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1. O problema
Vimos que a tripartição do conhecimento teorético corresponde a uma tripartição do
ser em realidades de tipo físico, em realidades de tipo matemático (alma, alma do mundo)
e em realidades de tipo teológico. Neste contexto, a matemática é o estudo das realidades
separadas e vem considerada como tal desde o primeiro Aristóteles. O que é verdadeiro
para a matemática deve ser a fortiori verdadeiro também para a filosofia primeira.
Devemos esperar que os seus objetos sejam separados de modo ainda mais profundo com
respeito a quanto o são os entes matemáticos. De fato, a filosofia primeira é frequentemente
designada por Aristóteles como teologia. Quem poderia duvidar que os objetos da teologia
são separados?
Entretanto, Aristóteles mudara sua opinião sobre o status dos entes matemáticos (e
portanto, implicitamente mais que explicitamente, com respeito à ciência matemática). Se
verifica em Aristóteles uma mudança similar no que tange aos objetos da teologia e da
teologia (a filosofia primeira)?2
O presente capítulo será dedicado a um exame desse problema. Esse exame se
reconduzirá, ao mesmo tempo, ao problema que emergira no capítulo III do presente livro,
mas que permanecera irresolvido. Naquele capítulo vimos como São Tomás, quando
interpretava a tripartição do ser e do conhecimento em Boécio, era conduzido a efetuar o
equivalente a uma clara distinção entre metaphysica generalis e metaphysica specialis. São
Tomás, juntamente com o último Aristóteles, rejeitara a teoria da existência separada dos
entes matemáticos: estes são apenas objetos de abstração. Não obstante, se a filosofia
primeira foi posta acima da matemática, a hipótese mais conveniente era a de que também
os seus objetos fossem [161] somente objetos de abstração. Uma tal interpretação da
filosofia primeira teria que resolver-se em uma concepção da metafísica como metafísica
1
Segundo R. Eisler, Wörterbuch der Philosophischen Begriffe (19284), pelos termos metaphysica generalis
e metaphysica specialis, em conjunto com a sua definição precisa, somos devedores de Micraelius, um autor
de resto pouco conhecido na história da filosofia (sobre Micraelius veja-se, Allg. Deutsche Biographie). Esses
termos, de fato, são apropriados e serão usados para indicar a diferença entre a metafísica como conhecimento
da realidade transcendente (Deus, a alma incorpórea, os anjos) e a metafísica como ciência do ser no sentido
disso que é comum a tudo o que é (como disse com especial clareza Pedro da Fonseca: o objeto da metafísica
é o ente enquanto é comum a Deus e às criaturas (ens quaternus est commune Deo et creaturis), Commentarii
in libros Metaphysicorum, 2 voll. [Lyon 1591], vol. I, p. 490-504).
2
W. Jaeger respondera a esta pergunta em sentido afirmativo (Aristoteles, 19552, p. 200-236). De acordo
com Jaeger, o conceito de metafísica sofreu a seguinte evolução: na sua primeira fase (platônica), para
Aristóteles, a metafísica se identificava com a teologia. Na sua segunda fase (semi-platônica), a mesma
assumira para Aristóteles um significado similar à lógica metafísica (ou dialética); a definição da metafísica
como ciência do ser enquanto ser pertence, a este segundo período. Na sua terceira fase, Aristóteles
pretendera interpretar a metafísica como se fosse fundada sobre, ou como se compreendesse, a física. Essa
linha evolutiva conclui assim com um total naturalismo, que tem Straton como seu representante.
generalis. Em outros termos, uma vez eliminado o status dos entes matemáticos como
separados, a filosofia primeira, quando se referisse a esta no contexto de uma tripartição
do conhecimento, parece designar a metahysica generalis. Até que ponto é justificada uma
tal interpretação?
Esse mesmo problema pode ser também enunciado de modo mais conciso. Ora
Aristóteles se refere à filosofia primeira considerando-a como teologia; ora se refere à
mesma considerando-a como ciência do ser enquanto ser. O primeiro referimento parece
conduzir a uma metafísica specialis; o segundo a uma metaphysica generalis. Qual é a
relação entre os dois?
[168]
4
Este passo fala explicitamente apenas do ser e do Uno, mas implicitamente também de seus contrários.
dizer do ser enquanto ser é que todo ser (qua talis) é idêntico a si mesmo, e é somente um
outro aspecto desta autoidentidade que vem expressa no princípio de não-contradição. Ora,
Aristóteles busca descobrir porque alguns filósofos negaram implícita ou explicitamente
esse princípio. Um dos motivos alegados por Aristóteles é que eles observaram que toda
coisa em torno deles muda, de que que resultava difícil aos mesmos atingir o conceito de
autoidentidade ou de estabilidade. O princípio de não-contradição em Aristóteles é um
corolário da doutrina acadêmica segundo a qual as coisas sensíveis não permanentemente
em devir, de modo que elas não existem no pleno sentido do termo <<existir>>.
Ora, algumas afirmações de que o princípio de não-contradição é aplicável (ou
rastreável) em uma esfera do ser mais que em uma outra parece uma mera absurdidade. De
fato o é, no caso em que o ser é considerado como um abstractum e o princípio de não-
contradição como uma regra de lógica formal. Não é uma absurdidade, porém, se o ser é
considerado como um elemento e o princípio de não contradição como um princípio ôntico.
Ao contrário, resulta imediatamente evidente que o ser, como qualquer outro elemento,
pode resultar ofuscado em uma esfera e revelar-se claramente em uma outra. De modo
particular, é evidente para um platônico que as ideias e os números são mais ser que as
coisas sensíveis. Que coisa entendemos quando dizemos <<mais ser>>? Precisamente isto:
nas ideias e nos números o ser é mais potente, mais claro, mais puro. Se pode exprimir a
mesma coisa dizendo que ele é menos determinado, menos permeado de negações e, neste
sentido, mais universal. Além disso, propriamente esta afirmação – de que uma coisa pode
ser em um grau superior com respeito a uma outra – não tem nenhum sentido para um leitor
que interpreta o ser como uma categoria formal, como um abstractum, que pode ser
aplicado igualmente a, ou abstraído igualmente de todo outro [172] ser. Mas para um
platônico, se há diversos graus de ser, algumas coisas participam do ser de modo mais
pleno que outras. Portanto, o ser pode ser estudado melhor em uma coisa, menos bem em
outra. Este é precisamente o ponto de vista de Aristóteles nos livros Γ e Ε 1 da Metafisica.
Ora, é bem sabido que em muitos passos – para além dos livros Γ e Ε 1 da Metafisica
– Aristóteles criticara o conceito de ser como um elemento, reduzindo-o a um conceito
universal que pode ser aplicado igualmente a tudo o que existe. Se lemos os livros Γ e Ε 1
da Metafisica à luz de tais passos, podemos interpretá-los no sentido de que eles propõem
uma metaphysica generalis. Estudados em si mesmos, entretanto, eles não indicam que
Aristóteles os havia entendido neste sentido. Ao contrário. A introdução do problema, a
impressionante frase contida em Ε 1, segundo a qual a teologias diz respeito à ουσία imóvel
e ao ser enquanto ser, os referimentos a uma esfera suprassensível do ser como justificação
do princípio de não-contradição, tudo isso resulta perfeitamente claro e coerente apenas se
compreendemos que nos livros Γ e Ε 1 da Metafisica o ser não é um abstractum, mas um
elemento, símile a ou talvez idêntico com o Uno acadêmico (ou ainda platônico). Portanto,
é um único e mesmo ramo do conhecimento que estuda a suprema esfera do ser e o ser
enquanto ser.
5
Por exemplo, Metafisica, Α 9, 992 b 19; Ν 2, 1089 a 7; De anima, I 5, 410 a 13. Se deveria talvez acenar
ao fato que, segundo Metafisica, Γ 2, a diferença entre προς εν e καθ' εν é irrelevante para o problema em
questão, que é aquele da redutibilidade de todos os contrários a um único par principal.
comparação não faz mais que <<traduzir>> a afirmação de Aristóteles: se a esfera do
sensível fosse a única esfera do ser, a física seria a <<sapiência primeira>> e concerniria
ao ser enquanto ser, uma vez que <<ser>> significaria <<ser uma realidade física>>. Mas
uma vez que há uma esfera do ser acima da esfera do sensível, é a filosofia <<primeira>>
que estuda o <<universal>> e [portanto] a primeira esfera do ser. Já aqui (Γ 3, 1005 a 33)
o καθόλου e a ουσία primeira se apresentam tranquilamente sob o mesmo plano,
preparando-se à afirmação: enquanto primeira será universal (Ε 1, 1026 a 30-31). Na esfera
suprema, o ser se apresenta como um καθόλου. Em todas as outras esferas [o ser] se
apresenta como um ser determinado. A passagem do ser determinado ao ser enquanto ser
não ocorre mediante o que definimos como um processo de abstração, a saber, de
formalização e/ou de generalização, que prescinde do que existe de modo pleno e real, do
individual, do concreto, do particular, e se dirige para o geral (universal), que existe apenas
(ou quase somente) nos nossos pensamentos. Além disso, essa passagem efetua-se
omitindo alguns caracteres concretos, isto é, determinados, e mantendo o ser na sua forma
pura, separada (unalloyed) mas não obstante concreta e não abstrata.
Afinal, os passos acima considerados não são os únicos nos quais o καθόλου não
pode ser considerado no significado de <<universal>>, de <<geral>> etc. Talvez o passo
mais conhecido, que não seria o caso de uma tal tradução seja aquele da Física, I 1 (cf. H.
Cassirer, Aristoteles’ Schrift <<Von der seele>> [1932], pp. 14-24; W. d. Ross, Aristotle’s
Physics [1936], comentário, ad. loc.). É obvio que o termo καθόλου possui em Aristóteles
mais de um significado, e é muito importante observar que nem sempre ele significa
<<universal>> ou <<geral>>, se esse termo vem considerado no sentido de <<mais
abstrato>>, de <<mais vazio porquanto concerne o conteúdo, e portanto o mais
compreensivo>> etc.6
[175]
Conclusão
[229]
Neste contexto torna-se possível uma reinterpretação do significado do objeto da
metafísica em Aristóteles. Essa nova interpretação parece necessária, uma vez que a
interpretação usual da metafísica como conhecimento do ser enquanto ser em da suprema
esfera do ser parece conter numa contradição fundamental. O ser enquanto ser designa,
segundo a interpretação usual, o conceito mais geral e o mais vazio. O <<ser>> é o que é
6
Para uma análise do conceito de καθόλου, veja-se sobretudo: D. Badareu, L’Individuel chez Arisitote, n.d.
[1936], p. 67ss.; K. v. Fritz, Philosophie und sprachlicher Ausdruck bei Demokrit, Plato und Aristoteles, n.d.
[1938], pp. 39; 64ss.; cf. J. M. Le Blond, Logique et Méthode chez Aristoteles (1939), spec. pp. 51ss; 75-83,
214, n. 4; N. Hartmann, Aristoteles und das Problem des Begriffs (1940), p. 10, publicado em: Kleinere
Schriften, vol. II (1957), p. 100-129, spec. 107ss. Em An. Post., II 19, Aristóteles parece próximo a uma
interpretação do καθόλου como designando a universalidade abstrata de um conceito que se mostra mediante
certa espécie de indução; e todos os passos em que Aristóteles ataca Platão por ter considerado a ideia seja
como universal, seja como entidade que existem separadamente, ele usa o termo καθόλου para designar o
universal abstrato. De outra parte, no passo em que o significado de καθόλου é examinado ex professo, a
saber, em An. Post., I 4, 73 b 25-74 a 3, o seu significado é <<onipresente>> mais que <<abstratamente
universal>>. Em outros termos, ém impossível afirmar que realmente o fato de que alguma coisa seja
designada por Aristóteles como καθόλου seja suficiente para demonstrar que essa alguma coisa não possa
ser entendida como alguma coisa de existente de modo separado. Em alguns passos, καθόλου e ser totalmente
separado são conceitos que se excluem reciprocamente; em outros não. Cf. F. Solmsen, Die Entwicklung,
cit., p. 84-90; W. D. Ross, Aristotle’s Prior and Posterior Analytics (1949), comentário a 73 b 25-32, p. 523.
comum a tudo o que existe. Mas a suprema esfera do ser, o divino, como é também definida
em Aristóteles, é alguma coisa de particular mais que de universal. É o primeiro ser, não o
ser universal. A interpretação aqui avançada elimina a contradição. Se estudamos os textos
em que Aristóteles expõe a sua definição da metafísica em si mesma, descobrimos que o
ser enquanto ser é entendido por Aristóteles como o ser mais pleno e não como o mais
vazio, e é tal enquanto totalmente indeterminado, a saber, não limitado. Propriamente
enquanto indeterminado, ele pode conferir ser a tudo o que existe e portanto merecer o
atributo de divino. Portanto, Aristóteles pode afirmar, sem ser [230] incoerente, que a
metafísica diz respeito a isso que é i-limitado e onipresente (essa a significação de καθόλου)
e o que é primeiro, a saber: o que é acima de todos os seres particulares e é o princípio de
seu ser; e que é, por essas razões, o mais divino. A metafísica de Aristóteles é comparável
exatamente aos outros sistemas da Academia; de fato, é no mesmo contexto que
encontramos a definição da metafísica como ciência do ser enquanto ser e a tripartição do
ser e, com isso, a tripartição do conhecimento teorético em teologia, matemática e física.
Essa última tripartição é tanto acadêmica quanto a primeira.