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RONIAS DE UM PROJETO
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onde se destacava o aprendizado das línguas locais. O O projeto educacional parecia render a ambas as panes
bilingüismo foi uma das marcas do ensino jesuítico, em- os resultados esperados e o fortalecimento das duas ins-
penhado em registrar vocabulários e gramáticas nativas, tituições caminhou por muito tempo na mesma direção,
traduzir obras religiosas e editar livros de literatura, ins- identificando os interesses políticos e religiosos tanto
trução e doutrina cristã que compõem um legado impres- formalmente quanto na prática. Munidos de uma peda-
sionante da ação da Companhia no ultramar português. gogia própria e da experiência adquirida como educa-
A ação missionária e a introdução da instrução dores, os jesuítas foram a mola mestra do ensino escolar
escolar no oriente e no ocidente foi sincrônica. Até o no Brasil colonial.
final do século XVII viajaram para o oriente cerca de Com a mesma ênfase com que ensinavam a ler,
mil jesuítas portugueses. Na metrópole sua presença não escrever e contar, os padres transmitiam a doutrina religio-
era menor na instrução das crianças e dos jovens e no sa e as artes e oficios técnicos. Além de construir igrejas,
ensino dos ofícios mecânicos, gozando de influência conventos e escolas, montaram oficinas onde os indígenas
junto à nobreza e à Corte. O ensino primário e médio de fabricavam móveis e utensílios, fundiam sinos de bronze,
latim, grego e hebraico, matemática, arte, filosofia e imprimiam livros, aprendiam as artes do couro, da madeira
teologia era exercido pelos padres, com a publicação de e da cerâmica, sendo o ensino técnico ministrado por mes-
grande número de obras didáticas, doutrinárias, de lite- tres religiosos e leigos recrutados na Europa e depois trei-
ratura, oratória e filosofia (GOMES, 1971 :569-592). nados na própria colônia (1). O Colégio Real das Artes era
No Brasil, o ensino jesuítico teve início com a responsável pelos chamados "estudos menores", conjunto
vinda do Pe. Manoel da Nóbrega à Bahia, em 1549, e a de disciplinas que visavam preparar para os estudos uni-
fundação dos colégios de São Paulo (1553) e do Rio de versitários (SERRÃO, 1971: 131-133). Irmãos estudantes
Janeiro (1565). Como nas experiências no oriente, os de teologia e filosofia encarregavam-se do ensino nesses
meninos e meninas indígenas deviam aprender a ler, estabelecimentos, enquanto os padres concentravam-se nas
escrever e contar e, além disso, cantar, tocar um instru- aldeias mais afastadas.
mento, dançar e rezar. A evangelização visava, oficial- Do ponto de vista do uso da educação como
mente, eliminar os costumes indígenas julgados instrumento político, buscava-se meios eficazes de do-
"perniciosos" e inculcar o modelo de vida cristão, mas, minar os índios, controlar o processo de conquista, ga-
na prática, instaurava também as condições para trans- rantir a ocupação dos territórios por eles habitado e
formar os índios em mão-de-obra qualificada, por meio submetê-los ao trabalho compulsório, tudo isso segundo
da aprendizagem regular e estável dos ofícios mecâni- o princípio de que evangelizar os índios significava
cos (LEITE, 1945; 1950), pedagogia que constatamos convertê-los em seres civilizados.
ter sido muito bem-sucedida nos aldeamentos no nor-
deste do país, sobretudo nas áreas do sertão, onde pou-
co se expandiu a escravidão negra e o trabalho indígena o ENSINO NAS ALDEIAS
foi largamente utilizado (PORTO ALEGRE, 1992) .
Além disso, a conversão tinha em vista criar
JEsuíTICAS
condições para utilizar os povos indígenas militarmente.
Para o Pe. Serafim Leite, historiador da Companhia de Na costa litorânea brasileira tentou-se pôr em
Jesus no Brasil, Nóbregajá trazia consigo a formulação prática esse ambicioso programa logo nos primeiros em-
política de que os instrumentos pedagógicos de conver- preendimentos do século XVI na Bahia, Rio de Janei e
são e catequese deveria servir à unidade política portu- São Paulo. No norte do país e na Amazônia, as experi-
guesa, nas lutas e guerras contra os índios insubmissos ências escolares tiveram início no século TI, luga-
e os "inimigos externos" (LEITE,1945:595-599). O Re- res escolhidos estrategicamente como s e de esa
gimento de 1548, dado por D. João III ao governador afastados dos povoados da costa A juri:sdíção
enviado à Bahia, Tomé de Souza, continha instruções no das aldeias no norte e nordeste foram ~ amemadas
para que os padres se aproximassem dos nativos e usas- pelo Padre Antônio ieira, por meio o Rezulameruo
sem sua interferência nas guerras intertribais, procu- das Aldeias (VIEIRA, 16-8-1660) .. ·0 s do Brasil as
rando facilitar a ação dos portugueses pela manipulação reduções fundadas pelos jesuítas també se constrnn-
de alianças com algumas etnias e combate a outras. ram a partir do século XVII O;TO A, 1985), nos
Evangelizar e civilizar eram metas que se mesmos moldes que no restante do país.
complementavam na consolidação do território conquis- Para melhor entender o uso político da educa-
tado e reforçavam as alianças entre o Estado e a Igreja. ção, vejamos como se dava, concretamente, a prática
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frentar o descontentamento, na fase final da sua atua- tavam se transformando em territórios livres e intocáveis,
ção, a Companhia passou a dar preferência aos méto- dominados pelos padres.
dos em que religião era diretamente imposta, aumentando As discordâncias que culminaram no rompimen-
a repressão às práticas indígenas e tomando obrigató- to da aliança com a Companhia de Jesus e sua supres-
ria a adoção dos costumes ocidentais. No plano das re- são em Portugal e nos domínios do império resultaram
lações de parentesco as casas familiares substituíram numa ampla reforma do ensino e no redirecionamento
as habitações coletivas, os homens passaram a ocupar do projeto de "civilização" dos índios, com novas pro-
o lugar das mulheres cuidando da lavoura, foram cria- postas geradas pelas idéias de unidade e identidade, pro-
dos horários rígidos de atividades, em tarefas que ti- movidas pelo Marquês de Pombal.
nham a disciplina de um quartel militar (pREZIA, 1992). Os conflitos entre os jesuítas e a Coroa aguça-
Mas, em muitos casos, os religiosos que tra- ram-se entre 1751 e 1759, no então chamado Estado do
balhavam nos aldeamentos preferiram tomar a defe- Grão-Pará e Maranhão (COUTO, 1995), onde as aldeias
sa dos "seus índios". Visto de uma outra forma, indígenas passaram a ser regulamentadas pelo Diretório
poderíamos dizer que os indígenas, em grande parte, dos Índios (1757) , logo estendido ao Estado do Brasil.
aculturaram os padres para conseguir manter a con- A reforma pombalina da educação não esta-
tinuidade de suas sociedades e seus modos de vida, va disposta a deixar nenhum espaço aberto à diversi-
embora modificados, mediante determinadas conces- dade étnica e à relativa autonomia das sociedades
sões necessárias à própria sobrevivência. Por aí se indígenas. Com base nas novas idéias, o projeto de
vê como a dinâmica da educação indígena está "tomar os índios em portugueses" ficou mais agressi-
inserida no coração da problemática do contato vo, tendo como critério central a imposição da língua
interétnico. É no âmbito das práticas culturais que o portuguesa (DOMINGUES, 1995). Os parágrafos sex-
projeto pedagógico deve ser analisado, pois manipu- to, sétimo e oitavo do Diretório diziam expressamente
lar identidades, querer transformar os índios em por- que a "língua geral" era uma invenção diabólica dos
tugueses e destruir seus costumes e valores, além de primeiros conquistadores e que o bilingüismo impedia
expropriá-Ios de seus territórios e submetê-Ios ao tra- a civilização e permitia que os povos nativos permane-
balho compulsório, não era uma tarefa tão simples cessem "bárbaros".
quanto se imaginava. A proibição de uso das línguas nativas por mis-
sionários e párocos na Amazônia foi objeto de contro-
vérsias e acusações no Tribunal da Inquisição, de
A REFORMA PEDAGÓGICA extrema importância para a história política e religiosa
colonial (SILVA, 1995). Os ataques do Diretório pres-
POMBALINA supunham que os métodos jesuíticos facilitavam a con-
tinuidade das sociedades indígenas e estimulavam a
Os métodos pedagógicos utilizados pelos jesuí- manutenção das diferenças culturais, ao invés de pro-
tas não foram recebidos com bons olhos, os conflitos mover a unidade e fortalecer a identidade portuguesa.
que se estabeleceram com os colonos em tomo da cobi- Nesse sentido, a obrigatoriedade da lingua portuguesa
ça pela mão-de-obra e pelas terras indígenas, de parte à era tão enfatizada quanto outras medidas postas em prá-
parte, foram se tomando mais graves à medida em que tica como o incentivo à miscigenação a separação das
aumentava o povoamento. Os desacordos quanto aos famílias e dos grupos mediante a transferência dos indí-
meios de levar a cabo a política indigenista e as contra- genas de uma aldeia para outra e outros artificios usa-
dições entre as construções ideológicas e as práticas dos com o objetivo de desarticular a ida tribaI.
concretas refletiram-se em divergências manifestas Os casamentos mistos passaram a ser estimu-
quanto aos métodos de ensino adotados pelos padres na lados, dando-se aos indígenas as mesmas honrarias e
educação escolar. títulos concedidos aos brancos com a adoção de nomes
A insistência em pregar nos idiomas nativos e a portugueses. As reformas na educação isavam alcan-
tolerância aos valores, costumes e tradições indígenas çar toda a ida social indo da imposição do uso de rou-
que os padres julgavam úteis e eficazes à evangelização pas na escola e na igreja às crianças jo ens e adultos
abalaram as relações entre o Estado português e a Igreja que insistissem em andar nus, ao controle da terra e do
irremediavelmente, não obstante a pedagogia da violên- trabalho indígenas. Cada aldeia deveria ter um mínimo
cia usada no interior das aldeias pelos catequéticos. a de 150 moradores facilitando-se o estabelecimento de
ótica do governo metropolitano as aldeias indígenas es- moradores brancos com direito à posse da terra e os
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Ordem se tomou tão poderosa e alcançou uma tal ascen- fronteiras culturais. Podemos dizer, para concluir, que a
dência sobre as consciências e o comportamento dos educação indígena colonial procurou impor uma ordem
povos indígenas aldeados que sua presença foi vista como reguladora que buscava apagar as fronteiras culturais
ameaça à unidade do império no ultramar. por diversas vias, com o uso de métodos onde a existên-
Nesse caso, temos o paradoxo de que o suces- cia das sociedades indígenas ora era afirmada, ora ne-
so do empreendimento foi responsável pelo fracasso das gada, oscilando entre o bloqueio sistemático e a tolerância
ambições de instaurar um espaço autônomo de ação tutelada e criando uma zona de tensão entre a unifica-
nas terras conquistadas. A possibilidade de que a Igreja ção e a diferenciação sociocultural.
riasse "territórios livres" de controle das populações Unidade e diversidade, eis aí uma questão re-
indígenas, no interior das colônias, decretou o fim de corrente, intrigante e, talvez, insolúvel.
sua presença no império português. A análise da educação indígena colonial ajuda a
Por outro lado, o sucesso da ação dos religiosos abordar problemas que de outra forma permaneceriam
forneceu, também, as condições propícias ao poder tem- obscuros, fora do alcance do antropólogo, do historiador
poral do Estado sobre os povos indígenas. A política e do educador. Ela nos mostra a validade do paradigma,
educacional pombalina não poderia ter se instaurado caro à antropologia, de que é possível alcançar níveis
sem a tutela eclesiástica anteriormente existente. mais profundos de significação pela atenção a episódios
A análise da pedagogia aplicada na educação dos aparentemente tão desimportantes como ouvir uma ín-
meninos índios pelo Diretárío no norte do Brasil dia tapuia acalentando seu filho com uma canção de
(DOMINGUES, 1995:72-76) mostra as hesitações do pro- ninar, no meio da tarde, na selva amazônica.
jeto reformista, seus êxitos e fracassos. O afastamento
das crianças e jovens de suas famílias para o internamento
em seminários e conventos foi duramente sentido pelos NOTAS
índios, fazendo com que a resistência indígena à escolari-
dade aumentasse progressivamente, em vista da 1. As escolas e oficinas de artes e oficios instaladas nos colégios
dissociação entre o ensino e as tradições culturais e étnicas. e nas aldeias formavam artistas e operários qualificados: pedrei-
No plano da formação de lideranças locais en- ros, ferreiros, carpinteiros, escultores, tomeiros, sapateiros, al-
tre os principais e seus familiares, em muitos casos faiates, tecelões. Nas oficinas de São Paulo o principal trabalho
observou-se que os indígenas educados voltaram-se dos rapazes índios era tomar conta das forjas e ferrarias onde
contra seus opressores fazendo uso político da língua eram fabricados anzóis, facas, machados, foices, enxadas e ou-
portuguesa para intensificar os contatos inter-tribais e, tros utensílios (LEITE, 1950:23-26). No Ceará, havia um bom
ironia maior, a língua da sujeição tomou-se a língua para número de artesãos índios dedicados aos oficios de carpinteiro,
reivindicar os direitos índígenas junto às autoridades. ferreiro, sapateiro, pedreiro e ourives, segundo o Mapa dos Ca-
A imposição dos costumes portugueses, que sais. Pessoas Livres e Oficiais de vários oficias da Vila de Mon-
deveria provocar um enfraquecimento das minorias ét- te-Mor-o-Novo (Arquivo Histórico Ultramarino, 1788 ). Os
nicas e sua integração à sociedade colonial nem sempre trançados em palha de carnaúba eram práticas indígenas aprovei-
ocorreu, levando ao abandono dos aldeamentos. Os con- tadas pelos padres em todo o litoral do nordeste, onde teve
flitos, rebeliões e a dispersão dos índios, que fugiam em origem um artesanato de cestas, esteiras e chapéus de palha
massa das aldeias e ernbrenhavam-se pelas matas e (MENEZES, 1871) ainda hoje encontrado.
serras afastadas, para fugir à opressão, tomou-se um
processo incontrolável, decretando a extinção das Leis 2. O aprendizado da tecelagem e das manufaturas de algodão
do Dtretárto pelo governo português em 1798. nativo, que aparecem no relato dos cronistas desde o século XVI
Por outro lado, grande parte dos grupos indíge- (GANDAVO, 1570; LÉRY, 1557; SOUZA, 1587), formavam o
nas remanescentes à conquista sobreviveram exatamen- setor mais importante do ensino técnico nas aldeias. Em São
te nos lugares aonde a ação do colonizador foi mais Paulo a tecelagem foi o principal oficio indígena nos séculos XVI
intensa - nos aldeamentos (PORTO ALEGRE, 1993; e XVII (HOLANDA, 1957). No Ceará, Piauí e Maranbão, essa
PORTO ALEGRE, MARIZ e DANTAS, 1994), que se atividade também foi muito desenvolvida nas escolas indígenas,
tornaram o /ocus das culturas de fronteira. pois o algodão era o produto básico da economia indígena. Valen-
O modo pelo qual as idéias sobre educação cir- do-se da prática antiga dos indios, os jesuítas organizaram o
cularam na sociedade luso-brasileira, entre os séculos trabalho têxtil e ensinaram às mulheres a confecção de rendas e
XVI e XVIII, permitem ver como os métodos pedagó- bordados para fazer os paramentos das igrejas e as roupas de
gicos serviram de veículo na definição dos limites e das uso diário e freqüência à missa e às festas da Igreja. As índias