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São Paulo | nº 14 | jan-jul | 2017 | ISSN: 2177-4273

A relação dialética entre a estética do real e da arte em


A tempestade de Shakespeare e sua adaptação para o cinema
A última tempestade de Peter Greenaway

André Fonseca Besen1

RESUMO

O objetivo desse artigo é analisar a proposta estética de intersecção dialética entre a natureza e a arte em duas
esferas importantes do universo artístico, a literatura e o cinema. O objeto a ser estudado é a estratégia de
dicotomia entre a estética da arte e da realidade na obra A tempestade de William Shakespeare. Com base na
obra original, explorarei como essa estratégia foi ressignificada na proposta estética de Peter Greenaway, em sua
adaptação para o cinema: A última tempestade (1991), para então relacioná-la com a teoria de André Bazin.

Palavras-chave:
Cinema; Literatura; Shakespeare; Peter Greenaway; André Bazin

INTRODUÇÃO

O debate sobre a relação dialética entre a estética da natureza e da arte é representado


por séculos de discussão em muitas áreas do conhecimento. No presente ensaio, meu objetivo
é trazer uma nova reflexão sobre esse tema, ao discutir a relação entre abordagens estéticas
completamente diferentes, de meios diferentes, o cinema, a literatura e o teatro, porém, com o
mesmo núcleo criativo e a mesma proposta estética ideológica.
O motivo da escolha da obra A tempestade de Shakespeare (1564-1616), como um
dos focos desse ensaio, é sua personalidade metalinguística. O autor propõe na narrativa de A
tempestade os temas que irei abordar nesse artigo, ou seja, é proposta da peça discutir os
valores estéticos da relação dialética entre arte e realidade e suas intersecções.
Com base na proposta estética de Shakespeare, Peter Greenaway nos apresenta sua
adaptação da peça para o cinema. O cineasta reinterpreta a estrutura dialética da obra para um
novo universo, o cinematográfico. Com esse feito, o diretor apresenta uma abordagem
totalmente original da discussão dialética entre a estética do real e da arte. O cinema, assim
como a literatura e o teatro, exige uma abordagem particular da dicotomia entre arte e

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Diretor de fotografia, professor e pesquisador. Mestrando no Programa de Pós-graduação em Ciências da
Comunicação (PPGCOM-USP). Graduado em Cinema pela FAAP.

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realidade e, nesse sentido, Peter Greenaway nos traz, em sua adaptação, uma proposta original
de como relacionar essa dicotomia.
Na primeira parte do texto, construo uma contextualização da criação da peça e
discorro sobre as propostas de Shakespeare, relativas ao debate sobre a dialética entre arte e
realidade. Pelo olhar de seus críticos e teóricos, exploro as motivações contemporâneas do
autor frente a sua época, assim como algumas características do teatro e da era Elisabetana.
No capítulo posterior, abordo o contexto do filme de Peter Greenaway e as
características do cineasta. Posteriormente, analiso sua proposta estética em função da obra
original, classificando originalidades e intersecções entre as duas obras. Faço uma breve
reflexão sobre como o labirinto intertextual artístico que ele criou com seu filme se
transformou em um argumento importante na discussão da dialética estética da arte e do real.
No terceiro capítulo, realizo uma pequena revisão teórica de grandes críticos
cinematográficos sobre a responsabilidade estética do cinema, tendo em vista o realismo e um
pouco da sua história em termos estéticos. A partir dessa revisão teórica relaciono A última
tempestade de Peter Greenaway com uma das principais teorias de André Bazin do meio
cinematográfico.
Para concluir localizo, na situação contemporânea, a relação dialética da arte com o
real. O objetivo final desse artigo é acrescentar repertório ao conhecimento sobre estética e
suas variáveis dentro de meios importantíssimos da expressão artística.

A TEMPESTADE – WILLIAM SHAKESPEARE

A obra A tempestade, acredita-se, foi escrita entre 1610 e 1611, mas sabe-se que foi
encenada pela primeira vez em 1 de novembro de 1611. Essa foi uma das últimas obras
escritas por Shakespeare antes de morrer.
O enredo resumido da obra conta as desventuras de uma trupe náufraga composta por
um grupo monárquico representado por Alonso – rei de Nápoles – e seu filho Fernando,
António – duque atual de Milão – e alguns outros nobres e marinheiros. Próspero, antigo
Duque de Milão, que havia tido seu ducado usurpado por seu irmão António, com o apoio do
rei Alonso, é o responsável pelo naufrágio. A história narra como Próspero, por meio de sua
magia, traz seus traidores para uma ilha, manipula um encontro amoroso de sua filha Miranda
com Fernando e, por meio do seu poder mágico, reconquista o seu ducado usurpado e seu
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respeito frente a seus antigos algozes, abandonando sua magia para retornar com eles e
governar Milão.
Apesar da obra ter uma narrativa simples, destaco para análise a excelente discussão
implícita apresentada pelo elemento da magia na peça, que, por sua vez, constrói uma
complexa analogia com a estética, dentro do campo da manifestação artística.
Além de uma grande expressão do estilo e do magnifico domínio, de Shakespeare, do
seu ofício, essa obra é também considerada por alguns críticos como um discurso
autobiográfico Shakespeareano sobre a dialética entre arte e natureza, onde o autor revela seu
descontentamento com os desdobramentos de sua arte e realiza sua despedida do universo de
criação artístico.
Segundo o crítico John Masefield (MASEFIELD,1964, p.135 apud HOMAN, 1973,
p.69), é possível supor que Shakespeare representou a si mesmo no epílogo proclamado por
Próspero, se despedindo dos seus livros de magia que representam, por sua vez, a Arte na
analogia principal da obra, ou seja, Shakespeare se despedia, então, da criação artística na
pele de seu personagem Próspero.
Deixando de lado essa afirmação polêmica de John Masefield (MASEFIELD,1964,
p.135 apud HOMAN, 1973, p.69), e toda a querela entre os críticos de Shakespeare sobre a
mesma, o importante para a nossa discussão nesse artigo é atentarmos para essa analogia de
Shakespeare, entre a magia e a arte, e como é representada em sua peça, revelando para nós a
discussão a respeito da importância da arte/magia sobre a realidade/natureza e como as duas
devem se relacionar.
Dentro de um contexto de mudanças sociais radicais, o período de atuação de
Shakespeare era repleto de atenuantes motivadores para uma discussão entre a escolha
estética do real ou não, da natureza ou da ficção.
Shakespeare viveu em um período pós-medieval, onde havia uma esperança grande
nas novas relações sociais, enquanto uma série de novos problemas surgiam, derivados dos
novos contratos sociais. A Inglaterra da era Elisabetana, onde Shakespeare escreveu A
tempestade, era repleta de esperança, comum ao período do renascimento, acompanhada por
outro lado de uma série de instabilidades: explosão demográfica, praga, fome, desigualdades
sociais, entre outros.

[...]a Inglaterra em que Shakespeare viveu passava por transformações em todos os

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níveis: é um mundo em que os rígidos padrões foram quebrados, em que as igrejas


que outrora representavam a identidade das cidades, fechadas. Shakespeare pertence
à primeira geração que pôde descobrir um novo lugar para o indivíduo, que pôde
reinventar sua identidade nacional, construir uma nova economia e escolher uma
religião. As grandes descobertas abrem a possibilidade de contato com novas
concepções de mundo e realidade[...]
(NUNES, 2006, p.20)

O próprio teatro Elisabetano representava um pouco da dialética entre arte e


realismo. Com sua estrutura que permitia uma dissociação entre o discurso ideológico realista
e a liberdade criativa da peça, criava-se um ambiente perfeito para concretizar a discussão
entre realismo e arte.

No palco elisabetano, iluminado pela luz do dia e sem cenários, apenas dotado de
áreas diferentes e um número considerável de acessos (as duas portas principais a
cada lado do palco exterior, o alçapão, portas de acesso ao palco interior e ao palco
superior, e mais outros alçapões no teto, por meio dos quais era possível baixar
deuses, fantasmas, visões, etc.), tudo era possível, desde que o diálogo atingisse a
imaginação do espectador.
(HELIODORA, 2008, p.72)

Desse contexto social motivador de uma discussão sobre a realidade e o artístico, é


que Shakespeare cria essa analogia entre a mágica e a arte em sua obra, representando com
maestria analógica uma discussão contemporânea latente.
O crítico Sidney R. Homan (1973), em Tempest and Shakespeare’s Last Plays: The
Aesthetic Dimensions, comenta sobre algumas obras precedentes à obra e afirma, por
exemplo, que em The Winters Tale, a discussão da dialética entre arte e natureza já era
trabalhada, ou seja, havia um processo de desenvolvimento crescente da discussão entre a
estética da arte e do real antes da obra que analisamos aqui ser escrita e, que A tempestade
apenas traz as conclusões finais por parte de Shakespeare sobre o assunto.

More than one commentator has pointed out that Perdita’s distinction between what
is natural and what is mere artífice is too restrictive. Polixenes rightly expands her
childish definition by telling her that art, far from being antithetical to nature, is
actually a part of nature, a way of adding to rather than competing with nature (The

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Winter’s Tale IV.iv 89-92) (HOMAN, 1973, p.73)

Seguindo essa hipótese de Sidney R. Homan (1973), entro naquilo que nos importa,
relativo às afirmações estéticas de Shakespeare em sua obra, afirmações sobre a dialética
entre arte e natureza. Desenvolvido dentro de um contexto propício, o autor discute
profundamente a problemática estética da participação do real na arte e da emancipação da
arte em função da sua obrigatoriedade para com a realidade.
Na obra A tempestade, a traição sofrida por Próspero, como governante em Milão, é
uma metáfora do universo de representação da fenomenologia do real, e é, o contraponto com
o cenário mágico da ilha onde Próspero consegue, por meio da arte, analogicamente
representada pela magia, reaver sua posição usurpada de Duque e casa sua filha com um
príncipe, Fernando. O autor, com esse complexo recurso de representação narrativa e de
metáforas, propõe uma experiência estética da vitória da arte sobre a realidade e afirma que a
realidade é suportada e sustentada por meio da fruição estética artística, que por sua vez, não
precisa da realidade para ser desenvolvida. Ele afirma, ainda mais, que a arte salva a
realidade, ou ao menos nossa relação estética com a mesma.
Porém, o final da obra remonta a uma conclusão paradoxal da dialética por parte do
autor e isso é consenso entre seus principais críticos. Shakespeare afirma, com o desfecho da
obra, que embora a arte tenha e deva ter essa liberdade em relação à realidade, a natureza é
superior à arte, relegando a ela o papel de mero recurso estético necessário para obtenção de
felicidade e entretenimento. Ele afirma que a arte não é superior a realidade e que a
experiência fenomenológica estética do real é a solução para as relações sociais vigentes ou
para a construção dos novos contratos sociais.
Ou seja, Shakespeare nos propõe em sua obra uma discussão sobre a estética do real
e da arte. Ele apresenta proposições profundas sobre o assunto, inclusive muito à frente de seu
tempo, nos relegando uma herança enriquecedora sobre o papel da arte, do artista e da
natureza no complexo estético da fenomenologia social. Essa herança foi, em consequência,
ressignificada magnificamente para o cinema como veremos no próximo capitulo.

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A ÚLTIMA TEMPESTADE – PETER GREENAWAY

Com base na obra A tempestade de William Shakespeare, Peter Greenaway lançou em


30 de agosto de 1991 o filme A última tempestade, sua adaptação livre dessa obra para o
cinema.
O filme adapta de maneira semi-literal narrativa a obra de Shakespeare, porém com
uma poética visual regida pela personalidade multidisciplinar artística do diretor. Combinando
elementos e linguagem caros à literatura, variações da palavra escrita, expressões musicais e
ruídos sonoros pós-modernos, construções teatrais, declamações, monólogos, recursos
gramaticais cinematográficos, novidades provenientes da tecnologia do vídeo e conceitos
estéticos importados do universo da pintura, Peter Greenaway nos propõe uma adaptação
repleta das mais variadas expressões artísticas da história da arte, combinando-as em uma
grande interpretação da obra original.
Os processos de significação utilizados por Peter Greenaway nessa experiência
cinematográfica chamam mais atenção do que a adaptação da obra em sí. Assim como
Shakespeare, Peter Greenaway esconde na superfície do enredo, processos complexos de
signos analógicos, metafóricos e dialéticos.
O diretor constrói, através de uma linguagem cinematográfica muito particular,
camadas de significação para transmissão do discurso complexo que a obra original aportava
(METZ, 2004). São através desses recursos de significação que Peter Greenaway revive a
discussão dialética original da peça.
A escolha do diretor para a interpretação de Próspero é o nosso ponto de partida para
análise da obra, a partir da excelente constatação da tese de doutorado de Glória Elena Pereira
Nunes (2006).

No filme, Próspero é interpretado por um dos mais notórios atores shakespeareanos,


Sir John Gielgud. Aliás, como explica o próprio diretor no roteiro do filme, a
proposta de adaptar a peça para o cinema veio do ator, que já havia interpretado
Próspero várias vezes no teatro. Para Greenaway, portanto, um de seus desejos, ao
fazer o filme, era tirar “a maior vantagem do poder e habilidade de Gielgud falar o
texto. (NUNES, 2006, p.127)

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Dessa análise, Glória Elena Pereira Nunes (2006) conclui uma afirmação referente à
importância que Peter Greenaway dá ao texto e a expressão pela linguagem escrita que
introduz bem nossa discussão sobre a estética da obra.

[...]uma das características mais fortes dessa leitura de Greenaway é o


estabelecimento da discussão entre o poder da palavra e o da imagem; o poder do
autor sobre os personagens; o poder de Próspero sobre os habitantes da ilha; o poder
dos livros. O filme faz uma celebração do texto “como texto, como o material
mestre no qual toda a mágica, ilusão e decepção da peça está baseada[...]
(NUNES, 2006, p.127)

O que Glória Elena Pereira Nunes (2006) propõe, portanto, é que o diretor realiza, a
partir do recurso da atuação, uma relevância para a palavra escrita no meio cinematográfico,
construindo assim um universo poli artístico de representação original muito pertinente,
referente a dialética do realismo no cinema.
Porém, é importante frisar que o diretor não utiliza esse sistema para criar uma
hierarquia de recursos artísticos. Em termos de relevância, ele utiliza, para criar uma
igualdade entre diversos recursos artísticos e comunicativos dentro do meio cinematográfico,
o princípio de unir para vencer.
Agora, nos cabe questionar, por que tomar essa decisão estética plural artística em
um meio que supõe tantas figuras de linguagem e variações expressivas como o cinema? É aí
que afirmo estar o êxito do diretor. Com o emprego dessa pluralidade de meios de expressão
artísticos, ele conseguiu destituir ao máximo a sua obra da realidade, ressignificando a
discussão que Shakespeare propõe na obra original.
O cinema, conforme foi teorizado por seus críticos, tem uma relação, em sua gênese,
dialética com o real, uma relação intrínseca e complexa, operacionalizada pelo paradigma
técnico desse meio artístico, conforme veremos no próximo capítulo.
O recurso que Peter Greenaway utiliza, ao partir da palavra escrita como núcleo
criativo no meio cinematográfico, posiciona no centro do filme a discussão sobre a dialética
entre realidade e arte, e é a partir da multidisciplinariedade artística que o diretor despe a obra
cinematográfica de qualquer traço estético do real.
Mesmo a poética visual e as escolhas imagéticas conceituais do filme apontam para

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esse objetivo.
Importando conceitos do Barroco nas cores, estudo de iluminação e estilo, Peter
Greenaway reforça a discussão da dialética do real na arte. O Barroco foi um período
importante para ressignificação de naturalismo (GOMBRICH, 2013). Apesar da contínua
busca de representação do real nas obras, artistas como Caravaggio ressignificaram com
expressionismo e chiaroscuro o naturalismo em suas obras, interrompendo o processo
maneirista. Essa conquista, que inclusive foi celebrada, posteriormente, pelos modernistas, foi
considerada um passo gigantesco no caminho do abandono da obrigatoriedade formal da
representação naturalista na pintura. Portanto, a escolha por esses conceitos no filme nos
comunica algumas intenções no discurso do diretor frente ao tema desse artigo.
Ao partir da palavra escrita, explorando a maior parte dos tipos de manifestações
artísticas, combinadas em um hibrido entre cinema ficção e vídeo arte, Peter Greenaway
conseguiu destituir, quase integralmente, do meio cinematográfico a realidade. O diretor
revive, assim, o discurso ideológico original presente na peça: a emancipação da arte em
relação à natureza e a recíproca verdadeira.

O CINEMA E A REALIDADE; O CINEMA E O TEATRO

O cinema, desde sua gênese, pressupõe uma relação dialética com a natureza, como
vimos anteriormente. Essa dialética deriva de seu método técnico, onde fenômenos físicos e
óticos são manipulados por ferramentas, que, por sua vez, também obedecem a leis físicas e
óticas, analógicas ou digitais, para registro e reprodução da imagem. Por esse motivo, entre
alguns outros, o cinema foi considerado pela maioria de seus críticos e teóricos como meio
artístico final de representação da realidade.
Um dos principais críticos que teorizou essa relação dialética com o realismo foi
André Bazin (2014), que desenvolveu uma teoria inserida na base paradigmática ideológica
cinematográfica sobre a responsabilidade do cinema para com a realidade.
O livro Qu’est-ce que le cinéma – O que é o cinema (BAZIN, 2014), uma coletânea
de textos desse reconhecido crítico datados dos anos 1958 - 1962, apresenta como proposta
principal teórica discutir a relação dialética do cinema com a natureza. Partindo de suas
constatações da relação entre a literatura e a pintura com a realidade, Bazin (2014) propõe que
o cinema ocupa, finalmente, o papel da expressão artística conectada diretamente com a

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natureza, portanto, o meio artístico perfeito para emancipar todo o resto da arte de sua
obrigação para com a realidade.
A partir dessa conexão intrínseca com a natureza, é, portanto, responsabilidade do
cinema representá-la nas suas obras, respeitando sempre a fidelidade ideológica com a
fenomenologia do real, interpretando sem recursos estéticos a realidade tal como é captada
pela câmera, evitando ferramentas para dispersão e criação de ilusão.
A base dessa teoria de André Bazin (BAZIN; apud XAVIER, 1977) é a refutação da
teoria principal vigente, até então, a teoria da montagem. Essa teoria foi fundada por antigos
teóricos e expoentes russos como Eisenstein, Kulechov, Pudovkin, Bela Balazs. Eles
representavam o que Ismail Xavier classifica como Realismo Crítico, classificação em
contraposição com uma outra abordagem da teoria da importância da montagem, a abordagem
representada pelo cinema de naturalismo norte-americano de Griffith. (XAVIER, 1977)
Essas duas teorias citadas propunham, em uma abordagem bem simplificada, que o
maior potencial artístico cinematográfico estava na combinação de diferentes
enquadramentos/planos na linha de montagem, permitindo para o cinema um grande
diferencial em relação a outras artes, rompendo com o aprisionamento do espaço de
representação da tela, ou da dimensão do fotograma no caso da fotografia. Da combinação de
diversos e distintos fotogramas fotográficos, o cinema possuía em suas mãos o recurso da
combinação e criação de diversas espacialidades pela montagem, para diferenciá-lo e destacá-
lo das outras artes. (XAVIER, 1977)
Em outras palavras, a base estética da teoria da montagem se baseava na organização
e combinação de diferentes planos; pontos de vistas; campos e contra campos; metáforas
imagéticas, para a construção de uma nova espacialidade narrativa, espacialidade que, até
então, a limitação, dos outros meios artísticos, referente à possibilidade espacial formal, não
havia permitido.
André Bazin (2014), após décadas de consagração dessa teoria, a refuta, afirmando
que apesar de ser verdadeiro o potencial artístico da montagem no meio cinematográfico, esse
potencial também trai a responsabilidade e o principio que o cinema foi fundado, pressupondo
e permitindo uma interposição ideológica de ilusão no meio. O que o crítico propõe, portanto,
é que o cinema para se emancipar de vez das outras artes tem que assumir a realidade como
seu paradigma, sendo o mais fiel possível a ela, destacando-se da possibilidade artística dos
outros meios, devido suas limitações.
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Sua proposta diz respeito a uma estética realista, fundada na responsabilidade do


cinema frente sua posição na manutenção discursiva ideológica da fenomenologia social
neoliberal.

Se o paradoxo estético do cinema reside numa dialética do concreto e do abstrato, na


obrigação para a tela de significar unicamente por intermédio do real, é ainda mais
importante discernir os elementos da mise-en-scène que confirma a noção de
realidade natural e os que a destroem[...]
(BAZIN, 2014, p.187)

Agora, coloco a questão: como podemos relacionar essas teorias com nosso case de
estudo cinematográfico, a obra de Peter Greenaway?
A última tempestade, obra separada por algumas décadas da teoria de André Bazin
(2014), se desprende da mesma respeitando-a. Ainda em Qu’est-ce que le cinéma – O que é o
cinema (BAZIN, 2014), o teórico dedica um capítulo para reflexionar sobre a intersecção
entre os meios do teatro e do cinema frente às suas teorias. Nesse capítulo, intitulado Teatro e
Cinema, ele diz:

Na origem da heresia do teatro filmado reside um complexo ambivalente do cinema


frente ao teatro: complexo de inferioridade em relação a uma arte mais antiga e mais
literária, que o cinema compensa com a “superioridade técnica” de seus meios, que
se confunde com uma superioridade estética.
(BAZIN, 2014, p.165)

Respeitando essa constatação, minha proposição é que Peter Greenaway se vale das
teorias de Bazin (2014), para, por sua vez, propor sua própria teoria da emancipação
cinematográfica, destacando sua obra da realidade e não ancorando à mesma.
Ele propõe, pela intersecção de todos os tipos de expressões artísticas, desprovidas
de relações hierárquicas, inclusive como discutido décadas antes por André Bazin (2014),
validadas pelos recursos que um novo meio propunha, o vídeo, que a arte pode se destacar
totalmente da obrigação para com a realidade, se relacionando de modo hierarquicamente
equivalente, mesmo no meio cinematográfico.
Peter Greenaway nos demonstra que, a partir da sua estética, a arte pode criar suas
próprias consequências, assim como a realidade cria as suas, ou seja, as duas experiências
estéticas não têm obrigação de estar intrinsicamente ligadas em nenhuma instância, podem ser
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independentes caso seja essa a intenção, reativando, portanto, a questão que Shakespeare
suscita em sua obra original.
Enquanto Shakespeare ainda batalha no campo, comum à sua época, de discutir a
relação dialética entre a arte e o real, demonstrando que as duas estruturas estéticas têm pesos
diferentes para diferentes objetivos, Peter Greenaway ressignifica essa discussão, propondo a
dissolução das duas estéticas em uma obra artística, propondo, então, pela desconstrução, a
significação hierárquica equivalente da arte com o real.

CONCLUSÃO

“240 Iniciadoras da prostituição, como

conta a história;
Cessa o pudor e tão rígido o sangue

tornou-se nas faces


Que em pouco espaço de tempo elas

foram vertidas em pedras.

Pigmalião, tendo-as visto entregues ao

crime perpétuo
Em meio aos vícios odiosos que dons

foram da natureza

245 para o espírito mau da mulher, sem

esposa, solteiro
há muito tempo vivia carente de esposa

no tálamo.
Enquanto isso feliz e com arte

admirável esculpiu
O níveo marfim, concedendo-lhe

forma: a de uma mulher


Como nenhuma jamais. Por sua obra

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encantado ficou.

250 Bela, a forma é de virgem real, que

acreditas viver
E pensarias querer se mover, se não

fosse restrita:
tal é a arte que esconde sua arte.

Admira-se e sofre
No coração, com os fogos que emanam

do corpo forjado.

Vezes sem conta, as mãos se

aproximam, tateantes, da obra,”

(OVÍDIO, Livro X, 240-250, 2011, p.128)

A partir desse trecho do poema de Ovídio proponho nossa conclusão.

Segundo diz o mito, Pigmalião construiu com sua arte a estátua do que ele
considerava a mulher perfeita para si e se apaixonou por ela. Compadecida pela história e a
partir de súplicas de Pigmalião, Vênus dá vida a estátua que se torna, então, a cônjuge de
Pigmalião (BULFINCH, 2000). O poema nos propõe uma reflexão referente à estética real e a
artística que gostaria de transpor para os dias de hoje.

É importante que sigamos refletindo sobre a questão estética do real na arte até, e
talvez principalmente, atualmente. Chegamos em um momento onde, como no poema de
Ovídio, quase desconstruímos as barreiras do que é real e o que é arte, dentro da
fenomenologia social, muitas vezes confundindo as duas experiências estéticas.

Como vimos no percurso desse artigo, a reflexão sobre esse tema é antiga e
complexa e, portanto, não deve ser abandonada. Shakespeare, afirmação que já foi muito

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discutida por seus críticos, se inspirava nos poemas de Ovídio em sua obra, ou seja, em sua
época refletiu e propôs discussões sobre a dialética do real e da arte. Peter Greenaway, por sua
vez, se inspirou em Shakespeare para reviver essa discussão com a adaptação de sua obra,
conforme foi demonstrado nesse artigo.

Nos encontramos agora, cercados por uma estrutura de ambiências digitais que nos
contemplam constantemente com estímulos estéticos, a ponto de substituirmos
voluntariamente nossas experiências sensíveis por estímulos artificiais. Cabe a nós refletirmos
sobre onde está essa discussão, para, assim, traçarmos as barreiras e os limites da estética do
real e da estética do artístico dentro da nossa contemporaneidade. Debatermos, por exemplo,
como se encontra a relação dialética estética do real e da arte no ultrarrealismo. Discutirmos
se estamos, como na lenda de Pigmalião, substituindo o convívio social por estátuas
metafóricas, como as realidades virtuais.

Quais são os limites e as barreiras que a arte pode transpor dentro do contrato social
atual? Qual a interferência que o real pode e deve fazer sobre a construção artística? Como
tudo isso se relaciona com o comportamento social dos indivíduos? São essas algumas das
perguntas que gostaria de despertar.

Como vimos anteriormente, André Bazin (2014) discutiu profundamente, em sua


época, a responsabilidade do cinema frente a realidade para os espectadores que, como a arte,
correm perigo quando se propõe simplesmente servir o discurso ideológico, além de também
propor perigo para os indivíduos, em termos, por exemplo, de alienação.

Portanto, proponho para nós a tarefa de dar continuidade ao trabalho desses grandes
artistas, no universo da expressão artística ou da pesquisa acadêmica. Importante localizarmos
novamente em que ponto estamos nessa questão delicada e dialética, para assim continuarmos
desenvolvendo, com responsabilidade, arte, convívio social e cultura.

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EPÍLOGO

Recitado por Próspero

De todas as artes eu abdiquei,


A força que tenho é minha, bem sei


É minha mas fraca, por sinal.


Cabe-vos agora, senhores, decidir


Se devo ficar ou para Nápoles ir,


Deixai-me partir, não me quereis mal.


Pois meu ducado eu recuperei,


Ao traidor malvado eu perdoei,


Não me deixeis nesta ilha deserta,


Desatai com as mãos o nó que aperta


Este vosso serviçal.


Fazei do bom vento meu aliado


Não deixeis meu plano ser gorado


Tudo o que queria era agradar.


Que falta me fazeis agora -


- Espíritos para animar, artes para encantar -,

Não vim por este caminho fora


Para perder vossa indulgência.


Mas sei o poder da oração,


Ela trespassa o coração puro,

Desperta a piedade e liberta o homem puro.

Tal como gostaríeis de a ter para vós, senhores,

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Eu vos peço clemência.

Sai.

(SHAKESPEARE, EPÍLOGO, 2001, p.83)

REFERÊNCIAS

A última tempestade. Direção: Peter Greenaway, Produção: Allarts, Cinéa, Caméra One.
UK, 1991

ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: Ensaios sobre o Barroco. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.

BAZIN, André. Qu'est-ce que le cinéma: O que é o cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: Histórias de deuses e heróis. 12 ed. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2000.

GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013.

HELIODORA, Barbara. Os teatros no tempo de Shakespeare. In: LEÃO, Liana de Camargo;


SANTOS, Marlene Soares dos. Shakespeare, sua época e sua obra. Curitiba: Beatrice,
2008.

HOMAN, Sidney R. The tempest and Shakespeare's last plays: the aesthetic dimensions. In:
Shakespeare quarterly, [S.L], v. 24, n. 1, p. 69-76, 1973.

METZ, Christian. A significação no cinema. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.

NUNES, GLÓRIA H. PIRES; Leituras de Shakespeare: da palavra a imagem. 2006. Tese


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