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Instituto de Psicologia
Lacan:
psicanálise, ontologia e política
1
FROMM, Erich; Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stutgart: Deutsche
Verlags-Anstalt, 1980, p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações de Erich Fromm ao
Instituto de Pesquisas Sociais, ver JAY, Martin; The dialectical imagination, California University
Press, 1996
2
Daí porque Adorno lembrará: “Freud mostrou de maneira bem convincente que as forças que
assumem a função do cimento irracional de grupos, como lembrada por autores tais como Gustave Le
Bon, são atualmente efetivas no interior de cada participante do grupo e não pode ser compreendida
como entidades independentes das dinâmicas psicológicas” (ADORNO, Theodor; Vermischte
Schriften I, p. 279).
esferas de interação como a família, as instituições sociais e o Estado, fornecendo
novas bases para uma perspectiva materialista na medida que derivava
dinâmicas amplas de racionalização social das experiências materiais de
interação tendo em vista problemas de satisfação e reconhecimento.
Emancipação
Mas eu poderia começar este curso ainda de outra maneira, não apenas
lembrando que a psicanálise modificou a compreensão ocidental do que política
significa, redimensionando o escopo da crítica social ao tematizar a sociedade
inconsciente de si mesma, mas que ela nos permitiu pensar em outras bases o
processo de emancipação social. Esta é uma dimensão muitas vezes ignorada, no
entanto decisiva. A psicanálise é solidária do redimensionamento da noção de
emancipação, ao conservar a temática de uma liberdade possível, de uma crítica
possível da alienação, mas impedindo-a de ser pensada como a realização social
da autonomia da consciência. A noção psicanalítica de inconsciente nos obriga à
reformulação profunda do conceito de autonomia, reformulação a respeito da
qual ainda não medimos de forma efetiva suas consequências. Isto não poderia
deixar de trazer consequências para a noção de ação política. Pois o que é uma
ação política que não se coloca mais como ação de uma consciência, seja ela
individual ou consciência de classe? O que é uma ação política que não pode mais
apelar a conceitos de deliberação racional tal como entendemos este conceito até
agora?
Insistir na existência de uma reflexão psicanalítica sobre as condições de
emancipação social significa recusar a noção, muito presente entre nós, de que a
psicanálise freudiana poderia, no máximo, nos fornecer uma visão deceptiva da
vida social. Se há emancipação possível, ela deve se realizar como instauração de
laços sociais que possam dar conta de expectativas de liberdade. O que significa
recusar a ideia de que só seria possível pensar laços sociais a partir das
exigências de contenção possível de uma violência imanente à vida comum. Por
exemplo, creio que vocês todos conhecem afirmações como:
O ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo
pode se defender quando atacado, mas ele deve sim incluir, entre seus
dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em
consequência disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível
colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a
tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para
dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu
patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-
lo. Homo homini lupus3.
3FREUD, Sigmund; O mal-estar na civilização, São Paulo: Companhia das Letras, pp. 76-77.
Lembremos ainda do tom claramente hobbesiano da descrição da violência do “estado de
natureza” que leva Freud a afirmar: “a principal tarefa da cultura, sua razão própria de existência,
consiste em nos defender contra a natureza” (FREUD, Sigmund; Der zukunft einer Illusion, In:
Gesammelte Werke XIV, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 336)
vínculo social só poderia se constituir a partir da restrição a esta crueldade inata,
a esta agressividade pulsional que parece ontologicamente inscrita no ser do
sujeito. Desta forma, uma “hostilidade primária entre os homens” seria o fator
permanente de ameaça à integração social. O que teria levado alguém como
Derrida a afirmar que “se a pulsão de poder ou a pulsão de crueldade é
irredutível, mais velha, mais antiga que os princípios (de prazer ou de realidade,
que são no fundo o mesmo, como gostaria eu de dizer, o mesmo na diferença)
então nenhuma política poderá erradicá-la”4. Tal crueldade não pareceria ser
completamente maleável de acordo com transformações sociais. Daí porque
Freud dirá: “Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor,
desde que restem outras contra as quais se exteriorize a agressividade”5. Ou seja,
os vínculos cooperativos baseados no amor ou em alguma forma de
intersubjetividade primária só seriam realmente capazes de sustentar relações
sociais alargadas à condição de dar espaço à constituição de diferenças
intoleráveis alojadas em um exterior que será objeto contínuo de violência. Tais
vínculos de amor permitiriam a produção de espaços de afirmação identitária a
partir de relações libidinais de identificação e investimento. Mas a constituição
identitária seria indissociável de uma regulação narcísica da coesão social, o que
explica porque Freud fazia questão de lembrar que “depois que o apóstolo Paulo
fez do amor universal aos homens o fundamento de sua congregação, a
intolerância extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornou-
se uma consequência inevitável” 6 . Não é difícil compreender como tal
exteriorização da agressividade, assim como toda e qualquer aceitação de
restrições pulsionais só poderá ser feita apelando ao medo como afeto político
central. Medo do exterior, do poder soberano, da despossessão produzida pelo
outro ou ainda da destruição produzida por si mesmo.
Neste ponto, Freud poderia parecer prisioneiro de um certo núcleo
metafísico da política, presente nesta forma de radicalizar a irredutibilidade da
violência como constante antropológica. Podemos falar em “núcleo metafísico”
porque a violência irredutível das relações interpessoais, além de ser elevada a
paradigma intransponível do político, pareceria fadada a só se realizar de uma
forma, a saber, como experiência da vulnerabilidade diante da agressividade
vinda do outro. Tal invariabilidade das figuras da violência parece expressão de
uma certa crença metafísica na essência intransponível das relação humanas.
No entanto, esta leitura é errada e não faz jus àquilo que a psicanálise
produziu de pontencialidades a respeito de uma teoria da emancipação. Pois há
de se lembrar que a psicanálise não é apenas uma crítica social, ela é uma
reflexão sobre as possibilidades de emergência de corpos políticos capazes de
bloquear os sistemas de alienação e suas formas de sofrimento social. Eu diria
que sem este horizonte em vista não é possível entender o sentido de textos
como Moisés e o monoteismo, Por que a guerra? Ou O futuro de uma ilusão.
4 (DERRIDA, Jacques; Estados de alma da psicanálise, Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 34)
5 FREUD, Der Zukunft einer Illusion, p. 81
6 FREUD, O mal-estar na civilização, op. cit. p. 81
de insistir que esta dupla tarefa política da psicanálise será um dos eixos
principais do desenvolvimento da experiência intelectual de Jacques Lacan, ela
pode nos fornecer o sentido de elaborações clínicas maiores de Lacan.
O destino das consequências políticas do pensamento lacaniano é algo
que está longe de ser estabelecido sem problematizações. Críticas significativas
foram desenvolvidas por leitores de Lacan como Guattari, Deleuze, Foucault,
Derrida, Castoriadis, entre outros. No entanto, eu gostaria de insistir que tais
críticas erram de alvo e que uma leitura atenta dos textos pode nos mostrar uma
outra imagem do pensamento.
Para tanto, neste curso, gostaria de desenvolver quatro eixos de
organização das relações entre psicanálise e política a partir da obra de Jacques
Lacan. Tais eixos respondem por problemas constitutivos da experiência política
e já foram, cada um a sua maneira, elaborados ou criticados por teóricos e
filósofos que se confrontaram com a obra lacaniana. No entanto, gostaria de
insistir que, a meu ver, todos esses eixos encontram-se ainda subaproveitados
em suas potencialidades imanentes. Eles carecem ainda de maior sistematização.
Estes eixos visam dar conta do que poderíamos chamar de “os quatro
conceitos fundamentais da política a partir da psicanálise lacaniana”. Eles
acabam por cobrir, à sua maneira, problemas centrais para a teoria política
como: a questão da emergência e da mobilização, da crítica da situação e da
organização. Os conceitos são: identificação, ato, gozo e reconhecimento. A sua
maneira, eles desdobram o campo organizado por aquilo que Lacan chamou de
“os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, a saber: a transferência, a
repetição, o inconsciente e o objeto a.
O primeiro eixo que gostaria de analisar com vocês diz respeito a uma
teoria das identificações políticas que se desdobra em uma concepção sobre
modalidades de instauração de corpos políticos. Neste eixo, encontramos
inclusive reflexões sistemáticas sobre processos de organização política
advindos das exigência que Lacan se impôs de constituir um vínculo social
renovado através da transformação do problema da comunidade de analistas em
um problema interno à clínica, isto ao constituir a Escola Freudiana de
Psicanálise. O que de fato produziu problemas suplementares dificilmente
resolúveis.
Lacan parte de um diagnóstico social referente àquilo que ele chama de
“declínio da imago paterna” e dos efeitos sociais que tal declínio produziria.
Como gostaria de mostrar já na aula que vem, longe de estarmos diante um
tópico social vinculado ao colapso das autoridades tradicionais devido ao
processo de modernização social e a potencial anomia que tal desregulação das
normas sociais produziria (como vemos, por exemplo, em Durkheim), tópico
articulado normalmente com demandas de instauração de um institucionalismo
forte, temos em Lacan uma reflexão original vinculada à consciência do advento
de uma era histórica na qual o declínio da imago paterna não equivalerá à
liberação dos sujeitos de estruturas patriarcais fortemente normativas, mas à
consolidação de outra forma de sujeição social vinculada à redução das relações
sociais às formas imaginárias do conflito, da agressividade e da rivalidade
narcísica.
A promessa de liberação advinda do fim da sociedade patriarcal não se
realizou, é o que diz Lacan. Na verdade, nós já viveríamos em uma sociedade sem
pais, pois as figuras paternas estariam necessariamente reduzidas à condição de
rivais narcísicos. Sociedades nas quais o verdadeiro pai só pode ser um pai
morto. O que produz um efeito social de generalização do narcisismo como
estrutura de defesa contra a fragilidade do Eu em uma situação na qual as
identificações simbólicas tendencialmente não conseguem operar enquanto tais.
Antes da temática das sociedades narcísicas tomar conta da sociologia dos anos
sessenta, Lacan apontava para um problema estruturalmente semelhante como a
verdadeira forma de reprodução social das sociedades capitalistas
contemporâneas, sem ter que referendar a crítica ao hedonismo que muitas
vezes acompanham tais críticas, transformando-as muitas vezes em críticas
morais do capitalismo.
Há de se salientar ainda que a compreensão lacaniana do narcisismo
generalizado apontava para dois fenômenos sociais fundamentais. Primeiro, a
submissão dos sujeitos a um tipo de injunção superegóica não mais vinculada à
repressão advinda de figuras paternas de autoridade, mas a uma demanda
indeterminada de satisfação que só poderia levar ao colapso depressivo da
capacidade individual de ação. Segundo, a possibilidade de produção
generalizada de demandas por figuras superegóicas de autoridade em clara
chave autoritária.
Isto mostra como tal economia psíquica trará consequências maiores para
o campo político. A sua maneira, Lacan tentará lidar com elas desde seu texto de
1947 “A psiquiatria inglesa e a guerra” no qual saúda o experimento de Bion e
Rickmann a respeito de grupos sem chefe. Em uma era de declínio da imago
paterna, sua aposta parece caminhar em direção à possibilidade não de
fortalecimento das figuras paternas de autoridade, mas de constituição de laços
sociais a partir da identificação a um lugar vazio, algo que de certa forma
veremos se realizar com um filósofo político leitor de Lacan, a saber, Claude
Lefort. O mesmo Lefort que tentará desenvolver uma teoria da democracia a
partir de uma apropriação das distinções lacanianas entre os registros do
simbólico e do imaginário. Daí afirmações como:
O terceiro eixo, talvez o mais discutido pela fortuna crítica, nos fornece
uma crítica da economia libidinal do capitalismo através do uso extensivo de um
conceito de gozo forjado na relação entre psicanálise freudiana e teoria social de
Georges Bataille (de onde o conceito realmente vem). Lacan acredita que a crítica
social do capitalismo deve estar inicialmente atenta às formas de incitação
libidinal necessárias à reprodução das formas sociais. A compreensão das
articulações entre instauração da vida psíquica e modos de sujeição social
passam, no caso de Lacan, por uma dinâmica que não é legível através dos
problemas ligados aos destinos dos processos repressivos, mas aos modos de
expropriação das experiências de gozo.
Na verdade, Lacan parte inicialmente da perspectiva batailleana relativa à
compreensão dos processos de reprodução material da vida sob o capitalismo
através da elevação dos princípios utilitaristas de maximização do prazer e de
afastamento do desprazer. Em Bataille, tal tópica servia para lembrar que o
capitalismo deveria procurar eliminar do horizonte da vida social todos estes
fatos totais que não poderiam ser pensados através da estrutura calculadora do
prazer, em especial o erotismo e o sagrado. Pois sagrado e erotismo seriam fatos
sociais motivados pelo gozo, não pelo prazer.
Esta distinção entre prazer e gozo será transposta para o interior da
teoria psicanalítica por Lacan, principalmente a partir do Seminário VII, sobre a
ética da psicanálise. Na ocasião, Lacan fará uma importante elaboração a respeito
da experiência analítica como uma prática dirigida por uma ética que, no
entanto, não promete forma alguma de adaptação possível entre virtudes
privadas e virtudes públicas nas condições atuais. “Il n’y a aucune raison que
nous nous fassions les garants de la rêverie bourgeoise”11. Nas condições atuais,
a realização do gozo só pode se dar de forma disruptiva em relação às exigências
de auto-conservação dos indivíduos. No entanto, ele é abertura para a
possibilidade de realização de ações que não se mesurem mais ao princípio do
prazer. Desta forma, a existência de um para-além do princípio do prazer ganha
em Lacan uma dimensão ética que não existia em Freud.
Esta crença na força disruptiva de experiências de gozo, no entanto, terá
que lidar com uma economia libidinal própria ao capitalismo, que não se baseia
apenas na repressão do gozo e afirmação do prazer, mas na espoliação do gozo
no interior de uma lógica de reprodução de sua desmedida, mas no interior da
lógica de produção do valor. O capitalismo não apenas codifica nossos desejos,
ele nos espolia de nosso gozo. Com isto, Lacan cria uma teoria da economia
libidinal do capitalismo no qual os processos de socialização não serão mais
pensados sob a forma da repressão, mas da incitação contábil, da eliminação da
força disruptiva do gozo através da própria colonização do gozo.
Esta racionalidade própria a uma sociedade organizada a partir da
circulação do que não tem outra função a não ser se auto-valorizar, que
determina as ações dos sujeitos a partir da produção do valor, precisa socializar
o desejo levando-o a ser causado pela pura medida da intensificação, pelo puro
empuxo à ampliação que estabelece os objetos de desejo em um circuito
incessante e superlativo chamado por Lacan de mais-gozar. Assim é possível
afirmar que “subjetivação ‘contábil’ e subjetivação ‘financeira’ definem em última
análise uma subjetivação do excesso de si sobre si ou ainda pela ultrapassagem
indefinida de si”12. Esta estrutura psíquica, cujo desejo é causado pela pura
medida da intensificação, pede uma economia psíquica não mais assentada em
um supereu repressivo, mas em um supereu que eleva o gozo à condição de
imperativo transcendente, impossível de ser encarnado sem destruir sua própria
encarnação, o que Lacan compreendeu muito bem através de sua teoria do
supereu como injunção contínua ao gozo13.
Como se trata, porém, de uma lógica contábil e financeira, em momento
algum o excesso deve colocar em questão a normatividade interna do processo
capitalista de acumulação e desempenho. Em momento algum o excesso implica
quebra das ilusões de autonomia que orientam os indivíduos empresariais em
suas relações por propriedade. Pois este é um excesso quantitativo que não se
transforma em modificação qualitativa. Ao contrário, todo excesso é
financeiramente codificável, é confirmação do código previamente definido14.
Como diria Hegel a respeito de outros fenômenos, esse excesso é marca de uma
má infinitude, pois não passa ao infinito verdadeiro do que muda sua própria
forma de determinação a partir de si, do que é infinito por realizar-se
produzindo paradoxalmente a exceção de si. Uma exceção que, ao ser integrada,
modifica processualmente a estrutura da totalidade anteriormente pressuposta.
Antes, ele é o infinito ruim do que é sempre assombrado por um para além que
nunca se encarna, para além cuja única função é marcar a efetividade com o selo
conceder a cada um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar
riscos” (FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 198)
da inadequação, do gosto amargo do “ainda não”. A sua maneira, Lacan nos
lembra que a análise do capitalismo sempre precisou de uma teoria dos dois
infinitos. Os destinos do gozo só podem ser pensados no interior de uma teoria
dos dois infinitos.
Para tanto, trabalharemos sessões dos Seminários VII, A ética da
psicanálise, e XVII, O avesso da psicanálise. Neste ponto, gostaria de retomar as
críticas de Foucault à “desqualificação dos prazeres” feita por Lacan e de
Deleuze/Guattari a sua teoria do capitalismo.
Por fim, o último eixo de reflexão sobre a relação entre política e psicanálise em
Lacan diz respeito à forma com que ele tematiza práticas de organização. A partir
de 1964, são vários os textos nos quais Lacan se confronta com problemas de
organização na qual seria necessário pensar a possibilidade de constituição de
laços sociais em situações nas quais a travessia da fantasia teria se realizado.
Uma organização que, por isto, deveria ser capaz de fazer circular a angústia, e
não se defender dela, que deveria ser capaz de afirmar o desamparo, e não
construir representações superegóicas que visam realizar promessas de amparo.
Ou seja, há principalmente uma pergunta a respeito do circuito de afetos
próprios a organizações e grupos que queiram ser espaços de atos analíticos, o
que poderia ser uma matriz para a compreensão de grupos capazes de realizar
expectativas de emancipação.
No entanto, a prática de organização de Lacan termina sob a égide de um
fracasso representado pelo autodissolução de sua Escola. O eixo da explosão de
sua Escola foi, de forma sintomática, a tentativa de reintroduzir algo dos
processos de comunicação e intersubjetividade através da noção de “passe”. Eu
gostaria de terminar o curso pensando as dimensões políticas deste fracasso a
fim de compreendermos o que ele nos diz, quais os desafios que ele nos deixa
para uma teoria geral de grupos e organizações. Principalmente, em que
condições poderemos pensar a inscrição comum da posição de sujeitos. Esta será
uma maneira de demonstrar a necessidade de conservar, no interior do
pensamento lacaniano, a temática do reconhecimento como horizonte normativo
de realização de demandas políticas.
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 2
15 Neste sentido, a leitura mais conhecida é de ZAFIROPOULOS, Mark; Lacan et les sciences
sociales
16 DURKHEIM, Emile; Le suicide, Paris: PUF, 2005, p. 275
sofrimento que o declínio da imago paterna, ao menos segundo Lacan,
produziria. Primeiro, há de se notar como tal declínio é produzido por aquilo que
poderíamos chamar de “quebra das consequências da contração da família
paterna (a família extensa normalmente submetida à autoridade do pai) na
figura da família conjugal (apenas pai, mãe e filhos)”. A principal consequência
da quebra das consequências de tal contração será a perda da produtividade de
certa antinomia. Pois esta família conjugal, encarnada entre nós na família
burguesa possui uma antinomia de funções no eixo paterno. A este respeito,
lembremos como, para o pai da família conjugal, convergem duas funções
imediatamente contraditórias, a saber, a repressão (ele inibe a função sexual de
forma inconsciente através do supereu) e a sublimação (ele preserva a função
social através do ideal do eu). O pai é aquele, ao mesmo tempo, responsável pela
determinação social dos ideais e pelas relações de rivalidade sexual no interior
da estrutura do complexo de Édipo. Apesar de insistir, contrariamente a Freud,
na necessidade de distinguir claramente o que é da ordem do supereu, com suas
injunções fantasmáticas, da ordem do ideal do eu, com suas funções de
transmissão simbólica de identificações, apesar de recusar a estratégia de
psicanalistas como Ferenzci de diferenciar um supereu saudável de um supereu
patológico, Lacan entende que a sobreposição da contradição na figura paterna
tem uma função maior na maturação psíquica. Pois:
17 Idem, p. 59
princípio de estaticidade em tais sociedades devido à ausência de uma
contradição produtiva no nível dos processos sociais de identificação. O que lhe
leva a afirmar: “quão forte o ímpeto de sublimação está dominado pela repressão
quando essas duas funções estão separadas”18.
Assim, e esta seria uma espécie de vantagem da família conjugal para
Lacan, ao produzir uma antinomia ligada à figura paterna, a família burguesa se
apoiaria em uma determinação contraditória. Pois o pai é o lugar de uma
contradição que permitiria ao sujeito fazer da contraposição ao próprio pai a
contraposição à lei. Por isto, Lacan deve afirmar: “é por crises dialéticas que o
sujeito se cria, ele mesmo e seus objetos”19. Tais crises dialéticas são descritas
como subversões: “Por encarnar a autoridade na generalidade a mais vizinha e
sob uma figura familiar, a família conjugal coloca tal autoridade ao alcance
imediato da subversão criadora”20.
Ou seja, a peculiaridade da posição de Lacan vem do fato dele afirmar que
a família conjugal é aquela que permite identificações que subvertem, vínculos à
Lei que transgridam a própria Lei. Assim, a função da lei paterna é permitir a
subversão das autoridades constituídas em nome de um ideal que nunca se
encarna completamente. Pois ao encarnar a Lei na figura familiar mais próxima,
a família conjugal incita a transgressão da Lei, mas paradoxalmente em nome da
própria Lei, já que as relações de rivalidade fazem com que o pai seja percebido
sempre não estando à altura das injunções da função paterna. O que explica
porque: “os ideólogos que, no século XIX, levaram contra a família paternalista as
críticas as mais subversivas não são os que menos tem a influência desta mesma
família”21.
Notem que esta antinomia relativa à figura paterna é possível porque
Lacan partem de um pressuposto central, a saber, há uma espécie de
transcendência da lei que impulsiona os sujeitos a transgredirem as encarnações
empíricas da lei. No entanto, esta transcendência é, de forma paradoxal, uma
espécie de transcendência negativa. Ou seja, a lei social não é caracterizada pelo
conjunto positivo de normas e regras que ela enuncia, mas pela inadequação que
ela produz em relação aos seus portadores. Esta inadequação é fundamental para
que a socialização não seja uma simples conformação a normas, mas uma
possibilidade de entrar em dinâmicas individualizadoras de subversão criadora.
Este ponto é decisivo no argumento de Lacan. De certa forma, a Lei
funciona bem quando ela não legifera, mas quando simplesmente autoriza o
conflito em relação a seu próprio sentido. Neste sentido, quando Lacan afirma
que a “grande neurose” contemporânea expressa o fato da personalidade do pai
ser sempre “ausente, humilhada, dividida ou postiça”, provocando com isto uma
carência capaz de: “tanto secar o ímpeto instintivo quanto tarar a dialética da
sublimação”22, não se trata de defender que a cura da neurose estaria no
fortalecimento do caráter normativo da lei paterna. Na verdade, e este me parece
o ponto realmente importante aqui, Lacan compreende que não se trata
simplesmente de um “declínio” da autoridade, mas de uma eliminação da
18 Idem, p. 57
19 LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 59
20 Idem,
21 Idem, p. 60
22 Idem, p. 61
transcendência. O pai é humilhado na contemporaneidade porque ele se reduziu
a ser apenas um rival.
Isto leva sujeitos ao fortalecimento de formas de compensação da
ausência da transcendência através da consolidação do narcisismo. Pois a
redução da lei à figura das demandas do rival, das demandas do outro que está
na mesma posição que eu mesmo, reduzem toda autoridade à expressão de
representações superegóicas que visam mascarar impossibilidades de amparo.
Uma autoridade superegóica se sustenta por sustentar relações de demanda de
amparo. Não haverá assim internalização de ideais, haverá apenas a
internalização de figuras superegóicas que se servirão da fragilização narcísica
dos indivíduos, produzindo identificações imaginárias visando reforçar um Eu
enfraquecido, reduzindo assim todo conflito à forma de um atentado à
integridade narcísica e fazendo de toda afirmação uma afirmação narcísico-
identitária.
Este diagnóstico lacaniano estará presente em várias outras análises
sociais que procuraram mobilizar a psicanálise para compreender fenômenos de
regressão social. Por exemplo, em seus estudos sobre a ascensão do fascismo,
Theodor Adorno falará da especificidade do líder fascista. Pois estamos diante:
“do alargamento da própria personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si
mesmo, ao invés da imagem de um pai cujo papel durante a última fase da
infância do sujeito pode bem ter decaído na sociedade atual” 23. Adorno explora
tal traço ao afirmar que “uma das características fundamentais da propaganda
fascista personalizada é o conceito de ‘pequeno grande homem’, uma pessoa que
sugere, ao mesmo tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais um do
povo, um simples, rude e vigoroso americano, não influenciado por riquezas
materiais ou espirituais”24. Pois as identificações não são construídas a partir de
ideais simbólicos. Elas são basicamente identificações narcísicas que parecem
compensar o verdadeiro sofrimento psíquico do “declínio do indivíduo e sua
subsequente fraqueza”25, um declínio que não é apenas apanágio de sociedades
abertamente totalitárias. Isto talvez explique porque este “mais um do povo”
possa ser expresso não apenas pela simplicidade, mas às vezes pelas mesmas
fraquezas que temos ou que sentimos, pela mesma revolta impotente que
expressamos26.
Neste sentido, Adorno é um dos primeiros a compreender a
funcionalidade do narcisismo enquanto modo privilegiado de vínculo social em
uma sociedade de enfraquecimento da capacidade de mediação do eu,
adiantando em algumas décadas problemas que levarão às discussões sobre a
27 A respeito do narcisismo como modo de vínculo social hegemônico nas sociedades liberais, ver
EHRENBERG, Alain; La société du malaise: le mental et le social, Paris: Odile Jacob, 2010
28 MITSCHERLICH, Alexander; Auf dem Weg zur vaterlosen Gesellschaft, In: Gesammelte Schriften,
30 Idem, p. 101
encaminha cada “caso” confiado a seus cuidados: retorno a sua unidade,
reenvio à vida civil ou perseverança na neurose31.
31 Idem p. 109
32 Idem, p. 111
33 Idem, p. 120
psíquica das formas de autoritarismo que a Europa conheceu inicialmente na
Segunda Guerra. É contra formas de manejo combinado de imagens e paixões
que certamente crescerá no século XX que Lacan irá procurar inicialmente
insistir na estratégia de conservar o lugar do poder vazio de toda identificação
imaginária possível. A política emancipa quando ela nos leva a nos
identificarmos com um lugar vazio.
A dimensão clínica
Este lugar que nós procuramos apreender, definir, coordenar, que nunca foi
identificado até agora em seu desdobramento ultra-subjetivo, é o lugar
central da função pura do desejo34.
Este desejo puro foi um dispositivo que serviu durante um certo tempo
como orientação para o desejo do analista. Lembremos de afirmações como: "o
lugar puro do analista, enquanto podemos defini-lo no e pelo fantasma, seria o
lugar do desejante puro"35. A posição deste desejo puro parece abrir o espaço a
uma liberação possível dos sujeitos que define certos caminhos para a
emancipação.
A respeito do desejo puro, notemos que, na teoria lacaniana, a
característica principal do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural
de objetificação. Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de
nomeável"36. Aqui, escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que
tentava costurar o ser-para-a-morte heideggeriano à Begierde hegeliana a fim de
afirmar que a verdade do desejo era ser “revelação de um vazio” 37, ou seja, pura
negatividade que transcendia toda aderência natural e imaginária. Um desejo
incapaz de se satisfazer com objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade
imediata de realização fenomenal. Mas por que esta pura tendência que insiste
para além de toda relação de objeto transformou-se em algo absolutamente
incontornável para Lacan? Nós podemos fornecer aqui uma explicação geral.
Lacan desenvolveu uma teoria da constituição dos objetos a partir
sobretudo de considerações sobre o narcisismo. Neste momento do pensamento
lacaniano, tanto os objetos quanto os outros indivíduos empíricos são sempre
projeções narcísicas do eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos
do mundo empírico. De onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas
as relações de objeto, assim como a necessidade de atravessar este regime
O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser propriamente
dita. Não se trata de falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual o
ser existe42.
Neste caso, esta estranha falta que não é disto ou daquilo é o próprio regime de
experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo. Transcendental
porque a falta-a-ser é uma condição a priori de constituição do mundo dos
objetos do desejo humano. Podemos falar aqui de a priori porque a falta não
seria derivada de nenhuma perda empírica. Para Lacan, não há nada parecido a
uma origem empírica do desejo. O que explica por que Lacan parece tentar fazer
uma verdadeira ' dedução transcendental' do desejo puro. Contrariamente a
Freud, ele não identifica a causa da falta à perda do objeto materno produzida
38 LACAN, S I, p. 197
39 LACAN, S II, p. 130
40 "Nós consideramos o narcisismo como a relação imaginária central para a relação interhumana
43 Podemos seguir aqui uma afirmação de Bernard Baas: "Pois, ao mostrar que o pensamento de
Lacan é trabalhado pelo procedimento do questionamento transcendental, tal interpretação
permite também dar conta do sentido propriamente crítico do ´retorno à Freud´, já que ele
explicita como ilusão transcendental o mito no qual a psicanálise sempre ameaçou recair e contra
o qual Lacan nunca cessou de se opor. Trata-se do mito da origem perdida, o mito da experiência
originária de gozo, ou seja, o mito da empiricidade da Coisa " (BAAS, De la chose à l'objet,
Louvain: Peeters, 1998, p. 32). Podemos encontrar um exemplo do que pode dar uma leitura
´realista´ do desejo lacaniano nesta afirmação de Judith Butler: "Para Lacan, o sujeito vem a
existência somente através do recalcamento originário dos prazeres incestuosos pré-individuais
com o corpo materno (agora recalcado)" (BUTLER, Gender trouble, New York: Routledge, 1999,
p. 57)
44 LACAN, AE, p. 211
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 3
Problemas de transferência
50 ESQUIROL, Des étabilssements consacrés aux aliénés em France et des moyens d´améliorer le sort
de ces infortunés apud FOUCAULT, O poder psiquiátrico, pp. 11-12
51 TARDE, Les lois de l´imitation, p. 12
52 idem, p. 84
53 idem, p. 86
54 idem, p. 87
será aquele capaz de colocar-se como sujeito suposto saber, saber a respeito da
verdade do meu desejo. O que Tarde não está longe de aceitar ao dizer:
“Obedecer alguém não é sempre querer o que ele quer ou parece querer?” 55. Tal
relação de hipnose social baseada em relações assimétricas de prestígio poderia
nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a passividade imitativa do ser social”.
Uma passividade que o leva mais tarde a dizer que a “sociedade é a imitação e a
imitação é uma espécie de sonambulismo”56.
Sujeitos e objetos
Fiz esta digressão porque gostaria de pedir a vocês para terem tais
debates em mente a fim de entender porque uma discussão sobre a estrutura da
transferência ocupa lugar tão central em um texto de Lacan dedicado ao
funcionamento de uma organização. A transferência é indissociável de uma
reflexão sobre o destino de relações políticas ligadas a autoridade e à força de
sugestão. Não por outra razão, a posição do analista em transferência é
caracterizada por uma relação de poder descrita por Lacan como: “sujeito
suposto saber”.
Mas antes de discutir este ponto, lembremos como como Lacan necessita
afirmar que a existência da transferência produz uma objeção clara à noção de
intersubjetividade. Entre transferência e intersubjetividade há uma relação de
refutação. Esta é uma afirmação importante, já que a noção de intersubjetividade
foi, ao menos até o começo dos anos sessenta, o eixo principal da racionalidade
do processo analítico para Lacan. Dentre tantas afirmações, lembremos de como
Lacan dizia: ““O sujeito começa a análise falando de si sem falar a você, ou
falando a você sem falar de si. Quando ele for capaz de falar de si a você, a análise
estará terminada”57. Ou seja, neste momento, o final de análise está relacionado à
emergência de uma relação intersubjetiva de reconhecimento entre sujeitos. No
entanto, o eixo da transferência não se encontra em uma relação de
reconhecimento entre sujeitos, mas entre sujeito e objeto. A transferência não se
realiza em uma relação de reconhecimento entre sujeitos, este é um ponto
central que merece ser salientado. Ela se realiza em uma relação de
reconhecimento entre sujeito e um objeto que causa seu desejo.
Isto explica porque Lacan inicia lembrando que a transferência não é
exatamente uma relação entre dois sujeitos mas entre um sujeito e um sujeito
suposto saber. “O sujeito suposto saber é para nós o pivô a partir do qual se
articula tudo o que é da ordem da transferência”58. Há um Outro, que define o
lugar do analista, caracterizado por ser efeito de uma suposição e por ser suporte
de uma expectativa de saber. Na transferência, o Outro aparece como capaz de
um saber sobre a verdade do desejo do sujeito. Ou seja, a suposição em questão é
crença na associação entre saber e verdade, entre articulação significante, com
sua possibilidade de inscrição simbólica do desejo e de seu objeto, e experiência
de verdade. Esta crença é uma espécie de efeito de estrutura, ou seja, efeito da
capacidade do analista ocupar certos lugares, ouvir a partir de certos lugares
manejar certos sistemas de repetição. O que explica porque Lacan afirma: “Um
55 idem, p. 97
56 idem, p. 97
57 LACAN; E, p. 373
58 LACAN, Autres écrits, p. 248
sujeito não supõe nada, ele é suposto. Suposto pelo significante que o representa
para um outro significante”59. Neste sentido, o processo analítico poderá ser
descrito como uma dessuposição de saber. Dessuposição esta que não afetará
simplesmente a figura imaginária específica do analista, mas a estrutura
significante que o supõe. O que pode começar a nos auxiliar a entender o que tal
dessuposição pode realmente significar, quais são seus efeitos esperados.
Lacan então recupera sua leitura de O Banquete, de Platão, a fim de falar
da especificidade do processo transferencial. Como vocês sabem, esta havia sido
a estratégia principal do seminário VIII, dedicado exatamente à transferência. De
certa forma, a leitura de Lacan faz de Sócrates o primeiro analista, assim como
faz da resposta de Sócrates ao desejo de Alcebíades a primeira lição de manejo
da transferência que teríamos conhecido.
Notemos, inicialmente, como esta escolha tem uma clara conotação
política. Nos diálogos de Platão, Alcebíades não é apenas aquele que não sabe
como governar a si mesmo. Ele é aquele espera poder governar a pólis, governar
os outros. De certa forma, Sócrates é aquele que tenta mostrar a Alcebíades como
ele não será capaz de governar a cidade enquanto não for capaz de governar a si
mesmo. No entanto, o governo de si neste contexto não se confunde, ao menos
para Lacan, com uma dominação de si com suas dinâmicas de controle. Na
verdade, podemos mesmo dizer que governar a si mesmo é indissociável da
capacidade de reconhecer: “este resto que como determinando a divisão do
sujeito, o faz decair de seu fantasma e o destitui como sujeito”60. Se Sócrates
mostra algo a Alcebíades é como não haverá governo de si enquanto ele não for
capaz de confrontar com o objeto que causa seu desejo, mas confronta-lo em um
ponto no qual tal relação ao objeto se constitui em um campo onde o fantasma
decaiu e o próprio sujeito foi destituído.
Por isto, Lacan insiste na maneira com que Sócrates afirma que
Alcebíades se engana a respeito de seu desejo, pois apesar de suas
demonstrações e louvores não é exatamente ele, Sócrates, que Alcebíades deseja,
mas os agalmatas que ele porta. O que Sócrates faz pois é uma operação de
separação, na medida em que ele tenta mostrar a Alcebíades uma distância entre
I e a, entre o ideal do Eu e o objeto que o sustenta. Ao expor tal distância,
Sócrates produz uma espécie de curto-circuito no sistema de identificações que
sustentava a posição de Alcebíades, já que o ideal do Eu não aparece mais, como
aparecia outrora, como o ponto de transcendência necessário à afirmação da
emancipação em relação aos objetos imaginários. Ele aparece como uma
vestimenta que sustenta o sujeito por impedi-lo de se confrontar com um objeto
sem lugar que, no entanto, nos causa e nos constitui.
Antes de continuar, lembremos algumas considerações importantes
sobre esta noção de agalma. Há várias maneiras de introduzi-la, mas talvez
poderíamos apreender algo importante de sua dimensão se partirmos de uma
afirmação de Lacan como:
Não sei porque, após ter dado uma conotação tão pejorativa ao fato de
considerar o outro como objeto, nunca se tenha notado que considerá-lo
como um sujeito não é melhor (...) se um objeto equivale a outro, para um
59 Idem, p. 248
60 Idem, p. 249
sujeito a situação é bem pior. Pois um sujeito não vale simplesmente por
um outro – um sujeito, de maneira estrita, é um outro. Um sujeito
estritamente falando é alguém a quem podemos imputar o que? Nada
mais do que ser como nós (...) do que poder entrar em nosso cálculo como
alguém que opera combinações como nós (LACAN, 2001, pp. 178-179).
Não por acaso, esta afirmação está no Seminário VIII. Lacan afirmarque
ser objeto no amor não é, necessariamente, ser submetido à vontade de um
sujeito, mas pode significar simplesmente ser objeto para outro objeto. Ou seja, a
reflexão sobre o amor ( e há de se lembrar que a transferência é uma espécie de
“amor de laboratório”) mostra a Lacan a possibilidade da existência de relações
construídas através da circulação do “que não entra em nosso cálculo como
alguém que opera combinações como nós”. Na citação acima, é claro que a
dimensão comum do “como nós” aparece como espaço de sobreposição
narcísica. Como se não houvesse “como nós” capaz de ser outra coisa que
imposição identitária de sujeição. O que nos levaria a afirmar a sujeição própria à
tentativa de “amar o outro como a si mesmo”. Para Lacan, isto significa que, se
algo como o amor é possível, então não será o amor do que é “como nós”,
pessoas, mas como o que é nosso avesso, objetos. Esta é uma maneira de dizer
que o amor não é apenas abertura à alteridade de uma outra pessoa, que no
fundo seria “como nós”. Ele é abertura a uma alteridade mais radical, pois
abertura àquilo que, em nós, nos destitui da condição de pessoas.
Neste sentido, é compreensível que Lacan descreva tais objetos que
constroem relações amorosas como agalmata. Lendo O banquete, de Platão,
Lacan percebe como Alcebíades apaixona-se pelos agalmata que Sócrates porta.
O termo grego implica a noção de objetos que portam valor e “exprime na
maioria das vezes uma ideia de riqueza, mas especialmente de riqueza nobre”61.
Apaixonar-se pelos agalmata é ser tocado por aquilo que, em Sócrates, age à sua
revelia, longe de sua deliberação consciente, pois se configuram como objetos
dotados da capacidade indutora de operar transferências de valor, como se fosse
o caso de objetos que, por vias próprias, impõem relações de transposição de
afetos e atitudes a sujeitos. Como se, no amor, fossem os objetos que agissem,
não os sujeitos. Apaixonar-se pelos agalmata é, assim, reconhecer que, no amor,
os objetos agem à revelia dos sujeitos, portando relações sociais à sua revelia.
Neste sentido, há de se lembrar que tais objetos a pensados como
agalmata operam incorporações, mas tais incorporações não são representações
personalizadas que determinam totalidades, o que apenas a imagem do corpo
próprio poderia fazer. Por indicar o modo de vínculo ao Outro que deve ser
continuamente negado para que a autonomia do Eu e sua identidade corporal
possam se afirmar, tais objetos só podem incorporar o que se põe na
irredutibilidade de sua retração ao todo, criando relações a respeito das quais o
Eu nada quer saber e que não saberia como integrar. Ninguém entendeu melhor
as consequências da função dos objetos a no desejo lacaniano do que Deleuze e
Guattari ao afirmarem que “o desejo é este conjunto de sínteses passivas
maquinadas pelos objetos parciais, pelos fluxos e pelos corpos, e que funciona
como unidade de produção”62. Objetos parciais produzem sínteses passivas, ou
Destituição subjetiva
pelos objetos a é seu comentário a respeito do caso do professor com fantasmas de plagianismo,
de Ernst Kris. Para uma interpretação do caso, ver SAFATLE, Vladimir; “Aquele que diz não” In:
FREUD, Sigmund; A negação, São paulo: Cosac e Naif, 2014, pp. 50-53
63 Idem, p. 50
64 Idem, p. 252
65 Idem, p. 254
Sendo o desejo o ser do sujeito, este ser se revela aqui um desser. Não
exatamente alguma forma de reinscrição do sujeito na segurança ontológica de
um ser pensado como normatividade, o que seria o caso se operássemos em
chave naturalista ou ontológica em relação ao desejo. Esta viragem do ser ao
desser é própria da dessuposição do saber do analista, desta extração que
permite ao analisando, o psicanalista por vir, apreender como seu desejo é
movido por uma causalidade externa, que nunca fundará uma autonomia. Neste
sentido, o reconhecimento de si neste objeto é feito de forma tal a reduzir o
nome do sujeito a um significante qualquer, ou seja, seu nome, aquilo que
estabelece relações de filiação e transmissão, aquilo que porta a marca de sua
inscrição no horizonte de uma constelação familiar decai à condição de
significante qualquer, isto no sentido de uma inscrição meramente contingente,
sem lugar no interior de uma cadeia de necessidades. Assim, a contingência se
revela no interior de um desejo que abre uma clareira para fora de toda
segurança ontológica. No entanto, talvez não esteja claro para alguns de vocês
porque este processo não seria apenas um processo depressivo. O que faz dele
um processo, ao contrário, de afirmação da liberdade e da emancipação? E como
será possível constituir laços sociais após uma experiência desta natureza. Esta
são questões que Lacan tentará responder na sequência de seu texto.
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 4
67 Idem, p. 249
mesmo o atentado, em todo caso dar o pretexto à objeção de princípio?”68. Pois o
que pode ser um laço constituído a partir de uma liquidação da transferência que
parece impossibilitar toda identificação simbólica, que não pode mais mobilizar
produção fantasmática alguma, isto a ponto de Lacan afirmar:
Transferência e emancipação
Para responder tais questões, comecemos por nos perguntar sobre como se
liquida um processo transferencial. É claro que esta pergunta só poderá ser
respondida em um nível genérico, já que os caminhos de uma análise são sempre
singulares. O que não significa que tal genericidade seja desprovida de
importância e interesse, que ela não revele traços de estrutura. Diremos então
68 Idem, p. 252
69 Idem, p. 254
que a transferência é liquidada quando ocorre aquilo que Lacan chama de “ato
analítico”.
Veremos de forma mais detalhada a teoria lacaniana do ato no próximo
módulo. Por enquanto, insistamos em um ponto: um ato analítico sempre produz
uma destituição subjetiva. Uma analisanda ou um analisando pode agir de três
formas, a saber, produzindo um acting out, uma passagem ao ato ou um ato
efetivo. Ou seja, é possível agir produzindo um acting out, agindo de maneira
imaginária, respondendo a necessidades de transformação através de ações que
não tem a força de modificação da estruturas, como o paciente de Ernst Kris que,
ao invés de afirmar a oralidade desmedida do objeto que causa seu desejo e que
o destitui de todo lugar simbólico possível como autor, contenta-se em comer
miolos frescos. Nesse nível, a ação se resume à encenação imaginária de uma
demanda ao Outro. Encenação que simplesmente deixará intocada a estrutura
que provocou o sofrimento que gerou a ação. Mesmo comendo miolos frescos, o
paciente de Kris continuará em sua paralisia.
Por outro lado, pode-se agir de forma tal a suspender todo processo
possível, como em uma espécie de negação sem sequencia. Age-se então por
passagem ao ato como suas formas não-dialéticas de negação, de destruição sem
produtividade. Ao lado de uma negatividade, ou seja, de uma negação que é
atividade e processo, há sempre uma negação bruta, negação sem atividade,
como as tentativas de suicídio ou as passagens em direção às formas de auto-
destruição bruta.
Mas pode-se ainda afirmar o caráter sem lugar que o reconhecimento de
si no objeto que causa seu desejo produz. Ou seja, pode-se parar de agir e
permitir que objetos ajam, criando com isto outra forma de deliberação e prática.
O que implica compreender que não é o sujeito suposto saber aquele que detém
a prática sobre o que causa meu desejo. Todo verdadeiro ato é sempre uma
dessuposição de saber e só assim ele pode ser uma reconfiguração do poder.
De fato, não há ato possível que não seja uma dessuposição de saber. Mas,
e este é um ponto decisivo, isto não implica simplesmente deslocar o saber
anteriormente pressuposto no Outro para um saber agora presente na
consciência do sujeito. Não significa reapropriar-se do saber. Pois este
deslocamento seria apenas a reiteração de um mesmo regime de saber e de ação,
só que agora disponível à consciência. De nada adiante louvar a prática se essa
prática ainda é dependente da mesma gramática de saber que havia nos
sujeitado. Pouco importa quem realmente age, quando sempre se age a partir da
mesma gramática. Em todos os casos, é a gramática que age, são os sistemas de
regra e existência que agem. Uma prática emancipada não é o resultado da
transferência de uma saber que supunhamos no outro e que agora nos o
reapropriamos. A emancipação não é uma transferência de saber que nos
permitiria recuperar a enunciação do saber para nós, melhor deliberar
conscientemente. Como se tivéssemos agora a posse de uma saber nos foi
negado. A emancipação é, antes, uma deposição do saber. Notemos o sentido de
uma afirmação decisiva como:
Assim o ser do desejo reencontra o ser do saber para renascer nisto em
que eles se juntam em uma tira feita de um lado só no qual se inscreve
uma falta só, esta que sustenta o agalma70.
A religião do sentido
É claro que esta noção de sentido com a qual Lacan trabalha tem sua
especificidade. Afinal, o que pode ser uma linguagem que não é uma linguagem
do sentido, mas uma linguagem de um acontecimento da verdade? Dentre as
várias formas de discutir este problema complexo, insistamos em uma que expõe
a dimensão política deste debate. Lembremos quando Lacan afirma, em um texto
no qual é questão do ato político de dissolução de uma instituição que ele
próprio criou:
72 Idem, p. 328
permitir sua emergência não para assegurar o sujeito de que, afinal, seu gozo não
é assim tão ameaçador, não para mostrar que há um lugar para ele na
administração possível da vida tal como ela se dá na situação atual. Na verdade, a
psicanálise tenta extrair deste gozo uma política, tenta mostrar como o caráter
desamparador deste gozo traz em si uma verdade política, a saber, a verdade de
que as condições de reprodução material da vida às quais o sujeito se submeteu
só podem se exercer porque, deste gozo, ele não pode nada saber, com ele não é
possível nada fazer. Ou seja, o caráter sem inscrição, a natureza real deste gozo
faz da transferência um processo que é fadado a sua própria auto-dissolução, isto
se o sujeito for capaz de assumir, de produzir um ato que é a forma mesma da
não-inscrição. Neste sentido, podemos entender melhor a importância de uma
afirmação como: “o gozo é o que a verdade encontra ao resistir ao saber”73.
Se ele é o que a verdade encontra ao resistir ao saber, então a deposição
do sujeito suposto saber só pode ser feito em seu nome.
O passe
Mas deste gozo há ainda uma palavra que circula e se produz, há uma
singularidade que deve encontrar lugar, e esta era a função do passe. A análise
procura fazer emergir este gozo a respeito do qual o sujeito nada quer saber
porque ela acredita que daí sairá uma palavra. Por isto, a Escola deveria ser o
lugar no qual a liquidação da transferência poderia ser “comunicada”: ”esta
experiência não pode ser eludida, seus resultados devem ser comunicados”, dirá
Lacan74. Se os resultados devem ser comunicados, é porque o desvelamento do
caráter sem-lugar do gozo que impulsiona a dejeção do analista e de seu saber
suposto não leva a uma posição de simples isolamento. Dirá Lacan:
O que este passo, de ter sido feito só (seul), tem a ver com o único (le seul)
que se acredita ser ao segui-lo? Não me fiaria eu à experiência analítica,
ou seja, ao que me vem de quem se virou só? Acreditaria eu ser o único a
te-la, então para quem eu falaria? 75
Neste contexto, Lacan fala de seu ato de fundação da EFP, mas é claro que se
trata aqui também da natureza mesma do ato analítico. Ato que se faz só, mas
que pode mesmo assim constituir um laço pressuposto nesta exigência de
“comunicação”. E há de se sentir esta tensão extrema entre gozo e comunicação,
uma tensão que talvez não possa ser de fato resolvida, que só poderia terminar
na dissolução do espaço de comunicação, o que é outra maneira de compreender
a questão da dissolução da Escola. Mas a dissolução do espaço de comunicação
será, de forma paradoxal, a última aposta na possibilidade institucional da
política, como veremos em outra aula.
Lembremos aqui do que estava em jogo no dispositivo do passe. Segundo
o procedimento do passe, um final de análise permite ao analisando “contar sua
análise” a três passantes que irão então passá-la a um júri. A primeira questão
relativa a este procedimento encontra-se na noção de “contar uma análise”. Em
outros momentos, Lacan falará de um ato que possa ser “legível” por todos. Mas
73 Idem, p. 358
74 Idem, p. 255
75 Idem, p. 263
que tipo de fala e de legibilidade é esta? O que se conta aqui? E para que forma de
espaço comum? Pois percebam a tensão real do problema. Há algo de
transmissível no final de uma análise, mas como dirá Lacan: “como fazer
reconhecer uma estatuto legal a uma experiência da qual não se sabe sequer
responder?”76. Esta é uma maneira de se perguntar: como fazer reconhecer o que
só se inscreve como falta, como fazer reconhecer um gozo do qual a linguagem
não quer e parece não pode nada saber? Lacan aposta em uma transmissão
possível chegando mesmo a descrever aquilo que é integralmente transmissível,
a saber, um matema, termo inspirado nos mitemas de Lévi-Strauss: unidades
mínimas de articulação formal de relações pressupostas pelos mitos. Ou seja, a
fala sobre a análise deveria ser a constituição de um matema capaz de passar a
dois níveis de transmissão. O ato analítico parece se realizar na constituição de
um matema.
De fato, só há comunicação se podemos falar em dois níveis de
transmissão. Se conto algo para alguém e esta mesma pessoa não pode contar
isto para uma terceira pessoa, não há comunicação alguma, pois não há garantia
alguma de que o enunciado inicial foi, de fato, entendido. A comunicação
demonstra que o sentido é a perpetuação da referência para além da modificação
de seus enunciadores.
No entanto, a inscrição do ato em uma transmissão não deve ser sua
submissão ao sentido, e neste ponto encontra-se a complexidade da exigência.
Podemos mesmo nos perguntar se isto não invalidaria necessariamente toda e
qualquer comunicação. Lacan acredita que esta irredutibilidade do ato ao
sentido é a única forma de garantir que não voltaremos a um “efeito de grupo”. A
associação entre “efeito de grupo” e “sentido” não poderia ser diferente. O que
funda o grupo é a possibilidade da unidade da referência, é a partilha dos modos
de interpretação de enunciados e práticas. O grupo é a expressão máxima da
crença em uma gramática comum e a uma referência que não se transforma a
partir da modificação dos seus enunciadores. Por isto, podemos de fato nos
perguntar se a experiência do passe poderia ter outro destino que o fracasso.
Entendamos o que leva Lacan a esta aposta que talvez não possa ser paga.
O apelo lacaniano à legibilidade e à comunicação neste momento é sua forma de
dizer: há algo no ato que tem força de implicação, ele dessupõe o saber mas não
abole a relação social. Daí esta estrutura do passe. Para não ser apenas a
reiteração de uma posição depressiva, a transferência deve levar a um
reconhecimento. No entanto, demandas de reconhecimento tem como condição
de existência o apelo à universalidade, mesmo que seja uma universalidade não-
toda. Pois elas tem a característica de serem genéricas, elas exigem validade para
além de todo e qualquer contexto. Não há sentido algum em exigir ser
reconhecido no interior de um contexto específico, no interior de um grupo
limitado. Mas este reconhecimento genérico talvez não seja objeto possível de
uma comunicação.
76 Idem, p. 262
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 5
77 Para a relação entre Lefort e Lacan, ver FLYNN, Bernard; The philosophy of Claude Lefort:
interpreting the political, Northwestern University Press, 2005
78 LEFORT, Claude; A invenção democrática: os limites do totalitarismo, São Paulo: Brasiliense,
1983
79 Idem, p. 54
80 Idem, p. 68
natureza profundamente antagônica da vida social. A democracia seria, assim
“uma sociedade sem determinação positiva, irrepresentável na figura de uma
comunidade”81 que, por funcionar a partir da institucionalização do conflito,
precisaria ser capaz de suportar uma “quase-dissolução das relações sociais” nos
momentos de manifestação da vontade popular.
Servindo-se da ideia lacaniana do universo simbólico como composto de
significantes puros que são a expressão da ausência de denotação exterior e, por
isto, reenviam a estabilização do processo de produção de sentido a significantes
contíguos no interior de uma cadeia, até que sejam basteados por um
significante-mestre que é expressão de um lugar vazio82, Lefort afirmará que a
democracia caracteriza-se por conservar o lugar simbólico do poder como um
lugar vazio. Desta forma:
96 Idem, p. 195
97 Idem, p. 95
98 ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 247
indeterminação. No caso, multiplicidade de demandas concretas de diferentes
grupos distintos, muitas vezes contraditórias entre si, mas capaz de ser
agenciada em uma rede de equivalências que permite, ao mesmo tempo, a
constituição de uma identidade popular-coletiva e a determinação de linhas
antagônicas de exclusão (agora politizadas). Tal caráter vazio dos significantes
que unificam o campo popular não é resultado de algum arcaísmo político
próprio a sociedades prenhes de ideias fora do lugar. Ele “simplesmente
expressa o fato de que toda unificação populista tem lugar em um terreno social
radicalmente heterogêneo”99.
No caso, multiplicidade de demandas concretas de diferentes grupos
distintos, muitas vezes contraditórias entre si, mas capaz de ser agenciada em
uma rede de equivalências que permite, ao mesmo tempo, a constituição de uma
identidade popular-coletiva e a determinação de linhas antagônicas de exclusão
(agora politizadas). Assim, Laclau poderá afirmar:
99 Idem, p. 128
100 LACLAU, Ernesto; idem, p. 104
101 Idem, p. 128
estado, em larga medida, vinculada às demandas hegemônicas de setores
conservadores da sociedade. O que pode não ser o caso. Tal indeterminação de
resultados relativos a fenômenos populistas permite a Laclau ver no papel
unificador de Nelson Mandela, na política cosa nostra do governador paulista
Adhemar de Barros ou nos projetos de Mao Tse-Tung exemplos do
antiinstitucionalismo populista. Pois “existe em toda sociedade um reservatório
de sentimentos anti status quo puros que se cristalizam em alguns símbolos de
maneira relativamente independente da forma de sua articulação política e é sua
presença que percebemos intuitivamente quando denominamos “populista” um
discurso ou uma mobilização”102. Tais símbolos são “significantes flutuantes”
cujo caráter de “flutuação” vem do fato de poderem aparecer organizando o
discurso de perspectivas políticas muitas vezes radicalmente distintas entre si.
As elaborações de Laclau são precisas em mais de um ponto. Elas
mostram como a perspectiva freudiana e seus desdobramentos permitem
compreender, com clareza, os processos identificatórios no campo político não
apenas como regressivos, mas também como constitutivos da própria dinâmica
transformadora das lutas sociais. Não há política democrática sem o
reconhecimento de dinâmicas constituídas no ponto de não-sobreposição entre
direito e demandas sociais, entre legalidade e legitimidade. Não há política
democrática sem um excesso de antagonismo em relação às possibilidades
previamente decididas pela estrutura institucional, e é isto que a experiência
populista nos mostra, embora Slavoj Zizek lembre com propriedade que o
populismo não é o único modo de existência do excesso de antagonismo sobre a
estrutura democrático-institucional 103 . De toda forma, Laclau nos permite
compreender como a reflexão política freudiana pode nos ajudar a sublinhar a
complexidade da relação entre institucionalidade e demandas que se alojam em
um espaço anti-institucional. A irredutibilidade da posição da liderança implica
reconhecimento de um lugar, não completamente enquadrado do ponto de vista
institucional, marcado pela presença da natureza constituinte da vontade
política. Tal lugar pode tanto impedir que a política se transforme na gestão
administrativa das possibilidades previamente determinadas e constrangidas
pelo ordenamento jurídico atual quanto ser o espaço aberto para a recorrência
contínua de figuras de autoridade e liderança que parecem periodicamente se
alimentar de fantasias arcaicas de segurança, proteção e de medo. Esta
ambivalência lhe é constitutiva, pois ela é, na verdade, a própria ambivalência da
incorporação em política.
No entanto, Laclau deveria explorar com mais sistematicidade a natureza
profundamente ambígua das estratégias populistas e sua necessária limitação.
Ambiguidade entendida não no sentido da polaridade, sempre alimentada pelo
pensamento conservador, entre democracia com instituições fortes e
autoritarismo personalista, mas no sentido de uma oscilação contínua, interna a
todo movimento populista, entre transformação e paralisia. Por sustentar a
necessidade de sujeitos políticos se expressarem como povo constituído através de
cadeias de equivalências entre demandas concretas muitas vezes contraditórias,
o populismo é assombrado continuamente pelo risco da paralisia dos processos
de transformação social devido ao fato de alcançarmos rapidamente um ponto
O ato analítico, nem visto nem conhecido antes de nós, ou seja, nunca
notado, muito menos colocado em questão, eis o que supomos no
momento eletivo em que o psicanalisante passa ao psicanalista104.
De certa forma, eu gostaria de usar a aula de hoje para comentar esta proposição
de forma demorada.
Um ato de subversão
Tal discussão nos remete à potência de negação própria a todo ato. Isto
levava Lacan a insistir que “revolução” significa normalmente, como sabemos a
respeito dos movimentos astronômicos, “voltar ao mesmo lugar”. Ao comentar a
revolução copernicana, tão usada como metáfora de mudança epistêmica na
filosofia (Kant e a crítica como revolução copernicana) e mesmo na psicanálise
(Freud e a revolução copernicana do inconsciente), Lacan se perguntava: “o que
há de revolucionário no recentramento do mundo solar em torno do Sol?”109.
Maneira de afirmar que não havia mudança alguma através da conservação da
hierarquia, da unidade e da centralidade que a noção de movimento esférico
enquanto forma celeste perfeita representava. A verdadeira revolução
encontrava-se o advento do movimento elíptico, ou seja, da noção de dois
centros enquanto forma dos movimentos celestes. No que se vê que a revolução,
se não quiser ser um retorno ao mesmo lugar, é indissociável de uma mudança
na estrutura do saber, não nos lugares que cada elemento ocupa no interior de
uma estrutura dada, não nos detentores do saber e do poder. Lembremos a este
respeito de um poema caro a Lacan que lhe aparecia como expressão da “fórmula
geral do ato”, trata-se de A uma razão, de Arthur Rimbaud:
Stalin, que sabia bem o que significa assassinar uma revolução, recusa que
a linguagem seja uma superestrutura porque ela não deve ser nem o veículo nem
o resultado de um processo revolucionário. Ela deve permanecer tal e qual, sob o
risco de desencadear anarquia e desintegração. No entanto, há de se perguntar
que tipo de revolução é este que vê as instaurações no campo da linguagem como
algo fora de seu escopo. Pois afirmar que a linguagem não se modifica é a
maneira mais segura de afirmar que uma revolução não altera aquilo que
aparece como a condição prévia (ao menos para os sujeitos falantes) de toda
experiência possível. Para a restauração, é fundamental afirmar que a linguagem
desconhece dinâmicas políticas por ela expressar a “totalidade” da sociedade. No
entanto, digamos que, se Stalin houvesse lido Nietzsche, ele saberia que: “nunca
nos desvencilharemos de Deus enquanto acreditarmos na gramática”. Esta era
uma forma astuta de afirmar haver uma metafísica implícita na gramática e o que
faz uma revolução é dissolver esta metafísica implícita que orienta os processos
O sintoma e a cura
Abordemos este problema por duas dimensões. Afirmar não haver progresso,
afirmar que o ato não é a expressão de um progresso, tem consequências tanto
clínicas quanto políticas. Do ponto de vista clínico, isto implica recusar toda
intervenção que se oriente por um horizonte de maturação, normalmente
vinculado à reconstituição da capacidade de síntese e direção da personalidade,
no interior do qual a doença apareceria como degenerescência. Esta noção da
doença como degenerescência, como fixação em estados anteriores de
desenvolvimento esteve presente de forma hegemônica na psiquiatria e na
psicanálise (lembremos, por exemplo, dos usos de conceitos como fetichismo,
ligado a uma teoria histórico-social do progresso, dos vínculos entre patologias e
fixação em estágios de maturação libidinal, a perversão como regressão a uma
comportamento infantil polimórfico etc.). Não haver progresso algum a se
esperar da verdade significa, neste contexto, livrar a experiência analítica de sua
dependência a horizonte ideais normativos. Por outro lado, o que a análise pode
fornecer não é bem-estar ou realização de um ideal de conduta que seria a
expressão de alguma noção de progresso. O que ela oferece é a viragem da
impotência imaginária ao impossível. Ao final, é isto que o ato analítico pode
fazer: fazer o sujeito passar da impotência ao impossível. Pois o que a revolução
efetiva de Marx demonstra é que a eclosão da verdade implica apenas sair da
posição melancólica de impotência para nos confrontarmos ao impossível que
impulsiona nosso desejo.
Neste ponto, podemos entender a importância de uma colocação de Lacan
como: “a teoria revolucionária faria bem de se tomar por responsável de deixar
vazia a função da verdade como causa quando é ai, no entanto, que se encontra a
suposição primeira de sua própria eficácia”116. Ou seja, a eficácia da teoria
revolucionária consiste em deixar vazia a função da verdade como causa. Isto
significa que ela não deve procurar preenche-la através de uma perspectiva
necessitarista na qual a identificação da causa instaura uma relação de
necessidade com seus efeitos. Não há necessidade no interior de um processo
revolucionário, como poderíamos acreditar ao transformar a categoria do
proletariado em um polo positivo de doação de sentido de todo ato político. Na
verdade, deixar vazia a causa do que a revolução seria o efeito é uma maneira de
definir como os processos de transformação são marcados por acontecimentos
que não se colocam como predicados de sujeito algum. Do ponto de vista de uma
relação simples de causalidade, tais acontecimentos não produzem efeitos. Ao
contrário, eles fazem emergir relações que não são pensáveis sob a forma da
causalidade simples. Por isto, a causa de uma revolução é sempre o que rompe a
Ato e castração
Partamos então do fim de uma dos textos mais importantes de Lacan a respeito
da linguagem, a saber, Lituraterre: “Uma ascese da escritura parece-me só poder
passar ao encontrar um “está escrito” através do qual se instauraria a relação
sexual”119. Esta é a maneira lacaniana de dizer que há um exercício de escritura
que permite a realização de uma literalização, ou seja, uma passagem a
existência em ato capaz de instaurar aquela que é a relação disjuntiva por
excelência, a saber, a relação sexual. Esta instauração do que, até então, não
cessava de não se inscrever só é possível à condição de uma modificação
estrutural que Lacan chama, neste contexto, de ascese. Uma ascese da escritura.
Mas tentemos compreender melhor este ponto. A instauração da relação
sexual é aquilo que permite ao gozo constituir relações. Relações sexuais não são
apenas relações de desejo, mas relações de gozo. No entanto, esta instauração
não pode se realizar de forma a produzir unidades, a assegurar identidades, a
prometer o retorno a alguma forma de unidade indiferenciada. Elas são uma
paradoxal relação disjuntiva, que conserva a diferença como modo de relação
A castração, a saber que o sujeito realiza que ele não tem o órgão do que
eu chamaria de o gozo único, unitário, unificador. Trata-se propriamente
do que faz um o gozo na conjunção de sujeitos do sexo oposto, ou seja,
daquilo que insisti no ano passado em relevando o fato de não haver
realização possível do sujeito como elemento, como parceiro sexual no
que se imagina a unificação no ato sexual121.
Escrita e gozo
significativa da função fálica enquanto falta essencial da junção da relação sexual com sua
realização subjetiva" (LACAN, S XIV, sessão do 22/02/67)
129 LACAN, S XIV, sessão de 24/05/67
romanesca é um operador clínico, já que indica um modo de totalização, de
determinação de causalidade, de produção de síntese que orientará o sujeito em
seus processos de rememoração e simbolização.
Neste sentido, ao discutir a literatura de vanguarda, Lacan procura, na
verdade, fornecer um outro horizonte de narrativa para a clínica analítica. Sua
insistência em pensar uma literatura organizada a partir da letra que,
diferentemente do significante, não se organiza em sistema diferencial-opositivo,
não constitui totalidades, mas opera por repetição e inscrição, permite-lhe
pensar outra forma de operação linguística relacionada à literalização do sujeito
e de sua expressão. Este outro horizonte de narrativa para a clínica analítica é
indissociável de uma possibilidade de reconciliação entre sujeito e linguagem
que não poderia deixar de ter consequências políticas.
Neste conceito de letra está articulado as duas dimensões do ato analítico,
a saber, o ato como dissolução das relações anteriores e como instauração. Sua
dimensão de dissolução está ligada à condição da letra como rasura. Ela está logo
presente na citação que Lacan faz de um jogo de palavras de Finnegans Wake, de
Joyce, entre letter e litter. A importância que Lacan dá a tal jogo de palavras vem
do fato de estarmos em um regime de linguagem marcado pela dissolução da
linguagem em sua dimensão comunicacional a uma exposição de ruínas. A
lembrança de Beckett neste contexto não deixa dúvidas. Pois quem melhor do
que Beckett expôs o caráter atualmente arruinado da linguagem que socialmente
se impõe a nós. Uma linguagem que só por meio da mais brutal violência pode
nos fazer ainda confiar nas relações de causalidade, na certeza produzida pelo
efeito que segue a causa, na recognição produzida pela memória, na
continuidade narrativa com sua orientação de ação pelas noções de necessidade
e desenvolvimento.
Desta forma, a linguagem que pode falar do sujeito será agora uma
linguagem inicialmente marcada pela força de arruinar a linguagem da
comunicação. Ela trará balbucios, gagueiras, palavras gastas que se apresentam
como gastas, impossibilidades de narrativa, recusas ou ainda prazer fonético,
aproximações sonoras. Em suma, rasuras. Como se fosse questão de mostrar
como é impossível continuar a usar a linguagem como até agora se utilizou. Daí
esta maneira lacaniana de dizer que a letra produz um buraco na linguagem,
expõe um saber em fracasso, um saber em questão (“savoir en échec”). A letra
como o que desenha a borda do buraco do saber, dirá Lacan. Neste sentido, se o
verdadeiro ato só se realiza ao fracassar, há de se lembrar como a literatura deve
fazer a forma romance fracassar para poder realizar sua força expressiva. Mas,
como dirá Lacan:
Rasura de nenhum traço que seja anterior, é o que faz terra do litoral.
Litura pura, é o literal. Produzi-la, é reproduzir esta metade sem par
através da qual o sujeito subsiste130.
Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de
descrição da racionalidade própria a um sistema sócio-econômico determinado,
mas principalmente como o princípio fundamental de definição moral da
natureza dos sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do
capitalismo são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua auto-
conservação, a conservação de seus bens, o cálculo econômico de seus esforços e
a fruição de formas moderadas de prazer, ou seja, formas de prazer que não nos
coloquem fora de nosso próprio domínio. Eles são aqueles que se julgam
racionais por sempre submeterem sua afetividade à reflexão sobre a utilidade e a
medida. Dessa forma, como dirá Marx a respeito do problema do fetichismo da
mercadoria, as relações entre pessoas acabarão por se submeterem a
racionalidade instrumental da relações entre coisas. Algo que Bataille, à sua
forma, recupera ao afirmar que: “a humanidade, no tempo humano, antianimal
do trabalho é em nós o que nos reduz a coisas”140. Tempo antianimal porque
tempo que se acumula, que conta, que se dispõe como unidade bruta de
contagem, tempo disciplinar do cálculo dos meios em relação a fins. Desta forma,
como lembra Lukàcs: “o tempo perde o seu caráter qualitativo, mutável e fluido:
ele se fixa num continuum delimitado com precisão, quantitativamente
mensurável, pleno de ‘coisas’ quantitativamente mensuráveis”141.
Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não se
confunde com o cálculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda ação social
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo”
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer
e alegria. Daí o sentido de uma afirmação como:
É tendo algo parecido em vista que Lacan, ao discutir a ética da psicanálise, trará
o conceito de gozo para o centro de suas indagações. Recusando a defesa de uma
liberação naturalista do desejo que levaria à afirmação do “homem do prazer”,
Lacan não faz, por isto, alguma forma de profissão de fé na necessidade de auto-
legislação e auto-governo. Sua estratégia será trazer o gozo para dentro de uma
reflexão ética sobre a direção da clínica.
Neste sentido, ele começará por insistir cada vez mais que a experiência
humana não é um campo de condutas guiadas apenas por imagens ordenadoras
(Imaginário), por estruturas sócio-simbólicas (Simbólico) que visam garantir e
assegurar identidades, mas também por uma força disruptiva cujo nome correto
é Real. Aqui, o Real não deve ser entendido como um horizonte de experiências
concretas acessíveis à consciência imediata. O Real não está ligado a um
problema de descrição objetiva de estados de coisas. Ele diz respeito a um campo
de experiências subjetivas que não podem ser adequadamente simbolizadas ou
colonizadas por imagens fantasmáticas. Isto nos explica porque o Real é sempre
descrito de maneira negativa, como se fosse questão de mostrar que há coisas
que só se oferecem ao sujeito sob a forma de negações.
O nome lacaniano do modo de acesso ao Real é “gozo”144. Seguindo
Bataille, Lacan insiste que a lógica do comportamento humano não pode ser
totalmente explicada a partir do cálculo utilitarista de maximização do prazer e
de afastamento do desprazer. Há atos cuja inteligibilidade exigem a introdução
de um outro campo conceitual com sua lógica própria, um campo que desarticula
distinções estritas entre prazer e desprazer por colocar o Eu sempre diante de
uma certa dissolução de si que produz, ao mesmo tempo, satisfação e terror.
Indistinção entre satisfação e terror que Lacan chama de “gozo”. Dissolução da
144Para uma análise exaustiva do conceito lacaniano de gozo, ver Christian Dunker, O cálculo
neurótico do gozo (São Paulo: Escuta, 2002)
auto-identidade que ele chama de “destituição subjetiva” e que, de uma maneira
ou de outra, sempre estaria presente em todo final de análise.
Este campo que visa fornecer a inteligibilidade de atos através dos quais o
sujeito procura se confrontar com o que faz vacilar as certezas identitárias de
seu Eu é animado por uma dinâmica pulsional própria à pulsão de morte. Tal
ideia de uma tendência, interna a todo organismo, de retorno ao inorgânico, é um
conceito freudiano extremamente criticado por mais parecer um entulho
metafísico. No entanto, ele é central em Lacan, isto a ponto dele afirmar que
“toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”145.
Há uma estratégia ética neste uso da pulsão de morte, por mais
contraintuitivo que isto possa parecer. Lembremos de Lacan afirmando: “O que é
o instinto de morte? O que é esta forma de lei para além de toda lei, que só pode
se colocar como uma estrutura última, um ponto de fuga de toda realidade
possível a alcançar?”146. A colocação é clara: a pulsão de morte aparece como um
lei para além de toda lei, uma estrutura última que abre o espaço a uma linha de
fuga em relação a toda realidade socialmente organizada. Ela abrirá o espaço a
uma ação que desestabiliza as determinações da estrutura e que é descrita como
realização de uma “verdade liberadora”147 que expressa o caráter imperioso do
desejo.
Mas o que pode significar que a pulsão de morte é uma verdade
liberadora? Estaria Lacan a colocar um gozo mortífero como horizonte de final
de análise, como vários comentadores criticaram? De fato, Lacan quer conservar
a ideia da pulsão como retorno em direção à morte, mas é o próprio conceito de
“morte” que se transforma. Ao invés da morte como retorno à origem inorgânica,
morte pensada a partir do modelo objetivo de uma matéria indiferente
inanimada, Lacan procura a possibilidade de satisfazer a pulsão através de uma
“morte simbólica” ou “segunda morte”. Freud falava de uma auto-destruição da
pessoa própria à satisfação da pulsão de morte. Digamos que, para Lacan, a
morte procurada pela pulsão é realmente a “auto-destruição da pessoa”, mas à
condição de entendermos por pessoa a identidade do sujeito no interior de um
universo simbólico estruturado. Esta morte é pois o operador fenomenológico
que nomeia a suspensão do regime simbólico e fantasmático de produção de
identidades. Por isto, ela não descreve o destino de nossa presença física, mas
uma transformação de ordem moral.
Se tal operador fenomenológico descreve uma operação de ordem moral,
é porque ele fornece o fundamento para o advento de outras formas de
relacionalidade. A descoberta, em si mesmo, de algo que se manifesta como auto-
destruição da pessoa não nos leva, necessariamente, à defesa compulsiva contra
tudo o que poderia colocar em questão nossa identidade. Ela pode nos levar, ao
contrário, à abertura a uma alteridade que nos constitui e que procura se realizar
para além dos sistemas de propriedade e identidades da pessoa. Daí porque
Lacan deve reposicionar o problema do gozo e da pulsão de morte no interior de
uma discussão organizada a partir de dinâmicas de reconhecimento da
alteridade. Este é o sentido do problema da relação entre sujeito e das Ding, que
ocupa um lugar central no Seminário VII.
Gozo e crítica
156 MAUSS, Marcel; Sociologia e psicologia, São Paulo: Cosac e Naif, 2003, p. 294
157 Neste sentido: “o prestígio, a glória, a posição não podem ser confundidos com o poderio. Ou,
se o prestígio é poderio, ele o é na medida em que o próprio poderia escapa às considerações de
força ou de direito a que habitualmente é submetido (…) A glória, consequência de uma
superioridade, é outra coisa além de um poder de tomar o lugar de outrem oude se apoderar de
seus bens: ela exprime um momento de frenesi insensato, de dispêndio de energia sem medida,
que o ardor do combate pressupõe” (BATAILLE, Georges; idem, p. 79)
158 LACAN, Jacques; Seminaire XX, Paris: Seuil, 1973, p. 10
159 idem, p. 100
Lacan: psicanálise, ontologia, política
Aula 10
Gozo e capitalismo
Este esquema se complexifica com os seminários XVI e XVII. Pois neles, Lacan
apresenta uma outra faceta política do conceito de gozo, a saber, sua função no
interior de uma teoria da estrutura libidinal do capitalismo. A tese fundamental
de Lacan é de que a dinâmica libidinal do capitalismo, seus modos de adesão
subjetiva às injunções próprias à racionalidade econômica, não pode ser
compreendida a partir da temática dos processos de repressão e de conformação
disciplinar do desejo. Pois o capitalismo nunca poderia ser um modo de
existência baseado na simples renúncia ao gozo. Na verdade, não há modo de
existência social que construa suas dinâmicas de adesão através da simples
renúncia. O capitalismo se funda no que Lacan chama de “espoliação do gozo”, ou
seja, na inscrição de seu excesso no interior das dinâmicas de reprodução social:
“O que Marx denuncia na mais-valia é a espoliação do gozo. E no entanto esta
mais-valia é o memorial do mais-gozar, seu equivalente do mais-gozar”161. Há de
se entender então como tal espoliação se dá, como este excesso anima o
capitalismo por dentro e para tanto Lacan se serve de homologias fundamentais
entre a crítica marxista da economia política e a crítica psicanalítica da economia
libidinal do capitalismo.
Há quatro pontos fundamentais na leitura feita por Lacan do capitalismo.
Primeiro, há o que podemos chamar de “espoliação do gozo através da produção
do mais-gozar”. Segundo, temos a defesa lacaniana de uma forclusão da
castração pelo capitalismo. Terceiro, temos a compreensão do capitalismo trazer
162 Bem percebido, como veremos no próximo capítulo, por Axel Honneth em HONNETH, Axel;
Das recht der Freiheit, Frankfurt: Suhrkamp, 2013.
163 FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 222
164 BROWN, Wendy; Les habits neufs de la politique mondiale: néolibéralisme et néo-conservatisme,
podemos encontrar em BECKER, Gary; Human Capital: a theoretical and empirical analysis with a
special reference to education, University of Chicago Press, 1994
166 Cf. GOLEMAN, Daniel; Inteligência emocional, Rio de Janeiro: Objetiva, 1996
167 DARDOT e LAVAL: La nouvelle raison do monde, op. cit, p. 440.
Notemos ainda que esta internalização de um ideal empresarial de si só
foi possível porque a própria empresa capitalista havia paulatinamente
modificado suas estruturas disciplinares a partir do final dos anos 20. A
brutalidade do modelo taylorista de administração de tempos e movimentos,
assim como a impessoalidade do modelo burocrático weberiano haviam
paulatinamente dado lugar a um modelo “humanista” desde a aceitação dos
trabalho pioneiros de Elton Mayo, fundados nos recursos psicológicos de uma
engenharia motivacional na qual “cooperação”, “comunicação” e
“reconhecimento” se transformavam em dispositivos de otimização da
produtividade. Esta “humanização” da empresa capitalista, responsável pela
criação de uma zona intermediária entre técnicas de gestão e regimes de
intervenção terapêutica, com um vocabulário entre a administração e a
psicologia, permitiu uma mobilização afetiva no interior do mundo do trabalho
que levou à “fusão progressiva dos repertórios do mercado com as linguagens do
eu”168. As relações de trabalho foram “psicologizadas” para serem melhor
geridas, até chegar ao ponto em que as próprias técnicas clínicas de intervenção
terapêutica começaram por obedecer, de forma cada vez mais evidente, padrões
de avaliação e de gerenciamento de conflitos vindos do universo da
administração de empresas. Sem tal movimento prévio, não teria sido possível ao
neoliberalismo reconstruir processos de socialização, em todas as esferas sociais
de valores, através da internalização de um ideal empresarial de si.
170 Idem, p. 19
171 LACAN, SXVI, p. 19
172 DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
173 LACAN, SXVII, p. 207
outros fenômenos, esse excesso é marca de uma má infinitude, pois não passa ao
infinito verdadeiro do que muda sua própria forma de determinação a partir de
si, do que é infinito por realizar-se produzindo paradoxalmente a exceção de si.
Uma exceção que, ao ser integrada, modifica processualmente a estrutura da
totalidade anteriormente pressuposta. Antes, ele é o infinito ruim do que é
sempre assombrado por um para além que nunca se encarna, para além cuja
única função é marcar a efetividade com o selo da inadequação, do gosto amargo
do “ainda não”. A análise do capitalismo sempre precisou de uma teoria dos dois
infinitos. É neste ponto que talvez fique mais clara uma afirmação centra de
Lacan como:
Uma leitura incorreta desta afirmação nos levaria a crer que Lacan acusa
o capitalismo de desconhecer a impossibilidade de satisfação do desejo, sua falta
constitutiva, isto através de uma proliferação de meios de incitação e prazeres.
Um pouco como se estivéssemos a ver mais uma versão de uma crítica moral ao
pretenso hedonismo capitalista. No entanto, o erro aqui consiste em não
entender como a problemática da castração funciona neste momento do
pensamento lacaniano. Veremos melhor este ponto na aula que vem, quando for
questão de uma discussão a respeito de elaborações importantes do Seminário
XX. Por enquanto, lembremos como Lacan afirma: “a castração, que é o signo que
adorna a confissão de que o gozo do Outro, do corpo do Outro só se promove da
infinitude”174. Ou seja, por mais contraintuitivo que isto possa parecer, a
castração aparece aqui como condição para a realização de certa infinitude
ligada ao gozo. Porque, neste contexto, a castração indica que a relação sexual
não pode se realizar como unidade, como afirmação do primado do Um, como
constituição de relações de complementaridade, de simetria, mas como relação
em disjunção: única forma, aos olhos de Lacan, para realizar uma relação à
diferença que, como vimos desde o seminário VII, é um tópico fundamental da
contribuição ética da psicanálise. Desta forma, a castração deverá aparece como
o que impede a relação sexual entre sujeitos que tiveram seus desejos inscritos
sob a forma do Falo se realizar. Mas esta é uma maneira, como veremos na aula
que vem, de abrir a experiência à possibilidade de um gozo outro.
Neste sentido, a afirmação de que o capitalismo forclui a castração
significa insistir que, em seu interior, não há espaço para uma infinitude que não
se dá sob a forma infinito ruim do mais-gozar e de sua maximização de
performances, da procura infinito ruim pelo mais-gozar. Uma infinitude que nos
lembra que sua atualização só pode se dar à condição da dissolução dos modos
de relação como até agora se constituíram e até agora permitiram a reprodução
material de nossa vida social. Por isto que o capitalismo nada sabe sobre as
coisas do amor, pois como o erotismo em Bataille, o amor não saberia o que fazer
no interior de um infinito contábil. Por outro lado, a ideia da forclusão aqui apela
a uma noção de expulsão da ordem simbólica e de retorno no real sob as formas
O impasse proletário
177Idem, p. 34