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Os personagens Lex Luthor e Alfred Pennyworth me causaram certa estranheza. Para quem
esteve acostumada com Michael Caine como Alfred nas produções anteriores de Batman (de
Christopher Nolan), ver Jeremy Irons interpretando um “mordomo” entediado e ranzinza foi
bem esquisito. Não menos estranho foi o jovem Lex Luthor, mas a atuação de Jesse
Eisenberg compensou, de certo modo, a estranheza. Dei muitas risadas com as suas frases
e trejeitos. Um grande ator, um ótimo vilão.
O filme traz o debate sobre as consequências dos atos dos heróis em sociedade e a
necessidade de controle dos mesmos por parte do governo dos EUA, também levantado pelo
Capitão América: Guerra Civil (2016), que estreará no dia 28 de abril. O argumento do
governo, na figura da senadora Finch, que é reforçado pelo discurso midiático e da sociedade,
assenta-se no julgamento do Homem de Aço pela destruição e mortes provocadas pelos seus
inimigos, principalmente em relação à batalha que travou há dois anos com General Zod, vilão
da narrativa anterior (Man Of Steel). A senadora argumenta que Superman toma decisões
unilaterais sobre as suas ações, causando uma série de consequências negativas, ainda que
salve algumas vidas. Ela evoca um discurso amparado na democracia para afirmar sobre a
necessidade de diálogo entre o governo e o herói, afim de evitar danos à sociedade. Finch
convoca uma audiência em que o Superman se faz presente, mas uma emboscada provoca
uma explosão no tribunal. Nem preciso dizer quem planejou.
Sobre essa discussão, que considero ser o elemento central de Batman vs Superman
(e não somente a luta entre os super-heróis), arrisco a hipótese de que o cinema vem
abordando, através das produções recentes sobre heróis, alguns debates sociais
importantes. Em geral, percebo que os heróis, tanto em suas identidades conhecidas
como nas secretas, se caracterizam por sujeitos de algum modo desviantes ou
diferentes do restante da sociedade, das “pessoas comuns”. Seja porque são
alienígenas, mutantes, seres mitológicos, frutos de experiências de laboratório ou
órfãos ricos e com um amplo aparato tecnológico, os heróis compensam sua
“inadequação” com ações notáveis que os tornam aceitáveis (e necessários) à
sociedade, pois esta sempre busca confiar sua segurança a seres ou entidades que
demonstram poderes. Mas inevitavelmente chega um momento em que nem mesmo
eles escapam do júri popular. O julgamento de Superman e a postura do governo
norte-americano me remeteram ao primeiro capítulo do livro Estado de Exceção, do
filósofo italiano Giorgio Agamben, “O estado de exceção como paradigma de
governo”. Neste capítulo, o filósofo faz uma retomada da relação entre o estado de
exceção e a soberania, afirmando que a exceção se localiza na fronteira entre a
política e o direito, e que o estado de exceção carece de uma teoria, já que ainda hoje os
estados se baseiam numa velha máxima de que a necessidade não tem lei (necessitas legen
non habet) e, portanto, não pode ter forma jurídica. Diz o filósofo: “Somente erguendo o véu
que cobre essa zona incerta poderemos chegar a compreender o que está em jogo na
diferença - ou na suposta diferença - entre o político e o jurídico e entre o direito e o
vivente. E só então será possível, talvez, responder a pergunta que não para de ressoar
na história da política ocidental: o que significa agir politicamente?” E assim: o Superman
age politicamente?
A relação que estabeleço entre essa explanação de Agamben e o filme coloca alguns
questionamentos: teriam os heróis o direito de interferir na sociedade? Suas ações têm algum
limite? As consequências de seus atos podem provocar insurgências? Quais os aspectos
políticos de suas atitudes? Bem sabemos que alguns filmes já vêm demonstrando que sim,
suas atitudes trazem efeitos que nem sempre conseguem controlar sozinhos ou num grupo
restrito. Enquanto se limitavam a pequenos salvamentos aleatórios, coibindo crimes urbanos
e combatendo delinquentes, eram muito benquistos. Mas talvez algo tenha mudado a partir
do momento em que seus atos passaram a se relacionar com iniciativas governamentais e
interesses corporativos, seja a seu favor ou contra. Os questionamentos que se colocam aos
heróis podem ser estendidos também ao Estado e às corporações.
A questão biopolítica (uma política sobre a vida), cuja máxima do Estado na sociedade atual
é “fazer viver e deixar morrer”, de acordo com o filósofo francês Michel Foucault (Nascimento
da Biopolítica, Ed. Martins Fontes, 2008), pode ser acrescentada ao debate. No que tange à
segurança pública, quando a polícia decide matar um “criminoso” levando com ele as vidas
de outras pessoas (em casos de sequestro ou terrorismo, por exemplo), essas mortes são
justificáveis porque cometidas pelo Estado (que é soberano). Mas quando cometidas pelo
Superman, como é o caso? São condenáveis? Bom, a minha ideia aqui não é dar respostas,
mas acrescentar algumas contribuições teóricas para o debate que o filme apresenta.
Voltando ao Batman vs Superman, as Marthas como elo entre os dois protagonistas e
resolução para a batalha entre os heróis me pareceu um tanto fraco, enquanto argumento
para que eles passassem a lutar do mesmo lado. O motivo de Batman para atacar o Homem
de Aço (fazê-lo sentir como é ser mortal, sentir dor e medo), embora compreensível, não me
convence de ser outra coisa que não ressentimento. A ideia de que “mexeu com a mãe,
comprou briga” é bastante clichê e o filme tem potencial para outro argumento, mais plausível
talvez, que justificasse a aliança dos dois personagens, não apenas o ponto de vista dramático
familiar. Na verdade, tal argumento está no filme, mas pareceu mais um fio solto: era Lex
Luthor que os aproximava e o próprio vilão afirma isso (“Bruce Wayne conhece Clark Kent!
Adorei! Adoro aproximar as pessoas.”).
Além disso, não poderia deixar de comentar sobre as personagens femininas do filme (que
não passa no Teste de Bechdel-Wallace, pois elas nem chegam a conversar). A aparição da
~maravilhosa~ Diana Prince, a Mulher Maravilha, apesar de ter sido muito bem representada
pela bela Gal Gadot, não correspondeu às minhas expectativas. Não sei exatamente o que
eu esperava em relação à personagem, mas considerei sua participação um pouco
negligenciada. Talvez eu não tenha entendido bem qual foi a intenção de incluí-la no filme. E
a Lois Lane de Amy Adams novamente sem sal, ainda consegue ser “menos Lois” do que
Kate Bosworth, de Superman Returns (2006).
Por fim, a questão “Deus está morto?” volta à tona, não só em relação à morte do Homem de
Aço (que não me sensibilizou, honestamente), mas na simbologia presente em seu funeral.
Dia desses, eu conversava com um amigo sobre a necessidade das pessoas acreditarem em
um deus e na insuportável ideia de sua inexistência. Quanto tempo as pessoas irão suportar
a morte de Superman? Ele morreu, de fato? Retornará no próximo filme, Liga da Justiça -
Parte 1, em 2017? Quem leu os quadrinhos, sabe a resposta. E certamente Chris Terrio
(roteiro) e Zack Snyder (direção) respeitarão as suas narrativas no próximo filme.
Enfim, a batalha entre Batman e Superman sugere mais uma estratégia de marketing da
Warner Bros. Pictures e da DC Comics para a venda dos produtos relacionados aos heróis,
mas o filme envolve uma série de outras questões e, como mencionei antes, o duelo não
parece ser a questão central da narrativa. Mas foi uma cena muito interessante, assim como
outras contidas nessa bela produção.