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UMA CONCEPCAO MULTICULTURAL DE DIRETOS HUMANOS BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS FE com alguma perplexidade que nos tltimos tempos tenho observado a forma como os direitos humanos se transformaram na lin- guagem da politica progressista. De facto, durante muitos anos, apés a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da politica da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda. manos em nome dos objetiv: i — tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guido emancipatério. Quer nos pafses centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forgas progressistas preferiram a linguagem da revolucio € do socialismo para formular uma politica ee Todavia, com a crise aparentemente inreversfvel_destes projetos de_emancipacéio, essas mesmas forgas pro- gressistas recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a lingua- gem_da emancipacio. E como se os direitos humanos fossem evocados. para preencher o vazio deixado pelo socialismo. Poderdo realmente os di- Teitos humanos preencher tal vazio? A minha resposta é um_sim muito condicional. Q_meu_objectivo neste trabalho ¢ identificar as condicdes em_que os direitos humanos podem ser colocados ao_servigo de uma politica progressista e emancipatéria. Tal tarefa exige que sejam clara: mente entendidas as tensdes dialécticas que informam_a moadernidade aci- 1 Noutro trabalho, analiso com mais detalhe as tenses dialécticas da modemnidade ocidental (Santos, 1995). 106 LUA NOVA N°39—97 dental’. A crise que hoje afecta estas tensdes assinala, melhor que qual- quer outra coisa, a modernidade ocidental_actualmente defronta. Em minha opiniao, a politica de direitos humanos deste final de século é um factor-chave para compreender tal crise. \dentifico ués tensdes dialécticas._A primeira ocorre entre regu- Jaco social e emancipacao social, Tenho vindo a afirmar que o paradigma da modernidade se baseia numa tensdo dialéctica entre regulagdo social e eman- cipagao social, a qual esté presente, mesmo que de modo dilufdo, na divisa positivista ordem e progresso". Neste final de século, esta tensdo deixou de ser uma tensdo criativa. A emancipacao deixou de ser o outro da regulacao. para se tornar no duplo da regulacag. Enquanto até finais dos anos sessenta as ccrises de regulagao social suscitavam o fortalecimento das politicas emanci- lpatérias, hoje a crise da regulagdo social — simbolizada pela crise do Estado regulador e do Estado-Providéncia — e a crise da emancipagao social — |simbolizada pela crise da revolugao social e do socialismo enquanto paradig- ma da transformagao social radical — so simultdneas e alimentam-se uma jda outra. A polftica dos direitos humanos, que foi simultaneamente uma lpolitica reguladora e uma politica emancipadora, est armadilhada nesta du- lplacrise, ao mesmo tempo que é sinal do desejo de a ultrapassar. civil O Estado moderno, no obstante apresentar-se como um Estado mi- nimalista, é potencialmente um Estado maximalista, pois a sociedade civil, enquanto © outro do-Estado, auto-reproduz-se através de leis e regulaces que dimanam do Estado e para as quais no parecem existir limites, desde que as regras democraticas da produgo de leis sejam respeitadas. Os dire tos humanos estfin no ceme desta tensfin: enquanto a primeira geraclio d direitos humanos (os direitos civicos e politicos) foi concebida como uma. luta da sociedade civil contra o Estado, considerado como o principal vio- lador potencial dos direitos humanos, a segunda ¢ terceira geragGes (direi- tos econdmicos e sociais e direitos culturais, da qualidade de vida, etc) ‘Por fim, a terceira tensfo ocarre entre o Estado-nagiio ¢ o que de- signamos por globalizacfio. O modelo politico da modernidade ocidental é um modelo de Estados-nagfo soberanos, coexistindo num sistema interna- cional de Estados igualmente soberanos — o sistema interestatal. A unidade e a escala privilegiadas, queda regulaco sacial quer da emancipacio so- cial_ 4 0 Estado-nacio. O sistema interestatal foi sempre concebido como uma sociedade mais ou menos anérquica, regida por uma legalidade muito ténue, e mesmo o internacionalismo da classe operéria sempre foi mais uma aspiragdo do que uma realidade. Hoje, a crosio selectiva do Estado-nacio, imputdvel a intensificacao da globalizacio, coloca a questiio de saber se, UMA CONCEPGAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 107 quer _a regulacio social quer a emancipacdo social, deverao ser deslocadas ‘para.o nivel global. E neste sentido que ja se comegou a falar em sociedade civil global, governo global e equidade global. Na primeira linha deste processo esté 0 reconhecimento mundial da politica dos direitos humanos. direitos humanos, como as lutas em defesa deles continuarem a.ter uma de- cisiva dimensio nacional, e, por outro lado. no facto de, em aspectos cru- Ciais_as atitudes perante os direitos humanos assentarem em pressupostos culturais especificos. A politica dos direitos humanos é basicamente uma Politica cultural. Tanto assim € que poderemos mesmo pensar os direitos humanos como sinal do regresso do cultural, ¢ até mesmo do religioso, em finais de século. Ora, falar de cultura e de religiao é falar de diferenga, de fronteiras, de particularismos. Como podero os direitos humanos ser uma politica simultaneamente cultural e global? Nesta ordem de idéias, o meu objectivo é desenvolver um qua- dro analftico capaz de reforgar o potencial emancipatério da polftica dos direitos humanos no _duplo contexto da _globalizacdo, por um lado, e da fragmentagao cultural e da polftica de identidades, por outro, A minh: tencéo é justificar uma politica progressista_de direitos humanos com Ambito global e com legitimidade local. ACERCA DAS GLOBALIZACOES Comegarei por especificar 9 que entendo por globalizacio, A globalizagao € muito dificil de definir. Muitas definigdes centram-se na economia, ou seja, na nova economia mundial que emergiu nas iiltimas duas décadas como consequéncia da intensificagao dramética da transna- cionalizacio da produgdo de bens e servicos e dos mercados financeiros — um processo através do qual as empresas multinacionais ascenderam a uma preeminéncia sem precedentes como actores internacionais. Para os. meus objectivos analfticos privilegio, no entanto, uma definigao de globa- lizago mais sensivel as dimensGes sociais, politicas e culturais, Aquilo que habitualmente designamos por globalizagao sao, de facto, conjuntos diferenciados de relacées sociais; diferentes conjuntos de relagées sociais dao origem a diferentes fendmenos de globalizagZo. Nestes termos, nao existe estritamente uma entidade tinica chamada globalizagao; existem, em vez disso, globalizacdes; em rigor, este termo s6 deveria ser usado no plu- ral. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e nao substantivo, Por outro lado,-enquanto feixes de relacdes sociais, as globali- zagées envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequente- 108 LUA NOVA N°39—97 mente, ea a los pid Na vi demoiados acaham por desaparecerintalmente de cena, Proponho, pois, a seguinte definigdo: a globalizagao € 0 proces- so pelo qual determinada condig&o ou entidade local consegue estender a sua influéncia a todo o globo e, ao fazé-lo, desenvolve a capacidade de de- signar como local outra condigao social ou entidade rival. As implicagées mais importantes desta definigio sio as se- guintes. Em primeiro lugar, perante as condicdes do sistema-mundo ociden- al nfo existe globalizacdo genufna: aquilo a que chamamos globalizacio é sempre a globalizacdo bem sucedida de determinado localismo, Por outras palavras, nao existe condigao global para a qual nao consigamos encontrar uma .raiz local, uma imersHio cultural especifica, Na realidade, nao consigo pensar uma_entidade sem tal enraizamento local; 0 tinico candidato poss{vel, mas improvavel, seria a arquitectura interior dos aeroportos. A se- gunda implicaciio é que a globalizaciio pressupde a localizacio. De facto, vivemos tanto num mundo de localizagdo como num mundo de globali- zacao. Portanto, em termos analiticos, seria igualmente correcto se de- finfssemos a presente situacdo ¢ os nossos t6picos de investigagao em ter- mos de localizagio, em vez de globalizaciio, O motivo porque preferimos 0 liltimo termo é basicamente porque 0 discurso cientifico hegem6nico tende a privilegiar a hist6ria do mundo na versio dos vencedores. Existem muitos exemplos de como a globalizagdo pressupde a localizagao._A lingua inglesa enquanto Ifngua franca é um desses exem- plos, A sua propagacéio enquanto lingua global implicou a localizagao de ‘outras linguas potencialmente globais, nomeadamente a lingua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globa- lizagdo, 0 seu sentido e explicagao integrais ndo podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes de relocalizago com ele ocorrendo em simultaneo ou sequencialmente. A globalizagao do sistema de estrelato de Hollywood contribuiu para a etnicizagao do sistema de estrelato do ci- nema hindu. Analogamente, os actores franceses ou italianos dos anos 60 — de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroiani a Sofia Loren — que simbolizavam ento o modo universal de representar, parecem hoje, quando revemos os seus filmes, provincianamente europeus, se n&o mesmo curiosamente étnicos. A diferenga do olhar reside em que de entio para c4 0 modo de representar holliwoodesco conseguiu globalizar-se. Para dar um exemplo de uma 4rea totalmente diferente,A medida que se como particularismos tipicos da sociedade portuguesa ou brasileira. UMA CONCEPGAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS. 109 Uma_das_transformagGes_mais_frequentement globalizacio é a compressdo tempo-espaco, ou seja, 0 processo social pelo qual os fendmenos se aceleram e se difundem pelo globo. Ainda que apa- Tentemente monolitico, este processo combina situagdes e condigées alta- mente diferenciadas e, por esse motivo, no pode ser analisado indepen- dentemente das relacdes de poder que respondem pelas diferentes formas de mobilidade temporal ¢ espacial, Por um lado, existe a classe capitalista transnacional, aquela que realmente controla a compressfio tempo-espaco. © que € capaz de a transformar a seu favor. Existem, por outro lado, as classes e grupos subordinadas, como os trabalhadores migrantes e os refu- giados, que nas duas dltimas décadas 1ém_efectuado bastante movimen- tagio_transfronteiriga. mas que nao controlam. de modo algum, a com- pressdo tempo-espaco, Entre os executivos das empresas multinacionais e os emigrantes e refugiados, os turistas representam um terceiro modo de producaio da compressdo tempo-espaco. Exi 7 fi a zago mas que, néo_obstante, permanecem prisioneiros do_seu_tempo- espaco local. Os camponeses da Bolfvia, do Peru ¢ da Colémbia, ao culti- varem coca, contribuem decisivamente para uma cultura mundial da dro- ga. mas cles préprios permanecem “localizados" nas suas aldeias e mon- tanhas como desde sempre estiveram. Tal como os moradores das favelas do Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas cangGes © as suas dangas, sobretudo 0 samba, constituem hoje parte de uma cultura musical globalizada. Finalmente, e ainda noutra perspectiva,.a competéncia global re- Guet, por vezes, o acentuar da especificidade local. Muitos dos lugares turfsticos de hoje tém de vincar o seu caracter exotico, verndculo e tradicional -Parapoderem ser suficientemente atractivos no mercado global de turismo. Para dar conta destas assimetrias, a globalizagao, tal como suge- ri, deve ser sempre considerada no plural, Por outro lado, hé que conside- rar diferentes modos de produgiio da globalizacio, Distingo quatra modos de produgao da globalizagao, os quais, em men entender dio origem a quatro formas de globalizacio. Consiste no processo pelo qual determinado fendmeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transfor- magao da ]ingua inglesa em Ifngua franca, a globalizag3o do fast food americano ou da sua misica popular, ou a adop¢ao mundial das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicagdes dos EUA. A segunda forma de globalizago chamo_glabalismo localizado, Consiste_no impacto especffico de préticas ¢ imperativos transnacionais 110 LUA NOVA N°39—97 nas condigdes locais, as quais sfo, por essa via, desestruturadas e reestru- adas de modo a responder _a esses imperativos transnacionais. Tais glo- balismos localizados induem: enclaves de comércio livre ou zonas francas; desflorestamento e destruigao maciga dos recursos naturais para pagamen- to da divida externa; uso turfstico de tesouros histéricos, lugares ou cerimonias religiosos, artesanato e vida selvagem; dumping ecolégico ("compra" pelos pafses do Terceiro Mundo de lixos t6xicos produzidos nos pafses capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversiio da agricultura de subsisténcia em agricultura para exportacfio como parte do “ajustamento estrutural"; etnicizagdo do local de trabalho (desvalorizagao do salério pelo facto de os trabalhadores serem de um grupo étnico consi- derado "inferior" ou “menos exigente"). A divisdo internacional da produco da globalizaciio assume o seguinte padrao: os paises centrais especializam-se em localismos globali- zados, enquanto aos paises periféricos é imposta a escolha de globalismos localizados. O sistema-mundo € uma trama de globalismos localizados e localismos globalizados. Todavia, a_intensificacdo de interaccGes globais pressupde outros dois processos, os quais néo podem ser correctamente caracteriza- dos, nem como localismos globalizados, nem como globalismos localiza- dos. Designo o primeiro por cosmopolitismo. As formas predominantes de dominagio nfo excluem aos Estados- -nagio, regies, classes ou grupos so- ciais e neficio as possibilidades de interaccdo transnacional criadas pelo sistema mundial. As actividad litas induem, entre outras, didlogos e or- ganizagées Sul-Sul, organizac6es mundiais de trabalhadores (a Federagio Mundial de Sindicatos e a Confederagao Internacional dos Sindicatos Li- vres), filantropia transnacional Nortc-Sul, redes internacionais de assistén- cia juridica alternativa, organizacGes transnacionais de direitos humanos, redes mundiais de movimentos feministas, organizagdes nfo governamen- tais (ONGs) transnacionais de militéncia anticapitalista, redes de movi- mentos € associagdes ecolégicas e de desenvolvimento alternativo, movi- mentos literérios, artisticos e cientificos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, no imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas pés-coloniais ou subalternas, etc, etc. Q outro processo que nado pode ser adequadamente descrito, seja como localismo globalizado, seja como globalismo localizado, é a emer- ” ae : ttim6nio comum da humanidade. Trata-se de temas que apenas fazem sen- UMA CONCEP(AO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS, mi tido enquanto reportados ao globo na sua totalidade: a sustentabilidade da vida humana na Terra, por exemplo, ou temas ambientais tais como a pro- tecgdo da camada de ozono, a_preservaciéo da Amaz6nia, a Antértida, a biodiversidade ou os fundos marinhos. Induo ainda nesta categoria a ex- ploragdo do espaco exterior, da lua e de outros planetas, uma vez que as interacgGes fisicas e simbélicas destes com a terra so também patriménio comum da humanidade, Todos estes temas se referem a recursos que, pela sua natureza, tém de ser geridos por fideicomissos da comunidade interna- cional em nome das geragées presentes e futuras. A preocupagao com 0 cosmopolitismo e com o patriménio co- mum da humanidade conheceu grande desenvolvimento nas tltimas déca- das, mas também fez, surgir poderosas resisténcias. O patriménio comum. da humanidade, em especial, tem estado sob constante ataque por parte de pafses hegemnicos, sobretudo dos Estados Unidos. Os conflitos, as resis- téncias, as lutas € as coligagdes em torno do cosmopolitismo e do pa- triménio comum da humanidade demonstram que aquilo a que chamamos globalizago é na verdade um conjunto de arenas de lutas transfronteirigas. Neste contexto € titil distinguir entre globalizagao de-cima-para- baixo e globalizagao de-baixo-para-cima, ou entre globalizago hegemdnica e globalizagao contra-hegeménica. O que eu denomino de localismo globali- zado e globalismo localizado sao globalizagées de-cima-para-baixo; cosmo- politismo e patriménio comum da humanidade sao globalizagées de-baixo- para-cima. OS DIREITOS HUMANOS ENQUANTO GUIAO EMANCIPATORIO A complexidade dos direitos humanos reside em que eles podem ser concebidos, quer como forma de localismo globalizado, quer como for ma de cosmopolitismo ou, por outras palavras, quer como globalizagao he- geménica, quer como globalizaciio contra-hegem6nica. Proponho-me de seguida identificar as condigdes culturais através das quais os direitos hu- manos podem ser concebidos como cosmopolitismo ou globalizagaio con- tra-hegem6nica. A minha tese é que, enquanto forem concebidos como di- reitos humanos universais, os direitos humanos tenderdo a operar como localismo globalizado — uma forma de globalizagio de-cima-para-baixo. /Serdo sempre um instrumento do "choque de civilizacdes" tal como 0 con- cebe Samuel Huntington (1993), ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo ("the West against the rest"). A sua abrangéncia global seré lobtida & custa da sua legitimidade local. Para poderem operar como forma 2 LUA NOVA N*39—97 de cosmopolitismo, como globalizagdo de-baixo-para-cima ou contra- hegeménica, os direitos humanos tém de ser reconceptualizados como mul- ticulturais. O multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condic¢ao de aa 7 : global_e a legitimidade local, que constituem_os dois atributos polftica contra-hegeménica de direitos humanos no nosso tempo. E sabido que os direitos humanos nao sdo universais na sua aplicag4o. Actualmente sao consensualmente identificados quatro regimes internacionais de aplicacéo de direitos humanos: 0 europeu, o inter- americano, 0 africano e 0 asidtico®. Mas serfio os direitos humanos univer- sais enquanto artefacto cultural, um tipo de invariante cultural, parte signifi- cativa de uma cultura global? Todas as culturas tendem a considerar os seus valores méximos como os mais abrangentes, mas apenas acultura ocidental tende a formuld-los como universais. Por isso mesmo, a questao da univer- salidade dos direitos humanos trai a universalidade do que questiona pelo modo como o questiona. Por outras palavras, a questo da universalidade é uma questo particular, uma questo especffica da cultura ocidental. O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designada- mente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida ra- cionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior 2 restante realidade; o individuo possui uma dignidade absoluta e irredutivel que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do in- dividuo exige que a sociedade esteja organizada de forma ndo hierdrquica, como soma de individuos livres (Panikkar 1984: 30). Uma vez que todos estes pressupostos sao claramente ocidentais e facilmente distinguiveis de outras concepgées de dignidade humana em outras culturas, teremos de perguntar por que motivo a questo da universalidade dos direitos huma- nos se tornou to acesamente debatida. Ou por que razo a universalidade sociolégica desta questo se sobrepds a sua universalidade filoséfica. Se observarmos a histéria dos direitos humanos no periodo imediatamente a seguir 8 Segunda Grande Guerra, nao é diffcil concluir que as politicas de direitos humanos estiveram em geral ao servico dos in- teresses econdmicos e geo-politicos dos Estados capitalistas hegem6nicos. Um discurso generoso e sedutor sobre os direitos humanos permitiu atroci- dades indescritiveis, as quais foram avaliadas de acordo com revoltante duplicidade de critérios. Escrevendo em 1981 sobre a manipulagéo da tematica dos direitos humanos nos Estados Unidos pelos meios de comuni- 2 Para uma andlise mais aprofundada dos quatro regimes internacionais de direitos humanos, ver Santos, 1995: 330-37, e a bibliografia ai referida, UMA CONCEPCAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 13 cagdo social, Richard Falk identifica uma "politica de invisibilidade” e uma "politica de supervisibilidade”, Como exemplos da politica de invisi- bilidade menciona Falk a ocultagao total, pelos media, das noticias sobre o trégico genocfdio do povo Maubere em Timor Leste (que ceifou mais que 300.000 vidas) e a situagiio dos cerca de cem milhdes de "intocveis" na india. Como exemplos da polftica de supervisibilidade, Falk menciona a exuberdncia com que os atropelos pés-revolucionérios dos direitos huma- nos no Irdo e no Vietname foram relatados nos Estados Unidos. A verdade 6 que o mesmo pode dizer-se dos paises da Unido Européia, sendo o exem- plo mais gritante justamente o siléncio mantido sobre 0 genocfdio do povo Maubere, escondido dos europeus durante uma década, assim facilitando 0 continuo e préspero comércio com a Indonésia. A marca ocidental, ou melhor, ocidental liberal do discurso dominante dos direitos humanos pode ser facil mente identificada em mui- tos outros exemplos: na Declaracao Universal de 1948, elaborada sem a participago da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusi- vo de direitos individuais, com a tnica excepgao do direito colectivo a au- todeterminagao, 0 qual, no entanto, foi restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade concedida aos direitos civis e politicos sobre os direitos econdmicos, sociais e culturais e no reconheci- mento do direito de propriedade como o primeiro e durante muitos anos, 0 nico direito econdmico. Mas hé também um outro lado desta questo. Em todo o mundo milhdes de pessoas e milhares de ONGs tém vindo a lutar pelos direitos humanos, muitas vezes correndo grandes riscos, em defesa de classes so- ciais e grupos oprimidos, em muitos casos vitimizados por Estados capita- listas autoritérios. Os objectivos politicos de tais lutas so frequentemente explicita ou implicitamente anticapitalistas. Gradualmente foram-se desen- volvendo discursos e priticas contra-hegemsnicos de direitos humanos, foram sendo propostas concepgdes no ocidentais de direitos humanos, foram-se organizando didlogos interculturais de direitos humanos. Neste dominio, a tarefa central da politica emancipatéria do nosso tempo con- siste em transformar a conceptualizagio e prética dos direitos humanos de um localismo globalizado num projecto cosmopolita. Passo a enumerar as principais premissas de uma tal transfor- mago. A primeira premissa é a superagdo do debate sobre universalismo € relativismo cultural. Trata-se de um debate intrinsecamente also, cujos con- ceitos polares sdo igualmente prejudiciais para uma concepgo emanci- patéria de direitos humanos. Todas as culturas so relativas, mas 0 relativis- mo cultural enquanto atitude filosGfica é incorrecto. Todas as culturas aspiram a preocupagdes e valores universais, mas o universalismo cultural, 14 LUA NOVA N°39—97 enquanto atitude filoséfica, é incorrecto. Contrao universalismo, hé que pro- por didlogos interculturais sobre preocupacées isomérficas. Contra o relati- vismo, hé que desenvolver critérios politicos para distinguir politica pro- gressista de politica conservadora, capacitagiio de desarme, emancipactio de regulacao. Na medida em que 0 debate despoletado pelos direitos humanos pode evoluir para um didlogo competitivo entre culturas diferentes sobre os principios de dignidade humana, é imperioso que tal competicao induza as coligac6es transnacionais a competir por valores ou exigéncias maximos, € ndo por valores ou exigéncias mfnimos (quais so os critérios verdadeira- mente minimos? os direitos humanos fundamentais? os menores denomina- dores comuns?). A adverténcia frequentemente ouvida hoje contra os incon- venientes de sobrecarregar a politica de direitos humanos com novos direitos ou com concepgdes mais exigentes de direitos humanos (Donnelly, 1989: 109-24) é uma manifestagdo tardia da redugao do potencial emanci- patorio da modernidade ocidental & emancipagdo de baixa intensidade possi- bilitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa in- tensidade como 0 outro lado de democracia de baixa intensidade. ‘A segunda premissa da transformagao cosmopolita dos direitos humanos é que todas as culturas possuem concepgbes de dignidade huma- na, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos. Tor- na-se, por isso, importante identificar preocupages isomérficas entre dife- rentes culturas, Designagdes, conceitos e Weltanschaungen diferentes podem transmitir preocupagdes ou aspirages semelhantes ou mutuamente inteligfveis. Na secgdo seguinte darei alguns exemplos. A terceira premissa € que todas as culturas so incompletas e problematicas nas suas concepgées de dignidade humana. A incompletude provém da propria existéncia de uma pluralidade de culturas, pois, se cada cultura fosse to completa como se julga, existiria apenas uma s6 cultura. A idéia de completude esté na origem de um excesso de sentido de que parecem enfermar todas as culturas, ¢ € por isso que a incompletude é mais facilmente perceptfvel do exterior, a partir da perspectiva de outra cultura. Aumentar a consciéncia de incompletude cultural até ao seu maximo poss‘vel é uma das tarefas ais cruciais para a construgdo de uma concep¢ao multicultural de direitos humanos. A quarta premissa é que todas as culturas tém versdes diferentes de dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com um cfrculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais aber- tas a outras culturas do que outras. Por exemplo, a modernidade ocidental desdobrou-se em duas concepgses e praticas de direitos humanos profun- damente divergentes — a liberal e a marxista — uma dando prioridade aos direitos cfvicos e politicos, a outra dando prioridade aos direitos sociais e UMA CONCEPCAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 1s econémicos’. H4 que definir qual delas prope um circulo de reciproci- dade mais amplo. Por iiltimo, a quinta premissa é que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos sociais entre dois principios competitivos de pertenga hierrquica. Um — o prinefpio da igualdade — opera através de hierarquias entre unidades homogéneas (a hierarquia de estratos socio- econdmicos; a hierarquia cidaddo/estrangeiro). O outro — o principio da diferenca — opera através da hierarquia entre identidades e diferencas consideradas tinicas (a hierarquia entre etnias ou ragas, entre sexos, entre religides, entre orientagdes sexuais). Os dois princfpios nao se sobrepdem necessariamente e, por esse motivo, nem todas as igualdades sao idénticas e nem todas as diferengas sfo desiguais. Estas so as premissas de um didlogo intercultural sobre a digni- dade humana que pode levar, eventualmente, a uma concepgdo mestiga de direitos humanos, uma concepgio que, em vez de recorrer a falsos univer- salismos, se organiza como uma constelagao de sentidos locais, mu- tuamente inteligiveis, e que se constitui em redes de referencias normati- ‘vas capacitantes. A HERMENEUTICA DIATOPICA No caso de um didlogo intercultural, a troca nao & apenas entre diferentes saberes mas também entre diferentes culturas, ou seja, entre uni- versos de sentido diferentes e, em grande medida, incomensurdveis. Tais universos de sentido consistem em constelagées de topoi forres. Os topoi so os lugares comuns retéricos mais abrangentes de determinada cultura. Funcionam como premissas de argumentagdo que, por nao se discutirem, dada a sua evidéncia, tornam possfvel a produgdo e a troca de argumentos. Topoi forres tornam-se altamente vulnerdveis e probleméticos quando “usados” numa cultura diferente. O melhor que Ihes pode acontecer é se- rem despromovidos de premissas de argumentagdo a meros argumentos. Compreender determinada cultura a partir dos topoi de outra cultura pode revelar-se muito dificil, se nao mesmo impossivel. Partindo do pressupos- to de que tal nao é impossfvel, proponho a seguir uma hermenéutica diatépica, um procedimento hermenéutico que julgo adequado para nos guiar nas dificuldades a enfrentar, ainda que ndo necessariamente para as superar. Na drea dos direitos humanos e da dignidade humana, a mobili- 3 Ver, por exemplo, Pollis e Schwab, 1979; Pollis, 1982; An-na‘im, 1992, 116 LUA NOVA N°39—97 zag&io de apoio social para as possibilidades e exigéncias emancipatérias que eles contém sé serd concretizével na medida em que tais possibili- dades e exigéncias tiverem sido apropriadas e absorvidas pelo contexto cultural local. Apropriagdo e absorgAo, neste sentido, nao podem ser obti- das através da canibalizagdo cultural. Requerem um didlogo intercultural e uma hermenéutica diatépica. A hermenéutica diat6pica baseia-se na idéia de que os topoi de uma dada cultura, por mais forres que sejam, so tio in- completos quanto a prépria cultura a que pertencem. Tal incompletude nao é visivel do interior dessa cultura, uma vez que a aspiragdo a totalidade in- duz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenéutica diat6pica nao é, porém, atingir a completude — um objectivo inatingivel — mas, pelo contrério, ampliar ao méximo a consciéncia de incompletude miitua através de um didlogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside o seu caracter diatépico*. Um exemplo de hermenéutica diat6pica é o da que pode ter lu gar entre 0 topos dos direitos humanos na cultura ocidental, 0 topos do dharma na cultura hindu e 0 topos da umma na cultura islamica. Segundo Panikkar, dharma "é 0 que sustenta, d4 coesio e, portanto, forga, a uma dada coisa, a realidade e, em dltima instancia, aos trés mundos (triloka). A justiga d4 coesdo as relagdes humanas; a moralidade mantém a pessoa em harmonia consigo mesma; o direito é © princfpio do compromisso nas relagdes humanas; a religido € 0 que mantém vivo 0 universo; o destino ‘© que nos liga ao futuro; a verdade & a coesio interna das coisas... Um mundo onde a nogdo de Dharma € central e quase omnipresente no esta preocupado em encontrar o ‘direito' de um individuo contra outro ou do in- dividuo perante a sociedade, mas antes em avaliar 0 caracter dharmico (correcto, verdadeiro, consistente) ou adharmico de qualquer coisa ou acgéio no complexo teantropocésmico total da realidade.” (1984:39)5. Vistos a partir do topos do dharma, 0s direitos humanos sio in- completos na medida em que nao estabelecem a ligagdo entre a parte (0 in- dividuo) e 0 todo (0 cosmos), ou dito de forma mais radical, na medida em que se centram no que é meramente derivado, os direitos, em vez de se centrarem no imperativo primordial, 0 dever dos individuos de encontra- rem o seu lugar na ordem geral da sociedade e de todo 0 cosmos. Vista a partir do dharma, e na verdade também a partir da umma, como veremos a seguir, a concepgao ocidental dos direitos humanos est4 contaminada por uma simetria muito simplista e mecanicista entre direitos e deveres. Ape- 4 A este respeito ver também Panikkar, 1984:28. 5 Ver também K. Inada, 1990; K, Mitra, 19% - Thapar, 1966. UMA CONCEPCAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS uT nas garante direitos Aqueles a quem pode exigir deveres. Isto explica por que razo, na concepgao ocidental dos direitos humanos, a natureza néo possui direitos: porque no Ihe podem ser impostos deveres. Pelo mesmo motivo é impossfvel garantir direitos as geragSes futuras: no possuem di- reitos porque nao possuem deveres. Por outro lado e inversamente, visto a partir do topos dos direitos humanos, 0 dharma também € incompleto, dado o seu enviezamento forte- mente ndo-dialético a favor da harmonia, ocultando assim injustigas e negli genciando totalmente o valor do conflito como caminho para uma harmonia mais rica. Além disso, 0 dharma nao esté preocupado com os principios da ordem democratica, com a liberdade e a autonomia, e negligenciao facto de, sem direitos primordiais, o individuo ser uma entidade demasiado frégil para evitar ser subjugado por aquilo que o transcende. Além disso, 0 dharma tende a esquecer que o sofrimento humano possui uma dimensdo individual irredutfvel: nao sdo as sociedades que sofrem, mas sim os individuos. Num outro nfvel conceptual pode ser ensaiada a mesma herme- néutica diatépica entre o topos dos direitos humanos e o topos da umma na cultura islamica. Os passos do Cordo em que surge a palavra umma sio tio variados que o seu significado nao pode ser definido com rigor. O se- guinte, porém, parece ser certo: o conceito de umma refere-se sempre a en- tidades étnicas, lingufsticas ou religiosas de pessoas que so 0 objecto do plano divino de salvacao. A medida que a actividade profética de Maomé foi progredindo, os fundamentos religiosos da umma tornaram-se cada vez mais evidentes e, consequentemente, a umma dos arabes foi transformada na umma dos muculmanos. Vista a partir do topos da umma, a incomple- tude dos direitos humanos individuais reside no facto de, com base neles, ser impossfvel fundar os lagos e as solidariedades colectivas sem as quais nenhuma sociedade pode sobreviver, € muito menos prosperar. Exemplo disto mesmo € a dificuldade da concepgao ocidental de direitos humanos em aceitar direitos colectivos de grupos sociais ou povos, sejam eles as minorias étnicas, as mulheres, as criangas ou os povos indfgenas. Este é, de facto, um exemplo especffico de uma dificuldade muito mais ampla: a dificuldade em definir a comunidade enquanto arena de solidariedades concretas, campo politico dominado por uma obrigagao politica horizon- tal. Esta idéia de comunidade, central para Rousseau, foi varrida na dicoto- mia liberal que reduziu toda a complexidade societal & dicotomia Estado/ sociedade civil. Mas, por outro lado, a partir do topos dos direitos humanos indi- viduais, a umma sublinha demasiado os deveres em detrimento dos direitos e por isso tende a perdoar desigualdades que seriam de outro modo inad- missiveis, como a desigualdade entre homens e mulheres ou entre 8 LUA NOVA N°39—97 muculmanos e nio-mugulmanos. A hermenéutica diat6pica mostra-nos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicoto- mias demasiado rigidas entre o individuo e a sociedade, tornando-se assim vulnerdvel ao individualismo possessivo, ao narcisismo, a alienacdo e a ano- mia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islamica deve-se ao facto de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensio individual irredutfvel, a qual s6 pode ser adequadamente con- siderada numa sociedade nao hierarquicamente organizada. Oreconhecimento de incompletudes miituas é condigio sine qua non de um diélogo intercultural. A hermenéutica diatépica desenvolve-se tanto na identificagao local como na inteligibilidade translocal das incom- pletudes. Um bom exemplo de hermenéutica diatépica entre a cultura islamica e a cultura ocidental no campo dos direitos humanos é dado por Abdullahi An-na'im (1990; 1992). Existe um longo debate acerca das relagdes entre islamismo e direitos humanos ¢ da possibilidade de uma nogio islamica de direitos humanos®. Este debate abrange um largo espec- tro de posicées e o seu impacto ultrapassa o mundo islamico. Embora cor- rendo 0 risco de excessiva simplificagdo, duas posigdes extremas podem ser identificadas neste debate. Uma, absolutista ou fundamentalista, é sus- tentada por aqueles para quem o sistema juridico religioso do Islao, a Sha- ti'a, deve ser integralmente aplicado como 0 direito do Estado islmico. Se- gundo esta posicdio, ha inconsisténcias irreconcilidveis entre a Shari'a e a concepedo ocidental dos direitos humanos, e sempre que tal ocorra a Sha- tila deve prevalecer. Por exemplo, relativamente ao estatuto dos nao muculmanos, a Shari'a determina a criagdo de um Estado para mugulmanos que apenas reconhece estes como cidadaos, negando aos néo-muculmanos quaisquer direitos politicos. Ainda segundo a Shari'a, a paz entre muculmanos e ndo-muculmanos é sempre problematica e os confrontos po- dem ser inevitdveis. Relativamente 4s mulheres, o problema da igualdade nem sequer se pe; a Shari'a impde a segregagéio das mulheres e, em algu- mas interpretagSes mais estritas, exclui-as de toda a vida publica. No outro extremo, encontram-se os secularistas ou modernistas, que entendem deverem os muculmanos organizar-se em Estados seculares. O Islao € um movimento religioso ¢ espiritual ¢ nao politico e, como tal, as sociedades mugulmanas modernas so livres de organizar 0 seu governo 6 Para além de An-naiim (1990; 1992), veja-se Dwyer, 1991; Mayer, 1991; Leites, 1991; Afkhami, 1995, Veja-se também Hassan, 1982; Al Faruqui, 1983. Acerca do debate mais am- plo sobre a relagdo entre modernidade e 0 despertar religioso islémico, veja-se, por exemplo, Sharabi, 1992 e Shariati, 1986. UMA CONCEPGAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS. 119 do modo que julgarem conveniente e apropriado as circunstancias. A acei- tagdo de direitos humanos internacionais é uma questao de decisao politica independente de considerag6es religiosas. Apenas para dar um exemplo, entre muitos, desta posigio: uma lei tunisina de 1956 proibiu a poligamia com o argumento de ter deixado de ser aceitavel, tanto mais que a exigéncia coranica de justica no trata- mento das co-esposas era impossfvel de realizar na pritica por qualquer homem, excepto o Profeta. An-na‘im critica estas duas posigdes extremas. A via per mezzo que propde pretende encontrar fundamentos interculturais para os direitos humanos, identificando as dreas de conflito entre a Shari'a € “os critérios de direitos humanos" e estabelecendo uma reconciliagao ou relago positi- va entre os dois sistemas. O problema da Shari'a hist6rica é que exclui mulheres e néo-mugulmanos do campo de reciprocidade. Para o resolver, é necesséria uma reforma ou reconstrugdo da Shari'a. O método proposto para tal "Reforma islimica" assenta numa reviséo evolucionista das fontes islamicas, que reconsidera 0 contexto hist6rico especifico em que a Shari'a foi criada pelos juristas dos séculos Vill e IX. Nesse contexto histérico es- pecifico, uma construgao restritiva do Outro e da reciprocidade foi prova- velmente justificada. Hoje, porém, 0 contexto é totalmente diferente e é poss{vel reencontrar nas fontes origindrias do Isldo plena justificagdo para uma visio mais ampla de reciprocidade. Seguindo os ensinamentos de Maomé, An-na'im demonstra que uma andlise atenta do contetido do Coro e do Suna revela dois nfveis ou fases da mensagem do Islao: uma, do perfodo da Meca Antiga e outra, do perfodo subsequente, de Medina. A mensagem primitiva de Meca € a men- sagem eterna ¢ fundamental do Islao, que sublinha a dignidade inerente a todos os seres humanos, independentemente de sexo, religifio ou raga. Esta mensagem, considerada demasiado avangada para as condigdes histéricas do século VII (a fase de Medina), foi suspensa e a sua aplicagdo adiada até que no futuro as circunstancias a tornassem poss{vel. O tempo e 0 contex- to, diz An-na‘im, esto agora maduros para tal. Nao me cabe avaliar a validade especifica desta proposta para a cultura isl4mica. Esta postura é precisamente o que distingue a hermenéutica diatépica do orientalismo?. O que quero realgar na abordagem de An-na'im é a tentativa de transformar a concepgdo de direitos humanos ocidental numa concepgao intercultural que reivindica para eles a legitimidade islamica, em 7 Sobre a construgio etnocéntrica do Outro, oriental, pela cultura e ciéncia europeias a partir do séc. XIX, off. Said, 1985, 120 LUA NOVA N?39—97 vez de renunciar a ela. Em abstracto e visto de fora, é dificil ajuizar qual das abordagens, a religiosa ou a secularista, terd mais probabilidades de prevale- cer num didlogo intercultural sobre direitos humanos a partir do Islao. Porém, tendo em mente que os direitos humanos ocidentais so a expressdio de um profundo, se bem que incompleto, processo de secularizaco, sem paralelo na cultura islamica, estaria inclinado a sugerir que, no contexto mugulmano, a energia mobilizadora necessdria para um projecto cosmopolita de direitos humanos poderd gerar-se mais facilmente num quadro religioso esclarecido. Seeste for o caso, a abordagem de An-na‘im é muito promissora. A hermenéutica diat6pica nao é tarefa para uma s6 pessoa, escre- vendo dentro de uma tnica cultura. Nao é, portanto, surpreendente que a abordagem de An-na'im, um genufno exercicio de hermenéutica diat6pica, seja por ele conduzida com consisténcia desigual. Na minha perspectiva, An-na‘im aceita demasiado facil e acriticamente a idéia de direitos humanos universais. Apesar de este autor subscrever uma abordagem evolucionista e estar realmente atento ao contexto hist6rico da tradigao islamica, a sua inter- pretaco resulta surpreendentemente ahist6rica e ingenuamente universalis- ta quanto &@ Declarag&o Universal dos Direitos Humanos. A hermenéutica diat6pica requer no apenas um tipo de conhecimento diferente, mas tam- bém um diferente processo de criagéo de conhecimento. A hermenéutica diat6pica exige uma produgdo de conhecimento colectiva, interactiva, inter- subjectivae reticular, A hermenéutica diat6pica conduzida por An-na'im a partir da perspectiva da cultura islamica e as lutas pelos direitos humanos organiza- das pelos movimentos feministas islémicos, seguindo as idéias da "Reforma islmica" por ele propostas, tem de ser complementadas por uma herme- néutica diatépica conduzida a partir da perspectiva de outras culturas e, no- meadamente, da perspectiva da cultura ocidental dos direitos humanos. Este €provavelmente o tinico meio de integrar na cultura ocidental a nogdo de di- reitos colectivos, os direitos da natureza e das futuras geragdes, bem como a nogdio de deveres e responsabilidades para com entidades colectivas, sejam elas a comunidade, o mundo ou mesmo 0 cosmos. Mais genericamente, a hermenéutica diat6pica oferece um amplo campo de possibilidades para os debates que esto actualmente a ocorrer nas diferentes regides culturais do sistema mundial sobre os temas gerais do universalismo, relativismo, multiculturalismo, pés-colonialismo, quadros 8 Para o debate afticano ver O. Oladipo, 1989; Oruka, 1990; K. Wiredu, 190, Wamba dia Wamba, 1991a, 1991b; H. Proce, 1992; MB. Ramose, 1992. Uma amostra do rico debate na India existe em A. Nandy, 1987a, 1987b, 1988; P, Chatterjee, 1984; T. Pantham, 1988. Uma visdo global sobre as diferengas culturais pode ser encontrada em Galtung, 1981. UMA CONCEPCAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 121 culturais da transformagao social, tradicionalismo e renovagao cultural®, Porém, uma concepcao idealista de didlogo intercultural poderé esquecer facilmente que tal didlogo sé € possivel através da simultaneidade tem- pordria de duas ou mais contemporaneidades diferentes. Os parceiros no didlogo so apenas superficialmente contempordneos; na verdade, cada um deles sente-se apenas contempor4neo da tradigao histdrica da sua cultura. E assim sobretudo quando as diferentes culturas envolvidas no didlogo parti- Iham um passado de sucessivas trocas desiguais. Que possibilidades exis- tem para um didlogo intercultural se uma das culturas em presenga foi mol- dada por massivas e prolongadas violagdes dos direitos humanos perpetradas em nome da outra cultura? Quando as culturas partilham tal passado, o presente que partilham no momento de iniciarem 0 didlogo é, no melhor dos casos, um quid pro quo e, no pior dos casos, uma fraude. O dile- ma cultural que se levanta € 0 seguinte: dado que, no passado, a cultura dominante tornou impronuncidveis algumas das aspiragdes a dignidade hu- mana por parte da cultura subordinada, seré agora possfvel pronuncié-las no didlogo intercultural sem, 20 faz6-lo, justificar e mesmo reforgar a sua im- pronunciabilidade? Imperialismo cultural e epistemicidio sio parte da trajectéria hist6rica da modernidade ocidental. Apés séculos de trocas culturais desi- guais, seré justo tratar todas as culturas de forma igual? Seré necessdrio tornar impronuncidveis algumas aspirages da cultura ocidental para dar espago & pronunciabilidade de outras aspiragGes de outras culturas? Para- doxalmente — e contrariando o discurso hegem6nico — & precisamente no campo dos direitos humanos que a cultura ocidental tem de aprender com o Sul para que a falsa universalidade atribufda aos direitos humanos no contexto imperial seja convertida, na translocalidade do cosmopolitis- mo, num didlogo intercultural. caracter emancipatorio da hermenéutica diat6pica nao est ga- rantido a priori e, de facto, o multiculturalismo pode ser 0 novo rétulo de uma politica reacciondria. Basta mencionar o multiculturalismo do primei- ro ministro da Malsia ou da gerontocracia chinesa quando se referem & “concepcio asidtica de direitos humanos" para justificar as 26 conhecidas as desconhecidas "Tianamens". Para prevenir esta perversio, dois imperati- vos interculturais devem ser aceites por todos os grupos empenhados na hermenéutica diat6pica. O primeiro pode formular-se assim: das diferentes verses de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa o cfrculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versio que vai mais longe no reconhecimento do outro. Como vimos, das duas diferentes interpretagGes do Coro, An-na'im escolhe a que possui 0 cfrculo mais am- plo de reciprocidade, a que abrange igualmente mugulmanos e nio- 122 LUA NOVA N?39— 97 mugulmanos, homens e mulheres. O mesmo procedimento deve ser adopta- do na cultura ocidental. Das duas versées de direitos humanos existentes na nossa cultura — a liberal e a marxista — a marxista deve ser adoptada, pois amplia para os dom{nios econdmico e social a igualdade que a versio libe- ral apenas considera legitima no dominio politico. segundo imperativo intercultural pode ser enunciado do se- guinte modo: uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com dois princfpios concorrentes de pertenga hierarquica, e, portanto, com concepgdes concorrentes de igualdade e di- ferenga, as pessoas e os grupos sociais t¢m o direito a ser iguais quando a diferenga os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Este 6, consabidamente, um imperativo muito dificil de atingir e de manter. Os Estados constitucionais multinacionais como a Bél- gica aproximam-se dele em alguns aspectos. Existe neste momento grande esperanga que a Africa do Sul venha a ser outro exemplo. CONCLUSAO Na forma como sao agora predominantemente entendidos, os direitos humanos so uma espécie de esperanto que dificilmente se poderd tornar na linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regides do globo. Compete & hermenéutica diat6pica proposta neste artigo transformé-los numa politica cosmopolita que ligue em rede linguas nati- vas de emancipagdo, tornando-as mutuamente inteligiveis e traduziveis. Este projecto pode parecer demasiado utépico. Mas, como disse Sartre, antes de ser concretizada, uma idéia tem uma estranha semelhanga com a utopia. Seja como for, o importante é nao reduzir o realismo ao que existe, pois, de outro modo, podemos ficar obrigados a justificar o que existe, por mais injusto ou opressivo que seja. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS € professor de Sociologia da Facul- dade de Economia da Universidade de Coimbra e diretor do Centro de Estu- dos Sociais. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Afkhami, Mahnaz (org.). 1995. 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FOR A MULTICULTURAL CONCEPTION OF HUMAN RIGHTS The aim is to identify the conditions which allow the turning of the conceptualization and practice of human rights from a “globalized lo- calism” into an emancipatory and cosmopolitan project. The point is that this question can be adequately faced only from the angle of a “dyatoptic hermeneutic” such as proposed in this article.

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