Sie sind auf Seite 1von 13

As duas mortes de Miguel

Rovisco
10.09.2017 às 19h00 - EXPRESSO

Foi premiado em 1987 como o melhor dramaturgo português.


Recusou o dinheiro, protestou de corda ao pescoço e suicidou-se
aos 27 anos. Morreu o homem e desapareceu a obra. E a
memória

RUI GUSTAVO

Católico. A religião teve sempre um papel central na vida e na obra de Miguel


Rovisco. Ia à igreja regularmente, escreveu sobre episódios bíblicos e quando se
matou levava uma Bíblia e um crucifixo no bolso — talvez a maior contradição da
sua curta vida. Nesta foto, aos 9 anos, quando fez a comunhão solene na Igreja do
Corpo Santo, em Lisboa
FOTO ARQUIVO PESSOAL
O despertador tocou à hora do costume, ainda antes das cinco
da manhã, ele fez a cama impecavelmente e saiu sozinho para o
passeio habitual das madrugadas. Costumava percorrer as ruas
de Lisboa ainda desertas porque gostava de ver “a beleza do
fumo a evaporar”. Cinco horas depois, o telefone da casa das
Amoreiras tocou e a mãe atendeu. “É da casa de Nuno Miguel
Rovisco Garcia Pedroso? É para dizer que esse indivíduo se
atirou à linha.”

Caía assim o pano sobre a vida de Miguel Rovisco, o último


grande prodígio da dramaturgia portuguesa, considerado um
génio por personalidades tão díspares como Mário Viegas ou
Filipe La Féria. Matou-se na estação de comboios de Belém, a 3
de outubro de 1987. Tinha 27 anos, a idade mitificada do fim de
vida de artistas como Jimi Hendrix e Jim Morrison, antes dele,
Amy Winehouse ou Kurt Cobain depois. Quase nada resta dele,
a obra é inacessível, a memória pública perdeu-se, resta um
saco de plástico cheio de folhas.

Sobre os lençóis bem dobrados da cama feita deixou uma carta


para a mãe em que garantia partir “tranquilo”, um envelope 200
contos (mil euros) para o sobrinho e afilhado bebé e um cartão
escrito à mão para o ator e encenador Mário Viegas, o amigo
“imensíssimo”. No bolso, levava a carteira com a identificação
completa, a morada e o telefone de casa, um crucifixo e uma
Bíblia que ficaria destruída no embate com o comboio. Este
final sangrento não surpreendeu a família nem os poucos
amigos do dramaturgo que tinha planeado matar-se antes dos
30 anos “num sábado chuvoso”. “Queria ser ele a decidir
quando e como morreria”, explica a irmã, Graça Pedroso, na
sala com vista para o Tejo junto ao Jardim da Estrela.
“Conseguiu.”

O primeiro ato tinha sido encenado sete meses antes, em março


de 1987, no foyer do Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa.
Miguel Rovisco, então um jovem completamente desconhecido,
ganhou o Prémio Garrett para a melhor peça original de 1986,
com “Trilogia Portuguesa”, que tinha escrito fechado no quarto
de casa. O prémio foi atribuído por unanimidade por um júri
nomeado pela Secretaria de Estado da Cultura. “Julgo que foi a
primeira vez que isso aconteceu”, recorda Maria Manuel Pinto
Barbosa, então chefe da divisão de teatro da SEC e a quem
“Trilogia Portuguesa” seria dedicada quando foi editada em
livro. “As pessoas concorriam anonimamente e quando fomos
ver quem era o verdadeiro autor da peça ficámos a olhar uns
para os outros. Quem é este Miguel Rovisco?” Duarte Barroso,
alto funcionário da Secretaria de Estado, telefonou ao
premiado, que foi chamado ao gabinete de Maria Manuel.
“Lembro-me do ar de rapaz bem comportado, magro, de fato e
gravata e muito educado. Não parecia nada surpreendido por
ter ganhado. Tinha uma grande autoestima, quase arrogante.
Disse que ia escrever mais umas peças e que depois se matava.
Claro que não lhe liguei nenhuma. Falámos mais de uma hora e
meia e ele disse que as mulheres é que costumavam confessar-
se, mas que naquele caso tinha sido ele.”

O DIA DOS SORRISOS AMARELOS


No dia da entrega dos Prémios Garrett, os mais importantes do
mundo teatral português, que consagraram, por exemplo,
Eunice Muñoz como a melhor atriz daquele ano e Amélia Rey
Colaço com o prémio carreira, Miguel Rovisco apareceu todo
vestido de preto, descalço e com uma corda com um nó de
enforcado à volta do pescoço. “Foi um choque”, lembra o
encenador Norberto Barroca. “Imagine o ambiente solene e
institucional, de Teatro Nacional, com governantes e grandes
atores, era só sorrisos amarelos.” Recebeu o troféu das mãos da
secretária de Estado da Cultura, Teresa Patrício Gouveia,
beijou-lhe a mão solenemente e começou a discursar. “Nem só
de snobismo e patine vive o teatro português”, proclamou o
premiado perante o espanto geral. Aceitava o troféu, que ainda
está guardado na casa de Graça Pedroso, mas recusava-se a
receber os 300 contos (1500 euros) do prémio.

Na altura, era escriturário da Câmara de Lisboa e ganhava


menos de 50 contos por mês. “A minha mãe estava presente e
ficou danada. ‘Que horror. Fazer-me isto, quando sabe que sofro
do coração’”, recorda a irmã. “Eu achei a maior graça.” Foi o
marido, Alberto Mallaguerra, quem preparou o adereço
principal. “O Nuno trouxe a corda e pediu-me para lhe fazer um
nó de enforcado. Não disse para o que era, mas como já tinha
falado em suicídio várias vezes, fiz um nó tosco que jamais
funcionaria para se enforcar, mas para o efeito serviu.”

Protesto. Aceitou o troféu Garrett para o melhor dramaturgo, mas recusou os 300
contos do prémio. O protesto encenado no Teatro Nacional Dona Maria II seria o seu
único grande êxito
FOTO ARQUIVO GESCO

Na carta de recusa que enviou à Secretaria de Estado, Rovisco


declarava: “Se tudo quanto o teatro português tem para me
oferecer se resume a dinheiro, nesse caso não só nunca mais
escreverei uma linha para os palcos como votarei ao silêncio das
cinzas as obras dramáticas que em minha casa aguardam quem
as leia.” Não cumpriu a ameaça (ainda escreveu mais peças e só
queimou parte do espólio), mas nunca aceitou receber um
centavo do Estado: “Onde estaria a virtude de uma ética que não
primasse pela teimosia?”, perguntava-se na carta.

A razão da indisponibilidade (e da indisposição) era concreta:


além dos 300 contos, o prémio previa que a obra fosse encenada
na íntegra numa sala do Teatro Nacional. A trilogia de Rovisco
— um conjunto de três peças históricas, “O Bicho”, sobre o
Marquês de Pombal, “O Tempo Feminino”, sobre D. Maria I; e
“A Infância de Leonor de Távora”, sobre a família chacinada
pelo Marquês — tinha perto de seis horas, não poderia ser
representada na íntegra como o autor queria e não foi
programada para os meses seguintes à entrega do troféu, como
também Rovisco pretendia. A peça seria encenada no início de
1988 por Norberto Barroca. Rovisco nunca a veria em palco.

VINTE PEÇAS EM TRÊS ANOS


Ainda sem ter qualquer peça encenada, o dramaturgo era
notícia por causa do espetacular protesto e pela própria história
de vida. Em três anos, entre 1984 e 1987, escreveu 20 peças,
oito livros de poesia e romances que seriam reduzidos a cinzas.
Era um funcionário burocrático da Câmara, cargo que só
abandonou depois de ter recebido o Prémio Garrett para se
poder dedicar “por inteiro” à escrita. Era conservador, católico,
monárquico, não tinha qualquer curso superior (andou umas
semanas em Direito, mas desistiu) e só se interessava por teatro
histórico numa altura em que o teatro experimental estava em
voga. “Faz falta um verdadeiro teatro nacional”, escreveu. “A
História de Portugal está completamente esquecida, quer no
nosso teatro quer na nossa televisão. E então passamos pela
vergonha, chamo vergonha, de vermos excelentes trabalhos
sobre personagens históricas inglesas.”

Apesar de nunca ter feito parte do “meio teatral” e de nem


sequer ser espectador assíduo de teatro, o nome de Miguel
Rovisco começou a ser falado entre atores e encenadores e
foram editados três dos seus livros: “Trilogia Portuguesa”,
“Retrato de Uma Família Portuguesa” e “A História de Tobias”,
todos pelas Edições Rolim. Mário Viegas, que o considerava
“um génio” pegou numa peça de outra trilogia então inédita,
“Os Heróis” — “Um Homem para qualquer Pátria”, sobre a
restauração da independência de 1640, e encenou-a no Teatro
Experimental do Porto. Foi a única peça da sua autoria que
Rovisco veria, a 10 de junho de 1986. “Odiou tudo”, conta Graça
Pedroso. “A encenação e o Porto. Tudo.”

Numa das muitas cartas que trocou com Mário Viegas e que o
ator, também já desaparecido, publicou na “Auto-photo
Biografia (Não Autorizada)”, Rovisco avisa que “a carta lhe será
de leitura desagradável, como está a ser escrevê-la”. Critica a
encenação que transformou “uma farsa numa comédia” e pôs as
pessoas “a rirem em vez de pensarem” e conta a história de um
pintor que conseguiu que uma importante galeria “expusesse
um quadro no lugar mais importante” do espaço mas estragou
tudo quando “pendurou o quadro ao contrário”. Viegas resume
a zanga num comentário manuscrito que também publicou na
autobiografia: “O Rovisco não aguentou ver a sua peça em cena
e bebia, bebia todas as noites. Perdão, Nuno.” Ainda assim,
considerava “um crime não se publicar a sua obra” e confessava
que a morte do amigo foi “um dos maiores choques” que sofreu.
“Acho que o Rovisco estava apaixonado por mim, embora não
tenha a menor prova que fosse homossexual.”

“NÃO QUEIRAS SER REI”


A peça esteve em cena durante uma edição do FITEI — Festival
Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, no Porto, e foi
considerada um êxito. Miguel Rovisco seria então convidado
para escrever o guião de uma serie de televisão, “Cobardias”,
uma produção para a RTP que seria a última grande obra do
autor e foi escrita em cerca de um mês. Contava a história de
uma família, e principalmente das suas mulheres, ao longo de
várias gerações. As personagens aparecem com 20, 40 e 60
anos. 13 episódios de 50 minutos cada escritos em 30 dias. O
livro das Edições Ática está esgotado e é impossível de
encontrar, a produtora da série faliu e a RTP não tem qualquer
cópia da obra.

“Escreveu tudo nesta máquina”, diz Graça Pedroso a apontar


para uma Hermes Baby em bom estado de conservação. “Até
estes poemas que escreveu para o sobrinho.” E mostra uns
pequenos dossiês de argolas feitos à mão com desenhos de
animais e pequenos poemas. “O leão é rei. Nas cidades vive
atrás das grades. Não queiras ser rei.”

“Conheci-o no primeiro dia de filmagens”, conta Carmen


Dolores, protagonista de “Cobardias”. “Já o tinha visto no foyer
do Dona Maria II quando foi aquele episódio extravagante da
corda e lembro-me dos olhos grandes, muito impressionantes.
Falámos muito, especialmente sobre o meu papel. Era muito
bom. Acho que o escreveu a pensar na mãe”, conta a atriz, que
ainda guarda dois livros do autor. “Depois de ele morrer, a mãe
contactou-me e fui muitas vezes à casa deles. Ela queria que eu
conhecesse o ambiente onde ele vivia.”

Rovisco viveu sempre com a mãe na casa do bairro das


Amoreiras. A família tinha criadas internas, e casa outra na
Ericeira. “Éramos de classe média alta”, descreve Graça. Nuno
Miguel era um miúdo como os outros. “Éramos próximos,
andávamos sempre com outros dois primos e ele esfolava os
joelhos. Era muito rapazola. Só aos 16 anos é que começou a
isolar-se. Passava o tempo a ler e a escrever e a ter alguns
comportamentos extravagantes, como ir de roupão para a
escola.” O fim da harmonia veio com o fim do casamento. “Os
meus pais divorciaram-se, a minha mãe teve de começar a
trabalhar e o meu irmão nunca aceitou muito bem a separação.
Dava-se mal com o pai.” “O meu pai desejava galhardamente
que eu fosse um menino e essa foi a única alegria que eu lhe dei.
(Fi-lo sem querer)”, escreveu o próprio Rovisco na “Pequena
Autobiografia” que acompanhava a edição do Teatro Dona
Maria II da “Trilogia Portuguesa”.
Andou no Liceu Charles Lepierre, no Manuel da Maia e no
Pedro Nunes. Falava francês e espanhol. E não se sabe muito
bem de onde veio o amor pela literatura e pelo teatro. “Não
tínhamos propriamente uma grande biblioteca e a única
experiência de teatro acontecia no Natal, quando a minha avó
nos fazia representar umas peças que ela própria escrevia”,
explica Graça. Rovisco foi bom aluno, “sempre no quadro de
honra”, mas apesar de ter notas suficientemente altas, não quis
seguir um curso universitário. “Experimentou Filosofia e
Direito, mas desistiu ao fim de um mês ou de uma semana,
achava que eram todos burros.” Foi trabalhar para a Câmara, a
atender pessoas e a receber projetos porque “queria o trabalho
mais estúpido possível”.

“O ambiente que se criava à volta dele não era bom. Não sei se
era culpa dele ou dos outros, mas havia uma energia estranha.
Nunca percebi porquê”, conta Carmen Dolores. “Cobardias” é
entregue ao realizador veterano Herlânder Peyroteo, que faz as
alterações que julga necessárias. Rovisco discorda, discute e
desaparece de cena. “Apareceu no ensaio e nunca mais o
vimos”, conta Carmen Dolores. “Odiou tudo”, confirma a irmã.

Só vê um ou dois episódios. Na carta de despedida que deixou a


Mário Viegas é bastante claro: “Meu imensíssimo Mário, nem
tenho palavras para te agradecer tudo: os momentos teatrais
mais bonitos — verdadeiramente dramáticos alguns —, os bons
conselhos e a tua amizade constante. Bem que tu me dizias para
eu não me meter com os tipos da televisão: alteraram tudo, nem
respeito ao menos pelo começo e fim de cada episódio, é de
fugir de péssimo.” Mário Viegas resume: “O Rovisco precipitou
o seu suicídio ao ver a merda que o Herlânder Peyroteo fez da
sua série.” Já depois de morto, Rovisco ganharia mais dois
Garrett. Um para “História de Tobias” (melhor texto para a
juventude) e outro para a “História de Uma Família Portuguesa
(melhor texto original).

ESCRITO NA ÁGUA
O que Miguel Rovisco deixou “não ficou escrito na pedra”, mas
sim “na água”. A metáfora é de José Mendes, jornalista do
Expresso que escreveu em fevereiro de 88 sobre a segunda vida
de Miguel Rovisco no palco do Dona Maria II. A encenação da
“Trilogia Portuguesa” seria entregue a Norberto Barroca,
convidado quando Rovisco ainda era vivo. “Já depois de ter
aceitado o convite do diretor do teatro e quando quis reunir com
o autor, soube pelo jornal que se suicidou”, escreveu o
encenador num diário que faz parte de uma tese de
doutoramento sobre Miguel Rovisco da professora da
universidade de São Paulo, Virgínia de Jesus.

Rogério Paulo, um dos mais conceituados atores da época, foi


escolhido para o papel de Marquês, o protagonista de “O Bicho”.
“Foi muito difícil porque o Rovisco nem sempre respeitava o
rigor histórico e o Rogério Paulo não percebia porquê. Por
exemplo, porque é que se chamava Sebastião Júlio e não
Sebastião José, como na realidade? Passava o tempo a dizer:
isto não foi assim.” Norberto Barroca quis usar um leão
enjaulado para a cena final da peça e chegou a trazer o animal
para o teatro, o que provocou um motim “entre as senhoras do
elenco”, lembra Barroca. “Ficaram com pena do animal e contra
mim. Estragou um bocado o ambiente.” O leão não foi usado
porque “na única noite que passou no teatro fartou-se de rugir
(as feras rugem à noite) e teve de ser devolvido ao Jardim
Zoológico”.

A peça estaria dois meses em cena e seria um êxito moderado de


público e de crítica. “O Rovisco era um prodígio na escrita, mas
não era um prodígio do teatro. Um dramaturgo tem de ver o que
escreve em cena, para perceber o que funciona e o que não
funciona e ele não teve tempo para isso”, explica Norberto
Barroca, que não voltaria a encenar ou a ler uma peça de
Rovisco. “Não tive essa curiosidade.”
FOTO ARQUIVO PESSOAL

JOSÉ CARIA

Família. Aos 5 anos com a irmã, Graça, e a mãe, Maria José. Miguel Rovisco viveu
sempre com a mãe numa casa nas Amoreiras. Quando se matou, deixou-lhe uma
carta a garantir que “partia tranquilo”. Escrevia tudo, cartas, peças e poemas numa
máquina Hermes Baby que ainda está na posse da família. Os oito volumes de
poesia que continuam por editar estiveram quase trinta anos à guarda da escritora
Yvette K. Centeno. Agora estão nas mãos do poeta António Carlos Cortez
LUÍS BARRA

Carlos Avilez conheceu Miguel Rovisco sem o saber. “Estava a


fazer o ‘Hamlet’, de Shakespeare, com o Carlos Daniel nos
Jardins da Gulbenkian e havia lá umas pedras. Um dia, no final
do espetáculo, o contrarregra trouxe um papel que alguém
deixara em cima dessas pedras. Era uma carta muito bonita
para o elenco e para o Carlos Daniel, um grande elogio ao
espetáculo. Ficámos muito impressionados. Vinha assinado
Miguel Rovisco, mas claro que ninguém sabia quem era.
Quando foi aquele episódio da corda fiz a associação”, diz o
encenador e diretor do Teatro Experimental de Cascais, que
conheceu “mal” o dramaturgo. “Era uma pessoa muito estranha.
Triste e isolado, de poucas palavras.” Avilez encenaria duas
peças de Rovisco. “Lua Desconhecida”, em 1991, e “A História
de Tobias”, em 2000. “Convidei a mãe e ela veio às duas peças.
Achei-a muito marcada. Numa das vezes trouxe alguns inéditos,
que tenho guardados no museu do teatro. São grandes textos. O
Rovisco era um autor extraordinário, um grande dramaturgo, é
difícil imaginar onde poderia ter chegado. Adorava encenar
‘Retrato de Uma Família Portuguesa’. Quem sabe um dia. O
Rovisco continua por descobrir.” Avilez foi o último a dar-lhe
vida. Ou quase.

Em 2011, o compositor Alexandre Delgado estreou a ópera “A


Rainha Louca”, com textos de “O Tempo Feminino”, de Rovisco.
“Nunca o conheci e o mais perto que estive dele foi quando fui
ver a ‘Trilogia Portuguesa’ ao Teatro Nacional. Fiquei
apaixonado. Adorei a peça e comprei logo o livro. Sabia que iria
fazer algo com a história. O que arranjei dele, li. A morte, a
história do baraço, é tudo tão teatral.” A ópera seria exibida no
Centro Cultural de Belém, no Teatro de Almada e no Brasil. “Foi
um êxito. Tivemos mais de cinco mil espectadores. E o texto é
fantástico, inteligentíssimo. Trágico e cómico. Só tive de cortar.
Envelheceu muito bem.” Então porque é que Rovisco
desapareceu dos palcos? “Porque já não há companhias e as que
existem não têm dinheiro para nada. O panorama teatral atual é
catastrófico. Não é só o Rovisco que está esquecido, são todos os
dramaturgos portugueses.” Maria Manuel Pinto Barbosa tentou
ressuscitá-lo. Quando estava à frente da Lisboa 94 — Capital
Europeia da Cultura, convidou Ricardo Pais, Luís Miguel Cintra
e Filipe La Féria (que considerava Rovisco um génio por
descobrir) para encenarem “Trilogia dos Heróis”, mas todos
recusaram, por “falta de tempo”.

O nome de Rovisco ainda vive na sala de ensaio da escola de


atores Impetus, em Lisboa, dirigida por Pedro Barão, amigo de
adolescência do dramaturgo. “Quando o conheci tinha uns 13 ou
14 anos, ele era mais velho. Ia todos os dias à igreja e se o
queríamos encontrar estava sempre na Igreja de Nossa Senhora
de Fátima. Era muito amigo do padre Ponces de Carvalho.”
Pedro Barão assistiu à leitura de muitas das peças. “Levava-nos
a casa dele, um máximo de cinco ou seis pessoas, e fazia a
leitura encenada, para ver o que funcionava ou não. Uma das
razões que o levou a entrar na igreja era para poder ter palco e
espectadores.” O tema do suicídio já era uma constante: “Estava
sempre a falar disso e pouco tempo antes de se matar tentei
convencê-lo a mudar de ideias, e não consegui. A última vez que
o vi foi quando ele me virou as costas depois de mais uma
discussão e eu tentei acertar-lhe com uma caneta. Falhei.”

A POESIA DE UM SACO 
DE PLÁSTICO


Quanto tempo dura um saco de plástico? Uns mil anos. O que
António Carlos Cortez segura numa das mãos já tem 30. Lá
dentro está um calhamaço de folhas datilografadas
amarelecidas. Reconhece-se o estilo de letra da Hermes Baby na
resma de folhas que o poeta e crítico não para de ler e remexer.
“Foi a Yvette Centeno que me deu o saco. É o mesmo que lhe foi
entregue quando o Rovisco morreu. Já o tenho há mais de um
ano e não sei o que fazer com ele.”

Depois da morte de Rovisco, Yvette K. Centeno, escritora e


professora universitária, recebeu das mãos de Duarte Barroso, o
funcionário da Secretaria de Estado da Cultura que entretanto
se tornara amigo do dramaturgo, um conjunto de oito volumes
de poesia inédita de Miguel Rovisco com o título “Romance de
Poesia”. Barroso morreria cedo e Yvette K. Centeno guardou o
espólio durante estes 30 anos num saco de plástico de
supermercado. Contactada pelo Expresso, prefere não falar e
remete a história para o livro que escreveu, “Amores Secretos”,
tão esgotado como os livros de Rovisco. “Recebi um mail dela
muito simpático quando escrevi ‘O Nome Negro’. Trocámos
mails durante um ano e deu-se o caso de eu ser professor de
uma das netas dela. Um dia chamou-me lá a casa e disse-me:
tenho o espólio do Rovisco. Se não conhece, devia conhecer.
Estou a ir para velha e alguém tem de tomar conta disto e
apresentá-lo a um editor”, conta António Carlos Cortez. “Tenho
de mostrar isto à família e ter o acordo deles, não é? Isto é
poesia muito boa e merece ser publicada. Veja esta: ‘Subi para o
palco e uma luz de imensa crueldade incidiu-me no rosto. Por
momentos estive tentado a fechar as pálpebras ou a fugir’.”

Das könnte Ihnen auch gefallen