é outro. Contatou-se assim que os filhos não querem ser continuadores da causa dos
pais, pois para isso deveriam ser revividas as mediações que, na prática comunitária, estão
mortas. Significaria por sua vez, buscar fazer dos jovens proprietários de terra, envelhecendo-
os antecipadamente. Possivelmente, se faz necessário buscar outro caminho para a geração de
renda, que atraia a juventude para o trabalho não martirizante e entristecedor.
Durante o estágio supervisionado I (realizado entre os meses de maio e julho de 2009),
em atividade extraclasse do Curso de Letras, com o tema: “O uso das diferentes linguagens
como metodologia da formação da consciência com jovens do Assentamento 4045” (quando
se fizera presente também um grupo de capoeira, e juntos realizaram uma pesquisa sobre as
músicas de capoeira, e outras músicas cantadas no período do acampamento) analisamos e
encenamos a poesia intitulada “A morte de Nanã”, de Patativa do Assaré. Tomando como
base essa produção literária, entrevistaram-se 10 jovens, os quais responderam questões
voltadas para a cultura em geral, autores conhecidos e, posteriormente, sobre a poesia em
estudo.
Verificamos que os jovens, todos do ensino médio, possuem um conhecimento amplo
sobre autores como: Machado de Assis, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade,
Salomão Pinto, Patativa do Assaré, mas nenhum da base do MST. Com isto também
concluímos que a proposta pedagógica elabora pelo MST, não compõe o conteúdo educativo
da escola do campo.
A análise da poesia “A morte de Nana” nos deu o indicativo de que os jovens do
assentamento estão ligados em outras mediações. Identificaram-se com as partes mais
18
Noites Culturais, também chamadas de “Jornadas socialistas”, é uma denominação dada ás noites festivas
organizadas por uma comissão ou setor de cultura, nas quais são apresentadas as produções artísticas envolvendo
os próprios integrantes do acampamento.
120
comoventes da história e localizaram facilmente os culpados pela morte de Nanã. Mas não
estão dispostos a assumirem a causa de seus pais, defendem uma causa particular, embora
tenham a mesma posição de classe de seus pais e do Movimento que garantiu o direito de
estudarem no próprio assentamento. No quadro 9 pode-se medir o nível de entendimento dos
jovens entrevistados sobre os problemas sociais que os pobres do campo vivem.
Quadro 9 - Nível de entendimento dos jovens entrevistados sobre os problemas sociais que os
pobres do campo vivem
J Um pai sofrendo e sabia que Quando ele diz que a filha A fome. Se os patrões
não poderia dar jeito, no que a era tudo pra ele e no final dessem condição para as
filha tava sentindo. quando a filha morreu. pessoas de baixa renda
trabalhar.
Fonte: Pesquisa realizada pelo autor em julho de 2009, no Assentamento 4045.
121
CONSIDERAÇÕES FINAIS
pau corre o machado”, simulando a defesa, quando diz que “se matarem um daqui, dez de lá
vamos matar”, perdeu todo o sentido para a situação dos trabalhadores assentados.
Percebemos que a mudança das ideações exigia a formação de novas mediações e
vice-versa. Se a situação de classe muda, ela pode afetar a posição de classe dos sujeitos e a
linguagem acompanha, constituindo e registrando as mudanças. A consciência como parte das
relações em movimento, também é afetada, retorna para a condição “em si”, fazendo com que
o sujeito mantenha um sentimento de classe. Por limitações nas condições e a ausência de
mediações, a consciência “para si”, que deveria promover as necessidades do conjunto como
referências, aparecem esporadicamente, participando de mobilizações, doando alimentos para
outras ocupações etc. Mas o empenho maior é dedicado ao seu projeto individual.
Da mesma forma, ao analisarmos o assentamento Quilombo II (onde as moradias
foram organizadas em núcleos e os lotes parcelados individualmente) verificamos que,
embora seja um assentamento mais recente, as opiniões sobre o isolamento e a desconexão
com a vida social é semelhante ao Assentamento 4045, realizado pelo MST, no Estado da
Bahia, em 1987.
Para os assentados de nossa pesquisa, o movimento para chegar à essência dos
fenômenos é bloqueado pelas mediações (propriedade, lote individual, crédito etc.) que
interrompem a formação da consciência, não deixando que ela passe da condição de “em si”
para a condição de “para si”.
Verificamos que, desde o início, há um desejo de conquistar a propriedade individual
do lote. A luta acontece com este objetivo e, no decorrer do processo, o desejo se torna uma
reivindicação. Nisso, o sujeito da ação vai se apropriando de outras objetivações sociais já
estabelecidas para fortalecer a sua, que lhe garante o direito à propriedade privada do lote
como: o crédito, a casa, o tipo de ferramentas de trabalho etc. adquiridas todas
individualmente.
A pesquisa demonstrou que, mesmo sem estabelecer conflitos entre os momentos
históricos, a consciência tem dificuldades em separar na linguagem poética o que conduz
ideologicamente à alienação ou à emancipação.
As músicas cantadas nos acampamentos pesquisados expõem mensagens radicais,
muitas vezes, tecem, ingenuamente, críticas aos exploradores. Assim, ocorre, por um tempo
no assentamento, principalmente nas reuniões e nas assembléias. De modo que, nesses
eventos, o próprio senso comum serve como censura para outros tipos de mensagens. Mas,
em eventos festivos, há tolerância, ela permite que as mensagens da indústria cultural
penetrem, facilmente, por meio de ritmos atrativos em ambientes culturais.
127
mover pelos interesses particulares. A pesquisa indicou que, por si só, os assentados não
conseguem perceber quais são as novas contradições criadas a partir da conquista da terra. Os
assentados e as lideranças, em muitos casos, não conseguem figurar na mente o que devem
realizar, não vão além das próprias iniciativas paliativas. Por isso, o assentamento estabiliza
em um estágio pouco atrativo, que leva os filhos, nascidos e crescidos naquele local, não
sentirem afeição por ele. Daí, o desejo de partirem em busca de um lugar onde possam
produzir os seus próprios meios de vida para fazer a própria história.
Por sua vez, a pesquisa demonstrou que há sinais de resistência. No Assentamento
4045, o grupo de capoeira formado por jovens, filhos de assentados, que permanecem e
estudam no Colégio Eloy Ferreira, procura por meio das músicas e ritmos próprios preservar a
tradição dos lutadores negros do período colonial brasileiro. Chegamos a essa conclusão
depois de observarmos os alunos durante o Estágio Supervisionado I. Na oportunidade os
discentes acompanharam à linguagem gestual, ao som do berimbau e às cantigas históricas ou
improvisadas no momento da apresentação. Frequentemente surgem letras escritas pelos
participantes que afirmam valores e aspectos culturais da comunidade.
O sentimento de pertença ao processo dos mais velhos e o apego a terra, como se ali
fosse o último lugar de findar os dias, aparecem constantemente nas palavras dos
entrevistados.
No aspecto técnico, em parte, há sinais de evolução. Há assentados que adquiriram
máquinas motorizadas e pequenas fábricas para industrializar os alimentos, embora a
tendência maior seja para o trabalho artesanal, realizado predominantemente, com a força do
trabalho familiar. A referência político organizativa continua sendo o MST. O movimento é
visto como uma força imprescindível que, além de ajudar a tirar o sujeito da situação de
exploração e do trabalho escravo, identificado pelos entrevistados, deu condições para que
cada ser social encontrasse a função social.
No entanto, a pesquisa constatou que, para a maioria dos entrevistados, o MST é uma
entidade externa, que aparece na linguagem sempre na terceira pessoa do plural, formado por
um coletivo de militantes que se dedicaram a ajudá-los a melhorar de vida. Por isso, em
homenagem àqueles que os ajudaram, honram a bandeira, o hino e as músicas cantadas como
mensagens, que proporcionaram o segundo nascimento.
Constatamos na análise, que a relação do gênero humano com o sujeito, aparece
claramente na linguagem como forma de tratamento. De modo que, anteposto ao nome, um
adjetivo encontra-se funcionando sob efeito do sentido figurado, ocupando simbolicamente o
lugar dos pronomes possessivos: “meu” ou “nosso”. Assim o “companheiro Pedro”, é meu, é
129
nosso e demais ninguém. Fortalecem-se as relações afetivas, mas esse referencial não é
gratuito, é reflexo de um sistema orgânico constituído que pertence enquanto lembrança, ao
sujeito que afirma.
Devido à descontinuidade do processo de acampamento, no qual a organização
comunitária era a produção genérica de cada um, na oportunidade cada um objetivava as suas
idéias, objetivando-se a si próprio; desta maneira, afirmava-se enquanto acampado ou
coordenador de alguma equipe, adquirindo um novo aprendizado. No assentamento,
semelhantemente ao processo de alienação na produção, o afastamento das mediações faz
com que os “produtos”, mesmo os organizativos, sejam outros e a qualificação intelectual,
devido à carência participativa e deficiências formativas, não se elevam.
A pesquisa indicou também que, por meio da linguagem artística, os assentados
retratam as grandes perdas. Ao serem perguntados sobre as músicas e poesias utilizadas no
período de acampamento, descreveram partes das letras e títulos, retendo na memória as
mensagens das mesmas, fazendo leituras diferenciadas. Recordam-se das fogueiras à noite,
das cantigas, samba de roda e histórias contadas. Ao compararem com o tempo presente,
demonstram certa frustração, por não conseguirem repetir mais os valores artísticos e afetivos.
Concluímos que, além dos diferentes aspectos da integração e das diferentes
mediações que proporcionavam às manifestações, a que mais combina com o vazio deixado é
a mediação de lugar. Não há nos assentamentos um lugar onde se possa manifestar a
linguagem em prosa e em verso ou de convivência real. A escola aparece para a juventude
como um lugar onde podem lidar com a linguagem em prosa e verso, mas permanece como
ensino obrigatório. Por outro lado, os adultos não reproduziram a mediação que tinham no
acampamento e visivelmente empobreceram nos aspectos artísticos, culturais, políticos,
organizativos e afetivos.
Dessa forma, percebemos que a linguagem artística, como colaboradora do processo
organizativo, é mais importante no período em que a luta é mais intensa. Após a conquista da
terra, ela adormece nos aspectos poéticos e aparenta estar envergonhada como se as pessoas
tivessem se tornado outras e certos tipos de atitudes não ficassem bem nelas. Mas a arte em si
se manifesta na capacidade edificadora das famílias que organizam as suas construções;
edificam pomares e jardins e sentem orgulho pelos animais saudáveis que possuem. Tudo
isso, funciona como se fosse parte de uma paisagem onde o pintor soube aproveitar os
espaços.
Reconhecemos, no presente estudo, que a oralidade para os assentados continua sendo
um fator de manutenção da memória histórica. O sujeito que vive é o sujeito que guarda, a seu
130
modo, o relato de sua vivência. As palavras, para aqueles que gritavam “Reforma agrária Já!”
(entre as estrofes da música “A classe roceira”), ao serem motivadas, são recordadas com
sinceros sorrisos.
As diferentes manifestações da cultura também expressam diferentes linguagens. Há o
falar gesticulado, o falar cantado e o falar declamado. Em todos estes falares há mensagens
emitidas com as mãos, entonações de voz, emoções e o próprio silêncio nas longas pausas
para recordar. Eles têm sentido comunicativo. Os lugares falam, assim como os objetos
históricos, fotografias e as figuras humanas que ficaram para trás, justamente porque
buscaram outro caminho para continuarem a vida.
Os objetos, fruto do trabalho dos assentados, não têm em seus produtores o sentimento
de mercadoria. Partilham o fruto como se ele não pertencesse a ninguém. Nisso percebemos
que os valores, além do conteúdo histórico, estão carregados de sentimentos de respeito e
apreço por aqueles com os quais repartem a confiança.
A partir das relações encontradas na pesquisa podemos considerar que a linguagem é
um fenômeno social. Os nomes das plantas, dos frutos e dos animais e demais objetos,
misturam-se com os nomes das pessoas, dando a entender que a língua é de fato uma
instituição exterior ao indivíduo. Muitas palavras têm significado próprio, principalmente
quando se trata da linguagem em prosa e verso. O lugar social determina o sentido da
mensagem.
É possível reaprender os sentidos das palavras, buscando os sentidos nos discursos: a
expressão “lona preta” produz um sentido próprio; quer dizer casa, lugar onde se luta pela
terra. Seria inconcebível alguém, que estivesse fora dessa realidade, viver por longos
períodos abrigado embaixo de um simples plástico.
Consideramos, com base em Bakhtin (1999), que o signo ideológico tem o poder de
refletir outra realidade. A lona preta, no sentido ideológico, deixa de ser um plástico e passa a
ser um objeto de resistência. Sem esse signo não haveria a ideologia e a categoria Sem Terra.
Se não há palavras produzidas pelos trabalhadores Sem Terra, utilizadas por seus
antepassados, eles são criadores do próprio sujeito Sem Terra, formadores de uma nova
categoria de trabalhadores em luta, com capacidade de dar outros sentidos às palavras criadas.
Ser um ser sem-terra é normal, há milhões de pessoas em nossa sociedade que não possuem a
propriedade da terra, mas, ser Sem Terra, sujeito, significa ocupar um lugar próprio e
representar algo que é mais do que um ser social, mas uma cultura social e política.
Verificamos nesse sentido que a linguagem e a consciência andam juntas e se
fortalecem na práxis social. Ao ocupar a terra, o sujeito social marca a sua posição ideológica
131
e é reprimido pela força da ideologia contrária, que afirma pela linguagem da repressão a sua
autoridade.
A partir das evidências encontradas na pesquisa, podemos considerar que a linguagem
em prosa e verso pode figurar como mediação para a formação da consciência, mas ela
depende de outras mediações estruturadoras da vida social. A linguagem de qualquer forma
não pode ser considerada no assentamento como a mediação principal, isto porque, a
atividade principal lá é o trabalho produtivo. As mediações que antecedem ou acompanham a
linguagem são aquelas que permitem ao sujeito, em primeiro lugar, fazer história pela
produção dos seus meios de vida. Isto se coloca de tal maneira que, se o MST quiser retomar
a formação da consciência e valorizar a linguagem, terá que resolver os dilemas produtivos e
de convivência nos assentamentos.
Por outro lado, o estudo revelou que as mediações não podem estar desligadas umas
das outras, elas formam uma totalidade que influem sobre os desejos e as motivações dos
seres sociais que precisam se colocar como sujeitos da ação.
Os resultados da pesquisa indicaram que as linguagens em qualquer aspecto são
importantes enquanto expressões culturais. A linguagem em prosa e verso, quando inserida na
luta social, cumpre o papel de encantar, reunir e motivar a participação. Mas elas dependem
das mediações estruturadoras para possibilitar o surgimento estruturante das relações sociais e
políticas. Sendo assim, a linguagem encontra-se relacionada aos demais fenômenos, formando
uma totalidade.
Percebemos que o movimento social, em particular o MST, que nos proporcionou a
elaboração deste trabalho, funciona como ondas em estágios diferentes. No período da
ocupação, principalmente, quando as forças contrárias ameaçam, os sujeitos em luta, eles se
unem para defender a si e a causa imediata. Logo, a convivência e a experiência feita, marcam
mais profundamente a consciência social. As músicas são apreendidas, surgem simbologias
importantes e, de alguma maneira, novos conceitos como: participação, negociação, união,
organização, etc. são assimilados. Na onda seguinte, quando se organiza o assentamento, essa
onda inicial arrefece e cede lugar aos interesses particulares.
A linguagem está presente no fazer histórico e no fazer humano. Podemos concluir
dizendo que, por ser a linguagem uma elaboração humana, ela deve receber os mesmos
cuidados que são destinados aos seus construtores de significados e ideologias.
132
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APÊNDICES
2 – Quando e como?
6 – Conhece autor?
14 – Como?
QUADRO 4 – Síntese das entrevistas com jovens do 4045 contato com a poesia
1 Retrato da diferença de classes e Na parte inicial quando fala da A fome. Foi uma coisa mais da
do problema da forme dor de perder a filha. natureza,a seca ele teve que ser
despedido.
2 Não entendi Quando Nanã morreu A fome. Um homem rico
3 Um camponês que perdeu por No final quando ele diz: “Nanã Não foi só a seca, foi n ocaso o
causa da seca e da crueldade dos vem me buscar!” Com ao dizer, o patrão ser cruel. Se não tivesse
homens o que de mais precioso mais importante em se ido e não despedido o pai, não haveria este
tinha. valia a pena ele ficar. desfecho.
4 Um pai que foi demitido numa O momento da morte A fome. Culpados eu acho que
região de seca e que a filha acabou não teve porque o patrão demitiu
morrendo de fome. porque estava também em crise.
Mas o patrão pensou só em si.
5 Um sertanejo na seca de 32 que Na hora que ela se despede do Foi a seca. O patrão do pai dela
vivia não muito bem, mas pai. Ali a gente vê todo o que nem deu ligança. O pior vilão
saudável. Veio a seca e acabou o sentimento. foi o patrão do pai dela.
que tinha. O patrão nem deu
ligança e a menina foi secando.
6 Desespero de um pai Quando a filha morreu Fome, pobreza. Burguesia e
latifúndio.
7 Fala da morte da filha na seca de Quando fala que a filha dele Por causa das necessidades que
32. morreu por causa do patrão. eles estavam passando. O culpado
é o patrão.
8 Diz que perdeu a filha por falte de Quando a filha dele morreu. Em primeiro lugar é o
emprego.Onde o patrão não pensou Aquela parte é fortíssima. capitalismo. Depois as pessoas
nele e acabou demitindo. que pensam em ganhar mais e
esquecem do próximo.
9 Entendi assim, a forma de tratar as Quando a moça morreu. A falta de solidariedade do patrão
pessoas com relação a fome. No e com isso a fome. Acredito que o
caso, que o patrão, deveria outra pai e também o patrão.
oportunidade ao seu funcionário,
impedindo que a fome trouxesse
mais conseqüência.
10 Um pai sofrendo e sabia que Quando ele diz que a filha A fome. Se os patrões
não poderia dar jeito, no que era tudo pra ele e no final dessem condição para as
a filha tava sentindo. quando a filha morreu. pessoas de baixa renda
trabalhar.
Quadro organizado pelo autor sobre entrevistas realizadas em julho de 2010
142
NOME Porque entrou Importância do O que aprendeu O que representa o Diferença entre o
na luta em 1987? MST? com o MST? MST hoje? acampamento e o
assentamento, animação?
1 A gente vivia na O movimento nos Me deu o Represente uma Diferença grande. Muitos
escravidão explicou e entendimento do grande força. Ta no venderam os lotes.
trabalhou por nós que significava a INCRA e na
luta presidência.
2 Precisava da terra Foi onde eu nasci Ser companheiro, Mudou muito Mudou muito. O Movimento
de novo amigo e fiel. porque da terra tomou outro rumo.
pulou para a disputa
eleitoral.
3 Precisava e pra Foi bom. Deu Através da união Sempre está Mudou. Dificuldade de ir em
conquistar a terra orientação e se conquista. orientado reuniões e assembléias.
ensinamentos.
4 Precisava de terra Se não fosse pelo ? ? O Pessoal está mito desligado
para trabalhar movimento não
estaria aqui.
5 Necessidade da Veio organizar a Que a luta se faz Por estar no governo Mudou a participação. Tem
terra luta pela terra. com determinação busca melhorias muitos compradores.
e organização.
6 Procurando uma Se não fosse por Tudo de bom Um cabeça. Uma Hoje é mais triste, não tem
coisa melhor eles não estaria pessoas que manda mais aquelas alegrias. O povo
aqui. na gente. é estranho.
7 Porque precisava Interessou muito Desenvolvi Luta pela gente Na animação era mais agora
pela gente. bastante está parado.
8 Precisava de um Muita felicidade A trabalhar Hoje estou isolado Era bom. Hoje a amizade
pedaço de terra acabou
9 Arrumar um Ajudou a melhorar Eu pouco participo Pouco participo O povo não participa mais.
pedaço de terra de vida
10 Precisava da terra Me valorizou Trabalhar, viajar e A mesma coisa Tinha mais animação
para trabalhar. a conhecer.
Quadro organizado pelo autor sobre entrevistas realizadas em fevereiro de 2010
143
ANEXO
A MORTE DE NANÃ
Patativa do Assaré.
1
Eu vou contá uma históra
Que eu não sei como comece,
Pruquê meu coração chora,
A dô no meu peito cresce,
Omenta o meu sofrimento
E fico uvindo o lament
De minha arma dilurida,
Pois é bem triste a senteça
De quem perdeu na isistença
O que mais amou na vida.
2
Já tou véio, acabrunhado,
Mas inriba deste chão,
Fui o mais afurtunado
De todos fios de Adão.
Dentro da minha pobreza,
Eu tinha grande riqueza:
Era uma querida fia,
Porém morreu muito nova.
Foi sacudida na cova
Com seis ano e doze dia.
3
Morreu na sua inocença
Aquele anjo encantado,
Que foi na sua insistênça,
A cura da minha dô
E a vida do meu vivê.
Eu beijava, com prazê,
Todo dia, demenhã,
Sua face pura e bela.
Era Ana o nome dela,
Mas, eu chamava Nanã.
4
Nana tinha mais primo
De que as mais bonita jóia,
Mais linha do que as fulô
De um tá de jardim de Tróia
Que fala o dotô Conrado.
Seu cabelo cachiado,
Preto da cô de viludo.
144
5
Pelo terrêro corria,
Sempre sirrindo e cantando,
Era lutrida e sadia,
Pois, mesmo se alimentando
Com feijão, mio e farinha,
Era gorda , bem gordinha
Minha querida nana,
Tão gorda que reluzia.
O seu corpo parecia
Uma banana maçã.
6
Todo dia, todo dia,
Quando eu vortava da roça,
Na mais compreta alegria,
Dentro da minha paioça
Minha Nanã eu achava.
Por isso, eu não invejava
Riqueza nem posição
Dos grande deste país
Pois eu era o mais feliz
De todos fio de Adão.
7
Mas, neste mundo de Cristo,
Pobre não pode gozá.
Eu, quando me lembro disto,
Dá vontade de chorá.
Quando há seca no sertão,
Ao pobre farta feijão,
Farinha, mio e arrôis.
Foi isso o que aconteceu:
A minha fia morreu,
Na seca de trinta e dois.
8
Vendo que não tinha inverno,
O meu patrão, um tirano
Sem temê Deus nem o inferno,
Me dexou no desengano,
Sem mais nada ne arranjá.
Teve que se alimentá,
Min há querida Nana,
No mais penoso matrato,
145
9
E com as braba comida,
Aquela pobre inocente
Foi mudando a sua vida,
Foi ficando deferente.
Não sirria nem brincava,
Bem pôco se alimentava,
E inquanto a sua gordura
No corpo diminuía,
No meu coração crescia
A minha grande tortura
10
Quando ela via o angu,
Todo dia demenhã,
Ou mesmo o roxo beju
Da goma de mucunã,
Sem a comida querê,
Oiava pro dicumê,
Depois oiava pra mim
E o meu coração doía,
Quando Nana me dizia:
Papai, ô comida ruim!
11
Se passava o dia intêro
E a coitada não comia,
Não brincava no terrêro
Nem cantava de alegria,
Pois a farta de alimento
Acaba o contentamento,
Tudo destrói e consome,
Não saía da tipóia
A minha adorada jóia,
Infraquecida de fome.
12
Daqueles óio tão lindo
Eu via a luz se apagando
E tudo diminuindo.
Quando eu tava reparando
Os oinho da criança,
Vinha na minha lembrança
Um candiêro vazio
Com uma tochinha acesa
Representando a tristeza
Bem na ponta do pavio.
146
13
E, numa noite de agosto,
Noite escura e sem luá,
Eu vi crescê meu desgosto,
Eu vi crescê meu pená.
Naquela noite , a criança
Se achava sem esperança.
E quando vêi o rompê
Da linda e risonha orora,
Fartava bem poças hora
Pra minha Nanã morrê.
14
Por ali ninguém chegou,
Ninguém reparou nem viu
Aquela cena de horrô
Que o rico nunca assistiu,
Só eu e minha muié,
Que ainda cheia de fé
Rezava pro Pai Eterno,
Dando suspiro maguado
Com o seu rosto moiado
Das água do amo materno.
15
E, enquanto nós assistia
A morte da pequenina,
Na manhã daquele dia,
Veio um bando de campina,
De canaro e sabiá
E começaro a cantá
Um hino santificado,
Na copa de um cajuêro
Que havia no terrêro
Do meu rancho esburacado.
16
Aqueles passo cantava,
Em lovô da despedida,
Vendo que Nanã dexava
As misera desta vida.
Pois não havia ricurso,
Já tava fugindo os purso.
Naquele estado misquinho,
Ia apressando o cansaço,
Seguindo pelo compasso
Da musga dos passarinho.
17
Na sua pequena boca
147
Eu vi os laibo tremendo
E, naquela afrição loca
Ela também conhecendo
Que a vida tava no fim,
Foi regalando pra mim
Os tristes oinho seu,
Fez um esforço ai, ai, ai,
E disse: “abença, papai”
Fecho os óio e morreu.
18
Enquanto finalizava
Seu momento derradêro,
Lá fora os passo cantava,
Na copa do cajuêro.
Em vez de gemido e choro,
As ave cantava em coro
Era o bendito prefeito
Da morte de meu anjinho.
Nunca mais os passarinho
Cantaro daquele jeito.
19
Nanã foi, naquele dia,
A Jesus mostrá seu riso
E omentá mais a quantia
Dos anjo no Paraíso.
Na minha maginação,
Caço e não acho expressão
Pra dizê como é que fico.
Pensando naquele adeus
E a curpa não é de Deus,
A curpa é dos home rico.
20
Morreu no maió mau trato
Meu amô lindo e mimoso.
Meu patrão, aquele ingrato,
Era o maió criminoso,
Foi o maió assassino.
O meu anjo pequenino
Foi sacudido no fundo
Do mais pobre cimitéro
E eu hoje me considero
O mais pobre deste mundo.
21
Saluçando, pensativo,
Sem consolo e sem assunto,
Eu sinto que inda tou vivo,
148