ACADÊMICOS DO RAP: RACIONAIS ENTRA NA UNIVERSIDADE
PELA PORTA DA FRENTE E COM TAPETE VERMELHO
Conheci uma professora que dizia, insistentemente, com bases teóricas nunca devidamente explicitadas, que “letra de música não pode ser considerada poema”. Seu renitente argumento pessoal era o de que a “qualidade” das letras de canções era inferior. Além disso, as letras têm – e dependem de – suportes como a melodia, o arranjo, a harmonia, a performance do intérprete, e muitas vezes, ainda segundo a professora, perdem potência quando lidas sem todos estes “penduricalhos”, “artifícios”, “escoras”. Curioso é que ninguém duvida que o Trovadorismo seja uma escola literária (é assim que ensinamos nas aulas do Ensino Médio). Não tenho conhecimento de algum acadêmico, educador ou crítico literário que discorde chamar o Trovadorismo de escola literária. É verdade que no caso das obras daquele movimento, chamadas justamente de cantigas, a maior parte das melodias se perdeu e que as aulas sobre este período são feitas, na maioria das vezes, exclusivamente a partir das letras, dos textos escritos, sem acompanhamento musical, o que, aliás, poderia tornar as aulas bem mais ricas. É no mínimo curioso que na língua cujas primeiras manifestações literárias conhecidas são justamente letras de música, ainda haja quem renegue as letras de canções, ao menos as compostas a partir dos séculos XIX e XX, a um plano “não poético”, ou “não literário”. Também soa inconsistente a afirmação de que as letras de música são “inferiores” aos poemas “escritos” ou que as letras dependam de outros suportes sonoros para se manterem de pé. Claro que ao analisar e interpretar uma letra de canção o ideal é sempre levar em conta tudo que faz parte da obra: melodia, arranjo, performance etc. Mas uma série de livros didáticos e obras acadêmicas já deixaram bem claro que há uma série de letras “desacompanhadas” com vigor incontestável no que diz respeito aos aspectos, digamos, “literários”. As figuras de linguagem, as mesmas que encontramos em poemas, aparecem nas canções populares, tanto que qualquer exemplificação soa completamente desnecessária. É verdade que algumas canções, quando “dissecadas”, ou quando fazemos a separação entre melodia e letra, perdem muito de sua força. Nem por isso são obras menores; ocorre nelas que a integração entre letra e música é tão profunda que uma separação não é aconselhável – assim como a extração de um verso, de uma estrofe, de uma sílaba, pode fazer todo um poema “de página” desmoronar. Por outro lado, poemas de página não trazem nenhum aspecto de superioridade estilística, formal, literária ou o que quer que seja, apenas por serem o que são: poemas escritos. Há uma série de poemas fracos, ruins, vazios, de “pé quebrado” etc estão por aí para dos servir de exemplo e citá-los também é algo absolutamente desnecessário. Além disso, há muitos poemas que foram musicados, que nasceram para a página e migraram para as canções; contos que só fazem sentido quando lidos em voz alta e com uma entonação e/ou sotaque específicos; letras de música que, quando impressas, causam o mesmo impacto gerado ao serem ouvidas (eu mesmo fui lançado ao mesmo tempo à literatura e à MPB quando li a letra de Construção, de Chico Buarque, em um livro didático; eu, até então um roqueiro quase fundamentalista), entre outras possibilidades que talvez ainda sequer tenham sido inventadas, ou mesmo já inventadas há mais de meio século, como as experiências verbivocovisuais dos concretistas. Alguém se arrisca a dizer que Augusto de Campos é menos poeta por causa de suas experiências sonoras, visuais etc? Sendo assim, impor uma hierarquia entre letras de música e demais poemas feitos para a boca, e poemas feitos exclusivamente para a página, é uma tese que carece de uma sustentação minimamente aceitável. Tudo isso pra dizer que o disco Sobrevivendo no Inferno, do Racionais MC’s é uma das mais contundentes obras literárias das últimas décadas, ainda que os próprios rappers não vejam a si mesmos como poetas. Ali, a despeito de qualquer preconceito ou recusa, versos como “prestou vestibular no assalto do busão/no primeiro assalto a banco se formou ladrão” estão léguas à frente de boa parte da poesia acadêmica, de gabinete, celebrada apenas entre pares dos departamentos de literatura das principais universidades brasileiras. Ainda que, para não cometermos o mesmo erro da professora citada no começo desse texto, não devamos afirmar que toda poesia feita por “acadêmicos” seja inferior, desnecessária etc., não dá pra fechar os olhos diante de fenômenos como a obra do Racionais, especialmente do disco Sobrevivendo no Inferno, que chega agora à lista de leituras solicitadas para o vestibular da Unicamp. Uma lista de exemplos de versos absolutamente lapidados das letras dos Racionais seria tão imensa quanto desnecessária. A chegada de um disco de música popular a uma lista de obras solicitadas para um vestibular tão importante quanto o da Unicamp é um momento histórico, ainda que se dê com enorme atraso. Discos de Caetano Veloso, João Bosco, Chico Buarque, Itamar Assumpção, Arnaldo Antunes, entre tantos outros, já poderiam ter sido solicitados antes. Mas que é algo de especial que a Unicamp dê início ao que, espero, se torne uma tradição, com uma obra de quatro pretos da periferia de São Paulo, não tenho a menor dúvida. Aquela minha professora agora vai ter que ler e ouvir as canções do Racionais com a devida atenção, e finalmente perceberá que a literatura não nasceu nas páginas; aliás, fora delas, sempre esteve atuante e vigorosa.