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EAD

Evolução e
desdobramentos do
conceito de
Paideia
4
1. OBJETIVOS
• Contextualizar o período histórico em que se dá a exis-
tência de Sócrates (Período Clássico) e a importância de
alguns aspectos presentes nesse momento, em que se dá
a criação de uma proposta diferenciada de Paideia.
• Reconhecer e justificar a importância de Sócrates para a
fundamentação da Paideia grega.
• Compreender e analisar a Paideia socrática.
• Compreender e comparar a relação entre Sócrates e os
filósofos da natureza.
• Analisar a educação política de Sócrates.
• Analisar e pontuar método socrático na Educação.
• Distinguir Sócrates de Platão e compará-los.
• Analisar e identificar a Teoria das Ideias de Platão.
• Classificar e pontuar evolução do conceito de Areté na
obra A República, de Platão.
126 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

• Reconhecer e analisar a importância de Protágoras para


compreensão da Paideia sofística em relação à Paideia
socrática.

2. CONTEÚDOS
• Método.
• Educação para a pólis.
• Maiêutica.
• Protágoras.
• A República.
• A Teoria das Ideias.
• Areté e Paideia.
• Areté política.
• O homem e a pólis em Aristóteles.
• Humanismo romano.
• Paideia Christi.
• A Bildung contemporânea.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


1) Nesta unidade, você irá se deparar com as contribuições
de Sócrates e Platão para a construção de novos ideais
de construção da Paideia. Um aspecto interessante ao
qual você deverá centrar sua atenção refere-se à mu-
dança de foco no exercício da Excelência apresentadas
por esses filósofos. Além disso, no Tópico Introdução à
Unidade, apresentaremos algumas características do
momento histórico vivido pelos atenienses naquele
período e, nesse sentido, há de se pensar o quanto um
determinado contexto histórico acaba por interferir nos
anseios, reflexões e ideais de um determinado povo. Por
fim, iremos lhe apresentar os desdobramentos poste-
riores do conceito de Paideia e, ao fazê-lo, convidamos
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 127

você a analisar o quanto essas mudanças acrescentaram


novas formas de interpretação a esse conceito.
2) O termo "hermenêutica" tem recebido, ao longo do
tempo, uma série de interpretações. Especificamente
nos estudos religiosos e na chamada "Filosofia social",
esse termo é utilizado para se referir à teoria e à prática
da interpretação. Nesta unidade, faremos uso da her-
menêutica para interpretar os textos que compõem as
fontes de nossos estudos.
3) Mesmo com ressalvas com relação a dados históricos
presentes em filmes, sugerimos que você assista aos
seguintes, procurando observar como apresentam as
ideias de Sócrates e a atitude grega de valorização da
razão:
• Sócrates (Drama). Direção de Roberto Rosselini, Itá-
lia, 1971. 120 minutos.
• Alexandria (Drama). Direção de Alejandro Almanábar,
Espanha, 2010. 131 minutos.
• Alexandre (Aventura) Direção de Oliver Stone, EUA,
2004. 176 minutos.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, você estudou em que consiste a Paideia
sofística e os seus valores em Educação, cuja finalidade era superar
o modelo de Educação baseada na linhagem divina. Como estu-
damos anteriormente, os sofistas não conseguiram desvincular o
conceito de Areté da aristocracia.
Nesta unidade, examinaremos uma das figuras que mais
combateram os sofistas: trata-se de Sócrates. Ao longo desse ca-
minho, tentaremos compreender quais são os pressupostos da
Paideia socrática.
Antes de começarmos a realizar essa análise, torna-se neces-
sário contextualizarmos a realidade vivida pelo povo grego nesse

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128 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

período, pois essa realidade acabará por influenciar sobremaneira


as novas reflexões sobre o ideal de Paideia.
Inicialmente, gostaríamos de lembrá-lo que, conforme vimos
na Unidade 3, os sofistas viveram, sobretudo, no período em que
floresce a democracia grega, o chamado "período de ouro". Nesse
período, ocorreu a Guerra do Peloponeso, na qual Esparta vence
Atenas, o que acabou por gerar uma série de desdobramentos e
questionamentos.
Imagine as reflexões que o povo ateniense talvez fizesse
naquele período. Um povo que tinha um grande orgulho de suas
instituições, de seus hábitos e condutas acabou por perder uma
guerra para uma cidade que não primava, segundo o olhar de um
ateniense típico, pelas qualidades que até então esse povo consi-
derava como valorosa.
Essa situação gerou profundas reflexões, buscando verificar
quais seriam as razões para a perda de guerra ou ainda que carac-
terísticas específicas da sociedade espartana pudessem ter cola-
borado para esse resultado.
Nesse sentido, convém analisarmos a reflexão proposta por
Jaeger (2006, p. 485):
Despontava a convicção de que Esparta era menos uma determina-
da constituição do que um sistema educacional aplicado até as suas
últimas conseqüências. Era a sua disciplina rigorosa que lhe dava a
sua força. Também a democracia, com a sua avaliação otimista da
capacidade de Homem para se governar por si próprio, pressupu-
nha um alto nível de cultura. Isto sugeria a idéia de fazer da educa-
ção o ponto de Arquimedes, em que era necessário apoiar-se para
mover o mundo político.

Segundo Jaeger, essas observações acabaram por gerar a va-


lorização incondicional do modelo educativo espartano, o refúgio
nos ideais do passado ou, ainda, uma reflexão de ações que pode-
riam ser feitas para consumar uma mudança positiva na Paideia
grega. A partir dessas reflexões, delineia-se a percepção da impor-
tância de uma relação adequada entre o indivíduo e o Estado, pois
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o indivíduo certamente está inserido em uma dimensão política e


social.
Assim, o cidadão ateniense passa a observar que:
A educação por meio da qual se pretendia melhorar e fortalecer
o Estado constituía um problema mais adequado que outro qual-
quer para trazer à consciência o condicionalismo recíproco do indi-
víduo e da comunidade. Sob este ponto de vista, o caráter privado
de toda a anterior educação de Atenas aparecia com um sistema
fundamentalmente falso e ineficaz, que devia ceder o passo ao
ideal da educação pública. Embora o Estado não soubesse fazer o
mínimo uso desta idéia (JAEGER, 2006, p. 486).

Como se percebe, são muitos os desafios que se apresentam


naquele momento da história grega.
A seguir, vamos nos dedicar a analisar um personagem muito
importante desse período, que se tornou um verdadeiro símbolo
da Filosofia, aquele que também, com a mesma importância, veio
a tecer propostas e ações que se vinculam com força e beleza para
pensarmos o ideal de Paideia.

5. SÓCRATES
O que sabemos de Sócrates? Muito pouco. Na verdade, o
que sabemos a seu respeito nos chegou por meio de Xenofonte e,
principalmente, de Platão.
As obras de Platão têm sempre como personagem principal
Sócrates. Como Sócrates não deixou nenhum escrito, várias são as
dúvidas que pode ter um leitor mais atento. Nesses escritos, Platão
não estaria apresentando suas próprias ideias por meio de Sócra-
tes? Como delimitar as ideias do mestre das do discípulo? Não teria
sido ele, Sócrates, uma invenção? O que lemos em A República e em
outras obras não seriam simplesmente as ideias de Platão?
Devemos considerar que, para a tradição grega, a linguagem
escrita não era tão valorizada, pelo menos até certo período da
história. Na Carta VII de Platão, temos uma percepção clara dessa
questão.

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130 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

A linguagem falada tem mais expressividade do que a escri-


ta; no Fedro também há discussões acerca da escrita. O texto es-
crito precisa sempre da intervenção de seu autor.
O método socrático caracterizou-se pelo diálogo, que exerci-
ta a inteligência e aguça o raciocínio. Isso implica que, para exami-
nar e concretizar a importância de seu pensamento, foi necessário
o testemunho de seus discípulos ou de seus inimigos, que o detra-
taram, cada um à sua maneira.
Desse modo, aproximamos-nos e compreendemos um pou-
co mais a importância de Sócrates na história do pensamento fi-
losófico. No contexto filosófico contemporâneo, sua figura é tão
importante que os filósofos que o precedem foram denominados
"Pré-socráticos".

Entre os diálogos platônicos em que se pode avaliar a personali-


dade e os ensinamentos socráticos, estão O Banquete e Apologia.

Porém, o problema inicial permanece: como realizar a re-


construção histórica do pensamento socrático, como reconhecer
as verdadeiras palavras desse sábio ateniense? Poderíamos nos re-
portar a Aristóteles, mas Jaeger nos adverte de que esse caminho
nos conduz a certa inexatidão.
Por onde começar?

6. RECONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO SOCRÁTICO

Ponto de partida
Em Apologia de Sócrates (ou Defesa de Sócrates), Platão pro-
cura reproduzir o discurso que Sócrates teria feito para se defen-
der das acusações de corromper a juventude, não acreditar nos
deuses então cultuados e criar novos deuses.
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No excerto dessa obra que reproduzimos no tópico Textos


complementares, conta que Querefonte um dia vai ao oráculo de
Delfos perguntar se havia alguém mais sábio que ele, Sócrates, e
obtém como resposta que "não há ninguém mais sábio do que
Sócrates". Ao saber disso, o filósofo conta que sai em busca de
outra resposta para o vaticínio, chegando à célebre conclusão: "Só
sei que nada sei". Tomando essa conclusão como uma orientação
divina, o filósofo defende que o homem deve se dedicar à busca
do conhecimento. Nesse sentido, aplicou-se no exercício do pen-
sar e educar.
Eis a verdadeira sabedoria: a consciência da sua própria ig-
norância ou o reconhecimento dos limites da própria razão. Esse é
o pressuposto básico para o filosofar.
Nesse excerto, podemos notar a fina ironia socrática, a sa-
ber: o sábio que se julgava ignorante e o ignorante que se julgava
sábio.
Essa passagem da Apologia de Sócrates nos faz pensar, tam-
bém, a respeito do método e da dialética socrática: a maiêutica e a
ironia. Além disso, o excerto apresenta dois conceitos: Belo e Bom,
que, por sua vez, estão associados à Paideia e ao ideal de homem
que se pretende formar. Adiante, veremos como se dá a apresen-
tação desses conceitos.
Vamos conhecer, a seguir, um pouco mais sobre as obras que
refletem o pensamento de Sócrates.

Discípulos
É por meio do testemunho de Platão, em seus diálogos,
como Fédon, Apologia, Protágoras, que temos um retrato um pou-
co mais fiel do mestre ateniense, um decalque de sua personalida-
de moral, cuja importância promoveu uma mudança no conceito
de Areté, conforme já havíamos mencionado anteriormente.

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132 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

Além de Platão, também a obra Memoráveis, de Xenofonte é


importante na reconstrução o pensamento socrático.
Primeiramente, Jaeger adverte-nos de que:
[...] o diálogo e as memórias são as formas literárias que nascem
nos meios socráticos para satisfazer essa necessidade [preservar
o pensamento de Sócrates]. Ambos estão ligados à consciência de
que a herança espiritual do mestre é inseparável da personalidade
humana de Sócrates (JAEGER, 1995, p. 499).

Segundo Jaeger (1995, p. 493), "Sócrates torna-se o guia de


todo o Iluminismo e de toda a filosofia moderna".
Especificamente nesta unidade, daremos especial ênfase aos
textos Apologia de Sócrates e A República, pois conforme veremos
a seguir, a primeira obra traz uma série de elementos interessantes
para analisarmos a contribuição de Sócrates para a construção de
uma nova proposta de Paideia e, por outro lado, a segunda obra
define os caminhos para a construção de uma cidade justa.
De que se trata a obra Apologia de Sócrates? Nela, temos a
versão apresentada por Platão do discurso utilizado por Sócrates
para se defender de uma série de acusações que foram proferidas
contra ele em 399 a.C.
Essas acusações, realizadas por seus detratores, diziam que
seus ensinamentos viriam a corromper a juventude e que, além
disso, manifestavam descrença pelos deuses da cidade de Atenas
(isso feria fortemente as crenças dos atenienses).
Deve-se dizer que, embora façamos uma análise de vários
aspectos presentes nessa obra, nada substitui a leitura do texto
original, pois ele carrega consigo uma força argumentativa e até
mesmo uma carga emotiva, que merecerá sua leitura ao longo
desta graduação em Filosofia.
Quanto ao diálogo A República, também tem como persona-
gem central a figura de Sócrates e foi escrito por Platão em cerca
de 380 a.C. Nele, temos a tentativa de Platão em definir justiça, or-
dem e caráter, por meio do qual deve ser alicerçada a construção
de uma cidade-estado justa, a Politeia e, ainda, o homem justo.
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 133

Contextualizadas essas obras, cabe a nós examinar as razões


que conduziram ao ressurgimento dessa figura tão importante e
relacioná-la com o fenômeno educativo.
Havíamos dito anteriormente que, comumente, se estabele-
ce uma relação entre o cristianismo e o ideal de homem dos gre-
gos, o qual o sábio ateniense representa.
Há, de fato, alguma afinidade?
Primeiramente, precisamos ter em mente que a figura de Só-
crates começa a exibir contornos mais visíveis somente após sua
morte, mediante os testemunhos de seus discípulos, desenvol-
vendo-se, desse modo, uma literatura socrática. Esse movimento
toma proporções maiores e a inquietação moral que, até então,
assolava apenas seus seguidores se desdobra para os diversos se-
tores da sociedade ateniense.
Como dito anteriormente, o que sabemos a seu respeito é o
que é retratado os textos de seus discípulos e, portanto, nos depa-
ramos com o problema de distinguir o que é de fato socrático e o
que se trata na verdade, daqueles que os retrataram.
Um primeiro aspecto que podemos identificar é o diálogo
em si, pois era dessa maneira que o filósofo ensinava. Segundo
Jaeger (1995, p. 501), "ele considerava o diálogo a forma primitiva
do pensamento filosófico e o único caminho para chegarmos a nos
entender com os outros".
Outro elemento importante para nossa reflexão é a busca do
Bom (tomemos esse conceito como o Bem). Em outras palavras, a
preocupação de Sócrates tinha mais um conteúdo de ordem moral
do que dogmática como o faz parecer na Teoria das Ideias de Pla-
tão nas suas obras.
Não podemos deixar de estabelecer relações entre as ideias
de Platão e Sócrates, afinal, o discípulo aprendeu com o mestre os
conceitos gerais.

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134 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

Durante os primeiros estudos filosóficos, Platão seguiu os


ensinamentos de Crátilo, discípulo de Heráclito, isto é, aquele que
defendeu o princípio de que "tudo flui, nada permanece". Desse
conceito universal, Platão desdobrou o verdadeiro ser: as Ideias.
Mas Sócrates não inferiu a relação entre as coisas sensíveis e as in-
teligíveis. A ele cabe o método indutivo e os conceitos universais.
[...] Sócrates seria comparável ao limiar mais sóbrio da filosofia de
Platão, no qual se evitariam as audácias metafísicas deste e, fugin-
do à natureza para se limitar ao campo da moral, pretender-se-ia,
de certo modo, fundamentar teoricamente uma nova sabedoria da
vida orientada para o aspecto prático (JAEGER, 1995, p. 507-508).

Há de se considerar, ainda, que a morte do mestre foi um


dos acontecimentos mais marcantes da vida de Platão. Somemos
a este fato a Guerra do Peloponeso e seu descrédito com relação
à Democracia.

7. SÓCRATES, O EDUCADOR POR EXCELÊNCIA


Sócrates representa o eixo norteador para a compreensão
do processo de formação do homem na Grécia antiga.
No contexto sociopolítico em que viveu, o terreno firme no
qual se assentavam os valores espirituais herdados dos grandes
legisladores, como Sólon, estavam seriamente comprometidos e
se desdobravam em direção à estrutura do Estado e da sociedade.
No entanto, será necessário voltarmos um pouco no tempo
para deslindar esse fenômeno, quando Sócrates foi discípulo de
um dos grandes filósofos naturalistas: Anaxágoras.

Sócrates, discípulo de Anaxágoras


Ignoramos se nesse período suas ideias políticas foram in-
fluenciadas pelo círculo de pessoas com quem conviveu, tais como
Eurípedes, Arquelau, Sófocles, Címon e também Plutarco, Péricles
e Aspásia. Esse era o momento de grande florescimento artístico,
filosófico e áureo do poder político, econômico de Atenas. Mas o
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fato é que a Educação para Sócrates deveria ser política. Voltare-


mos a esse assunto mais adiante.
No entanto, para a Grécia se consolidar política e economi-
camente, o Estado exigiu muitos sacrifícios de seus concidadãos.
E foi nesse período que Sócrates se destacou, sendo considerado
"mau democrata", pois defendia que não deve haver intervenção
política nas Assembleias e nos Tribunais e o que deveria prevale-
cer era o conhecimento das coisas. Esse pensamento se mostrava
diferente do princípio democrático ateniense, segundo o qual "o
Governo era incumbência da maioria do povo" (JAEGER, 1995, p.
514). Apresenta, dessa forma, um novo princípio "democrático".
Essa inovação pode ser atestada de forma mais contundente no
diálogo platônico Górgias, 454 E ss.; 459 C ss., passim.
De acordo com Jaeger (1995, p. 515):
É caso para pensar que esta posição se ia formando dentro dele,
diante da crescente degenerescência da democracia ateniense,
durante a guerra do Peloponeso. Para quem, como ele, tinha sido
educado no espírito dominante na época das guerras pérsicas e as-
sistira ao apogeu do Estado, era forte demais aquele contraste para
não provocar uma série de dúvidas e críticas.

Podemos dizer que as razões de Sócrates para essa atitude


de desprezo em relação à democracia suplantava qualquer moti-
vação de cunho meramente político. Aliás, ele a transcendia.
Mas qual é a relação disso tudo com a influência filosófica
de Anaxágoras? O que ele buscava na Filosofia da natureza que
pudesse ajudar a compreender aquela realidade?
Nas ideias de Anaxágoras, Sócrates não encontrou o princí-
pio que procurava. A explicação reduzia-se às causas materiais e,
portanto, era insuficiente para dar conta de entender e explicar a
realidade e sua estrutura.
Na obra Fédon, podemos observar como Platão apresenta,
por meio de Sócrates, sua Teoria das Ideias. No entanto, sabemos

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136 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

que a investigação socrática passava, necessariamente, pela ques-


tão do Bom (Agathós) que está nas próprias coisas.
Mas por que buscar pela Filosofia da natureza?
A resposta é simples: porque ele estava à procura do princí-
pio da ordem humana e esse só poderia ser derivado do cosmos
(Kósmos), ou seja, trata-se, aqui, da relação entre o microcosmo
(homem) e o macrocosmo (mundo): há uma ordem que regula
ambos.
Os gregos foram, como já dissemos, capazes de identificar e
reconhecer as leis que atuam nas próprias coisas. Está lembrado?
Tratando-se de Filosofia da natureza, Sócrates não encon-
trou nela a resposta que procurava.
Observemos esta passagem:
A crítica aos filósofos da natureza vem pois demonstrar indireta-
mente que a visão de Sócrates incidia, desde o primeiro momento,
sobre o problema ético-religioso (JAEGER, 1995, p. 517-518).

Isso não nos lembra, de acordo com a obra Apologia, das


acusações submetidas a Sócrates?
No entanto, cabe notar que ele procurava uma base firme
sobre a qual pudesse compreender e explicar a realidade do ponto
de vista ético-moral. Por isso, recorreu à Filosofia da natureza, isto
é, aos filósofos que o precederam. Adotou, então, uma perspecti-
va antropológica, em que o homem e sua estrutura física e corpo-
ral constituem ponto de partida para as suas reflexões.
Nesse sentido, as contribuições de Empédocles no campo da
medicina atraíram a atenção de Sócrates. Vemos, a partir deste
ponto, um deslocamento das reflexões filosóficas que, até então,
se situavam no plano do cosmológico em direção à vida humana.
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8. A IMPORTÂNCIA DO CORPO PARA OS GREGOS


Procure retomar algumas considerações sobre a Cosmogo-
nia, a Cosmologia e o Mito para os gregos na literatura que suge-
rimos nas unidades anteriores. Em hermenêutica, chamamos isso
de "pré-compreensão".
Vale considerar que, ao nos colocarmos diante de uma pers-
pectiva filosófica antropocêntrica, essa implica na noção de corpo.
Se existimos é mediante um corpo. É o corpo que sofre, tem pra-
zer, é disciplinado, exercitado, se reproduz. Esse conceito é impor-
tante na medida em que revela, de forma muito clara, a marca do
pensamento socrático presente nos diálogos platônicos.
Costuma-se atribuir a Sócrates a distinção entre corpo e
alma, embora essa dicotomia, porém, foi pensada por Platão –
lembremos que nossa referência foi diretamente Platão e não seu
mestre.
Ao falarmos do corpo, não podemos esquecer a importân-
cia da ginástica naquele tempo. A denominação "ginástica" inicial-
mente se referia aos variados tipos de atividade física sistematiza-
dos, cujos fins variavam de atividades ligadas a atividades práticas,
de sobrevivência ou preparação militar. Os gregos criaram as pri-
meiras escolas destinadas à preparação de atletas para exibições
ginásticas em público em locais denominados "ginásios". De um
fim prático, os exercícios passaram a ser cultuados na busca pelo
corpo e mente sãos, além do culto à beleza do corpo (expressado
em obras de arte desse período). Assim, foi na Grécia antiga que
a ginástica adquiriu o status de Educação Física, pois passou a de-
sempenhar papel fundamental no sistema educativo grego para o
equilíbrio harmônico entre as aptidões físicas e intelectuais.
Na obra A República, há importantes considerações sobre a
ginástica para a formação do indivíduo na pólis. A forma como os
gregos concebiam a importância do corpo não tem paralelo com o
que, hoje, habitualmente fazemos. Aliás, sua concepção ultrapas-

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138 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

sava os limites do simplesmente estético (e entenda-se estético,


aqui, no sentido moderno, porque para os gregos a estética tem
um sentido mais amplo).

O que você acha de pesquisar um pouquinho para saber mais
sobre esse conceito?
Para você ter um exemplo da importância do corpo para o povo
grego, procure pesquisar a respeito, por exemplo, do movimento
renascentista, que retomou justamente os valores culturais greco-
-romanos. Artistas como Michelangelo, Da Vinci e outros se desta-
cavam pela perfeição (simetria) de suas obras.

É interessante notar que o conceito de beleza passa pelo cri-


vo da matemática como, por exemplo, proporção, simetria etc. Um
rosto bonito, portanto, é simétrico e revela perfeição.
Voltemos ao conceito de ginásio:
o ateniense daqueles tempos sentia-se mais no seu meio no ginásio
do que entre as quatro paredes da sua casa, onde dormia e comia.
Era ali, sob a transparência do céu da Grécia, que diariamente se
reuniam novos e velhos para se dedicarem ao cultivo do corpo. Os
pedaços de lazer dos intervalos eram dedicados à conversa. [...]
Quem tinha para dizer ou perguntar alguma coisa que considerava
de interesse geral, mas para a qual não eram locais adequados nem
a assembléia do povo nem o tribunal, corria ao ginásio para dizê-la
aos seus amigos e conhecidos (JAEGER, 1995, p. 521-522).

O ginásio era o local por excelência para a "ginástica do pen-


samento" e só era comparado, em termos dessa importância, aos
banquetes. Procure ler a obra platônica O Banquete para entender
um pouco mais desse contexto.
Essa "ginástica do pensamento" à qual nos referimos pode
ser denominada como a "nova Paideia", cuja formação teve gran-
des contribuições da Filosofia socrática.
A dialética socrática é a contrapartida do método educativo
sofista (que já estudamos anteriormente).
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 139

9. A IMPORTÂNCIA DA OBRA APOLOGIA, DE PLATÃO


Ainda não conseguimos distinguir o pensamento de Sócrates
e o de Platão. Para isso, devemos recorrer ao exame da importân-
cia da obra Apologia, no momento em que, ao ser condenado à
morte, Sócrates confessa: "enquanto viver jamais deixarei de filo-
sofar!".
Sua maneira habitual de ensinar, ou a conversação socrática, é
pautada por dois conceitos importantes: a exortação (protreptikos)
e a indagação (elenchos). Assim, de acordo com Jaeger, a Filosofia
socrática é ao mesmo tempo uma exortação e uma Educação.
Com isso, busca refutar o saber e a Excelência (Areté) apa-
rentes como pressuposto básico para localizar a essência do bem
moral e ético. Lembremo-nos de sua ironia: o ignorante que se
julga sábio e o sábio (Sócrates) que se julga ignorante.
Ora, é aqui que nos deparamos com outro conceito caro à
Filosofia socrática e que separará Sócrates de Platão: o conceito
de alma.
O essencial, no estudo desta unidade sobre o exame do ho-
mem, é a preocupação com a alma, conforme é mencionado na
Apologia, em Protágoras ou no Fédon.
Vale ressaltar que esse conceito não se vincula ao difundido
atualmente pelas religiões cristãs, afinal, historicamente, é pré-
-cristão, assim como Sócrates também o é.
A Filosofia socrática exige um comportamento que vise ao
cuidado com a alma. Esta tem muito mais valor do que os bens
materiais ou o corpo, mas não significa que o corpo seja deprecia-
do. Inclusive a respeito disso, um autêntico princípio socrático foi
bastante difundido em latim: Mens sana in corpore sano.
Não significa, portanto, descuidar do corpo e, como disse-
mos anteriormente, para Sócrates o corpo e a alma não estão ne-
cessariamente separados.

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140 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

Em que consiste, então, a Paideia socrática?


Em algumas passagens da obra Memoráveis, de Xenofonte,
encontramos uma expressão no mínimo curiosa: "serviço de Deus".
Bem, sabemos que Sócrates foi pré-cristão e que naquela
época não havia uma religião monoteísta na Grécia. Portanto, con-
vém considerar que essa expressão não traz em seu bojo o sentido
adotado pelos cristãos ou qualquer outro sentido de cunho reli-
gioso.
É natural, também, explicarmos, por intermédio de Platão
e Xenofonte, os objetivos da Paideia socrática em detrimento à
sofística.
Eis o que diz Jaeger (1995, p. 538) sobre a definição da Pai-
deia dos sofistas:
A paidéia dos sofistas era uma colorida mistura de materiais de
origem vária. O seu objetivo era a disciplina do espírito, mas não
existia entre eles unanimidade quanto ao saber mais indicado para
atingi-la, pois cada um deles seguia estudos especializados e, natu-
ralmente, considera a sua disciplina como a mais conveniente de
todas.

Nesse sentido, a Educação preconizada pelos sofistas pade-


cia da falta do critério de cuidado com a alma e também por conta
dos limites do alcance do conhecimento desses educadores.
Transferindo essa reflexão para os dias atuais, nós não nos
parecemos mais com os sofistas? A ideia de saber especializado,
a fragmentação do saber e a falta de compromisso com a verdade
não seriam alguns indicadores?

10. POLÍTICA E ÉTICA EDUCACIONAL


Somos seres de necessidade, conforme uma vez afirmou
Marx. Precisamos do trabalho para sobreviver e não podemos ne-
gar os diversos fatores de ordem econômica e política que interfe-
rem nos acontecimentos históricos. Não é verdade?
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 141

Materialismo dialético de Marx––––––––––––––––––––––––––


O filósofo, cientista social e historiador Karl Marx é, sem dúvida, um dos mais
influentes pensadores políticos de todo o século 19. Especificamente em relação
a essa referência, estamos nos referindo a uma tese muito cara a Marx de que
a natureza dos indivíduos tem vinculação direta com as condições materiais em
que se encontram.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
É claro que esse discurso não inviabiliza os conhecimentos
específicos, mas a questão é: o que um determinado estudo pode
contribuir, efetivamente, para a vida? Quais são os limites?
Impõe-se, aqui, um problema ético nesse movimento educa-
cional instaurado por Sócrates.
Lembremos de que os sofistas não tinham outra pretensão
além da formação de dirigentes políticos e que a preocupação so-
crática estava voltada para a formação do caráter.
Dissemos que a Educação de Sócrates era política. Como po-
demos caracterizá-la, afinal?
Sua política, no entanto, não pode ser confundida com a teo-
ria platônica, presente nas obras A República e Górgias.
Sócrates era considerado um "mau democrata", como já dis-
semos, e não se envolvia com a vida política da época e de sua
cidade, porém educava politicamente. Como podemos falar de
política, educar politicamente, sem nos envolvermos com essas
questões diariamente?
A compreensão do que Sócrates quis dizer sobre a Educação
deve ser política. A esse respeito, veja o que Jaeger (1995, p. 546-
547) observa:
Tem necessariamente de educar o Homem para uma de duas coi-
sas: para governar ou ser governado. Já na alimentação se começa
a marcar a diferença entre estes dois tipos de educação. O Homem
que é educado para governar tem de aprender a antepor o cumpri-
mento dos deveres mais prementes à satisfação das necessidades
físicas. Tem de sobrepor à fome e à sede. Tem de se acostumar a
dormir pouco, a deitar-se tarde e a se levantar cedo. Nenhum tra-
balho o deve assustar, por árduo que seja. Não se deve deixar atrair
pelo engodo dos prazeres dos sentidos... quem não é capaz de tudo
isso fica condenado a figurar entre as massas governadas.

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142 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

Vemos, dessa forma, a contribuição socrática para a forma-


ção política do indivíduo na pólis grega, em um sentido mais am-
plo do que o simples domínio de técnicas.

11. A PAIDEIA SOCRÁTICO/PLATÔNICA


Nesse breve estudo, procuramos apresentar alguns dos ele-
mentos que caracterizariam a proposta de Paideia em Sócrates e
Platão.
Dentre esses elementos, gostaríamos de destacar a questão
da construção de uma virtude moral, o homem e sua vinculação
com a pólis e, consequentemente, uma valorização da formação e
participação política.
Nesse sentido, gostaríamos de lhe apresentar uma proposta
de Villagra Diez (2002) que, em nossa análise, trata-se de uma sín-
tese de alguns conceitos da nova Paideia para a qual contribuíram
Sócrates e, em especial, em Platão. Para Villagra Diez (2002, p. 9),
essa nova proposta de Paideia manifesta-se na necessidade de se
"educar na Areté através do logos para a pólis".
Como se percebe, há vários aspectos interessantes presen-
tes nessa afirmação. O ideal de Areté permanece, mas de forma
diferente da Areté heroica de Homero, ou, ainda, da Areté moral
do trabalhador manifestada em Hesíodo. Nesse momento, temos
o uso do logos para o exercício da Areté.
Não basta mais ser corajoso e ter boas virtudes morais, mas,
além disso, passar a utilizar o logos, pois o logos é bem maior de
cada um e permitirá ao homem a realização da sua Excelência em
plenitude. Não bastasse isso, o exercício do logos deve estar a ser-
viço não só do indivíduo, mas da comunidade como um todo, pois
o indivíduo está para a pólis e a pólis está para o indivíduo. Torna-
-se necessário, assim, que o indivíduo seja educado de modo que
possa exercer adequadamente suas funções na sua cidade-estado.
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 143

Essa nova proposta de Paideia, sintetizada por Villagra Diez


como a de educar para o Bem, nos faz refletir: Temos hoje, no
uso da razão, uma Excelência a ser buscada e, ao realizarmos essa
Excelência, pensamos em exercitá-la a serviço de um bem maior,
que nos permita colaborar com a comunidade no qual estamos
inseridos?
Consideramos importante que você reflita sobre essa ques-
tão, pois, conforme veremos na próxima unidade, o tema será de
suma importância quando lidarmos com a contemporaneidade.
Agora, vamos avançar um pouco mais e apresentarmos al-
guns desdobramentos da Paideia grega manifestada na Paideia
aristotélica.

12. A PAIDEIA ARISTOTÉLICA: O HOMEM E A PÓLIS


A proposta de Paideia socrático/platônica trouxe novas nu-
ances e possibilidades de entendimento à criação de um ideal de
Paideia. O mesmo poderá se dizer de Aristóteles, o único filósofo
do período clássico que rivaliza com Platão em primazia e impor-
tância na cultura ocidental.
Aristóteles nasceu na cidade grega de Estagira e mudou-se
para Atenas, onde foi considerado o aluno mais brilhante de Pla-
tão. Ele ousou, a partir de suas originais propostas filosóficas, apre-
sentar contrapontos interessantes ao que foi proposto por Platão.
E quais seriam suas contribuições ao tema aqui proposto?
Inicialmente, podemos dizer que Aristóteles adotou uma posição
diferente com relação ao idealismo platônico. Enquanto para Pla-
tão existem conceitos ideais e esses serviriam para guiar os ho-
mens no desafio da construção de seus ideais, em Aristóteles exis-
te a convicção de que não é possível aplicar conceitos ideais em
todos os momentos da vida, pois, como ela é múltipla, mutável
e imprevisível, é sempre necessário que o homem adeque suas
ações a partir das situações com as quais se depara.

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144 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

Segundo Cottingham (apud COAD, 2006, p. 74):


a concepção aristotélica predominante de boa vida envolveria o
florescimento harmonioso de nossas capacidades humanas, sob as
orientações gerais da razão.

Além disso, há uma profunda vinculação da Excelência hu-


mana e sua vinculação com a pólis, pois a construção de um ethos
(caráter) passa necessariamente pela participação política que
busque a realização de um bem comum para todos, pois:
Considerado sob o ângulo da autos-suficiência, o raciocínio parece
chegar ao mesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado
como autos-suficiente. Ora, por autos-suficiente não entendemos
aquilo que é suficiente para um homem só, para aquele que leva
uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa,
e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem
nasceu para a cidadania. Mas é necessário traçar aqui um limite,
porque, se estendermos os nossos requisitos aos antepassados,
aos descendentes e aos amigos dos amigos, teremos uma série
infinita (ARISTÓTELES, 1991, p. 15).

E como o homem pode se tornar Excelente? Para Aristóte-


les, o caminho da virtude passaria pelo exercício equilibrado de
suas qualidades e, nesse sentido, existiria um elemento central, o
exercício da prudência (phronesis), ou seja, a capacidade de não
somente tomar decisões que lhe permitam atingir um determina-
do fim, mas também lhe permitam determinar fins bons e consis-
tentes com o objetivo de viver bem de forma geral e ampla.
Nesse sentido, Coad (2006) apresenta-nos uma metáfora
com um jogador de golfe para exemplificar essas considerações
que estamos lhe apresentando. Procure refletir: um jogador de
golfe é aquele que, em sua prática esportiva, tem de realizar cál-
culos precisos (fazendo uso do logos) para saber a força certa (o
exercício equilibrado de virtudes) a ser ministrada em uma bola (a
vida cotidiana) para que atinja um buraco ou os vários buracos até
a meta final ou fim do jogo (a felicidade do indivíduo via participa-
ção plena na pólis).
Há de se ressaltar a importância dessas considerações para
o momento atual em que estamos vivendo, isso porque, muitas
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 145

vezes, não fazemos uso do logos, ou sequer nos lembramos da im-


portância de seu uso. Normalmente, deixamos-nos levar por ele-
mentos instintivos em nossas decisões e, não bastasse isso, sequer
temos estabelecido um caminho ou, o que é mais importante, um
télos ou finalidade que nos direcione.
A partir disso, consideramos que já existem elementos sufi-
cientes para lidarmos com o conceito de Kalós e Agathós aristoté-
lico. Segundo Coad (2006, p. 80):
Aristóteles ensinou que se a pessoa não adquire os princípios do
comportamento ético na família, ele deverá encontrá-los na comu-
nidade. Assim, é a comunidade que educa e para a comunidade
que uma pessoa deve continuamente contribuir. O ideal de Kalós
Kagathós pode somente estar presente no indivíduo completo que
é senhor de todas as virtudes e também um respeitável membro
da comunidade.

Com isso, terminamos essa pequena análise de alguns gran-


des pensadores e, após essa análise, verificaremos alguns dos des-
dobramentos que ocorreram ao longo do tempo em torno do ideal
de Paideia.

13. DESDOBRAMENTOS DA PAIDEIA GREGA


O humanismo romano
Após as considerações que fizemos a respeito da Paideia no
decorrer do Período Clássico da Filosofia, nos deteremos, agora,
em um desdobramento muito importante da Paideia: o Humanis-
mo. Buscaremos debater algumas peculiaridades desse conceito
e os elementos novos que ele traz consigo para novas interpreta-
ções e aprofundamentos em relação ao conceito de Paideia.
Inicialmente, podemos dizer que certamente você, de algu-
ma forma, já teve contato com esse conceito. Por exemplo, quan-
do algo abominável causa indignação e diz-se que é preciso res-
gatar o valor do humano, ou, ainda, quando se pensa em ideias
que poderiam vir a resgatar a humanidade presente em cada um.

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146 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

Nesse exercício de possibilidades, manifesta-se a ideia de que a


especificidade humana carrega consigo características especiais e,
em razão disso, devem ser valorizadas.
Se lhe perguntarmos se existem semelhanças entre o ideal
de Paideia e de humanidade, muito provavelmente você dirá que
sim, e essa semelhança não ocorre por acaso, pois, como veremos,
o conceito de humanidade advirá como desdobramento dos ideais
de Paideia.
Werner Jaeger realiza essa vinculação entre ambos os con-
ceitos e isso pode ser percebido no excerto a seguir.
[...] o princípio espiritual dos gregos não é o individualismo, mas
o humanismo, para usar a palavra no seu sentido clássico e orig-
inário. Humanismo vem de humanitas. Pelo menos desde o tempo
de Varrão e Cícero, esta palavra teve, ao lado da acepção vulgar e
primitiva de humanitário, que não nos interessa aqui, um segundo
sentido mais nobre e rigoroso. Significou a educação do Homem de
acordo com a verdadeira forma humana, com o seu autêntico ser.
Tal é a genuína Paidéia grega, considerada como modelo por um
homem de Estado romano (JAEGER, 2003, p. 14).

No entanto, embora haja essa tentativa de vinculação entre


ambos os conceitos, o conceito de humanitas carrega consigo uma
série de peculiaridades, pois, segundo Oniga (2010, p. 1):
A idéia de humanitas matura lentamente na passagem do mundo
grego ao mundo romano. A língua grega não possui nenhuma pa-
lavra que seja de todo equivalente à latina humanitas. A tentativa
de Werner Jaeger, de identificar a humanitas latina com a Paidéia
grega sobre a base de um testemunho de uma célebre passagem
de Aulo Gellio, tem sido justamente refutada pela maior parte dos
estudiosos.

E como então surgiu esse conceito e qual o seu significado?


Antes de caminharmos na tentativa de resolução desse questiona-
mento, convém que façamos uma breve contextualização histórica
sobre o período que iremos nos deter para dar conta da resposta.
Inicialmente, devemos dizer que os caminhos para essa con-
textualização começam a se engendrar a partir da referência a um
dos alunos de Aristóteles: Alexandre, o Grande. Como se sabe, Ale-
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 147

xandre é tido como um dos maiores conquistadores de todos os


tempos e, quando de seu apogeu, a influência da cultura grega se
fez valer por quase todo o mundo conhecido na época. Após a sua
morte, ocorrida em 323 a.C., viria a ocorrer o período histórico
cultural chamado "Helenismo".
Chauí (2010, p. 13-14) caracteriza esse período da seguinte
forma:
Os historiadores da cultura convencionaram designar Helenismo
as atividades culturais desenvolvidas no período transcorrido en-
tre a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C., e o fim da repú-
blica romana, em 31 a.C., quando Augusto (vencedor da batalha
de Actium, em 27 a.C.) se torna imperador de Roma. A designação
refere-se à presença dominante da língua e da cultura gregas em
todo o mundo conhecido, numa difusão sem precedentes cuja cau-
sa inicial foi a convicção de Alexandre, aluno de Aristóteles, de que
por seu intermédio a Grécia devia cumprir uma missão civilizatória
sobre todos os povos da terra. A língua grega transformou-se na
koiné, dialeto comum em todas as terras conquistadas por Alexan-
dre, e Alexandria, no Egito, tornou-se a capital cultural da Antigui-
dade, papel que conservou mesmo quando Roma ocupou o lugar
de centro político e econômico de um império que se estendia do
Próximo Oriente ao Sul da Europa, do Mediterrâneo ao Atlântico.
Embora o termo Helenismo pareça indicar apenas a hegemonia da
cultura grega, na realidade, exprime a comunicação intensa entre
as criações culturais helênicas e as orientais enquanto submetidas
a um mesmo e único poder central, ligadas por rotas comerciais
e tendo como ponto de encontro Alexandria e, mais tarde, Roma.

É exatamente sobre o período de dominação romana que


iremos nos deter, isso porque, conforme veremos, nesse período
acrescenta-se o conceito de Humanismo ao ideal de Paideia. O
que seria esse conceito? Segundo Ferrater Mora (1970, p. 876),
esse conceito passou por uma série de modificações e, atualmen-
te, é utilizado, sobretudo:
Para qualificar certas tendências filosóficas, especialmente aquelas
nas quais se põe em relevo algum "ideal humano". Como os ideais
humanos são muitos, tem proliferado os "humanismos (...) algumas
destas tendências se caracterizam pela insistência na noção de "pes-
soa", em contraposição a idéia de indivíduo. Outras tendências se
caracterizam por predicar a "sociedade aberta" contra a "sociedade
fechada". Outras, por destacar o caráter fundamental "social" do ser
humano. Outras, por colocar em relevo que o homem não se reduz a
nenhuma função determinada, mas que é uma "totalidade".

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148 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

Como você pôde perceber, são muitas as interpretações e os


usos desse conceito. Em sua gênese, segundo Oniga (2009), embo-
ra fosse usado em peças teatrais romanas em aproximadamente
100 a.C., se destaca nas obras de Varrão e, em especial, de Marco
Túlio Cícero (106 a.C.-43 a.C.).
E o que o Humanismo representava para essa época? Oniga
(2009, p. 2), conclui, a partir das leituras que realizou das obras do
historiador Wofgang Schadewaldt, que:
a essência da romana humanitas é, precisamente, ser a outra face
de um conjunto ordenado de valores muito precisos e rigorosos,
que faziam parte do código de conduta do cidadão romano desde
o início, e são quase impossíveis de traduzir para o grego: a piedade
(que é algo diferente do eusebéia), costumes (não exatamente co-
incidindo com o ethos), e então o dignitas, o gravitas, integritas e
assim por diante. Na idéia de humanitas, ele incorporou todos es-
ses valores, bem como aqueles que já tiveram a oportunidade de
experimentar a idéia de cultura, mas ao mesmo tempo, ele se des-
vanecia, se tornava menos rígido e mais universal.

Ainda segundo Oniga (2009, p. 6), especificamente na obra


De oratore de Cícero, temos o uso do conceito de humanitas:
[...] como cultura enciclopédica, sobretudo literária, mas não só, na
concepção ciceroniana, o orador se caracteriza por sua vasta cultu-
ra, não restrita ao próprio setor profissional, mas aberta a todas as
disciplinas. O orador deve sobressair-se in omni genere sermonis
et humanitatis, "em qualquer tipo de conversa e em tudo que diz
respeito ao homem"; in omni recto Studio atque humanitate, "ho-
nestos em todos os estudos e todos os aspectos do conhecimento
humano".

Nesse excerto, podemos observar alguns dos elementos re-


ferentes ao conceito humanitas ciceroniano. Dentre eles, ressal-
tamos a ênfase na superação, na excelência do orador em tudo
aquilo que faz e não somente em sua área, ou seja, a busca da
perfeição em tudo aquilo que diz respeito ao homem.
Além desses aspectos, Oniga (2009, p. 7) também nos chama
a atenção para a presença sempre constante na obra de Cícero
da expressão "communis humanitas": "[...] indicando também a
natureza humana, enfatizando a igualdade fundamental dos ho-
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 149

mens e das comunidades, constituindo uma raça, um único gênero


humano".
Como se percebe, nessa expressão estaria presente a ideia
da Excelência não somente no indivíduo, mas em todos os indiví-
duos e a vinculação entre todos eles única e exclusivamente pelo
fato de serem humanos. Consideramos esse aspecto sobremanei-
ra importante, pois ele acaba por apresentar a possibilidade de um
ideal de Excelência não somente em um homem e seu povo, mas
em todos os seres humanos, pois o que temos em comum acaba
por fazer com que todos nós tenhamos certas qualidades em co-
mum, e isso traz consigo uma proposta inusual e includente.
Para ilustrar essa afirmação, cabe mais uma vez nos ampa-
rarmos nas palavras de Cícero, na obra De Finibus (apud ONIGA,
2009, p. 7):
Daí segue-se que a atração mútua entre os seres humanos também
é algo natural. O simples fato de sua humanidade comum exige que
um homem não encare outrem como outro homem.

Com isso, podemos concluir que o termo "humanitas" acaba


por trazer novos elementos ao conceito de Paideia, pois convida
todos os seres humanos, somente pelo fato de serem humanos, a
exercitarem a sua Excelência em todas as áreas e possibilidades,
pois tal conduta seria de sua natureza.
Desse modo, podemos concluir esse novo desdobramento
do conceito de Paideia e avançarmos um pouco mais, agora lidan-
do com o conceito de Paideia Christi.

A Paideia Christi
Embora Jaeger seja muito conhecido a partir de suas consi-
derações sobre a Paideia grega, ele também compôs uma análise
das influências dessa Paideia no cristianismo primitivo. Suas con-
siderações a respeito desse tema foram compiladas em uma obra
intitulada Early christianity and greek Paideia (Cristianismo primiti-
vo e Paideia grega). Essa obra foi publicada em 1961 e originou-se
das conferências realizadas na Universidade de Harvard, em 1960.

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150 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

Infelizmente, o pesquisador faleceu antes de concluir seus


estudos; ainda assim, grande é sua contribuição para poder traçar
alguns elementos importantes a respeito desse tema.
De forma sintética, podemos dizer que, para Jaeger, a civi-
lização grega exerceu uma influência profunda na mente cristã,
acreditando inclusive que, sem a evolução pós-clássica da cultura
grega o surgimento de uma religião cristã mundial não teria acon-
tecido.
Para Jaeger, a Areté grega acabou por ser um instrumento
chave para o florescimento do cristianismo. Para validar essas con-
siderações, analisa textos bíblicos e avalia líderes religiosos, como
Gregório de Nicia, exemplos de variações da Paideia grega.
Dentre os muitos aspectos abordados por Jaeger a respeito
desse tema, citamos um em especial: ao se referir ao livro bíblico
Atos dos Apóstolos, em que Felipe se apresenta para os gregos e
expõe a Paideia de Cristo (ou Paideia Christi). Para Jaeger (1995,
p. 12):
ao chamar de Cristianidade a Paidéia de Cristo, o imitador afirma
a intenção do apóstolo de fazer da Cristianidade aparentar ser a
continuação da clássica paidéia grega.

Do que foi dito, você talvez esteja se perguntando a respeito


das diferenças existentes entre ambas as propostas de Paideia e,
para responder a essa questão, há uma síntese muito interessante
proposta por Villanou (2001, [s/p]):
A metafísica cristã oferece um marco teonomo para regular a for-
mação humana: se deve eliminar qualquer possível manifestação
egoísta porque o ser humano somente pode "fazer-se com Deus",
quer dizer, através da unidade inseparável, com Deus, o que é o
mesmo, por meio da realização harmoniosa do humano e do divino
[...]. Por esta via a pedagogia se converte em mistagogia, isto é, na
experiência mística de Deus. [...] A educação do homem é ofereci-
mento, renúncia ao egoísmo para afrontar a entrega altruísta que
exige o reino do amor.

Essa proposta de Paideia traz uma nova visão do homem e


sua função no mundo, pois: "Este planteamento supõe que o indi-
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 151

víduo já não encontre sua razão de ser no próprio eu, mas na fun-
ção dessa vocação altruísta, desse amor ao próximo" (VILLANOU,
2001, [s/p]).
Há de se dizer que as contribuições da Paideia Christi se mos-
tram presentes atualmente sobretudo na chamada relação "eu e
o outro", ou seja, nela os desdobramentos da Areté referem-se à
consideração e à valorização dos demais seres humanos.
Dada as especificidades desta disciplina, não nos alonga-
remos nesse desdobramento, mas lhe indicamos para que você
aprofunde suas pesquisas sobre o tema no estudo de Antropologia
Filosófica, no qual se encontra uma abordagem que lhe apresenta-
rá vários pensadores que se inspiram nessa proposta e que certa-
mente lhe ajudarão a perceber a originalidade dessa contribuição.

A Bildung
Vamos agora apresentar outro desdobramento interessan-
te da Paideia grega, desenvolvido essencialmente por pensadores
alemães e por eles denominado "Bildung" ("formação").
De modo preliminar, vamos examinar uma expressão cunha-
da pelos pensadores alemães que se identificaram com essa pro-
posta por meio do relato de Villanou (2001, [s/p]):
Bilde dich griegisch, isto é "forme-se com um grego" [...], esteve
canalizada por uma série de tradições e obras que culminam no
século XX com a Paidéia de Jaeger em seu intento de implantar –
no meio da crise dos anos de entre guerras (1919-1939) – um ide-
alismo de corte platônico capaz de espiritualizar, de novo, a vida
humana.

Há de se dizer que esse conceito teve uma longa evolução ao


longo do tempo e pode ser percebido no texto de Kant intitulado
O que é a Ilustração (apud RÉGIS, 2001), que nos convida a realizar
um ato de coragem e ousadia pela busca do saber (sapere aude),
ou, ainda, já se fazendo uso do conceito de Bildung, na produção
de autoria do pensador alemão Wilhelm Von Humboldt em uma
série de obras que tratam deste tema.

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152 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

De modo geral, poderíamos dizer que a Bildung alemã tem


profundas raízes no conceito de Paideia que estamos vivenciando
e, especificamente no contexto alemão, buscou defender a neces-
sidade e valor do autocultivo ou, ainda, da autoformação do ser
humano como um elemento caro para o desenvolvimento de suas
potencialidades.
Para ilustrar as necessidades e valores defendidos pela Bildung,
observe esse pequeno excerto com considerações feitas por Humboldt
(apud GIACOMONI, 2001, [s/p]), que afirma que temos:
[...] um desejo irresistível de medir toda a humanidade contra nós
mesmos, quem suprime a expressão deste desejo supremo, mes-
mo para o melhor dos motivos, estará sempre longe da verdade.

Como se percebe, nesse excerto está presente a ideia de que


constantemente nos medimos, tendo como elemento de referên-
cia a humanidade. Se nos negamos a realizar essa comparação e
nos afastamos dessa análise, acabamos por enganar a nós mes-
mos.
Ainda para Giacomoni (2001, [s/p]), em Humboldt a:
Bildung é vista mais do que tudo como um acordo dinâmico, como
um impulso vivo: o universo é visto como animado por uma for-
ça, por uma energia dentro de atos que lhe dá vida, movimento e
ritmo. É uma força que, sendo o centro de animação e molde de
cada realidade, é a explicação última e escondido ser. O que move o
mundo e a história acima de tudo move o homem, pressionando-o
a agir e expressar em si mesmo como um desejo primário e sem ne-
nhum outro objetivo que a reprodução de seu próprio movimento
e pesquisa: o homem como parte da natureza é impulso, energia,
um desejo irresistível para viver de um modo multiforme.

Consideramos que você, depois da análise realizada nesta


unidade, já possui elementos suficientes para compreender a in-
fluência do pensamento dos gregos nas propostas educativas do
ocidente.
Na próxima unidade, você terá a oportunidade de analisar
algumas considerações críticas sobre a Paideia e a importância
desse tema para pensarmos a Educação contemporânea.
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 153

14. TEXTOS COMPLEMENTARES


Veja no trecho, a seguir, da Defesa de Sócrates (ou Apologia
de Sócrates), de Platão, e avalie as constatações de Sócrates.

Ciência e Missão de Sócrates–––––––––––––––––––––––––––


Um de vós poderia intervir: "Afinal, Sócrates, qual é a tua ocupação? Donde pro-
cedem as calúnias a teu respeito? Naturalmente, se não tivesses uma ocupação
muito fora do comum, não haveria esse falatório, a menos que praticasses algu-
ma extravagância. Dize-nos, pois, qual é ela, para que não façamos nós um juízo
precipitado." Teria razão quem assim falasse; tentarei explicar-vos a procedência
dessa reputação caluniosa. Ouvi, pois. Alguns de vós achareis, talvez, que estou
gracejando, mas não tenhais dúvida: eu vos contarei toda a verdade. Pois eu,
Atenienses, devo essa reputação exclusivamente a uma ciência. Qual vem a ser
a ciência? A que é, talvez, a ciência humana. É provável que eu a possua real-
mente, os mestres mencionados há pouco possuem, quiçá, uma sobre-humana,
ou não sei que diga, porque essa eu não aprendi, e quem disser o contrário me
estará caluniando. Por favor, Atenienses, não vos amotineis, mesmo que eu vos
pareça dizer uma enormidade; a alegação que vou apresentar nem é minha:
citarei o autor, que considerais idôneo. Para testemunhar a minha ciência, se é
uma ciência, e qual é ela, vos trarei o deus de Delfos. Conhecestes Querefonte,
decerto. Era meu amigo de infância e também amigo do partido do povo e seu
companheiro naquele exílio de que voltou conosco. Sabeis o temperamento de
Querefonte, quão tenaz nos seus empreendimentos. Ora, certa vez, indo a Del-
fos, arriscou esta consulta ao oráculo – repito, senhores; não vos amotines – ele
perguntou se havia alguém mais sábio que eu; respondeu a Pítia que não havia
ninguém mais sábio. Para testemunhar isso, tendes aí o irmão dele, porque ele
já morreu.
Examinai por que vos conto eu esse facto; é para explicar a procedência da calú-
nia. Quando soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: "Que quererá dizer
o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser
nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o
mais sábio? Naturalmente, não está mentindo, porque isso lhe é impossível." Por
longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra meu
gosto, decidi-me por uma investigação, que passo a expor. Fui ter com um dos
que passam por sábios, porquanto, se havia lugar, era ali que, para rebater o orá-
culo, mostraria ao deus: "Eis aqui um mais sábio que eu, quando tu disseste que
eu o era!" Submeti a exame essa pessoa - é escusado dizer o seu nome; era um
dos políticos. Eis, Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conver-
sa que tive com ele; achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente,
principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar lhe
que supunha ser sábio, mas não o era. A consequência foi tornar-me odiado dele
e de muitos dos circunstantes.
Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: "Mais sábio do que esse ho-
mem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele
supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco supo-
nho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não
supor que saiba o que não sei." Daí fui ter com outro, um dos que passam por

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154 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

ainda mais sábios e tive a mesmíssima impressão; também ali me tornei odiado
dele e de muitos outros.
Depois disso, não parei, embora sentisse, com mágoa e apreensões, que me ia
tornando odiado; não obstante, parecia-me imperioso dar a máxima importância
ao serviço do deus. Cumpria-me, portanto, para averiguar o sentido do oráculo,
ir ter com todos os que passavam por senhores de algum saber. Pelo Cão, Ate-
nienses! Já que vos devo a verdade, juro que se deu comigo mais ou menos isto:
investigando de acordo com o deus, achei que aos mais reputados pouco faltava
para serem os mais desprovidos, enquanto outros, tidos como inferiores, eram
os que mais visos tinham de ser homens de senso. Devo narrar-vos os meus
vaivéns nessa faina de averiguar o oráculo.
Depois dos políticos, fui ter com os poetas, tanto os autores de tragédias como os
de ditirambos e outros, na esperança de aí me apanhar em flagrante inferioridade
cultural. Levando em mãos as obras em que pareciam ter posto o máximo de
sua capacidade, interrogava-os minuciosamente sobre o que diziam, para ir, ao
mesmo tempo, aprendendo deles alguma coisa. Pois bem, senhores, coro de vos
dizer a verdade, mas é preciso. A bem dizer, quase todos os circunstantes pode-
riam falar melhor que eles próprios sobre as obras que eles compuseram. Assim,
logo acabei compreendendo que tampouco os poetas compunham suas obras
por sabedoria, mas por dom natural, em estado de inspiração, como os adivinhos
e profetas. Estes também dizem muitas belezas, sem nada saber do que dizem;
o mesmo, apurei, se dá com os poetas; ao mesmo tempo, notei que, por causa
da poesia, eles supõem ser os mais sábios dos homens em outros campos, em
que não o são. Saí, pois, acreditando superá-los na mesma particularidade que
aos políticos.
Por fim, fui ter com os artífices; tinha consciência de não saber, a bem dizer,
nada, e certeza de neles descobrir muitos belos conhecimentos. Nisso não me
enganava; eles tinham conhecimentos que me faltavam; eram, assim, mais sá-
bios e eu. Contudo, Atenienses, achei que os bons artesãos têm o mesmo defeito
dos poetas; por praticar bem a sua arte, cada qual imaginava ser sapientíssimo
nos demais assuntos, os mais difíceis, e esse engano toldava-lhes aquela sabe-
doria. De sorte que perguntei a mim mesmo, em nome do oráculo, se preferia
ser como sou, sem a sabedoria deles nem sua ignorância, ou possuir, como eles,
uma e outra; e respondi, a mim mesmo e ao oráculo, que me convinha mais ser
como sou.
Dessa investigação é que procedem, Atenienses, de um lado, tantas inimizades,
tão acirradas e maléficas, que deram nascimento a tantas calúnias, e, de outro,
essa reputação de sábio. É que, toda vez, os circunstantes supõem que eu seja
um sábio na matéria em que confundo a outrem. O provável, senhores, é que,
na realidade, o sábio seja o deus e queira dizer, no seu oráculo, que pouco va-
lor ou nenhum tem a sabedoria humana; evidentemente se terá servido deste
nome de Sócrates para me dar como exemplo, como se dissesse: "O mais sábio
dentre vós, homens, é quem, como Sócrates, compreendeu que sua sabedoria
é verdadeiramente desprovida do mínimo valor." Por isso não parei essa investi-
gação até hoje, vagueando e interrogando, de acordo com o deus, a quem, seja
cidadão, seja forasteiro, eu tiver na conta de sábio, e, quando julgar que não o
é, coopero com o deus, provando-lhe que não é sábio. Essa ocupação não me
permitiu lazeres para qualquer atividade digna de menção nos negócios públicos
nem nos particulares; vivo numa pobreza extrema, por estar ao serviço do deus.
Além disso, os moços que espontaneamente me acompanham – e são os que
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 155

dispõem de mais tempo, os das famílias mais ricas – sentem prazer em ouvir o
exame dos homens; eles próprios imitam me muitas vezes; nessas ocasiões,
metem-se a interrogar os outros; suponho que descobrem uma multidão de
pessoas que supõem saber alguma coisa, mas pouco sabem, quiçá nada. Em
consequência, os que eles examinam se exasperam contra mim e não contra
si mesmos, e propalam que existe um tal Sócrates, um grande miserável, que
corrompe a mocidade. Quando se lhes pergunta por quais atos ou ensinamentos,
não têm o que responder; não sabem, mas, para não mostrar seu embaraço,
aduzem aquelas acusações contra todo filósofo, sempre à mão: "os fenômenos
celestes –o que há sob a terra – a descrença dos deuses –o prevalecimento
da razão mais fraca". Porque, suponho, não estariam dispostos a confessar a
verdade: terem dado prova de que fingem saber, mas nada sabem. Como são
ciosos de honrarias, tenazes, e numerosos, persuasivos no que dizem de mim
por se confirmarem uns aos outros, não é de hoje que eles têm enchido vossos
ouvidos de calúnias assanhadas. Daí a razão de me atacarem Meleto, Ânito e
Licão – tomando Meleto as dores dos poetas; Ânito, as dos artesãos e políticos
– e Licão, as dos oradores. Destarte, como dizia ao começar, eu ficaria surpreso
se lograsse, em tão curto prazo, delir em vós os efeitos dessa calúnia assim avo-
lumada. Aí tendes, Atenienses, a verdade; em meu discurso não vos oculto nada
que tenha alguma importância, nada vos dissimulo. Sem embargo, sei que me
estou tornando odioso por mais ou menos os mesmos motivos, o que comprova
a verdade do que digo, que é mesmo essa a calúnia contra mim e são mesmo
essas as suas causas. É o que haveis de descobrir, se investigardes agora ou
mais tarde (PLATÃO, 1987, p. 8-10).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

15. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Relacione as colunas:
( 1 ) Exortação e indagação ( ) Platão
( 2 ) Corpo e alma ( ) Sócrates
( 3 ) Perspectiva antropológica ( ) Protreptikos e elenchos
( 4 ) Sofistas ( ) Formação do caráter
( 5 ) Socrática ( ) Dirigentes políticos
Indique a alternativa correta:
a) 2, 3, 1, 5 e 4.
b) 3, 2, 5, 1 e 4.
c) 2, 3, 5, 4 e 1.
d) 5, 4, 2, 3 e 1.
e) 1, 3, 2, 4 e 5.

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156 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

2) Leia o texto a seguir:


Tinham razão Aristóteles e Platão: uma sociedade fundada no
trabalho escravo não podia assegurar cultura para todos. O
rendimento da força humana era tão exíguo que um homem não
podia estudar e trabalhar ao mesmo tempo. Portanto, aos filósofos
caberia a direção da sociedade, aos guerreiros, protege-la e aos
escravos, manter as duas classes anteriores. A separação entre
força física e força mental impunha ao mundo antigo estas duas
enormidades: para trabalhar, era necessário gemer nas misérias da
escravidão e, para estudar, era preciso refugiar-se no egoísmo da
solidão (PONCE, 1986, p. 32).
Nesse contexto:
I. Platão e Aristóteles acreditavam na educação integral do ser huma-
no, por isso criaram a Academia e o Liceu.
II. Sócrates ensinava Filosofia para grupos de diversas classes sociais,
com isso almejava a justiça social.
III. Os sofistas ensinavam a quem pagasse por suas aulas.
IV. Os escravos jamais poderiam estudar na sociedade grega, eles deve-
riam propiciar o ócio aos senhores e aos filósofos.
V. Os filósofos na Grécia antiga pensavam em justiça para todos e por
isso jamais aceitariam a manutenção do sistema escravista.
Identifique a alternativa correta:
a) Apenas I, III e IV são corretas.
b) Apenas I, II e III são corretas.
c) Apenas II e V são corretas.
d) Apenas III e IV são corretas.
e) Apenas IV e V são corretas.
3) De acordo com Sócrates,  "a vida  não examinada não vale a pena ser vivida"
e "a virtude é conhecimento" porque:
a) a existência humana é valiosa precisamente porque todos nós estamos
interessados ​​em examinar a nossa vida.
b) a menos que a nossa sociedade nos diga  o que devemos fazer, nós nunca
vamos ser considerados virtuosos.
c) a Excelência ou valor  (Areté) da nossa vida consiste na medida em que
agimos virtuosamente.
d) sem perguntar o que faz com que a vida valha a pena,  não podemos
saber  como devemos  viver.
4) Sócrates teria afirmado que "a vida não examinada não vale a pena ser vivi-
da", afirmativa frequentemente citada como tema central nas atividades da
Filosofia e de realização da excelência humana. Dessa afirmação, podemos
entender que:
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 157

a) às vezes, simplesmente não vale a pena todo o esforço de examinar a


vida e seus problemas em grandes detalhes; às vezes, é melhor simples-
mente "ir em frente".
b) sempre que tivermos de adotar uma atitude reflexiva perante a vida
adotamos uma atitude interessante; no entanto, é mais importante que
simplesmente vivamos e deixemos de lado reflexões a respeito da vida.
c) para o filósofo, se continuamos simplesmente fazendo o que todo mun-
do faz, de forma irrefletida, acabaremos por deixar de fazer algo válido,
nobre ou admirável.
d) é um desperdício de tempo ficarmos analisando se vale a pena viver;
devemos deixar essa reflexão para nossos líderes e para os filósofos.
5) Relacione as colunas:
( 1 ) Esta expressão teve como significado ( ) Aristóteles
"Bilde dich griegisch", isto é "forme-
se com um grego" e foi utilizada para
representar um movimento que
aconteceu, sobretudo, na Alemanha
e que buscou resgatar os ideais da
Paideia grega.
( 2 ) Por meio deste conceito surge uma ( ) Paideia Christi
nova imagem dos ideais da Paideia,
esta presente, sobretudo nas obras
de Cícero e nos convida a pensar um
ideal de Excelência para o indivíduo e
a sociedade.
( 3 ) A pedagogia converte-se em uma ( ) Bildung
mistagogia, isto é, vincula-se a um
contato íntimo com Deus e introduz
uma nova série de valores aos ideais
educativos e, em especial, entre a
relação Eu e Outro.
( 4 ) Introduz uma nova forma de pensarmos ( ) Humanismo
o conceito de Kalós e Agathós que
irão compor nossa Excelência e ideal
educativo. Nesta nova forma há uma
especial ênfase na relação entre o
indivíduo e a comunidade.

Indique a alternativa correta:


a) 3, 4, 2 e 1.
b) 4, 1, 2 e 3.
c) 2, 3, 1 e 4.
d) 1, 2, 3 e 4.
e) 4, 3, 1 e 2.

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158 © Paideia: Tópicos de Filosofia e Educação

Gabarito
1) a.
2) b.
3) d.
4) c.
5) e.

16. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Você estudou nesta unidade alguns aspectos sobre a impor-
tância de Sócrates para compreendermos o conceito de Educação.
Logo a seguir, vimos as contribuições advindas das propostas de
Platão e Aristóteles.
Depois, realizamos um breve estudo sobre alguns desdo-
bramentos da Paideia manifestados nos conceitos de Humanis-
mo, Paideia Christi e Bildung. No entanto, isso não significa que a
pesquisa sobre o tema tenha se esgotado com este estudo. Muito
mais há, porém, por estudar a respeito do que lhe apresentamos
e, infelizmente, este modesto CRC não daria conta de trabalhar
com mais profundidade do que já nos propusemos.
Além disso, há de se dizer que as obras clássicas indicadas
ao longo das unidades são essenciais para a apropriação de seu
conteúdo. Essas indicações ampliarão seu conhecimento sobre o
assunto.
Depois do que lhe foi apresentado nesta unidade, procure
realizar a seguinte reflexão: Quais relações são possíveis de se es-
tabelecer entre o conteúdo aqui discutido e o contexto sociocultu-
ral em que vivemos?
Seja coautor de nossa caminhada!
Lembre-se da afirmativa de Sócrates: "Vida sem reflexão não
vale a pena ser vivida".
© U4 - Evolução e desdobramentos do conceito de Paideia 159

17. E-REFERÊNCIAS
Sites pesquisados
GIACOMONI, P. Paideia as Bildung in Germany in the age of enlightenment. Disponível
em: <http://www.bu.edu/wcp/Papers/Mode/ModeGiac.htm>. Acesso em: 19 abr. 2012.
VILLANOU, C. De la Paideia a la Bildung: hacia una Pedagogía Hermenéutica. Revista Por-
tuguesa de Educação, Minho, v. 14, n. 2, 2001. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.
mx/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=37414210>. Acesso em: 19 abr. 2012

18. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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CHAUÍ, M. Introdução à história da Filosofia: as filosofias helenísticas. São Paulo:
Schwarcz Ltda., 2010.
COAD, G. .  A philosophical inquiry into the development of the notion of Kalos Kagathos
from Homer to Aristotle (Master’s thesis). Fremantle: University of Notre Dame Australia,
Fremantle, 2006.
JAEGER, W. Cristianismo primitivo e Paideia grega. Lisboa: Edições 70, 2001.
______. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
______. Early christianity and greek Paideia. Cambridge: Belkmap Press of Harvard
University Press, 1961.
KANT, I. O que é ilustração. Apud RÉGIS, C. A. Kant, a liberdade, o indivíduo e a república.
In: WEFFORT, F. (Org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2001. v. 2.
MORA, J. F. Dicionário de Filosofia. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1970.
ONIGA, R. Humanitas. In: Contro la post-religione: per un nuovo umanesimo cristiano.
Verona: Fede & Cultura, 2009.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).
______. Diálogos. (O Banquete. Fédon. Sofista. Político.) São Paulo: Nova Cultural, 1991.
(Coleção Os Pensadores).
______. Defesa de Sócrates. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os
Pensadores, Sócrates).
______. A República. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
______. Górgias. Tradução de Jaime Bruna. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
______. Fedro. Cartas. Primeiro Alcebíades. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém:
UFPA, 1986. (Coleção Amazônica. Série Faria Brito).
PONCE, A. Educação e luta de classes. São Paulo: Cortez, 1986.
REALE, G. Para uma nova interpretação de Platão. São Paulo: Loyola, 1997.
VERNANT, J.-P. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005.
______. Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
VILLAGRA DIEZ, P. Diálogo, justicia y educación. La paideia socrático-platônica frente a la
educación sofista en el Gorgias. Synthesis: La Plata, 2002. v. 9.

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