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i Lom th) Cn Viper ce Tse aver Ciencias Wi aS. Titulo original: 28 edigto brasileira: novembro de 1981 ‘Tradugdo: Salma Tannus Muchail Revisio: Roberto Cortes de Lacerda a. cai fo Produsio gréfca: Niton Thomé Assistente de produgéo: Catlos Tomio Kurata Composigdo: Liia Spésito Revisiotpogréfica: Elvira da Rocha Pinto + Ademilde Lourengo da Siva Copa: Adelfo M. Suzuki igdo reservados & LIVRARIA, ‘ONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325 ~ Sto Paulo — SP ~ Brasil Capitulo I Las Meninas © pintor esti ligeiramente afastado do quadro. Langa um olhar em diregio 20 modelo; talvez se trate de aerescentar um éltimo toque, mas & possivel também que o primeico trago no tenka ainda sido aplicado, © brago que segura o pincel est dobrado para a esquerda, na direcZo da palheta; permancce imével, por um instante, entre a tela e as cores. Fssa ‘mao habil esté pendence do olhar; e o olhar, ei troca, repousa sobre 0 gesto suspenso, Entre a fina ponta do pincel ¢ o gume do olhar, o espe- ticulo vai liberar seu volume, Nao sem um sistema sutil de evasivas. Distanciando-se um pouco, 0 pintor colocou-se ao lado da obra na qual trabalha. Isso quer dizer que, para oespectador qucno momento olha, cle esti direita de seu quadeo, ‘0 qual ccupa toda a extremidade esquerda. A esse mesmo espectador 0 quadro volta as costas: dele 66 se pode perceber o reverso, com a imensa armagio que o sustenta, © pintor, em contrapartida, é perfeitamente visivel em toda a sua estatura; de todo modo, ele nao esté encoberto tador, surgindo dessa espécie de grande gaiola virtual que a superfi std pintando projeta para tras. Podemos velo agora, de pausa, no centro neutro dessa oscilacao. Seu talh , lara sio meio termes entee 0 vsivel eo invistvel: saindo dessa 1” 20 AS PALAVRAS E AS COISAS tela que nos escapa, ele emerge aos nossos olhos; mas quando, dentro em pouco, der um passo para a direita, furtando'se aos nossos olhares, achar-se-4 colocado bem em face da tela que esta pintando; entrari nessa regio onde seu quadro, negligenciado por um instante, se Ihe vai tomar de novo visivel, sem sombra nem reticéncia. Como se o pintor no pudesse ser ao mesmo tempo visto no quadro em que esté represen- tado e ver aquele em que se aplica a representar alguma coisa. Ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompativeis. © pintor olha, o rosto ligeiramente virado e a cabega inclinada para 9 ombro. Fixa um ponto invisivel, mas que nds, espectadores, podemos facilmente determinar, pois que esse ponto somos nés mesmos: nosso corpo, nosto rosto, nossos olhos. O esperdculo que ele observa é, por.’ tanto, duas vezes invisivel: uma vez que nio é representado no espago do quadro ¢ uma vez que se situa precisamente nesse ponto cego, nese esconderijo essencial onde nosso olhar se furta a nés mesmos no mo- em que olhamos. E, no entanto, como poderfamos deixar de ver essa invisibilidade, que esté af sob nossos alhos, jé que ela tem no pro- el equivalente, sua figura selada? Poder seia, com feito, adivinhar o que o pintor olha, se fosse possivel langar os clhos sobre a tela a que se aplica; desta, porém, 56 se distingue a tex esteios na horizontal e, na vertical, o abliquo do cavalete, O alto retin gulo monétono que ocupa toda a parte esquerda do quadro real e que figura o verso da tela representada recon: sob as espécies'de uma superficie, a invisibilidade em profundidac templa: este espago em que és estamos, que nos Pintor até’aquilo que ele olha, esté tragada uma linha imperiosa que nds, 08 que olhamos, no poderiamos evitar: ela atravessa o quadco real 2 ealcanga, d frente da sua superficie, o lugar de onde vemos o pintor que | nos observa; esse pontilhado nos atinge infalivelmente e nos liga a epre- sentagio do quadro, i Aparentemente, esse lugar é simples; constitui-se de pura reciproci- dade: olhamos um quadro de onde um pintor, por sua-vez, nos contem- pla. Nada mais que um face-a-face, olhos que se surpreendem, olhares Fetos que, em se cruzando, se superpSem, E, no enttanto, essa ténue linha de visibilidade envolve, em troca, toda uma rede complexa de incertezas, de trocas ¢ de evasivas. O pintor so dirige os olhos para nés sna medida em que nos encontramos no lugar do seu motivo. Nés, espee- tadores, estamos em excesso, Acolhides sob esse olhar, somos por ele expulsos, substituidos por aquilo que desde sempre se encontr LAS MENINAS ( a antes de nés: o proprio modelo, Mas, inversamente, o olhar do:pintor, ido para fora do quadro, a0 vazio-que lhe faz face, aceita tantos modelos quantos espectadores Ihe aparegam; nesse lugar preciso mas indiferente, o que olha e 0 que ¢ olhado permutam se incessantemente Nenhum olhar € estivel, ou antes, no sileo neutro do olhar que tras. passa a tela perpendicularmente, o sujeito e 0 objeto, o expectador e 0 inverter sew papel 20 infinico. E, na extremidade esquerda do quadro, sj alguma vez determinavel ou defi iagdo dos olhares. A fixidez opaca que ela faz fa sempre instavel © jogo das metamorfoses que, no centro, se estabelece entre o espectador ¢ 0 modelo. Porque s6 vemos esse reverso, nao sabemos quem somos nem o que fazemos. Somos vistos © pintor fixa atualmence um lugar que, de ins nao cessa de mudar de contetido, de forma, de r vel sobre 2 qual se traga, al tempo e para sempre, uum retrato que j se apagard. De sorte que o olhar soberana do gulo vircual, que define designam-the um lug o € obrigatério, apropriam-se de sua luminosa ie € a projetam sobre a i vel da tela virada, Ele vé sua invisibilidade tornada 49 pintor e transposta em uma imagem definitivamente invisivel prio, Supra que & mulopliads« tomada tinde mal ine ‘ével Por um estratagema marginal. Na extremidade diet, o quadro recebe sua luz de uma jancla representada segundo uma perspectiva ccurta; dela apenas 2 AS PALAVRAS E AS COISAS E, percorrendo a sala da direita para a esquerda, a vasta luz dourada impele ao mesmo tempo o espectadot em direszo 20 pintor e o modelo em diregio4 tela; é ela também que, iluminando o pintor, torna-o 20 espectador ¢ faz brilhar como linhas de ouro, aos olhos do modelo, a moldura da tela enigmatica, onde sua imagem, transposta, vai se achar encerrada, Esta janela encantoada, parcial, apenas indicad: luz inteira e mista que serve de lugar-comum & repr br, na outra extremidade do quadro, a tela invisiyel: assim como esta, virando a Costas aos espectadores, se redobra contra o quadro que a representa © forma, pela superposigao de seu reverso visivel sobre a superficie do quadro que a contém, o lugar, para nés inacessivel, onde cintila a Imagem por exceléncia, assim a janela, pure abertura, instaura ‘um gspago tio manifesto quanto.o outro & oculto; to comum ao pintor, 5 personagens, aos modelos, aos espectadores quanto 0 outro é s¢ rio (pois ninguém o olha, nem mesmo o pi Da direica, derrama-se por uma janela invisivel 0 puro volume de toda representacio; 4 esquerda, estende-se a superficie que encobre, do outro lado de sua textura demasiado visivel, a representagdo que ela contém. Inundando a cena (quero dize sala representada na tela e a sala onde a tela esta colocads a5 personagens ¢ os espectadores, impelindo-os, sob o olhar do pi em diregdo ao lugar onde seu pincel os vai representar. Esse lu nos é recusado, Olhamo-nos olhados pelo pintor e tornados seus olhos pela mesma luz que nolo faz ver, E, no momento-em que vamos nos apreender transcritos por sia mio como num espelho, deste nao-podemos surpreender mais que 0 insipido reverso. O outro lado.de umreflexo. | ~ 7 Ora, exatamente em face dos espectadores — de nés mesmos — sobre a parede que constitui o fundo da sala, o autor representou uma série de quadros;¢ eis que, entre todas essas telas suspensas, umadentre elas brilha com um claréo singular, Sua moldura € mais larga, bria que a das outras; uma fina linha brane: a luzenvolve tum pouco para trés, uma pesada cortina de purpura. Os outros quadros, 36 dio a ver algumas manchas mais palidas no limite de uma noite sem profundera © contririo, abre-se para um espago em recuo onde formas reconheciveis se dispdem numa claridade que s6 a ele pertence. LAS MENINAS 2B Ene todos esses elementos destinados a oferecer representagBes, mas que as contestam, as recusam, as esquivam por sua posigio ou sua dis- tncia, esse € o dinico que funciona com toda a honestidade e que di a ver o que deve mostrar. A despeito de seu distanciamento, a despeito da sombra que o envolve. Mas nfo £ um quadro: é.um espelbo, Ele oferece fenfim esse encantamento do duplo, que tanto as pincuras afastadas quanto a luz do primeiro plano com a tela irdnica re De todas as representagdes que o quadro rept visivel; mas.ainguém 0 olha. Em pé ao lado de sua absorvida pelo seu modelo, o pintor nao pode ver esse es Suavemente atris dele. As outras personagens do quadro fia, voltadas também elas para o que se deve passar & clara invisibilidade que margeia a tela, para esse dtrio de luz, onde seus clhares tém para ver aqueles que os ver, ¢ ndo para essa cavidade som- qual se fecha 0 quarto onde estio representadas. Hi, com algumas cabecas que se ofezecem de perfil: nenhuma, porém, ements vada pate ota, no fundo da le ee sll dee lado, pequeno reténgulo brilhante que nada mais é sendo visbili | mae if possar-se dela, conéla atal e com ‘mas sem-nenhum razerse no fruto, sul arene preciso reconhecer que essa indiferenga so se iguala& do espelho. | ste nada reflete daquilo que se encontra no mesmo espaco as costas, nem as personagens no 1 que ele fita papel de reduplicagao: re no interior de um espago irreal, mi e via a mesma coisa que na primeira porsm desomposta¢ nada diz do que ji ‘borda superior esté exatamente sobre a ta do quadro, ocupa sobre a parede do fundo (ao menos sobre a parte I desta) uma posigdo mediana; deveria, pois, ser atravessado pelas ‘as perspectivas que 0 proprio quadro; poderse-ia esperar mesmo atelié, um mesmo pintor, uma mesma tela nele se dis wundo um espaco idéntico; poderia ser o duplo perfeito. ino faz ver nada do que o proprio quadro representa. Seu vai captar frente do quadto, nessa regido necessarlamente forma sua face exterior, as personagens que ali esto dis- 4 AS PALAVRAS E AS COISAS postas. Em ver de gizar em torno de objetos visiveis, esse e vessa todo o campo da representacio, negligenciando 0 que captar, e restitui a visibilidade ao que permanece fora de todo Mas essa invisbi > ea obdsticvlo, no desvia a perspectiva, endereca-se ao que ¢ invi ‘mesmo tempo pela estrutura do quadro e por sua existéncia como pin- le se reflete & o que todas as personagens da tela estao diante delas; €, pois, o que se poderia ver, se a tela ingassse para a frente, indo mais para baixo, até envolver as server de modelos ao pintor. Mas dando a ver o pin , igualmente inacessiveis, mas de modo diferente: a primeira, por uum efeito de composigao que é proprio ao quadro; a segunda, pela lei que preside A existéncia mesma de todo quadro em geral. Aqui, 0 jogo da representac3o consiste em conduzir essas duas formas de invisibil dade uma ao lugar da outra, numa superposigdo instavel — e em -las logo & outra extremidade do quadro — a esse polo que & 0 mais mente representado: o de uma profundidade de reflexo na reen de uma profundidade de quadro. O espelho assegura uma metitese da dade que incide ao mesmo tempo sobre o espaco representado no » quadro e sua natureza de representagdo; faz ver, no_centro da te: ~ aquilo que, do quadro, é duas vezes necessariamence invisivel. ica de aplicar ao pé da letra, mas invertendovo, 0 Iho Pachero dera, ao que parece, ao seu alun trabalhava no atelié de Sevilha: “A'imagem deve sair da moldus quando u Mas talver seja cempo de nomear im essa imagem que aparece contempla 4 frente do quadro. no fundo do esps Talven valha a pena fixar de vez a identidade das personagens presentes 10 € que o pint LAS MENINAS as ou indicadas, para no nos atrapalharmos infinitamente nestas designs: ges Dutuantes, um pouco ab: de equivocos ¢ de desdobrs “o pintor”, “as personagens”, ‘os espectadores as imagens". Em_vez de prossegir sem fim numa linguagem fat mente inadequada ao visivel, bastaria. dizer que. Velésquez. comps, quadro; que nesse quadro ele se representou a si mesmo no seu. a ‘ou num salio do Escorial, a pintar duas personagens que a infanta Mar- garida vem contemplar, rodeada de aias, de damas de honor, de corte ‘fos ¢ de andes; que a esse grupo pode-se muito precisamente atribuir omes: a tradicio reconhece aqui dona Maria Agustina Sarmience, a Nieto, no primeizo plano, Nicolaso Pertusato, bufio italiano, Bastaria acrescentar que as duas personagens que servem de modelo 20 pintor nao sio visiveis, ao menos diretamente; mas que podemos distinguilas rum espelho; que se trata, sem divida, do rei Filipe 1V ¢ de sua esposa Mariana. Esses nagdes a préprios constituiriam indicios Geis, evitariam desi ‘em toda 0 e480, 0 que o e, com das personagens do linguagem com a pintura 6 uma relagao infin imperfeita e esteja, om face do visivel, num dé ¢garia por recuperar. Sao irredutiveis uma ao outro: por mais que se di © que se vé, 0 que se vé nio se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faga ver 0 que se esti dizendo por imagens, metaforas, comparagé 6 lugar onde estas resplandecem no € aquele que os olhos descort mas aquele que as sucessdes da sintaxe definem, Ora, 0 nome pr nesse jogo, ndo passa de um artificio: permite mostrar com o dedo, quer dizer, fazer passar subepticiamente do espago onde se fala para.o cespaco onde se olha, isto é, ajustélos comodamente um sabre 0 outro como se fossem adequados. Mas, se se quiser manter abetta a rel I, Se se quiser falar ilidade, de maneira que se permancsa 0 € preciso entio par de parte ‘mes proprios e meterse 10 infinito da tarets. , talvez, por int dio dessa linguagem nebulosa, andnima, sempre meticulosa e repet porgue demasiado ama que» pnts, poo + pouco,aended sine 6 preciso; pois; Bugle no saber quemse:relle espelho ¢ interrogar esse reflexo a0 nivel de sua existéncia. — jo, ele € o verso da grande tela representada a esquerda. 26 AS PALAVRAS E AS COISAS verso ou, antes, a face dianteira, pois que mostra de frente o que ela, Por sua posicao, esconde. Ademsis, opde-se a janela e a reforca, Con ela, & um lugar-comum ao quadro e a0 que Ihe & exterior. A jancla, porém, opera pelo movimento continuo de um efusio que, da direita ara a esquerda, agrega as personagens atentas, 20 pintor, ao quadro, 0 espeticulo que contemplam:; jé o espelho, por um movimento violento, instantineo e de pura surpresa, vai buscar, & frente do quadto, aquile que € olhado mas nio visivel, a fim de, no extremo da profundidade ficticia, torné-lo visivel mas indiferente a todos os olhares. O pont Ihado imperioso que esté tracado entre o reflexo o que ele reflete corta perpendicularmente o fluxo lateral da luz. Enfim —e éa terceira fangao desse espelho — cle poe em paralelo uma porta que, como ele, se abre na parede do fundo. Também ela recorta um retangulo claro, ccuja luz fosca nio se irradia pela sala. Nao passaria de uma placa dow. ada, ndo estivesse ela aberta para fora através de um batente esculpido, da curva de uma cortina e da sombra de varios degraus. Ai comega um corredor: mas, em vez de se perder em meio d obscutidade, ele se dssipa ‘num brilho amarelo, cuje luz, sem entrar, rodopia em torno de si mesma € tepousa. Sobre esse fundo, a0 mesmo tempo préximo e sem limite, um homem destaca sua alta silhueta; ele é visto de perfil; com uma das mios retém o peso de um cortinado; seus pés estdo pousados sobre dois degraus diferentes; tem o joclho dobrado. Talvez vi. entrar na sala; talvez se limite a espiar o que se passa no interior, contente de surpreen. der sem ser observado. Tal como o espelho, fixa 0 verso da cena? tanto quanto ao espelho, ninguém the presta atengio, Nao se sabe donde vem, pode-se supor que, seguindo por incertos corredores, contornot #%ala fonde as personagens estio reunidas ¢ onde trabalha o pintor; talvez estivesse, hi pouco, também ele a frente da cena, na regio ivisivel que contemplada por todos os olhios do quadro. Como as imagens que se distinguem no fundo do espelho, é possivel que ele seja um emissario desse espago evidente e escondido. Hé, no entanto, uma diferenga: ele cq allem carne ¢ oss; surgi de fora nomi da rea representa ¢ indubitdvel — no um reflexo provivel, mas uma irrupgio. O espe- Tho, fazendo ver, para aém mesmo dos motos do ate 6 qe pases a frente do quadro, faz oscilar, na sua dimensio sagital, o interior exterior. Com um pé sobre o degrau e o corpo inteiramente de peri © visitante ambiguo entra ¢ sai ao mesmo tempo, num balancear imovel Ele.repete, sem sair do lugar, mas na realidade sombria de seu corpo, 0 movimento instantineo das imagens que atravessam a sala, penetram LAS MBNINAS aa no espelho, nele se refletem ¢ dele ressaltam como espécies visiveis, novas e idénticas. Pilidas, mindsculas, essas silhuetas no espelho sao recusadss pela alea e sélida estatura do homem que surge no vio da rea, — Pe Eimpre, no entanto, retomnar do Fundo do quadro em diego 4 frente da cena; é preciso abandonar esse circuito cuja voluta se acaba de percorrer. Partindo do olhar do pintor que, & esquerda, constitui como que um centro deslocado, distingue-se primeiro o reverso da tela, depois 0s quadros expostos, com o espelho no centro, a seguir a porta aberta, novos quados, cuja perspectiva, porém, muito aguda, so deixa ver as molduras em sua densidade, enfim, 2 extremidade direita a jancla, ov, antes, a fenda por onde se derrama a luz. Essa concha em hélice oferece todo 0 ciclo da representagio: o olhar, a palheta eo pincel, a tela inocente de signos (sio os instrumentos materiais da representagao), os quadros, 05 reflexos, o homem real (a representagao acabada, mas como aque liberada de seus conteiidos ilusérios ow verdadeiros que The si0 jjustapostos); depois, a representagio se dilui: s6 se véem as molduras € essa luz que, do exterior, banha os quadros, os quais, contudo, devem fem troca reconstituir 4 sua propria maneira, como se ela viesse de outro lugar, atravessando suas molduras de madeira escura. E essa luz, vemo- com efeito, no quadro, parecendo emergir no intersticio da moldura; ¢ de li ela alcanga a fronte, as faces, os olhos, o olhar do pintor que segura numa das mios a palheta e, na outra, o fino pincel. .. Assim se fecha a voluta, ou melhor, por essa luz, ela se abre. Essa abertura no é mais, como no fundo, uma porta que se abriu; 6 a propria amplitude do quadro, ¢ os olhares que por ela passam nZo siode um visitante longingilo. O friso que ocupa o primeiro e o segundo planos do quadro representa — se se incluir 0 pintor ~ oito personagens. Cinco delas, a cabesa mais ou menos inclinada, virada ou abaixada, olham na diresio perpendicular do quadro, O centro do grupo é ocupado pela pequena infanta, com seu amplo vestido cinza e rosa. A princesa vira a cabesa para a direita do quadro, enquanto seu busto e os grandes folhos do vestido pendem ligeiramente para a esquerda; 0 olhar, porém, dicige-se aprumado na diregio do espectador que se acha em face do quadro. Uma linha mediana que dividisse a tela em duas alas iguais pastaria entre os dois olhos da crianca. Seu rosto estf a um tergo da altura total do quadro. De sorte que af reside, sem divida, o tema prin- a 30 dessa pintura. Como que para Jo e melhor sublinhé-lo, o autor recorreu a uma figura tradicional: 8 AS PALAVRAS B AS COIsAS a0 lado da personagem principal, cclocou outra, ajoclhada, Como um ofertante em prece, como 0 Anjo saudando a governanta de joelhos estende as mios para a princesa, Fecorta num perfil perfeito, Estd a altura do da crianga. A aia olha para a princesa e s6 para cla. Um pouco mais & direita, outra daa de honor, voltada também para a infanta, ligeiramente inelinada acima dela, mas com os obhos claramente ditigidos para a frente, la onde jé olham 0 pincor e a princesa. Enfim, dois grupos de duas personagens: um, em recuo; outro, composto de andes, no primeiro plano, Em eada par, uma ersonagem olha em frente, a outra a direita ou i esquerda. Por sua osicao € por sua proporgdo, esses dois grupos se correspondem e se jam: atrds, o§ cortesios (a mulher, a esquerda, olha para a direita); & frente, os andes (0 rapaz que esti na extremidade direita olha Para o interior do quadro). Esse conjunto de personagens assim dispos- tas pode constituir, conforme a atencao que se dé ao quadro ou o centro de referencia que se escolha, duas figuras. Uma seria um grande X; no Ponto superior esquerdo estaria 0 olhar do pintor e, & direita, 0 do cortesio; na ponta inferior, do lado esquerdo, esti sentada de costas © ano (com 0 dessas duas linhas, no centro do X, o olhar da infants, A outra figura seria antes a de uma vasta curva; suas duas pontas seriam determinadas pelo pintor a esquerda ¢ pelo cortesio a direita — extremidades altas e recuadas; o tecéncavo, bem mais aproximado, coincidiria com 0 rosto da princesa e com o clhar que a aia Ihe dirge. Essa cénue linha desenha uma concha que, a0 mesmo tempo, encerra c libera, no meio do quadro, a localizagao do espelho. H4, pois, dois centros que podem organizar o quadto, conforme a atengio do espectador divague ¢ se prenda aqui ou ali. A princesa man- tém-se de pé no meio de uma cruz de Santo André, que gira em torno dela com o turbilhio dos cortestos, damas de honor, animais e bufées. Mas essa rotagdo é fixa. Fixa por um espeticulo que seria absoluca mente invisivel se essas mesmas personagens, subitamente iméveis, nfo oferecessem, como que no vio de uma taca, a possibilidade de olhar no fando de um espelho, o dplice imprevisto de sua contemplagzo. No sentido da profundidade, a princess se superpde a0 espelho; no da altura, € 0 rellexo que se superpée a0 roato, Mas a perspectiva os torna imos um do outro. Ora, cada um deles emana uma linha quea olha, LAS MENINAS » tada (¢ mesmo além dela j4 que o espelho perfura a parede do fundo e fae hascer atrés dela um outro espago); a outra & mais curta; vem do olhar da crianga ¢ 36 atravessa 0 primeiro plano. Essas duas linhas sagi- tis sio convergentes, segundo um Angulo muito agudo, 9 ponto de Seu encontro, saindo da tela, se fixa a frente do quadro, mais ou menos 1 de onde 0 olhamos. Ponto duvidoso, pois que no o ver: poréin, inevitavel & perfeitamente definido, pois que é prescrito. por essas_ duas figuras mestzas ¢ confirmado ainda. por outros pontilhados adjacentes que nascem do quadro e que também dele escapam. ‘Que. hd, énfim, nesse lugar perfeitamente inacessivel, porquanto Go? Que espeticulo € esse, quem sio esses rostos que se refletem pri- reiro no fundo das pupilas da infanca, depois dos corcesios e do pintor ¢, finalmente, na claridade longinqua do espelho? Mas a questo logo se desdobra: o rosto que o espelho reflete & igualmente aquele que o con- la: © que todas as personagens do quadro olham sio também as personagens a cujos olhos elas sfo oferecidas como uma cena a contem- plar; © quadro como um todo olha a cena para a qual ele €, por sua vez, uma cena. Pura reciprocidade que manifesta o espelho que olha © é olhado, ¢ cujos dois momentos sio desprendidos nos dois angulos do wuadro: 4 esquerda a tela virada, pela qual o ponto exterior se torna ; {culo dicita o cio estrado, nice elemento do quadco que no olhar respeitoso da assisténcia, no ¢spanto da crianca ¢ dos at Reconhecemolos, no fundo do quadro, nas duas pequenas silhuetas que para fazé-los desvanecer-se, De todas as personagens representadas, clas sZ0 também as mais desprezadas, pois ninguém presta ateng20 a o: € diante delas que as coisas estio, € para elas que se 30 AS PALAVRAS E AS COISAS voltam, é a seus olhos que se mostra a princesa em seu vestido de festa; da tela virada a infanta e desta ao ano que brinca na extremidade direita, desenha-se uma curva (ou entio, abre-se o brago inferior do X) para ordenar em relagio a cles toda a disposigio do quadro e fazer aparecer, assim, o verdadeiro centro da composigio, ao qual o olhar da infanta ¢ a imagem no espelho estio finalmente submetidos. Esse centro é simbolicamente soberano na sua particularidade histérica, j4 que & ocupado pelo rei Filipe IV e sua esposa. Mas, sobre- tudo, ele 0 é pela triplice fungao que ocupa em relagio ao quadro, Nele vém superporse exatamente 0 olhar do modelo no momento em que & pintado, o do espectador que contempla a cena e o do pintor no mo- mento em que compie seu quadro (no o que é representado, mas que esté diante de nds e do qual falamos). Essas trés fungoes “olhantes” confundem-se em um ponto exterior a0 quadro: isto é, ideal em sao a0 que & representado, mas dele que se t nko pode no interior do quadro — pr respondem as trés fungoes desse p o pintor com sua palheta na mio ita o visicante, com um pé sobre o degrau, prestes a entrar na cle capta ao revés toda a cena, mas vé de frente o par real, que é 0 prio espetdculo; no centro, enfim o reflexo do tei e da rainha, ornamen tados, iméveis, na atitude de pacientes modelos, Tal reflexo mostra ingenuamente, ¢ na sombra, aquilo que todos colham no primeiro plano, Restitui, come que por encanto, 0 que falta a cada olhar: ao do pintor, o modelo que é recopiado no quadro pelo seu duplo representado; a0 do rei, seu retrato que se completa nesse Jado da tela que ele ndo pode distinguir do lugar em que esta; a0 do expectador, o centro. real da cena, cujo lugar ele assumiu c por intrusdo, Mas talvez essa generosidade do espelho seja talvez esconda tanto ou mais do que manifesta, O lugar onde impert © rei com sus esposa é também 0 do artista ¢ 0 do espectador: no fando do espelho poderiam aparecer — deveriam apatecer — 0 rosto ue aquele para o q) por estarem presentes no quadro, 4 diveita e & esquerda, o artiste ¢ 0 visi- LAS MENINAS a tante ndo podem estar alojados no espelho: do mesmo modo o rei apa- rece no fundo do espelho, na medida mesma em que no faz parte do __quado. - Na grande voluta que percorria o pe clhar do pintor, sua palheta e sua mio suspensa, até os quadros termi || nados, a representagdo_nascia, completava-se para se desfazer nova | mente na luz; o ciclo era perfeito, Em contrapartida, as linhas que atra: vessam a profundidade do quadro sao incompletas; falta, a todas, uma [parte de seu trajeto, Essa lacuna € devida & auséncia do rei auséncia que é um artificio do pintor. Mas esse artificio recobre e designa um lugar vago que é imediato: o do pintor e do espectador quando olham ‘ou compdem o quadro, £ que, neste quadto talvez, como em toda representagdo de que ele é, por assim dizer, a esséncia manifestada, a eflexos, as imitagdes, 0s os os signos e as formas em oferenda, essa relagio & necessariamente interrompida. Fla jamais, pode estar toda presente, ainda quando numa representagi0 que se desse a si propria em espeticulo. Na profundidade que atravessa a tela, que a escava ficticiamente e a projeta para a frente dela propria, nao & 1 que a pura felicidade da imagem oferega alguma vez, em plena mestee que representa ¢ 0 soberano representado, - {(Talbes ha, neste quadro de Velisquer, como que a represencagio 2 lta representagao clissica e a definiczo do espaco que ela abre. Com Jefeito, ela intenta representar-se a si mascot seer ‘05 seus elementos, imagens, os olhates aos quais cla se oferece, os rostos que rorna visiveis, os gestos que a fazem nascer. Mas af, nessa dispersto que ela reiine ¢ exibe em conjunto, por todas as partes um vazio es le € imperiosamente indicado: 0 desaparecimento necessétio dag fe gue a funda — daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos passa de semelhanga. Esse sujeito mesmo — que € 0 mesmo — > E live, enfim, dessa relagdo qie a Acorrentava, a representa 1 como pura representa 2 pnxe ,

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