Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
DOSSIÊ
Heitor Frúgoli Jr.*
Este artigo apresenta um balanço das ocupações plurais de espaços públicos de São Paulo, sobretudo na-
queles em que ativistas (ou correlatos) têm lutado pela ampliação de direitos à cidade e seus equipamentos
públicos. Tais ocupações se realizam por meio de redes de coletivos que envolvem estudantes, artistas,
arquitetos, associações e vários outros agentes. Adota-se um enfoque voltado para a compreensão de certa
genealogia de tais fenômenos – dos quais as jornadas de junho de 2013 representam uma referência in-
dispensável –, bem como para a identificação dos principais desafios etnográficos para uma abordagem
antropológica.
Palavras-chave: Etnografia. Antropologia da cidade. Ativismos. Práticas espaciais.
1
INTRODUÇÃO novos aspectos de natureza política que ocor-
rem numa escala global (Harvey, 2012). Mais
A cena contemporânea nos coloca frente que um tema, essas questões têm constituído
a um período em que, indubitavelmente, a ci- uma agenda que desperta crescente interesse
dade e seus espaços públicos têm sido alvos de e prolifera em muitos âmbitos voltados para
múltiplas apropriações e ocupações, o que tem a compreensão de um gradiente de sentidos,
suscitado diversos debates sobre uma espécie bem como para as possibilidades de ação.
de expansão das relações dos habitantes com O conceito clássico de espaço público,
o contexto urbano, suas ruas e equipamentos. que, em princípio, informa as novas emergên-
Novas indagações sobre os significados cias de direitos à cidade, é assinalado por uma
do espaço público e de sua dimensão coletiva significativa polissemia (Paquot, 2009), por
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792018000100005 75
ATIVISMOS URBANOS EM SÃO PAULO
público como o lugar privilegiado de partici- ciências humanas7 ou, mais precisamente, na
pação direta do cidadão” (Schwarcz; Starling, antropologia. Apesar de muitas práticas polí-
2015, p. 506). Temos, nessas duas passagens, ticas serem alvos, há tempo, de investigações
significados sobre as ruas que transitam entre antropológicas,8 pode-se dizer que o tema do
certo clamor popular e usos de determinados ativismo urbano, por ser relativamente recen-
espaços para manifestações dessas deman- te, ainda carece de estudos mais sistemáticos.
das políticas. Mas a isso se pode acrescentar A dimensão eminentemente espacial de
o próprio uso das ruas como prática espacial várias intervenções promovidas por tais coleti-
e política em si mesma (Certeau, [1994] 2012; vos implica pensar numa relação incontorná-
Frehse, 2009), além das demandas pela am- vel dos agentes entre si e deles com o espa-
pliação de espaços públicos para diversos usos ço urbano (espaços públicos e equipamentos
(cotidianos ou extracotidianos). urbanos), ou seja, recorrer à ideia consolidada
Na antropologia, um balanço abrangen- pela antropologia urbana de que a cidade não é
te de Sherry Ortner (2016) indica a emergência um pano de fundo ou local neutro onde se dão
considerável, nos últimos anos, de abordagens tais ações, mas um contexto dinâmico com o
situadas no campo da crítica, da resistência qual os agentes efetivamente dialogam.9
(pensada num sentido ampliado)3 e do ativis- Isso também implica, evidentemente,
mo, com enfoque nas práticas de enfrentamento pensar nos desafios da realização da pesquisa
da crise ligada ao chamado neoliberalismo, algo etnográfica, ou, em outras palavras, fazer etno-
delineado na análise já citada de Harvey (2012). grafias urbanas ligadas à capacidade de inte-
Dentre os desafios etnográficos, cabe uma aten- ragir com os sujeitos pesquisados com algum
ção especial ao modo como os próprios ativistas grau de observação participante para obter um
– agentes com foco especial nesse texto – fazem conhecimento sobre tais fenômenos, dosando
a cidade (Agier, 2017, p. 424-425), produzem proximidade e distanciamento.10
seus mundos sociais (Velho, 1999) e teorizam O que seria, nessa perspectiva, o ati-
sobre suas práticas, cujos léxicos, ainda que vismo urbano, ou o que seriam os coletivos
aparentemente próximos àqueles dos pesqui- responsáveis pelas ações ligadas a ele? Essa
sadores, revelam potencialmente diferenças a questão remete, como já foi dito, à própria
serem evidenciadas e analisadas.4 necessidade de circunscrever o ativismo nas
Em São Paulo, o tema do ativismo tem especificidades e características que o diferen-
sido tratado notadamente na área do urbanis- ciam de outras práticas do passado, bem como
Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 82, p. 75-86, Jan./Abr. 2018
mo, tanto através de estudos ou ensaios5 quan- de outras que se dão no próprio presente.11 Há
to por parte dos próprios ativistas,6 embora
ainda faltem abordagens mais estruturadas nas 7
Exceção feita a estudos como o de Mesquita (2008), na
área da História, além dos que serão mencionados adiante.
8
Se pensarmos na área da antropologia urbana, podem-
3
Isso envolveria etnografia crítica, novas etnografias sobre -se mencionar todos aqueles estudos decorrentes das li-
o capitalismo (incluindo perspectivas sobre políticas eco- nhas de investigação abertas por Cardoso ([1986] 2011) ou
nômicas alternativas) e estudos etnográficos de movimen- Durham ([1986] 2004); para um panorama mais abrangen-
tos sociais, englobando a questão da participação ativa do te, ver Eckert (2010).
próprio antropólogo (Ortner, 2016, p. 65-66). 9
Sem esgotar o tema, ver Arantes (2000), Magnani (2002)
4
Refiro-me, nesse último caso, aos comentários perti- e Frúgoli Junior (2009).
nentes de Mariana Cavalcanti a respeito, quando de sua
participação como debatedora de uma das sessões do GT
10
Ver, a respeito, Simmel ([1903] 2005), Joseph ([1998]
“Urbanidades possíveis nos múltiplos usos da rua” (coor- 2005), Frúgoli Junior (2007) e Magnani (2009).
denado por Cristina Patriota de Moura e por mim, durante
o 41° Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, out./2017).
11
Em seminário no GEAC-USP, em 2015, Julia Di Giovan-
ni estabeleceu uma diferença pertinente entre militância
5
Apenas para um quadro introdutório, ver Wisnik (Folha – prática articulada a partidos, movimentos, com uma de-
de S. Paulo, p. 4-5, 15 nov.2015), Rolnik et al. (2014), Rol- terminada hierarquia organizativa etc. – e ativismo – termo
nik (20 abr. 2015) e Guerra (maio/2015). que antes praticamente não havia no Brasil, que se refere a
ações mais diretas, que se dão, sobretudo, nas ruas, e que
6
Ver, como exemplo, Sobral (O Estado de São Paulo, p. E5, remetem a quadros não hierarquizados; para uma aborda-
30 ago. 2015) e Carrapatoso (mar. 2016). gem da autora, ver Di Giovanni (2015a).
76
Heitor Frúgoli Jr.
termos (ligados a práticas) usados nesses ati- Figura 1 – Ocupação da Praça do Rossio (Lisboa) em
maio de 2011, ligada às manifestações da época na Es-
vismos – como a expressão “ocupações”12– que panha e com a participação de ativistas espanhóis
integram um léxico já presente há tempos, em
outros agrupamentos, como os sem-teto (Pater-
niani, 2016),13 cabendo averiguar, então, quais
seriam suas marcas distintivas.
77
ATIVISMOS URBANOS EM SÃO PAULO
to organizado pelo MPL (Judensnaider et al., imediata, ligada a movimentos sobre mobilida-
2013, p. 83-103). Isso ensejou uma manifesta- de urbana, com uma diversificação posterior
ção com cerca de 100 mil participantes, que radical, maior resistência à tradução, negocia-
começou no Largo da Batata, em Pinheiros, e ção e ressemantização políticas, além de forte
tomou diferentes direções. De acordo com Es- enfrentamento do aparato policial, culminan-
ther Hamburger (2016), parte dessa multidão do na radicalização encarnada pelos black blo-
caminhou deliberadamente para a Ponte Es- cs.19 Acrescentem-se a elas certo aspecto tea-
taiada – obra de engenharia dispendiosa, situ- tralizado, uma crescente individualização (dos
ada na área sudoeste de São Paulo, com diver- ativistas aos “coxinhas”, na fase mais polimor-
sos edifícios corporativos – que compõe a cena fa e polifônica), e certa celebração do indivi-
de fundo de vários noticiários da Rede Globo dualismo, com crescentes desavenças entre os
sediada em São Paulo, ressaltando-se um as- próprios participantes (Damo; Oliven, 2014, p.
pecto performático ligado à busca deliberada 172-176).
de visibilidade na grande mídia. De acordo com Gohn (2014, p. 7-8), entre
Sem traçar aqui uma cronologia exaus- junho e agosto de 2013, ocorreram manifesta-
tiva dos acontecimentos, o fato é que tal dinâ- ções em 483 cidades (com destaque para São
mica se expandiu por diversas metrópoles18, Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Hori-
com múltiplos participantes, em que uma das zonte e Brasília), com cerca de 1 milhão de pes-
bandeiras era o protesto contra os gastos públi- soas nas ruas em 20 de junho. Mas tal aumen-
cos com a Copa do Mundo no Brasil no ano se- to de escala foi também acompanhado, como
guinte (2014), embora não se limitasse a isso. já foi frisado, por certa fragmentação entre os
No estudo já mencionado de Damo e próprios participantes, como atestavam várias
Oliven (2014), destacam-se vários aspectos, imagens das manifestações da época, em que
como uma maior horizontalidade de decisões proliferavam cartazes, que embora pudessem
e a agilidade das convocações, incluindo o ser enquadrados em determinados eixos reivin-
uso ampliado das redes sociais. Além disso, dicativos, apontavam para direções múltiplas,
salienta-se o dinamismo das movimentações bem como para filiações políticas divergentes.20
por diversos espaços urbanos (ruas, parques Angela Alonso (2017), num balanço
e praças, com forte efeito performático), em recente quanto aos desdobramentos das jor-
comparação às ações durante as “Diretas Já” nadas de junho, destaca, quanto a estilos de
(1984) ou “Fora Collor” (1992), em que todos ativismo (correspondentes a repertórios de
Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 82, p. 75-86, Jan./Abr. 2018
78
Heitor Frúgoli Jr.
mistas” e “socialistas”21 – com ações voltadas Tal cenário ficou evidente durante a Vi-
para a ampliação de direitos sociais, cuja vi- rada Cultural de 2016 em São Paulo (evento
sibilidade decresceu no período pós-2013 cultural anual de 24 horas),24 realizada duran-
– e “patriotas” (à direita), agregando liberais, te o processo de impeachment ou golpe, que
críticos ao Estado e políticos, menos visíveis se tornou um espaço explícito de resistência
em 2013, mas que lideraram a oposição ao se- política, uma espécie de termômetro da pulsão
gundo governo de Dilma Rousseff e ao PT em das ruas naquela conjuntura específica, tanto
2015-2016, com ações nas ruas até o impeach- nas apresentações, como nas manifestações do
ment ou golpe (em agosto de 2016). público ali presente.
Nas sendas abertas pela última análise,
Figura 2 - Virada Cultural em São Paulo, 2016: protestos
pode-se reconhecer que, durante diversas ma- durante apresentação do Sarau da Cooperifa e também
por parte do público
nifestações pelo impeachment, a ocupação de
espaços públicos realmente deixou de ser uma
agenda monopolizada pela esquerda,22 com o
predomínio do verde e amarelo nas indumentá-
rias e um conjunto de slogans e representações
antes ausentes nas ruas, num fenômeno a ser
aprofundado em seus significados e alcances.
Mas cabe ainda dizer que os eventos po-
líticos ligados à grave crise brasileira em anda-
mento, mais precisamente os episódios ligados
ao processo de impeachment da presidente da
república e seus desdobramentos, ensejaram
uma série de novas práticas ativistas de con-
testação ao que foi entendido, majoritariamen-
te, como uma modalidade de golpe de estado.
Voltaram-se para o enfrentamento de uma re-
configuração política conservadora, assinalada
pela supressão de uma série de direitos sociais,
cujo rol de ações também merece abordagens
mais sistemáticas: “Uma das grandes novida-
79
ATIVISMOS URBANOS EM SÃO PAULO
Mas fechemos essa parte com uma inda- cionar, sem aprofundamento, o tema referente
gação etnográfica: se, do ponto de vista políti- à recente implantação de ciclovias, ciclofaixas
co, tais ações se tornam imprescindíveis, como e ciclorrotas em São Paulo, decorrente de rei-
pesquisar tal tema quando nos tornamos, de vindicações de longo prazo, num processo que
certo modo e crescentemente, ativistas? Como envolve lutas e negociações – em parte ligadas
desenvolver uma escuta àqueles dos quais po- ao cicloativismo, num claro enfrentamento ao
demos discordar significativamente, por diver- modelo de transporte centrado no automóvel
sas razões? – e que, certamente, se insere na temática da
utilização ampliada dos espaços públicos.28
Mesmo o carnaval de rua de São Paulo, prática
DESAFIOS PARA UMA PESQUISA mais recorrente nos últimos anos (ao contrá-
ANTROPOLÓGICA SOBRE ATIVIS- rio da forte tradição em muitas cidades brasi-
MO URBANO EM SÃO PAULO leiras) pode também ser, em parte, entendido
dentro dessa retomada mais ampla das ruas.29
Pode-se dizer que outra forma de aproxi- Pode-se dizer, de forma sintética, reto-
mação significativa com o tema dos ativismos mando aqui aspectos da introdução, que di-
urbanos veio da sala da aula nos últimos anos, versas ações de coletivos em São Paulo, nos
ao ministrar disciplinas da graduação. Em di- últimos, anos referem-se, sobretudo, aos direi-
versas ocasiões, fui procurado por discentes tos na vida cotidiana da cidade. Temos, aqui,
interessados em pesquisar o tema, isso quando certa inflexão no enfoque, pois se trata de prá-
não eram eles mesmos participantes de algum ticas não apenas relacionadas a protestos, mas
coletivo. Ao mesmo tempo, tem sido possível também com o propósito de obter mudanças
constatar o aumento de matérias da mídia so- concretas nos usos regulares dos espaços pú-
bre o assunto, tanto sobre ações de coletivos blicos. Várias dessas ações norteiam-se pela
em diversos espaços25 como sobre a intensifi- crítica a um modelo urbano baseado na prima-
cação do uso de espaços públicos destinados zia do uso do automóvel, o que leva, como já
usualmente apenas a pedestres,26 sem falar de foi dito, à busca de áreas privadas ou avenidas
uma série práticas festivas nas ruas, antes ine- que sejam abertas a pedestres e renomeadas,
xistentes ou reduzidas.27 Pode-se também men- pontual ou definitivamente, de “parques”. Rei-
25
Sem exaurir os temas, ver: Rossi, M. “São Paulo quer se sevelt-vira-pista-de-danca-na-madrugada.shtml, aces-
apropriar de si mesma”, El País Brasil, https://brasil.elpais. so em 4 ago. 2014; Senra, R. “Prefeitura regulariza uso
Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 82, p. 75-86, Jan./Abr. 2018
80
Heitor Frúgoli Jr.
vindica-se mais espaço para bicicletas através ção de diversos aspectos: as principais redes
de ações do “cicloativismo”, bem como se de- de relação envolvidas – incluindo as articu-
manda a promoção de festas, festivais e deba- lações entre os agentes de vários coletivos; as
tes em áreas públicas e a melhoria de determi- concepções de direitos (e de cidade) referen-
nados espaços públicos. ciais; as táticas praticadas para os fins preten-
didos; o tipo de intervenção realizada e suas
Figura 3 - Celebração Hare Krishna no “Parque Minho-
cão” num domingo de tarde (2016) linguagens específicas; o alcance dos usos de
tecnologias de comunicação; a trajetória socio-
cultural dos principais organizadores; o exame
das novas concepções de liderança num con-
texto de forte horizontalidade, o que não im-
plica evidentemente uma completa des-hierar-
quização; o alcance e os limites das polifonias
pretendidas em tais práticas; as complexas re-
lações com o poder público, em suas distintas
instâncias e planos decisórios; as articulações
de tais práticas com conjunturas políticas mais
abrangentes – períodos em que as reivindica-
ções aumentam exponencialmente, com o ris-
co de fragmentações que também as tornam
bastante difusas.
A própria expressão ativismo (ou ati-
vista) precisa ser examinada quanto ao seu al-
cance num plano êmico – e, por conseguinte,
com o levantamento de outras autoconstruções
identitárias –, o que reforça o exame cuidadoso
da heterogeneidade e diversidade constitutivas
Foto: Frúgoli Junior. do contexto em questão. Um aspecto a ser le-
vado em conta diz respeito a um conjunto de
Tendo em vista tudo que já foi exposto,
ações nas quais haja intervenções regulares nos
e valendo-me da expressão cunhada por Mar-
espaços da cidade, sem que os próprios agentes
81
ATIVISMOS URBANOS EM SÃO PAULO
tegrantes que se dedicam, direta ou indireta- tural e integrante do Coletivo Sistema Negro.35
mente, à investigação sobre o tema. Em dois Nascido numa favela de Osasco (SP), graduou-
eventos de 2016, foi possível introduzir e apro- -se em Ciências Sociais na PUC-SP e depois
fundar questões aqui delineadas.32 concluiu o mestrado. Durante essa trajetó-
No primeiro deles, contamos com a par- ria, veio a elaborar as especificidades de sua
ticipação33 de uma integrante do Movimento condição de negro e de classe média, e parte
Ocupar Estelita (MOE), do Recife, que cons- dessas elaborações se relacionam com sua ati-
titui, há anos, uma referência incontornável vidade de organização de festas de rua,36 em
no campo do ativismo urbano, seja pela luta que aprendeu a se relacionar com uma série de
contra a construção de diversas torres residen- agentes – representantes do poder público, re-
ciais numa importante área pública, o que le- sidentes, moradores de rua, ambulantes – que
varia à privatização do Cais Estelita, seja por tornam a rua um espaço de e em disputa. Mais
aglutinar, por meio da ocupação do espaço e recentemente, veio a participar, durante a ges-
das atividades culturais ali articuladas, uma tão Haddad, da organização de eventos públi-
confluência expressiva de agentes, em diálo- cos de massa, como a “Virada Cultural”, ou o
go com diversos tópicos até aqui trabalhados.34 carnaval de rua, encarados por ele como uma
Nessa ocasião, Larissa K. Montanhas, de 19 tarefa política e estratégica de grande comple-
anos, afirmou, dentre outros aspectos, que o xidade, dada a necessidade de mediação de
movimento tornara possível sua autoidentifi- múltiplos interesses em conflito.
cação como mulher negra e pobre, tornando- Sinteticamente, sua fala complexifi-
-se uma pessoa na sociedade, com direitos e ca uma questão recorrente nos debates sobre
planos profissionais. Ligada ao conjunto mais ativismos em São Paulo, que, em geral, opõe
recente de ativistas do MOE, também frisou a ações em áreas mais centrais e equipadas por
crítica ao alcance dos partidos: “Quem é do PT parte de coletivos de classe média, com for-
não é do Estelita; nem de outros partidos”. São mação universitária, que, conscientemente ou
aspectos surpreendentes, na medida em que não, promoveriam uma espécie de “gentrifica-
esperávamos que o MOE designasse alguém li- ção” dos espaços públicos, enquanto que, nas
gado mais diretamente às questões urbanas en- áreas mais periféricas, tratar-se-ia de lutar por
volvidas, embora se deva reconhecer o desgas- direitos ligados principalmente à vulnerabili-
te dos alinhamentos com o PT e com a questão dade de classe ou à identidade étnica.37
partidária mais ampla nos últimos anos. Para encerrar essa parte, relativa a falas
Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 82, p. 75-86, Jan./Abr. 2018
Num debate com ativistas em outro que inspiram novas problematizações, pode-se
evento já citado, novas falas deram profundi- também mencionar, ainda no mesmo evento, a
dade aos temas até aqui tratados. Foi o caso de
Marcio Black, cientista político, produtor cul- 35
Para mais detalhes, ver: https://pt-br.facebook.com/siste-
manegrodesom011/. Acesso em: 18 jul. 2017.
36
Envolvido com tal atividade desde 2008, ele acompa-
32
Refiro-me ao já citado evento “Ativismos e cidade: di- nhou inclusive a mudança no léxico, da festa à ocupação.
álogos entre coletivos e universidade” (set./2016), numa
parceria com o CPF-SESC-SP, e ao Curso de Atualização da
37
De fato, a primeira parte de um evento de 2015 – “Ati-
USP intitulado “Antropologia da cidade: ativismos, táticas, vismos na cidade, fricções entre o público e o privado”,
insurgências” (set./ dez. 2016). organizado por Guilherme Wisnik e Tiago Carrapatoso no
Centro Universitário Maria Antônia – abriu a palavra ape-
33
Designada pelo próprio movimento. nas para a plateia, com uma perspectiva dialógica polifô-
nica que revelou um conjunto heterogêneo de interesses,
34
Como consta na página Movimento#OcupeEstelita, agendas e questões; apesar da abrangência do dissenso
“Desejamos uma cidade mais inclusiva, que respeite pe- entre os participantes, ligado, em boa parte, à própria dis-
destres, ciclistas, usuári@s de transporte público, ambu- puta pela legitimidade das práticas, ressaltou-se certa po-
lantes, pessoas sem-teto, quem sofreu remoção pela Copa laridade entre agrupamentos envolvidos com urbanismo
2014, morador@s de áreas de baixa renda, mulheres, ou estética, voltados ao uso cotidiano de espaços públicos
homens, LGBTs e dissidentes, crianças, adolescentes, e (mais escolarizados e ligados às classes médias) e aqueles
outros grupos sociais estigmatizados na sociedade” (ver oriundos de áreas periféricas, mais vulneráveis e orienta-
https://www.facebook.com/pg/MovimentoOcupeEstelita/ dos para questões raciais ou de gênero (aspecto ressaltado
about/?ref=page_internal, Acesso em: 18 jul. 2017). por Wisnik, Folha de S. Paulo, p. 4-5 ,15 nov. 2015).
82
Heitor Frúgoli Jr.
83
ATIVISMOS URBANOS EM SÃO PAULO
ALONSO, Angela. “A política das ruas”. Novos Estudos FIOR, Ana C. et al.“Entrevista com Fernando Haddad”.
Cebrap Especial, São Paulo, p. 49-58, jun. 2017. Contraste, São Paulo, n. 4, p. 132-154, mar./2016.
Disponível em: http://novosestudos.uol.com.br/wp- FREHSE, Fraya. “Usos da rua”. In: FORTUNA, Carlos;
content/uploads/2017/06/A-POL%C3%8DTICA-DAS- LEITE, Rogério P. (Orgs.) Plural de cidade: novos léxicos
RUAS-PROTESTOS-EM-S%C3%83O-PAULO-DE-DILMA- urbanos. Coimbra: Almedina, 2009. p. 151-170.
A-TEMER-Angela-Alonso.pdf. Acesso em: 20 jul. 2017.
FRÚGOLI JUNIOR, H. “A cidade no diálogo entre
______ et al. “Novos Estudos Cebrap entrevista Fernando disciplinas”. In: FORTUNA, Carlos; LEITE, Rogério P.
Haddad”. Novos Estudos, São Paulo, n. 103, p. 11-31, (Orgs.) Plural de cidade: novos léxicos urbanos. Coimbra:
nov.2015. Almedina, 2009. p. 53-67.
ARANTES, Antônio A. Paisagens paulistanas: ______. Sociabilidade urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
transformações do espaço público. Campinas: Ed. da
Unicamp, 2000. GOHN, Maria da G. Manifestações de junho de 2013 no
Brasil e nas praças dos indignados no mundo. Petrópolis:
ARLEY, Patrick; RICCI, Rudá. Nas ruas: a outra política que Vozes, 2014.
emergiu em junho de 2013. Belo Horizonte: Letramento,
2014. ______. Manifestações e protestos no Brasil: correntes e
contracorrentes na atualidade. São Paulo: Cortez, 2017.
AUGÉ, Marc. Éloge de la bicyclette. Paris: Éd. Payot &
Rivages, 2010. GUERRA, Abílio. “Parque Augusta: razão e destempero”.
Minha cidade (Vitruvius), São Paulo, ano 15, maio 2015.
BENTO, Berenice. Estrangeira: uma paraíba em Nova Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/
Iorque. São Paulo: Annablume, 2016. minhacidade/15.178/5500. Acesso em: 15 maio 2015.
BERMAN, Marshall. “Os sinais nas ruas” [1984]. In: HAMBURGER, Esther. “Saímos do Facebook?” In:
______. Aventuras no marxismo. São Paulo: Cia. das Letras, KOWARICK, Lúcio; FRÚGOLI JUNIOR, Heitor (Orgs.)
2001. p. 172-191. Pluralidade urbana em São Paulo: vulnerabilidade,
BRAGA, Gibran T. “‘Na rua não se paga entrada’: estilo, marginalidade, ativismos. São Paulo: Ed. 34/Fapesp, 2016.
sexualidade e política em baladas de rua”. In: 38° p. 293-319.
ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS. Caxambu, out./2014. HARVEY, David. “O direito à cidade”. Lutas Sociais, São
Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/ Paulo, n. 29, p. 73-89, jul./dez. 2012. Disponível em:
papers-38-encontro/spg-1/spg20-1/9311-na-rua-nao-se- www4.pucsp.br/neils/downloads/neils-revista-29-port/
paga-entrada-estilo-sexualidade-e-politica-em-baladas-de- david-harvey.pdf . Acesso em: 1º maio 2013.
rua/file. Acesso em: 1º jul. 2017.
HERZFELD, Michael. “Fronteiras/nódulos/agrupamentos”
CARDOSO, Ruth. “Aventuras de antropólogos em campo In:______. Antropologia: prática teórica na cultura e na
ou como escapar das armadilhas do método”. 1 ed. [1986]. sociedade. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 172-193.
In: CALDEIRA, Teresa P. R. (Org.) Ruth Cardoso: obra
reunida. São Paulo: Mameluco, 2011. p. 210-220. JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. [1961].
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CARRAPATOSO, Thiago. “A um passo da cidadania”.
Contraste, São Paulo, n. 4, p. 22-33, mar./2016. JOSEPH, Isaac. “A respeito do bom uso da Escola de
Chicago”. [1998]. In: VALLADARES, Lícia P. (Org.) A
CAVA, Bruno. A multidão foi ao deserto. São Paulo: Escola de Chicago: impactos de uma tradição no Brasil
Annablume, 2014. e na França. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Ed. UFMG/
IUPERJ, 2005. p. 91-128.
Caderno CRH, Salvador, v. 31, n. 82, p. 75-86, Jan./Abr. 2018
84
Heitor Frúgoli Jr.
em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo/Carta
Antropologia Social da UFRGS. Maior/Tinta Vermelha, 2014.
NASCIMENTO, Silvana; OLIVAR, José M. (Orgs.) SARAIVA, Leila. Não leve flores: crônicas etnográficas
“Dossiê ‘Narrativas urbanas em tempos perturbadores: junto ao Movimento Passe Livre-DF”. 2017. Dissertação
uma introdução’”. Ponto Urbe, São Paulo, n. 18, 2016. (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-
Disponível em: https://pontourbe.revues.org/3131. Acesso Graduação em Antropologia Social da UnB.
em: 1º mar. 2017.
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma
NOVAES, Regina; ALVIM, Rosilene. “Movimentos, redes e biografia. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.
novos coletivos juvenis”. In: LOPES, José S. L.; HEREDIA,
Beatriz (Orgs.) Movimentos sociais e esfera pública: o SILVA, Gleicy M. Empreendimentos sociais, negócios
mundo da participação. Rio de Janeiro: Colégio Brasileiro culturais: uma etnografia das relações entre economia e
de Altos Estudos, 2014. p. 269-301. política a partir da Feira Preta em São Paulo. 2017. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) - Programa da Pós-
ORTNER, Sherry B. “Dark Anthropology and its others. Graduação em Antropologia Social da USP.
Theory since the eighties”. HAU: journal of ethnographic
theory, Chicago, v. 6, n. 1, p. 47-73, 2016. Disponível em; SIMMEL, Georg. “As grandes cidades e a vida do espírito”
https://www.haujournal.org/index.php/hau/article/view/ [1903]. Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 577-591,
hau6.1.004/2239 Acesso em: 1º jul. 2017. out./2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/
v11n2/27459.pdf. Acesso em: 1 jul. 2007
PATERNIANI, Stella Z. “Quem não luta, tá morto: política
e vida no centro da cidade”. In: KOWARICK, Lúcio; SOBRAL, Laura. “Primavera paulistana”. O Estado de São
FRÚGOLI JUNIOR, Heitor (Orgs.) Pluralidade urbana em Paulo, São Paulo, 30 ago. 2015. p. E5.
São Paulo: vulnerabilidade, marginalidade, ativismos. São SOLANO, Esther; MANSO, Bruno P. A verdadeira história
Paulo: Ed. 34/Fapesp, 2016. p. 321-347. da tática Black Bloc. São Paulo: Geração Editorial, 2014.
PAQUOT, Thierry. L’espace public. Paris: Ed. La VERGARA, Camile. “Corpo transgressão: a violência
Découverte, 2009. traduzida nas performances do Coletivo Coiote, Bloco
RAPOSO, Paulo. “Festa e performance em espaço público: Livre Reciclato e Black Blocs”. Cadernos de Arte e
tomar a rua!”. Ilha, Florianópolis, v. 16, n. 2, p. 89-114, ago./ Antropologia, Salvador, v. 4, n. 2, p. 105-123, 2015.
dez.2014. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index. Disponível em: https://cadernosaa.revues.org/970. Acesso
php/ilha/article/view/2175-8034.2014v16n2p89/33458. em: 3 abril 2016.
Acesso em: 15 maio 2015. VELHO. Gilberto. “Os mundos de Copacabana”. In:______
ROLNIK, Raquel. “Ocupe Estelita e o novo ativismo”. (Org.) Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil
Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 abr. 2015. Disponível e em Portugal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 11-23.
em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ WISNIK, Guilherme. “A cidade apropriada: o ativismo
raquelrolnik/2015/04/1618763-ocupe-estelita-e-o-novo- urbano e o valor de uso do espaço público”. Folha de S.
ativismo.shtml. Acesso em: 6 maio 2016. Paulo, São Paulo, 15 nov. 2015. p. 4-5.
______ et al. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações
85
ATIVISMOS URBANOS EM SÃO PAULO
This paper presents a summary of the diverse Cet article présente un bilan des occupations
occupations of public spaces in São Paulo, plurielles dans les espaces publics de São Paulo,
especially those in which activists (or similar) have surtout de ceux où les militants (ou apparentés) se
been fighting for the expansion of rights to the city sont battus pour l’expansion des droits à la ville et
and its public facilities. These occupations are à ses équipements publics. Ce genre d’occupations
carried out by networks of collectives comprising se fait par des réseaux de collectifs comprenant
students, artists, architects, associations and des étudiants, des artistes, des architectes, des
many other agents. A focus has been adopted on associations et divers autres agents. L’accent est
the understanding of a certain genealogy of these mis sur la compréhension d’une certaine généalogie
phenomena – of which the days of June 2013 de tels phénomènes – où les journées de Juin 2013
represent an indispensable reference – as well sont une référence indispensable – ainsi que sur
as on the identification of the main ethnographic l’identification des principaux défis ethnographiques
challenges to the anthropological approach. pour une approche anthropologique.
Heitor Frúgoli Jr. – Doutor em Sociologia. Pós-doutorado no Instituto Universitário de Lisboa. Livre-
docente em Antropologia na FFLCH-USP. Professor do Departamento de Antropologia da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Trabalha com diversos temas
relacionados ao campo da antropologia da cidade. Publicou, entre outros textos, Sociabilidade urbana
(Rio de Janeiro, Zahar, 2007) e organizou (com L. Kowarick) a coletânea Pluralidade urbana em São
Paulo: vulnerabilidade, marginalidade, ativismos (S. Paulo, Ed. 34, 2016).
86