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mil e uma

D^Coï/es

Uo fume /

Ápiesentaçõo:
COPIADORA Molba Tahan
LETRAS
data / S \0 ^ ! 17
PASTA JfLÄJzT
N» F O L H A 3
• i—. istuSSSrvEBmctgt Veisâo:
Antoine Galland

Jwdução:
Alberto Diniz

16 Edição
a
Ducentésima Trigésima Quinta N o i t e 45
Ducentésima Trigésima Sexta N o i t e 47 O^lpresen/ação
A História de Nuredin e da Formosa Persa 53
A História dc Bedcr, Príncipe da Pérsia e dc Sahara,

• *
Príncipe do Reino dc Samandal 93
A História dc Ganem, Filhp de A b u A i r u , Escravo do A m o r 143
A História do Príncipe Zein Alasnam c do Rei dos Genios 180
A História dc Codadad e seus Irmãos 195
A IMPORTANCIA DAS HISTÓRIAS
A História da Princesa de Dcriabar 202
A criança e o adulto, o rico e o pobre, o sábio e o ignorante, todos,
A História do Adormecido Despertado 219
e n f i m , ouvem com prazer histórias — uma vez que estai histórias sejam inte-
A História de Aladjm, o u a Lámpada Maravilhosa 282
ressantes, tenham vida e possam cativar a atenção. A história narrada, lida,
As Aventuras do Califa H a r u m al-Rachid 363
filmada, dramatizada, circula em todos os meridianos, vive em todos os cli-
A História do Cego Baba-Abdalá 366
mas. Não existe povo algum que não se orgulhe de suas histórias, de suas
A História de Sidi N u m a n 375
lendas c de seus contos característicos.
A História de Codja Hassan 385
É a lenda a expressão mais delicada da literatura popular. O homem,
A História de A l i Babá e dos Quarenta Ladrões Exterminados
pela estrada atraente dos contos e histórias, procura evadir-sc da vulgaridade
por uma Escrava 405
cotidiana, embelezando a vida c o m uma sonhada espiritualidade.
A História dc Ali-Codja, Mercador de Bagdi 4W_
Decorre daí a importância das histórias.
A História do Cavalo Encantado 441
A História do Príncipe A h m e d e da Fada Pari-Banu 466
: — - OS ÁRABES E AS HISTÓRIAS
A História das Duas Irmãs que Invejavam a Irmã mais Nova 506
Mais do qtie qualquer o u t r o povo, os árabes revelam verdadeira fascina-
Notas 541
ção pelas histórias c pelas lendas nos domínios da poesia:
Bibliografia 543 . ,
Antes das grandes transformações sociais que vêm sublevando as terras
do Oriente, não havia aldeia árahe que não tivesse seu contaejor de histórias,
que corresponde ao nosso cantor sertanejo, corn a diferença, apenas, de ter
aquele u m campo mais vasto, consubstanciado n u m a tradição mais rica dc
gosto mais apurado. "

' E m algumas cidades — Cairo, Damasco, Constantinopla — os conta-


dores dc histórias re.uniam-sc em verdadeiros "sindicatos". Cada corporação
era dirigida por um deles, de maior prestígio e autoridade, que tinha o titulo
dc cheik el-medah, que significa chefe dos contadores do café.
: ——— 09j mi/e uma noiles

c*-o L W * ^ O NARRADOR EOS OUVINTES ão. Não lhe percebi nem palavra. Mas o seu gesto era tão arrebatado, sua
É um espetáculo curioso acompanhar as impressões que as histórias pro- ( voz tão expressiva, seu rosto tão eloquente, que cu às vezes entrevia, n u m
duzem na alma ardente e apaixonada dos árabes. Conforme 4"palavra sempre, rápido momento, alguns lampejos do sentido. Pareccu-me que contava uma
eloquente donarradorjjs ouvintes se agitam ou se acalmam. À cólera violenta longa viagem; imitava o passo do cavalo fatigado; apontava para horizontes
sucederrToTíentirhentos mais ternos; os risos estridentes são seguidos,-não \ imensos; procurava em torno de si uma gota d'água, deixava cair os braços e a
raro, de prantos e lamentações. cabeça como u m homem prostrado.
Se o herói do conto é ameaçado de perigo iminente, os ouvintes excla- Árabes, arménios, egípcios, persas e nómades do Hed-jaz, imóveis, sem
mam cm coro: respirar, reflètiam na expressão dos rostos todas as palavras do orador. Naquele
— La, la, 4a, stagfer Allah! (Não, não, não. Deus não consentirá!). momento, com a alma toda nos olhos, deixavam ver, claramente, a ingenuida-
Quando um bandido dissimulado o u u m amigo desleal prepara uma de de e a frescura de sentimentos que ocultavam sob a aparência de uma dureza
suas ciladas, surgem logo de todos os lados as imprecações: selvagem. O contador dc histórias andava para.a direita-e-para a esquerda,
— Que Cheitã (o Demónio) castigue o traidor! parava, retrocedia, cobria o rosto com as mãos, erguia os braços para o céu, e,
Se o herói do conto é um bravo e tomba em combate, seguem-se as .') medida que.se ia afervorando, e levantando a voz, os músicos tocavam e
expressões com que são homenageados os mortos: batiam com mais fúria.
— Q u e Deus o receba em sua misericórdia! Que Deus o tenha em paz! A narrativa empolgava os beduínos, e quando terminada, os aplausos
E se o narrador fala de uma mulher formosa, os ouvintes exaltam-se estrugiram no ar".
. como se a tivessem diante dos olhos:-
— Glória a Deus que criou a mulher! Exaltado o Altíssimo que criou a AS MIL E UMA NOITES

beleza e a mulher! D a d o o vivo interesse dos árabes pelas narrativas fantasiosas, desenvol-
vcu-se a literatura oral, entre os muçulmanos, dc um m o d o assombroso. Os
A FIGURA DO NARRADOR 4 narradores profissionais colhiam novos enredos dos viajantes, dofrXeduíhos de
Em u m de seus livros sobre o Oriente, o escritor italiano E d m u n d o De outras terras, alteravam os entrechos, mudavam os nomes c, por vezes, o cará-
1
. I
Amicis (1846-1908) descreve-nos a curiosa "figura de um contador de histórias ter dós personagens, acrescentavam novos episódios c assim ampliavam o rico
sobre o céu d o Islã. Será interessante reler: patrimônio literário com que divertiam seus fervorosos ouvintes.
" T i v e m o s a sorte de chegar no momento em que o cheik el-medah, tendo E as histórias que mais agradavam, isto é, as que mais motivavam os .
terminado a costumeira prece matinal, começava a narrativa. Era u m homem í árabes, eram as histórias em série ou cm cadeia. Nessas histórias cada conto c V * * j ^ _
de seus c i n q u e n t a anos, quase negro, a barba negríssima e dois grandes olhos 1 terminava com uma deixa que o ligava ao conto seguinte; forçando o ouvinte
cintilantes; trajava, como quase todos os outros narradores de Bagdá, u m enor- interessado a voltar, mais tarde, para ouvir a continuação do caso-, sempre
me pano b r a n c o apertado, cm torno da cabeça, por uma corda de pêlos de. interrompido n u m momento palpitante. .' :
camelo', que l h e dava a majestade de u m antigo sacerdote. Falava com voz alta Entre as chamadas "histórias emeadeia", as que despertavam maior i n t e :

É vagarosa, e r e t o no meio do círculo de ouvintes, acompanhado submissa- resse eram aquelas que formavam o prodigioso conjunto denominadoy4y.Lj/ií/>
mente por u m tocador de alaúde e-um de tambor. Narrava, talvez/unia histó- * oua Lailah ( M i l Noites e uma Noite) — título que as inúmeras traduções
ria de amor, as aventuras de um bandido famoso, as vicissitudes da vida de um consagraram sob a forma Mile uma Noiles.
C7ls m/Je uma noites

A ORIGEM DAS MIL E UMA NOITES aventuras de cavalaria e guerra;


É problema altamente controvertido a origem das Mil e uma Noites. lendas fantásticas cheias de crueldades;
Massudi, que viveu no século X I c foi um dos escritores mais viajados do cenas dc zombaria contra judeus c cristãos;
seu tempo, afirmou que as Mil e uma Noites foram tiradas do livro persa Hezar contos do género policial;
Afsaneh ( M i l Histórias). Esta última obra, segundo se afere de uma referência anedotas brejeiras c pornográficas;
que a ela faz Firduzzi, no prefácio de Schanameh (Livro dos Reis), é atribuída episódios fantásticos e obscenos;
a um poeta persa, Rasti, que teria vivido na segunda metade do século X. E, lutas religiosas;
assim, o erudito Massudi parece esta/ com a razão, pois as duas heroínas p r i n - parábolas c apólogos;
cipais das Mil e uma Noites, Scherazadc e Dinàzadc, estão com seus nomes fábulas;
persas nas páginas famosas de Hezar Afsaneh.
histórias de erudição (até com problemas de Matemática).
Mas os persas, de acordo com a opinião de Clemente Huart, foram colher
na índia o enredo dos principais contos que figuram no famoso Hezar Afsaneh. E todos os capítulos são enriquecidos por delicados trechos poéticos nos
O orientalista e historiador alemão Gustavo W c i l l (1808-1889), que quais transparece a beleza, a suavidade c o encantamento dos versos árabes.
foi professor de línguas orientais em Heidclberg, afirma que os contos ára-
bes das Mil e uma Noites diferem totalmente das primitivas formas indiana e FONTES DAS MIL í UMANOIJíS
persa. Em muitos livros de histórias cm série osárabes foram buscar inspiração
A difusão extrema desses contos no espaço e no" tempo — universalidade para os seus contos maravilhosos. Poderíamos citar os seguintes^ -
c imortalidade — decorrem de condições que merecem ser frisadas. São fun- Mahabharata, poema escrito cm sânscrito; —.
damentalmente obra de imaginação e inocência. . . . Ramayana, poema indiano de origem m u i t o remota;
Dasa-Koundra Tcharita (Aventuras de dois adolescentes) livro muito po-
• 0 QUE CONTÉM AS AM [UMA HOIUS pular na índia;
O verdadeiro livro das Mil e uma Noites, na sua forma completa, não é Katha-Sarit-Sagara (Oceano infindável de histórias). Contos compila-
obra cuja leitura possa ser aconselhada para crianças ou adolescentes. É um dos por Samodéva; .
livro profundamente contra-indicado sobre vários aspectos, pois muitos dos Tutinameh (Contos de u m papagaio). Pequenos apólogos que se afastam
( 7 seus contos foramjmaginados com a finalidliHc^xclusIva de divertir adultos) m u i t o dos bons princípios morais;
Esse livro, que á saudosa poetisa Cecília Meireles considerava glorioso, Contos de Nang-Tantrai (Contos da jovem rendeira). Histórias da índia
encerra em suas páginas senões bem graves: erros e anacronismos. antiga escritas sob a influência da religião bramânica;
Quando observado numa tradução, não escoimada da pane obscena, Fábulas de Kalila e Dina que foi traduzido para o português pelo Prof.
vamos encontrar na imensa cadeia das Mil e uma Noites: Ragy Basile;
Contps maravilhosos e de aventufasi . Hitopadexa (Instrução útil). Coleçáo de fábulas c apólogos morais da
contos de amor c intrigas de n a m o r a d o s ; ^ : índia. Para este livro há uma excelente tradução dc Monsenhor Sebastião
- romances de viagens; Salgado.
Oíi mile uma noites i Cfls mi/e uma noi/es

DIVULGAÇÃO DAS MIL E UMA HOIJES AS MIL E UMA HOITES MA EDIOURO


O orientalista francês Antoine Galland, tendo tomado conhecimento, O público brasileiro tem agora a magnífica oportunidade de ler a obra-
em sua viagem a Constantinopla dos contos das Mil e umas Noites, fez deste prima da lenda universal, isto é.As Mile uma Noites, numa excelente publica-
livro uma tradução que se tornou obra clássica da Literatura francesa. ção da Ediouro.
Como agiu Galland para tornar sua tradução interessante e viva? Para melhor atenderão interesse de seus leitores, a Edioüro resolveu adotar
a) Aproveitou, apenas, uma quarta parte dos contos originais. A sua es- a tradução de Galland, trabalho que como sabemos é excelente, pois o sábio
colha foi recair sobre as lendas mais curiosas e de enredo mais palpitante. orientalista francês oferece o livro da sedutora Scherazade escoimado de cenas
b) Teve o cuidado de abolir todas as cenas que pudessem ferir os princí- asperezas que o tornariam indesejável para grande parte dos interessados.
pios morais cristãos. O livro das Mil e uma Noites, pela riqueza e pelo capricho com que é
c) Suprimiu do enredo dos contos todos os versos, poemas e citações lançado, 2 obra que cenamente marcará época, de alto-relevo, na vida edito-
poéticas. . • rial do nosso pa/s.
•- d) Procurou fazer uma tradução que fosse isenta de expressões chulas ou MAI.BATAHAN
pouco edificantes. -r-.-r
A obra de Galland alcançou, na Europa, um êxito extraordinário, sendo
traduzida para vários idiomas.
Foi Galland quem teve a glória de tornar o livro das Mil e uma Noites
conhecido no Ocidente.
Galland faleceu aos 69 anos de idade, em 17 de fevereiro de 1715.
Além da tradução das Mil e uma Noites, Galland deixou cerca de quinze
obras, algumas das quais de alto valor literário.

' ' IMITAÇÕES DAS Mil E UMA NOITES


Seguindo a trilha-gloriosa de Galland, muitos escritores tentaram imitar
a o b r a do grande orientalista.
Além do livro intitulado Mile um Dias, traduzido por Petis de La Croix,
poderíamos citar os seguintes:
Mile um Quartos de Hora (contos tártaros); \
Aventuras Maravilhosas do Mandarim Fum-Hoan (contos chineses);
As Sultanas de Gazarate(contos mongóis);
Aventuras de Abdallah, filho de Hanif.
• Todos estes livros, e cerca de outros trinta do-mesmo género, não passa-
vam de "ridículas mistificaçõesliterárias que c p ú b l i c o não levou a sério. Estas
obras tiveram vida muito efémera.
Cftnloine Salíancf

Antoine Galland nasceu em 1646, de pais pobres, que residiam numa


aldeiazinha da Picardia.
Tinha apenas quatro anos, e era o sétimo filho, quando seu pai faleceu. Sua
mãe, não sabendo que destino dar-lhe, e reduzida ela mesma a viver do seu
trabalho, e apesar de todas as dificuldades conseguiu matriculá-lo no colégio de
Noyon, onde o diretor e um cónego da catedral dividiram os cuidados e o custo
da sua educação.
A l i Antoine permaneceu até os treze anos, quando perdeu ao mesmo
tempo os seus protetores, o que o obrigou a voltar rjara sua mãe, contudo
sabendo um pouco de latim, grego e até hebraico.
Sua mãe decidiu, então, que ele devia aprender um ofício. Antoine a
obedeceu, e, apesar da sua aversão, permaneceu u m ano com u m mestre. Cer-
to dia, porém, abandonou o serviço, dirigindo-se para Paris, sem outros « c u r -
sos que o endereço de uma velha parente e o de u m b o m sacerdote que vira, às
vezes, na casa do cónego de N o y o n .
Sua tentativa reve êxito, superando suas expectativas. N o Colégio du
Plessis, continuou seus estudos; em seguida, com Pctilpied, doutor da Sorbonc,
.ipiofunclou-sc no conhecimento do hebraico e de outras línguas orientais,
preparando um catálogo dos manuscritos orientais da biblioteca da Sorbone'.
Transferiu-se, depois para o Colégio Mazarino. U m professor, G o d o w i n ,
reunindo certo número de meninos de três e quatro anos de idade, entre eles
o duque de la Meilleraye, propusera-se a ensinar-lhés latim, com um método
fácil e rápido, colocando-os ao lado de pessoas que não falassem outra língua.
Galland, associado a tal trabalho, não teve tempo de ver o resultado. N o i f i t e l ,
nomeado para a Erhbaíxada de Constantinopla, levôu-o consigo, para obter
certas provas sobre artigos de fé que constituíam motivo de disputa entre Arnaud
Ofs miíe uma noites C7Js mile uma noite*

e o Ministro Claude. Galland, chegando em Constantinopla, adquiriu em ultrapassou os limites comuns, tanto que lhe deixou uma pensão. Além disto,
pouco tempo o uso do grego vulgar, e acompanhou Nointel a Jerusalém e Foucault, conselheiro de Estado, intendente naquela ocasião na Baixa
outros lugares da Terra Santa, onde se pôs a pesquisar, anunciando ao embai- Normandia, chamou o ao seu lado.
xador as curiosidades descobertas por ele. Copiou inscrições, desenhou da No suave lazer de tão tranquila posição, no meio de uma ampla bibliote-
melhor forma possível alguns monumentos, removendo-os também às vezes, ca, Galland produziu várias obras menores. Foi ai que começou a imensa tra-
e é a ele que devemos, entre outros, os singulares mármores hoje no gabinete dução dos Contos Árabes, tão conhecidos pelo nome de M i l e uma Noites.
de Baudelot. Galland foi admitido pelo rei à Academia das Inscrições e imediatamen-

Galland não julgou oportuno acompanhar Nointel a Constantinopla, te empreendeu para ela u m Dicionário Numismático, contendo a explicação

preferindo voltar para Paris, onde chegou cm 1675. A l i travou conhecimento dos nomes das dignidades, dos títulos de honra e em geral de todos os termos

com Vaillant, Carcavy e Giraud. Estes o enviaram de novo ao Oriente, de singulares disponíveis nas medalhas antigas, gregas e romanas.

onde ele trouxe, no ano seguinte, numerosos medalhões. Regressou, finalmente, para Paris, em 1706. Em 1709, foi nomeado pro-

Em 1679, Galland empreendeu sua terceira viagem, por conta da C o m - fessor de língua árabe no Colégio Real. Há outras obras escritas por Galland.

panhia das índias Orientais. As mudanças sobrevindas.na coxnpanhia,inter- U m a Relação das suas viagens, uma descrição- particular da cidade de

romperam seus estudos dezoito meses depois; mas Colbert, informado, em- Constantinopla, adendas à Biblioteca Oriental de Herbelot, u m catálogo dos

pregou-o por conta própria; após sua morte, o Marquês de Louvois fez com historiadores turcos, árabes c persas, uma história geral dos imperadores tur-

que Galland continuasse ainda por algum tempo as suas pesquisas, com o cos, uma tradução do Alcorão, com notas histórico-críticas, uma continuação

título de Antiquário do Rei. Durante sua longa permanência, Galland apren- da tradução das Mil e uma Noites.

deu a"fundo o árabe, o turco e o persa. Galland trabalhava sem cessar, fossem quais fossem as suas condições, pouca

Em Esmirna, quase fora vítima de u m espantosotremor de terra. Na atenção dando às necessidades, e nenhuma ao conforto. Só tinha em mente a

sua volta a Paris, auxiliouThévenot, guarda da biblioteca do rei, até que este exatidão. Simples nos hábitos e nas maneiras como nas obras, teria ensinado por

faleceu. ' •.„,, !• '. toda a vida a crianças os primeiros elementos de gramática com o mesmo prazer

. Empregou-o em seguida Herbelot. Mas este também morreu em breve, que demonstrava sua erudição em diferentes matérias.

deixando incompleto seu trabalho. Continuou-o Galland, tal qual o temos, e Morreu cm 17 de fevereiro de 1715, aos 69 anos.
escreveu o prefácio da obra, que passou a chamar-se Biblioteca Oriental. O amor pelas letras f o i a última coisa que nele se extinguiu. Poucos antes

Participou da edição do Mcnagiana,- aparecida então. Julga-seaté que de sua morte, julgou que suas obras, o único bem por ele deixado, poderiam

foi ele que forneceu o material do primeiro volume. Pouco antes, dera.àluz perder-sc, pelo que deixou disposições, fielmente executadas, a fim de que os

uma Relação da M o r t e do Sultão Osmã e da Coroação d o Sultão Mustafá, manuscritos orientais passassem para a biblioteca do rei, o Dicionário

traduzida do turco, e uma Coletânea de M i x i m a s e D i t o s , Tirados das Obras Numismático para a Academia e a sua tradução do Alcorão para o Padre Bignon,

dos Orientais. "•• . como prova da sua estima e do seu relacionamento.

.-Após. a morte de Herbelot," ápegou-se a Bignon, primeiro presidente do


grande Conselho, que, por gosto hereditário, queria ter sempre ao Sflu.jadç»
um,l%.onjpm djfÁWAS. Bignon inorreu..no\anj> seguinte. Pareçja,.ser destino dr
GaII»nd,se,oiprc perder seus protetprcs. Mas a proteção: do digno magistrado
C%s Jltiíe QÃma DCoi/es

•V-
9
•S-

rir . Narram as crónicas dos sassânidas — antigos reis da Pérsia, que ha-
— -
viam levado seu domínio à índia, às grandes c pequenas ilhas dela depen-
BI**
dentes, e bem mais para além do Ganges, até a C h i n a — que um dos reis
desta poderosa dinastia foi o melhor da sua época. A m a d o por seus súditos,
por sua sabedoria e prudência, era temido, contudo, por seus vizinhos, pelo
seu valor e pela fama das suas tropas belicosas e bem-disciplinadas.Tinha dois
—41
filhos: o mais velho, Chahriar, seu digno herdeiro, que igualava-o nas v i r t u -
des; e o mais moço, Chahzenã, que não possuía menos méritos que o irmão.

Após um reinado tão longo como glorioso, morreu o rei, seu pai, e
Chahriar subiu ao trono. Chahzenã, excluído_d_e qualquer direito pelas leis do
império, e obrigado a viver como autónomo, em vez deinvejar a felicidade do
irmão, tratou diligentemente de agradá-lo. E não teve trabalho, para conse-
guir seu objetivo..Chahriar, naturalmente inclinado para esse príncipe, muito
se alegrou.com aquele gesto, e querendo, por/excesso He amizade, partilhar
cOm ele os seus Estados, doou-lhe o "Reino da~Grã-Tartária. Chahzenã dele
t o m o u pOsse.imcdiatamente,\fixando residência cm Samarcanda, sua capital.

J á fazia dez anos que os dois haviam se separado, quando Chahriar, dese-
jando fortemente rever o irmão, mandou-lhe u m emissário, o seu grão-vizir
(primeiro-ministro), que, partindo com um séquito,- de acordo com sua digni-
dade, percorreu o caminho mais rápido possível. Quando chegou às imedia-
ções dç Samarcanda, Chahzenã, avisado da sua chegada, foi-lhe aó encontro
com os principais nobres da corte, que, a f i m de melhor honrarem o ministro
do sultão, se vestiram luxuosamente. O rei da Grã-Tartária recebeu-o com
grandes demonstrações de alegria.c pediu-lhe, cm primeiro lugar, notícias do
sultão. O grão-vizir saUsfez-lhe a .curiosidade, após,-o-que expôs-o motivo da
sua missãoj Ghahzenã se comoveu. \-- *.

1-7
Oís miíe urna miles Oís mi/e uma miles

— Sábio vizir — disse — , o sultão me honra demasiadamente, e não Enfim, o infeliz rei, cedendo ao primeiro ímpeto, puxou seu sabre, apro-
poderia ter-me feito proposta que mais me agradasse. Se deseja vcr-me, eu ximou-se do leito, c com u m só golpe, fez pássaros traidores do sono para a
também sinto o mesmo. O tempo, que não d i m i n u i u sua amizade por m i m , morte; em seguida, pegando u m após outro, lançou-os por uma janela direta-
não enfraqueceu a minha por ele. O meu reino está em paz, e só peço dez dias mente ao fosso que rodeava o palácio.
para me preparar devidamente, a fim de partir convosco. Portanto, não é ne- Vingado, saiu da cidade como nela entrara, e retirou-se para o seu pavi-
cessário que entreis na cidade por tão pouco tempo. Rogo-vos que vos detenhais lhão. Mal havia chegado, e sem dizer a ninguém o que acabara de fazer, orde-
aqui, e mandeis armar as vossas tendas. Ordenarei que vos tragam víveres em nou que fossem desmontadas as tendas para partirem. Pouco depois, estava
abundância, para vós e para todos do vosso séquito. tudo pronto; e não era dia ainda quando'a caravana se movimentou ao som de
As ordens foram executadas sem perda de tempo. M a l o rei havia tor- timbalos e de vários instrumentos que inspiravam alegria a todos, exceto ao
nado a entrar em Samarcanda, o v i z i r v i u chegar prodigiosa quantidade de rei. Sempre pensando sobre a infidelidade de sua mulher, caiu numa profunda
todo tipo de provisões, acompanhadas de presentes e delícias de elevadíssimo melancolia que não o deixou durante toda a viagem.
preço. Ao chegar às proximidades da capital da índia, viu aproximar-sc o Sultão'
Entretanto, Chahzenã, decidindo partir, resolveu- os negócios mais ur- Chahriar, seguido de toda a sua Corte. Que alegria a de ambos os príncipes,
gentes, nomeou u m conselho para governar durante Sua ausência, e pôs diante revendo-sc após tanto tempo! Apearam-se, abraçaram-se, e, após m i l demons-
do conselho um ministío, cuja sabedoria lhe era Conhecida, e em quem depo- trações de amizade, voltaram a montar a cavalo, entrando na cidade sob as
sitava ilimitada confiança. Dez dias depois, terminados os preparativos, des- aclamações de inumerável multidão. Chahriar acompanhou seu irmão até o
pediu-sc da rainha, saiu ao cair da tarde de Samarcanda, e, seguido dos oficiais palácio que lhe preparara, e que se comunicava-com o seu pelo mesmo jardim.
que deviam acompanhá-lo na viagem, dirigiu-se ao pavilhão realquc mandara Aumentava a magnificência do palácio ser-lhe consagrado às festas c aos diveru-
erguer perto das tendas do vizir, com o que se entreteve até meia-noite. Q u e - mentos da Corte; além disto, acabara de ser novamente decorado. .
rendo, então, mais uma vez abraçar a rainha, a quem amava muitíssimo, vol- Chahriar deixou o rei da Grã-Tartária para dar-lhe tempo de banhar-se e
tou sozinho ào palácio, e encaminhou-se imediatamente para o aposento dela, pôr novas vestes. Mal soube, porém, que estava pronto, v o l t o u . Sentados n u m
que, nãõ esperando revê-lo tão cedo, recebera em seu leito um dos mais h u - sofá, e com os cortesãos distanciados respeitosamente, os dois príncipes come-
mildes servidores de sua casa. Deitados, dormiam profundamente os dois çaram a falar de tudo quanto dois irmãos, mais unidos ainda pela amizade do
amantes. que pelo sangue, têm para contar um ao outro após uma longa ausência. Che-
. _
O rei entrou sem fazer o menor ruído, desejando surpreender a esposa por gada a hora da ceia, comeram juntos; depois,.recomeçaram a conversa, até que
quem se julgava ternamente amado. Mas qual foi seu espanto, ao ver, à luz dos Chahriar, percebendo que a noite já ia adiantada, se retirou para deixar que o
archotes, que nunca se apagavam nos aposentos de príncipes e princesas, um . irmão repousasse.
homem emseus braços! Durante alguns minutos não conseguiu se mexer, sem O infeliz Chahzenã se deitou; mas, se a presença do sultão pudera arrancá-
saber se devia acreditar ou não. Mas, não podendo duvidar, murmurou: lo por algum tempo, dos seus pesares, eles despertaram, novamente, e com
— C o m o , mal saí do meu palácio, ainda estou sob os muros d è • violência. Em vez de desfrutar do repouso de que -tanto precisava, nada mais
•Samarcanda, e até aqui ousam ultrajar-me! A h ; pérfidal-teu crime não ficará fez senão entregar-se às mais cruéis reflexões. Todas as circunstâncias da i n f i -
se-rrt punição! C o m o rei, devo puniros crimes que se cometem nos meus Estai delidade da rainha se lhe apresentaram tão vivamente à mente q u e e l e quase
dos; como esposo traído, devo imolar-te ao-meu justo resséfitímento. ^ enlouqueceu. Enfim, não podendo dormir, se levantou; e entregando-se intei-
03s ml/e uma /miles Ofs

ramente a tão aflitivos pensamentos, acabou por lhe transparecer no rosto tal mente por mulheres havia dez negros, os quais se apoderaram cada um da sua
impressão de tristeza que o sultão não deixou de notar. amante. A sultana, por sua vez, não ficou muito tempo sem amante; batendo
— Que terá o rei da Grã-Tartária? — Dizia ele. —' Qual será a causa do palmas, gritou; "Massud, Massud!" E imediatamente, outro negro desceu do
seu pesar?Terá motivos para queixar-sc da recepção que lhe preparei? Não... Eu alto de uma árvore c precipitou-se para ela. (^gvi^e»^^
o recebi como irmão a quem estimo, e nada tenho a censurar. Talvez o contrarie O pudor não me permite contar tudo o que se passou entrêas mulheres e
estar longe dos seus Estados, ou da rainha, sua mulher. A h , se é isto o que os negros; além do mais, trata-se de urnpormenor dispensável. Basta dizer que
perturba, será preciso que lhe dê imediatamente os presentes que lhe destinei, Chahzenã viu o suficiente para julgar que o seu irmãrTnão era menos lastimável
para que possa partir o quanto antes, e voltar a Samarcanda. do que ele. Os prazeres daquele bando de pessoas d u r o u até a meia-noite.
N o dia seguinte, enviou-lhe pane dos presentes, compostos de tudo quan- Banharam-se todos juntos, então, numa grande piscina, após o que, repondo
to a índia produzia de mais raro, rico e singular. Não deixou também de tentar suas vestes, entraram de novo pela porta secreta do palácio do sultão; e Massud,
distraí-lo todos os dias com novos prazeres; mas as mais interessantes festas, cm que viera de fora por sobre a muralha do jardim, voltou pelo mesmo lugar.
vez de alegrá-lo, nada mais faziam senão avivar-lhe os pesares. Tudo o que se havia desenrolado sob os olhos do rei da Grã-Tartária lhe
U m dia, tendo Chahriar ordenado uma grande caçada a dois dias de deu oportunidade para grande número de reflexões.
viagem da capital, numa região particularmente rica em cervos, Chahzenã — Quão pouca razão tinha cu de julgar tão única a minha infelicidade!
rogou-lhe que o dispensasse de acompanhá-lo, desculpando-se pelo seu estado É esse, sem dúvida, o inevitável destino de todos os maridos, visto que o
de saúde. O sultão não quis forçá-lo, e partiu com a Corte. Após sua partida, meu irmão, soberano de tantos Estados, o maior príncipe do m u n d o , não
o rei da Grã-Tartária, vendo-se sozinho, encerrou-se no seu aposento e sentou- pódê evitá-lo. Se assim é, que fraqueza a minha-deixar-me corroer pelos pesa-
se a uma.janelaque se abria para o jardim. Aquele l i n d o recanto e o extraordi- res! A lembrança de uma desgraça tão comum não perturbará mais a tranqui-
nário número de pássarosque nele se abrigavam teriam lhe proporcionado lidade da minha vida.
prazer, se ele tivesse sido capaz de sentir prazer; mas, sempre torturado pela E, realmente, a partir daquele instante, ele parou de afligir-se; c, como
lembrança da infame traição da rainha, mais do que olhar o jardim, olhava o não quisera fazer nenhuma refeição, para não perder nadada cena que acabara
céu para queixar-sc da sua falta de sorte. • de se desenrolar sob a sua janela, mandou que o servissem, comeu com apetite
Contudo, apesar de profundamente absorto nos seus aborrecimentos, que não conhecera desde sua partida de Samafcanda-é ouviu com prazer um
não deixou de perceber algo que lhe atraiu a atenção: Uma porta secreta do concerto agradável de vozes e instrumentos que acompanharam sua refeição.
palácio do sultão se abriu repentinamente para dar passagem a vinte mulheres, Nos dias seguintes, esteve bem-humorado. Q u a n d o soube que o sultão
entre as quais a sultana, facilmente reconhecível pela sua imponência. Cena
2
havia voltado, correu para vê-lo, saudando-o alegremente. Chahriar, a p r i n -
de que também o rei da Grã-Tartária fora à caçada, avançou com firmeza até cípio, não deu importância àquela transformação; limitou-se a se queixar
debaixo das janelas do aposento do príncipe, que, querendo observá-la por delicadamente de não ter seu irmão participado da caçada; e, sem dar-lhe
curiosidade, de tal modo se colocou que a tudo podia ver, sem ser visto. N o - tempo de responder às censuras, falou-Jhc do grande número de cervos e
tou, assim, que as pessoas que acompanhavam a sultana, a fini de eliminarem outros animais abatidos c do prazer experimentado. Chahzenã, após tê-lo
qualquerconstrangimentoitirihairv descoberto o rosto, velado até «ntáo, e escutado atentamente, t o m o u a palavra. E como já não o corroíam os pesa-
tirado as longas vestes trazidas por cima de ourras mais curtas. O-que o tsparir
t res, deu mostras evidentes de todo o seu espírito e c o n t o u m i l coisas agradá-
tóu, porém, foi ver que naquele grupo que lhe parecera composto exdusiva- veis e interessantes.
Oís mi/e uma noi/es Ols mi/e uma noi/es

O sultão, que esperava revê-lo tal como o havia deixado, ficou radiante história acabas de me contar! C o m que impaciência a ouvi até o fim! Dou-te
com aquela alegria.. os meus parabéns por teres punido os traidores que tão ferozmente te ultraja-
—• Meu irmão — disse-lhe — , d o u graças ao céu pela feliz mudança em ram! Ninguém poderá censurar-te um ato justíssimo; quanto a m i m , confes-
ti durante a minha ausência. Estou contentíssimo, mas tenho u m pedido a so-te que, no teu lugar, teria sido mais violento que t u . Não teria me conten-
fãzer-te, e suplico-te que me concedas o que vou te pedir. tado em tirar a vida a uma única mulher; creio que reriajpandado matar maiár .
— Que poderia eu recusar-te? — respondeu o rei da Grã-Tartária. — T u tit(£mÁ^AÁo me admira agora os teus pesares; a causa era demasiadamente
podes tudo sobre Chahzcnã. Fala, estou impaciente em saber o que desejas de justa e mortificadora para a da não sucumbir. Ú céu, que ventura! Não, penso
mim. que a ninguém jamais aconteceu tal coisa. E n f i m , é preciso louvar a Deus por

— Desde que chegaste a m i n h a Corte — continuou Chahriar — , vi-te te haver consolado; e como não duvido de que o teu consolo tenha excelentes

mergulhado cm negra melancolia, da qual tentei disrrair-te por todo tipo de razões, termina as tuas confidências.

divertimento. Supus quç 0 teu"pesar provinha de estares afastado dos teus Chahzcnã apresentou maiores dificuldades sobre este ponto que sobre o -
Estados; julguei até que o amor desempenhava nele grande papel, e que a anterior, tendo em vista o interessado de seu irmão; mas viu-se obrigado a ceder.
rainha de Samarcanda, que t u deves ter escolhido sumamente bela; fosse a — Vou te obedecer-te, pois — disse ele — , já que assim queres. Temo
verdadeira causa. Não sei se me enganei nisto; mas confesso-te que não quis que a minha obediência te cause mais pesares do que os que eu tive; mas só a
importunar-te por esse motivo, com medo deque te ofendesses. Entretanto, ti caberá a culpa, pois és tu que me forças a revelar uma coisa que eu bem
sem que para isso eu tenha contribuído, encontro-te, no meu regresso, com quisera enterrar no eterno esquecimento.
o melhor bom humor do m u n d o e c o m o espirito completamente livre do .. . . —r O que me dizes — interrompeu-o Chahriar — só provoca a minha
queo obscurecia. Dizc-me, eu te rogo, por que estavas tão triste, e por que já curiosidade; avia-te e conta-me o segredo, por mais terrível que ele seja.
o não estás? . . O rei da Grã-Tartária, não podendo esquivar-se, contou então porme-
Àquelas palavras, o rei da Grã-Tartária ficou por algum tempo pensativo, norizadamente tudo o que vira, o disfarce dos negros, o arrebatamento da
como sc estivesse procurando o que responder. Finalmente,-respondeu:. sultana c o de suas companheiras. E não se esqueceu de Massud.
— Tu és meu sultão e meu mestre, mas dispensa-me, cu te suplico, de ' — Após ter sido testemunha de tais infâmias — continuou — , pensei
dar-td a resposta que me pedes. serem todas as mulheres naturalmcnte-inclinadas a isto, e não poderem resistir
Não, meu Irmão! É preciso que me respondas. E pois que o desejo, a tão forte atração. Firme no meu modo de pensar, pareceu-me grande fraque-.
não me recuses. . za confiar na lealdade delas. Esta reflexão levou-me a muitas outras; e, enfim,
Chahzcnã não pôde resistir às instâncias de Chahriar. compreendi que só me restava uma coisa: consolar-me. Tive de esforçar-me,
—- Pois bem, meu irmão, vou satisfazer-te, já-que assim me ordenas.. • mas consegui. E se acreditares no que te digo, hás de fazer o mesmo.
Cohtou-lhej então, a infidelidade da rainha de Samarcanda, e-quando Apesar de tão sério conselho, o sultão não pôde aproveitá-lo. E enfure-
terminou: " ceu-se. • . -
— Eis aí — prosseguiu — , se me não sobravam motivos par? entriste- —r- Como! A sultana da índia é capaz de sc prostituir tão indignamente?
efer-mc; julgas que eu não tinha razão dé me abandonar áo desespero?- - Não, meu irmão, não posso acreditar no que me dizes; é preciso que o veja
1
^- McrP i*mãó! —- Esdàintíu"- Ghah'riár n u m tom que denotava toda a com meus próprios olhos. Talvez os teus o tenham enganado; e a questão é tão
sua'compreensão do ressentimento do rei°da Grã-Tartária '•—-, que horrível importante que merece que eu mesmo me certifique.
M M
m/Je uma no/Yes

— M e u irmão — respondeu Chahzenã — , se queres a prova, não é — Prometo — respondeu o sultão —-, mas duvido que encontremos
EL''
difícil. Organiza uma nova caçada. Quando estivermos fora da cidade, com a alguém mais infeliz. . •
tua Corte e a minha, nos deteremos nos nossos pavilhões, e de noite voltare- —-Não sou da tua opinião — replicou o rei daTartária. — Talvez nem
mos sozinhos a estes meus aposentos. Estou certo de que verás o que eu v i . tenhamos que viajar por muito tempo.

O sultão aprovou o estratagema e ordenou imediatamente uma nova caçada, Assim, saíram' secretamente do palácio, c enveredaram' por caminho diver-

dc modo que, no mesmo dia, os pavilhões foram erguidos no lugar designado. so do que haviam seguido para vir. Caminhando até o fim do dia, passaram a

No dia seguinte, os dois príncipes partiram com seus séquitos. Chegados primeira noite sob uma árvore. Levantando-sc logo ao despontar do sol, conti-
nuaram a marcha, até que chegaram a um belo bosque, à beira do mar, onde se
ao lugar em que deviam acampar e ali se detiveram até a noite. Chahriar,
erguiam grandes árvores dc copas frondosas. Sentaram-se aos pés dc uma dclas^.,
chamando então o grão-vizir, ordenou-ihe que o substituísse durante a sua
para repousar, e a infidelidade dc suas mulheres f o i o assunto da conversa. ^fAV---
ausência, e não permitisse a saída de quem quer que fosse do acampamento,
por motivo n e n h u m . Mal deu a ordem, o rei da Grã-Tartária c ele montaram Não fazia muito tempo que estavam conversando, quando ouviram, bcíji

a cavalo, atravessaram incógnitos o acampamento, entraram na cidade e diri- perto, um horrível barulho vindo do lado do mar c um grito espantoso que os
mergulhou no terror. O mar abriu-se, e dele se levantou uma grande coluna
giram-seao palácio ocupado por Chahzenã, onde se deitaram. N o dia seguin-
negra, que parecia perder-se nas nuvens. Aquela visão redobrou o terror dos
te, de manhãzinha, colocaram-se na mesma janela de onde o rei da Grã-Tartária
dois príncipes, que levantando-se imediatamente, subiram ao alto da árvore,
assistira à cena dos negros. Por algum tempo desfrutaram o frescor, pois o sol
que lhes pareceu mais indicada para esconderijo. M a l haviam subido, olhando
não se erguera ainda; e, conversando, olhavam frequentemente para a porta
para a direção de onde viera o barulho, e o n d e r r m a r se entreabrira, notaram
secreta. Finalmente, ela se abriu; é", para contarmos o resto em poucas pala-
que a coluna negra avançava para a margem, fendendo as águas; não puderam
vras, a sultana apareceu com as suas companheiras e os dez negros disfarçados,
compreender o que era naquele momentoTTOas pouco tardou para que com-
chamou Massud, c o sultão viu mais do que o suficiente para se convencer da
preendessem.
sua vergonha e da sua desgraça. . •'
• Tratava-se de u m dos génios malignos, inimigos mortais dos homens.
•;— Ó rríeu Deus! — exclamou. — Q u e indignidade, que horror! A espo-
Era negro e medonho, tinha a forma de um gigante de prodigiosa altura e
sa de Um soberano comereu será capaz dc tal infâmia? Depois disso, que prín-
trazia sobre a cabeça uma grande caixa de vidro, fechada com quatro fechadu-
cipe ousará gabar-se de ser perfeitamente feliz? A h , meu irmão — prosseguiu, ras do aço mais fino. Entrando no bosque, depôs a carga justamente aos pés dá
abraçando o rei da Grã-Tartária — , renunciemos ambos ao m u n d o , onde já árvore que abrigava os dois nobres, que, conhecendo o extremo perigo em que
não existe lealdade, c que, se por um lado lisonjeia, por outro trai. Abandone- se achavam, julgaram-se perdidos.
mos os nossos Estados e todo o esplendor que nos rodeia. Vamos a um reino
Entretanto, o génio sentara-se perto da caixa; e, após abri-la com quatro
estrangeiro arrastar urrià vida obscura e ocultar nosso infortúnio. •
chaves que tinha presas à cintura, dela saiu uma jovem luxuosamente vestida,
Chahzenã n ã ò aprovou aquela resolução, mas não ousou combatê-la majestosa c dotada de perfeita beleza. O monstro ordenou-lhe que se sentasse
diante do f u r o r d o seu.irmão. •• , ao seu lado, e, olhandora amorosamente, disse-lhe:
. Í - T M ç ú irmão—- disse-lhe — , não tenho outra vontade senão a tua, e - -Senhora, a mais bela de todas as-mulheres admiradas pela sua beleza,
i

estQÚ.pronjo a seguir-te para_o.nde queiras; mas promete-me.que voltaremos encantadora mulher, t u , que eu raptei no dia das tuas núpcias, e que com tarha-
se conseguirmos encontrar alguém mais infeliz do que nós.
Ois mil e urna naifes Ois mile uma noi/es

nha constância amo, pcrmites-mc que eu durma u m pouquinho perto de ti? O impedir sua realização. Os homens fariam bem cm não proibir nada i s mulhe-
sono por que me sinto dominado fez-me vir a este recanto repousar um instante. res; seria o melhor meio de torná-las sensatas.
Assim faiando, reclinou a grande cabeça sobre os joelhos da jovem; em Tendo-lhes falado assim, colocou seus anéis no mesmo fio em que se
seguida, estendendo os pés até o mar, não tardou em cair em profundo sono, achavam os outros. Em seguida, sentou-se como antes, levantou a cabeça do
e começou a roncar, de tal modo que fazia estremecer a praia. génio, que não despertou, colocou-a de novo sobre os joelhos, c fez um sinal
A jovem, erguendo os olhos por acaso, e, descobrindo os nobres no alto aos príncipes para que se retirassem.
da árvore, fez-lhes sinal com a mão para que descessem sem ruído. O terror Os dois irmãos tornaram a percorrer o caminho que tinham vindo; e que
deles foi enorme quando se viram descobertos. Por outros sinais, suplicaram- quando perderam de vista a jovem e o génio, Chahriar disse a Çhahzenã:
Ihe que os dispensasse de obedecer; mas, ela, após tirar suavemente de cima — E então, meu caro irmão, que pensas da aventura que acabamos de
dos joelhos a cabeça do génio e colocá-la com toda delicadeza sobre o chão, viver? Aquele génio não possui realmente uma amante fidelíssima? E não con-
levantou-se e disse-lhes baixinho, mas em t o m imperioso: cordas comigo que nada é igual à malícia das mulheres?

— Descei, e vinde aqui. — Sim, meu irmão — respondeu o rei da Grã-Tartária. — E por tua vez
Em vão eles tentaram fazer-lhe compreender por. gestos, que temiam o hás de concordar que o génio é mais lastimável c infeliz do que nós. E visto
génio. que encontramos o que procurávamos, voltemos aos nossos Estados, c que a

— Descei imediatamente — respondcu-lhe. — Se não me obedecerdes nossa desilusão nos não impeça de novamente nos casarmos. Quanto a m i m ,

já, despertá-lo-ei, e eu mesma lhe pedirei que vos mate. sei por que meio pretendo conservar inviolável a fidelidade que me é devida.

Estas palavras de tal modo os assustaram que começaram a descer com Não quero entrar em explicações agora mas t t r r u m dia, receberás notícias, e

todas as precauções possíveis para não despertar o génio. Ao pisarem o chão, a estou certo de que seguirás o meu exemplo.

jovem pegou-os pela mão, e, afastando-se um pouco com eles, sob as árvores, O sakSo concordou. E continuando a caminhar, chegaram ao acampa-
fez-lheslivremente uma proposta bastante ousada, que a princípio rejeitaram; mento ao cair da noite, no terceiro dia após a partida.
mas ela os obrigou, por meio de novas ameaças, a aceitá-la. Depois de ter A notícia do regresso do saltão levou, de manhãzinha, os cortesãos à sua
obtido dos dois nobres o que desejava, notando que traziam, cada u m , u m presença. Ele, mandando-os entrar, acolheu-os mais bem-humorado que de
anel no dedo, exigiu-os. M a l ôs'teve nas rfjãos, foi buscar uma caixinha c, hábito, e deu a todos presentes, após o que, tendo-lhes declarado que não
tirando dela um fio cheio de anéis de todos os tipos, perguntou-lhes: desejava prosseguir, ordenou-lhes que partissem a cavalo, e voltou aó palácio.

-i— Sabeis o que significam estes anéis? M a l chegado, correu áo aposento da rainha. A l i , mandou amarrá-la e
— Não — responderam os dois príncipes. — Somente vós o podeis dizer. entregou-a ao seu grão-vizir, com a ordem de estrangulá-la, o que o ministro
— São os anéis de todos os homens a quem.concedi os meus favores, c u m p r i u sem ousar perguntar que crime ela havia cometido. O príncipe,
noventa c oito que conservo como lembrança. Pedi os vossos pela mesma irritado, não se contentou com isso; com suas próprias mãos, cortou a cabe-
razão, e para completar a centena. Eis, pois, cem amantes que tive desde o dia ça de todas as companheiras da sultana. Depois de tão terrível punição,
em que esse monstro me raptou, apesar da sua vigilância e das suas precau- persuadido de que não existia mulher recatada, e para evitar as infidelidades,
ções. Pouco me importa que me encerre naquela caixa de vidro e me oculte no -das-qrre"possuina no f u t u r o , resolveu desposar uma por noire, e ordenar que
fundo do mar, porque nunca.deixo de enganá-lo. Vedes, portanto, qUe quan- ^estrangulassem no dia seguinte. Imposta tão cruel lei, j u r o u que começaria
do a mulher tem um propósito, não há marido nem amante capaz de lhe a observá-la imediatamente após a parrída do rei da Grã-Tartária, que p o u - '
09s mil' e uma nottes

cos dias depois se despediu, pondo-se a c a m i n h o , carregado de magníficos — A tua intenção é bastante louvável, minha filha — disse o vizir
presentes. . mas o que pretendes me parece impossível. C o m o pretendes conseguir o que
• C o m a partida de Chahzcnã, Chahriar ordenou ao grão-vizir que lhe almejas?
levasse a filha de u m dos seus generais do exército. O vizir obedeceu-lhe. O — Meu pai — prosseguiu Cheherazade — , visto que pot vosso intermé-
sultão dormiu com ela, e no dia seguinte, entregando-a para morrer, ordenou- dio o sultão celebra todos os dias novas núpcias, suplico-vos, cm nome do
Ihe que procurasse outra para a noite seguinte. Por maior que fosse a repug-
afeto que tendes por m i m , me proporcioneis a honra do seu leito.
nância do vizir em executar semelhantes ordens, como devia obediência cega
O vizir não pôde ouvir aquelas palavras, sem horrorizar-se.
ao sultão, viu-se obrigado a submeter-se. Levou-lhc, pois, a filha de um oficial
— Meu Deus! — interrompeu-a com arrebatamento -—perdeste o juízo,
subalterno, que também foi morta no dia seguinte. Depois, foi a vez da filha
minha filha? C o m o ousas fazer-me um pedido tão perigoso? Sabes que o sul-
de um burguês da capital. Enfim, todas as noites, casava-se uma donzeja e
tão jurou-pelá sua alma só d o r m i r uma noite com a mesma mulher e tirar-lhe
todos os dias morria uma mulher.
a vida nó dia seguintç, e queres que cu lhe proponha desposar-te? Pensas, por
Aquela desumanidade sem precedentes causou consternação geral na ci-
acaso, naquilo a que te expõe esse teu zelo tão indiscreto?
dade, onde só se ouviam gritos e lamentações. A q u i , era um pai em pranto que
— Sim, meu pai — respondeu a virtuosa filha. — Conheço o perigo que
se desesperava pela perda da filha; ali, eram mães que, temendo pelas suas
corro, c não tenho medo. Se eu morrer, minha morte será gloriosa, e se conse-
filhas o mesmo destino, enchiam antecipadamente os ares com os seus gemi-
guir o meu intento, prestarei à pátria inigualável serviço.
dos. Assim, em vez dos louvores e das bênçãos que Chahriar atraíra até então,
os seus súditos só lhe lançavam imprecações. — Não, não! — respondeu o vizir. — Apesar de tudo quanto possas
dizer para que eu permita que te arrisques a fito perigosa aventura, não penses
O grão-vizir, que, como já dissemos, era o ministro de tão horrível injus-
que consentirei. Quando o sultão me ordenar que te apunhale no seio, ai de
tiça, tinha duas filhas, a mais velha, chamada Cheherazade, a mais nova D i -
m i m , serei obrigado a obedecer-lhe! Que triste encargo para u m pai! A h , se
narzade. Esta não carecia de méritos, mas a outra possuía coragem acima do
não temes a morte, teme, pelo menos, causar-me a dor de ver as minhas mãos
seu sexo, muitíssimo espírito e admirável inteligência. M u i t o culta, era dona
de memória tão prodigiosa que nada lhe escapava de tudo quanto havia lido. manchadas com o teu sangue! . .

Aplicara-se com afinco ao.estudo da filosofia, da medicina, da história e das — Mais uma vez, meu pai — disse Cheherazade — , concedei-me a gra-
artes, e compunha versos mais lindos que os dos poetas mais famosos do seu ça que vou suplico.
tempo. Além disto, tinha uma beleza extraordinária. E uma virtude solidíssima - — A tua obstinação provoca a minha cólera. Por que pretendes correr para
coroava tantas lindas qualidades. • a tuaprópriaperdição?-Quém não prevê o fim de um empreendimento perigo-

O vizir amava apaixonadamente filha tão digna da sua ternura. U m dia, so dele não pOdc livrar-se felizmente. Receio que tç suceda o que sucedeu ao
conversando, disse-Ihe ela: - burro que vivia bem^não_soub^ contciitatsc com o_quc tinha. .^

;— M e u pai, peço-vos uma graça, e suplico-a muito humildemente. — Que desgraça lhe sobreveio? — Perguntou Cheherazade.
— Não te recusarei — respondeu ele — , se for justa e razoável. •—.Vou contar-te. Escuta-me.
— Mais justa não há, c vós podereis julgar o que vos afirmo pero motivo
que me obriga a solicitá-la. Pretendo deter a barbaridade do sultão sobre as
famílias da cidade. Quero eliminar o justo temor que tantas mães têm de perder
suas filhas de modo tão terrível. --
C71 JáSuIa cío S/Jarro,
cío fJSoie cío íoauracfor

— V —

" U m riquíssima mercador possuía várias estâncias onde criava grande


quantidade de todo tipo de gado. Vivendo com a mulher e os filhos numa
dessas suas propriedades, dirigia-a pessoalmente. Recebera o dom de com-
preender a língua dos animais, mas com a condição de não repetir a ninguém
o que ouvia, pois assim morreria.
U m boi e um burro valiam-se da mesma manjedoura. U m dia, estando o
mercador sentado perto deles, vendo os f i l h o s brincarem, ouviu o b o i dizer
ao burro: 'Como t u és feliz, que repousas m u i t o e trabalhas pouco! Tratam-
te cuidadosamente, lavam-te, dão-te cevada da melhor e água fresca e limpa.
O teu maior esforço é transportar o mercador, nosso amo, nas suas pequenas
jornadas; sem isto, a tua vida se passaria na ociosidade. Quanto a m i m , tra-
tam-mè de modo bem diferente, é a minha condição é tão infeliz enquanto a
tua é agradável. Noite ainda, prendem-me a úm arado, que devo puxar o dia
inteiro, sulcando a terra, o que me fatiga a tal ponto que, por vezes, me faltam
forças. Além disto, o lavrador, sempre atrás de m i m , não deixa Um instante de
m e bater. À força de puxar o arado, trago o pescoço escorchado. E n f i m , após
trabalhar desde o nascer do dia até a noite, quando volto d i o - m e para comer
péssimas favas secas, das quais sequer tiram a terra, o u outras coisas semelhan-
tes.. Por f i m , quando, termino a refeição tão pouco apetitosa, sou obrigado a
passar a noite deitado sobre o meu próprio excremento. Vês, pois, que me
sobram.razoes para invejar-te'. O burro não interrompeu o boi. Deixou-o,
pelo contrário, falar à vontade.Mas quando ó boi acabou de falar, disse-lhe:
' T u não desmentes o nome de idiota que te dão; és m u i t o ingénuo, deixas que
SIS

J
façam contigo o que queiram, c es incapaz de tomar uma boa decisão. E, no trabalho; além disto, recebeu tantas bordoadas que, ao voltar, mal conseguia'
'••p ..-entanto, que vantagem tiras de todas as injustiças que cometem contra ti? manter-se de pé.
0 .i' Matas-te, pelo repouso, prazer e proveito daqueles que nem se lembram, de O boi, pelo contrário, estava contentíssimo. Comera tudo quanto havia
Jf t i . Não te tratariam assim se tivesses coragem como tens força. Quando vêm na manjedoura, repousara o dia inteiro, feliz por ter seguido os conselhos do
buscar-te à manjedoura, por que não oferecesresistijaçjp, poxlqug a l p dás burro, que abençoou m i l vezes pelo bem que lhe tinha proporcionado. Não
umas boas chifradas, por que não demonstras a tua cólera batendo violenta- deixou de agradeccr-lhe novamente ao vê-lo de volta. O burro nada respon-
s
> mente as patas no chão? Por que, enfim, não inspiras o terror por meio de deu, tamanho era o seu despeito por ter sido tão maltratado! 'À minha impru-
J- mugidos? A natureza deu-te os meios de te fazeres respeitar, e tu não sabes dência, dizia ele a si mesmo, 'é que devo esta desgraça. Eu vivia em paz. Tudo .v
deles servir-te.Trazem-te péssimas favas e péssima palha. Não as comas! Chei- me sorríã. Tinha tudo o que pudesse desejar. Só a m i m é que cabe a culpa de _.
ra-as, mas não as toques. Se seguires os meus conselhos, notarás daqui a pou- ver-me em tão deplorável estado, e se não conseguir inventar alguma artima-
co, uma mudança, e me agradecerás.' •• nha para me livrar dele, será certa a minha perdição'/ Assim, sentindo que lhe
O boi, decidido a pôr em prática os conselhos do burro, manifestou-lhe fugiam as últimas forças, deixou-se cair semimorto aos pés da manjedoura'."
toda a sua gratidão: ' M e u caro, não deixarei de fazer o que me disseste, e verás A esta altura, o grão-vizir, dirigindo-se a Gheherazade, disse-lhe:
como hei de me sair'. Calaram-sc depois daquela conversa, da qual o merca- . —Tu-PlQcedes como esse burro, minha filha, c expões-tc à perdição pela
dor não perdeu uma só palavra. tua/falsa sabedoria) Crê-mc, fica como estás e não procures correr ao encontro
No d ia seguinte, de manhãzinha,^lavrador íoi buscar o boi, prendeu-o da m ^
ao arado e levou-o aocostumeiro trabalhoTÇTpoi, que não se esquecera do — Meu pai — respondeu Cheherazade — , o exemplo que acabais de me
" conselho drTburro, comportou-se mal naquele dia; e, ao cair da noite, quan- contar não basta para fazer com que eu desista da minha ideia, e só cessarei de
do o lavrador, após levá-lo de volta à manjedoura quis prendê-lo como sem- vos importunar quando obtiver de vós licença para tornar-mc esposa do sultão.
pre fazia, o malicioso animal, em vez de apresentar humildemente os ehi- . O vizir, vendo-a.insistjr,.disse-lhe: ,
• V*. fres, pôs-se aresistir e a recuar, mugindo; chegou até a abaixar as pontas dos - — - Pois bem, já que não queres abandonar tua obstinação, serei obrigado
" chifres como quedecidido a chifrar o lavrador; comportou-sc, enfim, como a tratar-te como tratou sua mulher o mercador de quem acabei de falar pouco
^/ lhe havia dito 0 b u r r o . N o dia seguinte, o lavrador f o i buscá-lo novamente . tempo depois, e eis como: ''tendosabido que o burro se encontrava em estado

para levá-lo ao campo; mas encontrando a manjedoura ainda cheia de favas lastimável, desejou ver o que se passaria entre ele e o boi. Por conseguinte,

e de palha, lá postas na véspera, e o bói deitado, com as patas estendidas, c após o jantar, saiu e foi sentar-sc perto dos d°'s animais, acompanhado por

respirando de m o d o esquisito, julgoú-o doente, apíedou-se dele e, crendo sua mulher. Ao chegar, ouviu o burro dizer ao boi: 'Compadre, dize-me o que

que seria inútil levá-lo para o trabalho, correu imediatamente para advertir pretendes fazer quando o lavrador te trouxer amanhã a comida.' 'QUe hei dé

o mercador fazer?', respondeu o boi. 'Continuarei a fazer o que me ensinaste. Primeiro me


afastarei, depois lhe mostrarei os chifres, como ontem, fingirei estar doente e
Ô mercador percebeu imediatamente que os rnaus conselhos do burro
desesperado.' 'Guarda-te de proceder assim', interrompeu o burro 'porque se-
haviam sido seguidos aó pé da letra, e a fim de p u n i - l o como merecia, disse ao
ria a tua desgraça. O u v i o mercador dizer uma coisa que me faz tremer pela
'arador: 'P^cojzyjjxuuxlugrdoboi,epãodeixtsdedar-lhebastantetrabã-
tua sorte.' ' O que ouviste?', perguntou-lhe o boi; 'não me ocultes nada, por
Q lho/Ojavràdor obedeceu. O-burrò fòTõbngadò à puxado arado durante todo
favor. ' O nosso amo', c o n t i n u o u o burro, disse ao lavrador, estas horríveis
itfS^y- ° q"c o alquebrou, ainda mais por não estar acostumado àquele tipo.de
¿Jal mil e uma notiez OJs mil e uma noiles

palavras: 'Como o boi não quer comer, e como não pode sustentar-sc, será capaz de deixar-te morrer pela tua obstinação, vou chamar teus filhos, a fim de
melhor que o mates amanhã. Faremos, por amor a Deus, esmola da sua carne que tenham o consolo de ver-te antes que morras."
aos pobres; e, quanto à pele, que poderá ser-nos útil, t u a darás ao correeiro. Mandou chamar os filhos, e também o pai, a mãe e os parentes de sua
Não te esqueças de mandar vir o magarefe". 'Al está', acrescentou o burro, 'o mulher. Quando os viu todos reunidos, explicou-lhes o motivo de tamanha

que eu queria contar-tc. O interesse que tenho na tua vida, e a amizade que discussão,' ao que eles empregaram toda a sua eloquência para fazer com que a

sinto por t i me obrigam a avisar-te e a dar-te novo conselho. Mal te trouxerem mulher compreendesse não ter razão cm não desistir da sua obstinação; mas

as favas e a palha, levanta-te, e lança-tc a das c o m avidez; o amo verá, assim, d a repeliu a todos, dizendo que preferia morrer a ceder. Foi em vão que seu

que-estás curado, e retirará sem dúvida a ordem de morte, ao passo que, se pai e sua mãe.lhe falaram em particular, e lhe mostraram que o que desejava
saber carecia de importância; não conseguiram influenciá-la nem pela autori-
procederes de outro modo, estará tudo acabado para t i ' .
dade nem pdas palavras. Quando os filhos perceberam que se obstinava cm
Tais palavras produziram o efeito desejado pelo burro. O boi, terrivel-
rejeitar sempre as razões com as quais se lhe combatia a obstinação, começa-
mente espantado, mugiu tristemente. O mercador, que a ambos ouvira com
ram a chorar. O mercador já não sabia mais o que fazer. Sentado à porta de sua
toda atenção, explodiu, então, em tamanha gargalhada, que sua mulher o
casa, começou a refletir se lhe não seria melhor sacrificar a vida para salvar a de
olhou assombrada. 'Dize-me', pediu da, 'por que te ris assim, para que eu
sua mulher, quede tanto amava."
também possa rir.' ' M i n h a mulher', respondeu-lhe o mercador, 'contenta-te
- Pois bem, m i n h a filha — c o n t i n u o u o vizir, falando sempre a
em ouvir-me rir', 'Não', insistiu ela. 'Quero saber o motivo." 'Não posso dar-
Cheherazade — , "possuía o mercador cinquenta galinhas e u m galo, além de
te essa satisfação"! prosseguiu o marido. 'Bastará que saibas que assim rio pelo
u m excelente cão de guarda. Enquanto estava sentado, como já disse, pensan-
que acabo de ouvir o nosso burro dizer ao boi. O resto é um segredo que não
do na decisão que devia tomar, viu o cão. correr para 9 galo, que se havia
posso revelar-te'. 'E que te impede de revdar-mc taJ segredo?" 'Se eu te contas-
lançado sobre uma galinha, e dkKfrJhe estas palavras: ' Ó galo. Deus não per-
se, pagaria as minhas palavras com a vida. 'Tu zombas de m i m ' , gritou a m u -
mitirá que tu vivas ainda m u i t o tempo! Não te envergonhas de fazer o que
lher. ' O que me contas não pode ser verdade. Se não me disseres imediatamen-
fazes todos os dias?' O galo, firmando-sc nos pés c voltando-se para o cão,
te por que riste, se te recusares a contar-me o que conversaram o burro e o boi,
respondeu: 'Por que deveria êu ser proibido de fazer o que sempre faço?' 'Visto
juro por Deus que está no céu que não viveremos mais junios." Assim entrou
que o ignoras', respondeu o cão, 'fica sabendo que o nosso amo hoje está
em casa e pôs-se a um canto, onde passou a noite a lamentar-Se em altos
profundamente mortificado. Sua mulher quer que lhe revele um segredo de
brados. O marido deitou-se sozinho. N o dia seguinte, vendo que ela não dei-
tal natureza que ele perderá a vida se o contar. As coisas estão assim, e temo
xava de se lamentar, disse-lhe: 'Não és sensata, afligindo-tc desse modo, por- que o nosso amo não tenha a firmeza necessária para résistif à obstinação de
que o assunto não vale a pena, e a t i pouco importa sabê-lo. ao passo que a sua mulher, pois ele a ama, c sofre por vê-la chorar incessantemente. Talvez
m i m muito importa mantê-lo secreto. Não penses mais no que se passou, morra. Todos nós estamos impressionados. Só t u , insultando a nossa tristeza,
suplico-te." 'Tanto penso', respondeu a mulher, 'que não cessarei de chorar tens a imprudência de te divertir com as tuas galinhas'.
senão quando me satisfizeres a curiosidade", respondeu. 'Mas digo-tc seria-
O galo assim respondeu â reprimenda d o cão: ' C o m o é insensato o nosso
mente que me custará a vida ceder à tua indiscrição.' 'Suceda tudo quanto
amo! Apesar de só ter uma mulher, não consegue lidar com ela, ao passo que
aprouver a Deus", tespondcú'ela. 'Não desistirei". 'Sei', continuou o mercador,
eu possuo cinquenta, que fazem tudo o que quero. Se pensar um pouquinho,
'que não há meio de fazer-te compreender razões, e, como percebo que és
achará logo um modo de sair do embaraço em que se encontra'. 'Que queres
Oís mile urna noiles

que ele faça?', perguntou o cão. 'Que entre no quarto de sua mulher', respon- — Senhor — disse o vizir — , o meu coração há dc gemer, sem dúvid
deu o galo 'feche a porta, pegue um ótimo pedaço de pau c Ihe dé urna boa ao vos obedecer, mas a voz da natureza falará cm vão, pois, apesar de pai,
surra. Tenho certeza de que, assim, voltará imediatamente a ter juízo, c não garanto-vos que o meu braço é fiel.
insistirá mais em que ele lhe conte o que não pode ser contado.' O mercador, Chahriar aceitou a oferta do vizir, e dissc-lhe que poderia levar-lhe a
mal ouvindo as palavras do galo, levantou-se, pegou u m pedaço de pau, f o i
filha, e quando bem entendesse.
procurar sua mulher, que ainda chorava, fechou-sc com ela no quarto c deu-
O grão-vizir transmitiu a nova a Cheherazade, que a acolheu com a mes-
llir tamanha sutra que ele se pôs a gritar: 'Basta, meu marido! Basta, deixa-me!
ma alegria com a qual teria acolhido a mais agradável das notícias. Agradeceu
Nada mais te perguntarei.'
ao pai o serviço tão gentilmente prestado, c, vendo-o abatido pela dor, disse-lhe,
Diante daquelas palavras, e vendo-a arrependida da curiosidade tão fora de para o consolar, que esperava que ele se não arrependesse de havê-la casado com
propósito, o mercador deixou dc surrá-la, abriu a porta, c todos os parentes,
o sultão, e que, pelo contrário, haveria de rejubilar-sc pelo resto da vida.
entrando, se alegraram por ver a mulher novamente ajuizada, e cumprimenta-
Depois, só cuidou de se preparar para comparecer à presença do sultão;
ram o marido pela feliz ideia que tivera para pôr f i m a tão penosa situação."
antes de partir, chamando sua irmã, Dinarzade, disse-lhe:
— M i n h a filha — acrescentou o vizir — , t u merecerias ser tratada da
— M i n h a querida irmã, preciso de t i n u m a questão importantíssima,
mesma maneira que a mulher do mercador.
e peço-tc que não te recuses. Meu pai vai levar-me ao sultão, a quem des-
— Meu pai — disse Cheherazade — , por favor, não zangueis por eu
posarei. Não te espantes com esta notícia; escuta-me com paciência. Q u a n -
persistir na minha vontade. A história dessa mulher não me faz desistir. Pode-
do eu estiver na presença do sultão, suplicar-lhe-ei que permita que t u
ria contar-vos muitas outras, ãs quais vos persuadiriam de que não deveis se
durmas no quarto nupcial, a fim de que mais uma noite eu possa desfrutar
opor ao meu plano. De resto, perdoai-me se o ouso declarar, ppor-rvos-ícis cm
a tua companhia. Se alcançar esta graça, espero, lcmbra-tc dc me acordar
vão, pois se a ternura paterna se recusar a conceder o que suplico, eu_m.esma
amanhã, uma hora antes do nascer do dia, e de me dirigir estas palavras:
irei apresentar-me ao sultão.
" M i n h a itmã, se não estiveres dormindo, suplico-te, a espera do dia que não
Finalmente, acuado pela firmeza de sua filha, rendeu-sc o grão-vizir, c,
tardará em nascer, me contes uma das tuas belas histórias". Imediatamente,
embora mortalmente.aflito por não haver conseguido dissuadida de tão dra-
começarei a contar, c gabo-mé de, por esse meio, livrar o povo da consterna-
mática .resolução, foi anunciar a Chahriar que na noite seguinte lhe levaria
ção em que vive.
- Cheherazade.
Dinarzade prometeu à irmã que faria com prazer o que lhe erâ pedido.
O sultão se admirou profundamente do sacrifício qué o.seu grão-vizir
fazia. Chegada a hora dc dormir, o grão-vizir levou Cheherazade ao palácio,
rctirando-sc após havê-la feito enttar rio aposento do sultão. M a l ô príncipe se
— - Como pudestes — perguntou-lhe — resolver cònceder-me vossa pró-
pria filha? viu a sós com ela, ordenou-lhe que descobrisse o rosto. Achou .1 tão linda que

— Senhor— respondeu o vízir—, foi ela mesma que se ofereceu. O triste ficou encantado; mas notando que chorava, perguntou-lhe o m o t i v o daquelas

destino que a aguarda não consegue espantá-la, e prefere sacrificar a vida a não lágrimas.

ter a honra de Ser por uma só noite a esposa de vossa majestade. — Senhor — respondeu Cheherazade - ! - , tenho uma irmã a quem amo
— Não vos iludais, vjzir — respondeu o sultão. — Amanhã, entregan ternamente c por quem ternamente sou amada; desejaria que ela passasse a
do-vos Cheherazade, quero que lhe tireis a vida. Se não o fizerdes, juro-vos noite neste aposento, para revê-la mais uma vez e dizer-lhe adeus. Conceder-
que morrereis! me-eis o consolo de ofcreccr-lhe esta derradeira prova da minha amizade?
h mil e uma noi/es

I-a
OCoite
Tendo Chahriar consentido, mandou chamar Dinarzade, que acorreu
imediatamente. O sultão deitou-se com Cheherazadc sobre um estrado bas- 0 MERCADOR E 0 GÉNIO

tante alto, à moda dos monarcas orientais, e Dinarzade n u m leito preparado


- • •
aos pés do estrado.
Uma hora antes de despontar o dia, Dinarzade não se esqueceu de fazer - •

o que lhe fora recomendado por sua irmã.


— Minha querida irmã — pediu ela — , se não estiveres dormindo, su- • • ^
plico-tc, a espera do dia que não tardará em nascer, me contes uma das tuas
lindas histórias. A i de m i m , será talvez a última vez que terei tal prazer! . "EJavia outrora u m mercador, que possuía grandes bens, tanto em terras
Chcherazade, em lugar de responder à irmã, voltou-se para o sultão: como em mercadorias e dinheiro. Tinha à sua disposição u m grande número
1
— Senhor — disse ela — , Vossa Majestade permite que eu satisfaça o de empregados, feitores e escravos. C o m o se visse obrigado, de vez em quan-
desejo de minha irmã? do, a fazer viagens para conversar pessoalmente com seus correspondentes,
— De boa vontade! — respondeu o sultão. um dia em que um negócio importante o chamou para bem longe do lugar
Chcherazade recomendou à irmã que prestasse atenção. E, dirigindo a em que vivia, montou a cavalo c partiu com u m alforje à garupa do animal, e
palavra a Chahriar, começou:
no qual havia guardado biscoitos e tâmaras, visto que deveria atravessar uma
região deserta, onde não encontraria o que comer. Sem acidentes, chegou ao
lugar de destino, e, terminado o assunto que para lá o havia atraído, rorrióu a
montar a cavalo a f i m de voltar.
N o quarto dia de marcha, sentiu-se de tal forma importunado pelo ardor
do Sol e da terra aquecida que se desviou do caminho para refrescar-se "sob
' umas árvores. A l i achou, aos pés de uma grande nogueira, uma fonte de.água
claríssima ê borbulhante. Apeou-se, prendeu o cavalo ao tronco de uma árvo-
re e sentou-se perto da fonte, após tirar do alforje algumas tâmaras e biscoitos.
Comendo as tâmaras, ia atirando os caroços a direita e à esquerda. Terminada
tão frugal refeição, como era bom muçulmano, lavou as mãos, o rosto e os pés,
e fez sua prece.
- Não havia ainda terminado sua prece quando viu surgir um génio bran-
co, velho, enorme, que, avançando para ele de alfanje na mão, lhe disse com
terrível voz: 'Levanta-'te, que preciso matar-tc com este alfanje, como t u ma-
taste meu filho', E fez seguir a tais palavras um grito terrível. O mercador,
horrorizado tanto pela feiúra do monstro como pelas palavras que lhe haviam
sido dirigidas, respondeu, tremendo: A i de m i m , meu bom amo, de que crime
CTls mile uma noiles

posso ser culpado diante de vós para merecer que me seja tirada a vida?' 'Que- Chahriar, que ouvira Cheherazade com prazer, pensou consigo mesmo:
ro', prosseguiu o genio, matar-te, assim como t u mataste meu filho.' 'Mas, — Esperarei até amanhã, e cia morrerá, mal eu tenha ouvido o resto da
por Deus', respondeu o mercador, 'como posso ter matado vosso filho? Não o história.
conheço, jamais o v i ! ' 'Não te sentaste, áo chegar aqui?,' perguntou o génio. Resolvido, portanto, a não mandar matar Cheherazade naquele dia, le-
' N ã o tiraste do alforje umas tâmaras, c, comendo-as, não atiraste os caroços à vantou-se para fazer sua prece c ir ao conselho.
direita e à esquerda?' 'Fiz o que dizeis', respondeu o mercador, 'não o posso
O grão-vizir, durante todo o tempo, vivera em cruel inquietação. E m
negar.' 'Sendo assim, digo-te que mataste meu filho, c eis como: quando atira-
lugar de gozar a doçura do sono, passara a noite suspirando, lamentando a
vas os caroços, meu filho passou por aqui e recebeu um deles n u m dos olhos,
sorte da filha, de quem deveria ser o algoz. Mas, se em tão triste espera temia
o que o levou à morte; por isso, preciso matar-te.' 'Ah, meu amo, perdão!',
rever o sultão, qual não f o i sua surpresa ao notar que o príncipe entrava no
exclamou o mercador. 'Não há perdão, não há misericórdia! Não é justo matar
conselho sem lhe dar a funesta ordem aguardada.
quem matou?.' 'Concordo', disse o mercador, 'mas, certamente, não matei vos-
O sultão, segundo o hábito, passou o dia administrando os negócios do
so filho. Mesmo que o tivesse matado, tê-lo-ia feito sem querer; por conse-
país. Quando a noite caiu, deitou-se novamente com Cheherazade. N o dia
guinte, suplico-vos que me perdoeis e deixeis que eu prossiga a minha jorna-
seguinte, antes do despontar do dia, Dinarzade não deixou de se dirigir à irmã
da'. 'Não, não!', disse o génio, persistindo na sua resolução 'é. preciso que eu te
e dizer-lhe:
mate, como t u mataste meu filho.'
— Minha querida irmã, se não estiveres d o r m i n d o , suplico-te, enquanto
Assim, agarrou o mercador pelo braço, lançou-o com o rosto por terra, e aguardamos o dia, que não demora, continues a história de ontem.
levantou o alfanje para cortar-lhe a cabeça. • Chahriar não esperou que CheherazatTff lhe pedisse permissão.
Entretanto, o mercador, debulhado cm lágrimas, protestando sua ino- — Termina"— disse-lhe ele — a história do génio e do mercador. EstOU
cência, chorava se lembrando da mulher e dos filhos, c dizia as coisas mais curioso por saber qual é o fim.
comoventes da terra. O génio, levantando o alfanje, teve a paciência de aguar- . . Cheherazade, então, continuou:
dar que o infeliz acabasse de se lamentar, sem, todavia, apiedar-se.
'São inúteis os teus lamentos!' gritou-lhe. 'Ainda que fossem de sangue as
tuas lágrimas, não deixaria de màtar-tç, como t u mataste meu filho'. 'Como!',
respondeu o. mercador. 'Não há palavras que vos possam, comover? Quereis de
todo jeito tirara vida de ura pobre inocente!"Sim', disse o génio 'estou resol-
vido a isSo.' . "Quando o mercador viu que o génio ia realmente cortar-lhe a cabeça,
Cheherazade, a essa altura, percebendo que já era dia, e sabendo que o deu u m grande grito, e disse: 'Detende-vos! Mais uma palavra, por miseri-
sultão costumava levantar-se de manhã bem cedo para fazer sua prece e reunir córdia! Tende a bondade de me conceder uma prorrogação; dai-me tempo
o conselho, deixou de falar. '• . suficiente para despedir-me de minha m u l h e r e de meus filhos, e legar-lhcs
. — Por Deus, rhinha irmã, é maravilhosa a tua história —' disse Dinarzade. os bens por u m testamento que ainda não fiz, a fim de que não sejam o b r i -
- T A continuação é mais surpreendente ainda — respondeu Cheheraza- gados a um processo, após a minha morte; quando eu tiver terminado, v o l -
d e ^ - , e t u concordarias. St ò sultão me deixasse viver ainda hoje eme permi- tarei imediatamente para cá e submeter-me-ei a t u d o quanto Vos aprouver.
tisse contá-la na próxima noite. " ..' 'Mas', disse o génio, 'se te concedo a prorrogação que me pedes, temo que
5Js mil e uuma noiles C%s mil e uma noiles

não volteis mais.' 'Se quiserdes acreditar no meu juramento', respondeu o filhos, nomeou tutores para os menores, c devolvendo à mulher tudo quan-
mercador,, 'juro-vos, pelo Deus do Céu e da Terra, que virei sem falta encon- to a esta pertencia pelo contrato de casamento, doou-lhe mais o que lhe
trar-vos atqui.' 'Quanto tempo desejas?', perguntou o génio. 'Peço-vos u m permitiam as leis.
ano. É de quanto preciso para regularizar meus negócios, preparar-me para Enfim, passou sr o ano, e foi preciso partir. O mercador preparou seu
renunciar sem pesares ao prazer da vida. Prometo-vos que dentro de u m alforje, onde colocou o lençol com o qual devia ser enterrado; mas, ao querer
ano, infalivelmente, estarei sob estas árvores, à vossa disposição.' 'Tomas a despedir-se de sua mulher e seus filhos, nunca se viu tamanha dor! Não se con-
Deus por testemunha da promessa que me fazes?', perguntou o génio. 'Sim , formando com a ideia de perdé-lo, queriam acompanhá-lo para com ele morrer.
respondeu o mercador, 'tomo-o mais uma vez por testemunha, e podeis crer Contudo, visto que era preciso decidir e deixar pessoas tão queridas, disse-lhes:
no meu juramento'. 'Meus filhos, separando-me de vós, nada mais faço senão obedecer a Deus.

Àquelas palavras, o génio, deixando-o perto da fonte, desapareceu. Submetei-vos corajosamente a esta necessidade, e lembrai-vos de que o destino

O mercador, recuperando-sc do susto, m o n t o u novamente no seu cava- do homem é morrer.'

lo, e prosseguiu sua jornada. Mas, embora por u m lado tivesse a alegria de Após tais palavras, aos gritos e à dor da família, partiu, e chegou ao mesmo
haver se livrado de tão grande perigo, por outro mergulhou em mortal triste- lugar em que vira o génio, e no dia prometido. Apeando-sc imediatamente,
za, ao lcmbrar-se do fatal juramento feito. Quando chegou em casa, sua m u - sentou-se à beira da fonte, para esperá-lo tristemente.
lher e seus filhos o receberam com muita alegria; porém, em vez de os abraçar Enquanto sofria em tão cruel espera, um bom ancião que levava uma corça
da mesma forma, pôs-se a chorar, e tão amargamente que eles não duvidaram pelo cabresto, se aproximou dele. Saudaram-se^.o ancião, lhe perguntou:
de que de\ia ter-lhe acontecido algo terrível. Sua mulher perguntou-lhea cau- 'Meu irmão, posso saber p o r q u e viestes a-este lugar tão deserto, onde só
sa daquelas lágrimas e daquele sofrimento que o dominava. 'Nós nos alegra- existem espíritos-a»alignos e não há segurança? Vendo tão belas árvores, dir-se-
mos', diss<-lhe ela,'com a tua volta, e,'no entanto, tu nos alarmas pelo estado ia habitado; mas é uma verdadeira solidão, onde é perigoso deter-se por muito
em que te/emos. Explica-nos, peço-te, o motivo da tua tristeza." 'Ai de mim", tempo.' . .•
respondeuo m a r i d o 'por que não me encontro em outra situação? Só me resta O mercador, satisfazendo a curiosidade do ancião, contou-lhe a aventura
um ano d( vida!' - - -". que o forçava a estar ali. O ancião ouyiu-o com espanto e, tomando a palavra,
E coitou-lhes o que se passara entre ele e o génio a quem dera a palavra disse:
de que volaría no fim de u m ano, para morrer. 'Eis aí a coisa mais surpreendente deste mundo! E vós vos ligastes pelo
Ao otvirem esta notícia, sua mulher e seus filhos caíram ria desolação. mais inviolável dos juramentos. Quero testemunhar o vosso encontrp com o
A mulhcr.lando lastimosos gritos, debatia-se c arrancavaòs cabelos; os filhos, génio!' ' . ' • • -
debulhada e m lágrimas, faziam ressoar pela casa os seus gemidos, e o pai, .Assim, sentou-se ao lado do mercador, c enquanto conversavam..."
• cedendo àforça do sangue, mesclava suas lágrimas aos lamentos deles. Era o — Mas estou vendo o dia — disse Cheherazade, interrompendo-se.
mais comvente espetáculo do mundo. — O que resta é a pane mais linda da história.
. N o ca seguinte, o mercador tratou de pôr em ordem seus negócios, e O sultão, resolvido a ouvir o fim, deixou a ainda viver.
sòbretudroagar suasdívidas? Distribuiu presentes aos amigos e deu grandes
esmolas as pobres, deu liberdade a seus escravos, dividiu os bens entre os

Cflj mil'e uma noiles - 9). fe umq^n


<s mil e u, noiles

. 1
Não se pode imaginar a alegria do grão-vizir quando v i u que o sultão
não lhe ordenava matar Cheherazade. A família, a Corte, todos, ficaram as-
sombrados!
Na noite seguinte, Dinarzade dirigiu à irmã o mesmo pedido que lhe
fizera antes.
— Minha querida irmã, se não estiveres dormindo, suplico-ie que me
f- "Xoite
contes uma das tuas lindas histórias.
Mas Chahriar interveio para dizer que queria ouvir a continuação da
história do mercador c do génio. Por conseguinte, Cheherazade começou: Pelo fim da noite seguinte, Cheherazade, c o m a permissão de Chahriar,
"Enquanto o mercador e o ancião que levava a corça conversavam, chegou prosseguiu:
outro ancião, seguido de dois cães negros. Aproximando-sc deles, saudou-os, e "Quando o, ancião que levava a corça v i u que o génio se apoderara do
perguntou-lhes o que faziam naquele lugar tão solitário. O ancião que levava a mercador para matá-lo, lançou-se aos pés do monstro, c beijando-os disse:
corça contou-lhe a aventura do mercador c do génio, o que se havia passado 'Príncipe dos génios, suplico-vos humildemente que suspendais vossa cólera e
entre eles, e o juramento do mercador. Acrescentou ser aquele o dia da palavra me concedais a graça de escutar-me. Vou contar-vos a minha história e a desta
empenhada, e ter ele decidido ficar para ver o que iria acontecer. corça que estais vendo; se a achardes mais maravilhosa c surpreendente que a
O segundo ancião, achando também o fato muito curioso, tomou a aventura deste mercador cuja vida quereis tirar, poderei esperar para ele o
mesma decisão. Sentou-se perto dos outros, e mal havia começado a participar perdão do terço do seu crime?' —
da conversação apareceu um terceiro ancião, o qual, dirigindo-se aos dois p r i - O génio, após refletir por algUm tempo, respondeu: 'Pois bem, con-
meiros, lhes perguntou pbr que parecia tão triste o mercador que estava com cordo'.
eles. Apenas ouviu o que se passara, o que lhe pareceu extraordinário, quis ser
testemunha do que sucederia entre o génio e o mercador. Por conseguinte, : . _ A HISTÓRIA DO PRIMEIRO ANCIÃO EDA CORÇA
sentou-se também. 'Vou, pois, começar a minha história', prosseguiu o ancião. 'Escutai-me com'
Poucos instantes depois, perceberam nó campo um espesso vapor, como atenção, peço-vos. Esta corça que estais vendo é minha prima c minha mulher.
que u m turbilhão dc pó erguido pelo vento, o qual avançou para eles e, dissi- Não tinha mais do que 12 anos quando a desposei; portanto, posso afirmar que
pando-se repentinamente, lhes deixou ver o génio que, sem os saudar, se apro- deveria considerar-menão somente marido e parente, mas também pai.
x i m o u d o mercador, empunhando o alfanje, e agarrando-o pelo braçd.disse- Vivemos juntos trinta anos, sem contudo termos t i d o filhos; mas sua
lhe: 'Levanta-te, para que eu rc mate como t u mataste meu filho!' ' esterilidade não impediu que eu tivesse por ela muita consideração e amizade.
O mercador e os três anciãos, aterrorizados, começaram a chorar e a Somente o desejo de ter filhos f o i que me impeliu a comprar uma escrava, da
gritar..." . . . qual tive um bastante promissor. M i n h a mulher, enciumada, criou aversão
Cheherazade, a essa altura, notando que o dia acabava de despontar, pela mãe e pelo filho, e ocultou tão bem seu sentimento que eu só v i m a

i n t e r r o m p e u a história. Mas esta havia de tal forma despertado a curiosidade conhecê-lo tarde demais.

do sultão,.que ele, querendo a todo custo saber o fim, mais uma-vez adiou a Entretanto, meu filho ia crescendo, e já tinha 10 anos quando fui obriga-
m o r t e d a sultana. do a viajar. Antes da partida, recomendei á minha mulher, da qual não des-

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