Sie sind auf Seite 1von 23

Judith Butler

Quadros de guerra
Quando a vida é passível de luto?

Tradução de
Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha

Revisão de tradução de
Marina Vargas

Revisão técnica de
Carla Rodrigues

1• ediçã o

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
......_

Rio de Janeiro
2015
Introdução

Vida precária, vida passível de luto*

Este livro consiste em cinco ensaios escritos em resposta


às guerras contemporâneas, com foco nos modos c ultu­
rais de regular as dis osi ões afetivas e éticas. por meio de
um enquadramento seletivo e d i ferenciado da violência.
)
De certa forma, o livro é uma continuação de Precarious
Life, publicado pela Verso em 2004, especialmente quan-
do sugere que uma vida específica não pode ser conside­
rada lesada ou perdida se não for rimeiro considerada
viva. Se certas vidas não são q u a li ficadas como vidas
-----

ou se, desde o começo, não são concebíveis como vidas


-
de acordo com certos enq�a ramento�istemológicos,
então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no
sentido pleno dessas palavras.
Por um lado, procuro chamar a atenção para o pro­
blema epistemológico levantado pela questão do enqua-

• No original, "Precarious life, grievable life". A autora usa dois termos em


ingês:precarity, que traduzimos por condição precária, e precariousness, que
traduzimos por precariedade. Literalmente, grievahle é "enlutável". Como a
palavra não é dicionarizada, usamos "passível de luto". (N. da R. Téc.)

13
QUADROS DE GUERR A VIDA PRECÁRIA. VIDA PASSÍVEL DE LUTO

dra mento: as molduras pelas quais apreendemos ou, na como precária, e em que condições isso se torna menos

verdade, não conseguimos apreender a vida dos outros possível ou mesmo impossível. É claro, não se deduz d a í

como perdida ou lesada (suscetível de ser perd ida ou lesa­ que s e alguém apreende u ma vida como precária decidirá

da) estão politica mente saturadas. Elas são em si mesmas protegê-la ou garantir as condições para sua sobrevivência

operações de poder. Não decidem u n i lateral mente a s e prosperidade. Pode ser, como Hegel e Klein apontam ,

condições d e aparição, m a s seu objetivo é, não obsta nte, cada um à sua maneira, que a apreensão d a precarieda­

delimitar a esfera da apa rição enquanto tal. Por outro de conduza a uma potencialização da violência, a uma

lado, o problema é ontológico, visto que a pergunta em percepção da v u l nerabilidade física de certo grupo de

q uestão é: O que é uma vida? O "ser" da vida é ele mes­ pessoas que incita o desejo de destruí-las. Contudo, quero

mo constituído por meios seletivos; como resultado, não demonstrar que, se queremos a mpliar as reivindicações

podemos fazer referência a esse "ser" fora das operações sociais e políticas sobre os direitos à proteção e o exercício

de poder e devemos tornar mais precisos os mecanismos do direito à sobrevivência e à prosperidade, temos a ntes

específicos de poder mediante os quais a vida é produzida. que nos apoiar em uma nova ontologia corporal que im­

Obviamente, essa constatação afeta o pensamento sobre plique repensar a preca riedade, a vulnera bil idade, a dor,

a "vida" na biologia celular e nas neurociências, já que a interdependência, a exposição, a subsistência corpora l,

certas maneiras de enquadrar a vida servem de base para o desejo, o trabalho e as reivindicações sobre a l i nguagem

essas práticas científicas, assim como para os debates a e o pertencimento social.

respeito do começo e do fim da vida nas discussões sobre Referir-se à "ontologia· " nesse aspecto não sign i fic a

l iberdade reprodutiva e eutanásia. Embora o que tenho a reivindicar uma descrição de estrut u ras fundamentais

dizer possa ter algumas impl icações para esses debates, do ser d istintas de toda e qualquer organ ização social

meu foco aqui será a guerra - por que e como se torna e política. Ao contrá rio, nenhum desses termos existe

mais fácil, ou mais d i fíci l , empreendê-la. fora de sua orga nização e interpretação políticas. O "ser" \
do corpo ao qual essa ontologia se refere é um ser que
está sempre entregue a outros, a normas, a organizações l:
Apreender uma vida · sociais e políticas que se desenvolveram h istoricamente
a fim de maximizar a precariedade para a lguns e mini­
A condição precá ria d a v i d a nos i mpõe uma obriga­ mizar a precariedade para outros. Não é possível defini r
ção. Devemos nos perguntar em que condições torna-se primeiro a ontologia do corpo e depois a s sign ificações
possível apreender uma vida, ou um conj unto de vidas, sociais que o corpo assume. Antes, ser um corpo é estar

14 15
VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSÍVEL DE LUTO
QUADROS DE GUERRA

necessário estabelecer alguma distinção entre elas. Os


exposto a uma modelagem e a uma forma social, e isso
"enquadramentos" que atuam para diferenciar as vidas
é o que faz da ontologia do corpo uma ontologia social.
que podemos apreender daquelas que não podemos (ou
Em outras palavras, o corpo está exposto a forças arti­
que produzem vidas através de um continuum de vida)
cu ladas social e politicamente, bem como a exigências
não só organizam a experiência visual como ta mbém
de sociabilidade - incluindo a linguagem, o traba lho e
geram ontologias específicas do sujeito. Os sujeitos são
o desejo -, que tornam a subsistência e a prosperidade
constituídos mediante normas que, quando repetid as,
do corpo possíveis. A concepção mais ou menos existen­
produzem e deslocam os termos por meio dos quais os
cial da "precariedade" está, assim, ligada à noção mais
sujeitos são reconhecidos. Essas condições norma tivas
especificamente política de "condição precária". E é a
para a produção do sujeito produzem u m a ontologia
a locação diferencia l da condição precária que, na minha
historicamente contingente, de modo que nossa própria
opinião, constitui o ponto de partida tanto para repensar
ca pacidade de discernir e nomear o "ser" do suj eito
a ontologia corporal quanto para políticas progressistas
depende de normas que facilitem esse reconhecimento.*

\
ou de esq uerda, de modo que continuem excedendo e
Ao mesmo tempo, seria um equ ívoco entender a opera­
atravessando as categorias de identidade.!
ção das normas de maneira determi;1ista. Os esquemas
A capacidade epistemológica de apreender uma vid a é
normativos são interrompidos um pelo outro, emergem
parcia lmente dependente de que essa vida seja produzida
e desaparecem dependendo de operações mais amplas
de acordo com normas que a caracterizam como uma vida
- de poder, e com muita frequência se depa ram com ver­

ou, melhor diz�ndo, comÜPa t� da vida. D;sse �odo, a
sões espectrais daquilo que a legam conhecer. Assi m, há
produção normativa da ontologia cria o problema episte-
"sujeitos" que não são exata mente reconhecíveis como
mológico de apreender u ma vida, o que, por sua vez, dá
suj eitos e há "vidas" que dificilmente - o u , melhor
origem ao problema ético de definir o que é reconhecer
dizendo, nunca - são recon hecidas como vidas. Em
ou, na realidade, proteger contra a violação* e a violên­
que sentido, então, a vida excede sempre as condições
cia. Estamos falando, é claro, de diferentes moda lidades
normativas de sua condição de ser reconhecid a ? Afirmar
de "violência" em cada nível desta análise, mas isso não
isso não significa dizer que a "vida" tem como essência
significa que todas sej a m equiva lentes ou que não sej a

• A aurora usa rrês rermos: recognition, aqui traduzido por reconhecimento;


� N o conrexro polírico d o rexto, consideramos injury como violação, uma �
recogmzabl , enrend1do como reconhecido; e recognizability, sem equivalente
das possibilidades de tradução desta palavra no contexto de reiv indicação em porrugues. Para o terceiro termo a tradução optou por condição de ser
de direitos, e injuria!Jie como condição de violável, marca comum a roda e reconhec1do. (N. da R. Téc.)
qualquer vida. (N. da R. Téc.)

17
16
QUADROS DE GUERRA VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSÍVEL DE LUTO

uma resistência à normatividade, mas apenas que toda " ondição de ser reconhecido". Se nos perguntamos como
e qua lquer construção da vida requer tempo para fazer · constitui a condição de ser reconhecido, assumimos, por
seu traba l ho, e que nenh u m traba lho que ela faça pode meio da própria questão, uma perspectiva que sugere que
vencer o próprio tempo. Em outras palavras, o trabalho · ses campos são constituídos variável e historicamente,
nunca está feito defin itivamente. Este é um l i m ite inter­ de modo independente de quão apriorística seja sua função
no à própria construção normativa, uma função de sua mo condição de aparição. Se o reconhecimento caracteri­
" iterabilidade" e heterogeneidade, sem a qual não pode za um ato, uma prática ou mesmo uma cena entre sujeitos,
exercitar sua capacidade de modelagem e que l i m ita a ntão a "condição de ser reconhecido" caracteriza as con­
fina lidade de qualquer de seus efeitos. d ições mais gerais que preparam ou modelam um sujeito
pa ra o reconhecimento - os termos, as convenções e a s
normas gerais "at uam" do seu próprio modo, moldando
um ser vivo em um sujeito reconhecível, embora não sem
falibilidade ou, na verdade, resultados não previstos. Essas

visões e a críticas durante muitos anos. "Apreensão" é categorias, convenções e normas que preparam ou esta­

menos preciso, já que pode implicar mar r, registrar ou belecem um sujeito para o reconhecimento, que induzem

reconhecer sem pleno conhecimento. Se é uma forma de um sujeito desse tipo, precedem e tornam possível o ato

conhecimento, está associada com o sentir e o perceber, do reconhecimento propriamente d ito. Nesse sentido, a

mas de maneiras que não são sempre - ou a inda não são condição de ser reconhecido precede o reconhecimento.

- formas conceituais de conhecimento. O que somos ca­


pazes de apreender é, sem dúvida, facilitado pelas normas
do reconhecimen to, mas seria um erro dizer que estamos Marcos do reconhecimento

completamente limitados pelas normas de reconhecimento


quando apreendemos uma vida. Podemos apreender, por Como, então, a condição de ser reconhecido deve ser en­

exemplo, que alguma coisa não é reconhecida pelo reco­ tendida? Em primeiro lugar, ela não é u ma qua lidade ou

nhecimento. Na realidade, essa apreensão pode se tornar uma potencialidade de indivíduos humanos. Dito dessa

a base de uma crítica das normas de reconhecimento. O . forma pode parecer absurdo, mas é importante questionar

fato é que não recorremos simplesmente a normas de re­ a ideia de pessoa como individualidade. Se argumentarmos

conhecimento únicas e distintas, mas também a condições que essa condição de ser reconhecido é uma potencialidade

mais gera is, h istoricamente artic u ladas e reforçadas, de universal e que pertence a todas as pessoas como pessoas,

18 19
QUADROS DE GUERRA VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSÍVEL DE LUTO

então, de certo modo, o problema que temos diante de nós um modo de con hecer que ainda não é reconhecimento,
já está resolvido. Decidimos que determinada noção par­ o ermanecer irredutível ao reconhecimento; e
ticular de "pessoa" determinará o escopo e o significado 'nteligibilidade entendida como o esquema (ou esquemas)
da condição de ser reconhecido. Por conseguinte, estabe­ lu tóriee-ger que estabelece os domín ios do cognoscível .
lecemos um ideal normativo como condição preexistente Isso constituiria um campo dinâmico entendido, a o menos
de nossa aná lise; de fato, já "reconhecemos" tudo o que inicialmente, como um a priori histórico. 3 Nem todos os
precisamos saber sobre o reconhecimento. Não há desafio atos de conhecer são atos de reconhecimento, embora
que o reconhecimento proponha à forma do humano que não se possa afirmar o contrário: uma vida tem que ser


tenha servido tradicionalmente como norma para a condi­ inteligível como uma vida, tem de ser conformar a certas
ção de ser reconhecido, uma vez que a pessoa é essa própria concepções do que é a vida, a fim de se tornar reconhecível.

norma. Trata-se, contudo, de saber como essas normas Assim, da mesma forma que as normas da condição de ser

operam para tornar certos sujeitos pessoas "recon hecíveis" reconhecido preparam o caminho para o reconhecimento,

e tornar outros decididamente mais difíceis de reconhecer. os esquemas de inteligibilidade condicionam e produzem

O problema não é apenas saber como incluir mais pessoas essas normas.

nas normas existentes, mas sim considerar como as normas Essas normas recorrem a esquemas variáveis de inteli­
existentes atribuem reconhecimento de forma diferenciada. gibilidade, de modo que podemos ter, e efetivamente temos,
Que novas normas são possíveis e como são forjadas? O que por exemplo, histórias de vida e histórias de morte. Com

poderia ser feito para produzir um conj unto de condições efeito, há contínuos debates sobre se o feto deveria contar
mais igualitário da condição de ser reconhecido? Em outras como vida, ou como uma vida, ou como uma vida humana;
pa lavras, o que poderia ser feito para mudar os próprios há outros debates sobre concepção e sobre o que constitui

termos da condição de ser reconhecido a fim de produzir os primeiros momentos de um organismo vivo; também

resultados mais radicalmente democráticos? há debates sobre o que determina a morte - se a morte
Se o reconhecimento é um ato, ou uma prática, empreen­ do cérebro, ou a do coração, se é o resultado de uma de�

dido por, pelo menos, dois sujeitos, e que, como sugeriria a claração legal ou de um conjunto de certificados médicos

perspectiva hegeliana, constitui uma ação recíproca, então e legais. Todos esses debates envolvem noções contestadas

a condição de ser reconhecido descreve essas condições ge­ . de pessoa e, implicitamente, questões relativas ao "animal

rais com base nas quais o reconhecimento pode acontecer, humano" e como essa existência conjuntiva (e cruzada)

e efetivamente acontece. Parec e�ms , que ainda há mais deve ser compreendida. O fato de esses debates existirem

dois termos para compreender: GDreensã , entendida como e continuarem a existir não significa que a vida e a morte
__)
20 21
QUADROS DE GUERRA VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSÍVEL DE LUTO

sejam consequências diretas do discurso (uma conclusão Como sabemos , to be framed (ser enquadra do) é uma
absurda, se tomada literalmente). Antes, significa que não expressão complex a em inglês: u m quadro pode ser emol­
há vida nem morte sem relação com um determinado en­ durado (framed), da mesma forma que um criminoso pode
quadramento. Mesmo quando a vida e a morte acontecem ser incriminado pela polícia (framed), ou uma pessoa
entre, fora ou através dos enquadramentos por meio dos inocente (por a lg uém corrupto , com frequênc ia a polícia),
quais são, em sua maior parte, organizadas, elas ainda de modo que cair em uma a rmadilha ou ser incrimin ado
acontecem, embora de maneiras que colocam em dúvida a fa lsa ou fraudule ntamente com base em provas plantada s
necessidade dos mecanismos por meio dos quais os campos que, no fi m das contas, "provam " a culpa da pessoa, pode
' ontológicos são constituídos. Se uma vida é produzida de significa r framed. Qua ndo um quadro é emoldur ado, di­
acordo com as normas pelas quais a vida é reconhecida, versas ma neiras de intervir ou ampliar a imagem podem
isso não significa nem que tudo que concerne uma vida seja estar em jogo. Mas a moldura tende a funciona r, mesmo
produzido de acordo com essas n rmas nem que devamos de uma forma minimal ista, como um embeleza mento edi­
rejeitar a ideia de que há m resto de "vida" - suspenso e torial da imagem, se não como u m autocom entário sobre
espectral - que ilustra e perturba cada instância normativa a história da própria moldura .4 Esse sentido de que a mol­
......._ -. _.... -� ----�-_....-
\
..., .... ....._.. -�

da vida. A produção é parcial e é, de fato, perpetuamente dura direciona implicitamente a interpretação tem alguma
( pert�da por seu duplo ontologicamente incerto. Na ressonância na ideia de incriminação/armação como uma
rea lidade, cada instância normativa é acompanhada de falsa acusação . Se a lguém é incrim inado, enquadr ado, em
perto por seu próprio fracasso, e com m u ita frequência torno de sua ação é construído u m "enquad ramento ", de
esse fracasso assume a forma de uma figura. A figura não modo que o seu estatuto de culpado torna-se a conclusã o
reivindica um estatuto ontológico determinado e, embora i �evitável do espectador. Uma determin ada maneira de
possa ser apreendida como "viva", nem sempre é reconhe­ organiza r e apresent ar uma ação leva a uma conclusã o
cida como uma vida. Na verdade, uma figura viva fora das interpretativa acerca da própria ação. Mas, como sabemos
normas da vida não somente se torna o problema com o por interméd io de Tri n h M inh-ha, é possível "enquad rar


qual a normatividade tem de lidar, mas parece ser aquilo o enquadramento" ou, na verdade, o "enquadrador",5
que a normatividade está fadada a reproduzir: está vivo, mas o que envolve expor o artifício que produz o efeito d a
não é uma vida. Situa-se fora do enquadramento fornecido
· culpa individual. " Enquadrar o enquadramento" parece
pela norma, mas apenas como um duplo i mplacável cuja envolver certa sobreposição altamente reflexiva do campo
ontologia não pode ser assegurada, mas cujo estatuto de visual, mas, na minha opinião, isso não tem que resul-
ser vivo está aberto à apreensão. tar em formas rarefeitas de reflexividade. Ao contrário,

22 23
QUADROS DE GUERRA VIDA PRECÁRIA. VIDA PASSIVEL DE LUTO

questionar a moldura significa mostrar que ela nunca tempo todo com o contexto. Na verdade, a poesia deixa
conteve de fato a cena a que se prop unha i l ustrar, que a prisão, quando chega a deixá-la, mesmo quando o pri­
já havia a lgo de fora, que tornava o próprio sentido de sioneiro não pode fazê-lo; as fotos circulam na internet,
dentro possível, reconhecível. A moldura nunca determi­ mesmo quando esse não era seu propósito. As fotos e a
nou real mente, de forma precisa o que vemos, pensamos, poesia que não conseguem entrar em circulação - seja
reconhecemos e apreendemos. A lgo ultrapassa a moldura porque são destruídas, seja porque nunca recebem permis­
que atrapalha nosso senso de realidade; em outras pala­ são para deixar a cela da prisão - são incendiárias tanto
vras, a lgo acontece que não se ajusta à nossa compreensão por aquilo que retratam quanto pelas limitações impostas
estabelecida das coisas. à sua circulação (e muitas vezes pela maneira como tais
Certo vazamento ou contaminação torna esse processo limitações ficam registradas nas imagens e na escritura
mais fa lível do que pode parecer à primeira vista. A argu­ propriamente ditas). Essa mesma capacidade de circular é
mentação de Benjamin sobre a obra de arte na era da re­ parte do que é destruído (e se esse fato acaba " vazando",
produtibilidade técnica pode ser adaptada para o momento
atual.6 As próprias condições técnicas de reprodução e
reprodutibilidade produzem um deslocamento crítico, se
o relato sobre o ato destrutivo circula no lugar do que foi
destruído). O que "escapa ao controle" é precisamente o
que escapa ao contexto que enquadra o acontecimento,

não uma completa deterioração do contexto, em relação a i magem, o texto da g uerra. Mas se os contextos são
aos enquadramentos usados em tempos de guerra pelas enquadrados (não existe contexto sem uma delimitação
fontes de mídia dominantes. Isso significa, em primeiro implícita), e se um enquadramento rompe i nvariavelmente
lugar, que, mesmo que a lguém pudesse, considerando a consigo mesmo quando se move através do espaço e do
cobertura global da mídia, delimitar um "contexto" ú nico tempo (se deve romper consigo mesmo a fim de se mover
para a criação de uma fotografia de guerra, sua circulação através do espaço e do tempo), então o enquadramento
se a fastaria necessariamente desse contexto. Embora a em circulação tem de romper com o contexto no qual
imagem seguramente chegue em novos contextos, também é formado se quiser chegar a a lgum outro lugar. O que
cria novos contextos em virtude dessa chegada, conver­ significaria compreender este "escapar" e este "romper
tendo-se em parte do mesmo processo por meio do qual com" como parte dos fenômenos midiáticos em questão,
novos contextos são delimitados e formados. Em outras ' como a função do enquadramento?
palavras, a circulação das fotos de guerra, assim como a O enquadramento que busca conter, transmitir e de­
divulgação da poesia do cárcere (no caso dos poetas de terminar o que é visto (e algu mas vezes, d u ra nte um
Guantánamo de que falaremos no Capítulo 1), rompe o período, consegue fazer exatamente isso) depende das

24 25
QUADROS OE GUERRA VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSÍVEL OE LUTO

ter êxito. Essa pró­ imagem nem a poesia possam libertar ninguém da prisão,
cond ições de repro dutib ilida de para
nda u ma cons tante nem interromper um bombardeio, nem, de maneira nenhu­
pria reprodutib ilida de, poré m, dema
delim itaçã o de ma, reverter o curso da guerra, podem, contudo, oferecer
rupt ura com o contexto, u ma cons tante
o "enq uadr amento" as cond ições necessá rias para l ibertar-se da aceitação
novos contextos, o que signi fica que
o que trans mite , e se cotidiana da guerra e para provocar u m horror e uma
não é capaz de conter com pleta mente
niza ção defin itiva indignação mais generalizados, que apoiem e estimulem
romp e toda vez que tenta dar uma orga
enqu adra mento não o clamor por justiça e pelo fim da violência.
a seu conteúdo. Em outr as palavras, o
r, mas ele mesmo O bservamos anteriormente que um dos sentidos de "ser
mantém nada integ ralm ente em um luga
perp étuo , sujeito a enquadrado" significa ser objeto de uma armação, de uma
se torna u ma espécie de romp imen to
a qual se deslo ca tática media nte a qual a prova é manipulada de maneira a
uma lógic a temp oral de acor do com
adra mento rompe fazer uma acusação falsa parecer verdadeira. Algum poder
de um luga r para outr o. Com o o enqu
auto rrom pimento manipula os termos de aparecimento e torna-se impossível
constantemente com seu contexto, esse
�:w. < converte-se em parte de sua próp ria
defin ição. Isso nos escapar do enquadramento/armação; alguém é incrimina­
reender tanto a do, o que significa que é acusado, mas também julgado
conduz a uma man eira diferente de comp
v ulne rabil idad e à por antecipação, sem provas válidas e sem nenhum meio
eficá cia do enqu adra ment o quanto sua
umen talização crí­ óbvio de retificação. Mas se o enquadra mento é entend i­
reversão, à subversão e mesm o à instr
em outr a é tema ti­ do como um certo "escapar" ou um "se a fastar", então
tica. O que é aceito em uma instância,
incre dulid ade. Essa pa rece aná logo a uma fuga da prisão. Isso sugere certa
zado critic amente ou até mesmo com
ment o cons titui, libertação, um a frouxamento do mecanismo de controle
dimensão temp oral variá vel do enqu adra
de sua comoção. e, com ele, uma nova trajetória de comoção. O enquadra­
igual mente, a poss ibil idade e a trajetória
muros de Abu mento, nesse sentido, permite - e mesmo requer - essa
Assim, a i magem digital circu la fora dos
é recup erada por evasão. Isso aconteceu quando foram div ulgadas fotos dos
Ghra ib, o u a poes ia de Guan tána mo
hum anos que pro­ prisioneiros de Guantánamo ajoelhados e acorrentados,
advogados espec ializa dos em direitos
do. E desse mod o o que provocou grande indignação; aconteceu de novo
mov em sua publ icaçã o em todo o mun
resa, indig naçã o, qua ndo as i magens digitais de Abu Ghraib circ u la ra m
se estab elece m as cond ições para surp
nden do de como o · globalmente através da internet, facilitando u m a reação
repu lsa, adm iraçã o e desco berta , depe
de tempo e lugar. O ampla e visceral contra a guerra. O que acontece nesses
conteúdo é enqu adrado pelas variações
do confi nam ento momentos? E são apenas momentos passageiros ou são, na
movi ment o da imag em ou do texto fora
que, embo ra nem a realidade, ocasiões em que o enquadramento se revela uma
é uma espécie de "eva são" , de mod o

26 27
QUADROS DE GUERRA VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSIVEL DE LUTO

armação forçosa e plausível, resultando em uma libertação ·nquadramentos que gover nam a cond ição
de ser recon he-
decisiva e exuberante da força de autoridades ilegítimas? ido relativa e diferencial das vidas vêm abaix
o - como
Como relacionar este debate sobre os enquadramentos parte do próprio meca nismo da sua circu lação
-, torna -se
com o problema da apreensão da vida em sua precariedade? possível apree nder a lgo a respe ito do que
ou quem está
Poderia parecer, em princípio, que é um convite à produção v i vendo embo ra não tenha sido geral ment
e "reco nheci ­
de novos enquadramentos e, consequentemente, de novos do" como uma vida. O que é esse espec tro
que corrói a s
tipos de conteúdo. Então apreendemos a precariedade da norm as d o recon hecim ento, u m a figura inten
sifica da que
vida através dos enquadramentos à nossa disposição, e é vacila entre o seu interi or e o seu exterior? Com
o interi or,
nossa tarefa tentar estabelecer novos enquadramentos que deve ser expu lsa para purifi car a norm a; como
exter ior,
aumentariam a possibilidade de reconhecimento? A pro­ a meaç a desfa zer as front eiras que delin eiam
o self. Em
dução de novos enquadramentos, como parte do projeto ambos os casos , representa a possi bilida de
de colapso da
geral de mídia a lternativa, é evidentemente importante, nor��em outras palav ras, é um sintoma de
qu�-norma
mas perderíamos uma dimensão crítica desse projeto se funciona precis amen te por meio da gestão
da persp ectiva
nos limitássemos a essa forma de ver as coisas. O que acon­ da sua destr uição , uma destr uição que é inere
nte às suas
tece quando um enquadramento rompe consigo mesmo const ruçõe s.
é que uma realidade aceita sem disc ussão é colocada em
xeque, expondo os planos orquestradores da autoridade
· que procurava controlar o enquadramento. Isso sugere Precariedade e ser ou não passível de l uto
que não se trata apenas de encontrar um novo conteúdo,
mas também de trabalhar com interpretações recebidas Quan do lemos a respeito de vidas perdi das com
frequ ência
da realidade para mostrar como elas podem romper - e nos são dado s núme ros, mas essas h istóri
as se repet em
efetivamente o fazem - consigo mesmas. Por conseguin­ todos os dias, e a repet ição parece interm ináve
l, irreme­
te, os enquadramentos que, efetivamente, decidem quais diáve l. Então, temos de pergu ntar, o que seria
necessário
vidas serão reconhecíveis como vidas e quais não o serão não somente para apreender o caráter precá
rio das vidas
devem circ u lar a fim de estabelecer sua hegemonia. Essa perdi das na guerr a, mas tamb ém para fazer
com que essa
circulação reitera ou, melhor dizendo, é a estrutura ite­ .apreensão coinc ida com uma oposi ção ética
e políti ca à s
rável do enquadramento. Conforme os enquadramentos perdas que a guerra acarreta? Entre a s pergu ntas
que sul­
rompem consigo mesmos para poderem se estabelecer, tam dessa coloc ação estão as segui ntes: Como
como çã,
surgem outras possibilidades de apreensão. Quando esses é produ zida por essa estru tura do enqu adra ment
or- qual

28 29
VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSIVEL DE LUTO
QUADROS OE GUERRA

de Afirmar que uma vida pode ser lesada, por exemplo, ou '
é a relação da comoção com o j ulgamento e a prática

q ue pode ser perdida, destruída ou sistematicamente negli­


-

natureza ética e polític a ?


genciada até a morte é sublinhar não somente a finitude de J..
Afirma r q u e u m a v i d a é precár ia exige n ã o apenas
que a vida seja apreendida como uma vida, mas também
que uma vida (o fato de que a morte é certa), mas também sua
----
\
no precariedade ( porque a vida requer que várias condições
a precar iedade seja um aspect o do que é apreen dido Jf..
sociais e econômicas sejam atendidas para ser mantida como
que está vivo. Do ponto de vista norma tivo, o que estou
uma vida). A precariedade implica viver socialmente, isto
argum entand o é que deveri a haver uma maneir a mais
é, o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma
i nclusiv a e igualitá ria de reconhecer a precari edade, e que
forma, �ãos do outro. Isso implica estarmos expostos
isso deveria tomar forma como política s sociais concre tas
não somente àqueles que conhecemos, mas também àqueles

\
lho,
no que diz respeit o a questõ es como habita ção, traba
que não conhecemos, isto é, dependemos das pessoas que
1 a limenta ção, assistê ncia médica e estatut o j u rídico. No
conhecemos, das que conhecemos superficialmente e das
enta nto, també m estou insistin do, de uma ma neira que
poderi a parece r i nicialmente parado xa l, que a pró ria� q ue desconhecemos totalmente. Reciprocamente, isso sig­
nifica que nos são impingidas a exposição e a dependência
precar iedade não pode ser adequ adame nte reconheczda.
dos outros, que, em sua maioria, permanecem anônimos.
Pode ser apreen dida, entend ida, encont rada , e pode ser
pressuposta por certas normas de reconhecimento da Essas não são necessariamente relações de amor ou sequer

mesma forma que pode ser rejeitada por essas normas. de cuidado, mas constituem obrigações para com os outros,

Na realidade, deveria haver um reconhecimento da pre­ cuja maioria não conhecemos nem sabemos que nome têm,

cariedade como uma condição compartilhada da vida e que podem ou não ter traços de familiaridade com um

humana (na verdade, como uma condição que une a n i­ sentido estabelecido de quem somos "nós". Falando na lin­

mais humanos e não humanos), mas não devemos pensar guagem comum, poderíamos dizer que "nós" temos essas

que o reconhecimento da precariedade controla, capt ura obrigações para com os "outros" e que presumimos que

ou mesmo conhece c ompletamente o que reconhece. sabemos quem somos "nós" nesse caso. A implicação social

Assim, apesar de argumentar (e o farei) que as normas dessa colocação, contudo, é precisamente que o "nós" não

do reconhec imento dever iam estar baseadas e m uma se reconhece, nem pode se reconhecer, que ele está cindido
· desde o início, interrompido pela alteridade, como afirmou
apreensão da precariedade, não acredito que a precarie­
dade seja uma função ou efeito do reconhecimento, nem [Emmanuel] Levinas, e as obrigações que "nós" temos são

que o reconhecimento seja a única ou a melhor maneira precisamente aquelas que rompem com qualquer noção

de registrá-la. estabelecida de "nós".

31
30
VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSÍVEL DE LUTO
QUADROS DE GUERRA

Indo além e no sentido oposto de um conceito existen­



e da m nutenção de uma vida.7 O futuro anteri
or, " u ma f
_
v1da f01 vivida ", é pressu posto no começo de uma
cial de finitude que singulariza nossa relação com a morte e vida
que mal começou a ser vivida . Em outras palavr
com a vida, a precariedade enfatiza nossa substitutibilidade as, "essa
será uma vida que terá sido vivida " é a pressu posiçã
e nosso anonimato radicais em relação tanto a determina­ o de
uma vida cuja perda é passível de luto, o que signifi
dos modos socialmente facilitados de morrer e de morte ca q ue
esta será uma vida que poderá ser considerada vida,
quanto a outros modos socialmente condicionados de e será

(
I . preservada em virtud e dessa consideração. Sem
I sobrev1ver e crescer. Nós não nascemos primeiro e em se- a condi ­
ção de ser enluta da, não há vida, ou, melhor dizend
� � �
guida nos to namos precários; a pr caried de é coincidente o, há
_ _ algo que está vivo, mas que é diferente de uma vida. li
com o propno nasc1mento (o nasc1mento e, por definição, Em

precário), o que quer dizer que o fato de uma criança


� �
s u l gar, "há uma vida que nunca terá sido vivida
", que :
nao e preservada por nenhu ma consideração, por
sobreviver ou não é importante, e que sua sobrevivência nenhu m
testem unho, e que não será enluta da quand o perdid

)�
depende do que poderíamos chamar de uma "rede social a. A
apree nsão da condi ção de ser enluta da preced
de ajuda". É exatamente porque um ser vivo pode morrer e e torna 1
J possível a apreensão da vida precár ia. A condiç ão
de ser
que é necessário cuidar dele para que possa viver. Apenas
enluta do precede e torna possível a apreensão do
em condições nas quais a perda tem importância o valor ser vivo ..��

como algo que vive, exposto a não vida desde o


da vida aparece efetivamente. Portanto, a possibilidade de início .

ser enlutada é um pressuposto para t9da vida que importa.


Em geral, imaginamos que uma criança vem ao mun o, e
Para uma crítica do direito à vida
mantida no e por esse mundo até a idade adulta e a velhice
e, finalmente, morre. Imaginamos que quando a criança
É sem dúvida difícil , para aquele s à esquer da, pensar
/ é desejada há celebração no início da vida. Mas não pode em
um discur so da " vida", uma vez que estam os acostu
haver celebração sem uma compreensão implícita de que mado s
a pensa r que aquele s que são favoráveis a mais li berdad
a vida é passível de luto, de que seria enlutada se fosse es
reprod utivas são "a favor da liberd ade de escolh
perdida, e de que esse futuro anterior está estabelecido a", ao
passo que aquele s que se opõem a elas são "a favor
como a condição de sua vida. Em linguagem corrente, da
, vida". Mas ta lvez exista uma manei ra de a esquer
o luto serve à vida que já foi vivida e pressupõe que essa da re­
tomar o ensa mento sobre a "vida " e fazer uso desse
vida já está terminada. Porém, de acordo com o futuro
enqua dramento da vida precár ia para defender uma
anterior (que também faz parte da li nguagem corrente), o firme

fato de ser passível de luto é uma condição do surgimento



posiçã o fem in ista a fav l iberda des reprod utivas .

32 33
QUADROS DE GUERRA VIDA P RECÁRIA, VIDA PASSiVEL DE LUTO

Não é difíci l ver como aqueles que adotam as chamadas na definição da vida propriamente dita. Teríamos de con­
posições "a favor da vida" podem basear seu ponto de sidera r paradigmas variáveis nas ciências da vida, como,
vista no a rgumento de que o feto é precisamente essa por exemplo, o deslocamento dos modos de ver clínicos
vida que não é enlutada, mas que deveria sê-lo, ou que é para os modos de ver molec ulares, ou os debates entre
uma vida que não é reconhecida como vida por aqueles a aqueles que priorizam as células e aqueles que insistem
favor do direito ao aborto. Na realidade, esse a rgumento que o tecido é a u nidade mais primária do ser vivo. Esses
poderia ter uma ligação bem próxima com a defesa dos debates teriam de ser conectados às novas tendências d a
direitos dos animais, uma vez que podemos perfeitamente biomedicalização e aos novos modos de administrar a
a rgumentar que o animal é uma vida que em geral não é vida, bem como às novas perspectivas na biologia que
encarada como vida de acordo com as normas antropocên­ vinculam o bios do ser humano ao do animal (ou que
tricas. Esses debates se voltam com muita frequência para levam a sério a relação quiásmica implícita na expressão
questões ontológicas, indagando se existe uma diferença "o animal humano"). Teríamos, então, de situar nossa
significativa entre o estatuto de vida do feto, ou mesmo disc ussão sobre a guerra nesses ú ltimos campos, o que
do embrião, e o estatuto da "pessoa", ou se existe uma nos mostraria que a " v ida" como t a l continua sendo
diferença ontológica entre o animal e o "humano". definida e regenerada, por assim dizer, em novos modos
Devemos reconhecer que todos esses organismos estão de conhecimento/poder.
vivos de uma forma ou de outra. Fazer essa afirmação, Estou certa de que é possível seguir este caminho para
contudo, não é fornecer a rgumentos substanciais para compreender a biopolítica tanto da guerra quanto da liber­
u ma posição ou para a outra. Afinal de contas, as plantas dade reprodutiva, e de que esses caminhos de investigação
são seres vivos, mas os vegetarianos normalmente não seriam necessários para situar o discurso da vida dentro
fazem nenhuma objeção a comê-las. De forma mais geral, da esfera da biopolítica e mais especificamente da bio­
pode-se a rgumentar que os próprios processos da vida medicalização. Há também, como Donna jones mostrou
envolvem destruição e degeneração, mas isso não nos diz, recentemente, um elo importante entre o discurso sobre a
de modo a lgum, qual tipo de destruição é eticamente rele­ vida, a tradição do vitalismo e várias doutrinas do racis­
vante e qual não é. Determinar a especificidade ontológica mo. A bibliografia sobre esses importantes temas cresceu
da vida nessas circ unstâncias nos levaria, de modo mais .enormemente nos ú ltimos a nos.8 Minha contribuição
geral, a uma disc ussão de iopolítica, preocupada com as pessoal, contudo, não é para a genealogia dos conceitos de
diferentes maneiras de apreen er, controlar e administrar vida ou de morte, mas para pensar a precariedade como
a vida, e como essas modalidades de poder se infiltram algo ao mesmo tempo pressuposto e orientado por esse

34 35
QUADROS DE GUERRA VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSIVEL DE LUTO

discurso, ao mesmo tempo nunca plenamente resolvida deter, por assim dizer, os processos da vida propriamente
por nen hum discurso. ditos. Ironicamente, excluir a morte da vida representa a ) \ 1
Na minha opinião, não é possível basear os argumentos morte da vida. J

a favor da liberdade reprodutiva, que incluem o direito Por conseguinte, em referência a qualquer coisa viva,
ao aborto, em uma concepção sobre o que é vivo e o que não é possível a firmar antecipadamente que há um direito
não é. As células-tronco são células vivas, ai nda que pre­ à vida, uma vez que nenhum direito pode evitar todos os
cárias, mas isso não impl ica imediatamente que se deva processos de degeneração e morte; essa pretensão é a fun­
adotar uma política em relação às condições nas quais ção de uma fantasia onipotente do antropocentrismo (uma
elas deveriam ser destruídas ou nas quais poderiam ser fantasia que também busca negar a finitude do anthropos).

< usadas. Nem tudo que está incluído sob a rubrica "vida
precária" é, desse modo, a priori, digno de proteção con­
tra a destruição. Esses argu mentos, porém, ficam difíceis
Da mesma maneira, e em última instância, não faz
sentido a firmar, por exemplo, que temos de nos centrar
no que é característico a respeito da vida humana, uma
particularmente nesse ponto, pois, se alguns tecidos ou vez que, se estamos preocupados com a " vida" da vida
células vivos merecem ser protegidos contra a destruição, e humana, é precisamente aí que não há nenhuma maneira
outros não, isso poderia nos levar à conclusão de que, sob sólida de distinguir, em termos absolutos, o bios do animal
condições de guerra, algumas vidas humanas são dignas do bios do animal humano. Qualquer distinção desse tipo
de proteção enquanto outras não são? Para entender por eria tênue e, uma vez mais, não levaria em conta que, por
que isso é uma inferência enganosa, temos de considerar definição, o animal humano é ele mesmo um a nimal. Essa
alguns postulados básicos de nossa análise e constatar não é uma assertiva que diz respeito ao tipo ou à espécie
como certo antropocentrismo condiciona várias formas de animal que o humano é, mas sim o reconhecimento de
questionáveis de argu mentação. que a animalidade é uma precondição do humano, e não
O primeiro postulado é que existe um vasto domínio existe humano que não seja um a nimal humano.
de vida não sujeito à regulação e à decisão humanas, e Aqueles q ue proc uram u m a base para decidir, por
que conceber algo diferente d isso é reinstalar um antro­ exemplo, se ou quando o aborto pode ser j ustificado quase
pocentrismo inaceitável no coração das ciências da vida. sempre recorrem a uma concepção moral da "pessoa" para
O segundo ponto é óbvio, mas vale a pena ser reafirma­ ·determinar quando seria razoável considerar um feto uma
do: no vasto domínio da vida orgânica, a degeneração e a pessoa. As pessoas seriam então entendidas como sujeitos
destruição fazem parte do próprio processo da vida, o que de direitos, com d ireito a proteção contra os maus-tratos
significa que nem toda degeneração pode ser detida sem e a destruição, o que não se aplicaria às não pessoas -

36 37
QUADROS DE GUERRA VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSÍVEL DE LUTO

ou pré-pessoas, por assim dizer. Esses esforços buscam É claro que esses argumentos ainda não abordam di­
resolver as questões éticas e políticas recorrendo a uma r tamente a questão de definir em que condições a vida
ontologia da pessoa baseada em um relato da individuação precária passa a ter direito à proteção, e em que outras
biológica . Aqui, a ideia de "pessoa" é definida ontogeneti­ ondições não o tem. Uma maneira convencional de co-
camente, ou seja, o desenvolvimento interno postulado de 1 car esse problema no âmbito da filosofia moral é: quem
certo estatuto ou capacidade moral do indivíduo torna-se decide e com base em que a decisão é tomada? Mas talvez
a principal medida pela qual a pessoa é julgada. O debate h aja um conjunto de questões mais fundamentais a serem
restringe-se não somente a um domínio moral, mas a uma propostas: em que ponto a "decisão" desponta como ato
ontologia do individualismo que não reconhece que a vida, relevante, apropriado ou obrigatório? Há a questão do
entendida como vida precária, implica uma ontologia so­ "quem" decide, e dos padrões de acordo com os quais uma
cial que coloca essa forma de individualismo em questão. decisão é tomada; mas há também a "decisão" sobre o
\ Não há vida sem as condições de vida que sustentam, escopo adequado da própria tomada de decisão. A decisão
de modo variável, a vida, e essas condições são predomi­ de prolongar a vida para humanos ou animais e a decisão
nantemente sociais, estabelecendo não a ontologia distinta de abreviá-la são sabidamente controversas precisamente
da pessoa, mas a interdependência das pessoas, envolvendo porque não há consenso sobre quando e onde a decisão

I
relações sociais reproduzíveis e mantenedoras, assim como deveria entrar em cena. Em que medida, e com que esforço
relações com o meio ambiente e com formas não humanas e custo, podemos prolongar a vida vivível para os velhos ou
de vida, consideradas amplamente. Esse modo de ontologia doentes terminais? Lado a lado com argumentos religiosos

social (para o qual não existe nenhuma distinção absoluta que afirmam que "não cabe aos humanos" tomar decisões,
entre o social e o ecológico) tem implicações concretas há posições motivadas pela análise de c u sto-benefício,
para a�ira pela qual voltamos a abordar as questões que argumentam que há limites financeiros para nossa
relativas à liberdade reprodutiva e às políticas a ntibélicas. capacidade de prolongar uma vida, ainda mais uma vida

/ A questão não é saber se determinado ser é vivo ou não, muito menos "vivível". Mas vale observar que, quando

\ nem se ele tem o estatuto de "pessoa"; trata-se de saber, na


verdade, se as condições sociais de sobrevivência e pros­
peridade são ou não possíveis. Somente com esta última
começamos a considerar esses cenários, imaginamos u m
grupo d e pessoas que estão tomando decisões, e que a s
·decisões em s i são tomadas em relação a um a mbiente

questão podemos evitar as pressuposições individualistas, que, de modo geral, tornará ou não a vida vivível. Não se
antropocêntricas e liberais que desencaminharam essas trata simplesmente de uma questão relativa à política sobre
discussões. manter ou não uma vida ou proporcionar as condições

38 39
QUADROS DE GUERRA VIDA PRECÁRIA. VIDA PASSiVEL DE LUTO

para uma vida v i v ível , pois está implícita em nossas No entanto, o que talvez seja mais importante é que
reflexões uma suposição sobre a própria ontologia da t 'rÍamos de repensar "o direito à vida" onde não há nenhu­
vida. Simplificando, a vida exige apoio e condições possi­ ma proteção definitiva contra a destruição e onde os laços
bilitadoras para poder ser uma vida vivível. � ciais afirmativos e necessários nos impelem a assegurar
Na verdade, quando se toma a dec isão de utili zar condições para vidas vivíveis, e a fazê-lo em bases igua­
uma máquina para prolongar a vida de um paciente, ou litárias. Isso implicaria compromissos positivos no sentido
de ampl iar os c u idados médicos aos mais vel hos, essas de oferecer os suportes básicos que buscam minimizar a
decisões são tomadas, em a lgum nível, considerando a precariedade de maneira igualitária: alimentação, abrigo,
qua lidade e as condições de vida. A fi rmar que a vida é trabalho, cuidados médicos, educação, direito de ir e vir
precária é a fi rmar que a possibi lidade de sua manuten­ ' direito de expressão, proteção contra os maus-tratos e
ção depende, fu ndamentalmente, das condições sociais opressão. A precariedade fundamenta essas obrigações
e políticas, e não somente de um imp u lso interno para ociais positivas (paradoxalmente, porque a precariedade
viver. Com efeito, todo impulso tem de ser sustentado,9 é uma espécie de "desfundamentação" que constitui uma
apoiado pelo que está fora de si mesmo, e é por essa razão condição generalizada para o animal humano), ao mesmo
que não pode haver nenhuma persistência na vida sem tempo que o propósito dessas obrigações é minimizar a
pelo menos algumas condições que tornam uma vida precariedade e sua distribuição desigual. Nessa perspectiva,
vivível. E isso é verdade ta nto para o " indivíduo que portanto, podemos compreender as maneiras de justificar a
toma decisões" quanto para qua lquer outro, incluindo pesquisa com células-tronco qua ndo fica claro que o uso de
o indivíduo que "decide" o que fazer em relação a em­ células vivas pode aumentar as possibilidades de uma vida
briões, fetos, célula s-tronco ou esperma a leatório. De mais vivível. De forma similar, a decisão de abortar um feto
o
fato, aquele que decide ou assegura direitos à proteção pode perfeitamente estar baseada na suposição de que as for­
o faz no contexto de normas sociais e políticas que enqua­ mas de suporte social e econômico necessários para tornar
dram o processo de tomada de decisão, e em contextos aquela vida vivível estão ausentes. Nesse sentido, podemos
presumidos nos quais a a fi rmação de direitos possa ser perceber que os argumentos contra determinadas formas de
reconhecida. Em outras palavras, as decisões são práticas guerra dependem da afirmação de que os modos arbitrários
sociais, e a a fi rmação de direitos surge precisamente onde de maximizar a precariedade para uns e de minimizá-la para
as condições de interlocução podem ser pressupostas ou outros violam normas igualitárias básicas ao mesmo tempo
minimamente invocadas e incitadas qua ndo a i nda não que não reconhecem que a precariedade impõe certos tipos
estão institucionali zadas. de obrigações éticas aos vivos e entre os vivos.

40 41
QUADROS DE GUERRA
VIDA PRECÁRIA, VIDA PASSIVEL DE LUTO

Poderíamos, certa mente, fazer objeções, a fi rmando i zer, seres sociais desde o começo, dependentes do q ue
que a ideia de uma "vida vivível" poderia embasar aqueles ' tá fora de nós, dos outros, de instituições e de ambientes
que desejam estabelecer uma distinção entre vidas que são :ustentados e sustentáveis, razão pela qual somos, nesse
dignas de serem vividas e vidas que devem ser destruídas. :entido, precários. Para sustentar a vida como sustentável é
Precisamente o raciocínio no qual se apoia certo tipo de necessário proporcionar essas condições e batalhar por sua
esforço de guerra para distinguir entre vidas valiosas e renovação e seu fortalecim ento. Onde uma vida não tem
que são passíveis de luto, de um lado, e vidas sem valor nenhuma chance de florescer é onde devemos nos esforçar
e que não são passíveis de luto, de outro. Essa conclusão, para melhorar as condições de vida. A vida precária m­
porém, ignora a importante quali ficação que os padrões

\
pl ica a vida como um rocesso condicion ado, e não como
igua litá rios impõem q ua ndo se considera o que é uma um aspecto interno de um indivíduo monádico ou qualquer
vida vivível. A precariedade tem de ser compreendida não urro construto a ntropocênt rico. Nossas obrigações são
apenas como um aspecto desta ou daquela vida, mas como precisamente para com as condições que tornam a vida
uma condição generalizada cuja general idade só pode possível, não para com a "vida em si mesma" ou, melhor
ser negada negando-se a precariedade enquanto tal. E a dizendo, nossas obrigações surgem da percepção de que
obrigação de pensar a precariedade em termos de igual­ não pode haver vida sustentada sem essas condições de
dade su rge precisamente da irrefutável capacidade de sustentação, e que essas condições são, ao mesmo tempo,
generalização dessa condição. Partindo desse pressuposto, nossa responsa bilidade política e a matéria de nossas de­
contesta-se a alocação d i ferencial da precariedade e da cisões éticas mais árduas.
condição de ser de ser lamentado. Além disso, a própria
ideia de precariedade implica uma dependência de redes
e condições sociais, o que sugere que aqui não se trata da Formações políticas
"vida como tal", mas sempre e apenas das condições de
vida, da vida como algo que exige determinadas condições Embora seja uma condição generalizada, a vida precária

)
para se tornar uma vida vivível e, sobretudo, para tornar­ é, paradoxalmente, a condição de estar condicionado.
-se uma vida passível de uto. Em outras palavras, podemos a firmar q ue �é v
.

Assim, a conclusão não é que tudo que pode morrer ou · precária, o que equivale a dizer que a vida sempre surge
----
está sujeito à destruição (i.e., todos os processos da vida) e é sustentada dentro de determina das condi ões de vida.
impõe uma obrigação de preservar a vida. Mas uma obri­ A discussão a nterior a respeito dos enquadra mentos e
gação, com efeito, surge do fato de que somos, por assim normas procurou esclarecer uma dimensão dessas con-

42
43
QUADROS DE GUERRA VIDA PRECÁRIA, V I DA PASSÍVEL DE LUTO

e
dições. Não podemos �co� cer}acilmente a vida fora b ível como tal. Formas de racismo instituídas e ativas no
dos enquadramentos nos quais ela é apresentada, e esses n ível da percepção tendem a produzir versões icónicas de
enquadramentos não apenas estruturam a maneira pela populações que são eminentemente la mentáveis e de ou­
­
qual passamos a conhecer e a ident i ficar a vida, mas t ras cuja perda não é perda, e que não é passível de luto.
constituem condições que dão suporte para essa mesma A distribuição diferencial da condição de ser passível de
vida. As condições devem ser mantidas, o que significa l�ntre as populações tem implicações so re por que e
que existem não apenas como entidades estáticas, mas q uando sentimos disposições a fetivas politicamente sig­
como instituições e relações sociais reproduzíveis. Não n ificativas, tais como horror, c u lpa, sadismo j ustificado,
teríamos uma responsa bilidade de manter as condições perda e indiferen a. Por que, em partic u la r, houve nos
de vida se essas condições não exigissem renovação. Do Estados Unidos uma resposta j ustificada a certas formas
mesmo modo, os enquadramentos estão sujeitos a uma de violência perpetrada ao mesmo tempo que a violência
estrutura iterável - eles só podem circular em virtude sofrida por eles ou é ruidosa mente lamentada (a icono­
de sua reprodutibilidade, e essa mesma reprodutibilidade grafia dos mortos do 1 1 de Setembro) ou é considerada
introduz um risco estrutural para a identidade do próprio i nassimilável (a afirmação da impermeabilidade masculina
enquadramento. O enquadramento rompe consigo mesmo dentro da retórica estata l ) ?
a fim de reproduzir-se, e sua reprodução torna-se o local S e tomamos a recariedade da vida como ponto d e
em que uma ruptura politicamente significativa é possível. partida, então não há vida sem necessidade d e abrigo e ali-
..----
Portanto, o enquadramento fu nciona normativamente, mento, não há vida sem dependência de redes mais amplas
mas pode, dependendo do modo específico de circulação, de sociabilidade e trabalho, não há vida que transcenda
colocar certos campos de normatividade em questão. Esses a possibilidade de sofrer ma us-tratos e a mortalidade.10
enquadramentos estruturam modos de reconhecimento, Poderíamos, então, analisar alguns dos atributos culturais
especialmente durante os tempos de guerra, mas seus limi­ do poder militar durante esses tempos como se tentassem
tes e sua contingência também ficam sujeitos à exposição m a x imizar a precariedade para os outros enqua nto a
e à intervenção crítica. minimizam para o poder em questão. Essa distribuição
Esses enquadramentos são atuantes em situações de diferencial da condição de precariedade é, a um só tempo,
prisão e tortura, mas também nas políticas de imigração, · uma questão material e perceptual, visto que aqueles cujas
de acordo com as quais determinadas vidas são percebidas vidas não são "consideradas" potencialmente lamentáveis
como vidas, ao passo que outras, embora aparentemente e, por conseguinte, valiosas, são obrigados a suportar a
estejam vivas, não conseguem assumir u ma forma perce- carga da fome, do subemprego, da privação de direitos

44 45
Q U ADROS DE GUERRA VIDA PRECÁRIA, VIDA PASS Í VE L DE LUTO

lega is e da exposição d i ferenciada à violência e à morte. 1 1 I > que com frequência não têm opção a não ser recorrer
Seria difícil, se não impossível, decidir s e essa "considera­ 1 próprio Estado contra o qual precisam de proteção.
4J
ção" - ou a sua ausência - conduz à "realidade material " Em outras palavras, elas recorrem ao Estado em busca �Q*'
o u s e a realidade material conduz à ausência d e considera- J proteção, mas o Estado é precisamente aquilo do que
/
·

>k
ção, já que pareceria que ambas acontecem a um só tempo •la precisam ser protegidas. Esta r protegido da violência 4-
e que essas categorias perceptuais são essenciais para a lo Estado-Nação é estar exposto à violência exercida pelo
produção da realidade material (o que não quer dizer que L tado-Nação; assim, depender do Estado-Nação para a
toda materialidade seja redutível à percepção, mas apenas proteção contra a violência significa precisamente trocar
que a percepção carrega seus efeitos materiais). u ma violência potencial por outra. Deve haver, de fato,
Tanto a precariedade quanto a condição precária são 1 oucas alternativas. É claro que nem toda violência advém
( conceitos que se entrecruzam. Vidas são, por definição, do Estado-Nação, mas são muito raros os casos contem-
precárias: podem ser eliminadas de maneira proposital i orâneos de violência que não tenham nenhuma relação
ou acidental; sua persistência não está, de modo algum,
garantida. Em certo sentido, essa é uma característica de
todas as vidas, e não há como pensar a vida como não
om essa forma política.
Este livro aborda os enquadramentos da guerra, isto
é, as diferentes maneiras de esculpir seletivamente a ex­
)
precária - a não ser, é claro, na fantasia, em particular periência, como algo essenc ial à condução da guerra .
nas fantasias militares. As entidades políticas, incluindo Esses enquadramentos não apenas refletem as condições
as instituições econômicas e sociais, são projetadas para materiais da guerra, como são também essenciais para o
abordar essas necessidades, sem as quais o risco da mor- ani� perpetuamente produzido dessa realidade material.
talidade é ncializado. Há diversos enquadramentos em questão aqui: o enqua­
A condição precá ria designa a condição politicamente dramento da fotografia, o enquadramento da decisão de ir
induzida na quaf Certas populações sofrem com redes so­ para a guerra, o enquadramento das questões da imigração

--
ciais e econômicas de apoio deficientes e ficam expostas como uma "guerra dentro de casa" e o enquadramento da
de forma diferenciada às violações, à violência e à morte. política sex ual e feminista a serviço do esforço de guerra.
� ......

Essas populações estão mais expostas a doenças, pobreza, Eu a rgumento que, assim como a guerra é enquadrada de
fome, desloca mentos e violência sem nenhuma proteção. · deter · s maneiras a fim de controlar e potencializar
A condição precária também caracteriza a condição po­ o ã m relação à condição diferenciada de uma
litica mente induzida de maximização da recarieda_d.e vida passível de luto, a guerra também enquadra formas
para populações expostas à violência arbitrária do Esta- de pensar o multiculturalismo e certos debates sobre a

46 47
QUADROS DE GUERRA V I DA PRECÁRIA, VIDA PASS Í VE L DE LUTO

liberdade sex ual, temas considerados, em grande medida, ·m uma estrutura que é incapaz de refletir criticamente

separadamente das "relações exteriores". As concepções ·obre como os termos da política nacional foram pert ur­

sexualmente progressistas dos direitos fem inistas ou das bados e empregados para os propósitos mais amplos da
liberdades sexuais foram mobilizadas não somente para } uerra. Concentrar novamente a política contemporânea
racionalizar as guerras contra populações predom inan­ n s efeitos i legítimos e arbitrários da violência estata l,
temente m uç ulmanas, mas também para argumentar a i ncluindo os meios coercitivos de aplicar e desafiar a lega­
favor da adoção de limites à imigração para a Europa de l idade, poderia perfeitamente reorientar a esquerda para
pessoas procedentes de países predominantemente muçul­ � lém das antinomias liberais nas quais está atualmente
manos. Nos Estados Unidos, isso levou a detenções ilegais mergulhada. Uma coligação daqueles que se opõem à co-
e ao aprisionamento daqueles que "parecem" pertencer a rção e à violência ilegítimas, assim como a qualquer tipo
grupos étnicos suspeitos, apesar de os esforços j urídicos de racismo (não diferencia lmente), certamente também
para combater essas medidas terem sido cada vez mais i m plicaria uma política sex ual que se nega ria obstina­
bem-sucedidos nos últimos anos.12 Por exemplo, aqueles da mente a ser apropriada como fundamentação racional
que aceitam um "impasse" entre direitos sex uais e direi­ espú ria para as guerras em curso.
tos de i migração, especialmente na Europa, não levaram Os enquadra mentos por meio dos quais pensamos
em consideração como a guerra em c urso estruturou e a esquerda precisam ser reformu lados à luz das novas
fissurou o tema dos movimentos sociais. Compreender os formas de violência estatal, especialmente aquelas q ue
riscos c u lturais de uma guerra "contra o Islã" na medida buscam suspender os constrangimentos jurídicos em nome
em que ela assume uma nova forma na política coerci­ da soberania, ou que fabricam sistemas quase legais em
tiva de i migração desa fia a esquerda a refletir além dos nome da segurança nacional. Com muita frequência, não
enquadramentos estabelecidos do multic ultura l ismo e a percebemos que as questões nitida mente "nacionais" são
contextualizar suas recentes divisões à l uz da violência do moduladas pelas questões de política externa, e que um
Estado, do exercício da guerra e da escalada da "violência enquadramento similar fundamenta nossa orientação em
legal " nas fronteiras. ambos os domínios. Tampouco questionamos essa maneira
Nos últimos anos, as posturas associadas a políticas de demarcar as divisões entre as questões nacionais e as
sexuais progressistas tiveram que fazer frente às reivindi­ externas. Se esses enquadramentos fossem colocados em
cações de novos direitos para os i migrantes e a novas mu­ contato crítico uns com os outros, que tipo de política
danças culturais nos Estados Unidos e na Europa . Essas resultaria daí? Isso talvez nos proporcionasse uma manei­
formulações de contradição e impasse parecem basear-se ra de militar contra a mobilização de agendas nacionais

48 49
QUADROS DE GUE R R A V I DA P R ECÁ R I A, V I DA PASSIVEL DE LUTO

"progressistas" (feminismo, l iberdade sexual) a favor das negadas tornam as práticas da guerra possíveis, temos de

políticas bélicas e de anti-imigração, e até mesmo para a ·oncluir que os enquadramentos de guerra são parte do

fundamentação lógica da tortura sex ual. Isso significaria que constitui a materialidade da guerra. Assim como a

< pensar a política sexual com a política de imigração de


uma nova maneira e considerar como as populações estão
expostas diferencialmente a condições que colocam em
" matéria" dos corpos não pode aparecer sem uma confi­
• u ração que lhe dê forma e vida, tampouco a "matéria" da
• uerra pode aparecer sem uma forma ou enquadramento

perigo a possibilidade de sobreviver e prosperar. ondicionador e facilitador.

Este trabalho procura reorientar as políticas de esquer­ A utilização de câmeras, não apenas na gravação e dis­

da no sentido de considerar a condição precária como r.ribuição de imagens de tortura, mas também como parte

uma condição existente e promissora para mudanças em do próprio aparato de bombardeio, deixa bem claro q ue

coligações. Para que as populações se tornem lamentáveis, s representações midiáticas já se converteram em modos

não é necessário conhecer a singularidade de cada pessoa de con uta militar.U Assim, não há como separar, n a s

que está em risco ou que, na realidade, já foi submetida ondições históricas atuais, a realidade material d a guerra

ao risco. Na verdade quer dizer que a política precisa desses regimes representacionais por meio dos quais ela

compreender a recar�dad� ,_como uma condição compar­ opera e que racionalizam sua própria operação. As realida­

,!! lhada, e a condição recária como a condição politica­ des perceptuais produzidas por esses enquadramentos não

)
mente i z"da que negaria uma igual exposição através onduzem exatamente à política bélica, como tampouco

da distribuição radicalmente desigual da riqueza e das políticas dessa natureza criam unilateralmente enquadra­

maneiras diferenciais de expor determinadas populações, mentos de percepção. A percepção e a política são apenas

conceitualizadas de um ponto de vista racial e nacional, a duas modalidades do mesmo processo por meio do qual o
1
uma maior violência. O reconhecimento da precariedade estatuto ontológico de uma determinada população vê-se �<.
..Ir
compartilhada introduz fortes compromissos normativos comprometido e suspenso. Isso não é o mesmo que u m a

de igualdade e convida a uma universalização mais sólida "vida nua", uma vez que as vidas em questão não estão

dos direitos que procure abordar as necessidades humanas fora da polis em um estado de exposição radical , mas

básicas de alimento, abrigo e demais condições de sobrevi­ sim subjugadas e constrangidas por relações de poder em

vência e prosperidade. Poderíamos ficar tentados a chamá­ · uma situação de exposição forçada. Não é a revogação
-las de "necessidades materiais", e elas certamente o são. ou a ausência da lei que produz precariedade, mas sim os

Porém, uma vez que reconhecemos que os enquadramentos efeitos da própria coerção legal ilegítima, ou o exercício

por meio dos quais essas necessidades são a firmadas ou do poder do Estado livre das restrições legais.

50 51
Q U A DROS DE GU E RR A
VIDA PRECÁRIA, VIDA P A SS I VE L DE LUTO

Essas reflexões têm impl icações também na hora de possibilidades de doença ou de acidente para um corpo
pensar através do corpo, uma vez que não há nenhuma v ivo, embora ambas possam ser mobilizadas a serviço dessa
condição que possa "resolver" completamente o problema i l usão. Esses riscos estão embutidos na própria concepção
da precariedade humana. Os corpos passam a existir .e da vida corporal considerada finita e precária, o que impl ica
deixam de existir: como organismos fi sicamente persis­ que o corpo está sempre à mercê de formas de sociabilida­
tentes, estão sujeitos a ataques e a doenças que colocam de e de ambientes que limitam sua autonomia individual.
em risco a possibilidade de simplesmente sobreviver. São A condição compa rtil hada de precariedade significa q ue

)
características necessárias dos corpos - não podem "ser" corpo é constitutivamente social e interdependente,
pensados sem sua finitude e dependem do que está " fora oncepção claramente confirmada de diferentes maneiras
deles" para serem mantidos -, características que são t a nto por Hobbes quanto por Hegel. Todavia, precisamente

<
próprias da estrutura fenomeno1ógica da vida corpora l . porque cada corpo se encontra potencialmente ameaçado .,
Viver é sempre viver u m a vida que é v ulnerável desde o por outros corpos que são, por definição, igualmente pre- �,

início e que pode ser colocada em risco ou elimi nad � de á rios, produzem-se formas de dominação. Essa máxima
uma hora para outra a partir do exterior e por mottvos hegeliana assume significados específicos nas condições
que nem sempre estão sob nosso controle. bélicas contemporânea s: a condição compartil hada de pre­
Enqua nto a ma ior pa rte das posições derivadas dos a riedade conduz não ao reconhecimento recíproco, mas
relatos de Spinoza sobre a persistência corporal enfatiza im a uma exploração específica de populações-alv o, de
o desejo produtivo do corpo,14 será que já encontramos vidas que não são exatamente vidas, que são consideradas
um relato de Spinoza sobre a vulnerabil idade corpora l "destrutíveis" e "não passíveis de luto". Essas populações
ou consideramos suas impl icações políticas? 1 5 O conatus ão "perdíveis", ou podem ser sacrificadas, precisamente
pode ser e é minado por muitas fontes: estamos vinculados porque fora m enquadradas como já tendo sido perdidas
aos outros não somente através de redes de conexão libi­ ou sacri ficadas; são consideradas como ameaças à vida
dinosa, mas também através de modos de dependência e humana como a conhecemos, e não como populações vivas
proximidade involuntárias que podem muito bem acarretar que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do
consequências psíquicas ambivalentes, incluindo vínculos Estado, a fome e as pandemias. Consequentemente, quando
de agressão e de libido ( K iein).16 Ademais, essa condição · essas vidas são perdidas, não são objeto de lamentação,

genera lizada de precariedade e dependência é explorada e uma vez que, na lógica di storcida que raciona liza s u a
deslegitimada em determinadas formações políticas. Ne­ morte, a perda dessas populações é considerada necessária
nhuma quantidade de vontade ou riqueza pode eliminar para proteger a vida dos " vivos".

52 53
QUADROS DE GUERRA
VIDA PRECÁRIA. V I DA PASSÍVEL DE LUTO

Essa reflexão sobre a d istribuição d iferencial da pre­ i ncluindo tanto a guerra quanto as formas de violênc ia
ca riedade e da condição de ser passível de luto constitui I 'ga lizada mediante as quais as popula ções são diferen
­
uma alternativa aos modelos de multic u lturalismo que ·i al mente privada s dos recurso s básicos necessá rios pa ra
pressupõem o Estado-Nação como o único enquadramento m i nimizar a precari edade. Isso pa rece ser urgente e neces­
de referência, e o pluralismo como uma maneira adequada ·:i rio no contexto do colapso dos Estados do bem-es tar
de pensar os sujeitos sociais heterogêneos. Embora certos cial e naquele s em que as redes sociais de seguran ça
princípios liberais permaneçam cruciais para esta análi­ ( ram destruí das ou tiveram negada a oportu nidade de
se, incluindo a igualdade e a universal idade, é evidente .;e materia lizar. Em segund o lugar, o foco deveria recair
que as normas libera is que pressupõem uma ontologia rnenos nas política s identitá rias, ou nos tipos de interess es
da identidade individual não podem produzir os tipos de · crenças formulados com base em pretens ões identitá rias,
vocabulários analíticos de que necessitamos para pensar ' mais na precariedade e em suas distribu ições diferenc iais,
a interdependência global e as redes interconectadas de na expecta tiva de que possam se formar novas coligaç ões
poder e posição na vida contemporânea. Parte do problema ·a pazes de superar os tipos de impasse s liberais mencio na­
da vida política contemporânea é que nem todo mundo dos anterio rmente . A precari edade perpas sa as categorias
conta como sujeito. O multiculturalismo tende a pressu­ identitá rias e os mapas multicu lturais, criando , assim, a
por comunidades já constituídas, sujeitos já estabelecidos, base para uma aliança centrad a na oposiçã o à violênc ia
quando o que está em jogo são comunidades não exata­ de Estado e sua capacid ade de produz ir, explora r e dis­
mente reconhecidas como tais, sujeitos que estão vivos, mas r ribuir condiç ões precári as e para fins de lucro e defesa
que a inda não são considerados "vidas". Além disso, não t e rritoria l. Ta l a l iança não requere ria concor dância em
se trata simplesmente de um problema de coexistência, mas relação a todas as questões de desejo, crença ou autoide n­
sim de como a política de formação diferencial do sujeito t i ficação. Constit uiria antes um movimento que abrigar ia
nos mapas de poder contemporâneos procura: (a) mobilizar determ inados tipos de antago nismos em c urso entre seus
os progressistas sex uais contra os novos imigrantes em pa rticipa ntes, valoriz ando essas d i ferença s persist entes
nome de uma concepção espúria de liberdade e (b) usar � animad oras como o sinal e a essência de uma política
as minorias de gênero e as sex uais na raciona lização das democ rática radica l.
guerras recentes e das que estão em curso.
As políticas de esquerda a esse respeito deveriam, em
primeiro lugar, ter como meta o redirecionamento do foco
e a ampliação da crítica política da violência do Estado,

S4
55

Das könnte Ihnen auch gefallen