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INTRODUÇÃO
A terapia da caixa de areia é uma técnica que possibilita a amplificação do símbolo, método
principal da psicologia analítica, dinamizando assim a sua ação prospectiva e evolutiva na
personalidade em direção ao seu potencial de busca de auto-regulação e totalidade.
Desenvolvida inicialmente por Dora Kalff (2003), esta técnica permitiu corroborar a hipótese
junguiana da interpretação da crise psicológica do ponto de vista arquetípico, ou seja, ela é
uma oportunidade de transformação da personalidade visando à individuação. Nesta
perspectiva os aspectos dissociados da personalidade são reunidos pela via do sintoma e do
sofrimento manifestos em forma de complexos, que por sua vez representam as tentativas do
organismo em busca de finalidade e ‘intencionalidade’, invés de somente representarem
relações de causalidade.
1- Os complexos:
“Existem doze ou mais categorias de distúrbios, mas mencionarei aqui apenas algumas delas a fim
de proporcionar aos senhores a visão de seu valor profissional. O prolongamento da reação é de grande
importância prática. Decidimos se o tempo de reação é muito longo tirando a média de todos os outros
tempos anteriores. Outras perturbações características são: reagir com mais de uma palavra contrariando
as instruções; engano na reprodução de palavras; reação traduzida por expressão facial; riso; movimento
das mãos, dos pés ou do corpo; tosse, gaguejar; reações insuficientes expressas por respostas do tipo ‘sim’
e ‘não’; não reação ao verdadeiro estímulo da palavra; repetição das mesmas palavras; uso de língua
estrangeira (…); reprodução defeituosa quando as palavras começam a escapar a memória; ausência
absoluta de reação.” (Jung, 1996: 44)
A teoria dos complexos explica que quanto mais intenso e autónomo ele for, maior a
sintomatologia (Jung, 1997). O experimento de associação de palavras demonstrou não só
uma transformação a nível fisiológico, mas na estrutura corpórea total, quer o indivíduo a
perceba ou não. “Essa transformação pode ser sentida com um mal-estar indefinido ou
expressar-se numa sintomatologia mais evidente” (Ramos, 2006: 55).
Como diferenciar o complexo do ego dos demais complexos? Se nos recordarmos de que a
estrutura nuclear do complexo é o arquétipo, podemos então compreender que o fundamento
do ego é o arquétipo central, o Self, ou seja, o ego é a sua expressão encarnada e consciente
no que se refere a capacidade de ordenação, regulação, adaptação e evolução.
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A identidade é definida aqui como um estado de não diferenciação da consciência e do inconsciente, em que o ego não consegue se separar
dos demais complexos. Nesse estado psicológico o indivíduo não tem liberdade para escolher de forma consciente, os elementos
impulsionadores e reativos são mais presentes e evidenciados.
do complexo egóico com os demais complexos é fundamental para ‘destronar’ a tirania do
ego na consciência, que poderia levar o indivíduo à uma ilusão de unidade e totalidade, mas
que na verdade é uma atitude unilateral, ‘egocêntrica’.
Nesta configuração, a relação tende a ser simbiótica em que o eu tem muita dificuldade
em separar-se do outro, mas que também se for bem integrada pode funcionar com uma
grande capacidade de empatia (esta capacidade é fundamental na interação das mães com seus
bebés). Daí também ser presente no funcionamento mental primário, cujo ponto de partida é a
interação profunda com a mãe em que coincide o estágio sensório-motor (Piaget, 2002) e a
posição esquizo-paranóide (Klein, 1991). É preciso lembrar que nesta fase do
desenvolvimento o bebé necessita que a mãe funcione como Self, pois este ainda não está
incorporado em sua mente.
Esta posição repete-se patologicamente no adulto, quando, por exemplo, não é capaz de
forma independente resolver seus problemas, suas decisões normalmente são baseadas nas
opiniões do outro. É muito suscetível a crítica, que por sua vez torna sua autoestima e
autoconceito (self) muito inconstante. Devido a estas características obviamente não consegue
ser assertivo, a sua tendência é ser agressivo ou vitimizado.
A relação tende a ser mais racional, extremamente separada do outro, mas que também
se for bem integrada pode funcionar com uma grande capacidade de reflexão e análise, muito
importante para compreender os processos emocionais intensos. É mais característica no
funcionamento mental secundário, cuja interação é mais hierárquica e ao extremo autoritária.
Coincide o estágio operatório concreto (irreversibilidade), (Piaget, 2002) e a posição
depressiva (Klein, 1996). Nesta fase do desenvolvimento a criança já necessita estar mais
separada da mãe, é muitas vezes lhe exigido autonomia, que já tenha internalizado o Self.
Logo, a criança começa a ter mais controlo sobre o corpo (esfíncteres) o que gera em si
sentimentos de onipotência, característico do autoritarismo. É nessa fase que a função paterna
intervém com a inserção das regras, na educação, no certo e errado e na punição. Assim, os
sentimentos de culpa e vergonha tornam-se muito mais presentes, como também os
sentimentos de perda e rejeição. O amor incondicional em função do desejo e da sensualidade
(corpo) é substituído pelo amor condicional em função da moral e do bom comportamento.
Consequentemente começa haver uma maior separação das emoções das funções cognitivas,
prevalecendo o símbolo verbal sobre o não-verbal. Por fim, há uma maior hierarquização das
relações interpessoais, da razão sobre a emoção, do eu em relação ao outro, e do masculino
em relação ao feminino.
Esta posição repete-se patologicamente no adulto, quando, por exemplo, não é capaz de
pedir ajuda e mostrar-se dependente (impotente) do outro para resolver seus problemas, suas
decisões normalmente são unilaterais, muito racionais e crítica em relação ao outro, que por
sua vez torna sua autoestima e autoconceito (self) muito inflacionado, ou seja, normalmente
sempre está acima do outro. Devido a estas características obviamente não consegue ser
assertivo, a sua tendência é ser agressivo (verbalmente) ou inibido (reprimido).
Do ponto de vista cognitivo o funcionamento é mais verbal, racional e numa lógica mais
concreta, pois ainda tem dificuldades de fazer a reversibilidade, principalmente do ponto de
vista emocional. Consequentemente subordina as funções da sensação, intuição e sentimento.
De acordo com as neurociências, é um funcionamento neurológico predominantemente do
hemisfério esquerdo, do sistema volitivo-sensório-motor e associativo cortical
(memória, atenção, consciência, linguagem, percepção e pensamento).
A relação tende a ser mais sentimental (de acordo com o conceito de Jung), com uma
grande capacidade de utilizar conscientemente a emoção e a reflexão. É mais característica no
funcionamento mental interacionista e sistêmico, com grande capacidade de compreensão dos
fenómenos em ligação, num sistema circular. Coincide o estágio hipotético dedutivo
(reversibilidade) e a posição depressiva. Esta fase do desenvolvimento é mais característico
do adulto, pois as funções parentais já estão mais integradas e equilibradas, o que por sua vez
permite uma maior integração do Self manifesta na sua grande capacidade de emancipação,
adaptação e individualidade.
O controlo sobre o corpo passa a ser substituído por comunicação com ele (interação) o
que gera em si sentimentos de integração. É nessa fase que a contrassexualidade tem maior
importância, pois o organismo impele para uma relação com o outro (não-familiar), fora do
seu âmbito familiar, logo para o novo e o diferente. E neste momento é o amor que move esta
interação, afinal as regras, princípios morais e a ética são construídos em conjunto,
democraticamente, logo não faz sentido a punição, mas sim a reparação. Assim, os
sentimentos de culpa funcionam como parâmetros primários para o desenvolvimento
secundário do perdão e da reparação, como também os sentimentos de acolhimento e
aceitação. Esta ética do amor pode ser compreendida no exemplo do amor cristão, na
democracia, nos direitos humanos, nos direitos às crianças, na preservação das espécies, na
ecologia e no princípio de igualdade dos povos e respeito ao diferente.
Como se verifica, a psicologia analítica está mais interessada em averiguar para onde a
vida de uma pessoa a está conduzindo (teleológico) combinado com as presumíveis causas de
sua situação. Essa orientação definida por Jung como ‘sintética’, significa que aquilo que
emerge do ponto de partida é que têm uma significação primária, ou seja, os fenómenos
psicológicos são considerados como se tivessem intenção e propósito, em termos de
orientação para um objetivo ou teleológica. Tal método é compatível com o ponto de vista
básico dos opostos, que, apesar de separados, tendem constantemente para a síntese ou a
procuram. Daí que as abordagens sintéticas e redutivas devem coexistir.
O método da psicologia analítica, logo que definido seu campo de investigação clínica,
a amplificação dos símbolos, permitiu aos junguianos empregar diversas técnicas que
objetivavam alargar seus significados, dentre elas a associação livre, análise de sonhos,
imaginação ativa (Jung), mitodrama (Laura Freitas), pintura, escultura (Nise da Silveira) e a
caixa de areia (Kalff). Tais técnicas visam aprofundar a comunicação na interação terapêutica,
principalmente quando o paciente tomar consciência de processos que têm dificuldades de
expressar do ponto de vista verbal.
Desse modo, a manifestação simbólica dos arquétipos, que varia conforme o contexto
histórico e cultural que o indivíduo está inserido, acontece desde o seu nível abstrato ao nível
concreto:
“O símbolo é o corpo vivo (…). Quanto mais ‘baixas’, isto é, com a aproximação dos sistemas funcionais
autônomos, tornam-se gradativamente mais coletivas, a fim de se universalizarem e ao mesmo tempo se
extinguirem na materialidade do corpo, isto é, nas substâncias químicas (...). Quanto mais arcaico e ‘mais
profundo’, isto é, mais fisiológico o símbolo, tanto mais ele é coletivo e universal, tanto mais material”
(Jung, 2002: 173).
Numa fase inicial incentiva-se o paciente para iniciar o trabalho terapêutico na caixa de
areia. A forma como isso se dá, a escolha das miniaturas, sua distribuição na caixa, a
manipulação da areia e a elaboração de um cenário, são livres e infinitas. Cada paciente tem o
seu ritmo e sua forma de reagir a essas orientações e estímulos. Ele poderá criar um cenário
que inclui miniaturas, fazer uma escultura na areia ou apenas manipular a areia, que
naturalmente assumirá formas reveladoras. Durante a construção do cenário é importante
observar e documentar as reações não-verbais, assim como as verbalizações a respeito da
mesma, especialmente aquelas que vêm espontaneamente.
A terapia da caixa de areia facilita a interação dinâmica acontecida num espaço no qual
se apresentam ao cliente estímulos facilitadores à expressão de sentimentos, valores e
fantasias; e mais, as emoções são traduzidas em imagens, propiciando-se assim também a
simbolização tridimensional dos aspectos inconscientes. Não é demais lembrar a importância
de o psicoterapeuta conscientizar-se da qualidade de relação que estabelece com suas
miniaturas, e que aspectos símbolicos que elas evocam, qualidade esta que muitas vezes
poderá se expressar nos cenários de seus clientes. A vivência desses símbolos, ou seja, sua
concretização, visualização e reconhecimento consciente, agregada à interpretação ou o
trabalho de associação e amplificação, típicos no contexto junguiano de psicoterapia, pode
possibilitar transformações.
Kalff (2003) descreve que o Self orienta o processo de individuação desde a altura do
nascimento, que por sua vez depende da qualidade das relações primárias, que se bem
sucedidas irão desenvolver um processo natural de desenvolvimento mental de acordo com as
teorias dos pós junguianos (Fordham, Neumann, Edinger, Byington). A primeira fase
relaciona-se à unidade mãe-criança, associada portanto a dimensão materna e seu amor
incondicional, em que o Self da criança está contido no Self da mãe. Normalmente o início da
terapia na caixa de areia é vivenciado em grande parte pelo cliente de forma subliminar,
vegetativa, portanto muito mais próxima destes aspectos inconscientes, cujo padrão de
funcionamento é matriarcal. Este é também um momento de gestação, nutrição e proteção, o
‘verdadeiro ego’ está em germe, logo necessita de um espaço que seja livre e ao mesmo
tempo seguro e fechado. O sistema ternário, tridimensional e os limites da caixa fornece a
segurança necessária para esse desenvolvimento. Isso sugere que dentro dessa unidade mãe-
filho, reconstituída pela terapia da caixa de areia, permitirá que logo que o ego esteja pronto,
encaminhe-se para o mundo, facilitando o processo de conscientização dos opostos, do não-
eu, transformando a caixa num objeto transicional.
A segunda fase caracteriza-se pela separação dessa unidade, coincide com a percepção
da mãe total (Klein), como também a noção de objeto permanente (Piaget), no qual o bebé
experimenta segurança e confiança na sua relação e separação da mãe ou cuidador/a. Por fim
na terceira fase, o Self se estabiliza na mente da criança e começa a manifestar-se com maior
capacidade de integração do organismo e interação social, o que implica a existência de uma
regulação e organização interna.
A observação (Kalff, 2003; Weinrib, 1993; Bradway, 1985) dos cenários produzidos na
caixa de areia, comprova que as primeiras representações dão-nos indicações dos complexos e
seus conteúdos que não foram integrados à personalidade, além de representarem temas
arquetípicos. Quanto maior for o sofrimento mental, a regressão e a imaturidade, mais a
dinâmica e as imagens apresentar-se-ão com formas caóticas, conflitivas e fragmentadas do
ponto de vista da totalidade dos símbolos expressos. Neste contexto é comum a operação
mental sensório-motora, sem organização prévia, critérios de escolha e planeamento do
cenário. A intolerância ou imaturidade mental para experimentar a ambivalência dos
sentimentos é retratada de forma parcial, dissociada, ou seja, nesta configuração mental os
cenários são assinalados pelo caráter evidente da incapacidade do sujeito em perceber a
reversibilidade e ambiguidade do objeto total.
Do ponto de vista arquetípico, significa que o arquétipo de-integrado2 materno é que irá
guiar primariamente o processo de estruturação e promoção do desenvolvimento mental. Esse
modo matriarcal de funcionamento mental, reflete processos mais profundos, arcáicos e
primários, ao invés de pensamento ou julgamento direcionados. Aliás, é de reiterar que Kalff
baseou as suas experiências clínicas no trabalho de Neumann, que sugere que a cura se
encontra no nível matriarcal da personalidade, o que significa que esse processo muitas vezes
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De-integrado é um conceito de Fordham para explicar como os demais arquétipos se discriminam do Self.
é não-verbal, não racional. O processo de caixa de areia é ao mesmo tempo: metáfora
emocional para a unidade mãe-filho, ‘espaço seguro’, cura da ferida psicológica interna,
constelação do Self, redescoberta da criança interna, potencialidade de criatividade e
renovação.
“Através da sua técnica não interpretativa e não-verbal, a caixa de areia estimula a reconstituição de uma
unidade psicológica mãe-filho, permitindo a constelação do Self e levando ao desenvolvimento de um ego
mais forte. Estimula uma regressão terapêutica ao nível matriarcal, (...) onde pode ocorrer a cura e a
renovação psicológica.” (Weinrib, 1993: 36)
Nesta fase é comum o paciente começar a estabelecer uma nova relação com a sua
mente, ao valorizar a imaginação e o seu eu interior, começa a sentir que realmente existe
nela um factor prospectivo, que por sua vez busca a cura, organização e equilíbrio. Este
processo possibilita a transformação da personalidade, normalmente expressa por uma
miniatura com a qual se identifica conscientemente e que regularmente aparece nos cenários.
Neste contexto, a atitude do paciente diante da caixa de areia se modifica, torna-se muito mais
ativa, criativa, segura, consciente, organizada e progressiva, algo que se manifesta nas sessões
mas também na sua vida de modo geral. Essa operação arquetípica (processo de
indiscriminação-elaboração-discriminação) manifesta-se na formação do ego, no seu
funcionamento, desenvolvimento e identidade, evolui com a capacidade simbolizadora do eu,
o que por sua vez diminui a carga arquetípica da vivência emocional (Byington, 1987).
Dá-se então início a uma nova fase, comumente caracterizada pela manifestação mais
evidente de miniaturas que retratam símbolos relativos à contrassexualidade, isto é, o
arquétipo relativo à alteridade, à capacidade de reversibilidade e o colocar-se no lugar do
outro, do objeto e suas características. É fundamental compreender que este processo já estava
presente desde o início, no entanto, como ainda se encontrava em fase germinal, os símbolos
manifestavam aspectos mais vegetativos e do tipo animal. Nesta etapa se alteram para figuras
humanas e até sobrenaturais (deuses, fadas, etc.).
Weinrib resume estes estágios da seguinte maneira: “ (...) parece comprovar a tese de
que a terapia na caixa de areia opera num nível profundo; que realmente reconstitui a unidade
mãe-filho, permitindo: (1) a constelação do Self, (2) o surgimento de um novo ego, e (3) a
diferenciação dos elementos sexuais” (1993: 74).
“O trabalho com as miniaturas na caixa de areia permite uma mobilidade e uma percepção mais clara do
processo mental (...). Assim sendo, este facto ocorre quando o sujeito escolhe aleatoriamente as
miniaturas das prateleiras e, em um gesto espontâneo coloca-os em uma das caixas de areia sem prévio
planeamento. Após este momento, articula mentalmente a troca de lugar das miniaturas, complementa seu
cenário com outras miniaturas, atribuindo a novos significados, antes não cogitados. A este novo esquema
mental adquirido, de ajustamento e de ‘arrumação’, damos o nome de Acomodação. (...) Posteriormente,
começa a planear suas ações, antecipar seu pensamento, realizar previamente escolhas das miniaturas e
utilizar outras estruturas mentais visíveis no cenário, como atenção, memória, percepção, etc. (…) O
processo de equilibração apresenta-se na sucessão dos estágios ou dos períodos do desenvolvimento,
expressando níveis crescentes de reversibilidade. Em cada período, o nível de equilíbrio é maior do que
aquele do período anterior, bem como a reversibilidade” (Andion, 2010: 86 -92).