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FACULDADE MARISTA DO RECIFE

CURSO DE DIREITO

A PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA NO DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO

Recife

2013
FACULDADE MARISTA DO RECIFE

CURSO DE DIREITO

A PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA NO DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO

Trabalho de conclusão de curso


desenvolvido pelo aluno Giovanni Accioly
Sellaro Júnior sob a orientação da
Professora Susana Vieira de Araújo como
requisito parcial para a obtenção do grau
de Bacharel em Direito.

Recife

2013
RESUMO

O presente trabalho de conclusão de curso versa acerca do instituto da


parentalidade socioafetiva no direito de família brasileiro. Intentamos traçar um
panorama geral do tratamento dispensado pela doutrina, pela legislação e pela
jurisprudência ao tema da parentalidade socioafetiva. Para tanto, servimo-nos da
análise de manuais de direito de família, de artigos de revistas especializadas, de
material da internet, de decisões dos tribunais e da legislação constitucional, civil e
menorista em vigor. Inicialmente, foi demonstrada a disciplina do instituto da filiação
através da análise da evolução histórica da família, da própria parentalidade, dos
princípios do direito de família e dos tipos de filiação existentes. Após isso, com o
intuito de verificar a existência de dispositivos que permitam a construção do
conceito de parentalidade socioafetiva, perscrutou-se a Constituição vigente, a
legislação infraconstitucional e decisões de tribunais inferiores e superiores que
enfrentaram a matéria. Por fim, foi investigado o estado em que se encontra a
parentalidade socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro: as condições de sua
aplicabilidade, suas espécies, seus efeitos e o trâmite processual necessário para o
seu reconhecimento. O resultado da pesquisa demonstrou a viabilidade da aplicação
do instituto em nosso meio, tanto pela possibilidade de interpretação dos dispositivos
legais quanto pelas construções legais e jurisprudenciais que já foram levadas a
cabo nesse sentido.

Palavras-chave: Direito de Família. Parentalidade. Filiação. Afetividade.


Parentalidade Socioafetiva. Filiação Socioafetiva.
ABSTRACT

The presente paper deals with the socioaffective filiation in brazilian family law. We
tried to describe the treatment of the doctrine, legislation and jurisprudence to the
topic of socioaffective parenting. To do so, we analysed family law textbooks, journal
articles, internet material, court decisions, constitutional law and civil law. Initially, we
demonstrated the discipline of the institute of filiation by analyzing the historical
evolution of family, parenting itself, the principles of family law and the types of
existing parenting. After that, we analysed the current brazilian Constitution and
legislation in order to verify the existence of devices that allow the construction of the
concept of socioaffective parenting, and decisions of lower and upper courts about
the subject. Finally, we investigated the current state of socioaffective parenting in
the brazilian legal system: the conditions of its applicability, its species, its effects and
the procedural motion required for its recognition. The survey results demonstrated
the viability of applying the institute in our country, by the possibility of interpreting the
legal provisions and by regarding the legal and jurisprudential constructions that have
already been undertaken in this direction.

Keywords: Family Law. Parenting. Filiation. Affectivity. Socioaffective Parenting.


Socioaffective Filiation.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................ 7

1. Família, afetividade e parentalidade........................................................ 11

1.1 Origem e evolução do conceito de família.................................................. 11


1.2 Princípios do Direito de Família.................................................................. 13
1.2.1 Princípio da Afetividade.............................................................................. 15
1.3 A parentalidade no sistema jurídico brasileiro............................................ 18
1.3.1 O Código Civil de 1916 e o pátrio poder..................................................... 18
1.3.2 O Código Civil de 2002 e o poder familiar.................................................. 19
1.4 Tipos de Parentalidade............................................................................... 20
1.4.1 Biológica...................................................................................................... 21
1.4.2 Registral...................................................................................................... 21
1.4.3 Socioafetiva................................................................................................. 22

2. Legislação e jurisprudência..................................................................... 24

2. 1 A parentalidade socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro................ 24


2.1.1 Constituição Federal de 1988..................................................................... 24
2.1.2 Código Civil de 2002................................................................................... 25
2.1.3 Estatuto da Criança e do Adolescente........................................................ 26
2.2 A parentalidade socioafetiva na jurisprudência........................................... 27
2.2.1 Julgados dos tribunais inferiores................................................................. 28
2.2.2 Julgados dos tribunais superiores............................................................... 30

3. Parentalidade socioafetiva...................................................................... 34

3.1 Posse do estado de filho............................................................................. 34


3.1.1 Nome........................................................................................................... 35
3.1.2 Tratamento.................................................................................................. 35
3.1.3 Fama........................................................................................................... 36
3.2 Espécies de parentalidade socioafetiva...................................................... 37
3.2.1 Adoção........................................................................................................ 37
3.2.2 Adoção à brasileira..................................................................................... 38
3.2.3 Reconhecimento voluntário......................................................................... 39
3.2.3.1Inseminação artificial heteróloga................................................................ 40
3.2.4 Filho de criação........................................................................................... 41
3.3. Efeitos da parentalidade socioafetiva......................................................... 42
3.3.1 Qualidade de filho....................................................................................... 42
3.3.2 Ausência de vínculo com os pais biológicos............................................... 43
3.3.2.1 Impedimentos matrimoniais....................................................................... 45
3.3.3 Direito de investigação da origem biológica................................................ 45
3.3.4 Impossibilidade de desconstituição posterior.............................................. 46
3.4 Elementos processuais............................................................................... 47
3.4.1 Ação de investigação da parentalidade socioafetiva.................................. 48
3.4.2 Prova do vínculo de parentalidade.............................................................. 49
3.4.3 Imprescritibilidade....................................................................................... 49

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 51

REFERÊNCIAS........................................................................................... 53
INTRODUÇÃO

A família, instituição basilar da sociedade, é um ente em constante evolução.


Simultaneamente reflexo e emissor da cultura de um povo, o ente familiar é
determinado pelas regras éticas e jurídicas do grupo no qual este se encontra
inserido, mas também é sua incumbência gerir os agentes que um dia irão
reproduzir ou modificar tais regras.

O evolver da família e da sociedade é, portanto, inextricável. De tal modo, ao


Direito de Família compete a eterna tentativa de acompanhar o objeto sobre o qual
se debruça e o qual pretende regrar.

As modificações legislativas, no entanto, são sabidamente descompassadas


quanto à dinâmica familiar; seu atraso chega a durar séculos. Mormente nos países
filiados ao sistema romano-germânico, como é o caso do Brasil, nos quais o papel
da lei é de importância sobreposta aos costumes, é papel da doutrina e da
jurisprudência preencher os vazios da lei.

O hiato perpetrado pela omissão do legislador atinge, assim, diversas


situações fáticas observáveis no cotidiano da vida familiar brasileira. No que respeita
especificamente ao instituto da filiação no direito de família pátrio, existe um aspecto
praticamente intocado pelo arcabouço normativo do País: o da parentalidade
socioafetiva.

Despiciendo dizer ao brasileiro médio que “pai é quem cria”, ele já o sabe;
trata-se de lugar-comum corrente e repisado. Tal assertiva, no entanto, ainda não foi
albergada pela legislação de maneira expressa, o que obriga os operadores do
Direito a, jurisprudencial e doutrinariamente, traçar as bases e definir os contornos
do que se convencionou chamar de parentalidade, ou filiação, socioafetiva.

Pois nada mais é a parentalidade socioafetiva do que a relação estabelecida


entre pais e filhos com base unicamente no afeto ali existente, sem que seja
necessária a certeza de uma ligação biológica ou jurídica entre essas pessoas.
Trata-se de um paradigma que diverge do sistema de filiação opressivo e
discriminatório anteriormente vigente, contido no vetusto Código Civil de 1916, que
priorizava o aspecto biológico da parentalidade em nome da visão patrimonialista
por ele apresentada.

O estabelecimento de uma nova ordem constitucional após 1988 acarretou,


dentre tantas outras modificações na sistemática legal brasileira, a denominada
“repersonalização” do direito civil. Devido a isso, diversos dispositivos do Código de
1916 foram considerados inconstitucionais e tantos outros precisaram ser
reinterpretados conforme a Constituição, até que veio a lume o Novo Código Civil de
2002.

Embora o novel diploma tenha se adaptado à Carta Magna, muitos de seus


artigos são mera repetição do texto anterior. Lei que já nasceu superada, posto que
fruto de projeto finalizado em 1975 (antes, portanto, de entrar em vigor o texto
constitucional vigente quando da sua promulgação), o Código Civil apresenta
lacunas quanto a diversos institutos do direito de família, sendo um deles o da
parentalidade socioafetiva.

O objeto de investigação do presente trabalho é, destarte, a questão da


parentalidade socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro.

A lavra deste justifica-se pelas significativas mudanças por que passou (e


passa) o sistema de filiação no direito brasileiro desde a promulgação do Código de
1916 até o advento do Código de 2002, sob nova ordem constitucional. O tratamento
desigual entre filhos de diferentes origens foi expressamente vedado pela
Constituição, porém a ausência de regulação expressa no que pertine à
parentalidade socioafetiva ainda perpetua certa confusão no tratamento dispensado
pelos tribunais ao tema. Além disso, o STF ainda não se pronunciou sobre a
matéria, o que deixa a discussão em aberto entre nós.

O escopo central deste trabalho é investigar o instituto da parentalidade


socioafetiva: em que consiste, quais os princípios que lhe são afeitos, como se
verifica sua inserção na legislação e nos julgados dos tribunais, quais suas
particularidades, causas e efeitos.

Para cumprir com tal desiderato, intentaremos traçar um breve escorço


conceitual e histórico da família e do sistema de filiação brasileiro. Após isso, vamos
analisar os diplomas e respectivos dispositivos legais que permitem vislumbrar o
estabelecimento do instituto da parentalidade socioafetiva. Por fim, iremos investigar
os pressupostos para o estabelecimento da parentalidade socioafetiva, suas
espécies, efeitos e características processuais.

A pesquisa, de caráter documental, será realizada a partir do estudo e da


análise de textos referentes aos dois eixos fundamentais à investigação, definidos
em função do objeto de pesquisa, descritos a seguir.

O primeiro eixo diz respeito ao surgimento e desenvolvimento da


parentalidade socioafetiva. Para tanto, se procederá ao escrutínio do Código Civil de
1916, que primeiro regulamentou o instituto da filiação no Brasil; o Código Civil de
2002, que trouxe profundas alterações a esse respeito; e outras obras doutrinárias e
artigos encontrados na internet que versam acerca desse tema.

Quanto ao segundo eixo, serão perscrutados os textos da Constituição


Federal, do Código Civil de 2002 e do Estatuto da Criança e do Adolescente,
diplomas que contêm normas que permitem entrever o instituto da parentalidade
socioafetiva. Além disso, serão analisados alguns julgados de tribunais inferiores e
superiores que enfrentam a matéria.

À luz dessas análises, portanto, será definido o estado em que se encontra o


tratamento jurídico relativo ao instituto da parentalidade socioafetiva no direito
brasileiro hodiernamente.

Seguindo essa linha de pensamento, o primeiro capítulo da monografia irá


versar acerca da caracterização da parentalidade, introduzindo o leitor a aspectos
tais como o conceito, histórico e espécies. Além disso, serão brevemente analisados
os princípios do direito de família, sendo mais detidamente esmiuçado o princípio da
afetividade, o mais relevante dentre estes no que tange ao objeto deste trabalho.

Em seguida, no segundo capítulo serão analisados os dispositivos legais que


supostamente permitem uma interpretação apta à formulação de um regramento da
parentalidade socioafetiva. Serão também comentadas algumas decisões de cortes
brasileiras que admitem a existência do instituto e que o aplicam aos casos
concretos que lhes são submetidos.
Por fim, no terceiro capítulo, será descrito o atual modo como a doutrina
brasileira lida com o instituto da parentalidade socioafetiva, as possibilidades de se
reconhecê-la, as espécies em que se manifesta, os seus efeitos e os caracteres
processuais que lhe são pertinentes.
1. Família, afetividade e parentalidade

1.1 Origem e evolução do conceito de família

A origem do conceito de família não pode ser exatamente definida. Nem


mesmo os maiores estudiosos do tema lograram êxito em delimitar o surgimento
dessa instituição. Nesse sentido, até suas características gerais são passíveis
apenas de conjecturas por parte dos autores que sobre tal tema se debruçam. No
dizer de Caio Mário da Silva Pereira (2006, p. 23),

quem rastreia a família em investigação sociológica encontra referências


várias a estágios primitivos em que mais atua a força da imaginação do que
a comprovação fática; mais prevalece a generalização de ocorrências
particulares do que a indução de fenômenos sociais e políticos de franca
aceitabilidade.

Sendo certo que tal conceito se faz presente na história da humanidade


desde tempos imemoriais, a única maneira de analisar seu desenvolvimento é
fixando um termo de início bem delimitado. Malgrado sejam tecidas hipóteses de
que inicialmente a família foi marcada pelo matriarcalismo e pelo poliandrismo,
somente o patriarcalismo é forma registrada e reconhecida por diversas civilizações
como termo inicial de regramento das relações familiares (PEREIRA, 2006).

Ainda no esforço de delimitar histórica e geograficamente a sociedade no seio


da qual surgiu o conceito de família, cuja evolução se pretende apresentar, tem-se
que a civilização romana, da qual as civilizações ocidentais atuais são herdeiras, foi
grandemente responsável pela formatação dos valores e institutos hodiernamente
presentes em tais sociedades ocidentais. Nesse formato, a família configura uma
organização de extrema importância.

Fundada sob a autoridade do pater familias, a família romana era uma


instituição de caráter político, econômico e, principalmente, religioso. Reunidos em
torno do culto aos deuses lares, representantes de antepassados em comum, os
membros da família subordinavam-se completamente ao pater, devendo-lhe
obediência irrestrita e sujeitando-lhe, inclusive, a própria vida (VENOSA, 2005).
O papel do pater familias era de pontífice, rei e magistrado. Sua autoridade
era incontestável; inclusive “este direito de jurisdição, pelo chefe de família exercido
em sua casa, era completo e dele não havia apelação. Podia condenar a morte,
como o magistrado o fazia na cidade; nenhuma autoridade tinha o direito de alterar
suas sentenças” (FUSTEL DE COULANGES, 1998, p. 94).

A disseminação do Cristianismo e o subsequente declínio do Império Romano


geraram uma reestruturação na família como era conhecida até então. Embora o
centro do poder tenha permanecido nas mãos do homem, chefe da família, esse
poder não era mais absoluto, não abrangendo, por exemplo, a vida dos filhos.

Essa época, período compreendido pela Idade Média, foi marcada pelo forte
papel da Igreja, que exercia sua influência também no direito. A família medieval era
regida por normas de Direito Canônico, que por sua vez foi grandemente pautado
pelas normas romanas. Havia, ainda, o papel das regras de origem germânica, fruto
das chamadas invasões bárbaras (GONÇALVES, 2006).

Devido ao advento da modernidade e à “influência das ideias que a


Revolução Francesa de 1789 propagou em numerosos países e das reformas que
daí resultaram no plano do direito e das instituições” (GILISSEN, 2001, p. 14), novas
modificações puderam ser sentidas nos mecanismos familiares. O ideal burguês do
individualismo, aliado ao capitalismo crescente, transformou a família em unidade
produtora com o mínimo de intervenção do Estado, a não ser em questões
patrimoniais.

Durante muito tempo imperou uma visão patrimonializada da família, o que


começou a ser modificado a partir do fim da II Guerra Mundial e dos movimentos
feministas e hippies das décadas de 50 e 60 do século passado, período no qual
importantes conquistas foram feitas. Apenas na segunda metade desse século, o
patrimonialismo foi substituído por uma visão mais orgânica da família, que passou a
ser pautada não na autoridade, mas na afetividade. Vista agora como um
instrumento de realização pessoal de seus membros, a família passou por uma
renovação sem precedentes na virada do século XX para o século XXI.

No Direito Brasileiro, a chamada “repersonalização” do Direito de Família (em


contraponto à “patrimonialização” operada pela anterior sistemática liberal) foi fruto
direto da constitucionalização do Direito Privado. Advindo da promulgação da
Constituição Federal de 1988, o processo de constitucionalização se fez sentir no
Direito Civil de maneira expressiva, tendo sido o ramo do Direito de Família
especialmente modificado.

Para citar alguns exemplos, o reconhecimento das uniões estáveis e das


famílias monoparentais como entidades familiares constituiu um grande avanço
legislativo no que tange ao conceito de família como compreendido no âmbito
brasileiro. Os princípios e normas que regem esse reconhecimento, aduzidos pelos
artigos 226 e 227 da Carta Magna, foram decisivos para a reestruturação do Direito
de Família pátrio.

1.2 Princípios do Direito de Família

As normas são regras e princípios. As regras são normas de caráter


específico, dotadas de baixo grau de generalidade, enquanto os princípios são
normas gerais, dotadas de generalidade mais ampla (CANOTILHO, 2003). Enquanto
as normas são aplicadas à realidade fática seguindo o método da subsunção, os
princípios, a seu turno, aplicam-se através da ponderação.

A Constituição de 1988 dotou de força normativa os princípios constitucionais


nela contidos. Seguiu, assim, a corrente pós-positivista verificada nas cartas
políticas surgidas em fins do século XX, que “acentuam a hegemonia axiológica dos
princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício
jurídico dos novos sistemas constitucionais” (BONAVIDES, 2004, p. 264). Dessa
maneira, os princípios deixaram de ser meros dispositivos de eficácia simbólica para
cumprir o papel de verdadeiros conformadores da lei.

O Direito de Família, assim como todos os demais ramos do Direito, possui


princípios fundamentais e gerais que lhe são afeitos. Cada autor que se dedica a
enumerá-los propõe diferentes quantidades de princípios do Direito de Família, “não
se conseguindo sequer encontrar um número mínimo em que haja consenso” (DIAS,
2007, p. 57).
Para fins deste trabalho, optamos por seguir a lista aduzida por Paulo Lôbo
(2010), que enumera ao todo sete princípios aplicáveis ao Direito de Família, sendo
eles princípios fundamentais (dignidade da pessoa humana e solidariedade) e
princípios gerais (igualdade, liberdade, afetividade, convivência familiar e melhor
interesse da criança).

Passaremos a descrever superficialmente cada um dos princípios


mencionados para então nos determos com mais profundidade sobre o princípio da
afetividade, que se encontra mais diretamente ligado ao tema desta monografia.

A dignidade da pessoa humana é princípio fundante do ordenamento jurídico


brasileiro e da própria República, inserto explicitamente no primeiro artigo da Carta
Magna. Na lição de Flávio Tartuce (2006, p. 02), “trata-se daquilo que se denomina
princípio máximo, ou superprincípio, ou macroprincípio, ou princípio dos princípios”.
Tanto para o citado jurista quanto para Maria Berenice Dias (2007), o Direito de
Família é, por excelência, o ramo do Direito mais apto a promover a dignidade da
pessoa humana. De fato, a concepção atual de família como instrumento de
realização da pessoa carrega consigo a noção de que o ente familiar é o
responsável primeiro pela dignidade da pessoa humana nele inserida,
responsabilidade essa cuja titularidade pertence também à sociedade e ao Estado.

A solidariedade, que está indissoluvelmente ligada à dignidade da pessoa


humana, é também princípio de dignidade constitucional, estabelecida como objetivo
fundamental da República brasileira no art. 3º, I da Constituição. É descrita como
categoria ética (LÔBO, 2010; DIAS, 2007) e consiste na ajuda mútua que se espera
de seres semelhantes um para com o outro. No que pertine ao Direito de Família, a
solidariedade deve ser compreendida

como solidariedade recíproca dos cônjuges e companheiros, principalmente


quanto à assistência moral e material. A solidariedade em relação aos filhos
responde à exigência da pessoa de ser cuidada até atingir a idade adulta,
isto é, de ser mantida, instruída e educada para sua plena formação social
(LÔBO, 2010, p. 57).

O princípio da igualdade entre homem e mulher foi alçado a direito


fundamental com sua inserção no inciso I do art. 5º da Constituição. Não diz
respeito, no entanto, somente ao homem e à mulher, mas também aos filhos e às
entidades familiares, o que acaba, v.g., com a odiosa distinção entre filhos legítimos
e ilegítimos. Aplicar o direito de forma isonômica é um dos desideratos basilares da
ordem jurídica brasileira, porém, para tanto, é necessário compreender as
diferenças, tratando-se iguais de maneira igualitária e diferentes com respeito às
suas diferenças.

A liberdade é princípio que guarda indissociável ligação com o anteriormente


descrito princípio da igualdade. Em contraponto à rigidez que marcava o Direito de
Família estabelecido pelo antigo Código Civil, no qual a autoridade do homem não
era passível de questionamento, o Direito de Família atual é amplamente marcado
pela liberdade. Liberdade dos cônjuges para conduzir a entidade familiar como
melhor lhes pareça e também dos filhos, que não estão mais obrigados a obedecer
cegamente às ordens do pai; antes, detêm o direito de dele (e da mãe) obterem
condições para seu pleno desenvolvimento.

A convivência familiar é princípio fundamental para a noção de família


socioafetiva. O direito que os familiares têm de conviver uns com os outros no seio
do ambiente familiar e fora dele é esteio da construção das relações afetivas
estabelecidas pelos familiares entre si. Importa ressaltar que tal direito não se
circunda somente à família nuclear (formada por pais e filhos), mas estende-se
também a avós, primos e tios, dependendo do caso concreto.

O princípio do melhor interesse da criança consiste em verdadeira “inversão


de prioridades” (LÔBO, 2010, p. 70), pois passa a considerar que o interesse da
criança deve vir em primeiro lugar, diferentemente do que se observava na família
patriarcal, na qual o interesse do pai se sobrepujava ao de todos os componentes da
entidade familiar. Trata-se, de fato, da “consolidação de uma mudança
paradigmática” (PEREIRA, 2009, p. 4), ao passo em que centraliza a atuação do
poder familiar em benefício da prole, e não em detrimento dela.

1.2.1 Princípio da Afetividade

Princípio constitucional implícito, a afetividade foi alçada a tal patamar através


de construção doutrinária e jurisprudencial. Compreendido como base da família
moderna, o princípio da afetividade é o plasma no qual se encontram engastadas as
relações familiares, o qual encima tais relações a despeito dos aspectos biológicos e
patrimoniais que estas possam ter eventualmente.

Há que se diferenciar, no entanto, a afetividade enquanto fato psicológico


(afeto) e enquanto princípio jurídico. “A afetividade, cuidada inicialmente pelos
cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de suas
ciências, entrou nas cogitações dos juristas, que buscam explicar as relações
familiares contemporâneas” (LÔBO, 2000. p. 3). Dessa maneira, a afetividade
enquanto valor jurídico não se confunde com o afeto, embora nele apresente seu
ponto de partida.

A afetividade, para o Direito, pode ser presumida quando não houver afeto
nas relações familiares, tratando-se de um dever que se impõe a pais e filhos uns
para com os outros (LÔBO, 2010).

Ainda com esteio na lição do eminente jurista Paulo Lôbo (2010), temos que o
princípio da afetividade está implícito no texto constitucional nos seguintes
dispositivos: o art. 227, § 6º (que dispõe acerca da igualdade dos filhos,
independente da origem); o art. 227, §§ 5º e 6º (que eliminou denominações ou
tratamentos discriminatórios aos filhos adotivos); o art. 226, § 4º (que reconheceu a
família monoparental); e, por fim, o art. 227 (que assegura a convivência familiar
como prioridade absoluta à criança e ao adolescente).

A palavra “afeto” não está presente no texto da Constituição; no Código Civil


se faz menção ao termo uma única vez, no art. 1583, § 2º, I. Em ambos os diplomas,
no entanto, estão contidas normas que permitem visualizar claramente a presença
desse importante princípio jurídico. Alguns dispositivos do Diploma Substantivo Civil
permitem “entrever esse elemento para caracterizar situação merecedora de tutela”
(DIAS, 2001 p. 68). Entre eles, é possível elencar os arts. 1.511 (que estabelece a
comunhão plena de vida no casamento); 1.593 (que admite filiação de origem
diversa da natural e civil, ou seja, da parentalidade socioafetiva); 1.596 (que
consagra a igualdade de filiação); e 1.604 (que fixa a irrevogabilidade do estado
constante do registro de nascimento).

Inúmeras foram as mudanças levadas a cabo no modo de pensar a família a


partir da implementação do princípio da afetividade. A família patriarcal, alicerçada
na figura plenipotenciária do pai, seu chefe, tinha o afeto como elemento secundário
na sua constituição. Muito mais importantes eram os vínculos de natureza formal e
biológica que a informavam, tais quais o casamento e a filiação biológica,
respectivamente.

O advento do princípio da afetividade, trazido a reboque das transformações


sociais observadas em todo o mundo ocidental a partir da II Guerra Mundial,
representou uma verdadeira implosão do modelo de família patriarcal antes
conhecido. A urbanização crescente da população foi também fator de monta para a
realização desse processo.

No Brasil, importantes alterações legislativas referendaram a implementação


desse novo paradigma na segunda metade do século passado. Trata-se do Estatuto
da Mulher Casada (Lei 4.121 de 1962), que retirou a mulher casada da inferiorizada
condição de relativamente incapaz, e da Lei do Divórcio (Lei 6.515 de 1977), que
permitiu a dissolução do casamento.

O jurista Flávio Tartuce (2012, p. 2) aponta “três consequências pontuais,


perceptíveis nos últimos anos” em decorrência da aplicação do princípio da
afetividade no âmbito familiar. O reconhecimento das uniões homoafetivas como
entidades familiares seria o primeiro deles, num processo que foi da negação total
de direitos à equiparação com as uniões heteroafetivas, passando pelo tratamento
como sociedade de fato.

Outra consequência foi a admissão de reparação por danos gerados pelo


abandono afetivo. O autor pontua o fato de que o STJ já havia decidido antes pelo
não cabimento de tal reparação civil nesses casos. Quatro anos depois, no entanto,
o entendimento do tribunal se modificou no sentido exatamente oposto, ao admitir a
reparação civil por abandono afetivo, o que demonstra a evolução do pensamento
jurídico da corte nesse sentido.

A terceira consequência apontada, advinda do implemento do princípio da


afetividade, foi o reconhecimento da parentalidade socioafetiva como forma de
parentesco, através da interpretação da expressão “outra origem” no art. 1.593 do
Código Civil (“O parentesco é natural ou civil, conforme resultante de
consanguinidade ou outra origem”). A filiação passou então a ser reconhecida como
dado cultural, não apenas biológico ou registral, devendo a posse do estado de filho
ser levada em consideração quando da determinação do vínculo de filiação.

1.3 A parentalidade no sistema jurídico brasileiro

1.3.1 O Código de 1916 e o pátrio poder

O vetusto Código Civil de 1916 era um típico exemplo de legislação liberal.


Calcado em princípios oitocentistas como o individualismo, a propriedade e a
liberdade face ao Estado, o Código foi redigido com ênfase nos quatro papéis
assumidos pelo homem da época: proprietário, contratante, marido e testador
(ALVES, 2007).

O Livro I da Parte Especial do referido diploma, intitulado “Do direito de


família”, nada mais é do que o reflexo da sociedade da época no que diz respeito à
visão que se tinha do ente familiar. A única maneira de constituí-lo era através do
matrimônio, e as hipóteses de sua desconstituição posterior eram
excepcionalíssimas.

Fortemente influenciado pelo Direito Canônico, devido à grande ascendência


exercida pela Igreja na sociedade da época (a despeito da recente separação entre
Igreja e Estado), o Código de 1916 era taxativo no que respeita ao conceito de
família, pretendendo, assim, conter a dinâmica social e conduzi-la a seguir um
caminho por ele determinado.

Família, para efeito do disposto no antigo Codex, era o ente formado pelo
matrimônio de homem e mulher e pelos filhos provenientes dessa união. No dizer de
Beviláqua (apud VENOSA, 2005, p. 25),

Direito de Família é o complexo de normas, que regulam a celebração do


casamento, sua validade e os efeitos, que dele resultam, as relações
pessoais e econômicas da sociedade conjugal, a dissolução desta, as
relações entre pais e filhos, o vínculo do parentesco e os institutos
complementares da tutela e da curatela.

Essa concepção de família como unidade de produção de riqueza chefiada


pelo homem guarda muitas semelhanças com a família romana a que se faz alusão
no início deste trabalho. Pleno de direitos, ao homem cabe, dentre outras, as
prerrogativas de chefiar exclusivamente a sociedade conjugal; representar a família;
administrar os bens comuns e os da mulher, de acordo com o regime de bens
escolhido; escolher o local de domicílio da família; e, é claro, exercer o pátrio poder
sobre a prole (ALVES, 2007).

A própria expressão “pátrio poder” demonstra uma herança romana, por se


tratar de tradução direta do latim “patria potestas”. Compreendido muito mais como
um direito de exercício de poder do pai sobre sua prole do que como um poder-
dever daquele para com esta, o pátrio poder era regulado pelos artigos 379 a 395 do
Código de 1916.

Todos os filhos estavam sujeitos ao pátrio poder, exercido pelo marido na


constância do casamento; apenas na sua falta ou impedimento tal prerrogativa
passaria à mulher. A dicção do art. 380 do Código de 1916 foi atenuada pela edição
da Lei n. 4.121 (Estatuto da Mulher Casada), que dizia competir o pátrio poder aos
pais, “exercendo-o o marido com a colaboração da mulher” (BRASIL, 1962).

1.3.2 O Código de 2002 e o poder familiar

A partir do advento da Constituição Federal de 1988, se fez necessária a


revisão do Diploma Civil de 1916, pois boa parte dos artigos deste passou a ter sua
constitucionalidade questionada pela doutrina e jurisprudência.

O Projeto de 1975 foi, então, posto à revisão e, procedidas as devidas


alterações, originou o Código Civil de 2002. Este foi um diploma que já nasceu
ultrapassado, pois manteve muito do conservadorismo de seu antecessor, o que se
faz sentir pelo aproveitamento, ao máximo, da dicção dos artigos do Código de
1916, repetidos ipsis litteris sempre que possível.

O novel Codex não destoou da descrição acima no que respeita ao


tratamento dispensado ao pátrio poder, desta feita denominado “poder familiar”.
Essa legislação teria andado melhor caso houvesse optado pela denominação
“autoridade parental”, o que destaca antes o múnus exercido pelos pais em conjunto
ou por apenas um deles, conforme o caso (LÔBO, 2006).
Apenas promovendo alterações de denominação para se adaptar à nova
Constituição, o Código de 2002 manteve praticamente intacta a disciplina do poder
familiar aduzida pelo diploma anterior. A sequência dos artigos permaneceu a
mesma, sendo alteradas a expressão “pátrio poder” por “poder familiar” e a
titularidade, que passou do pai para o pai e a mãe; além disso, foi promovida a
exclusão da menção aos filhos ilegítimos (LÔBO, 2006:03).

É necessário, portanto, proceder à interpretação conforme a Constituição dos


artigos do Novo Código relativos ao poder familiar. Embora a estrutura e as palavras
dos dispositivos do diploma anterior tenham sido mantidas, seu sentido foi
amplamente modificado, mormente no que tange à natureza de sua aplicação.

Considerado anteriormente, como já dito, um exercício de poder dos pais


sobre a pessoa dos filhos, a significação do poder familiar hodiernamente é muito
mais a de um poder-dever, de um múnus a ser exercido pelos pais. Responsáveis
pelo pleno desenvolvimento de seus filhos, cabe àqueles prestar a estes todo o
auxílio possível nesse intento.

1.4 Tipos de Parentalidade

A parentalidade é o vínculo de parentesco estabelecido entre uma pessoa


que gera (ou que recebe como se tivesse gerado) outra. Trata-se da ligação entre
pais e filhos, considerada a mais importante dentre as relações de parentesco
estabelecidas e regradas pela legislação relativa ao Direito de Família brasileiro.

Guarda a parentalidade, por óbvio, ligação intrínseca com a relação de


filiação; de fato, nada mais é a parentalidade do que a filiação “encarada em sentido
inverso, ou seja, pelo lado dos genitores em relação ao filho” (GONÇALVES, 2006 p.
272).

Parte dos autores ainda se prende à denominação de “paternidade”, clara


herança de um Direito de Família patriarcalista centrado na figura do homem.
Preferimos adotar, aqui, o termo “parentalidade”, derivado do adjetivo “parental”:
“parental. [Do lat. parentale.] Adj. 2 g. Relativo a pai e mãe.” (FERREIRA, 1986). Tal
termo, por remeter tanto à figura do pai quanto à da mãe, nos parece mais
consentâneo com a moderna doutrina familiarista.

A parentalidade vem sendo tratada atualmente sob três diferentes óticas: a


parentalidade biológica (relativa ao liame genético existente entre pai e filho), a
parentalidade registral (determinada pela análise da certidão de nascimento) e a
parentalidade socioafetiva (que leva em consideração o afeto existente na relação
parental-filial) (CHAVES, 2005), conforme explicitamos a seguir.

1.4.1 Biológica

Caracterizada pelo aspecto natural que lhe é peculiar, a parentalidade


biológica se dá em decorrência direta da junção do material genético do homem com
o da mulher. Diferentemente da parentalidade registral e socioafetiva, a
parentalidade biológica não é passível de modificação posterior, já que os caracteres
genéticos transmitidos dos pais para o filho irão acompanhar esse último por toda a
vida.

O advento da modernidade trouxe consigo a especialização de técnicas de


verificação da parentalidade, máxime a partir do surgimento dos famigerados “testes
de DNA”. Tal descoberta, no entanto, não bastou para pôr fim aos questionamentos
relativos à parentalidade como um todo, visto que o aspecto biológico vem perdendo
força nesse sentido devido ao passar do tempo. Não é outro o pensamento de
Sergio Luiz Paulillo (2003, p. 2), quando afirma que

a desbiologização é a inexistência ou a ruptura do convívio duradouro entre


pais e filhos biológicos, ou seja, fato cultural versus fato natural. Dessa
forma podemos dizer que os institutos da adoção, tutela e curatela são seus
exemplos legais primevos. Essa ruptura definitiva na relação
paterno/materno-filial com o abandono do menor por parte de seus pais
biológicos, seja pelo óbito, seja pela separação e até mesmo sob a
necessidade de deixa-lo sob guarda de parentes ou não-parentes, impõe
ruptura socioafetiva: a desbiologização. O termo pai-função passa a ter
importância preponderante à do pai-biológico.

1.4.2 Registral

A parentalidade registral é, ainda hoje, a mais importante geradora de direitos


e deveres para os pais e filhos nela envolvidos. A despeito de a parentalidade
biológica e/ou socioafetiva não coincidir com as informações contidas no registro de
nascimento, é com base em tais informações que serão procedidos todos os atos da
vida civil do indivíduo.

Nesse sentido, é contundente a lição de Adalgisa Chaves (2005, p. 148), ao


asseverar que

essa parentalidade fornece uma base documental para toda a vida do ser
humano; é a partir de tal registro que são feitos todos os demais
documentos que a pessoa poderá precisar ao longo de sua existência (...).
É esse documento que comprova que a pessoa existe juridicamente, pois
aquele que não é registrado não tem existência no plano jurídico.

Diferentemente da parentalidade biológica, a registral é passível de


modificações ao longo da vida do ser humano. Tanto aspectos de ordem biológica
quando socioafetiva podem ensejar alterações no registro de nascimento, o que
pode ser conseguido através de ação judicial própria.

1.4.3 Socioafetiva

A parentalidade socioafetiva, como o próprio nome explicita, é fruto do afeto


contido na relação parental-filial. A despeito da possibilidade de diferir da
parentalidade biológica e registral, a parentalidade socioafetiva se manifesta no
convívio familiar contínuo. Trata-se de fruto da relação mantida entre pai/mãe e filho,
na qual pouco importam questões de origem genética ou formalidades jurídicas de
registro civil.

Existente desde a antiguidade, a parentalidade socioafetiva parece não ter


sido ainda inteiramente apreendida pelas legislações civis ao redor do mundo,
incluso nesse grupo o ordenamento jurídico brasileiro. Embora a previsão do art.
1.593 do Código Civil (“O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de
consanguinidade ou outra origem.”) (BRASIL, 2002) dê azo à possibilidade de
consideração da parentalidade socioafetiva, através da expressão “outra origem”, o
legislador agiu timidamente ao regulamentar a matéria, tanto é que hodiernamente a
parentalidade socioafetiva é fruto de construções doutrinárias e jurisprudenciais.

Impõe-se aos operadores do Direito, nesse sentido, que promovam


verdadeira revolução na maneira de pensar tanto a ciência que aplicam quanto o
homem, objeto último de tal ciência. Como preleciona Paulo Lobo (2000, p. 6),
O desafio que se coloca aos juristas, principalmente aos que lidam com o
direito de família, é a capacidade de ver as pessoas em toda sua dimensão
ontológica, a ela subordinando as considerações de caráter biológico ou
patrimonial. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos, que são
mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa
humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito
à realidade e aos fundamentos constitucionais.
2. Legislação e jurisprudência

2.1 A parentalidade socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro

Como já referido anteriormente, o legislador brasileiro foi tímido ao regrar a


questão da parentalidade socioafetiva, tanto na redação do texto constitucional
quanto na legislação infraconstitucional referente ao tema: o Código Civil e o
Estatuto da Criança e do Adolescente.

Malgrado nenhum dos referidos diplomas contenha referências diretas ao


instituto aqui versado, todos eles apresentam dispositivos que autorizam a
construção doutrinária realizada em torno da parentalidade socioafetiva.

2.1.1 Constituição Federal de 1988

A Constituição Federal de 1988 foi a Carta Política que mais artigos


dispensou ao tratamento da família na história do Brasil. A Constituição de 1824
omitiu-se em relação ao assunto; os textos de 1891, 1937, 1946 e 1969 dedicaram
a ela apenas um artigo cada; em 1934 dois artigos disciplinavam o instituto. A atual
Constituição da República regulou a matéria em cinco artigos, do 226 ao 230
(CRETELLA JÚNIOR, 1993).

Dentre as normas constitucionais citadas, a que tange à parentalidade


socioafetiva é a que está contida no art. 227, §6º. O dispositivo em tela enuncia que

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao


adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. (omissis) §6º Os filhos, havidos
ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos
e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à
filiação (BRASIL, 1988).

A regra contida na norma acima transcrita representou o desmoronamento do


antigo sistema de filiação, que levava a cabo distinções entre os filhos de acordo
com sua origem, o que produzia efeitos das mais diversas ordens, notadamente
para fins sucessórios.
Filhos legítimos eram os que procediam de justas núpcias. Quando não
houvesse casamento entre os genitores, denominavam-se ilegítimos e se
classificavam, por sua vez, em naturais e espúrios. Naturais, quando entre
os pais não havia impedimentos para o casamento. Espúrios, quando a lei
proibia a união conjugal dos pais. Estes podiam ser adulterinos, se o
impedimento resultasse do fato de um deles ou de ambos serem casados, e
incestuosos, se decorresse do parentesco próximo, como entre pai e filha
ou entre irmão e irmã (GONÇALVES, 2006, p. 273).

Dessa forma, a Constituição adotou o sistema único de filiação, ao vedar


designações discriminatórias no que concerne a esse instituto. Tal dispositivo, aliado
aos princípios constitucionais referentes ao Direito de Família já elencados, forneceu
subsídios aos doutrinadores e aplicadores do Direito para o desenvolvimento do
conceito de parentalidade socioafetiva.

Para tanto, o jurista deve utilizar-se do princípio da máxima efetividade a que


faz menção J. J. Gomes Canotilho (2003, p. 1224), que “pode ser formulado da
seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que
maior eficácia lhe dê”. Claramente a maior eficácia da proibição de discriminação
relativa à filiação reside no reconhecimento da parentalidade socioafetiva, mormente
com a equiparação promovida pelo próprio §6º do art. 227 entre os filhos havidos
dentro do casamento ou fora dele.

2.1.2 Código Civil de 2002

A parentalidade socioafetiva pode ser vislumbrada de maneira um pouco mais


clara no art. 1593 do Código Civil, aqui transcrito: “O parentesco é natural ou civil,
conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (BRASIL, 2002). A expressão
“outra origem” dá margem para que se proceda à sua interpretação coforme a
constituição. O conceito, formulado pelo jurista Konrad Hesse (1991), determina que
as normas infraconstitucionais tenham sua interpretação feita de acordo com os
objetivos e princípios contidos no texto da Constituição.

Ora, a Constituição de 1988, ao erigir como fundamento da república a


dignidade da pessoa humana, situou claramente o indivíduo como alvo maior de sua
proteção. Cabe ao intérprete da norma infraconstitucional, portanto, alinhar o sentido
por esta pretendido àquele disposto na Lei Maior, sob pena de não promover o
alcance objetivado pelo dispositivo constitucional. Dessa forma, a interpretação do
art. 1.593 do Código Civil possibilita a depreensão do conceito de parentalidade
socioafetiva, ao determinar que o parentesco pode ser estabelecido por outra origem
que não a consanguinidade (origem biológica); trata-se, assim, da origem
socioafetiva do parentesco.

Além da dignidade da pessoa humana, princípio constitucional dos mais


importantes, a interpretação do art. 1593 encontra também respaldo na aplicação do
princípio da afetividade. Não é outro o entendimento de Nelson Nery Junior e Rosa
Maria de Andrade Nery (2007, p. 1030), para os quais “a afetividade é um desses
fatos [jurídicos] que podem gerar efeitos jurídicos de, até mesmo, criar o parentesco
civil por ‘outra origem’”.

Além do dispositivo citado, existem outros artigos do Código Civil que


permitem entrever a inserção do conceito de filiação socioafetiva no diploma em
comento. Um deles é o art. 1.596, que reproduziu ipsis litteris a dicção do já
mencionado art. 227, §6º da Constituição, relativo à vedação a denominações
discriminatórias da filiação.

Aparentemente é desnecessária a repetição da norma constitucional no


diploma civil, pois aquela possui força normativa própria; “todavia, sua reprodução
no artigo introdutório ao capítulo do Código Civil destinado à filiação contribui para
reforçar sua natureza de fundamento, assentado no princípio da igualdade,
determinante de todas as normas subsequentes” (LÔBO, 2003, p. 39).

2.1.3 Estatuto da Criança e do Adolescente

Um dos muitos desdobramentos da promulgação da Constituição de 1988 foi


o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/90).
Legislação moderna e inovadora, o aludido microssistema substituiu o antigo Código
de Menores (Lei nº 6.697/1979), que não se adequava à nova ordem constitucional
vigente. O ECA, por sua vez, está alinhado tanto aos princípios da Carta Magna
quanto à Declaração Universal dos Direitos da Criança.

Perfilado aos demais diplomas legais anteriormente mencionados, o ECA não


fez alusão expressa à parentalidade socioafetiva. Alguns de seus dispositivos, no
entanto, permitem vislumbrar a pulsão do instituto e, interpretados conforme a
Constituição, possibilitam afirmar que tal legislação infraconstitucional acolheu a
socioafetividade parental.
O primeiro artigo da mencionada lei já evidencia a adoção da doutrina da
proteção integral, ao afirmar: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e
ao adolescente” (BRASIL, 1990). Tal doutrina representa verdadeira inversão de
papéis entre pais e filhos, alçando esses últimos à qualidade de sujeitos de direitos,
cuja oponibilidade se estende à família, à sociedade e ao Estado. “Rompe com a
ideia de que sejam simples objetos de intervenção no mundo adulto, colocando-os
como titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como de direitos
especiais decorrentes da condição peculiar de pessoas em processo de
desenvolvimento” (CURY, GARRIDO e MARÇURA, 2002, p. 21).

O art. 6º do ECA dispõe que “Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta
os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e
deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente
como pessoas em desenvolvimento” (BRASIL, 1990). Esse artigo representa norma
de interpretação, uma vez que “o fim social é o de proteção integral da criança e do
adolescente e o bem comum é o que atende aos interesses de toda a sociedade. Os
direitos e deveres individuais e coletivos são os elencados no ECA, relativos à
criança e ao adolescente” (ISHIDA, 2004, p. 34).

Por fim, há o art. 20, que, tal qual o Código Civil, copiou o conteúdo do art.
227, §6º da Constituição. A inserção desse dispositivo no microssistema responsável
por tratar da criança e do adolescente, embora repetitiva, tem sua razão de ser. Num
sistema antes marcado pela distinção fortemente discriminatória quanto à origem da
filiação, a vedação a tal prática constituiu importante valorização do afeto nas
relações familiares, o que aponta claramente para o reconhecimento da primazia da
parentalidade socioafetiva no sistema infraconstitucional brasileiro.

2.2 A parentalidade socioafetiva na jurisprudência

Como já referido anteriormente, a parentalidade socioafetiva não está


expressamente contida em nenhum dispositivo legal do ordenamento jurídico
brasileiro. Sua conceituação, existência e aplicação são possíveis, assim, com base
em construções doutrinárias e jurisprudenciais.
Os tribunais de todo o país vêm, ao longo dos anos, apreendendo o conceito
e inserindo-o em suas decisões referentes a conflitos gerados no âmbito do
parentesco e da filiação/parentalidade. É crescente a utilização, pelos magistrados
de primeiro e de segundo grau, do conceito de parentalidade socioafetiva e do
entendimento de que esta se sobrepõe à biológica.

2.2.1 Julgados dos tribunais inferiores

A decisão que segue é um típico exemplo de acórdão que delimita o


regramento para o reconhecimento da parentalidade socioafetiva. Nesse caso, os
desembargadores entenderam que a comprovação do instituto depende da
demonstração de que havia a chamada “posse do estado de filho”, consistente na
apresentação dos requisitos do tratamento, fama e nome:

FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. PETIÇÃO DE HERANÇA. NÃO


RECONHECIMENTO. 1- A sentença não reconheceu a filiação socioafetiva
postulada. 2- Para o reconhecimento do parentesco sócio afetivo devem
estar presentes as características da posse do estado de filiação (CC/2002,
art. 1.605; CC/1916, art. 349, II), ou seja, o tratamento (tratatus), a fama
(reputatio) e o nome. Ausência de qualquer indício a respeito, além do que,
enquanto menor, estava a autora sob a guarda legal daqueles que aponta
como pais socioafetivos. 3- Não reconhecida a relação parental, não há
direito sucessório, ficando prejudicada a petição de herança. 4- Apelação
não provida (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, 2013).

Outra interessante decisão, esta tomada pelo Tribunal de Justiça de Minas


Gerais, afirma que não ocorre a destituição automática do poder familiar quando da
verificação da existência de parentalidade socioafetiva. Para tanto, a corte
determinou que seria necessária a interposição de ação própria, pois isto não
poderia ser feito através da ação de reconhecimento da parentalidade socioafetiva:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE


PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA - PEDIDO DE DESTITUIÇÃO DO
PODER FAMILIAR - INDEFERIMENTO DA INICIAL - PERTINÊNCIA -
EXISTÊNCIA DE AÇÃO PRÓPRIA.

A destituição do poder familiar não é consequência lógica do


reconhecimento da parentalidade socioafetiva. A declaração da ligação
socioafetiva não está elencada entre aquelas hipóteses que extinguem o
poder familiar, conforme o disposto no art.1635, do Código Civil. A ação de
adoção c/c destituição do poder familiar é o meio próprio para os adotantes
perseguirem seus objetivos (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça, 2012).
Este próximo acórdão aborda diretamente a prevalência da parentalidade
socioafetiva em detrimento da biológica. Considera, para tanto, que a
simultaneidade de existência de ambas não obsta que a segunda seja considerada,
porém apenas para a finalidade de direito à origem genética; assim se perfilha à
teoria proposta pelo professor Paulo Lôbo (2004, p. 13), para o qual o direito à
origem genética é direito da personalidade e não guarda vínculo com o estado de
filiação.

DIREITO CIVIL - FAMÍLIA - INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C


ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA E ALIMENTOS - EXAME DNA
POSITIVO - PROCEDÊNCIA PARCIAL EM 1º GRAU - INSURGÊNCIA DO
INVESTIGADO - CERCEAMENTO DE DEFESA - AUSÊNCIA DE
TESTEMUNHAS E INDEFERIMENTO DE 2º EXAME DNA -
TESTEMUNHAS DEFERIDAS INDEPENDENTEMENTE DE INTIMAÇÃO -
NOVA PERÍCIA - DESNECESSIDADE - LAUDO REGULAR - RECURSO
IMPROVIDO - RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE - EXISTÊNCIA DE
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E GENÉTICA - PREVALÊNCIA
DAQUELA - MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA - PATERNIDADE PARA FINS
EXCLUSIVAMENTE BIOLÓGICOS - MANUTENÇÃO DO REGISTRO CIVIL
- SENTENÇA REFORMADA.
Não tendo comparecido à audiência as testemunhas que viriam
independentemente de intimação, não há cerceamento de defesa porque a
desistência de suas oitivas é presumida.
O resultado do exame DNA é prova suficiente para corroborar o estado de
filiação afirmado na inicial, dispensando-se sua renovação quando
inexistentes vícios capazes de macular o laudo pericial. No conflito entre
paternidade socioafetiva e biológica - matéria de ordem pública -, prevalece
aquela por melhor acolher o princípio constitucional da dignidade humana.
Existindo paternidade socioafetiva simultaneamente com a paternidade
biológica, deve esta ser acolhida parcialmente para fins exclusivamente
genéticos, sem parentalidade ou consequência sucessória, mas mantendo-
se aquela até então existente (SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça,
2008).

Outra importante decisão foi esta tomada pelo Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, sempre pioneiro no Brasil no que diz respeito a teses jurídicas
inovadoras. O acórdão que segue transcrito, relatado pelo desembargador Luiz
Felipe Brasil Santos, contraria alguns outros julgados que versam acerca da
parentalidade socioafetiva. Para o magistrado, o instituto não pode ser declarado
contra a vontade do pai/mãe quando baseado em erro, mesmo que o convívio e o
afeto tenham estado presentes na relação parental-filial.

APELAÇÃO CÍVEL. FILIAÇÃO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE.


NECESSIDADE PRODUÇÃO DE PROVA. CERCEAMENTO DE DEFESA
CONFIGURADO. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. Embora este relator
sempre tenha sido pregoeiro da valoração da parentalidade socioafetiva,
sempre o fez com a ressalva de que esse vínculo, para ser preservado,
deve necessariamente assentar-se sobre um ato voluntário de
reconhecimento, manifestação livre de uma vontade isenta de vícios. Não é
o que ocorre aqui, ao menos em tese, pois o autor sustenta, na inicial, haver
reconhecido o réu ilaqueado em sua boa-fé, fiando-se na palavra da
genitora. Desse modo, é necessário oportunizar dilação probatória, para
que essas circunstâncias sejam eventualmente comprovadas, pois o vínculo
socioafetivo não pode ter por alicerce uma mentira, que tenha dado origem
a um erro. Nesse contexto, de rigor a desconstituição da sentença recorrida,
com a determinação de prosseguimento do feito, viabilizando a mais ampla
e plena dilação probatória. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME (RIO
GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, 2011).

2.2.2 Julgados dos tribunais superiores

Nos tribunais superiores, dada sua natureza eminentemente recursal, são


encontradas menos decisões relativas à parentalidade socioafetiva.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui apenas quatro julgados que


tratam especificamente desse assunto.

A decisão colacionada a seguir reafirma a prevalência da parentalidade


socioafetiva em detrimento da parentalidade biológica. Levando em consideração os
princípios aduzidos pelo Código Civil e pela Constituição, o acórdão afirma que não
é possível desconstituir o vínculo parental afetivo depois de se descobrir que este
não coincide com o biológico.

DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME


DE DNA NEGATIVO. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE
SOCIOAFETIVA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
1. Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da
Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade
depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem
biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação,
fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência
familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade
não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em
aberto conflito com a paternidade socioafetiva.
2. No caso, as instâncias ordinárias reconheceram a paternidade
socioafetiva (ou a posse do estado de filiação), desde sempre existente
entre o autor e as requeridas. Assim, se a declaração realizada pelo autor
por ocasião do registro foi uma inverdade no que concerne à origem
genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com
as então infantes vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade em
si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da
alegação de falsidade ou erro.
3. Recurso especial não provido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça,
2012).
Este próximo julgado do STJ inovou ao permitir a busca do reconhecimento
da parentalidade socioafetiva através da ação de investigação de paternidade. Tal
ação, a princípio, se presta ao reconhecimento forçado da parentalidade biológica,
porém a corte, através de interpretação ampliada, entendeu que o direito ao
reconhecimento da socioafetividade na relação parental pode ser buscado através
da mencionada ação.

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA.


RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE
SOCIOAFETIVA. POSSIBILIDADE. DEMONSTRAÇÃO.
1. A paternidade ou maternidade socioafetiva é concepção jurisprudencial e
doutrinária recente, ainda não abraçada, expressamente, pela legislação
vigente, mas a qual se aplica, de forma analógica, no que forem pertinentes,
as regras orientadoras da filiação biológica.
2. A norma princípio estabelecida no art. 27, in fine, do ECA afasta as
restrições à busca do reconhecimento de filiação e, quando conjugada com
a possibilidade de filiação socioafetiva, acaba por reorientar, de forma
ampliativa, os restritivos comandos legais hoje existentes, para assegurar
ao que procura o reconhecimento de vínculo de filiação socioafetivo, trânsito
desimpedido de sua pretensão.
3. Nessa senda, não se pode olvidar que a construção de uma relação
socioafetiva, na qual se encontre caracterizada, de maneira indelével, a
posse do estado de filho, dá a esse o direito subjetivo de pleitear, em juízo,
o reconhecimento desse vínculo, mesmo por meio de ação de investigação
de paternidade, a priori, restrita ao reconhecimento forçado de vínculo
biológico.
4. Não demonstrada a chamada posse do estado de filho, torna-se inviável
a pretensão.
5. Recurso não provido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2011b).

Neste outro interessante caso decidido pelo STJ, o pai biológico solicitou que
fosse realizada alteração do registro do filho, que apresentava como pai registral o
socioafetivo. O tribunal entendeu que o pai biológico não poderia se utilizar, com
vantagem, do erro por ele mesmo cometido, pois tinha conhecimento de que o filho
detinha ligação biológica com ele assim que aquele havia nascido, porém não o
registrou ao tempo em que nasceu e, quando veio a fazê-lo, já havia uma situação
de parentalidade socioafetiva instalada, o que não permitiu sua desconstituição
posteriormente.

PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO CIVIL.


ANULAÇÃO
PEDIDA POR PAI BIOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PATERNIDADE
SOCIOAFETIVA. PREPONDERÂNCIA.
1. A paternidade biológica não tem o condão de vincular, inexoravelmente, a
filiação, apesar de deter peso específico ponderável, ante o liame genético
para definir questões relativas à filiação.
2. Pressupõe, no entanto, para a sua prevalência, da concorrência de
elementos imateriais que efetivamente demonstram a ação volitiva do
genitor em tomar posse da condição de pai ou mãe.
3. A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência
genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e
amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma
decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no
Direito de Família.
4. Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado
e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do
venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório),
que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela
jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família.
5. Na hipótese, a evidente má-fé da genitora e a incúria do recorrido, que
conscientemente deixou de agir para tornar pública sua condição de pai
biológico e, quiçá, buscar a construção da necessária paternidade
socioafetiva, toma-lhes o direito de se insurgirem contra os fatos
consolidados.
6. A omissão do recorrido, que contribuiu decisivamente para a perpetuação
do engodo urdido pela mãe, atrai o entendimento de que a ninguém é dado
alegrar a própria torpeza em seu proveito (nemo auditur propriam
turpitudinem allegans) e faz fenecer a sua legitimidade para pleitear o direito
de buscar a alteração no registro de nascimento de sua filha biológica.
7. Recurso especial provido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2011a).

No Supremo Tribunal Federal (STF), ainda não foi julgada nenhuma ação
referente à parentalidade socioafetiva. O único caso que contém controvérsia acerca
do instituto a chegar à Suprema Corte ainda não foi julgado, entretanto já foi
reconhecida a sua repercussão geral, ementada da seguinte maneira:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE


ANULAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. INVESTIGAÇÃO DE
PATERNIDADE. IMPRESCRITIBILIDADE. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO.
PATERNIDADE BIOLÓGICA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA.
CONTROVÉRSIA GRAVITANTE EM TORNO DA PREVALÊNCIA DA
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA EM DETRIMENTO DA PATERNIDADE
BIOLÓGICA. ART. 226, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
PLENÁRIO VIRTUAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA (BRASIL.
Supremo Tribunal Federal, 2012).

No processo, houve o requerimento de modificação do registro de nascimento


realizado pelos avós, como se eles fossem os pais, e a consequente retificação do
documento para substituir o nome dos avós pelo do pai biológico. Tal pedido foi
deferido pelo juiz de primeiro grau e mantido tanto pelo tribunal estadual quanto pelo
STJ, o que levou os réus a recorrer ao STF alegando que, com base na
parentalidade socioafetiva, o registro original deveria ser mantido.
Reconhecida a repercussão geral do tema, através de votação no Plenário
Virtual do órgão, resta agora aos ministros decidir se a parentalidade socioafetiva de
fato prepondera ou não sobre a parentalidade biológica. Tudo indica que o Supremo
se alinhe à moderna doutrina do Direito de Família e à maior parte dos tribunais
brasileiros, que vêm decidindo nesse sentido, e que acabe julgando, assim, pela
afirmação do prevalecimento da parentalidade socioafetiva em detrimento da
parentalidade biológica.
3. Parentalidade socioafetiva

3.1. Posse do estado de filho

A parentalidade socioafetiva, como anteriormente foi mencionado, não possui


previsão expressa na legislação brasileira, a despeito da existência de dispositivos
legais cuja interpretação conforme a Constituição permitiu o desenvolvimento
doutrinário e jurisprudencial do instituto.

Também de construção doutrinária é a denominada “posse do estado de


filho”, situação de fato na qual a parentalidade socioafetiva encontra seu esteio. Para
que esta última se configure, é necessário que haja a verificação da existência da
primeira, embora tanto os doutrinadores quanto os tribunais divirjam no que tange à
necessidade de que estejam presentes todos os requisitos para a configuração da
posse do estado de filho (nome, tratamento e fama). Nesse sentido, é oportuna a
afirmação de Paulo Lôbo (2010, p. 234): “Essas características não necessitam de
estar presentes, conjuntamente, pois não há exigência legal nesse sentido e o
estado de filiação deve ser favorecido, em caso de dúvida”.

O célebre Pontes de Miranda (1971, p. 47) já afirmava que “as provas mais
diretas, quando não haja ou seja defeituoso o têrmo de nascimento, são a posse de
estado de filho legítimo e a prova por testemunhas. A posse de estado de filho
legítimo consiste no gôzo do estado, da qualidade de filho legítimo e das
prerrogativas dela derivadas”.

É de observar que a posse do estado de filho não leva em consideração


aspectos biológicos para que reste configurada. O afeto é o elemento que prevalece
nas relações parentais-filiais passíveis de demonstração através da posse do estado
de filho, o que torna esse instituto o meio de comprovação por excelência da
parentalidade socioafetiva.

A aparência é fator fundamental para que se depreenda a parentalidade


socioafetiva da posse do estado de filho. Malgrado possa não corresponder à
verdade biológica ou jurídica (registral) relativamente à filiação, a manutenção de um
vínculo entre pais e filhos que se dê de maneira aparentemente “verdadeira” termina
por consolidar a filiação através dos laços do afeto. Nesse sentido, Maria Berenice
Dias (2007, p. 333) chega a afirmar que “a maternidade e a paternidade biológica
nada valem frente ao vínculo afetivo que se forma entre a criança e aquele que trata
e cuida dela, lhe dá amor e participa de sua vida”.

Há que se distinguir, no entanto, o direito ao estado de filiação do direito à


origem genética, como preceitua Paulo Lôbo em artigo sobre o tema (2004). Para o
autor, deve ser levado em consideração o melhor interesse da criança no momento
de estabelecer o prevalecimento da origem (biológica ou socioafetiva) que irá
constituir a filiação. Ainda seguindo o pensamento desse jurista, o direito à origem
genética é direito da personalidade, e não se confunde com a filiação.

3.1.1. Nome

O nome é o elemento de configuração da posse do estado de filho cuja


verificação é mais difícil de ser feita. As relações fáticas às quais se pretende
emprestar juridicidade através da construção do conceito de posse do estado de
filho são marcadas pela afetividade entre pai/mãe e filho. Dessa forma, muitas vezes
o relacionamento se constrói de maneira informal, sem que seja realizado o registro
do filho com o nome do pai ou mãe afetivos.

Por conta disso, a ausência da utilização, pela criança, do nome do pai ou da


mãe não desconfigura a posse do estado de filho. A questão do nome está mais
ligada à denominada “parentalidade registral” (ou “jurídica”), sendo que

a doutrina não dá maior importância a este elemento, dizendo não sê-lo


essencial para a configuração da posse de estado de filho, visto que, muitas
vezes, o filho não utiliza o nome de seu pai, porém, restam caracterizados
os outros dois elementos, quais sejam, o trato e a fama, sendo que a
ausência do primeiro não pode ser considerada capaz de determinar a
desfiguração da posse de estado de filho (ANDERLE, 2002, p. 14).

3.1.2. Tratamento

O tratamento, por sua vez, é de destacada importância para a configuração


da posse do estado de filho. Ressalta, aqui, a dimensão afetiva da relação mantida
entre pais e filhos, dado que o tratamento dispensado por aqueles em relação a
estes não diz com a certeza da origem genética, mas com os laços de afeto que
mantêm unidos os elementos do ente familiar.
Quando os pais tratam as crianças que estão sob sua guarda como filhos,
configura-se o “tratactus”. Cuidados diários como a provisão de alimentos, roupas,
moradia, educação e lazer são fatos que denotam uma relação parental/filial, que se
diferencia, assim, do tratamento dirigido a uma outra criança qualquer, estranha à
relação ali constituída.

Paulo Lôbo (2010, p. 234) conceitua o tratamento como “comportamento dos


parentes aparentes: a pessoa é tratada pelos pais ostensivamente como filha, e esta
trata aqueles como seus pais”. Tal definição atenta para a necessidade de uma
contrapartida por parte dos filhos, ou seja, não basta que os pais tratem a criança
como sua filha, é necessário que o infante lhes dirija tratamento recíproco,
reconhecendo naquelas pessoas seus pais.

3.1.3. Fama

A fama, por fim, é o elemento que mais condiz com a necessidade de


aparência da relação de filiação. É o aspecto público, notório, social do estado de
filiação. Consiste na convicção que a sociedade tem de que haja vínculo parental
entre aquelas pessoas. Para tanto, é necessário que se preceda, por óbvio, pelo
tratamento.

Consiste, portanto, a fama na percepção causada no grupo em que se


encontra inserta a família de que entre pais e filhos existem ligações que os
identifiquem como tais. Para tanto, é necessário que estejam presentes fatores tais
como a duração daquela relação, além da reiteração do tratamento; desse modo,
meros eventos episódicos não são suficientes para que se possa afirmar que restou
configurada a filiação socioafetiva entre pais e filhos.

Vai, nesse sentido, a lição de Maria Berenice Dias (2007, p. 334): “reputatio –
[o filho] é conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais.
Trata-se de conferir à aparência os efeitos de verossimilhança que o direito
considera satisfatória”.
3.2. Espécies de parentalidade socioafetiva

3.2.1. Adoção

A adoção é instituto que possui, em suas raízes, um sentido muito mais


religioso do que afetivo. Destinada a possibilitar a continuidade do culto aos deuses
lares em caso de ausência de filhos naturais, tem sua origem na Roma antiga. O
escopo da adoção, nesse tempo, era o de “proporcionar prole civil àqueles que não
a têm consanguínea” (RODRIGUES, 2006, p. 336).

O antigo Código Civil brasileiro, como anteriormente mencionado, dispensava


um tratamento notadamente patrimonialista aos institutos do Direito de Família, e
não era diferente no que respeita à adoção. No vetusto diploma, figuravam
dispositivos que continham regras inimagináveis nos dias atuais, como o art. 374,
que permitia a dissolução do vínculo da adoção, e o art. 377, que excluía os filhos
adotivos da sucessão hereditária quando houvesse filhos legítimos, legitimados ou
reconhecidos.

A Constituição de 1988 eliminou as distinções entre os filhos de diferentes


origens, não só quanto à denominação mas também quanto ao tratamento a eles
dirigido tanto pela família quanto pela legislação. Ocorreu, a partir disso, a
valorização da dimensão afetiva da adoção, pois

a total igualdade de direitos entre os filhos biológicos e os que foram


adotados demonstra a opção da ordem jurídica brasileira, principalmente
constitucional, pela família socioafetiva. A filiação não é um dado da
natureza, e sim uma construção cultural, fortificada na convivência, no
entrelaçamento dos afetos, pouco importando sua origem. Nesse sentido, o
filho biológico é também adotado pelos pais, no cotidiano de suas vidas
(LÔBO, 2010, p. 270).

A adoção pode ser compreendida, assim, como manifestação da


parentalidade socioafetiva. A pessoa que adota uma criança sabe que não existe um
vínculo biológico entre elas, porém esse fato não a impede de se portar como
pai/mãe e de tratar o infante como filho. O que leva alguém a adotar uma criança,
hodiernamente, não é mais uma necessidade de cunho religioso ou patrimonial, mas
de simples e genuína vontade de dar e receber afeto.
O regramento do instituto não se encontra mais no Código Civil, mas no
Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabeleceu regras avançadas e
inovadoras no tratamento do tema em consonância com o que dispõe a
Constituição.

3.2.2. Adoção à brasileira

A chamada “adoção à brasileira”, diferentemente da adoção acima explanada,


não se dá através de um processo acompanhado e reconhecido pelo Estado. Trata-
se de crime previsto no Código Penal Brasileiro, incluído no Capítulo destinado aos
“crimes contra o estado de filiação”. O tipo penal, aduzido pelo art. 242 do CP,
consiste em “dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem;
ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao
estado civil” (BRASIL, 1940).

É interessante notar que, a despeito da pena de dois a seis anos de reclusão


cominada para o autor de tal crime, existe uma atenuante, caso o crime seja
“praticado por motivo de reconhecida nobreza”. Nesse caso, a pena será não mais
de reclusão, mas de detenção, e por período inferior, de um a dois anos, sendo
facultado ao magistrado deixar de aplicar a pena.

Sustenta Cezar Roberto Bitencourt (2007, p. 151) que “sempre que os fatos
permitirem a conclusão da absoluta desnecessidade da pena, quer pela nobreza da
ação, quer pelas consequências que produziram, seja recomendável a isenção de
pena, concedendo-se o que a doutrina denomina perdão judicial”.

Fica clara, através da análise da atenuante mencionada, a opção do


legislador pelo reconhecimento de uma situação fática corriqueira no Brasil, país no
qual os trâmites legais do processo de adoção são demorados e repletos de
burocracia, o que leva muitos adotantes à desistência.

Embora a adoção à brasileira (também denominada, oportunamente, de


“adoção afetiva” por Maria Berenice Dias) seja marcada pela informalidade, seus
efeitos são permanentes. Se houver sido motivada por objetivo torpe (caso em que
não se aplica o abrandamento da motivação nobre contida na atenuante do art. 242
do CP), pode ser efetivada sua reversão, através da devida adequação do registro
de nascimento. Caso contrário, no entanto, torna-se “imperativo prestigiar a posse
de estado de filho de que desfruta o registrado, na medida em que se configurou a
filiação socioafetiva” (DIAS, 2007, p. 437).

Desse modo, não pode ser feita a desconstituição posterior do registro de


nascimento levado a cabo por pai/mãe que sabia da inexistência de vínculo biológico
com a criança ao tempo do registro. Tal vedação tem por base o princípio do nemo
auditur propriam turpitudinem allegans (literalmente “ninguém é ouvido alegando a
própria torpeza”, ou “a ninguém é dado valer-se da própria torpeza”).

A possibilidade de desconstituição a pedido do filho, no entanto, é objeto de


divergência doutrinária. Para Maria Berenice Dias (2007, p. 437), “ainda que a
desconstituição seja obstaculizada ao pai, igual impedimento não existe com relação
ao filho, que pode fazer uso da ação anulatória do registro”. O professor Paulo Lôbo
(2010, p. 270), a seu turno, afirma que tal entendimento só é possível devido “à falta
de percepção correta dessa mudança de paradigmas da filiação [da biológica para a
socioafetiva]”.

3.2.3. Reconhecimento voluntário

O reconhecimento voluntário de filho também pode ser considerado como


uma modalidade de filiação socioafetiva. Se não como modalidade, ao menos como
expressão do instituto, pois não demanda comprovação de ligação genética entre
pai/mãe e filho.

O ato de reconhecer um filho como seu por livre e espontânea vontade é


demonstrativo da existência de uma relação afetiva entre quem reconhece e de
quem se reconhece a parentalidade. Ao decidir estabelecer uma ligação de filiação
entre si e a criança, aquele que reconhece a parentalidade se mostra disposto a
dedicar àquela todos os cuidados que se esperam de um pai/mãe para com um filho.

Existem, no direito civil pátrio, diversas formas de se levar a cabo o


reconhecimento voluntário de um filho. O art. 1.603 do CC enuncia a primeira delas,
constante do registro do nascimento em cartório. Ao registrar um filho como seu,
aquele que promove o registro reconhece a parentalidade da criança ali registrada.

A segunda hipótese é a de reconhecimento indireto. Tal situação ocorre


quando o pai ou mãe declara a parentalidade através de escritura pública ou escrito
particular. Caso não se possa extrair de tais documentos uma declaração
indiscutível, não poderão estes ser levados diretamente para averbação no registro,
servindo apenas como um meio de prova para a ação de investigação de
paternidade (LÔBO, 2010).

Pode também ser reconhecida a parentalidade de maneira voluntária através


da inserção de declaração nesse sentido em testamento. Nesse caso, a revogação
do testamento não revoga também o reconhecimento da filiação, regra enunciada
pelo art. 1.610 do CC (“o reconhecimento não pode ser revogado, nem mesmo
quando feito em testamento”) (BRASIL, 2002), que repete o disposto no caput do art.
1.609 (“o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável [...]”)
(BRASIL, 2002). Além disso, a invalidação do testamento também não possui o
condão de invalidar o reconhecimento de filiação nele contido, a não ser que a
declaração seja nula ou anulável.

Por fim, existe a possibilidade de reconhecimento de filho através de


manifestação direta e expressa perante o juiz. Conforme dispõe o inciso IV do art.
1.609 do CC, não é necessário que o reconhecimento seja o objeto único ou
principal da declaração que o contenha; este pode ser incidental, contanto que
realizado de maneira clara.

Quanto à eficácia do reconhecimento, reportamo-nos à lição de Caio Mário da


Silva Pereira (2006, p. 353), para quem “o ato de identificação da paternidade tem
efeito retrooperante (ex tunc), vale dizer que gera as suas consequências, não da
data do ato, mas retroage até o dia do nascimento do filho, ou mesmo, de sua
concepção, se isto condisser com seus interesses”.

3.2.3.1. Inseminação artificial heteróloga

A partir do desenvolvimento da tecnologia de reprodução humana assistida,


duas novas formas de inseminação artificial surgiram: homóloga e heteróloga. Na
homóloga o material genético utilizado é de ambos os pais; na heteróloga, o óvulo
da mãe é fecundado pelo sêmen de um doador anônimo.

A paternidade advinda da inseminação artificial heteróloga é, por óbvio,


socioafetiva; o pai sabe não possuir vínculo biológico com a criança que está prestes
a ser gerada, mas manifesta sua vontade de criar aquele filho como seu. Trata-se,
assim, de uma espécie de reconhecimento de paternidade, que ocorre antes mesmo
de a criança ser concebida, de modo que não cabe retratação posterior ou
dissolução do vínculo de filiação estabelecido.

3.2.4. Filho de criação

A figura do “filho de criação”, tal como ocorre com a adoção à brasileira, é


situação fática corriqueira no País. Embora a legislação infraconstitucional não tenha
se dedicado ao tema, trata-se de fato que merece a atenção dos operadores do
Direito de Família e que deve encontrar guarida no sistema judiciário nacional.

A relação estabelecida entre pais e filhos de criação já foi referida como “a


filiação socioafetiva por excelência” (LUCAS, 2010, p. 50). De fato, trata-se de
ligação sem vínculos biológicos ou registrais, na qual predomina o afeto pura e
simplesmente. A partir do momento em que uma pessoa se dispõe a tratar uma
criança com a qual sabe não possuir vínculos outros que não o afeto como se seu
filho fosse, é possível afirmar que ocorre aí a maneira mais despretensiosa e
desinteressada de estabelecer um laço de filiação.

A ausência de regramento legal do instituto, no entanto, ainda gera injustiças


no Brasil quanto ao papel de filho socioafetivo exercido pelos chamados filhos de
criação. A própria denominação pode ser encarada como discriminatória, em certa
medida, pois termina por diferenciar tal filho de possíveis outros filhos biológicos
e/ou registrais, o que é vedado, como já foi visto, tanto pela Constituição quanto pelo
Código Civil brasileiros.

Em recente decisão do TJRS, foi negado o reconhecimento da filiação


socioafetiva na relação estabelecida entre pais e uma filha de criação. Tal
entendimento vai de encontro à moderna doutrina do direito de família brasileiro,
contrariando tendências jurisprudenciais de tribunais de todo o país, inclusive do
próprio tribunal prolator do acórdão. Na decisão, foi afirmado que “a condição de
‘filho de criação’ não gera qualquer efeito patrimonial, nem viabiliza o
reconhecimento de adoção de fato” (TJRS, AC 70028442630, Relator Des. Ricardo
Raupp Ruschel, 2009 apud LUCAS, 2010:51).

No entendimento da jurista Maria Berenice Dias (2007, p. 441), “a pejorativa


complementação ‘de criação’ está mais que na hora de ser abolida”. Para tanto,
sugere a mencionada autora que sejam desfeitos os óbices impostos por parte dos
tribunais do país à interposição de ações de investigação da paternidade afetiva, o
que possibilitaria, nesses casos, a adoção dos filhos de criação pelos pais.

3.3. Efeitos da parentalidade socioafetiva

A parentalidade socioafetiva, como até agora vem sendo demonstrado, é


situação fática verificável com a observação da realidade. A exigibilidade dos direitos
e deveres dela provenientes, no entanto, só exsurge com o seu reconhecimento,
que se dá através de ação judicial.

Os efeitos jurídicos do reconhecimento da parentalidade socioafetiva se


assemelham ao reconhecimento da parentalidade consanguínea. Para Mariana
Andrade Sobral (2010, p. 2), os efeitos pessoais e patrimoniais são os mesmos.
Outro referencial a ser utilizado é o dos efeitos da adoção (WELTER, 2003). Esse
último nos parece ser mais apropriado, pois leva em consideração os efeitos
atinentes, por exemplo, aos impedimentos matrimoniais quanto aos membros da
família biológica e à impossibilidade de desconstituição posterior do vínculo da
parentalidade.

3.3.1. Qualidade de filho

O reconhecimento da parentalidade socioafetiva imputa à pessoa a qualidade


de filho. Esse fato carrega consigo três consequências distintas: a subsunção ao
poder familiar, o dever de alimentos e a participação na sucessão. Todas estas
representam uma via de mão dupla entre pais e filhos, pois constituem direitos e
deveres para uns e outros.

O poder familiar, como já exposto anteriormente, passou por significativas


mudanças com a transição do antigo para o moderno conceito de família. Antes
denominado de pátrio poder e consistente numa série de prerrogativas pertencentes
ao pai, o agora chamado poder familiar não comporta mais apenas direitos dos pais
com relação aos filhos. Trata-se, sobretudo, de um dever dos pais de prestar todo
cuidado e assistência, e um direito dos filhos de obter tais benefícios dos pais. Além
disso, subsistem, evidentemente, deveres de respeito e obediência dos filhos para
com os pais, aos quais cabe a chefia da entidade familiar. No caso da parentalidade
socioafetiva, ocorre um desligamento da subsunção do filho ao poder familiar de sua
família biológica e este passa, então, a ser submetido ao poder familiar de seus pais
socioafetivos.

O dever de prestar alimentos diz respeito tanto aos pais quanto aos filhos.
Aos pais, enquanto os filhos são ainda incapazes de prover o próprio sustento
através de suas forças; aos filhos, quando os pais, já com avançada idade, não
sejam mais capazes de suprir suas necessidades básicas. Esse dever encontra
guarida na solidariedade devida aos membros do ente familiar entre si, além de
homenagear o princípio da dignidade da pessoa humana. No que diz respeito à
parentalidade socioafetiva, a grande questão é se haveria a possibilidade de o filho
socioafetivo exigir prestação de alimentos dos pais biológicos. Alguns autores
entendem que tal coisa não seria possível, pois o reconhecimento da parentalidade
socioafetiva leva a um completo desligamento da família biológica, entendimento
esse ao qual nos filiamos.

O direito sucessório é outra consequência decorrente da qualidade de filho


levada a cabo pelo reconhecimento da parentalidade. O filho socioafetivo tem direito
a participar da herança dos pais, assim como aqueles são seus herdeiros. A
polêmica, nesse caso, é semelhante à existente quanto à prestação de alimentos:
poderia o filho socioafetivo herdar dos pais biológicos? Nesse caso, igualmente nos
filiamos ao entendimento de que tal coisa não seria possível, pelo mesmo motivo: o
desligamento ocorrido com a família biológica.

3.3.2. Ausência de vínculo com os pais biológicos

Importante efeito advindo do reconhecimento da parentalidade socioafetiva é


a perda de qualquer vínculo entre o filho e sua família biológica. Trata-se, na visão
de Silvio Rodrigues (2006, p. 346), da “mais importante inovação” trazido pelo
Estatuto menorista. Tal como ocorre na adoção, conforme dispõe o art. 41 do ECA,
todos os direitos e deveres dos filhos naturais são imputados aos filhos
socioafetivos. A única diferença é que persistem as vedações relativas ao
matrimônio, a ser explicitado adiante, no tópico seguinte.
Ao contrário do sistema anterior, que previa uma vinculação dupla, com a
família adotante e a família de origem, a nova sistemática determina um
desligamento total da família biológica. “A extinção do vínculo de consanguinidade,
na adoção, ressalta a opção que fez o direito brasileiro para a família socioafetiva e
para a filiação fundada na afetividade, pouco importando sua origem” (LÔBO, 2010,
p. 286).

A ausência de vínculo é o que justifica, por exemplo, a impossibilidade de o


filho socioafetivo exigir alimentos dos pais biológicos (ou a eles devê-los) e de
ingressar na sucessão daqueles no papel de herdeiro (ou o inverso).

Ao dissertar sobre o tema, no tocante à adoção, Maria Helena Diniz (2007, p.


494) afirma que “os vínculos de filiação e parentesco anteriores cessam com a
inscrição da adoção no registro civil. Nem mesmo, como já dissemos, a morte do
adotante restabelecerá o poder familiar dos pais naturais”. Tal entendimento da
respeitada autora não é pacífico, no entanto. Já foi decidido que, no caso de morte
dos pais adotivos, cabe à criança de tenra idade o direito de exigir alimentos dos
pais biológicos (STJ, REsp 127.541/RS, Relator Min. Eduardo Ribeiro, DJU
28/08/2000, apud LUCAS, 2010:64).

Embora a corrente que defende a manutenção de um certo vínculo entre a


criança e a família biológica – a despeito da adoção – tenha em vista o melhor
interesse da criança, esse precedente não deixa de ser perigoso. A filiação em
relação aos pais socioafetivos não pode ser desfeita, pois

promove a integração completa do adotado na família do adotante, na qual


será recebido na condição de filho, com os mesmos direitos e deveres dos
consanguíneos, inclusive sucessórios, desligando-o, definitiva e
irrevogavelmente, da família de sangue, salvo para fins de impedimentos
para o casamento (GONÇALVES, 2006, p. 348).

Admitir a possibilidade de desfazimento do vínculo da filiação poderia, assim,


representar ameaça às conquistas obtidas nessa seara no tocante aos direitos e
deveres plenos dos filhos e pais socioafetivos.
3.3.2.1. Impedimentos matrimoniais

Como já afirmado acima, embora a filiação socioafetiva signifique um quase


total desligamento da pessoa com a família biológica, é necessário ressalvar que
essa origem produz o efeito de impedimento matrimonial. Dessa forma, uma pessoa
não pode casar com alguém com quem tenha laços sanguíneos próximos, mesmo
que não haja qualquer sentimento de pertença a uma mesma família.

Essa vedação, de cunho fortemente moral, está presente em praticamente


todas as sociedades. O “tabu do incesto” é tema recorrente de estudos
antropológicos que indicam ser esta uma vedação importante na distinção do ser
humano para com os outros animais.

Na legislação brasileira, o dispositivo que disciplina a questão é o art. 1.521


do Código Civil, que dispõe:

Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o


parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com
quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV -
os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau
inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de
homicídio contra o seu consorte (BRASIL, 2002).

Também o ECA faz menção à matéria, no art. 41: “A adoção atribui a


condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive
sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os
impedimentos matrimoniais” (BRASIL, 1990).

3.3.3. Direito de investigação da origem biológica

O direito ao conhecimento da origem genética, ou biológica, é um dos pontos


mais controversos no que concerne ao reconhecimento da parentalidade
socioafetiva. Muitas vezes confundido com o direito à filiação, com o qual não
coincide, o direito à origem genética é um direito da personalidade, diferentemente
da filiação, que diz respeito a direito de família.

O estado de filiação consiste na existência de vínculos afetivos, como já


reiteradamente exposto. Para tanto, se faz necessária a comprovação da posse do
estado de filho, no intuito de ver reconhecida pelo Direito uma situação que já existe
de fato.

O direito à origem genética, por sua vez, é relativo ao conhecimento da


identidade dos pais biológicos com o objetivo de prevenção de doenças e para o
estabelecimento do impedimento matrimonial entre a pessoa e seus parentes
biológicos. Não se trata, assim, da reivindicação de uma ligação parental, mas
unicamente da possibilidade de obter informações que, em última instância, dizem
respeito ao direito à vida do filho socioafetivo.

A dicção do art. 48 do ECA é clara ao determinar que “o adotado tem direito


de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo
no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18
(dezoito) anos” (BRASIL, 1990).

A única hipótese na qual o exercício do direito ao conhecimento da origem


biológica se confunde com a busca pelo estado de filiação é o caso em que a
pessoa não saiba quem são seus pais biológicos e não possua nenhum vínculo de
filiação socioafetiva. Nesse caso, é possível a busca pela filiação com base na
origem genética, como preleciona Paulo Lôbo (2004, p. 13):

toda pessoa humana tem direito inalienável ao estado de filiação, quando


não o tenha. Apenas nessa hipótese, a origem biológica desempenha papel
relevante no campo do direito de família, como fundamento do
reconhecimento da paternidade ou da maternidade, cujos laços não se
tenham constituído de outro modo.

3.3.4. Impossibilidade de desconstituição posterior

A impossibilidade de desconstituição da parentalidade socioafetiva também


não é ponto pacífico na doutrina e jurisprudência familiaristas brasileiras. Embora já
seja consolidado tanto legal quanto jurisprudencial e doutrinariamente não ser
possível desfazer a parentalidade formada através da adoção e da inseminação
artificial heteróloga, as outras formas de aquisição da parentalidade socioafetiva,
como a adoção à brasileira e o “filho de criação”, ainda não gozam plenamente da
garantia de indissolubilidade.
Tal entendimento não merece prosperar na cultura jurídica pátria. O vínculo
da filiação é indissolúvel, pois atinente a um direito da personalidade. Mesmo que
cessem os elementos que servem de suporte fático ao surgimento da filiação
(convívio, afeto, cuidado), esta não fenece; seus efeitos se protraem no tempo a
despeito de não mais existirem os elementos que lhe servem por base.

É contundente, nesse sentido, a lição de Roberto Paulino de Albuquerque


Júnior (2007, p. 72), que merece ser aqui transcrita na íntegra:

Tem-se, assim, uma situação existencial plenamente consolidada, cuja


ruptura significaria evidente violação à personalidade dos indivíduos
envolvidos. Se concebemos, para o direito geral de personalidade, uma
tutela eminentemente promocional e ampla, destinada à garantia do
adequado desenvolvimento do ser humano, não podemos compactuar
apenas com consequências meramente reparatórias e sancionatórias:
emerge, do próprio sistema de tutela da personalidade, uma vedação a tais
situações de lesão, que conduz à invalidade absoluta de qualquer tentativa
de desconstituição do estado de filiação.

É de vital importância a compreensão dessa vedação, pois diz respeito à


equiparação enunciada pelo art. 227, §6º da Constituição. Permitir que se
desconstitua o vínculo da filiação, por qualquer motivo, é colocar em pé de
desigualdade tipos distintos de origem do filho (seja biológica, adotiva ou
socioafetiva), o que é expressamente proibido pela Carta Política.

Não se pode negar que por vezes os elementos que sustentam a relação
entre pais e filhos terminam por desaparecer. Desentendimentos das mais variadas
ordens acontecem e é inevitável que, em alguns casos, a convivência se torne
insuportável. Não há que se recorrer, no entanto, ao desfazimento da relação de
filiação; a depender do caso, podem ser tomadas as medidas de deserdação ou
perda do poder familiar.

3.4. Elementos processuais

Assim como o direito substantivo, a processualística civil brasileira não possui


previsões expressas acerca da parentalidade socioafetiva. Alguns elementos do
processo civil, no entanto, podem ser aplicados no reconhecimento do citado
vínculo, através da analogia.
3.4.1. Ação de investigação da parentalidade socioafetiva

Embora o Código de Processo Civil – CPC – não contenha previsão ou


regramento acerca da ação de investigação de parentalidade socioafetiva, os
tribunais têm aceitado a interposição de ação investigatória de paternidade para
esse fim. Malgrado a referida ação se destine ao reconhecimento forçado da
paternidade biológica, é possível permitir que, através da analogia, a utilização da
investigatória de paternidade se preste para a verificação do vínculo socioafetivo.

Acerca da ação de investigação de paternidade, afirma Fernando Simas Filho


(2008, p. 70) que se trata de “uma ação declaratória; ela tem por escopo a
declaração judicial de que o autor é filho do réu. Proferida a sentença em favor do
filho, a sua posição fica definida. (...) tem direito ao uso do patronímico do pai; de ser
alimentado e educado por ele e de suceder-lhe”.

Uma possível alternativa é também proposta por Jédison Daltrozo Maidana


(2004, p. 75): “levando em consideração que o fato de criar alguém como filho e
apresentá-lo à sociedade como tal é, de certa forma, reconhecer-lhe a paternidade,
também parece apropriada a utilização de ação declaratória de reconhecimento de
paternidade, especialmente para os casos nos quais exista início de prova escrita”.

Não nos parece, no entanto, que o nomen juris atribuído à ação interposta
seja suficiente para lhe determinar a viabilidade. Compete ao Judiciário decidir
acerca do direito que lhe é apresentado a despeito de haver norma expressa sobre o
tema ou não; nisto consiste a vedação ao non liquet estabelecida pelo art. 126 do
Código de Processo Civil. De tal modo, não seria justo que a inexistência de um
nome (ou a utilização de um nome considerado incorreto) para a ação de
reconhecimento da parentalidade socioafetiva inviabilize o acesso do postulante a tal
direito.

Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

Nessa senda, não se pode olvidar que a construção de uma relação


socioafetiva, na qual se encontre caracterizada, de maneira indelével, a
posse do estado de filho, dá a esse o direito subjetivo de pleitear, em juízo,
o reconhecimento desse vínculo, mesmo por meio de ação de investigação
de paternidade, a priori, restrita ao reconhecimento forçado de vínculo
biológico (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2011b).
3.4.2. Prova do vínculo de parentalidade

A prova apta a demonstrar a existência do vínculo da parentalidade


socioafetiva é qualquer uma das espécies admitidas em direito. Dentre elas, a prova
testemunhal é frequentemente aludida pela doutrina como uma das mais
importantes, pois está intimamente ligada à dimensão social da parentalidade
socioafetiva.

Além da prova testemunhal, as provas documentais são também relevantes


para a verificação da afetividade na relação parental.

Muitas vezes essas provas são gravadas acidentalmente, como num


boletim escolar visado pelo pretenso pai, pela representação ou assistência
na lavratura de documentos públicos ou privados de compra e venda, enfim,
por uma série de fatos da vida que, acidentalmente documentados, servem
para fundamentar o pedido e dar maior credibilidade à prova testemunhal
(MAIDANA, 2004, p. 77).

A utilização do exame de DNA, nesses casos, é por óbvio completamente


inútil. A partir do momento em que se intenta estabelecer a demonstração de uma
relação afetiva, de nada vale um teste cujo resultado apenas certifica a vinculação
genética. Muitos julgadores, no entanto, ainda recorrem a tal expediente quando se
lhes apresentam ações de investigação de parentalidade socioafetiva, o que
representa claro retrocesso nessa questão.

3.4.3. Imprescritibilidade

A pretensão de reconhecimento da parentalidade socioafetiva é imprescritível.


Tal afirmação advém da disposição do art. 27 do ECA: “O reconhecimento do estado
de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser
exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o
segredo de Justiça” (BRASIL, 1990).

Entende Washington de Barros Monteiro (2003, p. 121) que

essa imprescritibilidade descansa na conexão existente entre o interesse do


indivíduo e o interesse do Estado. Além disso, o status familiae implica
coincidência de direitos e deveres, que impede que alguém se isente de
seus deveres, despojando-se dos direitos que porventura lhe assistam.
A qualquer tempo, portanto, poderá a pessoa ingressar com ação de
reconhecimento da parentalidade socioafetiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As vicissitudes da sociedade acarretam transformações também no seio dos


entes familiares, que a compõem. Tais modificações demandam a constante
atualização e aperfeiçoamento do direito de família como um todo.

Inúmeros institutos do direito de família passam por constantes mutações,


sendo o sistema de filiação um deles. Marcado por uma visão patrimonialista e
conservadora na antiga sistemática civil estabelecida pelo Código de 1916, o
sistema de filiação foi fortemente modificado a partir do advento do Código de 2002,
que implementou um sistema único por força de disposição constitucional.

Tal sistema, que veda discriminações com base na origem da filiação, é um


claro reflexo da repersonalização do direito civil operada pela Constituição de 1988.

O princípio da afetividade assume, então, papel fundamental no surgimento


de um novo paradigma: o da parentalidade socioafetiva. Relação essa antes
marcada por um aspecto predominantemente patrimonialista, a parentalidade (ou
filiação) passou a primar pela relação de afeto verificada entre pais e filhos. Mais do
que um conjunto de direitos do pai em relação aos filhos, o poder familiar representa
agora uma série de deveres dos pais para com sua prole.

Verificamos, com a feitura do presente trabalho, que a avaliação dos


percalços travados pelo instituto da filiação através da história da legislação
familiarista brasileira, em conjunto com os princípios do direito de família, permite a
construção do conceito de parentalidade socioafetiva, como resposta ao vazio
legislativo referente a essa situação corriqueira em nosso meio.

Foi possível constatar, também, que alguns dispositivos legais constantes dos
textos da Constituição, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente
permitem afirmar que o instituto da parentalidade socioafetiva foi recepcionado,
mesmo que de maneira oblíqua, no ordenamento jurídico pátrio. Se não
recepcionado, ao menos não vedado; desse modo, ao se proceder com uma
interpretação conforme a Constituição dos artigos contidos nos referidos diplomas,
exsurge a possibilidade de construção do conceito ora versado.
Observamos também, através de consulta à jurisprudência de tribunais
inferiores e superiores, que o tema vem sendo por eles enfrentado já há algum
tempo. Permanece, no entanto, um tratamento desigual dispensado pelas cortes aos
diferentes casos (o que soeria ocorrer, à míngua de dispositivos legais que tratem
diretamente do assunto). A ausência de manifestação da mais alta corte do país, o
STF, em relação à primazia do paradigma da parentalidade socioafetiva em
detrimento da verdade biológica é ponto que permanecerá aberto, deixando espaço
para a confecção de outros trabalhos sobre o assunto, enquanto não houver o
julgamento do Pretório Excelso.

Pudemos notar, ainda, que a parentalidade socioafetiva não é tratada na


maior parte dos manuais de direito de família; seu estudo se circunscreve a
publicações especializadas, sejam elas livros, revistas ou artigos na internet. Tal
fato revela a importância da necessidade da produção de uma alteração na
legislação civil de modo a amparar uma situação que gera efeitos importantes na
relação parental-filial, tanto de ordem afetiva e psicológica quanto de ordem
patrimonial.

Em vista da ausência de regulação legal do instituto, atentamos para o fato de


que a doutrina e a jurisprudência terminaram por aplicar à parentalidade
socioafetiva, por analogia, regras relacionadas à adoção. Desse modo, malgrado os
elementos necessários para a constituição de uma e outra sejam divergentes, assim
como o processo que leva ao reconhecimento, os efeitos da adoção e do
reconhecimento da parentalidade socioafetiva são praticamente os mesmos,
ressalvadas as particularidades de cada instituto.

Foi possível, por meio da redação da presente monografia, percorrer uma


parte da história e dos elementos doutrinários nos quais está fulcrado o instituto da
parentalidade socioafetiva. Cumpre ressaltar, no entanto, que não se trata de tema
pacífico nem na doutrina nem na jurisprudência pátrios, o que dá margem a
diferentes interpretações e alimenta o debate em torno do assunto.
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