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PARTE III
DECIFRANDO O ENIGMA
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A Questão do Porquê
Comparação Intercultural
Em um estudo etnográfico de uma cultura estrangeira, as questões do porquê freqüentemente
derivam da falta de compreensão do pesquisador quanto ao motivo das pessoas em questão
terem a vida que têm ou que acham que têm. O próprio estilo de vida do pesquisador difere-
se de tal modo da cultura explorada que simplesmente se torna impossível compreender ou
aceitar o ocorrido. O pesquisador pode sentir-se ameaçado; ou que seu papel era inadequado
ou desonesto. Neste tipo de situação, onde duas culturas diferentes colidem, uma forma do
pesquisador obter questões do porquê é examinando bem de perto os motivos subjacentes do
padrão de pensamento da pessoa. Deste ponto de vista, deveria ser possível gerar hipóteses
quanto à forma como as presunções da cultura em questão diferem das que prevalecem na
própria cultura; e se, apesar das diferenças a nível superficial, existem de fato certos aspectos
comuns a ambas as culturas. Assim, o processo de pesquisa toma simultaneamente no
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mínimo duas direções: põe a nu, por um lado, as presunções subjacentes da cultura
representada pelo pesquisador e os sujeitos, por outro lado (Alasuutari, 1989; Rabinov, 1977,
119; Willis, 1978, 197-198).
O caso é bem diferente nos estudos de nossa própria cultura. Tudo parece tão
claro e tão axiomático que tudo converge para o banal. Com o propósito de gerar estas
questões do porquê de todo importantes, o pesquisador tem de ser capaz de ver além do
axiomático. Como, então, se problematiza o axiomático? Como estudamos os
fenômenos que conhecemos na prática, mas dos quais não estamos reflexivamente
conscientes?
Uma forma é achar um ponto de comparação de uma cultura diferente que não
se conhece tão bem. Pode-se, por exemplo, examinar uma pesquisa que foi feita sobre
os mesmos e semelhantes problemas em culturas diferentes. Examinando mais de perto
um mundo onde as coisas são diferentes de nossa casa, pode-se fazer o conhecido
parecer estranho. Esta, naturalmente, é a idéia por inteiro da antropologia: comparar
culturas diferentes para tornar visível e inteligível a única forma através da qual toda e
qualquer cultura percebe o mundo e detectar e conceituar os limites da variação
intracultural.
A comparação intercultural pode também ser feita na imaginação, como somos
instruídos por C. Wright Mills em sua magnificente introdução à imaginação
sociológica e habilidade da pesquisa. Pode-se, por exemplo, fazer brincadeiras com o
tamanho relativo de diferentes fenômenos; imaginar como poderiam parecer pequenas
as coisas se os fenômenos forem grandes ou vice-versa. O que haveria de diferente?
“Como seriam as vila pré-literárias de trinta milhões de habitantes?” (Mills 1973, 236).
p. 136
Contradições em relação a Outras Pesquisas
Outra forma de gerar questões do porquê é comparando a idéia que se tem a partir de
um estudo com a idéia que surge da leitura de outros estudos. Se há quaisquer
discrepâncias entre as duas idéias, está-se a meio caminho de alguns bons porquês.
Antes de mais nada, é possível que tenha ocorrido algum equívoco em alguma parte,
que a idéia oriunda dos outros estudos seja mais confiável e mais exata. Entretanto,
mesmo neste caso, permanece a interessante questão do por que da má condução. Qual
foi a causa?
Não raro, no entanto, acaba-se descobrindo que na pesquisa anterior faltou algo
muito importante, que foram feitas as perguntas erradas, se esqueceu de fazer mais de
uma pergunta, ou que as interpretações estavam erradas. Esta é a área em que a pesquisa
qualitativa mostra o seu forte: isto é, enquanto que as investigações propiciam toda a
sorte de informações sobre associações estatísticas entre diferentes variáveis, as
interpretações, no que diz respeito ao que há por detrás destas correlações,
freqüentemente são perfunctórias. É aconselhável, portanto, cotejar os resultados das
investigações com seus achados estatísticos visto que o material qualitativo que se tem
pode levar a uma interpretação significativa ou até melhor. De fato, o projeto de
pesquisa por inteiro pode servir para refutar resultados anteriores e possivelmente para
apresentar uma explicação, como por exemplo, o que levou a tais noções falsas.
Em seu estudo sobre, por exemplo, o que os pais dizem quanto aos hábitos de
seus filhos de olhar televisão, Juha Kytömäki (1991) descobriu que os pais nem sempre
estão muito preocupados com o comportamento dos filhos; pelo contrário, eles dizem
que raramente têm de impor quaisquer restrições ao que os filhos assistem porque
simplesmente não há necessidade. Seus filhos nunca vêem violência, por exemplo —
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embora quando especificamente perguntados eles mencionavam que seus filhos às vezes
assistiam seriados de ação.
Tudo pareceu muito contraditório quando Kytömäki comparou seus achados
com relatos anteriores do controle que os pais tinham sobre o que a família assistia. Por
um lado, a idéia que teve com base em entrevistas com 90 famílias era compatível com
estudos anteriores. Apenas 32 por cento das famílias disseram que realmente
controlavam o que seus filhos olhavam. Uma pesquisa anterior considerara tal uma
indicação preocupante quanto à indiferença dos pais em relação aos hábitos de olhar
televisão das crianças. Entretanto, nenhum destes estudos anteriores haviam dado
qualquer idéia sobre que tipo de controle isto significava; essa questão estava
simplesmente fora de sua alçada uma vez que abordavam-na com base na dicotomia do
sim/não. Kytömäki decidiu reconstruir os achados anteriores e, reduzindo o número de
respostas que dera no mesmo formato sim/não que chegara, obteve mais ou menos os
mesmos números dos relatos anteriores. Entretanto, as respostas de todos os pais com
quem falou tinham a forma “não, mas...”. Examinando mais de perto o que vinha depois
destes mas, surgiram completamente outras respostas. Os pais disseram que não
controlavam o conteúdo do que seus filhos assistiam porque eles não tinha p. 137
permissão para assistir os programas que passavam mais tarde que eram apenas para os
adultos, ou porque eles concordavam com o que era próprio para crianças e o que não
era. Portanto, um controle mais rigoroso tornara-se desnecessário. Por outro lado, nas
famílias em que os pais disseram que controlavam o que seus filhos assistiam, o
controle não parecia muito eficaz, ou os pais e os filhos não concordavam muito bem
quanto às regras concernentes ao que assistiam. Ao contrário do que os estudos
anteriores nos indicavam, os problemas eram piores nas famílias em que os pais
disseram que tinham um controle do que seus filhos assistiam.
A descoberta das inconsistências internas dos dados indicam também algumas questões
interessantes do porquê. Kytömäki, em seu estudo dos hábitos de olhar televisão,
também detectou uma inconsistência deste tipo: por que os pais disseram que seus filhos
nunca assistem a programas de violência, mas na frase seguinte mencionaram diversos
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seriados de ação que freqüentemente contêm cenas de luta e tiros? A resposta, segundo
Kytömäki, foi que, por “violência”, p. 139 os pais compreendiam os programas que
causavam pesadelos. Deste ponto de vista, as cenas realistas de violência
freqüentemente têm efeitos mais profundos do que a violência dos seriados de televisão.
Eu mesmo tenho visto este tipo de contradição em um estudo de observação da
auto-ajuda para pessoas com problemas com álcool (Alasuutari, 1992a, 107-148). Nos
encontros, os membros do A-Guild, um grupo de auto-ajuda para ex-alcoólatras,
gabavam-se do quanto bebiam e, ao mesmo tempo, tendiam a dissimular o quanto as
outras pessoas conseguiam beber. Tendo em mente que este é um grupo cujo propósito é
de estimular os membros a se distanciarem da garrafa, é naturalmente um tanto
contraditório que se gabem dos tempos que bebiam. A explicação foi que, sendo
trabalhadores braçais, estes homens tinham mais interesse nas experiências práticas do
que no conhecimento teórico. Um longo período de bebedeira era, portanto, indicação
de extensa “experiência de campo”, de que os sujeitos em questão realmente sabiam o
que estavam falando e estavam, portanto, na posição de darem conselhos aos outros.
Uma forma bastante eficaz de gerar questões do porquê é procurando por declarações
normativas no corpus dos textos que servem de dados. Com isto não quero apenas dizer
os casos em que alguém expressa uma opinião quanto a como proceder neste ou naquela
situação. Uma norma pode ser expressiva no material de pesquisa na negação,
impedimento ou repreensão de alguém a outrem; por outro lado, pode também ser visto
em alguém pedindo que outrem faça algo. Além disso, as concepções normativas
refletem-se no relato que as pessoas fazem de seu próprio comportamento, como, por
exemplo, na descrição que alguém faça de como segue certo princípio moral. Pode-se
encontrar também pessoas envergonhadas de seus atos defendendo o que estão fazendo,
dizendo que deveriam estar fazendo isto ou aquilo, ou que realmente não deveriam fazer
o que estão fazendo. Por exemplo, alguém acendendo um cigarro poderia parar por um
momento e dizer, mais ou menos em termos de justificação, que deveria realmente
largar o vício. Ou o contrário: pode alguém ostentar ou se vangloriar de alguma coisa.
Por exemplo, alguém pode comentar, quando outra pessoa acende um cigarro, que
conseguiu soltar o vício anos atrás sem qualquer dificuldade.
Sempre que há uma indicação no material sugerindo que possa existir uma
norma, a rigor, o que se encontrou foi uma contradição. A aderência a certo princípio
normativo significa que as pessoas sabem que há igualmente outras opções; elas estão
muito bem cientes da tentação de agir de modo diferente, ou podem querer elevar o
status do comportamento pelo qual tem optado representando esse comportamento
como compatível com seus princípios morais (Alasuutari, 1992a, 9-20, 169-180). Em
cada caso o pesquisador pode tentar descobrir o que realmente há por detrás das
declarações. Outra pergunta interessante p. 140 é: por que e como o princípio
normativo adquire esse status moral elevado? O estar envergonhado de seu
comportamento, o ocultar e o defender suas ações também levantam muitas questões do
porquê; por exemplo: Por que a referência à norma se o indivíduo em questão de
qualquer forma age no sentido contrário à mesma? Por que as pessoas repetidamente
apontam para o princípio normativo se são contrários a este? Sempre que surge uma
norma no material de pesquisa pode-se perguntar por que as pessoas tomam uma
posição normativa em determinado assunto, por que a consideram uma questão moral.
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Num estudo recente em que estava preocupado com as diferentes formas em que
os entrevistados falavam sobre seus hábitos de olhar televisão (Alasuutari, 1992b),
minha atenção foi, com freqüência, atraída para a forma como falavam sobre o que “po-
diam” e “não podiam” fazer. A análise fundamentou-se numa observação que fiz
enquanto lia o material: o hábito de olhar televisão parecia uma questão profundamente
moral para estas pessoas. Há poucos programas que as pessoas não tenham se exigido
dar explicações ou evasivas. Muitos dos entrevistados que disseram que assistiam os
seriados apresentavam algum tipo de adjetivo, por exemplo:
Q: Que tipo de programa você prefere?
A: Assisto todo o tipo de troço sentimental. Lá sei eu, como Dallas, sempre o
assisto, mesmo sendo besta realmente, mas sempre que passa eu assisto.
(Alasuutari, 1992b, 569)
Desta posição vantajosa tirar a noção básica de que quanto mais as pessoas di-
ziam que assistiam determinado tipo de programa sem apresentarem qualquer adjetivo
ou desculpas, mais “respeitável” se tornava o programa. Com base nesta idéia,
prossegui na criação de uma hierarquia de valores de diferentes tipos de programas de
televisão. Isto, por sua vez, propiciou uma base útil para a interpretação da natureza
moral do assistir televisão: quais são os princípios implícitos que tornam certos
programas mais aceitáveis ou menos problemático do que outros?
Assim a procura por pistas que apontem para as normas é apenas o ponto de
partida da pesquisa. Aí não se adota a teoria das normas, isto é, de que um dado
fenômeno cultural ou tipo de comportamento possa ser explicado simplesmente pelo
fato de que na comunidade prevaleça certa norma. A referência às normas pode ter
diversas funções. Em cada caso o pesquisador(a) pode fazer a seguinte pergunta: por
que existe e aparece a norma e qual o seu significado?