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ENTRE A ACADEMIA E OS
TRIBUNAIS: a construção social
do direito constitucional brasileiro
Carlos Victor Nascimento dos Santos
Doutorando em Teoria do Estado e Direito da Constitucional no PPGD/PUC.
E-mail: carlosvictor@oi.com.br
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 17, nº 2, 2015. pp. 64-85 65
SANTOS, Carlos Victor; SILVA, Gabriel
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são produzidas a partir desses dogmas, que exercício de sua autoridade. E o exercí-
se consolidam por meio da jurisprudência5 cio de tal autoridade não está restrito
e da produção de “manuais de Direito”6. somente ao julgador, ao passo que no
O jurista, então, reproduz e discute campo jurídico ela pode ser construída
os dogmas e suas interpretações, esta- com base na deferência a determinado
belecendo uma disputa entre estas, de autor, não necessariamente pelos re-
modo a identificar um “argumento ven- sultados obtidos em sua pesquisa, mas
cedor”. Essa prática reflete o “contradi- pelo status adquirido no campo jurídi-
tório” utilizado nos tribunais, marcado co. Segundo Silva (2014), esse processo
pela disputa de teses jurídicas, com o fito de concessão de legitimidade no campo
de convencer o julgador sobre qual ar- do Direito de interpretação do dogma,
gumento este deve escolher para aplicar sem que o intérprete assuma tal posi-
ao caso em análise (BAPTISTA; KANT ção, permite a criação de autoridades.
DE LIMA, 2010). Ou seja, a tese ven- Como consequência, “o pesquisador7
cedora não é necessariamente a melhor acaba por perder sua autoridade en-
tese ou aquela que mais se aproxima quanto autor daquilo que escreve, pois
da realidade a ser aplicada, mas aque- o que vale é o argumento de autoridade
la escolhida pelo julgador, com base no e não necessariamente a autoridade do
argumento” (SILVA, 2014: 30).
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Entendida neste trabalho como a consolidação de um Por fim, este tópico explicita outra
entendimento do colegiado em relação à determinada
matéria, alcançados tanto por meio (i) reiteradas decisões característica relacionada ao direito
em um mesmo sentido, quanto (ii) por posicionamento constitucional brasileiro: a forma pecu-
único do colegiado.
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liar de circulação das ideias por meio de
“Os livros utilizados na faculdade de Direito são chamados
de Manuais. Os Manuais trazem a interpretação de teses, interpretações e argumentações
determinado jurista sobre a lei que o manual abrange. Estes tipicamente constitucionais, ganhando
juristas são chamados de Doutrinadores. E aquilo que é
produzido nos manuais é utilizado nas peças processuais, espaço e notoriedade não pela sua apli-
nas decisões do Poder Judiciário e nas pesquisas no campo cabilidade prática, mas pela “autorida-
do Direito. Estas geralmente discutem os posicionamentos
dos doutrinadores, de modo a utilizá-los para confirmar ou de” de quem as utiliza. O movimento
comprovar determinado argumento jurídico. A questão é identificado nos sugere a análise de ou-
que os manuais são releituras de uma autoridade jurídica
a respeito de determinada lei. É um conhecimento
tro importante aspecto: os espaços utili-
técnico, que não gera consenso entre a própria técnica que zados como arena de debates ao cenário
esta posta. Não é incomum que os manuais discordem
uns dos outros, trazendo “teses” opostas. Isto faz parte
descrito acima, como as pós-gradua-
da lógica do tribunal e o jurista, quando parte de um ções em Direito e os tribunais, questões
processo judicial, utiliza esses doutrinadores de modo a
confirmar um argumento que lhe é favorável. Porém, a
discutidas nos tópicos seguintes.
faculdade de Direito internaliza essa lógica do tribunal. E
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as pesquisas muitas vezes são defesas de ponto de vistas, Leia-se a expressão “pesquisador” como forma de abranger
sem comprovação empírica, mas fundadas em dogmas, todos aqueles que empenham esforços intelectuais na
jurisprudências e/ou doutrinadores.” (SILVA, 2014, p.30) produção do conhecimento, como o jurista, por exemplo.
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gulação, apenas a Fundação Getulio Vargas/ O movimento que preza pela incor-
RJ; Direito Processual Civil, Universidade poração do direito subjetivo no estudo do
Federal do Espírito Santo e Universidade direito constitucional brasileiro, ganhando
Paranaense; e Direito Humanos, Universi- força no Brasil principalmente na década
dade Regional do Noroeste do Rio Grande de 90 com a tese de livre docência de Luis
do Sul e Universidade de Tiradentes/MG. Roberto Barroso, na Universidade Estadual
Os demais programas de pós-graduação do Rio de Janeiro, chamada O Direito Cons-
são em Direito/Ciências Jurídicas. titucional e a efetividade de suas normas. A
O aumento da possibilidade de estu- obra utiliza o direito subjetivo, enquanto
do do direito constitucional enquanto ca- possibilidade de invocar o ordenamento
tegoria autônoma é superior ao de outras jurídico à tutela de um direito em especí-
categorias, como as descritas acima. O que fico, para demonstrar (i) a necessidade de
pode demonstrar um movimento volta- reconhecimento de titularidade de direitos
do ao ensino e pesquisa do direito cons- constitucionalmente previstos, (ii) a inves-
titucional no Brasil a partir de elementos tidura pelo titular do direito em determina-
como a maior visibilidade pública da corte da situação jurídica, e (iv) o nascimento de
constitucional do país ao discutir questões uma pretensão caso seu direito individual
políticas como jurídico-constitucionais e seja violado na situação jurídica indicada.
o interesse da academia pela investigação Exemplo: a Constituição Federal garante o
deste fenômeno. Tais movimentos podem direito à saúde para todos os cidadãos bra-
causar diversas conseqüências, dentre as sileiros. Um portador do vírus HIV que não
quais: (i) o aumento da discussão pública possui condições econômico-financeiras
de questões políticas em matérias constitu- de suprir com os gastos necessários ao seu
cionais, (ii) uma profusão maior de textos tratamento poderá recorrer ao Poder Judi-
que representem estudos com interpreta- ciário para ter garantido o seu direito. Isto
ções, argumentações e criação de teses jurí- é, um direito constitucionalmente previsto
dico-constitucionais, (iii) além de propor- garante ao seu titular uma pretensão peran-
cionar ao mercado de trabalho um número te particulares ou até mesmo ao Estado.
maior de profissionais habilitados e espe- Esse movimento ampliou os deba-
cializados em matérias constitucionais. E tes acerca dos limites e possibilidades da
um movimento representativo desses três Constituição Federal e o alcance do direi-
aspectos é o da incorporação da categoria to constitucional brasileiro, permitindo
“direito subjetivo” (comum ao direito civil) um discurso mais difundido sobre temas
no estudo e aplicação do direito constitu- constitucionais a partir desta nova pers-
cional brasileiro, estabelecendo uma rela- pectiva. Enfim, todos os movimentos aqui
ção maior entre essas duas áreas do saber indicados apontam não apenas o apro-
principalmente por elos processuais. fundamento da matéria pelos programas
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mudanças institucionais que lhe foram zando seus próprios textos como funda-
feitas (BRANDÃO, 2011), discutindo-se mentos à tomada de decisão ou desenvol-
inclusive uma possível ampliação de suas vendo e sustentando teses, interpretações
competências por meio de suas próprias e argumentações capazes de influenciar o
decisões. A proposta aqui desenvolvida julgamento dos próprios ministros. Isto
foi a de incorporar novos movimentos é, no cenário jurídico nacional, o STF re-
ao debate acerca da produção do direito presenta também uma arena capaz de de-
constitucional brasileiro, que pouco são monstrar a disputa entre “o que é dito” no
discutidos entre autores de textos que en- direito constitucional brasileiro.
volvam matéria constitucional. Outro movimento identificado refere-
No primeiro tópico, foi feita uma refle- -se à utilização de teorias estrangeiras sem
xão a partir de uma pesquisa que mapeou a devida adequação à realidade social bra-
os autores mais citados pelos ministros do sileira, influenciado dentre outros fatores
Supremo Tribunal Federal em seus votos. pela disputa de teses e argumentos no cam-
Em breve análise apenas dos vinte auto- po jurídico, devido a aparente atribuição
res mais citados foi possível perceber a de status ao argumento que busca funda-
existência de diferentes grupos de autores mentação em uma teoria estrangeira. Esse
responsáveis por conduzir as discussões processo de fundamentação do argumento
acerca do direito constitucional brasilei- embasado em uma teoria estrangeira, uti-
ro, além de identificarmos uma aparente lizado inclusive como meio de empoderar
modernidade a respeito dos autores bra- um argumento tornando-o hierarquica-
sileiros ao tratar deste tema. O primeiro mente superior a outros que lhes são con-
grupo identificado é caracterizado pela frontados, são representados tantos nas
produção a partir de diplomas normati- discussões acadêmicas que envolvam ma-
vos, possuindo baixo aprofundamento no térias constitucionais quanto entre juristas
contexto histórico-político, talvez influen- ocupantes das carreiras jurídicas tradicio-
ciado pelo autoritarismo vivido no Estado nais. Isto é, tanto nos tribunais quanto na
brasileiro à época. O segundo grupo de academia o conflito e disputa pelo domí-
autores citados pelos ministros do STF nio do conhecimento jurídico são visíveis
são eles mesmos, e o terceiro é formado a partir (i) da utilização de autores que re-
por juristas que costumam atuar perante putam ser clássicos - atribuindo autorida-
a Corte Constitucional. Neste tópico, é de ao argumento; (ii) e da incorporação de
possível identificar que os autores que se teorias estrangeiras ao direito brasileiro –
tornaram referências no direito constitu- sofisticando e empoderando o argumento
cional brasileiro são aqueles que circulam ou tese jurídica defendida.
na Corte Constitucional do país, quer seja As percepções acima demonstram a
orientando a atuação dos ministros, utili- existência de um outro conflito: o direito
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ENTRE A ACADEMIA E OS TRIBUNAIS
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