Sie sind auf Seite 1von 73

O SEGUNDO CICLO DO SEMINÁRIO SOCIALISMO SOCIALISMO

orçamento participativo e socialismo


E DEMOCRACIA DEDICOU-SE AO EXAME DE olivio dutra
QUESTÕES CONCRETAS QUE ESTÃO SENDO
EM DISCUSSÃO
DISCU maria victoria benevides
POSTAS PARA AS ESQUERDAS NO BRASIL.
A ABORDAGEM DESSAS QUESTÕES JUNTOU
AS URGÊNCIAS DE CURTO PRAZO COM A
PERSPECTIVA HISTÓRICA MAIS LARGA DO
FUTURO. POR ISSO, OS VÁRIOS TEMAS FORAM
TRABALHADOS, SEMPRE, PERGUNTANDO-SE QUAIS
SÃO SUAS INTERAÇÕES COM O SOCIALISMO.
FORAM ABORDADOS TEMAS COMO A RICA
EXPERIÊNCIA – QUE A VÁRIOS TÍTULOS
REPRESENTA UMA ENORME INOVAÇÃO POLÍTICA –
DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO,
O PLANEJAMENTO URBANO, A REFORMA AGRÁRIA
E O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES
SEM-TERRA, AS FORMAS CONTEMPORÂNEAS
DA LUTA SOCIAL, A DECISIVA REVOLUÇÃO
MOLECULAR-DIGITAL E A VIRADA DA
INFORMAÇÃO, E, POR ÚLTIMO, AS COMPLEXAS
RELAÇÕES ECONÔMICAS INTERNACIONAIS NA ERA
DA CHAMADA GLOBALIZAÇÃO.
O EXAME TRAVEJOU, SEMPRE, A EXPERIÊNCIA
DAS LUTAS COM A REFLEXÃO QUE PROCURAVA orçamento

dutra - benevides
PROJETÁ-LAS E ENTENDÊ-LAS NO QUADRO DA
TRANSFORMAÇÃO URGENTE E RADICAL.
NÃO PARA UM DIA QUALQUER POSTERIOR
À REVOLUÇÃO, MAS DIUTURNAMENTE.
participativo
FRANCISCO DE OLIVEIRA e socialismo
O SEGUNDO CICLO DO SEMINÁRIO SOCIALISMO SOCIALISMO

orçamento participativo e socialismo


E DEMOCRACIA DEDICOU-SE AO EXAME DE olivio dutra
QUESTÕES CONCRETAS QUE ESTÃO SENDO
EM DISCUSSÃO
DISCU maria victoria benevides
POSTAS PARA AS ESQUERDAS NO BRASIL.
A ABORDAGEM DESSAS QUESTÕES JUNTOU
AS URGÊNCIAS DE CURTO PRAZO COM A
PERSPECTIVA HISTÓRICA MAIS LARGA DO
FUTURO. POR ISSO, OS VÁRIOS TEMAS FORAM
TRABALHADOS, SEMPRE, PERGUNTANDO-SE QUAIS
SÃO SUAS INTERAÇÕES COM O SOCIALISMO.
FORAM ABORDADOS TEMAS COMO A RICA
EXPERIÊNCIA – QUE A VÁRIOS TÍTULOS
REPRESENTA UMA ENORME INOVAÇÃO POLÍTICA –
DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO,
O PLANEJAMENTO URBANO, A REFORMA AGRÁRIA
E O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES
SEM-TERRA, AS FORMAS CONTEMPORÂNEAS
DA LUTA SOCIAL, A DECISIVA REVOLUÇÃO
MOLECULAR-DIGITAL E A VIRADA DA
INFORMAÇÃO, E, POR ÚLTIMO, AS COMPLEXAS
RELAÇÕES ECONÔMICAS INTERNACIONAIS NA ERA
DA CHAMADA GLOBALIZAÇÃO.
O EXAME TRAVEJOU, SEMPRE, A EXPERIÊNCIA
DAS LUTAS COM A REFLEXÃO QUE PROCURAVA orçamento

dutra - benevides
PROJETÁ-LAS E ENTENDÊ-LAS NO QUADRO DA
TRANSFORMAÇÃO URGENTE E RADICAL.
NÃO PARA UM DIA QUALQUER POSTERIOR
À REVOLUÇÃO, MAS DIUTURNAMENTE.
participativo
FRANCISCO DE OLIVEIRA e socialismo
Socialismo em discussão

ORÇAMENTO PARTICIPATIVO
E SOCIALISMO
Olívio Dutra
Maria Victoria Benevides

EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO


Fundação Perseu Abramo
Instituída pelo Diretório Nacional
do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996

Diretoria
Luiz Dulci – presidente
Zilah Abramo – vice-presidente
Hamilton Pereira – diretor
Ricardo de Azevedo – diretor

Editora Fundação Perseu Abramo

Coordenação Editorial
Flamarion Maués

Assistente Editorial
Candice Quinelato Baptista

Revisão
Márcio Guimarães de Araújo
Maurício Balthazar Leal

Capa e Projeto Gráfico


Gilberto Maringoni

Ilustração da Capa
Rodolfo Pizzignacco

Editoração Eletrônica
Enrique Pablo Grande

Impressão
Cromosete Gráfica
1a edição: outubrode 2001 – Tiragem: 4 mil exemplares
Todos os direitos reservados à
Editora Fundação Perseu Abramo
Rua Francisco Cruz, 234 – CEP 04117-091 – São Paulo – SP – Brasil
Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910
Na Internet: http://www.fpabramo.org.br – Correio eletrônico: editora@fpabramo.org.br
Copyright © 2001 by Editora Fundação Perseu Abramo — ISBN 85-86469-57-2
Apresentação
Francisco de Oliveira ..................................................................... 5

O orçamento participativo e a questão do socialismo


Olívio Dutra .................................................................................... 7
Ética e luta de classes ........................................................................................ 12
Na contramão do neoliberalismo ........................................................................ 13

Comentários
Orçamento participativo e democracia direta
Maria Victoria Benevides .............................................................. 19
Democracia direta como parte da construção do socialismo ............................. 21
Radicalização da democracia e socialismo democrático ..................................... 24
Controle público do Estado ............................................................................... 26
Debate com o público
Armelindo Passoni ....................................................................................... 31
Paulo Rubens ............................................................................................... 31
Roberto Gouveia .......................................................................................... 32
Pedro Pontual ............................................................................................... 33
Olívio Dutra ................................................................................................ 35
Maria Victoria Benevides ........................................................................... 40
Paul Singer ................................................................................................... 43
Anísio Homem ............................................................................................. 44
Juliana Piccoli Agati ..................................................................................... 45
Paulo Vannuchi ............................................................................................ 46
José Reinaldo Braga ..................................................................................... 47
Olívio Dutra ................................................................................................ 47
Maria Victoria Benevides ........................................................................... 54
Zilah Abramo ............................................................................................... 59
Alencar Santana Braga ................................................................................ 59
Gustavo Venturi ........................................................................................... 59
Antônio Lanzetti .......................................................................................... 61
Sebastião Marcelo Sobrinho ........................................................................ 62
Olívio Dutra ................................................................................................ 63

Sobre os autores ..................................................................... 69

4 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


Apresentação
Francisco de Oliveira

O segundo ciclo do seminário Socialismo e Democracia – reproduzido na


coleção Socialismo em Discussão –, que o Instituto Cidadania, a Fundação
Perseu Abramo e a Secretaria de Formação Política do Partido dos Traba-
lhadores realizaram no primeiro semestre de 2001, dedicou-se, desta vez,
ao exame de questões concretas que estão sendo postas para o movimento
das esquerdas no Brasil com urgência, particularmente a partir das expressi-
vas vitórias nas eleições municipais de outubro de 2000. O Partido dos Tra-
balhadores, para não usurparmos a fala das outras formações da esquerda
brasileira, foi chamado a dar soluções concretas aos já dramáticos proble-
mas das cidades, herança de um longo ciclo histórico, agravados pelas polí-
ticas ou antipolíticas neoliberais dos últimos dez anos.
Entendeu-se que a votação cidadã optou pelo PT não apenas pela ur-
gência da conjuntura, mas como uma orientação de outra perspectiva de
desenvolvimento econômico, social, político e cultural, caucionada pela
trajetória do partido desde sua criação e pela exemplaridade das admi-
nistrações petistas ali onde a cidadania lhe tem entregue a gestão do
Estado, em municípios e estados.
A abordagem das questões concretas juntou as urgências de curto prazo
com a perspectiva histórica mais ampla do futuro. Por isso, os vários

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 5
temas foram trabalhados, sempre, perguntando-se quais são suas
interações com o socialismo. De modo que as gestões da esquerda não
devem ser apenas o breve ciclo de uma administração, mas precisam
também realizar, concretamente, na vida cotidiana das cidades, das cida-
dãs e cidadãos, uma mudança cujo nome histórico é socialismo. Não
para um dia qualquer posterior à revolução, mas diuturnamente. Desse
modo, a perspectiva histórica do socialismo ajuda, orienta e valoriza me-
didas simples, ao alcance da cidadania, sem a grandiloqüência dos gran-
des eventos, mas preparando-a para seu autogoverno.
Foram abordados o recado das urnas de 2000, a rica experiência, que
a vários títulos representa uma enorme inovação política, do orçamento
participativo, o planejamento urbano, a reforma agrária e o movimento
dos trabalhadores sem-terra, as formas contemporâneas da luta social, a
decisiva revolução molecular-digital e a virada da informação, e, por
último, as complexas relações econômicas internacionais na era da cha-
mada globalização. O exame travejou, sempre, a experiência das lutas
com a reflexão que procurava projetá-las e entendê-las no quadro da
transformação urgente e radical. Destacados militantes do Partido dos
Trabalhadores, desde seu presidente de honra, novos dirigentes munici-
pais, calejados quadros políticos, governadores e prefeitos, especialistas,
reputados professores universitários, apoiados, discutidos e contestados
por um público sempre numeroso e participante, dedicaram o tempo ne-
cessário para arejar o pensamento, desafiando o entendimento da nova
complexidade. Assim, o PT busca juntar ação e reflexão, não apenas
para preparar quadros, mas para assumir o mandato da transformação –
como disse uma já clássica canção petista – “sem medo de ser feliz”.

Em nome da Comissão Organizadora,


Francisco de Oliveira

6 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


O orçamento participativo e a
questão do socialismo
Olívio Dutra

Prezados companheiros e companheiras, é com imenso prazer que ve-


nho debater com vocês “O orçamento participativo e a questão do socia-
lismo”. Um encontro deste tipo, com esse tema, revigora o nosso parti-
do, por mostrar que ele não se pauta pelo pragmatismo, nem pelo
imediatismo político. A implementação do orçamento participativo exige
de todos nós uma permanente reflexão sobre seus limites e desafios.
Nossa experiência no Rio Grande do Sul começou em 1989, quando
conquistamos a prefeitura de Porto Alegre. Hoje, além do espaço federado
estadual, também estamos governando importantes cidades gaúchas.
Governamos, além da capital, cidades como Caxias do Sul, Pelotas, San-
ta Maria, Bagé, Viamão, Alvorada, Gravataí, Estância Velha e Cachoei-
rinha. No total, o Partido dos Trabalhadores governa 35 municípios e tem
a vice-prefeitura de seis cidades.
Este inegável avanço do nosso projeto no Rio Grande do Sul tem no
orçamento participativo um referencial importante. Governamos o Rio
Grande há pouco mais de dois anos e administramos Porto Alegre há 12
anos. O controle público sobre o Estado é a essência e o diferencial de
nosso projeto em relação aos projetos adversários.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 7
Não reinventamos a roda. Nosso projeto é fruto das lutas históricas da
classe trabalhadora, da resistência democrática e de experiências go-
vernamentais desenvolvidas pelo campo popular em várias partes do
planeta em diferentes situações e circunstâncias históricas, especialmente
na nossa América Latina. Por meio do orçamento participativo, a popu-
lação protagoniza a construção da proposta orçamentária. Nesse pro-
cesso, invertem-se as prioridades, o que provoca mudanças importantes
na concepção estrutural da proposta.
Com a implantação do orçamento participativo, revigoram-se outras
vias de participação popular nas áreas de saúde, assistência social, habi-
tação, ensino, interpondo barreiras às práticas tradicionais das elites do-
minantes em nosso país, como o clientelismo e a corrupção. Floresce
com ele uma nova cultura, na qual o cidadão passa a ser sujeito, e não
mais objeto da política.
O orçamento participativo possibilita uma modificação substancial nas
relações das pessoas com o Estado e o poder público. A proposta orça-
mentária deixa de ser um arranjo de interesses entre governo, grupos
empresariais, especialistas e técnicos para se tornar uma decisão assu-
mida pelo povo na sua dimensão verdadeiramente política e cultural.
Começa a se democratizar radicalmente a relação do Estado com a
sociedade civil; as pessoas não mais limitam sua participação política ao
ato de votar em dia de eleição.
E não se trata de um “ovo de Colombo”, de uma fórmula mágica,
mas de um processo longo e árduo, de um aprendizado comum envol-
vendo muita gente. O governo, junto com sua base de sustentação – os
partidos que compõem a Frente Popular –, tem um papel importante,
mas a população tem o protagonismo principal. Com ela, o significado
desta alternativa radical de cidadania vai adquirindo contornos mais
nítidos. O governo vai se descentralizando e aprendendo a dividir o

8 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


poder, eliminando os resquícios autoritários que pretendem substituir o
protagonismo do povo e os preconceitos tecnocráticos que menospre-
zam a sabedoria popular.
Por esse processo, receita e despesa definitivamente deixam de ser
misteriosas fórmulas aritméticas ou arranjos políticos e passam a ser de
domínio público. Já percorremos um bom trecho dessa caminhada, mas
ainda há um longo percurso pela frente. Para vencer os obstáculos ma-
teriais e subjetivos que surgem pelo caminho, há que avançar na demo-
cratização desse processo.
Criar essa nova cultura – a do protagonismo – é um dos pontos cen-
trais do projeto que estamos implementando no estado, com todas as
dificuldades decorrentes da complexidade de uma estrutura desse porte,
distorcida em suas finalidades e em fase adiantada de privatização. O
governo que nos antecedeu seguiu à risca a lógica do pensamento
neoliberal, atribuindo ao tamanho do Estado a razão maior de seus pro-
blemas, e tratou de torná-lo mais reduzido para a população e concentra-
do para o benefício de poucos.
Para o nosso projeto, a democracia pressupõe participação popular
direta e uma nova forma de administração e planejamento, na qual cida-
dãs e cidadãos se apropriam de dados e informações e exercem o direito
soberano de influir nas decisões sobre a aplicação dos recursos públicos.
O governo tem o compromisso de executar um programa e, além da
obrigação formal e institucional de prestar contas aos poderes constituí-
dos sobre a execução da Lei Orçamentária, precisa também regular-
mente se explicar sobre os encaminhamentos das decisões tomadas pe-
las assembléias do orçamento participativo.
Assim, política e culturalmente, o orçamento participativo é também a
negação da ideologia neoliberal e da hegemonia do pensamento único:
prega e pratica o controle público sobre o Estado e se efetiva desde o

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 9
início, de modo aberto e pluralista. Dessa forma, as 22 regiões do orça-
mento participativo no Rio Grande do Sul vão se tornando espaços fe-
cundos nos quais se desenvolve uma verdadeira opinião pública inde-
pendente. Espaços que não podem ser instrumentalizados nem pelos
partidos, nem pelo governo.
Com a experiência e o aprofundamento dos debates, esses espaços
públicos acabam por superar os corporativismos egoístas e os particu-
larismos limitadores, que aliás brotam inevitavelmente num primeiro
momento, em razão de uma longa história de exclusão e de ausência de
decisões e de projetos coletivos. Assim, as pessoas lutam não apenas
pelas demandas de suas ruas e de seus bairros, mas adquirem uma visão
integral de sua cidade, de seu estado e de seu país. Portanto, tornam-se
cidadãs e cidadãos solidários, com consciência crítica e preocupação
social, entendendo os processos de dominação, combatendo-os e se re-
conhecendo como construtores de uma nova sociedade.
Aqui, penso, reside a principal crítica ao socialismo que conhecemos e
a maior contribuição à construção do socialismo democrático que quere-
mos. Refiro-me ao protagonismo das pessoas no processo de transfor-
mação social enquanto atividade permanente e cotidiana, ponto em que
as experiências de socialismo até aqui fracassaram. O orçamento
participativo é um espaço propiciador do exercício pleno da cidadania
por parte de milhares de pessoas do povo.
Assumimos, portanto, o desafio de reconstruir o Rio Grande como um
estado participativo sob o controle público. Para isso, não poderíamos
fazer a mera transposição do orçamento participativo aplicado em âmbi-
to municipal para a esfera mais ampla e complexa do estado. Era preci-
so levar em consideração um leque maior de forças e estruturas políti-
cas, como as prefeituras, os conselhos regionais de desenvolvimento, as
representações políticas locais, as diferenças regionais e as relações

10 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


político-institucionais com os demais poderes. A Coordenadoria de Re-
lações Comunitárias (CRC) e o Gabinete de Orçamento e Finanças (GOF)
foram importantes ferramentas forjadas para tratar dessas relações.
Os desafios estão sendo encarados e equacionados nas assembléias
locais e regionais, e nas reuniões do Conselho do Orçamento Participativo
(COP), consolidando o processo, como revelam os números de seu cres-
cimento: no primeiro ano, tivemos a participação de 190 mil pessoas; no
segundo ano, 280 mil e, em 2001, 430 mil. Esse crescimento, porém, não
foi apenas quantitativo, mas também na diversidade da participação, na
riqueza e na qualidade dos debates. Apesar das manobras jurídicas de
nossos adversários, que obtiveram uma liminar – derrubada um ano e
meio depois – que impedia o Executivo de promover a organização e a
convocação do orçamento participativo, o processo foi assumido pelo
movimento social e resultou na elaboração de uma proposta de orça-
mento com inversão de prioridades encaminhada, em tempo hábil, à
Assembléia Legislativa, o poder legítimo e insubstituível que a transfor-
ma em lei.
Buscamos, assim, a gestão descentralizada de recursos, com a partici-
pação universal, direta e voluntária da cidadania. Como já salientei, é óbvio
que se trata de um processo, que vai progressivamente se aperfeiçoando
e fazendo desabrochar a consciência crítica da população e, com ela, a
noção de responsabilidade coletiva de cada um com a coisa pública.
Nesse contexto, o conceito de hegemonia assume igualmente uma
dimensão concreta, pois o orçamento participativo é, também, um espa-
ço de disputa, no qual coexistem as diversas crenças e ideologias e em
que são preservadas as múltiplas especificidades regionais de nosso es-
tado em suas características econômicas, sociais e culturais. Mesmo os
nossos adversários mais ferrenhos aos poucos estão vindo debater pro-
postas neste espaço construído paulatinamente pela cidadania.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 11
Ética e luta de classes – O orçamento participativo revigora o con-
teúdo ético da atividade política, contrastando com o mar de corrupção
que assusta e revolta os brasileiros neste início do século XXI. Nossa
experiência de democracia participativa prova que a gestão transparen-
te dos recursos é a melhor maneira de se evitar a corrupção e o mau uso
do dinheiro público.
Entretanto, não encaramos essas conquistas nem de forma meramen-
te administrativa, nem de maneira idílica, como se tudo estivesse funcio-
nando às mil maravilhas. Ao contrário, temos plena consciência de que
esse processo revolucionário situa-se em um contexto de exacerbada
luta entre dois projetos distintos. As elites tradicionais sabem perfeita-
mente que esta prática dá um conteúdo real à democracia, acabando
com os privilégios, com o clientelismo e, em última análise, com o poder
do capital sobre o conjunto da sociedade. Trata-se, pois, de uma luta
política com nítido conteúdo de classe (ou de bloco de classes) que vai se
desenvolver ainda por um longo período.
Por isso, se alguém afirmar – alguns o fazem – que o orçamento
participativo é apenas uma forma mais organizada de os pobres disputa-
rem entre si as migalhas do capitalismo ou, no máximo, uma ligeira pri-
mavera democrática, mas sem qualquer relação com o socialismo, esta-
rá inteiramente equivocado. Além de ser um aprofundamento e uma
radicalização da democracia, também se constitui num vigoroso impulso
socialista, se encaramos o socialismo como um processo, para o qual a
democracia direta e participativa é elemento essencial, pois possibilita o
fortalecimento da consciência crítica e dos laços solidários entre os ex-
plorados e os oprimidos, abrindo caminho para a apropriação pública do
Estado e a construção de uma nova sociedade.
Nossos adversários de projeto de sociedade sabem bem disso, tanto
que os partidos alinhados com a ideologia neoliberal buscam nos sub-

12 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


meter, no parlamento, a um cerco raivoso e irracional, enquanto os
principais meios de comunicação distorcem os fatos e assumem aber-
tamente o combate a esse processo democrático. Eles percebem, tal-
vez por instinto de classe, que o orçamento participativo é um instru-
mento de protagonismo do nosso povo para a formulação ampliada da
socialização da política; é o surgimento de estruturas que levam à luta
pela hegemonia democrático-popular, sinalizando a superação da soci-
edade de exploração, apontando para a possibilidade de criação de
uma sociedade autogestionária, humanista, democrática e libertária – a
sociedade socialista.
O orçamento participativo, e não só ele, mas também os conselhos
municipais de saúde consolidados no processo de municipalização soli-
dária, a Constituinte Escolar, os comitês de gerenciamento das bacias
hidrográficas e os diversos canais de participação popular em proces-
so de construção ou de aperfeiçoamento em todas as áreas da esfera
pública referenciam um projeto efetivamente democrático no Rio Gran-
de do Sul, em que o ser humano é o centro e o protagonista das políti-
cas de governo.

Na contramão do neoliberalismo – Caminhamos na contramão


do neoliberalismo e da globalização controlada pelos grandes mono-
pólios e centros financeiros internacionais. O neoliberalismo, na sua
fase globalizada, devastou continentes inteiros, e o Brasil não esca-
pou aos efeitos dessa devastação: agravaram-se em nosso país as
práticas históricas de exploração. A inserção no mundo globalizado
foi apresentada como uma panacéia para todos os graves problemas
que enfrentamos e um passo inevitável rumo à modernidade e ao
progresso. Mas essa ilusão vendida pelo pensamento hegemônico se
esvaneceu rapidamente.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 13
Na prática, o neoliberalismo globalizante só tem concentrado renda e dis-
tribuído a miséria, agravando as desigualdades sociais e regionais, aumen-
tando o desemprego e promovendo crescente empobrecimento dos povos.
A abertura comercial e financeira feita de forma indiscriminada e
irresponsável torpedeou os projetos nacionais; parque industrial brasi-
leiro foi abandonado à própria sorte, numa competição desigual com
empresas estrangeiras que para aqui foram atraídas praticamente sem
riscos e com muito dinheiro público. Muitas fábricas pequenas e médi-
as fecharam, indústrias tradicionais foram compradas por grupos es-
trangeiros, setores importantes de nossa economia desapareceram e
presenciamos a desorganização de importantes cadeias produtivas. No
caso brasileiro, desde 1994, o patrimônio controlado por multinacionais
cresceu 80%. O desemprego e a exclusão social constituem a face
mais perversa desse modelo.
Nas grandes cidades brasileiras, pelo menos 20% das pessoas econo-
micamente ativas estão sem emprego. As decisões econômicas que afe-
tam milhões de brasileiros são cada vez mais tomadas fora de nossas
fronteiras, a partir do Fundo Monetário Internacional (FMI), uma espécie
de cooperativa dos grandes banqueiros, muito mais preocupado em de-
fender os interesses de credores e investidores estrangeiros do que em
resolver a crise social que este modelo agrava a cada dia em nosso país
e em diversos países do globo.
Mas, ao contrário do que pretendiam os teóricos neoliberais, a história
não acabou e os povos do mundo inteiro começam a perceber o engodo
desse modelo perverso. As manifestações de Seattle contra a Organiza-
ção Mundial do Comércio (OMC), em Washington, em Praga e, recente-
mente, em Buenos Aires contra a Área de Livre Comércio das Améri-
cas (ALCA) demonstram o vigor do crescente movimento de contesta-
ção ao pensamento único que o neoliberalismo tentou nos impor.

14 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


A realização do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em janeiro de
2001, é uma prova da rearticulação das emergentes forças sociais pro-
gressistas do mundo, ao mesmo tempo que referencia nossa experiência de
democracia participativa como um luzeiro importante. Em nosso país, as
eleições municipais de 2000 registraram expressivas vitórias de nosso parti-
do e do campo progressista e de esquerda, sinalizando um início de rejeição
ao neoliberalismo e demonstrando as possibilidades de crescimento de um
projeto popular e participativo em todas as regiões brasileiras.
É preciso, pois, que avancemos na construção de um projeto comum
do campo de esquerda, democrático e progressista, que cada vez mais
mobilize os agentes sociais na disputa sindical, na luta pela terra, na pro-
dução cultural e na arquitetura de projetos de governo democráticos,
populares e participativos que tenham a qualidade de vida e a dignidade
do ser humano como centro das políticas públicas. Nesse sentido, as
cidades e os estados que governamos devem se tornar espaços de espe-
rança e de redenção para milhões de brasileiros. Permitam-me mais
uma vez falar sobre o Rio Grande do Sul, que é a nossa experiência
concreta. Assumimos o desafio de transformar um estado em adiantado
processo de privatização num estado participativo, por meio de mecanis-
mos democráticos de controle público sobre as ações do governo. Aca-
bamos com a política de anistias e privilégios fiscais, que incentivam a
sonegação e a inadimplência. Revisamos os benefícios já concedidos e
adotamos novos critérios seletivos para concessões de incentivos, discu-
tidos com a sociedade. Criamos organismos executores de políticas pú-
blicas fundamentais, como a Secretaria de Habitação, a Secretaria do
Meio Ambiente e a Secretaria Especial de Reforma Agrária. Na educa-
ção, queremos garantir o acesso universal a um ensino público qualifica-
do, debatido com a comunidade, por meio da Constituinte Escolar. Por
isso somos o estado que mais investe por aluno na rede pública estadual.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 15
Devemos, pois, trabalhar cotidianamente para a construção do espaço
público, em que devem surgir e se desenvolver novas instituições, e bro-
tar viçoso o conceito vivo de república. Paralelamente, começam a ser
alicerçados os fundamentos de um Estado verdadeiramente democráti-
co, com o objetivo principal e essencial de garantir a cidadania. Um
Estado que socialize o poder, que seja transparente e controlado pela
sociedade civil, que caminhe em sentido oposto ao do neoliberalismo e
promova a mais ampla inclusão social.
Não queremos um Estado que seja maior do que a sociedade, mas
também rejeitamos o Estado mínimo pretendido e arquitetado pelos
neoliberais sob as cinzas das conquistas sociais e das lutas de várias
décadas dos trabalhadores.
Nessa luta pela hegemonia, o conteúdo da crítica socialista ao capitalismo
permanece vivo e atual. Não se confunda o conteúdo do socialismo com o
que se convencionou chamar abusivamente de “socialismo real”, para ca-
racterizar os regimes burocráticos do Leste Europeu. A desintegração da
União Soviética, em dezembro de 1991, assinala o fim de um ciclo e abre
uma nova etapa, marcada pelo absoluto domínio militar norte-americano e
por uma hegemonia indiscutível do hemisfério Norte na economia, na políti-
ca e na cultura. Entretanto, na Rússia, o encantamento com a vitória do
capitalismo durou pouco e logo desabaram os sonhos de consumismo gene-
ralizado. Em menos de dez anos, o chamado mercado livre só fez gerar
miséria, desemprego e constituir grupos mafiosos como órgãos de poder
político e econômico não institucionalizados; uma assustadora desagregação
ética faz hoje em dia parte do cotidiano russo em tempos neoliberais.
Mas a alternativa – e não existe outra, não há capitalismo com justiça
social – ao sistema capitalista neoliberal no qual estamos inseridos é,
digamos claramente, o socialismo. O socialismo democrático e libertário,
renovado permanentemente, mas sem se descaracterizar; um movimen-

16 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


to de oposição radical à exploração do homem pelo homem, à guerra e
aos preconceitos. A desintegração dos regimes burocráticos não deixa
saudades, mas muitas lições. Hoje e sempre precisamos pensar o socia-
lismo como uma questão prática, integrá-lo em nossa vida cotidiana. Em
última análise, pensá-lo como um processo, como luta pela hegemonia,
sem jamais colocar em plano secundário os conceitos de liberdade, de-
mocracia, justiça e igualdade.
Nessa luta pela hegemonia, nos estados e cidades que governamos,
estamos demonstrando na vida cotidiana que a história não terminou e
que um outro caminho é possível e viável. Porém, não temos qualquer
ilusão: não somos ilhas perdidas em um imenso oceano neoliberal. Nos-
sas conquistas influirão e, ao mesmo tempo, dependerão de outras lutas
e de outras conquistas na América Latina e no resto do mundo. Lutas
que, felizmente, estão sendo retomadas e começam a ganhar força e
sinalizar a esperança de que um mundo novo é possível.
Por isso, vamos batalhar para que os acúmulos dessa experiência pos-
sam contribuir para um projeto nacional do PT e dos partidos do campo
popular na campanha do companheiro Lula para a presidência da Repú-
blica em 2002. Temos certeza de que um outro Brasil é possível. É pre-
ciso lutar por ele.

Muito obrigado e boa luta!

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 17
18 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO
Comentários
Maria Victoria Benevides

É uma grande satisfação participar dos seminários Socialismo e De-


mocracia, organizados pela Fundação Perseu Abramo, pela Secretaria
Nacional de Formação Política do PT e pelo Instituto Cidadania.
Participei como entusiasmada ouvinte da primeira fase do projeto* e
estou convencida de que essas discussões têm sido muito importantes
para revigorar a reflexão no partido. E o tema do orçamento participativo,
que está no âmbito da temática mais ampla da democracia direta, pare-
ce-me especialmente importante. Considero que é uma marca de refe-
rência importantíssima para o Partido dos Trabalhadores, para uma
nova e verdadeira esquerda democrática, propositora de um socialis-
mo, como diz o governador Olívio Dutra, democrático e libertário.
Estou à vontade para comentar a exposição do companheiro Olívio
pelo fato de ter uma concordância plena com suas idéias, além de * O primeiro ciclo dos seminá-
uma grande admiração por seu trabalho, por suas lutas, desde que o rios Socialismo e Democracia
conheci por ocasião da fundação do partido, em 1980, e antes por sua foi realizado em 2000. Veja
atividade como líder sindical. E, ainda, por ser um dos principais instiga- na página 72 os livros da
Editora Fundação Perseu
dores e promotores dessa experiência que tem em Porto Alegre o Abramo que reproduzem
seu principal exemplo. esses debates.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 19
Em relação à sua brilhante exposição, gostaria de tecer algumas con-
siderações a partir de sua avaliação e de sua análise do processo den-
tro do partido, da experiência do Rio Grande do Sul, da temática do
socialismo e da democracia. Concordo com suas frases finais, no sen-
tido de que a experiência do orçamento participativo, e toda a discus-
são que é feita sobre suas dificuldades e suas possibilidades de
aprofundamento, de ampliação, de levá-lo para outros municípios do
país, pode realmente configurar um projeto nacional do partido, que
faça parte da discussão e da especificidade programática de um parti-
do que aspira chegar à presidência da República.
Quando discutimos a democracia, num momento como o atual, em
que todos se dizem democratas, em que todos os partidos se afirmam
democratas, em que todas as lideranças no país se afirmam valentes,
vigorosos democratas, temos de afirmar esse traço fundante da de-
mocracia para o Partido dos Trabalhadores, que é a soberania popu-
lar verdadeira, autêntica. Autônoma das peias de um sindicalismo
tutelado pelo Estado; autônoma de um partido entendido como van-
guarda, de dirigentes entendidos como elites iluminadas, de um
sindicalismo populista e trabalhista como o da nossa experiência his-
tórica anterior a 1964. Ou seja, essa especificidade do PT, indepen-
dentemente de eventuais alianças partidárias que ele possa fazer, deve
estar muito clara.
Não devemos ter medo de falar em democracia direta, mesmo diante
de prováveis ambigüidades que cercam a expressão. O PT é, sim, o
partido da democracia participativa, da democracia direta, embora isso
não signifique o desprezo pelas formas institucionais da democracia
representativa, muito pelo contrário. Pela democracia representativa
temos companheiros ilustres, valorosos e combativos em governos, como
Olívio Dutra; em prefeituras, como Tarso Genro, Marta Suplicy, nos-

20 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


sos companheiros do Norte e do Nordeste e nossos excelentes parla-
mentares municipais, estaduais e federais.

Democracia direta como parte da construção do socialismo –


Gostaria de esclarecer algumas premissas que marcam minha posição
como militante, mas também como socióloga que tem trabalhado com
essas questões. Essas premissas independem de uma avaliação da ex-
posição do Olívio, mas não entram em choque com o que ele falou.
A primeira premissa é uma convicção muito profunda sobre a incom-
patibilidade radical entre democracia e capitalismo, no sentido de que o
capitalismo é cada vez mais, nesse modelo globalizado e neoliberal, o
inimigo principal da democracia.
O que entendemos por democracia? De vez em quando eu brinco com
o companheiro Carlos Nelson Coutinho1, dizendo que, no meio acadêmi-
co, essa crença na soberania popular ficou tão fora de moda que daqui a
pouco, só nós dois estaremos falando em democracia como soberania
popular. Temos várias definições de democracia em que não aparece
essa expressão tão simples e tão antiga, tão clássica até, de entendê-la
como soberania popular.
Nesse sentido, entendo democracia como o regime político da sobera-
nia popular, com respeito integral aos direitos humanos.
Trata-se de uma definição singela, que tem a vantagem de agregar
as nossas convicções e os nossos princípios sobre a democracia políti-
ca, que inclui a democracia participativa, é óbvio, as formas de partici-
pação indireta e direta da cidadania, a liberdade – as liberdades públi- 1. Professor titular de teoria
política na Universidade
cas, as liberdades individuais –, mas também a democracia social; os
Federal do Rio de Janeiro
direitos econômicos, sociais e culturais sem os quais não se pode falar (UFRJ) e autor, entre outros
em democracia. No máximo se pode falar nessa coisa adjetivada de livros, de A democracia como
democracia liberal etc. valor universal.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 21
Então, se agregarmos a idéia de soberania popular ao respeito integral
pelos direitos humanos, nas suas dimensões de liberdades públicas, indi-
viduais, direitos civis, econômicos, sociais, culturais, direitos da humani-
dade, que são essencialmente históricos, veremos como não deixaremos
fora do nosso conceito de democracia nem os seus aspectos de partici-
pação política, de liberdade, de pluralismo, de igualdade, nem os aspec-
tos da obrigação do Estado em relação aos direitos fundamentais, bem
como o dever da sociedade em relação àquele princípio revolucionário
da fraternidade ou, como falamos hoje, da solidariedade.
Essa é a primeira premissa do que entendo por democracia e de como
entendo a oposição radical entre democracia e capitalismo, mesmo que não
se fale ainda, explicitamente, de uma proposta socialista, que é a minha.
A segunda premissa é que a defesa da democracia direta, nas suas
várias formas, das quais a experiência mais bem-sucedida é o orça-
mento participativo, não exclui a democracia representativa. É justa-
mente por isso que insisto que não devemos ficar na defensiva em
relação ao nosso compromisso com a democracia direta; ora, ninguém
defende a abolição de eleições para nossos representantes no Legis-
lativo e no Executivo. Pelo contrário, há até os que defendem uma
ampliação das eleições, para, por exemplo, determinados cargos no
Judiciário, como ocorre em outros países. Aliás, em países que estão
longe de ser socialistas, como é o caso dos Estados Unidos, existe a
experiência com eleições diretas para promotores, entre outros car-
gos. Existe, sem dúvida, uma complementaridade entre democracia
direta e democracia representativa.
Considero que a democracia direta, nas suas várias formas, exerce
um efeito extremamente positivo na democracia representativa, no
sentido de que age como um corretivo aos vícios e mazelas já por
demais conhecidos em nossa cultura política – aliás, existentes em vá-

22 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


rias democracias que, há mais tempo, incorporam representação e par-
ticipação direta dos cidadãos.
Nunca é demais lembrar, por exemplo, que estão em discussão pro-
postas de levar a questão da adesão à ALCA a um plebiscito; de incenti-
var iniciativas populares legislativas encabeçadas por movimentos da
cidadania e de não esperar que o Legislativo tome a iniciativa para a
convocação de referendos etc. Tivemos o exemplo recente do plebiscito
sobre a dívida externa, por iniciativa de organizações da sociedade civil
e, portanto, de conseqüências não-oficiais, mas que já foi um bom come-
ço, no sentido da mobilização popular. No entanto, em nenhum momento
se pensa em abolir a representação. Pelo contrário, o partido político e
os parlamentares de um partido que têm compromisso com a democra-
cia direta deveriam se envolver com essa mobilização popular – e só
teriam a lucrar com isso.
A terceira premissa se refere a entender esses processos de demo-
cracia direta, especificamente do orçamento participativo, como parte
da construção do socialismo, tendo sempre em mente que o socialismo
é um processo; assim como a democracia é um processo – ela não
está pronta e acabada em nenhum lugar do mundo –, o socialismo
também é um processo. Não temos uma experiência real e de sucesso,
e esperamos que isso ocorra como resultado de um processo de
aprofundamento da democracia.
Considero também que a participação nessas formas de democracia
direta resulta em um processo de educação política, que diz respeito
diretamente a um partido como o PT, que tem compromisso com uma
função essencial dos partidos, muito negligenciada na história partidária
brasileira, a sua função pedagógica. Entendo que o compromisso do PT
com formas de democracia direta configura um passo importante no
compromisso com a formação, com a educação política. E insisto: uma

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 23
educação política que não está fechada nos limites da militância partidá-
ria, mas aberta para a cidadania efetivamente democrática. O orçamen-
to participativo, nesse sentido, é uma excelente escola de democracia.
A quarta premissa é que, hoje, o orçamento participativo é uma reali-
dade que transcende o PT, embora seja marca registrada do partido. Ele
já está sendo reivindicado por outros partidos, por outras tendências,
porque viram que dá certo, em termos de mobilização e de empenho das
comunidades, no plano local, com o processo decisório em torno de inte-
resses públicos.
Portanto, é cada vez mais importante que o diferencial petista se afir-
me. Assim como todos se dizem democratas mas não são, há diferenças
cruciais entre partidos e tendências políticas e ideológicas sobre o signi-
ficado concreto da democracia – e isso ocorre em relação ao orçamento
participativo também. Vejam o que aconteceu, por exemplo, com o pro-
jeto de bolsa-escola, que hoje se tornou um projeto de todos, a começar
pelo governo federal, que na minha avaliação está longe de ser um go-
verno republicano e democrático.

Radicalização da democracia e socialismo democrático – Então,


qual é o nosso diferencial em relação ao orçamento participativo?
Expostas as premissas, especificamente em relação ao orçamento
participativo e ao socialismo, quero reforçar algo que está presente no
texto do Olívio: que o orçamento participativo – aí entra o nosso dife-
rencial – não é apenas uma radicalização da democracia. É evidente,
como diz Olívio, que é, sim, uma radicalização da democracia, mas não
só isso. Quando alguém me pergunta se sou uma democrata radical, eu
digo: sou. Radical de raízes, democracia é governo do povo, pelo povo
e para o povo. Daí, mesmo que não se fale em socialismo, a participa-
ção popular, além da representação, é evidente. Considero que Olívio

24 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


foi extremamente feliz quando afirmou que, além da radicalização da
democracia, o orçamento participativo é um vigoroso impulso socialis-
ta, no sentido de que o socialismo é um processo no qual a democracia
direta é essencial, como no controle público sobre o Estado e na parti-
cipação popular no processo decisório.
Eu diria mais ainda: o orçamento participativo e outras formas de par-
ticipação direta tendem a reforçar laços concretos de solidariedade,
princípio histórico e essencial no socialismo democrático.
Continuando, considero que socialismo entendido, por exemplo, como
uma extensão à economia do princípio político da soberania popular sig-
nifica que as grandes diretrizes econômicas e a definição de prioridades
exigem a participação direta de todos.
Aqui, Olívio também lembra como essa participação direta do povo
nas prioridades é o ponto principal de algo extremamente positivo nessa
identificação do orçamento participativo com o tipo de crítica que ele
levanta em relação ao “socialismo” que realmente existiu, no sentido de
reconhecer o sujeito, o cidadão, individualmente e em seus grupos de
organização pela base.
Tudo isso se contrapõe aos que argumentam contra as formas de de-
mocracia direta, muitas vezes com uma retórica reacionária que já tem
pelo menos 200 anos e que afirma que o povo não está preparado nem
para votar em seus representantes, que dirá para votar em questões de
interesse público que exijam alguns conhecimentos técnicos.
Nesse ponto, recordo-me de uma análise do intelectual socialista
Cornelius Castoriadis em que ele se refere à oposição entre povo e es-
pecialistas e afirma que

“a idéia dominante de que existem especialistas em política, isto é,


especialistas do universal e técnicos da totalidade, faz troça da

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 25
idéia de democracia. O poder dos políticos seria uma justificada
perícia que eles sozinhos possuiriam e, por definição, o inábil
populacho é chamado periodicamente apenas para julgar esses
peritos. Não existem nem podem existir especialistas em assuntos
políticos. Perícia ou sabedoria política pertencem à comunidade
política. Pois perícia, a tekiné, do grego, no sentido estrito, está
sempre relacionada a uma ocupação específica, e técnica é obvi-
amente reconhecida em seu próprio campo”2.

Sócrates, no diálogo “Protágoras” (de Platão) critica a democracia


grega direta, contra os direiros de isegoria, ou seja, de todos terem o
direito à palavra. Na sua crítica, afirma:

“os atenienses escutarão os técnicos quando for discutida a cons-


trução adequada de muros e navios; mas escutarão qualquer um
quando se tratar de questões da política. Questões da política di-
zem sempre respeito à definição de prioridades”3.
2. CASTORIADIS, Cornelius. “A
pólis grega e a criação da Mas esse argumneto contra a democracia direta é exatamente o que
democracia”. Revista Filosofia proponho como argumento a favor da democracia direta.
Política, n°3, Porto Algre/ Lembro também a relação necessária, historicamente fruto de muitas
Campinas, LPM/Unicamp/
UFRGS, 1986.
reflexões, entre democracia e socialismo, retomando o que sempre disse
3. Diálogos de Platão: nosso querido mestre e companheiro Antonio Candido4, inspirado em
Protágoras. Rosa Luxemburgo, que democracia sem socialismo não é democracia e
4. Crítico literário e autor de socialismo sem democracia não é socialismo.
vários livros fundamentais da
sociologia e da teoria literária
brasileira. É presidente do Controle público do Estado – Outro ponto que considero muito im-
Conselho Editorial da Editora portante, tanto na reflexão mais histórica e acadêmica como na observa-
Fundação Perseu Abramo. ção das práticas concretas da democracia direta, é que o orçamento

26 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


participativo e as demais formas de democracia direta nos levam a perce-
ber com clareza a superação da velha dissociação, da velha dicotomia, entre
o Estado e a sociedade civil, vigente até hoje tanto entre liberais como entre
antiliberais. O que diz Olívio? Que o importante no orçamento participativo
é a força de uma cultura nova que exige o controle público sobre o Estado.
E aí ele diz, e eu reforço: isso significa dizer não ao Estado mínimo, mas
também ao Estado que pretende ser maior do que a sociedade.
Assim, com a vigência dessas formas de democracia direta ocorre
uma abolição das fronteiras rígidas e tradicionais entre Estado e socie-
dade civil.
Quando me refiro ao controle público sobre o Estado, estou pensando
também em uma via de mão dupla: controle público da cidadania sobre o
Estado e a obrigação do Estado prestar contas. Às vezes, vejo com
certa ironia meus colegas tucanos, acadêmicos, que insistem muito na tal
de accountability, ou seja, a obrigação do governo de prestar contas. E
são justamente os governos que eles apóiam que não prestam contas à
sociedade, não se sentem responsáveis perante o povo, nem no Executi-
vo nem na instância de poder na qual estão inseridos.
Concluindo, esse controle público do Estado é novo, é uma nova visão do
Estado com mão dupla: é o controle de cá e a prestação de contas de lá.
Lembro ainda, citando nosso companheiro Paul Singer5, que um proje- 5. Economista e professor titular
na Universidade de São Paulo
to socialista não se limita à economia, por mais importante que ela seja.
(USP), é um dos principais
E ele vai adiante nesse texto: “um projeto socialista alcança a cultura, a expoentes da economia
sociabilidade, é um projeto de reorganização de toda a sociedade, da solidária e do cooperativismo
infra à superestrutura”6. Lembrei-me dessa citação quando Olívio se no Brasil. É autor de vasta obra
referiu a uma nova cultura que é criada a partir dessas formas novas de sobre estes temas.
6. SINGER, Paul e MACHADO,
participação e de fazer política. Estou sempre pensando no mote do nos- João. Economia socialista. São
so Fórum Mundial Social de Porto Alegre, “Um novo mundo é possível”, Paulo, Editora Fundação
uma nova cultura política é possível. Perseu Abramo, 2000.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 27
E aqui também entendo a ênfase que Olívio dá à questão da hegemonia,
entendida como uma direção política, mas também como uma direção
cultural da sociedade. O ponto importante levantado por Olívio Dutra é o
de entender essa forma de participação direta com o seu conteúdo de
classe. Já houve quem dissesse, até mesmo nas nossas hostes, que a luta
de classes tinha acabado. Então acho ótimo que o Olívio tenha enfatizado
esse aspecto. É, sim, um problema de luta de classes, e isso aparece
claramente no horror que causa às elites a própria idéia de participação
popular soberana.
Se consultarmos os anais da Constituinte que se encerrou em 1988,
veremos o argumento sincero e ideológico dos constituintes radicalmen-
te contrário à possibilidade de que o povo participasse de processos
decisórios diretamente, sem a mediação de partidos e de representantes.
É algo profundamente arraigado, que revela o solene horror a que o
povo, essa multidão suína – como dizia Burke, referindo-se à Revolu-
ção Francesa – possa efetivamente participar de processos decisórios.
Finalmente, gostaria de enfatizar a necessidade de que o orçamento
participativo seja uma experiência que leve efetivamente a um novo modo
de se fazer política, como parte de uma proposta alternativa de um siste-
ma político e econômico que caminhe na direção de um socialismo de-
mocrático e libertário.
Creio que seria importante reforçar alguns pontos, até para evitarmos
a armadilha de dizerem: “Vocês com essa história de democracia direta
estão querendo reproduzir as experiências totalitárias dos sovietes, das
revoluções etc.” Nós queremos as experiências radicalmente democrá-
ticas, na democracia participativa e, eu diria, no socialismo democrático.
Então, a primeira exigência é a garantia de informação, ou seja, man-
ter um fluxo constante de informação. Não existem no orçamento
participativo efetivamente democrático os arcanos, os segredos, a mani-

28 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


pulação do conhecimento. Não devem existir. Pelo contrário, a informa-
ção sobre o que está acontecendo quanto à parte técnica, às ingerências
e às conseqüências dos processos decisórios deve desembocar num ca-
nal permanentemente aberto. A transparência é decorrente disso, a trans-
parência nos procedimentos, lembrando sempre que a legitimidade dos
resultados, ao contrário de algo muito antigo, está comprometida com a
legitimidade dos procedimentos, dos meios. A transparência nos proce-
dimentos, naquela forma que afirmei antes: controle da cidadania sobre
o poder, mas também prestação de contas do poder para a cidadania.
Outra exigência é a socialização dos resultados. Os que participam
das assembléias têm o direito de participar também da discussão e da
avaliação dos resultados.
É preciso ter claro, contrariando velhas crenças, que o partido não é a
vanguarda. O partido tem de permitir a independência da opinião e o
pluralismo da participação, como bem lembrou o Olívio, e também res-
peitar as particularidades locais e regionais. Isso num país como o nosso,
com uma diversidade política, social, econômica e cultural tão grande e
tão rica, deve ser um ponto da nossa especial preocupação.
Era isso que eu tinha a dizer, enfatizando meu entusiasmo pela exposi-
ção do Olívio e minha admiração pelo seu governo, pelo seu trabalho e
pela sua militância. Muito obrigada.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 29
Debate com o público

Armelindo Passoni dica do orçamento participativo.


A questão do orçamento partici- Como ficaria em âmbito nacional a
pativo não pode gerar também uma aplicação dessa proposta?
situação em que o povo, em alguns
municípios, resolva se reunir para de-Paulo Rubens
cidir onde não aplicar o dinheiro? Já Gostaria de destacar duas ques-
existem algumas prefeituras do par- tões. A primeira delas talvez repre-
tido, hoje, que não fazem orçamen- sente a ansiedade que muitas pes-
to participativo por causa da situa-soas têm. Viajei 1.200 quilômetros
ção de escassez do dinheiro. Como para vir a este seminário, sou depu-
tado estadual em Pernambuco pelo
ficaria a questão de o partido imple-
mentar uma política e ter essa situ-segundo mandato, e gostaria de dis-
ação particular de alguns municípi- cutir como nós, como partido, pode-
os com dificuldades de orçamento? mos disputar o controle social das
verbas públicas mesmo quando não
Pergunta somos prefeitos ou governadores.
Sou estudante de direito e para Há uma lacuna inexplicável até hoje
nós interessa muito a questão jurí- entre a pauta das nossas interven-

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 31
ções nos movimentos sociais quan- permite que as elites se apropriem
do não somos governo – via de re- do imposto que é pago pela socie-
gra somos fragmentados, corpo- dade como forma de acumulação
rativos, categorias isoladas, movi- de capital. E temos atuado pouco
mentos que não se somam no con- no sentido de estruturar a socieda-
trole social do dinheiro público – e de para fazer frente a esse Estado,
quando somos governo – aí, passa- principalmente às Procuradorias e
mos a tratar de uma forma global a ao poder Judiciário, que são tam-
gestão do dinheiro público. bém parte desse Estado da elite que
A outra questão, que é tão grave domina o país.
quanto a gestão do orçamento, diz
respeito ao dinheiro que não entra Roberto Gouveia
no orçamento, pois acaba sendo Fico muito animado com essas
desviado pela sonegação fiscal, que duas belíssimas exposições. O que
é uma das formas mais estruturadas eu acredito que se coloca como de-
de crime contra o patrimônio públi- safio para nós é exatamente a edu-
co. Temos tido poucas experiênci- cação para o exercício do poder.
as, pelo menos em nossas banca- Não viemos apenas para dividir
das estaduais e municipais, e até uma série de coisas, fundamental-
mesmo na bancada federal, no to- mente viemos para dividir o poder,
cante a como a sociedade se es- e aí se coloca a questão da educa-
trutura para não permitir que esse ção para o seu exercício. Gostaria
Estado que aí está continue a ser de ouvir o comentário de Maria
ineficaz no combate à sonegação. Victoria e de Olívio Dutra a res-
Temos que lembrar que não é só peito da potencialização dessa ex-
a gestão oligárquica, elitista, que periência e se o próprio orçamento
privatiza o Estado e concentra ri- participativo deve fazer parte de um
queza dentro de um orçamento. É conjunto de medidas que leve ao
também a gestão do Estado que processo de descentralização, de

32 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


ampliação da representação. Aqui formas de participação popular, de
na cidade de São Paulo, por exem- exercício da democracia direta.
plo, temos 55 vereadores para re- Queria destacar que o orçamento
presentar milhões de pessoas. Por participativo tem todas essas virtu-
mais que os vereadores se multipli- des e potencialidades que foram
quem, se movimentem, eles serão aqui apresentadas, e digo isso tan-
questionados. Surge, então, a ques- to a partir da minha prática como
tão da eleição de conselhos de re- gestor de orçamento participativo
presentantes etc. Nós temos de em Santo André (SP) como também
descentralizar também os proces- de pesquisador.
sos de representação e as subpre- Porém, ao mesmo tempo que
feituras. E, nesta linha, minha pre- acredito em todas essas potencia-
ocupação – e eu acredito que lidades, também acho que o orça-
esta é uma questão estratégica para mento participativo sozinho não dá
nós – é sempre dividir o poder e conta desse conjunto de potenciali-
educar para o poder. Aliás, as nos- dades. E por isso saliento que temos
sas elites estão cada vez mais de- algumas temáticas – que passam por
monstrando um profundo despre- uma reflexão estratégica – em nos-
paro para o exercício do poder, sas cidades e municípios, ou nos es-
como temos visto de forma acen- tados, que colocam a questão do or-
tuada recentemente. çamento participativo num horizon-
te de 10 ou 20 anos e que, portanto,
Pedro Pontual transcendem muito os limites da ela-
Gostaria de sublinhar dois pontos boração de uma proposta orçamen-
que tanto Olívio Dutra como Maria tária. Nós temos a temática, por
Victoria tocaram de passagem – exemplo, da modalidade e da quali-
ressaltando que sempre que eles se dade das políticas públicas, o mode-
referiram também ao orçamento lo de saúde, de cultura, de educa-
participativo, se referiram a outras ção que queremos desenvolver. Es-

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 33
ses são aspectos em relação aos pensar da sua própria metodologia,
quais o orçamento participativo so- da discussão de como é que se arti-
zinho não dá conta, daí a necessida- cula, por exemplo, a questão da par-
de de revigorarmos espaços como ticipação direta nas plenárias, o exer-
os conselhos municipais de políticas cício de uma participação direta que
públicas, articulá-los ao orçamento não necessariamente supõe que o
participativo. Então, penso – e gos- cidadão vá à plenária e que deve ter
taria de debater essa reflexão tam- algum peso no processo.
bém no nosso partido – que corre- Então, penso que devemos, com
mos o risco de operar um certo muita razão, aprofundar essa dis-
reducionismo da discussão da parti- cussão sobre o orçamento partici-
cipação popular e da ampliação das pativo para não perder de vista que
formas de exercício da democracia a questão da participação popular,
direta se limitarmos estas questões da ampliação das formas de exer-
ao orçamento participativo. cício de democracia direta, supõe
Isso, por um lado, tem o seu sen- outros canais e outros instrumen-
tido, dado o vigor dessa experiên- to articulados ao processo de or-
cia e sua originalidade, mas, ao çamento participativo. Quando fa-
mesmo tempo, recoloca para nós o lamos, por exemplo, do controle
desafio de ampliarmos o horizonte público sobre o Estado, temos a
das discussões, sem o que estare- face da organização da sociedade
mos talvez depositando no orça- civil, dos processos de exercício
mento participativo um nível de res- da cidadania, mas temos um enor-
ponsabilidade do qual ele sozinho me desafio, que é a modernização
não pode dar conta na operação dos da própria máquina do Estado.
processos de participação popular Quer dizer, como os processos de
dos municípios. planejamento estratégico, no nível
Hoje, mesmo no âmbito do orça- dos governos, podem efetivamen-
mento participativo, há todo um re- te contribuir para essa transparên-

34 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


cia? Como é que organizamos ges- um termo nosso, é uma experiên-
tões participativas no interior do cia não suficientemente espraiada,
próprio Estado como condição de que padece ainda de um certo
que esse trabalho em favor da localismo. É um processo. Portan-
transparência, da prestação de to, ele vai se aperfeiçoando. Por ele
contas, possa se dar em todos os passa a questão da participação, da
níveis do Estado? representação, do controle público
Assim, queria apenas alertar sobre o Estado, do protagonismo,
para esse aspecto, ou seja, de que que torna as pessoas construtoras
no nível do Partido dos Trabalha- da mudança, sujeitos e não objetos
dores precisamos voltar a refletir da política.
sobre participação popular e am- A informatização, a ciência e a
pliação das formas de exercício tecnologia podem ser postas a
da democracia direta, a partir de serviço da democracia, possibili-
um conjunto de instrumentos ar- tando que muito mais pessoas par-
ticulados com o processo de or- ticipem intensamente do proces-
çamento participativo. so, independentemente de esta-
rem ou não no local da assem-
Olívio Dutra bléia. Mas é importante não per-
Vou começar pela preocupação dermos o caráter da participação
do Pedro Pontual. Não podemos ter a mais direta possível e o valor
o orçamento participativo como da convivência comunitária.
uma coisa mágica, idílica ou como As assembléias temáticas como
a solução radical para todos os pro- as que tratam da questão da ciên-
blemas da democracia. Certamen- cia e tecnologia, são um bom exem-
te, o orçamento participativo é um plo. Minha cidade, Bossoroca –
instrumento poderoso ainda não su- sempre gosto de citá-la –, fica a
ficientemente bem implantado, 540 quilômetros de Porto Alegre.
“tensionado”, entre nós. Para usar Nasci lá, mas me criei a 32 quilô-

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 35
metros dali, em São Luiz Gonzaga. bém as propostas alternativas, já
É um lugar no mundo onde ciência que um número crescente de pes-
e tecnologia parecem ser coisas dis- soas se dispõe a pensar, a discutir
tantes. No entanto, ciência e e a produzir políticas.
tecnologia têm tudo a ver com o Entendo que as preocupações de
processo de desenvolvimento que Pontual alertam para que não fa-
precisa ser desencadeado ali para çamos do orçamento participativo
aquela comunidade se ligar com a uma panacéia ou a forma única de
região, o estado e o país. Como pro- radicalização da democracia. Esse
vocar essa discussão? Esperar que cuidado, no entanto, não pode di-
ela surja espontaneamente, nas as- minuir a importância da experiên-
sembléias, é equivocado. Primeiro cia. É preciso aprofundá-la,
o tema deve ser provocado, e há espraiá-la mais ainda, antes de di-
várias formas de fazer essa boa zermos “é preciso ter cuidado com
provocação. A partir das questões ela...”, “reforcemos outras...”.
locais articular as questões regio- É possível, companheiro
nais com o espaço federado e a Armelindo Passoni, que o povo de-
integração do país, da América cida não aplicar recursos segundo a
Latina, enfim. Acredito que não há proposta do governo. Se não há re-
um espaço tão rico hoje quanto o cursos, essa é uma outra questão.
das assembléias do orçamento A discussão do orçamento também
participativo para a apropriação encara este problema. Por que não
desses elementos e a compreensão há? De onde vem a receita? Quem
de seu entrelaçamento. O orça- paga impostos? Quem não paga?
mento participativo não fabrica di- Quem está sendo privilegiado com
nheiro, mas fabrica uma coisa muito esta ou aquela política de anistia fis-
especial, o protagonismo, a cidada- cal ou de subsídio? Como o poder
nia, a crítica. Isto aumenta a co- público gasta o dinheiro? Com que
brança sobre o governo, mas tam- prioridades? Quem define isso? En-

36 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


tão, a questão de haver ou não re- Então, é esse processo que eu
cursos torna ainda mais necessária acho instigante, provocador, positi-
a discussão do orçamento. Até por- vamente, de uma apropriação pú-
que, se não há, o povo precisa saber blica do Estado. Com escassez de
as razões e, a partir delas, discutir recursos, quais serão as priorida-
uma nova matriz tributária. des e por quem serão definidas? Se
Alguns prefeitos adversários às os recursos são escassos, há ne-
vezes me encontram e dizem: “Go- cessidade de ter critérios para aten-
vernador, estou aplicando o orça- der as demandas da comunidade.
mento participativo lá no meu mu- Se há necessidade de hierarquizar,
nicípio”. Que bom! Vamos conver- quem hierarquiza? É o governante?
sar com o povo da cidade e as pes- É o grupo econômico mais influen-
soas nos dizem: “Sobrou uma ver- te? Penso que deve ser o povo. Isso
ba e o prefeito chamou uns líderes é muito importante.
comunitários, para discutir como Sobre a questão jurídica, con-
aplicá-la”. Como sobrou? Sobrou o fesso que o que temos de acúmulo
quê? O orçamento é a discussão não sugere a institucionalização
da receita e da despesa, por com- do orçamento participativo. É
pleto, por inteiro. Existem algumas uma questão política a ser anali-
pessoas que criticam o orçamento sada. Institucionalizar significa en-
participativo dizendo: “Mas o orça- quadrar numa lei, num regula-
mento participativo discute só um mento jurídico, burocrático, um
percentual da receita, porque o res- processo nascente de controle do
tante já está indexado, sobre isso cidadão sobre o Estado, o gover-
não tem o que discutir”. É preciso no e os governantes.
discutir tudo, até mesmo porque a Penso que está de bom tamanho
cidadania tem o direito de saber o termos na Constituição federal,
porquê dessas indexações e se es- nas constituições estaduais e nas
tão funcionando bem. leis orgânicas dos municípios um

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 37
princípio geral que garanta a par- é a realidade. Vamos criar um con-
ticipação popular, cidadã, na cons- selho paralelo? Não, vamos ter que
trução do orçamento. O resto tem estimular os militantes sociais a
de ser aberto, não pode ser tensionar constantemente esse pro-
engessado, no nosso entendimen- cesso e, com transparência e polí-
to. Como vai ser quando assumir- ticas claras, transformá-lo.
mos a presidência da República? Essa é uma luta que temos de
É um grande desafio: abrir o orça- assumir. Firmeza e paciência não
mento público federal para uma devem faltar para levá-la adian-
discussão que vá além da Comis- te. Mas, evidentemente, um go-
são de Orçamento do Congresso, verno nosso não pode repassar
das duas casas do Congresso, dos verbas para um município sem a
especialistas, dos grupos econômi- comprovação de como o dinheiro
cos. Como fazer isso? Eis a gran- será aplicado. Às vezes no pró-
de e desafiadora questão. prio local há dificuldades de fu-
O controle social das verbas pú- rar o bloqueio, mas na região há
blicas, companheiro Paulo Rubens, possibilidade de discutir melhor e
é um ponto fundamental. Vejamos fazer dessa maneira um cerco,
o caso da saúde. Existem os con- que acaba também por provocar
selhos municipais de saúde. Cada uma mudança naquele lugar ini-
centavo do dinheiro público repas- cial. Esse controle é muito impor-
sado deve ter sua aplicação com- tante: o cidadão saber que tem re-
provada. Por isso a importância de cursos para o seu município. Es-
um conselho de saúde no municí- ses recursos têm prazos para che-
pio. Mas não raro vamos encon- gar lá. Chegaram? Quanto?
trar o conselho manobrado pelo fi- Como foram gastos? Essa é uma
gurão local, pelo cacique político, e questão em torno da qual se pode
constituído pelos seus parentes e trabalhar o fortalecimento dos
cabos eleitorais. Infelizmente, essa conselhos. Os delegados e con-

38 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


selheiros do orçamento participa- integrada com instituições como o
tivo, que são eleitos, também têm Ministério Público, a Polícia Fede-
essa tarefa. E se eles acompa- ral etc. A cidadania discutir e influ-
nham, passa a haver, portanto, uma enciar na construção das propos-
incidência maior de outros sujei- tas de 100% das estruturas de re-
tos sociais sobre esses espaços que ceita e despesa pública nos três ní-
precisam ser conquistados para veis, federal, estadual e municipal,
uma cidadania verdadeira. faz parte desse combate.
O combate à sonegação é, evi- Roberto Gouveia sublinhou bem
dentemente, importante. Existe a a questão da educação para o
sonegação propriamente dita, que exercício do poder. Evidente que
contraria a lei, e a sonegação de- poder, para nós, não é ter um car-
corrente da lei, ou seja, grupos eco- go, um mandato, isso é apenas
nômicos que conseguem aprovar uma parte do poder. Existe um
leis nos legislativos para ficar com outro poder que para nós é o prin-
o dinheiro público. O cidadão paga cipal: o protagonismo do povo.
o imposto mas o imposto não che- Eleger representantes para admi-
ga aos cofres públicos porque tem nistrar parcelas do Estado – go-
um incentivo para determinado gru- verno municipal, estadual ou fe-
po. É a renúncia fiscal, isto é, a deral – não significa a conquista
apropriação privada dos recursos do poder, mas apenas de uma parte
públicos com o beneplácito dos le- dele, mesmo que importante, à
gisladores e governantes. E a cida- qual a classe dominante jamais
dania, que não discutiu essa políti- pensaria que chegássemos.
ca, fica sem recursos para o aten- Disposição para aprender em to-
dimento de suas demandas. das as circunstâncias, superando
Esse é um combate sério para o nossas limitações e nossos precon-
qual a administração fazendária ceitos, não nos deve faltar nunca.
deve estar mais bem estruturada e Diferentemente da direita, temos a

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 39
capacidade de nos construir, cons- um número cada vez maior de pes-
truindo com os outros a apropriação soas do povo. Isso acaba arejando
pública, e não privada, do Estado. os espaços já existentes e possibi-
Temos obrigações e compromissos, litando a criação de novos e ricos
até porque somos um partido, e o espaços de participação popular.
Partido dos Trabalhadores tem pro- Entendo que estas cinco coloca-
posta. Queremos que nossa propos- ções apresentadas pelos compa-
ta, que é de uma parte da socieda- nheiros trouxeram elementos no-
de, possa ser aceita pelo conjunto vos e importantes para a reflexão
dela num processo de construção da sobre democracia, sua radicali-
hegemonia, por meio do convenci- zação, representação, descentra-
mento e do reconhecimento, e não lização do poder, controle público,
da imposição e do arbítrio. aletando para o risco de, pela sim-
No processo do orçamento parti- plificação, não aquilatarmos bem os
cipativo, são eleitos os conselhei- desafios e potencialidades do orça-
ros, que, por sua vez, elegem os mento participativo.
delegados que compõem o COP,
Conselho do Orçamento Partici- Maria Victoria Benevides
pativo. A realização de cada assem- Olívio Dutra respondeu de uma
bléia local e regional é antecedida maneira tão completa e eficiente às
de reuniões e encontros de iniciati- questões, e de uma maneira com a
va das próprias organizações da so- qual eu concordo bastante, que vou
ciedade civil que mobilizam milha- me deter apenas em alguns pon-
res de pessoas. Reúnem-se para tos. Por exemplo, a questão sobre
discutir prioridades locais e regio- o orçamento participativo no plano
nais, para buscar a melhor repre- nacional e a questão jurídica. São
sentação possível nas eleições de pontos extremamente complicados.
conselheiros e de delegados. É um Acho muito difícil pensar numa con-
exercício de política praticado por figuração jurídica para o orçamen-

40 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


to participativo em nível nacional. exemplo, se o povo prefere o acor-
É uma experiência que tem melho- do nuclear do tipo alemão ou do tipo
res condições para dar certo nos norte-americano. Isso realmente
níveis locais e estadual. Para o ní- cabe aos especialistas. Mas pode-
vel nacional, o caminho seria uma mos perguntar se cabe uma dota-
pressão da sociedade organizada, ção orçamentária de tal magnitude
inclusive via partidos, movimentos para um programa nuclear em de-
e mesmo organizações não-go- trimento de outros investimentos em
vernamentais (ONGs), para mudan- educação, saúde etc. A mesma
ça na discussão das leis orçamen- coisa pode ocorrer em relação às
tárias, do que entra como aprova- prioridades de reforma agrária, do
ção, se são aquelas verbas especí- programa de previdência social,
ficas dos parlamentares ou verbas entre outros.
globais para determinadas áreas, Em relação à questão do Ro-
como essa questão é discutida. Isso berto Gouveia, queria lembrar que
significaria realmente mudar o pro- a ênfase na descentralização é ex-
cesso decisório em relação à ques- tremamente importante, junto com
tão orçamentária no plano do Con- a desconcentração do poder.
gresso Nacional. Quer dizer, não apenas descen-
Vejo uma possibilidade ampliada tralizar, ou seja, multiplicar as ins-
para consultas populares, em âmbi- tâncias, mas também desconcen-
to nacional, sob a forma de plebisci- trar. Muitas vezes se descentrali-
tos ou referendos, dependendo da za mas não se desconcentra o
anterioridade ou posterioridade do poder. Vou dar um exemplo da
tema, para questões que vão exigir área da educação. O Ministério
uma dotação orçamentária importan- da Educação descentraliza e
te ou que decidam prioridades. transfere poderes para as secre-
E aqui entra a questão da espe- tarias estaduais. Mas aí cada se-
cialidade. Não vamos perguntar, por cretário “senta em cima”. Sai das

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 41
secretarias estaduais e vai para plo, no plano urbanístico de mu-
as delegacias de ensino; mas aí dança do bairro do Bixiga, em que
cada delegacia “senta em cima”. a população interessada participou
Vai para as escolas, e as diretoras de assembléias para discutir a ex-
– que muitas vezes são extrema- posição dos diferentes projetos e
mente conservadoras diante de depois votar.
qualquer inovação – “sentam em Assim, outras experiências de
cima” da proposta e do projeto. Ou democracia direta certamente com-
seja, há descentralização, mas o pletariam, junto com o orçamento
poder continua concentrado. participativo, um projeto efetivo de
E, finalmente, em relação à ques- mudança no exercício do poder, de
tão do Pedro Pontual, eu lembraria democratização do poder.
outras formas de democracia dire-
ta. Por exemplo, a iniciativa popu- Pergunta
lar: é necessário ampliar o âmbito Levando em conta que a maioria
da iniciativa popular legislativa dos eleitores não se interessa por
para emendas à Constituição. Há política, uma crítica que se faz ao
países em que as emendas consti- orçamento participativo é que só
tucionais podem ser feitas por de- vão às assembléias aqueles que já
cisão popular, e acho que nós po- são atuantes. O eleitor comum aca-
deríamos perfeitamente fazer isso, ba ficando fora de qualquer parti-
assim como ampliar formas de par- cipação. Como poderíamos respon-
ticipação popular em relação, por der a essa crítica?
exemplo, à realização de obras de Pergunta
impacto ambiental ou de grande O governador Olívio Dutra menci-
vulto financeiro. onou que houve uma liminar contra
Lembro que a ex-prefeita de o orçamento participativo. Poderia
São Paulo Luíza Erundina promo- explicar melhor isso e como ficou
veu consultas populares, por exem- essa questão?

42 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


Pergunta da população, que, em princípio,
Muitos municípios e estados têm carece de escolas ou de centros
suas finanças quase totalmente de saúde, estradas etc. É assim que
comprometidas por dívidas, muitas funciona. A população diretamen-
vezes herdadas da gestão anterior. te não é mobilizada, ela ignora
Como discutir, nesse caso, um or- completamente o que ocorre, o
çamento que dificilmente será exe- jogo se dá entre as secretarias e
cutado e tentar enfrentar as tantas os departamentos do Executivo ou
carências da população? os parlamentares, mas sobretudo
entre essas empresas, ou grupos
Paul Singer de empresas, associações, que em
A questão que gostaria de levan- última análise abocanham, já de
tar é como se dá o processo orça- uma forma mais ou menos fixa, de-
mentário sem orçamento partici- terminadas porcentagens dos re-
pativo. Na verdade, existem gru- cursos, seja para investimento,
pos de interesses, que são geral- seja para serviços.
mente comandados pelas empre- A minha pergunta, sobretudo ao
sas que executam as ações de Es- companheiro Olívio Dutra, é de que
tado – e agora com o neolibera- maneira nós conseguiríamos atuar,
lismo e com as privatizações isso mudando completamente esse tipo
se dá cada vez mais. São grupos de jogo, por meio do orçamento
– na verdade lobbies – que, jun- participativo. O orçamento parti-
tamente com a Assembléia ou cipativo, em princípio, deveria co-
com a Câmara Municipal, acabam locar os diferentes interesses po-
fazendo o orçamento. Também pulares em confronto. Aqui estou
existe a parte da burocracia do partindo da idéia de que o povo não
Executivo, mas as empreiteiras, as é homogêneo, nem todos têm o
fornecedoras de serviços e de pro- mesmo interesse. Seria uma sim-
dutos, aparecem como advogadas plificação trágica se imaginássemos

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 43
que a sociedade é composta por ri- co se o povo fosse homogêneo e
cos e pobres, e que os pobres que- todo mundo quisesse a mesma coi-
rem exatamente a mesma coisa, sa e fosse preciso só implementar
portanto basta dar aos pobres, que aquilo que todo mundo quer. O que
são maioria, a voz e o poder de de- eu gostaria de ouvir do companhei-
cisão e tudo muda. Não é assim. A ro Olívio é um comentário sobre
população é heterogênea, sobretu- isso, porque é aí que está o proces-
do no plano estadual, por isso gos- so de construção da soberania po-
taria tanto que o companheiro pular. No plano orçamentário, após
Olívio nos contasse um pouco como 12 anos de orçamento participativo,
são os conflitos no processo do or- provavelmente já há um lastro de
çamento participativo entre as fac- conhecimentos de como encami-
ções do povo. Porque existem gran- nhar essas negociações e garantir
des quantidades de pessoas preci- que elas desemboquem depois, no
sando de escolas e de creches. Mas, Legislativo, de forma positiva.
e as famílias que não têm crianças
em idade escolar, como é que fi- Anísio Homem
cam? Existe necessidade de gran- Gostaria de fazer uma interven-
des recursos para a saúde. Mas os ção partindo um pouco da preocu-
que não precisam desse recurso, pação de Paul Singer, mas tirando
que não têm doenças crônicas, conclusão inversa. Ele tem razão
como é que ficam? Ou seja, a base quando diz que há um verdadeiro
do orçamento participativo, a meu conflito estabelecido entre a popu-
ver, é um processo de conflito e de lação que vai ao orçamento parti-
negociação entre as correntes, ou cipativo. Por quê? Porque existe
entre os setores que formam o algo que não apareceu na primeira
povo. A soberania popular se cons- rodada de falas, ou seja, que o or-
trói nesse processo. Ela não vem çamento dos orçamentos está am-
pronta de uma vez. Seria magnífi- putado, ele é completamente deter-

44 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


minado pela política de Fernando partido? Esse é o papel dos nossos
Henrique Cardoso. O mesmo acon- governantes? Esse é o papel dos
tece com a descentralização, por- parlamentares do nosso partido?
que o governo federal transfere res- Fazendo uma análise do orçamen-
ponsabilidades para baixo e deixa to participativo em Porto Alegre,
o dinheiro em cima. acho que os dados não são anima-
Então há um conflito que, a meu dores nesse sentido. Creio que esse
ver, não é saudável para a demo- problema de tentarmos hierarquizar
cracia; ao contrário, vai contra por baixo colabora para que o que
aquilo que nós queremos, a unida- está aí fique como está e para que
de do povo, unificar esse povo con- acabemos simplesmente ajeitando
tra aqueles que roubam, que pas- entre nós a miséria que nos dão, que
sam a mão nas riquezas deste país nos impõem. Esse é um consenso
e que servem às multinacionais, ao que não interessa...
grande capital especulativo finan-
ceiro internacional. Juliana Piccoli Agati
Não acho interessante esse tipo Tenho uma questão que se re-
de conflito que surge com a demo- laciona com a construção do so-
cracia participativa. Olívio Dutra fa- cialismo, porque sabemos que o
lou que os recursos são escassos, processo do orçamento partici-
que é preciso hierarquizar. Se fizer- pativo proporciona conscienti-
mos uma leitura do orçamento naci- zação crítica para enfrentar os
onal, veremos que, se não me enga- problemas que vemos acontecer
no, 70% dele em 2001 estão sendo na política e que são manipulados
canalizados para o pagamento de dí- pela mídia no capitalismo, na eco-
vidas. É um montante muito gran- nomia em que vivemos.
de. E nós ficamos aqui embaixo, nos Como construir uma proposta,
digladiando em torno das dificulda- uma alternativa econômica, dentro
des de recursos. Esse é o papel do do capitalismo, rumo ao socialismo?

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 45
Como atrelar junto ao orçamento a experiência de Belém1 . Por que
participativo uma proposta de de- Valdir Ganzer foi convidado? Des-
senvolvimento econômico, porque de a primeira fase deste seminário,
acho que ele, por si só, não leva ao o critério tem sido mesclar visões
socialismo, porque não existe capi- diferentes no debate, com pessoas
talismo democrático. E acho tam- de regiões diferentes e com posi-
bém que o orçamento participativo ções diferentes. E a regra geral no
não é uma alternativa dentro do ca- seminário é dinamizar o debate, fa-
pitalismo, mas um processo que zer uma discussão quente no PT.
leva à construção do socialismo. Quando convidamos o Valdir, ele
Gostaria de saber qual a posição do disse, tudo bem, mas nós temos aqui
partido sobre essa questão. em Belém hoje uma divisão, no PT,
a respeito do orçamento partici-
Paulo Vannuchi pativo. E nós dissemos, ótimo, tra-
Gostaria de apresentar duas ga isso para o debate. Então, gos-
questões. A primeira é pedir um taria que os companheiros refletis-
relato aos companheiros da mesa, sem um pouco sobre isso.
e também uma avaliação, um ba- Como segunda questão, eu pedi-
lanço da questão levantada por ria que os dois debatedores reto-
Anísio Homem sobre o possível massem o tema da relação do or-
conflito entre setores da população, çamento participativo com o socia-
que ele vê como algo prejudicial. lismo. O orçamento participativo já
1. O debate deveria ter Eu gostaria de ver isso refletido na começou a nos permitir algumas
contado com a presença de discussão do PT. suposições, algumas hipóteses de
Valdir Ganzer, vice-prefeito de É uma pena a ausência de Valdir um socialismo que não é mais visto
Belém, e de Guilherme Ganzer, vice-prefeito de Belém, como algo que nasce da noite para
Menezes de Andrade, prefeito de
Vitória da Conquista (BA), como
que iria participar deste debate mas o dia, um Armagedon que separa a
comentadores, mas ambos não na última hora não pôde compare- história em antes e em depois. O
puderam comparecer. cer, pois ele traria para a discussão orçamento participativo traz algu-

46 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


ma idéia sobre um processo de ida Olívio Dutra
ao socialismo, que precisaria ser Seriam as assembléias do orça-
combinado com outras formas de mento participativo freqüentadas
participação popular. Podemos co- exclusivamente por militantes do
meçar a pensar, Maria Victoria, PT, ou pelo pessoal do MST (Movi-
nessa complementação, como mento dos Trabalhadores Rurais
aponta a sua reflexão sobre a não- Sem Terra)? Esse é o discurso ad-
contradição entre a democracia versário, que tinha maior intensi-
representativa e a direta? O que o dade no início e que com o tempo,
orçamento participativo permite, em foi sendo esvaziado na prática.
relação a isso? Hoje temos a maioria desses ad-
versários participando e disputan-
José Reinaldo Braga do conosco, trazendo suas propos-
Minha questão também vai nes- tas para o processo do orçamento
se sentido. Essa discussão está no participativo, até elegendo conse-
escopo da relação Estado–socie- lheiros e delegados.
dade. Eu queria saber qual o pa- As assembléias são abertas e
pel do partido nessa forma demo- amplamente convocadas até mes-
crática de administrar, como, e se, mo por prefeituras governadas por
o partido tem feito algo em rela- adversários. O governo, por meio
ção aos movimentos sociais, ao da Coordenação de Relações Co-
movimento sindical, a fim de esti- munitárias, faz também a sua con-
mular a população a discutir o so- vocação, aliás, prerrogativa que per-
cialismo, para politizá-la. Enfim, deu por mais de um ano, por conta
para que a discussão não fique de uma iniciativa jurídica da oposi-
apenas no nível da administração, ção. Refiro-me à liminar contra o
mas comece no povo, com o tra- orçamento participativo interposta
balhador, para que avancemos em pelo ex-governador do estado Al-
direção ao socialismo. ceu Collares. A ação sustentava

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 47
que os gastos na convocação para vez mais. Tanto que os adversários
as assembléias não tinham sido pre- do projeto começam a vir para den-
vistos e que não era de competên- tro dele disputar suas propostas.
cia do Executivo fazer essa discus- Quero sublinhar novamente que
são, pois a Assembléia Legislativa o orçamento participativo é um
já discutia o orçamento. Era, por- processo e não apenas a discus-
tanto, um gasto desnecessário. são da receita e da despesa. É cla-
O poder Judiciário concedeu ro que ele engloba também a pres-
liminar, o que simplesmente impe- tação de contas do orçamento do
diu o Executivo de fazer qualquer ano anterior e, mais do que isso, a
referência às assembléias do orça- previsão do que é o gasto funda-
mento participativo, informando o mental, estratégico. Portanto, no
local e a hora das reuniões, convo- orçamento participativo disputa-
cando a população. Fomos proibi- mos uma visão de desenvolvimen-
dos de fazer isso, seis meses após to para o Estado. Fomos eleitos
a deflagração do processo. Essa com um projeto de desenvolvimen-
liminar demorou mais de um ano to desconcentrado, descentraliza-
para ser derrubada. do, reforçador dos sistemas locais
O que aconteceu? O movimento de produção. Isso envolve ques-
social assumiu essa tarefa como sua tões de conteúdo, de como orien-
e fez a convocação, organizou as tar nossa ação, nossos recursos e
reuniões e convidou o governo para investimentos nessa direção. Nos-
participar. E tivemos 190 mil pesso- so governo disputa esse projeto por
as participando no primeiro ano. No dentro do orçamento participativo.
segundo ano foram 280 mil pesso- Essa disputa inclui setores da nos-
as. Então, esse é um processo que sa própria base social, que têm uma
vem sendo apropriado pelos sujei- visão particularista da luta, local,
tos sociais, individuais e coletivos e, econômica, regional. O governo não
por isso, tem se consolidado cada pode ir para as assembléias e dizer:

48 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


“Vim ouvir o que a população quer O espaço do orçamento partici-
que nós façamos”. Não. Deve pro- pativo promove a discussão sobre
por, debater e assumir responsabili- o destino da renda gerada pelo tra-
dades. O espaço do orçamento balho, sua apropriação e o papel do
participativo é um bom espaço para Estado nessa questão. É difícil ter
esse debate denso, às vezes tenso. um espaço melhor para fazer esse
É um espaço de construção. debate render tanta cidadania.
Em 1999, nosso primeiro ano de A população é heterogênea, por
governo, tivemos de lidar com um isso ao promover o desenvolvimen-
orçamento herdado. A Lei Orça- to é necessário respeitar especifi-
mentária é votada num ano para cidades locais, regionais, e ver
execução no ano seguinte. Estáva- como introduzir novas vocações
mos com um projeto de integração, sem destruir as antigas, e atualizar
de desconcentração, de descentra- as tradicionais, sem descaracterizá-
lização, condicionados por um or- las. Isso é um processo, no qual o
çamento feito com uma visão dia- debate vai avançando, se tornando
metralmente oposta. mais complexo, mas também mais
Na verdade, herdamos um esta- compreensível para um número
do em que o governo trabalhava maior de pessoas. Imaginem a di-
com três orçamentos: o orçamen- ficuldade inicial de levar adiante um
to propriamente dito do ano de processo desses em Porto Alegre,
1999; as antecipações de receita multipliquem por dez e encontrarão
e os 5 bilhões de reais da venda algo parecido com a complexidade
de patrimônio. Somente a partir de de se fazer o mesmo no estado.
2000, portanto, é que começamos Imaginem essa questão sendo en-
a trabalhar com o orçamento cons- frentada na dimensão do país que
truído com participação e que tem nós queremos governar. Diante de
um grau de sintonia maior com o tamanho desafio, alguns poderão di-
nosso programa. zer: “Não vamos nos meter nisso”.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 49
Eu digo que essa é uma boa e ne- E é por dentro do orçamento
cessária peleia. participativo, por exemplo, que dis-
Sendo governo, temos responsa- cutimos qual é a estrutura tributá-
bilidade de executar obras, qualifi- ria justa para o país e o Rio Grande
car serviços, atender bem a popu- do Sul. Quem paga imposto, quem
lação, além do compromisso não paga, quem ganha, quem per-
programático. E como é que se faz de com isso? E qual é o papel dos
isso? “Ah, mas o orçamento her- entes federados municipal, estadu-
dado foi ditado pelo FMI, no gover- al e federal? Temos de nos sujeitar
no anterior...” Isso pode ser uma a uma matriz tributária imposta ver-
explicação no início, mas não uma ticalmente? Não, é preciso pressio-
solução depois. Claro que se deve nar para mudá-la. Há medidas que
denunciar esta ingerência para se podem ser tomadas no estado, sem
desvencilhar dela. Conscientizar! O esperarmos reforma tributária
povo tem noção desses problemas. federal. Levamos essa discussão
Quando discute o orçamento do para a Assembléia Legislativa,
estado, ele se pergunta: “E o orça- onde, de 55 cadeiras, temos 12. A
mento aqui do município?” Já é uma discussão foi grande e é claro que
boa inquietação, ele já está se aper- não passou. Já no segundo ano, se-
cebendo de mais coisas. A vida do tores empresariais se mostraram
cidadão, da pessoa, na verdade, é favoráveis a mudanças importan-
tratada por três orçamentos públi- tes na estrutura, mas ainda não ti-
cos: o da União, o do estado e o do vemos maioria para aprová-las na
município. Por que orçamento Assembléia Legislativa. No espa-
participativo só no estado? Ele se ço do orçamento participativo elas,
pergunta. E a partir daí passa a no entanto, foram apreciadas, aper-
querer orçamento participativo tam- feiçoadas e recomendadas.
bém na sua prefeitura. Penso que Portanto, o orçamento participa-
isso é positivo. tivo não é um espaço de subordi-

50 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


nação ou de aceitação do que está ganhar a eleição seguinte? Todos
dado. Ali se tensiona a situação exis- esses são elementos da política,
tente, debatem-se as relações entre mas o correto é que haja uma defi-
o orçamento do estado, o orçamen- nição de prioridades baseada na
to federal e os orçamentos munici- negociação direta com participação
pais, e se constroem políticas alter- da cidadania. O orçamento partici-
nativas de médio e longo prazos. pativo é propiciador disso.
Bueno, o que não se quer é jogar Ou seja, o orçamento participa-
povo contra povo a discutir miga- tivo é um processo que vem ga-
lhas. É evidente que não. Mas não rantindo mais consistência e obje-
há mudanças que não comecem tividade à apropriação pública do
pela definição de critérios. Não sou Estado. É uma ferramenta mais
economista, mas sempre ouvi dizer poderosa à medida que mais gen-
que economia é a ciência que ensi- te participa do processo.
na a lidar com a escassez, a admi- Encaramos o socialismo como
nistrar a escassez. É isso mesmo. um processo, não como uma re-
Ainda que fosse aprovada a nova ceita pronta e acabada. O orça-
estrutura tributária, não teríamos, de mento participativo é revolucioná-
imediato, recursos suficientes para rio sem ser “o assalto ao Palácio
atender de uma vez todas as de- de Inverno”. Para mim, ele desen-
mandas do povo há tanto tempo cadeia um processo de mudanças
represadas. Por tudo isso é preciso em que milhares de pessoas vão
definir critérios. É evidente. interagindo e se assumindo como
Então, é preciso hierarquizar protagonistas. Se o encaramos des-
ações. E quem vai fazer isso, quem se modo, o orçamento participativo
define as prioridades? A pressão é revolucionário.
dos grupos econômicos? Os seto- Eu não tenho uma receita acaba-
res mais influentes na mídia? A vai- da, pronta, de socialismo. Mas te-
dade do governante? O desejo de nho consciência de que o sonho da

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 51
humanidade de felicidade e de de- devem ser também estimuladores
mocracia não se realiza nos mar- dessa consciência republicana do
cos do capitalismo. respeito à coisa pública e do con-
O orçamento participativo, por- trole público sobre o Estado, o go-
tanto, é um instrumento poderoso, verno e os governantes.
que, quanto mais for apropriado por Temos um ditado popular, acho
milhares de pessoas, mais potente que não só no Rio Grande do Sul,
será como ferramenta de constru- mas no Brasil inteiro, que diz: “O
ção de uma participação que a olho do dono é que engorda o boi”.
radicalidade democrática vai fazen- E o povo é o dono da coisa pública.
do mais transformadora. O povo tem de ter instrumentos
Tudo isso liga-se à questão do para cuidar bem do que é seu e
Estado de direito democrático, que fazê-lo produzir qualidade de vida
está no discurso dos liberais mas em todos os sentidos.
não está na sua prática. Não resta O companheiro Braga, de Cam-
dúvida de que a democracia repre- pinas, pergunta qual tem sido o pa-
sentativa é uma conquista da hu- pel do PT ou do movimento social,
manidade, mas ela precisa ser re- dos sindicatos, no processo do or-
vigorada, e a forma de fazer isso çamento participativo.
é estimular a participação, apos- Na exposição inicial, fiz questão
tar na intervenção direta das pes- de sublinhar que o espaço do or-
soas na construção da política, no çamento participativo não pode ser
controle do Estado, do governo, um espaço sob controle nem do
dos governantes. Entre nós não governo e nem dos partidos. Mas
está sequer alastrada – e muito é um espaço em que todos devem
menos sedimentada – a idéia de atuar com intensidade, franqueza,
república. As elites tradicionais disposição, solidariedade e políti-
têm feito do Estado uma proprie- cas. O PT tem de ser um grande
dade particular. Nossos partidos estimulador da participação popu-

52 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


lar e ser ele mesmo um protago- venção cidadã que possibilite o
nista. Evidentemente que o parti- mais amplo controle público sobre
do, por intermédio de suas instân- o Estado. O PT tem tudo para fa-
cias, pode reunir militantes sociais zer, por dentro desse processo, a
comunitários em torno dessa ou boa disputa de projeto.
daquela posição, antes de ir para Tem havido, sim, alguns questio-
a assembléia. É evidente, mas tem namentos do tipo: “Bom, mas agora
de assumir que é governo, por isso só podemos disputar tal verba se
sua ação articulada deve corres- formos para dentro das assembléi-
ponder à de um partido que tem as do orçamento participativo?” Por
responsabilidade de governar e exemplo, o movimento dos peque-
assumir plenamente as conseqüên- nos agricultores, o MST e tantos ou-
cias disso. Significa enfrentar tros. É evidente que os movimentos
eventuais disputas com áreas da sociais não podem ser diluídos den-
própria base social em questões tro do processo, mas também não
que vão além do senso comum. podem ficar alheios ou acima dele.
Este é um bom espaço de apren- Há um bom debate ainda para se
dizado que caldeia e forma mili- fazer sobre isso. Está em curso um
tantes sociais e partidários. Na processo de discussão da relação
nossa experiência de 12 anos de dos movimentos sociais com o go-
orçamento participativo, em ne- verno e com o orçamento partici-
nhum momento o nosso partido pativo. Há necessidade de um novo
caiu na tentação de instrumenta- balizamento. Pensávamos: “Agora
lizar o orçamento participativo. O que assumimos o governo as coisas
orçamento participativo não pode vão ser facilitadas por conta da base
ser uma correia de transmissão dos social, da sintonia das entidades mais
partidos, e muito menos do gover- representativas do movimento social
no. Ao contrário, tem de ser, real- com o nosso projeto”. Evidentemen-
mente, um espaço aberto de inter- te, o que mais precisamos ter, num

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 53
quadro de acirrada e permanente rejeita o individualismo e tem no res-
disputa com o projeto adversário peito à individualidade do ser hu-
neoliberal, é coesão da base social mano um dos valores fundamentais
do governo. Isso significa construir da vida comunitária e da solidarie-
a política e a ação do governo com dade entre as pessoas. Esse sonho
a participação de todos os partidos nos embala para a construção do
e movimentos sociais da sua base. socialismo democrático e libertário.
Esse fazer político permanente exi-
ge bons debates e não é uma coisa Maria Victoria Benevides
fácil nem idílica. Requer descon- Como da outra vez, acho que
centração do poder, descentraliza- Olívio Dutra respondeu de forma
ção da ação, provocação permanen- bastante completa às perguntas,
te à participação direta, qualificação que, aliás, tinham muito mais a ver
da informação etc. etc. O compro- com sua experiência.
misso é executar o Plano de Inves- Eu teria duas considerações ape-
timentos, resultado da discussão nas. A primeira, em relação à ques-
realizada no orçamento participativo, tão de que só as pessoas que já são
nas suas assembléias, consolidado na participativas vão às plenárias do
Lei de Meios aprovada na Assem- orçamento participativo. Como en-
bléia Legislativa. É uma responsa- frentar essa questão, que ocorre
bilidade séria e importante. Se não em muitos outros momentos da vida
houver essa relação de responsa- partidária, quando falamos somen-
bilidade no seu cumprimento esta- te para os convertidos?
remos despotencializando um pro- Acho que isso ocorre em relação
cesso que tem uma enorme rique- a todo tipo de envolvimento políti-
za, e que tem muito a ver com nos- co de indivíduos e de grupos. É evi-
so sonho de transformação da so- dente que os mais politizados, que
ciedade que se realiza a partir do já estão de alguma maneira inseri-
protagonismo político. Nosso sonho dos numa organização pela base,

54 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


vão participar mais. Mas é por isso uma qualidade muito melhor do que
que eu insisto em reforçar a idéia era, por exemplo, quando votei pela
de que formas de democracia dire- primeira vez, aos 18 anos. Hoje as
ta contribuem para a educação po- camadas mais oprimidas da soci-
lítica, como uma escola de cidada- edade têm canais para se mani-
nia democrática. Diante desse mes- festar, procuram se informar e pro-
mo argumento de que só os curam votar de modo independen-
“participativos”, os mais politizados, te da manipulação dos currais elei-
vão participar, poderíamos dizer que torais, com muito mais chance do
somente os politizados é que parti- que nos anos 60, isso sem falar nos
cipam das eleições para represen- períodos anteriores.
tantes do Executivo e do Legislativo O que me parece interessante é
de uma maneira consciente. Só eles que esses que já são participativos
vão se informar, vão realmente vo- e que vão participar do processo de
tar de uma maneira consciente e, orçamento participativo e outros de
inclusive, só eles vão acompanhar democracia direta, justamente por-
para realmente se sentirem partí- que são mais organizados e mais
cipes e representados nesse pro- politizados, têm condição de levar
cesso democrático. E, no entanto, outros; e o processo é esse mes-
sabemos que o processo eleitoral mo. O Olívio insiste na idéia de pro-
é também uma escola política. É cesso e eu também; é um proces-
votando que se aprende a votar. E, so, e nesse processo a politização
quanto mais se vota, maior é a pos- vai contagiando, vai aumentando a
sibilidade de se adquirir uma cons- participação. Mas não existe outra
ciência política. Temos visto isso maneira, só se aumenta a partici-
como um dado extremamente po- pação participando. E tem que se
sitivo da participação popular nas começar com aqueles que são mais
eleições. Eu diria que a participa- participativos mesmo. Todo proces-
ção popular hoje nas eleições é de so político é assim.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 55
Paulo Vannuchi nos lembra do tórica da experiência dos sovietes,
objetivo desse seminário, que é jus- mas afirmar que ela não é suficiente
tamente associar o tema em ques- nem é o modelo para nós hoje. O
tão com uma proposta socialista, modelo do duplo poder não é mais
uma reflexão sobre o socialismo. o modelo, na minha opinião, para
Eu gostaria de insistir nisso, pois um socialismo contemporâneo, de-
vejo as formas de democracia di- mocrático e libertário, mas é uma
reta não apenas como uma radica- experiência que tem de ser levada
lização da democracia mas real- em conta.
mente como um caminho para esse Eu faria uma analogia, seguindo
socialismo a construir, esse socia- Cornelius Castoriadis, em relação
lismo que é processo. à democracia direta grega, que ele
Conhecemos a tradição históri- considera o embrião de nossa de-
ca, revolucionária, de democracia mocracia, apesar de ter sido alta-
direta, os sovietes, a Comuna de mente excludente, porque excluía
Paris e outras formas, e Paulo Van- as mulheres, os não-proprietários,
nuchi lembrou os entraves para que os estrangeiros. Era uma democra-
essa participação fosse efetiva- cia que convivia com os escravos,
mente democrática. assim como muitos séculos depois
Aqui, devemos voltar aos militan- os liberais jeffersonianos, os pais
tes pensadores, como Rosa Luxem- fundadores da democracia ameri-
burgo, que já questionavam, nos cana e que defendiam a República,
embates de doutrinas e estratégias conviviam, apesar de seu liberalis-
que marcaram seu tempo, os des- mo, com a escravidão. São experi-
vios antidemocráticos do socia- ências históricas que têm de ser
lismo. Por isso, digo que não deve- analisadas em seu contexto históri-
mos ter medo de falar em demo- co. Mas é preciso contextualizar: a
cracia direta. Não podemos. Temos democracia ateniense se deu no sé-
que reconhecer a contribuição his- culo IV a.C. No meu livro sobre a

56 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


cidadania ativa 2 , escolhi como sovietes, que são extremamente ri-
epígrafe justamente o discurso de cas, o que elas têm de revolucioná-
Péricles, citado em A Guerra do rio em relação ao seu momento his-
Peloponeso, do historiador Tucí- tórico. E entender o que isso repre-
dides: “Nós somos, de fato, os úni- senta para nós, hoje, sem que isso
cos a pensar que aquele que não se torne o nosso modelo. Por exem-
se ocupa da política merece ser plo, toda vez que nos pressionam
considerado não como cidadão tran- para dizer “mas, afinal, qual é o so-
qüilo, mas como um cidadão inútil. cialismo de vocês?”, nós responde-
Intervimos todos, pessoalmente, no mos, como disse o Olívio, que não
governo da pólis, quer pelo nosso existe nenhum modelo, hoje, que
voto, quer pela apresentação de possamos dizer que é o nosso mo-
propostas, pois não somos dos que delo de socialismo. Temos de dizer
pensam que palavras prejudicam a que é um processo que vamos cons-
ação. Pensamos, ao contrário, que truir, porém tendo como base e
é perigoso passar aos atos antes aproveitando os erros e dos acer-
que a discussão nos tenha esclare- tos dessas experiências históricas.
cido sobre o que se deve fazer”. Paulo Vannuchi levantou uma
Péricles disse isso quatro séculos questão que já havia sido levanta-
antes de Cristo. O que nos deve da por Pedro Pontual, ou seja, a ne-
surpreender é como essas idéias cessidade de combinar orçamento
foram sepultadas durante centenas participativo com outras formas de
de anos para só reaparecerem no democracia direta. Isso é absolu-
final do século XVII, nas revoluções tamente indispensável. O orçamen-
burguesas do século XVIII, no mo- to participativo sozinho não se sus-
vimento socialista do século XIX. tenta. Acho, como disse Olívio, que
Então, temos de avaliar tudo isso podemos considerar essas formas,
e tirar dessas experiências concre- hoje, como revolucionárias. Elas 2. BENAVIDES, M.V. A cidadania
tas, inclusive das experiências dos são revolucionárias, sim, porque ativa. São Paulo, Ática, 1999.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 57
botam de ponta-cabeça uma idéia de mocracia representativa brasileira
poder, uma idéia de governo, uma que se torna necessário voltar a ou-
idéia de processo decisório, e elas tra experiência do socialismo his-
são tão revolucionárias que causam tórico, que é o mandato imperati-
não apenas perplexidade, mas o ódio vo. Defendo o mandato imperativo
das elites, que não querem abrir mão não no sentido absoluto de uma pri-
de uma fatia mínima do seu poder. são do eleito por seu eleitorado, mas
Quando discuti essas questões defendo um mandato imperativo
numa Comissão Mista, do Senado e partidário, ou seja, um compromis-
da Câmara, na época da Constituin- so inamovível com o núcleo doutri-
te, defendendo essas idéias de de- nário e inegociável do programa
mocracia direta, lembro-me de um partidário, que tem de ser contro-
deputado, bem tradicional, de Minas lado não necessariamente pelo elei-
Gerais, que dizia: “Professora, tudo torado – que não sabemos quem é,
isso que a senhora fala é muito boni- no sistema eleitoral que temos –,
to. Mas, na realidade, não é isso. Eu, mas controlado e discutido pelo pró-
por exemplo, sou votado por quê? Sou prio partido. Ou seja, ninguém no
votado porque todo mundo sabe quem PT pode ser contra certos princípi-
é o meu pai, quem foi o meu avô, os e certas propostas que compõem
quem foi o meu bisavô. Não tem sen- o programa essencial do partido. E
tido que toda essa dinastia de poder aí é que vamos discutir se realmente
seja atacada, contaminada e prejudi- o orçamento participativo e formas
cada por um povo que não sabe de de democracia direta compõem
nada, que não tem condição nenhu- esse núcleo central do compromis-
ma de participar. Eu recebi um man- so partidário.
dato, eu tenho de ter carta branca Não tenho medo de enfrentar a
para o exercício desse mandato”. questão histórica do que foi a de-
Essa idéia de que o mandato é mocracia direta, desde a democra-
uma carta branca é tão forte na de- cia direta ateniense, excludente,

58 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


até as formas revolucionárias de que mais me preocupa é essa ques-
democracia direta e as experiên- tão da atuação parlamentar, e eu
cias de hoje. realmente não sei ao certo como
Para terminar, quero registrar que essas coisas acontecem.
recebi agora um texto que traz um
comentário muito bonito da profes- Alencar Santana Braga
sora Suzana Prudente Correia. Ela Quero fazer uma pergunta à pro-
não faz nenhuma pergunta, faz uma fessora Maria Victoria Benevides.
reflexão no sentido de que o orça- A senhora apontou no início a difi-
mento participativo é um fermento culdade de se implantar o orçamen-
na nossa luta democrática. Eu gos- to em nível federal. Mas, por isso
tei muito da expressão. Obrigada. mesmo, considerando que vivemos
num país em que a União concentra
Zilah Abramo o poder de distribuição dos recur-
Tenho uma preocupação com a sos, não seria possível colocar o or-
questão da democracia direta e da çamento pensando nas cinco regiões
democracia representativa, princi- do país, ou outras quaisquer, passan-
palmente com as conseqüências do de instância em instância até che-
que ela pode ter em relação aos gar ao município, ou seja, uma re-
parlamentares, ao Poder Legisla- gião em que fosse viável a parte prá-
tivo. Queria saber qual foi a dife- tica do orçamento participativo, em
rença de qualidade ou de maneira vez de a distribuição de verbas ficar
de procedimento das bancadas de como está hoje, ao bel-prazer do go-
vereadores a partir da implantação verno federal, que as distribui de
real do orçamento participativo. O acordo com seus interesses?
que mudou? Se conseguirem dar um
ou dois exemplos, já fico satisfeita. Gustavo Venturi
Estou extremamente preocupada Tivemos a oportunidade de fazer,
com isso. No momento, o assunto por meio da Fundação Perseu

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 59
Abramo, duas pesquisas de opinião de maneira bastante acentuada
de âmbito nacional, uma em 1997, nesses dois levantamentos, não
com a população em geral, e outra aparecesse em amplas camadas
em 1999, com jovens de todas as da população.
regiões metropolitanas. Incluímos Isso nos coloca uma questão, que
nelas algumas perguntas para ten- seria: cabe ou não aos governos fo-
tar captar a consciência de direitos mentar a consciência desses direi-
no país. E tanto em uma como na tos políticos de participação? O que
outra o que se observou foi que pode ser uma questão banal, por-
cerca de dois terços da população que provavelmente o que une a
ou dos jovens das regiões metro- maioria das pessoas que estão aqui,
politanas expressaram espontanea- atraídas por este tema, é uma res-
mente ter noções sobre direitos que posta positiva a essa questão. Mas,
podem ser classificados na catego- como já foi dito, nem mesmo todos
ria de direitos sociais ou econômi- os governos petistas dão a mesma
cos: direito à educação, à saúde, ao importância e essa quetão. O or-
trabalho, à renda etc. Pouco mais çamento participativo é uma mar-
de 20%, somente, em ambas as ca forte do PT, mas não é desen-
pesquisas, mencionaram os chama- volvido em todas as administrações
dos direitos individuais ou civis: li- petistas. Acredito que aparece nes-
berdade de ir e vir, liberdade de ex- sa questão, talvez, um problema na
pressão. E os direitos propriamen- percepção do caráter pedagógico
te políticos foram mencionados por que não só o orçamento participa-
cerca de 10%, apenas. tivo, mas também outras formas de
Então, uma leitura otimista des- participação popular têm em rela-
ses dados nos levaria ao seguin- ção a transformar as pessoas que
te: é bem provável que poucas participam desse processo, seja os
décadas atrás essa consciência de indivíduos, seja os agentes coleti-
direitos sociais, que apareceu vos. Para fazer governos com in-

60 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


versão de prioridades, não é preci- como setores inicialmente alheios
so orçamento participativo ou ra- a esse processo acabaram por se
dicalizar a democracia a partir do incorporar a ele.
poder, basta que se usem instru-
mentos como as pesquisas de opi- Antônio Lanzetti
nião e se detecte quais são os prin- Trabalhei vários anos na admi-
cipais problemas da população e nistração de Santos, no período em
suas maiores demandas. No entan- que o PT governou a cidade. Co-
to, atender mais ou menos a essas ordenei por um período curto o
reivindicações está muito pouco no orçamento participativo, que lá se
controle dos governos municipais, chamava Congresso do Orçamen-
um pouco mais no dos estaduais, to. E sempre me interessou muito
por falta de controle das questões a questão de como lidar – essa é a
macroeconômicas. Corre-se o ris- primeira pergunta para o compa-
co de alguns governos serem ava- nheiro Olívio Dutra – com o que
liados como tendo sido um pouco eu gosto de chamar de espírito
melhores ou um pouco piores do passional reivindicativo, que é
que outros que já passaram, do PT essa situação de só reivindicar para
ou não, em relação às medidas ob- o poder público, sendo que uma
jetivas de atendimento a essas rei- das características fundamentais
vindicações. Mas o que fica de mu- do capitalismo, e do capitalismo
dança propriamente dita em rela- contemporâneo, é a produção de
ção a uma nova cultura política? E faltas, de carências. Todo mundo
aí entram as questões de participa- está em falta. Quem não tem para
ção, entre elas a do orçamento comer não tem nada mesmo...
participativo. Gostaria de ouvir al- Quem tem um Santana quer um
gum comentário a respeito disso do BMW, e assim por diante. Formas
governador Olívio Dutra, que já nos que levaram um filósofo como Felix
relatou aqui algumas questões de Guattari a chamar isso de experi-

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 61
ências ou práticas capitalísticas, çamento participativo não acabou
um modo de ser capitalístico. com a teoria inventada por Maquiavel
A segunda questão é a tensão de marketing político. Nosso maior
entre as formas de participação e êxito são as várias gestões que se
as formas de protagonismo. sucedem no Rio Grande do Sul.
Em terceiro lugar, uma pergunta Por último, gostaria de saber se,
que suponho ser uma crítica frater- baseado nessa idéia de Guattari das
nal: o orçamento participativo não formas ou práticas capitalísticas,
é também, às vezes, uma maneira poderíamos nos aventurar a cha-
de postergar a ação do poder lo- mar a experiência do orçamento
cal? Não é uma maneira de não participativo de forma socialística.
fazer, de adiar um serviço ou de não
fazer transformações que impli- Sebastião Marcelo Sobrinho
quem rupturas muito grandes para Gostaria de fazer aqui alguns co-
o imaginário coletivo? mentários e, ao mesmo tempo,
Quarta questão: a professora apresentar algumas questões. Eu
Maria Victoria Benevides citou diria que a primeira coisa que leva-
Castoriadis, que afirmava que po- mos satisfeitos daqui é essa noção
demos lutar contra o mercado ca- de processo. Acho que é importan-
pitalista, mas o mercado é como a te fixar essa noção. Por quê? Pa-
linguagem, não se pode viver em rece-me que é um processo de edu-
sociedade sem ele. Assim, o orça- cação política – e para nós o orça-
mento participativo não seria uma mento participativo na cidade de
maneira, como outras experiênci- Mauá (SP), do qual sou coordena-
as que Porto Alegre tem, de dor, tem sido isso, é coisa de gente
reinvenção do mercado como ta- teimosa. E ser teimoso tem um
refa histórica da esquerda? grande valor na política. Por que
E, penúltimo, como funciona a digo isso? Temos, em Mauá, uma
questão do imaginário, porque o or- das maiores dívidas públicas deste

62 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


país. Para um orçamento próximo al como federal; cada vez mais
de 160 milhões de reais temos uma para os municípios está sobrando
dívida de 800 milhões de reais. E serviço e faltando dinheiro. Preci-
nessa situação estamos debatendo. samos estar muito atentos a essa
Não sei se podemos chamar de política financeira.
orçamento participativo, mas tive- Gostaria também de testemunhar
mos a coragem de fazer o debate aqui que o grande ganho desse pro-
com a população dessa situação fi- cesso é o encontro de saberes. É
nanceira e, a partir dela, estamos fantástico ter a possibilidade, den-
discutindo e tendo um processo de tro desse processo, de entender o
participação popular muito interes- que é o diálogo político.
sante. Acho que precisamos ficar Por fim, acho que está na hora
atentos ao que se relaciona a essa de podermos refletir e aprofundar
experiência do orçamento parti- mais essa experiência, fazendo en-
cipativo. Não há receita. No nosso contros, mas acho também que o
caso é assim, se tivéssemos que partido precisa encabeçar isso,
partir de uma receita, chegaríamos destacando a importância que está
à seguinte conclusão: não dá para tendo não só essa experiência do
fazer nada e ponto final. Então, esse orçamento participativo, mas vá-
é o fato importante, estarmos aten- rias outras experiências de políti-
tos a quais processos se relacionam cas públicas que estão sendo im-
com o orçamento participativo. plementadas, centradas na partici-
Na nossa caminhada em Mauá, pação popular.
temos de destacar algumas coisas
que estão se relacionando, sim, no Olívio Dutra
debate, na discussão e naquilo que Resta-me pouco tempo para
temos construído na cidade. Pri- abordar as cinco importantes colo-
meiro, a ligação que isso tem com cações feitas, então eu queria agra-
a política financeira, tanto estadu- decer esta oportunidade propicia-

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 63
da por todos de avaliação séria da bléia Legislativa, pois no Estado
experiência desafiadora que democrático de direito as leis são
estamos vivendo. Doze anos é pou- feitas pelas casas legislativas: as
co, ela não está ainda suficiente- câmaras municipais, as assembléi-
mente espraiada e enraizada no as legislativas e o Congresso Na-
nosso próprio estado. Mas não po- cional. Se existe uma participação
demos jogar fora a criança com a crescente no processo de discus-
água do banho. Devemos cuidar são e feitura do orçamento mas,
bem dela para que cresça viçosa e quando votado na casa legislativa
cheia de esperança. É evidente que todo aquele processo é descarac-
ela se relaciona a experiências ri- terizado, desrespeitado, surge uma
cas, vividas em situações históricas tensão entre o representado e o seu
e geográficas diferenciadas. Rela- representante, que vai desembocar
ciona-se ao protagonismo dos mo- em uma nova postura do eleitor
vimentos sociais e a uma proposta quando da renovação dos manda-
de nova sociedade que pensa glo- tos legislativos. Mas isso em um pro-
balmente mas trata de forma cesso com ritmos diferentes.
entrelaçada os desenvolvimentos Mas é importante que aqueles que
local, regional e nacional. participaram da construção coleti-
A questão da democracia direta, va da proposta na fase inicial parti-
participativa, e sua correta combi- cipem também do seu debate na
nação com a democracia represen- fase seguinte, nos legislativos. Isso
tativa há de ser sempre atual nes- implica construir uma permanente
se processo. As pessoas têm que interação do governo com seus par-
saber clara e objetivamente que es- lamentares, inclusive para que parti-
tão construindo uma proposta, mas cipem, desde o início do processo, dos
não estão finalizando ali o orçamen- debates da proposta nas suas bases
to, porque o orçamento só se torna e regiões. Isso certamente qualifica
lei depois de aprovado pela Assem- o debate no Legislativo, possibilitan-

64 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


do que a Lei Orçamentária a ser çamento participativo ou outras ins-
aprovada não ignore ou desconstitua tâncias de participação direta da po-
a proposta que veio fecundada pela pulação são insubstituíveis.
participação popular. Portanto, a informática ajuda a
Bueno, é importante realmente a democratizar a informação, mas
apropriação coletiva das modernas não supera nem substitui a partici-
tecnologias da informática e da co- pação. Lembro o que ocorreu no
municação. Existem desafios im- Rio Grande do Sul. Em 1998, no fi-
portantes nesse terreno para nós. nal de seu mandato, ano eleitoral, o
Podemos aproveitar a informática governo anterior, prevendo e ten-
e ter locais na cidade, nos municí- tando evitar a derrota, e perceben-
pios, onde o cidadão possa acessar do que o orçamento participativo
em tempo real a informação, na era uma proposta programática
casa dele, na praça ou num prédio nossa que ia ao encontro da cida-
público. Isso é muito importante, dania, bolou uma coisa chamada
mas nada substitui o encontro consulta popular. Era uma espé-
afetivo e solidário de um ser huma- cie de pesquisa de opinião, sem ple-
no com outro, na sua comunidade. nária, sem assembléia, bolada nos
Não podemos confundir pesqui- gabinetes, que foi institucionalizada
sa de opinião com participação. como uma decisão de governo.
Como disse aqui o companheiro Isso deixou amarradas para nós al-
Gustavo Venturi, uma pesquisa gumas obras e serviços definidos
pode apontar o desemprego, a vio- pela tal consulta popular, sem su-
lência, a saúde como principais pre- plementação de recursos. Foi pre-
ocupações do povo. Mas qual é o ciso submetê-las às assembléias do
grau de imantação, de participação, orçamento participativo e, revistas,
de responsabilidade cidadã no en- elas estão sendo executadas junto
frentamento dessas questões pro- com o Plano de Investimentos de
vocado pela pesquisa? Nisso o or- 2000 e 2001. Mas, com a experi-

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 65
ência do orçamento participativo, sição, de acompanhamento que tem
ninguém mais quer saber daquele de ser respeitada. Aliás, não é de-
tipo de consulta. mais sublinhar que o orçamento
Também a Assembléia Legis- participativo é o processo e não a
lativa, à medida que o orçamento peça orçamentária, a lei.
participativo foi sendo apropriado O orçamento participativo não
pela cidadania e se consolidou, ten- pode servir de escapatória para se
tou a ele se contrapor criando o justificar que tal obra não saiu por
Foro Democrático. No fundo, é o conta disso ou daquilo. É evidente
reconhecimento de que o debate do que, participando da construção da
orçamento não poderia ficar ilhado proposta, o povo passa a conhecer
na casa legislativa. Os próprios o grau de endividamento, os recur-
parlamentares querem agora ir às sos para investimentos e os custos
regiões, às comunidades, fazer reu- para a manutenção e conservação
niões abertas sobre a proposta or- da máquina pública. Estamos ago-
çamentária que o governo entrega ra na terceira edição do orçamen-
ao Legislativo a cada mês de se- to participativo no âmbito estadual.
tembro. Estimulamos o povo a par- Começamos o ano com uma pres-
ticipar também das reuniões do tação de contas sobre a execução
Foro Democrático como momento do orçamento anterior, para nela
importante no processo do orça- engatar a construção das priorida-
mento participativo. des do novo orçamento. Nosso go-
O orçamento participativo não verno tem conseguido que a defini-
pode ser uma protelação, servir de ção das prioridades tenha conso-
justificativa para se dizer “não fiz nância com a execução de políti-
porque o povo não decidiu ainda na cas constantes do nosso programa.
assembléia do orçamento”. Eviden- É claro que a estrutura administra-
te que não, mas é uma instância de tiva, burocrática, às vezes não res-
formulação, de decisão, de propo- ponde com a agilidade e a qualida-

66 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


de necessárias. O governo tem de de demandar esse espaço próprio e
se explicar, e isso é correto, faz responsável, sem afrouxar a articu-
parte do processo. lação no plano administrativo e a vi-
Dinheiro público não é proprie- são nacional dos problemas brasilei-
dade do governante, em nenhum ros. Essa noção da relação federada
nível, e é escasso. Os entes federa- vai se tornando cada vez mais clara
dos – União, estados e municípios nos espaços de discussão do orça-
– têm de estar articulados na exe- mento participativo.
cução dos recursos públicos, e Bueno, para encerrar, gostaria de
como somos uma República fede- expressar a enorme alegria de ver o
rativa, e não unitária (como a Fran- nosso partido fazendo discussões de
ça, por exemplo), existe um espa- temas como este e tantos outros, que
ço de autonomia tanto para o muni- não estão presos a uma circunstân-
cípio como para o estado. Não pre- cia ou a uma conjuntura específica,
cisamos ser meros repetidores da mas têm tudo a ver com a conjuntu-
política do governo federal. Temos ra maior que a gente tem de mudar.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 67
68 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO
Sobre os autores

OLÍVIO DE OLIVEIRA DUTRA nasceu no dia 10 de junho de


1941 em São Luiz Gonzaga (RS), no distrito de Bossoroca, hoje um
município emancipado.
Como funcionário concursado do Banco do Estado do Rio Grande do
Sul (Banrisul), mudou-se para Porto Alegre no final da década de 1960.
Foi presidente do Sindicato dos Bancários por duas gestões, coordena-
dor da Intersindical e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores,
do qual foi presidente nacional e regional. Deputado federal eleito em
1986, participou da Constituinte, recebendo nota 10 do Departamento
Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP). Em 1988, elegeu-se pre-
feito de Porto Alegre. Durante o seu governo, foi implantado o orça-
mento participativo e inaugurada a Prestação de Contas Pública da Pre-
feitura. Ao passar o cargo ao novo prefeito, Tarso Genro, que fora seu
vice na primeira Administração Popular, retornou às atividades de ban-
cário. Em 1998, foi eleito governador do Rio Grande do Sul. Implantou o
orçamento participativo, a Municipalização Solidária da Saúde, o pro-
grama Primeiro Emprego e o Movimento de Alfabetização (MOVA-RS)
e criou as secretarias de Habitação e de Reforma Agrária.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 69
MARIA VICTORIA BENEVIDES nasceu em 1942, na cidade de
Niterói, Rio de Janeiro. Socióloga, com trabalho nas áreas de ciência
política, história política do Brasil e sociologia da educação, é professora
titular da Faculdade de Educação (Departamento de Filosofia da Educa-
ção e Ciências da Educação) da Universidade de São Paulo (USP).
É também membro titular do Conselho da Cátedra Unesco/USP de Edu-
cação para a Paz, os Direitos Humanos, a Democracia e a Tolerância,
sediada no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP; diretora e pro-
fessora da Escola de Governo; membro do Centro de Estudos de Cultu-
ra Contemporânea (Cedec); membro da Comissão Justiça e Paz, de São
Paulo; membro da Diretoria da Rede Brasileira de Educação em Direi-
tos Humanos.
É autora dos seguintes livros: A cidadania ativa (Ática, 1992); O PTB
e o trabalhismo (Brasiliense, 1987); Violência, povo e política
(Brasiliense, 1984); O governo Jânio Quadros (Brasiliense, 1981); A
UDN e o udenismo (Paz e Terra, 1981) e O governo Kubitschek (Paz
e Terra, 1976).

70 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO


Programa do segundo ciclo de seminários Socialismo e
Democracia realizados no primeiro semestre de 2001
Os seminários foram promovidos pelo Instituto Cidadania, pela Fundação Perseu Abramo
e pela Secretaria Nacional de Formação do Diretório Nacional do PT

26 de março – Perspectivas que a vitória das es- Expositor: Fernando Haddad – professor da USP
querdas nas eleições municipais de 2000 abre à cons- Comentadores: Gilmar Mauro (dirigente nacional do
trução do socialismo MST ), João Felício (presidente nacional da CUT ) e
Expositor: Luiz Inácio Lula da Silva (Presidente de Ricardo Antunes (professor da Unicamp)
Honrra do PT)
Comentadores: Marta Suplicy (prefeita de São Pau- 21 de maio – A luta pela terra e a organização dos
lo), Raul Pont (ex-prefeito de Porto Alegre) e Luiz assentamentos como contribuição para a construção
Dulci (presidente da Fundação Perseu Abramo) do socialismo.
Expositor: Plínio de Arruda Sampaio – ex-deputado
9 de abril – Perspectivas que o desenvolvimento federal e consultor da ONU.
local e a distribuição de renda abrem à construção do Comentadores: José Graziano da Silva (professor
socialismo. da Unicamp)
Expositor: Celso Daniel – prefeito de Santo André
Comentadores: Ladislas Dowbor (professor da PUC- 4 de junho – Perspectivas que a revolução
SP ), Marina da Silva (senadora pelo Acre) e Miguel microeletrônica e a internet abrem à luta pelo socialismo.
Rossetto (vice-governador do Rio Grande do Sul) Expositor: Laymert Garcia – professor da Unicamp
Comentadores: Bernardo Kucinski (professor da
23 de abril – O orçamento participativo como um dos USP), Maria Rita Kehl (psicanalista) e Walter Pinheiro
pressupostos políticos da construção do socialismo. (líder do PT na Câmara dos Deputados)
Expositor: Olívio Dutra – governador do Rio Gran-
de do Sul 18 de junho – Alternativa socialista ante a
Comentadora: Maria Victoria Benevides (profa. da globalização financeira
USP e da Escola de Governo) Expositor: Reinaldo Gonçalves – professor da UFRJ
Comentadores: João Sayad (secretário de Finan-
7 de maio – Papel dos sindicatos e cooperativas ças de São Paulo), Ronald Rocha (dirigente nacional
ante as mudanças nas classes sociais e suas lutas, na do PT) e Tânia Bacelar (secretária de Planejamento
perspectiva do socialismo. de Recife)

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 71
Leia também da coleção

Socialismo em discussão

Globalização e socialismo
Maria da Conceição Tavares, Emir Sader e Eduardo Jorge

Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo


Francisco de Oliveira, João Pedro Stedile e José Genoino

Economia socialista
Paul Singer e João Machado

O índividuo no socialismo
Leandro Konder e Frei Betto

Instituições políticas no socialismo


Tarso Genro, Edmílson Rodrigues e José Dirceu

72 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

Das könnte Ihnen auch gefallen