Tópicos p/Seminário Leonel: Thomas Vesting – Teoria do Direito: uma
introdução, Cap. 7 (Evolução), I, II e III.
Entende-se por história do Direito a descrição da trans- formação e da evolução do Direito dentro do tempo histórico, a “trajetória do Direito” desde os “primórdios até o presente”. O autor afirma que não se pode considerar a história do direito como um fenômeno linear, onde sempre se busca um nível superior, mas que, ainda assim, continuou existindo o ordenamento cronológico do material histórico segundo as grandes épocas da história mundial, Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, às vezes, complementadas pela Pré- História e pela História Contemporânea. O tema central continua sendo a modificação do Direito em um espaço de experiência da história concebido como “trajetória” – algumas vezes, também como “corrente” ou “fluxo”. Mas isso talvez seja apenas uma fórmula paliativa para o paradoxo iniludiv ́ el do tempo histórico, da identidade entre continuidade (identidade) e evoluçao ̃ (diferença). O conceito histórico moderno da Idade Moderna somente pôde surgir depois que o mundo deixou de assentar-se em uma transcendência (metafiś ica) indisponiv́ el e passou a ser objeto de sua própria evolução. Isso pressupunha a desintegração de uma visão de mundo estacionária da Europa antiga e, por conseguinte, uma reestruturação da semântica temporal ontológica. Somente depois que se constituiu a ideia de um sentido histórico especif́ ico é que a história do Direito pôde se estabelecer como disciplina cientif́ ica. Isso só aconteceu no (fim do) século XIX, na medida em que o histórico se tornou componente sustentador do direito. Contudo, o interesse genético-histórico pelo Direito romano permaneceu sempre subordinado a interesses sistemático-construtivistas; o entendimento histórico servia ao programa de uma dogmática histórica do Direito, i.e., à sustentação da pretensão de validade dos próprios projetos sistemáticos. Foi apenas com as codificações imperiais, no fim do século XIX (Código Comercial alemão, Código Civil alemão etc.) que as fontes do Direito romano e a ciência do Direito a elas associadas perderam importância, o que permitiu um interesse só histórico pelo direito romano. Desinteresse pelo estudo do direito de outras civilizações, como a Grega e a Asiática. Influência pesada do direito romano no estudo de História do Direito na Alemanha. Se a história romaniś tica do Direito do século XIX dispunha de um perfil de pesquisa relativamente unitário, no século XX a disciplina dispersou- se em correntes divergentes. já nos primeiros anos do século XX, surge uma história do Direito que renuncia a toda e qualquer pretensão dogmática, orientada exclusivamente pelo sentido histórico e pela verdade histórica. Além disso, já durante a República de Weimar, começou a articular-se um interesse pela semântica do Estado e da razão do Estado, na transição do regime de poder tradicional para a polit́ ica moderna: histórica constitucional da política moderna. As reflexões feitas até aqui servem unicamente para sustentar a constatação de que, hoje, a história do Direito pluralizou-se em diferentes áreas de pesquisa e desvinculou-se da ideia de um questionamento e de um método unitários. Hoje, a história do Direito oscila entre uma história dogmática do Direito civil romano de caráter mais autossuficiente (exemplo tiṕ ico: Kaser) e uma história do Direito de orientação histórico- social (exemplo tip ́ ico: Wieacker). II. História Evolutiva do Direito (M. Weber) A história evolutiva do direito de Weber, ao contrário de uma perspectiva meramente descritiva, indaga o encadeamento entre aquelas circunstâncias intrajurid ́ icas e extrajurid́ icas que conduziram à formação do Direito moderno. Seu tema exato é o “‘racionalismo’ especif́ ico da cultura ocidental”, a evolução da “legalidade interna própria” dos ordenamentos mais diversos, só produzida pelo Ocidente, como, e.g., soberania racional, economia capitalista, ciência (natural) autônoma e, de fato: Direito (racional) moderno. Weber: direito liberal como direito racional, sendo um direito definido pelo seu caráter formal. O direito é formal (racional) quando, em suas operações, “consideram-se, sob o aspecto jurid ́ ico-material e processual, apenas caracteriś ticas tip ́ icas gerais inequiv́ ocas”. O contraconceito para isso é racionalidade material. A racionalidade material dirige um Direito quando apreciações concretas do caso concreto, “imperativos éticos, ou regras de finalidade utilitárias ou outras, ou máximas polit́ icas” determinam problemas de criação do Direito ou de heuriś tica jurid ́ ica. Níveis do formalismo jurídico de Weber: No primeiro niv́ el, as caracteriś ticas juridicamente relevantes possuia ́ m um caráter perceptiv́ el pelos sentidos (doravante: formalismo empiŕ ico). No segundo niv́ el, o Direito era compreendido de modo puramente racional, pensante, através de “interpretação lógica” (doravante: formalismo lógico). Formalismo empírico: a) já pressupunha uma “decomposição [analit́ ica] dos complexos tip ́ icos plásticos da vida cotidiana em muitos atos elementares qualificados de modo inequiv́ oco e jurid ́ ico”, i.e., ao menos, rudimentos de uma análise conceitual através de abstração mental (daquilo que é dado); b) o elemento construtivo e sintético está apenas formado; c) apega-se a caracteriś ticas externas, ele trabalha com determinadas fórmulas e rituais e baseia-se, e.g., no fato “de uma determinada palavra ser dita, de uma assinatura ser dada, de uma determinada conduta simbólica definitivamente estabelecida em seu significado” ser executada. D) Do ponto de vista da história evolutiva, já se alcançara um grau relativamente alto de racionalidade com o formalismo empiŕ ico, mas onde esse tipo permaneceu determinante, a evolução do Direito ficou encravada na casuiś tica e na jurisprudência dos precedentes. Foi somente o formalismo jurid ́ ico lógico que conduziu à emergência do Direito moderno ou, nos termos de Weber, do Direito racional formal. Segundo Weber, o formalismo empiŕ ico constituia ́ o “tipo mais rig ́ ido do formalismo jurid ́ ico”. Os Direitos religiosos já conheciam elementos desse tipo de formalismo na forma de um formalismo condicionado pela mágica, mas o formalismo empiŕ ico apenas alcançou um significado “histórico-universal” no Direito romano. Vesting cita exemplos – legis actio, mancipatio e casamento – em que trata-se de “negócios jurid ́ icos” baseados em atos de fala per- formáticos (no sentido empregado por Austin), i.e., a transferência de validade do Direito, a validade do ato jurid ́ ico, é operada através do ato de fala, da forma sinestésica, visiv́ el e audiv́ el da enunciação, i.e., da comunicação. Weber considerava o formalismo jurid ́ ico desenvolvido quando “as regras jurid ́ icas singulares reconhecidamente vigentes [eram agregadas e] racionalizadas, por meio da lógica, em um nexo de enunciados jurid ́ icos abstratos coerentes em si”. Weber: positivismo jurídico atingiu o mais alto grau de racionalidade metodológica, aqui se tratando de racionalidade sistemática, em que ocorre a associação de dois componentes: ela se baseava, por um lado, no trabalho juridicamente construtivo, na sin ́ tese de regras em institutos jurid́ icos e, por outro, na “ressistematização lógica” dessas regras e institutos. Em outras palavras, racionalidade lógica significava construir regras e institutos abstratos e reduzi-los a princip ́ ios últimos e o mais gerais possiv́ eis através de relações de precedência (hierarquias), para, a partir desse ponto mais elevado, constituir o Direito em um sistema coerente em si e “desprovido de lacunas”. Weber também visualizava, como outros autores, a vontade livre ou a Consciência soberana, também constituía o ápice do sistema. Mas também acentuava, de outra banda, o componente mecanicista do sistema jurid́ ico-positivista e reconstruia ́ -o, “apoiando-se estritamente ̂ no modelo da mecanica como um sistema universalmente determinado e racional”40, transformando-o em uma unidade a partir da qual toda decisão jurid ́ ica podia ser entendida como “aplicação” de um enunciado jurid ́ ico a um fato concreto. Em Weber, encontrava-se em primeiro plano a reconstrução das condições intrajurid ́ icas e extrajurid ́ icas da evolução de um Direito sistemicamente racionalizado, de um Direito que podia ser programado como uma máquina trivial, modelo que pode ser visto, de forma exacerbada, por meio do positivismo. Somente a instituição de uma jurisdição contin ́ ua permitiu o surgimento de uma expertise jurid ́ ica especif́ ica, de um “pensamento ́ ico” que, por sua vez, influenciou a camada de dignitários jurid envolvida na práxis jurídica. Aqui, Weber distingue três fases evolutivas: o pensamento jurid ́ ico surgia (1) ou a partir da experiência “artesanal”, como “aprendizado empiŕ ico do Direito através de práticos”, (2) ou resultava do aprendizado teórico em escolas de Direito especiais, “na forma de elaboração racionalmente sistemática”; (3) ou o aprendizado do Direito acontecia em escolas eclesiásticas. Com a ajuda dessas distinções, estava criado um nexo histórico- evolutivo através do qual era possiv́ el esclarecer a evolução dos pressupostos intrajurid ́ icos do Direito racional. O formalismo lógico foi a obra de juristas com formação teórica e histórica, e baseava-se na reelaboração mentalmente sistemática do Direito justiniano e, especialmente, do Digesto. Isso, por sua vez, pressupunha a transmissão desse Direito desde o século XI, i.e., aquele momento em que o Direito romano registrado em um antigo manuscrito foi “redescoberto” em uma biblioteca da Itália. Os elementos de ligação centrais para a recepção desse Direito foram os tabeliães italianos, as universidades e o Direito canônico, i.e., a teoria do Direito da Igreja Católica Romana. Assim, no centro da história evolutiva de Weber estava, afinal, o Direito civil romano, não tanto por seu conteúdo, mas sim por seus “esquemas e formas de pensamento jurid ́ ico rig ́ idos. Portanto, o Direito privado, o Direito penal e o Direito público mo- derno somente podiam ser reconduzidos ao Direito civil romano segundo o aspecto formal, considerando-se a expertise jurid ́ ica estri- tamente formal. Somente nessa medida o Direito civil romano constituia ́ o objeto com base no qual o pensamento jurid ́ ico europeu formou-se e o Direito racional formal pôde desenvolver-se. Por trás dessa forma analítica de se verificar o direito romano, verificando o seu formalismo especial, estava novamente uma cadeia argumentativa, que levava do Direito à religião, como suposto “inić io” do Direito: o formalismo devia ser atribuid ́ o, afinal, às singularidades da “religião romana nacional” e da heuriś tica jurid ́ ica sacral dos pontif́ ices romanos (pontifices). Por isso, para Weber, a doutrina religiosa romana girava já cedo em torno do cultivo da correção e das questões de etiqueta jurid ́ ica, não do pecado, da penitência ou da salvação, sendo o direito sacral quem gerou o pensamento jurídico racional. Influências extrajurídicas do direito racional: Aqui, Weber remete a fatores distintos, como a relação entre poder teocrático e profano, as condições econômicas, como a dependência da liberdade contratual e dos direitos subjetivos em relação a processos econômicos (ampliação de mercado), mas também a relações de poder polit́ ico. Assim, a evolução do Direito formal podia ser condicionada por uma multiplicidade de fatores extrajurid ́ icos. Todavia, entre todos eles, Weber atribuia ́ ao fator polit́ ico uma posição especial. Princípio da estatuição: um voluntarismo pronunciado, i.e., na suposição de uma fundamentaçao ̃ do Direito reconduzível à livre vontade. A criaçao ̃ ou positivaçao ̃ do Direito. Relação da estatuição com o princípio da outorga. Nessa medida, a história evolutiva do Direito de Weber não pode ser dissociada de sua sociologia do poder ou do Estado; mais que isso até, a sociologia cultural comparada do Direito desempenhava, em muitos aspectos, um papel sobretudo subserviente em relação à teoria do Estado (racional) de Weber. Isso porque o Estado era o primeiro a cuidar da estatuição e da codificação. No plano lógico-conceitual, o Direito era condicionado – diferentemente, e.g., da convenção e dos costumes – pelo elemento da coerção jurid ́ ica. Isso se aplicava também e justamente no que se refere à sua validade empiŕ ica (eficácia), o que mostra a subordinação do pensamento weberiano do direito ao poder. Weber recusava-se em considerar inadmissiv́ el um monopólio estatal para a organização e o exercić io da coerção jurid ́ ica pela força; para ele, bastava uma situação “em que existe a perspectiva da aplicação de qualquer meio coercitivo, fiś ico ou psiq ́ uico, exercida por um aparelho coercitivo, i. e., por uma ou mais pessoas que estão prontas para esse fim, caso o tipo em questão venha a se concretizar, i. e., em que existe um tipo especif́ ico de socialização para a finalidade da ‘coerção jurid́ ica’”. No plano metodológico, toda a problemática de seu modelo epi- genético de esclarecimento, no qual “niv́ eis evolutivos” ou “niv́ eis racionais” singulares são retirados da realidade histórica, genera- lizados e, em seguida, enriquecidos com material histórico, já está inserida no sintagma “história da evolução”. De fato, Weber, o admirador da “grande polit́ ica”, tendia a reconduzir transformações históricas a lutas de poder, i.e., falando em termos sociológicos, a reconduzir seleções à contingência. Com isso condiz uma série de comentários do metodologista Weber, nos quais a realidade operacional da história é reduzida a um fluxo infinito (sem sentido) de “eventos incomensuráveis” que se revolvem em direção à eternidade. Por outro lado, porém, para Weber, tratava-se dos processos da racionalização formal do Direito, e, neles, a teoria estava fixada na observação de relações de pro-gressão e em tendências históricas. Weber achava ser possível escapar à oposição ausência de sentido da história versus evolução = progresso através de uma construção evolutiva tiṕ ica ideal. Essa construção tiṕ ica ideal reduzia a história a um mero modelo, a um constructo meramente teórico para descrição da realidade histórica (indescritiv́ el em sua realidade operacional). III – Teoria da Evolução e Teoria dos Sistemas O conceito de Weber de uma história evolutiva cultural comparada estiliza a evolução do Direito moderno, transformando-a, por fim, em um produto da atividade legisladora polit́ ica. Com isso, o Direito permanece na sombra da sociologia do poder e de sua concepção ́ ica polit́ ica, tal como ela é cultivada ainda hoje. jurid Todavia, a história cultural comparada da evolução do Direito de Weber pode servir de base à moderna teoria da evoluçao ̃ , na medida em que renuncia a toda e qualquer forma de metafísica do progresso e abre o conceito de história – ao menos nas análises materiais – para ideias de nao ̃ linearidade e descontinuidade. Aqui, evoluçao ̃ significa ensejo de uma maior complexidade, mas não progresso em direçao ̃ à perfeição. A ideia de evolução utilizada por Vesting é apoiada numa combinação entre teoria da evolução e teoria dos sistemas, proposta por Luhmann, Teubner e Amstutz, dentre outros, dentro de um esquema darwiniano, onde a “evoluçao ̃ ” é definida através de um esquema triplo: através do nexo de associaçao ̃ condicional entre variaçao ̃ , seleç a ̃ o e restabilizac ̧ a ̃ o . “Variaçao ̃ ” refere-se ao modelo de reproduc ̧ ao ̃ dos elementos próprios ao sistema ou a operações, i.e., a possíveis transformações dos costumes praticados no sistema até um determinado momento. “Seleçao ̃ ” refere-se à consequente transformaçao ̃ de estruturas como condiçao ̃ de reproduçao ̃ futura, i.e., a condições iniciais (recursivas) alteradas. “Restabilização” marca a continuaçao ̃ das estruturas escolhidas, a manutençao ̃ da estabilidade do sistema, no sentido da estabilidade dinâmica (interconexao ̃ recursiva). Exemplo: No passado, o conceito de reuniao ̃ sempre era interpretado no sentido amplo, todavia, sob a pressão do aumento de novos tipos de manifestaçao ̃ de divertimento (Love Parade), o Tribunal Constitucional Alemao ̃ vê-se confrontado com uma situação alterada e busca novas possibilidades para lidar com o tipo de manifestação divergente (variação). Em uma decisão, a manifestaçao ̃ de divertimento é excluid ́ a do conceito de reunião (seleção), em decisões ulteriores, a nova juris- prudência consolida-se (restabilizaçao ̃ ). Sobre o uso de ideias darwinianas, Vesting alerta que o emprego de conceitos de Darwin na teoria do Direito não deve ser interpretado como aplicação analógica de conclusões da biologia ou como “metáforas”. O conceito de “seleçao ̃ natural” de Darwin não é simplesmente transposto para a evolução do Direito; para a teoria dos sistemas, trata-se de seleçao ̃ interna e autoestabilizaçao ̃ provisória de sistemas (semânticos) dinâmicos, mas não de seleção externa e submissao ̃ a leis de caráter exclusi- vamente filogenético, como para Darwin. Pelo contrário, com a teoria da evoluçao ̃ , o objetivo é utilizar uma das aquisições mais significativas do pensamento moderno para esclarecer transformações estruturais do Direito. A teoria da evolução, provavelmente, é mais apropriada que qualquer outra teoria geral para inaugurar novas possibilidades de comunicação entre as ciências naturais e as ciências humanas, inclusive porque a biologia moderna já é fortemente influenciada pela cibernética, pela teoria da informação e pelo pensamento computacional. A ênfase do conceito tripartite de evolução está na distinção entre variação e seleção, na investigação das condições da possibilidade de alterações estruturais repentinas. Aqui, o antigo modelo teleológico de evolução é substituid ́ o por um modelo circular, que parte do princip ́ io de que os ordenamentos apenas conseguem es- tabilizar-se por algum tempo e de que fases de estabilidade (stasis) são substituid ́ as por fases de instabilidade. A teoria da evolução não parte do princípio da unidade e da continuidade de um contexto de tradição histórico, mas da plu- ralidade e da descontinuidade de nexos tradicionais históricos. Assim, o que é decisivo não é mais a questão sobre o nexo interno, e.g., do Direito civil romano, desde a Lei das Doze Tábuas até os últimos anos de Roma, mas sim a análise das “condições da possibilidade de alterações estruturais não programadas”. A diversificação e o au- mento de complexidade devem ser entendidos como efeitos da “ampliação, produzida de modo circular, de uma divergência em relação ao estado anterior” (deviation amplification). A evolução do Direito não é um aumento da complexidade orientado para um objetivo especif́ ico, gradual, contin ́ uo, sem lacunas, nem tampouco uma evolução de formas jurid ́ icas (perfeitas) inferiores para outras formas superiores, assemelhada a um processo, que se desenrola em fases. Evolução não é algo que pode ser prognosticado e nunca conduz a estados perfeitos, “pois a perfeição apagaria o significado de história e excluiria a evolução futura” Com a conexão entre teoria da evolução e teoria dos sistemas, o interesse da pesquisa histórico-jurid ́ ica – como já acontecia em Weber – é orientado para questões do presente, e a questão do inić io do Direito é relativizada ou abandonada. A evolução apenas pode alterar as estruturas de sistemas já existentes, mas o sistema autopoiético, até mesmo conceitualmente, não pode ser originado por um “pontapé inicial”. Aqui, Vesting considera a busca por um início dos inícios como um questionamento improdutivo. A fundação do Direito é tratada como um mito original fabricado no sistema jurid ́ ico, enquanto o centro de gravidade da análise teórico- evolutiva é deslocado para a busca de pontos de referência que deixem transparecer em que ponto as redes recursivas começam a refletir sua própria existência – na forma da observação de segunda ordem. Desse modo, a explicação de aquisições e pro- cessos evolutivos desloca-se de uma busca de um encadeamento de causas orientada pelo conceito de causalidade para a observação de inovações estruturais do sistema. A moderna teoria da evolução concentra-se, especialmente, na reconstrução de condições evolutivas gerais favoráveis à evolução do sistema. Essas condições de possibilidade são designadas por Luhmann – baseando-se no uso linguiś tico de Parsons – como “preadaptive advances” Essas decisões conceituais iniciais tornam possiv́ el con- ceber uma evolução autônoma do sistema jurid ́ ico sem que seja preciso relativizar ou mesmo ignorar a dependência do sistema ju- rid ́ ico em relação a um ambiente. Se partirmos do princip ́ io de que o sistema jurid ́ ico, desde o século XIX, diferenciou-se como sistema (“autolegal”) autônomo ou, na esteira de Luhmann, deve ser sempre pressuposto como sistema autopoiético, a evolução do Direito não poderá ser tratada unicamente como variável da evolução do ilić ito, e.g., como “reflexo” da evolução social, cultural ou polit́ ica. Na evolução, trata-se sempre de diferença e de adaptação na relação entre sistema e ambiente. Da autonomia do direito: Ainda que se tente isolar a questão sobre o inić io e evitar o mito de uma primeira diferença, de um primeiro rastro – como fez Luhmann – ao menos no plano da comparação cultural “teórico-universal”, coloca-se a questão sobre como a diferenciação do Direito veio a acontecer em uma determinada via da evolução do Direito – e, aparentemente, sob forte influência do Direito civil romano – enquanto todas as outras culturas não foram além das “estruturas jurid ́ icas” adivinha- tórias, religiosas ou retóricas. Muito distintas são as respostas encontradas na teoria dos sistemas para a questão sobre o inić io e o lugar de inić io do processo de diferenciação do Direito. Existem comentários que dão a entender que algumas culturas urbanas da região mediterrânea da Antiguidade já dispunham de um Direito (autopoiético) autônomo. Segundo outros comentários de Luhmann, o verdadeiro take-off do sistema jurid ́ ico deu-se somente por volta de 1800, e em estreita relação com a diferenciação do sistema econômico85. Luhmann enfatiza essas interdependências funcionais também no contexto do problema do poder: sem o monopólio de poder no Estado moderno, não seria concebiv́ el um sistema jurid ́ ico autônomo. Ainda que se admita que a evolução do Direito possa repetir-se, i.e., que a emergência do Direito (autopoiético) autônomo não precisa ser reconduzida a um único pontapé inicial, este é um ponto em que reina grande incerteza. Se levarmos em conta, primariamente, a autopoiese comunicativa, a codificação binária e a observação de segunda ordem, é praticamente impossiv́ el desconsiderar a qualificação do Direito civil romano como autônomo desde os últimos anos da República. Não obstante, não se poderá falar de uma diferenciação do Direito romano no sentido de uma especificação funcional de competência universal. Mas contra isso fala o fato de todo o espaço público em Roma ter estado definido não pelo Direito (civil), mas sim pelo mos maiorum, pelo respeito pelas convenções tradicionais da nobreza, pelos usos dos ancestrais. Diante disso, era impossiv́ el uma separação estrita entre Direito e convenções sociais. Por essa razão, indaga-se se a referência sistêmica da evolução do Direito, o sistema jurid́ ico, precisa preexistir conceitualmente como estrutura invariável ou se o próprio conceito de sistema deve ser historicizado. A solução sugerida por Luhmann para esse intricado problema vem a ser a conexão do conceito de sistema, no conceito de autopoiese, com um tempo relacionado com o momento, com atualidade pontualizada, e o estabelecimento dessa estrutura temporal como “invariante” histórica. Uma vez iniciada a autopoiese do sistema, o sistema jurid ́ ico trabalhará necessariamente de acordo com o momento e de modo sequencial. Assim sendo, seria preciso que, ao menos no futuro, fosse possiv́ el estabe- lecer uma distinção clara entre autonomia e sistemas funcionais e autonomia e sistemas sociais. Além disso, seria necessário esclarecer e decidir se se deve falar de autopoiese em cada nexo comunicativo fechado do ponto de vista operacional ou apenas no caso de um sistema funcional (moderno) autônomo. Evolução pressupõe autopoiese, mas não pode ser ela mesma objeto de evolução. Evolução é sempre evolução de sistemas autopoiéticos. Vista desse modo, a autopoiese é o resquić io transcendental da teoria dos sistemas. O Direito não se manifesta imediatamente na forma de um sistema autopoiético; a autonomia funcional do sistema jurid ́ ico, ao menos, é um produto relativamente tardio da evolução do Direito que está indissoluvelmente conectado à evolução da so- ciedade (liberal) moderna – na terminologia de Luhmann: diferen- ciada sob o aspecto funcional. E como a diferenciação funcional é, ela mesma, uma forma de manifestação da sociabilidade na história, sua continuidade no futuro não pode, de modo nenhum, ser presumida como algo seguro.