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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Tema I

Direito das coisas. Conceito. Posição topográfica no Código Civil. Características. Diferenças para os
direitos pessoais. A taxatividade e as respectivas mitigações. Obrigações propter rem. Obrigação com
eficácia real. Sub-rogação real. Ônus real.

Notas de Aula1

1. Direitos reais

A primeira discussão que se apresenta no estudo dos direitos reais, que é de pouca
relevância prática, diz respeito à nomenclatura que é também empregada nesta seara do
direito: direito das coisas. Coisa, para o Direito Civil, é sinônimo de bem corpóreo,
tangível, e por isso é realmente pouco técnico se falar em direito das coisas, quando se está
tratando da árvore dos direitos reais, ante a amplitude de seus institutos escapar muito à
limitação dos bens corpóreos.
De qualquer forma, os direitos reais, ou direito das coisas, é um dos dois ramos do
Direito Civil, especificamente do campo dos direitos patrimoniais, que se subdivide em
direitos obrigacionais e direitos reais.
O principal aspecto a ser abordado, aqui, é de fato a diferença entre estes dois ramos
do campo patrimonial do Direito Civil, as particularidades e diferenças dos direitos
obrigacionais e dos direitos reais. Vejamos.
Os direitos obrigacionais têm sujeito passivo específico, ou seja, têm um devedor
vinculado à relação. Nunca é um sujeito passivo indeterminado, o devedor obrigacional. No
direito real, por seu lado, o sujeito passivo é indeterminado por essência; é uma
coletividade indefinível, erga omnes. Isto porque o titular do direito real é sujeito ativo de
uma situação jurídica em que se vê detentor de um direito subjetivo, contraposto ao dever
jurídico geral de abstenção perante aquele bem jurídico: devem, todos, abdicar de perturbar
aquele direito real.
Todos têm os dever jurídico de não violar o direito real do seu titular, e quando o
violam, nasce para o detentor do direito subjetivo a pretensão de reparar-se. A pretensão,
por sua vez, esta sim é individualizada, e não erga omnes, porque surge apenas contra
aquele que violou o dever jurídico de abstenção. Veja que no direito obrigacional, em
princípio, somente o devedor daquela relação inter partes poderá ter a aptidão para violar o
dever jurídico, porque este dever é imposto somente a ele, e não erga omnes. A pretensão,
no direito obrigacional, sempre será endereçada a um só sujeito, desde sempre definido – o
devedor –, enquanto esta definição só ocorre, no direito real, quando há a violação, pois
antes disso todos são devedores da obrigação de não perturbar tal direito.
A primeira característica notável dos direitos reais, então, é o fato de serem
absolutos, oponíveis contra a coletividade.
Segunda diferença entre direitos obrigacionais e reais reside na sua origem. Os
direitos obrigacionais surgem da vontade das partes ou da lei, enquanto os direitos reais têm
nascedouro exclusivo na lei. Daí exsurge outra característica dos direitos reais: a sua
taxatividade. Só existem os direitos reais que a própria lei arrolou, não podendo ninguém
criar, à inventividade, novos direitos desta natureza. O rol numerus clausus, taxativo vem
no artigo 1.225 do CC:
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Aula ministrada pelo professor Fernando Augusto Andrade Ferreira Dias, em 10/11/2009.

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“Art. 1.225. São direitos reais:


I - a propriedade;
II - a superfície;
III - as servidões;
IV - o usufruto;
V - o uso;
VI - a habitação;
VII - o direito do promitente comprador do imóvel;
VIII - o penhor;
IX - a hipoteca;
X - a anticrese.
XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481,
de 2007)
XII - a concessão de direito real de uso. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)”

Note-se que o legislador não trouxe, ali, o direito real de garantia da propriedade
fiduciária, que é apontado pela doutrina como um direito real. A propriedade fiduciária,
hoje, ao lado do penhor, da hipoteca e da anticrese, é tida por um direito real, mas como
compatibilizar esta natureza de direito real com a mencionada taxatividade deste rol?
A fim de sanar este imbróglio, os doutrinadores propõem uma diferenciação entre os
conceitos de taxatividade e tipicidade. A tipicidade impõe que o instituto observe
exatamente os limites legais traçados; a taxatividade, por sua vez, o caráter numerus
clausus, diz respeito ao elenco legal, à previsão normativa dos direitos, mas dentro desta
previsão, é possível o alargamento dos conceitos. Um exemplo em que isto se passa, hoje, é
o da propriedade em time sharing, que não está no rol, mas nem por isso o viola – é uma
modalidade de propriedade.
A especificidade de um instituto, então, não viola a taxatividade, violando apenas a
tipicidade, mas como o rol não é típico, e sim taxativo, não há qualquer colisão entre a
previsão de institutos que são variantes dos conceitos ali traçados, como a propriedade
fiduciária e o exemplo da time shared propertie.
A segunda diferença dos direitos obrigacionais, portanto, é a taxatividade dos
direitos reais – que não se confunde com tipicidade, porém.
Terceira diferença diz respeito ao exercício destes direitos. Os direitos obrigacionais
impõem uma conduta do sujeito passivo, do devedor; o direito real se satisfaz com o
simples contato entre seu titular e a coisa, sem que seja necessária conduta positiva alguma
dos sujeitos passivo. Na relação de direito real, o dever jurídico imposto ao sujeito passivo
não está vinculado à satisfação do titular, pois esta satisfação independe do cumprimento do
dever por outrem, em princípio: quem a atende é o próprio titular, exercendo a
disponibilidade sobre a coisa.
Quarta diferença, o objeto: nos direitos obrigacionais, consiste em uma prestação do
sujeito passivo, que pode ser de dar, fazer ou não fazer. No direito real, o objeto é sempre
um bem, corpóreo ou incorpóreo. Característica dos direitos reais que decorre da natureza
de seu objeto é o próprio direito de sequela, que consiste na possibilidade de o titular reaver
o bem de onde quer que ele se encontre, pois todos são sujeitos da relação jurídica absoluta
induzida pela titularidade do direito real – o que não ocorre nos direitos obrigacionais, por
óbvio, ante a natureza de seu objeto, que é prestacional e devido apenas pelo obrigado
relativamente, sendo satisfeita pela via das perdas e danos, quando impossível ou não
quisto o cumprimento específico.

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O poder de sequela encontra mitigações, porém. Veja um exemplo, traçado no


enunciado 308 do STJ:

“Súmula 308, STJ: A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro,


anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem
eficácia perante os adquirentes do imóvel.”

No caso de que trata a súmula, o adquirente do imóvel pode averbar a baixa da


hipoteca que gravava seu bem, ignorando a natureza real desta garantia, excepcionando a
sequela de seu titular original, o agente financeiro perante a incorporadora-alienante. Este
enunciado, de fato, é contra legem, pois a baixa da hipoteca só pode se dar, nos termos
legais, com o pagamento ou com a anuência do credor hipotecário – e esta baixa independe
de tais causas, seguindo-se a súmula.
Outra diferença entre direitos obrigacionais e reais diz respeito ao prazo: o direito
obrigacional é temporário, nascendo para ser extinto com o cumprimento do dever ali
imposto, que é seu fim ideal, quando quer que tenham pactuado os relacionandos. No
direito real, há uma maior estabilidade: se nada acontecer que estremeça a relação, o direito
real perdurará indefinidamente, passando por mais de uma geração de titulares, inclusive,
pela sucessão mortis causa.
Diante destas diferenças apontadas, a classificação de um direito em uma ou outra
natureza – real ou pessoal – é tarefa um pouco mais fácil. Contudo, há direitos que se
situam em uma zona cinzenta, intermediária, cuja identificação em uma ou outra natureza é
de fato impossível. Assim o são as obrigações propter rem: o IPVA, o IPTU, as cotas
condominiais, os direitos de vizinhança, todas estas situações são classificadas em uma
zona de mescla entre as obrigações e os direitos reais (havendo mesmo quem as chame de
sui generis).
Veja que as obrigações propter rem, a princípio, parecem se inserir no campo dos
direitos obrigacionais. Tomemos por exemplo as cotas condominiais: a princípio, consistem
em uma obrigação de pagamento pelo devedor, sendo presentes as características de um
direito eminentemente obrigacional: sujeito passivo determinado, o condômino; obrigação
decorrente da vontade das partes, a convenção condominial; e é temporário, padecendo
inclusive de prescrição. Ocorre, porém, que esta obrigação só surge em razão da existência
de uma coisa, de um bem, vinculando-se a este de forma indelével, hermética – e a
titularidade do direito real sobre este bem é definidora da titularidade passiva da obrigação
que dali surge. Por isso, o adquirente de um apartamento “adquire” também a posição de
devedor obrigacional, tão-somente em razão da sua posição de titular daquele bem
(inclusive em relação às cotas em atraso, diga-se2).
Em relação à cota condominial, vale dizer, há uma peculiaridade a ser apontada: é
obrigado a seu pagamento o proprietário do imóvel, em regra, mas veja que o artigo 1.225,
VII do CC, supra, dispõe que o direito do promitente comprador é um direito real, o que
pode gerar a seguinte situação: o condomínio que tem cotas a si devidas pelo promitente
vendedor executa-o, mas o promitente comprador, que já quitou todo o preço mas não
levou a promessa a registro, e sequer foi parte na ação de cobrança, contesta a afetação do
bem à dívida, porque é ele agora o titular do imóvel. Há duas posições que têm
fundamentos, aqui: a do comprador, que se faz titular de um direito real e tem o bem sobre
2
Este caso das obrigações propter rem, inclusive, é uma peculiar circunstância em que o débito é transferido a
terceiro sem a anuência do credor.

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o qual recai sendo alvejado à sua revelia; e a do condomínio, que diz que o comprador não
se lhe revelava como titular, porque não havia o registro.
Para o STJ, assim se resolve: o promitente comprador que já quitou o preço passa a
ser responsável pelo pagamento da cota condominial, ainda que o promitente comprador
não tenha registrado sua promessa de compra e venda – ou seja, o promitente vendedor não
tem mais legitimidade passiva para o feito. A jurisprudência sólida, hoje, do STJ, é a de que
o legitimado para responder pela cota condominial ou é o proprietário que conste do
registro, quando não há prova da quitação do preço do imóvel pelo comprador; ou é o
promitente comprador, se encontrar prova da quitação e da imissão deste na posse (não
havendo ônus sucumbenciais ao autor quando ajuizada a ação em face do proprietário,
tendo havido a quitação comprovada posteriormente). Veja os seguintes julgados desta
Corte:

“EREsp 261693 / SP. EMBARGOS DE DIVERGENCIA NO RECURSO


ESPECIAL. DJ 10/03/2003 p. 82.
CIVIL. QUOTAS DE CONDOMÍNIO. A falta de registro do contrato no Ofício
Imobiliário não descaracteriza a responsabilidade do promitente comprador pelo
pagamento das quotas de condomínio. Embargos de divergência rejeitados.”

“AgRg no REsp 945935 / SP. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO


ESPECIAL. DJe 03/11/2008.
CIVIL. COBRANÇA. QUOTAS DE CONDOMÍNIO. A responsabilidade pelo
pagamento das quotas condominiais pode recair tanto sobre o promitente
comprador como sobre o promitente vendedor, a depender das circunstâncias do
caso concreto. Na hipótese em que o condomínio não toma conhecimento da
cessão de direitos, o cedente, titular do domínio do imóvel, é parte legítima na ação
de cobrança, ficando afastada a responsabilidade do cessionário/adquirente.
Agravo regimental não provido.”

Outros direitos que se situam na zona cinzenta são os direitos obrigacionais com
eficácia real. São, de fato, obrigacionais, mas vinculam a coletividade, e por isso se
aproximam dos direitos reais – mesmo que, diferentemente dos propter rem, não estejam
vinculados a um direito real qualquer. São obrigacionais, mas ganham eficácia real, erga
omnes, por força de lei, quando registrados (dependendo da publicidade, portanto). Bom
exemplo é o direito de preferência na aquisição de um imóvel por parte do locatário: trata-
se de um direito obrigacional, mas que se registrado o contrato de locação, passa a ter
eficácia real.
Os chamados ônus reais são outra figura intermediária: consistem nos gravames
convencionais impostos sobre determinados bens, limitando seu nível de disponibilidade.
Assim o são, por exemplo, as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e
impenhorabilidade impostas sobre bens deixados causa mortis.

Casos Concretos

Questão 1

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João celebrou contrato de compromisso de compra e venda de bem imóvel em


20/01/2001 com José, tendo por objeto um apartamento, não tendo sido a referida
escritura registrada no cartório imobiliário. Diante da inadimplência desde agosto de
2003, o Condomínio ajuíza a ação de cobrança de cotas condominiais em face do
promitente vendedor que alega ilegitimidade passiva, pois entende que pela promessa já
teria transferido a responsabilidade pelo pagamento da cota condominial ao promitente
comprador. Decida a questão.

Resposta à Questão 1

Hoje, o posicionamento do STJ é de que tanto um quanto outro, comprador ou


vendedor em promessa, podem figurar no pólo passivo, dependendo da imissão na posse e
prova da quitação do preço pelo promitente comprador, mas há quem defenda ser
legitimado apenas aquele que conste do registro. A matéria é controvertida, ainda. Veja o
seguinte julgado do TJ/RJ:

“Processo 2003.001.15850. 1ª Ementa – APELACAO. DES. MILTON


FERNANDES DE SOUZA - Julgamento: 22/07/2003 - QUINTA CAMARA
CIVEL.
CONSIGNACAO EM PAGAMENTO. CONDOMINIO DE EDIFICIO.
COBRANCA INDEVIDA. VIOLACAO DO DIREITO DE AMPLA DEFESA
ANULACAO DA SENTENCA. CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO.
CONDOMÍNIO. PROMITENTE COMPRADOR. LEGITIMIDADE ATIVA.
PROVA TESTEMUNHAL. PRODUÇÃO. UTILIDADE. DIREITO.
1 - A promessa de compra e venda, ainda que não registrada, transfere ao
promitente comprador tanto a obrigação de arcar com as despesas condominiais,
bem como o direito de contestar eventual cobrança indevida.
2 - Neste aspecto, o promitente comprador é parte legítima para propor ação de
consignação em pagamento de cota condominial.
3 - O Juízo, ao julgar procedente o pedido formulado pelo autor sem dar ao réu a
oportunidade de produzir a prova do fato impeditivo, modificativo ou extintivo
desse direito, afronta o princípio constitucional da ampla defesa dos interesses de
litigante em processo judicial e profere sentença irrita (art. 5º LV, da CF).

Questão 2

A viúva Maria das Dores caiu em desgraça no dia 10/03/2004 quando o seu filho,
em razão de uma desilusão amorosa, atirou-se do nono andar do apartamento em que
moravam em Botafogo. Não tendo mais condições psicológicas para continuar residindo
no indigitado imóvel, tenta vendê-lo e descobre que o bem está gravado com a cláusula de
inalienabilidade por conta de ter sido beneficiada na sucessão de seu genitor falecido em
10/02/2003, sendo certo que o de cujus fez o testamento seis meses antes de falecer.
Responda o que pode fazer a pobre mulher, apontando as circunstâncias jurídicas que
envolvem o caso concreto.

Resposta à Questão 2

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Segundo o CC de 2002, o gravame só prevalece quando houver motivo plausível


que o justifique. No CC anterior, não se exigia tal justificativa. Para os testamentos
anteriormente pactuados, a justificativa se impunha em interregno de um ano desde a
promulgação do CC, sob pena de se desfazer o gravame.
No caso concreto, a cláusula foi invocada enquanto ainda não se exigia justificativa,
pois a morte se deu antes do decurso do interregno legal de um ano, como dispõe o artigo
2.042 do CC:

“Art. 2.042. Aplica-se o disposto no caput do art. 1.848, quando aberta a sucessão
no prazo de um ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento
tenha sido feito na vigência do anterior, Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916; se,
no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula
aposta à legítima, não subsistirá a restrição.”

Ainda estando neste “prazo de carência”, por assim dizer, a cláusula não aditada era
plenamente eficaz, portanto. Assim, o gravame não pode ser afastado, mas pode ser
substituído em outro bem, nada importando ao estado das coisas se é este ou aquele bem
imóvel que ter-se-á alienado. Basta, para tanto, solicitar judicialmente esta substituição, em
ação de subrogação de gravame.

Tema II

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Posse I. Teorias conceituais. A teoria objetiva adotada pelo Direito Civil brasileiro. A função social da posse.
Natureza jurídica. Diferença entre detenção, posse e propriedade. Possibilidade da modificação da situação
fática de detentor para a jurídica de possuidor. Desdobramento da posse em posse direta e indireta. Posse
exclusiva e composse.

Notas de Aula3

1. Posse

A posse é um dos institutos mais controvertidos do direito. Este instituto surgiu no


Direito Romano com a necessidade de se proteger situações cotidianas, relacionadas à
situação de contato das pessoas com os bens.
De qualquer forma, o objeto da posse é sempre um bem corpóreo: posse só pode
recair sobre bens tangíveis, e nunca sobre bens incorpóreos.

1.1. Teoria subjetiva de Savigny e objetiva de Ihering

No início do Século XIX, Friedrich Carl von Savigny, estudante do Direito


Romano, trouxe a primeira teoria sobre a posse como medida de defesa de situações fáticas,
do contato entre pessoas e bens. Dizia ele que as situações fáticas envolvendo bens
precisavam de segurança jurídica suficiente para se evitar a barbárie, atribuindo proteção a
tais relações. Afinal, sem a posse protegida, qualquer um poderia simplesmente tomar os
bens de outra pessoa, ao seu alvedrio.
Assim, Savigny propôs como solução para este aparente limbo jurídico que uma
proteção jurídica fosse dada à situação em que houvesse este simples contado de uma
pessoa com um bem, a fim de evitar que a barbárie de instalasse com escoras na omissão do
direito.
Em 1803, Savigny escreveu seu tratado sobre a posse, destacando-a como um
instituto jurídico autônomo, decorrente de uma situação fática – tendo natureza híbrida
entre fato e direito, portanto. Para ele, a posse decorria da junção de três aspectos: o
elemento corpus, que é o contato da coisa com a pessoa, que não precisa ser um contato
efetivo, físico, e sim uma disponibilidade de contato entre pessoa e coisa; o elemento
affectio tenendi, que é a intenção em ter a disponibilidade coisa, a ciência de que se tem a
coisa, de que se tem o corpus – exemplificando a ausência desta affectio quando o sujeito
tem consigo algo e sequer tem ciência deste contato; e, terceiro elemento, o animus domini,
que é a intenção de ter a coisa como se proprietário fosse.
A fórmula da posse, para Savigny, era a seguinte: “P = C + A + a”, sendo “P” a
posse, “C” o corpus, “A” a affectio tenendi, e “a” o animus domini. Alguns autores limitam
a teoria de Savigny a dois elementos – o corpus e o animus domini – mas a interpretação
mais correta não pode excluir a affectio tenendi como elemento autônomo.
Pela relevância fundamental que esta teoria de Savigny empresta ao aspecto
subjetivo da posse – tanto o animus como a affectio –, tal tese se consolidou como a teoria
subjetiva da posse.
Embora a teoria de Savigny tenha dado autonomia ao instituto da posse, ela é uma
teoria restritiva, pois consagra a figura do possuidor apenas quando há a situação anímica
que preencha os elementos subjetivos, desnaturando-se a posse na ausência de tais
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elementos. Havendo o contato com a coisa, e até mesmo o affectio tenendi, mas sem o
animus domini, para Savigny, não há posse: há mera detenção.
Meio século depois, surge outro autor, Rudolf von Ihering, propondo uma releitura
da posse, de forma a ampliar a teoria subjetiva, fazendo inserir-se no conceito de posse
situações que, sob a ótica de Savigny, ali não se enquadrariam. Ihering entendeu que a
verificação da condição anímica daquele que tem o corpus é uma exigência exagerada para
a conceituação da posse.
Para este autor, a posse seria um instituto prévio à propriedade, algo preliminar e
indutor da propriedade – sendo a propriedade uma evolução natural da posse, para ele. A
posse de Ihering seria, portanto, o exercício de um dos atributos do domínio, e não um
instituto autônomo.
A relação jurídica entre a pessoa e a coisa (e à época se falava em relação jurídica
entre pessoa e coisa, e não unicamente intersubjetiva, como hoje é cediço), segundo
Ihering, não dependia de elementos subjetivos para se configurar, bastando, então, o
corpus. Por isso, exercendo atributos do domínio, o indivíduo é já possuidor da coisa, sem
se cogitar do seu estado anímico (o qual estaria implícito na própria presença do corpus).
Destarte, se chama esta tese de teoria objetiva da posse.
Repare que a fórmula da teoria de Ihering contempla também o affectio tenendi,
deixando de lado apenas a intenção em ser proprietário. É exigível de quem tenha o corpus
que tenha também a ciência de tê-lo; o que não se exige é que, além disso, tenha também o
animus domini, o ânimo de dono. Destarte, a fórmula de Ihering não é simplesmente “P =
C”, como diz parte da doutrina, e sim “P = C +A”.
A teoria de Ihering, porém, recebe críticas quanto à vinculação da posse à
propriedade, retirando a autonomia do instituto, apesar de alargar muito seu alcance.
A figura da detenção, para Ihering, a grosso modo, inexistiria: se toda pessoa que
tem corpus, estando ali implícita a preliminar de propriedade, por assim dizer, todos que
exibirem contato com a\ coisa seriam possuidores. A detenção, para este autor, nada mais é
do que a posse que foi desqualificada pelo legislador. A fórmula da detenção de Ihering
seria, então, “D = C + A – T”, em que “D” é detenção, “A” é o affectio tenendi, e “T” é a
desqualificação de posse feita pelo legislador. Para Savigny, a detenção é a posse sem
animus domini, ou seja, “D = P – a”.
O artigo 1.196 do CC demonstra a adesão de nosso ordenamento à teoria objetiva da
posse, se Ihering:

“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno
ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.”

Uma ressalva, aqui, é que na verdade o possuidor exerce os direitos inerentes ao


domínio, e não à propriedade. Há que se abordar, aqui, a diferença entre propriedade e
domínio. Em que pese haver quem entenda tais expressões como sinonímicas do mesmo
instituto, a propriedade seria uma relação jurídica de direito real, entre pessoas, enquanto o
domínio seria um atributo da vinculação ente o proprietário e a coisa – o proprietário teria
domínio sobre a coisa. O possuidor tem também o domínio sobre a coisa, mas não tendo a
propriedade, não tem todos os atributos desta, que são o uso, gozo, disposição e sequela. O
possuidor não-proprietário tem os demais atributos da propriedade consigo, como o uso, o
gozo ou fruição, e a disposição, mas carece-lhe a sequela, a reivindicatio, que é atributo
inerente apenas da propriedade. O possuidor não-proprietário exerce todos os atributos do

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domínio – uso, gozo e disposição –, mas não exerce todos os atributos da propriedade, eis
que a sequela só incumbe a esta. É claro que o possuidor tem pretensão possessória,
podendo valer-se dos interditos possessórios, mas não tem pretensão petitória que o
ampare, pois esta só assiste a quem detém a propriedade.
As hipóteses de detenção previstas em nosso CC são trazidas no seu artigo 1.198:

“Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de


dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento
de ordens ou instruções suas.
Parágrafo único. Aquele que começou a comportar-se do modo como prescreve
este artigo, em relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor, até que prove
o contrário.”

Não é possuidor, e sim mero detentor, aquele indivíduo que é um servo da posse,
um fâmulo da posse, ou seja, aquele que apenas tem consigo o bem que é possuído por
outrem, a fim de cumprir suas ordens. Há, para o detentor, o contato com o bem, sendo que
seus atos são restritos ao que lhe comande quem realmente possua o bem.
O detentor não tem proteção possessória própria, porque não tem posse. Contudo,
pode, e deve, proteger a posse daquele que lhe confiou o bem em detenção, na qualidade de
gestor de negócios ou de representante. Por exemplo, o detentor deve repelir esbulhos, por
meio do desforço imediato e necessário, em nome do possuidor.
O artigo 1.208 do CC traz mais duas hipóteses de detenção:

“Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim
como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão
depois de cessar a violência ou a clandestinidade.”

Estas situações ali apontadas são transitórias, sem definitividade, atos de permissão
ou tolerância destinados a duração temporária. Bom exemplo é o de alunos que, durante as
aulas, detêm as cadeiras em que se sentam, não se tornando, por este contato, possuidores
do bem – a posse é da instituição de ensino.
Há uma diferença simples entre permissão e tolerância: o seu momento. A
permissão ocorre antes do contato, e a tolerância ocorre após. A provisoriedade é essencial
para configurar a tolerância ou a permissão, mantendo a situação no campo da detenção,
pois se a situação se consolidar, pode comutar-se em posse. Como exemplo, se um vizinho
tolera que outro assuma a sua vaga de garagem uma, duas vezes, não há posse, havendo
mera tolerância; se o vizinho, porém, tolera que o outro pare em sua vaga por muito mais
tempo – o que é casuístico –, pode estar presente a posse, e não a mera detenção.
Na segunda parte do artigo supra, o legislador diz que há mera detenção quando o
contato com a coisa vem de ato violento ou clandestino, passando a haver posse quando
cessar a violência ou clandestinidade. É preciso bastante cuidado na leitura deste artigo
supra, especialmente diante de sua combinação com o artigo 1.200 do CC:

“Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.”

Alguns autores, erroneamente, entendem que a situação já configura posse no curso


da violência ou clandestinidade, e não detenção, com a só diferença que esta posse é
injusta. Esta interpretação não é correta, porque seguindo-se a leitura do artigo 1.208 do
CC, fica claro que não há sequer posse enquanto praticados atos de violência e

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clandestinidade – há mera detenção. A interpretação correta é de que, enquanto não


cessarem os atos de violência ou clandestinidade, só há detenção; cessados os atos, há posse
injusta.
O artigo 1.208, fine, trata da chamada detenção autônoma, independente, a qual não
depende de nenhuma atuação de qualquer pessoa que não o próprio detentor-esbulhador. Na
parte inicial, o detentor não é autônomo – é tolerada ou permitida sua detenção. A diferença
é que o detentor autônomo pode se valer de interditos possessórios, e inclusive pode ser réu
em ações possessórias ou petitórias.
Uma última hipótese de detenção é a que pode se inferir do artigo 100 do CC:

“Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são
inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei
determinar.”

O STJ entende que não caracteriza posse o exercício atributos de domínio sobre
bens públicos de uso comum e de uso especial, sendo apenas detenção, porque entende que
não é cabível o manejo de interditos possessórios em face do Poder Público.
Esta posição merece críticas, porém, porque além de não ser expressa esta
configuração de detenção, o próprio STJ entende que nada impede que haja a entrega
contratual de posse efetiva destes bens para a prestação de serviço público por particulares.

1.2. Teoria social da posse

Hoje, a explicação da posse passa pela funcionalização do direito, tal como quase
todos os demais institutos de Direito Civil, ou seja, é tomada em conta a
constitucionalização da posse, assim como dos demais ramos do Direito Privado.
A função social da posse, portanto, é defendida por quase todos os doutrinadores
modernos. Contudo, sua aplicação empírica ainda é tímida, de difícil constatação,
especialmente no plano normativo e judicial. Normativamente, há alguns enxertos que
podem ser apontados. O primeiro é a previsão do artigo 1.228 do CC:

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o


direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1° O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou
utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3º O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por
necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição,
em caso de perigo público iminente.
§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco
anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em
conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse
social e econômico relevante.

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao


proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel
em nome dos possuidores.”

No § 4°, há a configuração de uma situação em que a posse será protegida contra a


propriedade, em atenção à função social da posse que ali pode ser percebida. Este
dispositivo é tido pela doutrina como uma desapropriação judicial, ante a indenização que
o § 5° estabelece. Sobre esta indenização, diga-se, a responsabilidade por seu pagamento é
altamente controvertida, havendo quem defenda que seja o Poder Público, e quem entenda
que são os adquirentes aqueles que deverão com ela arcar – posição que é a do CJF, como
se vê no enunciado 84 da Primeira Jornada deste Conselho:

“Enunciado 84, CJF – Art. 1.228: A defesa fundada no direito de aquisição com
base no interesse social (art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser
argüida pelos réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelo
pagamento da indenização.”

A doutrina maior não concorda com o enunciado acima, entendendo que é o Poder
Público quem arcará com esta indenização, especialmente quando os possuidores forem de
classe carente, ante a alta função social desta dinâmica. De fato, a melhor leitura é mista: se
os possuidores podem pagar, que paguem; se são de classe necessitada, o Poder Público
assume a obligatio.
A função social da posse pode ser percebida também nas reduções que o CC operou
nos prazos de usucapião, tanto ordinária quanto extraordinária, justamente em prol da
função social. Veja os parágrafos únicos dos artigos 1.238 e 1.242 do CC:

“Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir
como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e
boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá
de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o
possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado
obras ou serviços de caráter produtivo.”

“Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e


incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel
houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo
cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem
estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e
econômico.”

O artigo 1.210, § 2°, do CC também exibe a atenção que o legislador teve à função
social da posse, ao afastar a exceção de domínio na discussão possessória:

“Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação,
restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de
ser molestado.
§ 1° O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua
própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não
podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

§ 2° Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade,


ou de outro direito sobre a coisa.”

Além destas, a jurisprudência vem reconhecendo a supressio como uma


consolidação de defesa da posse e sua função social. Consiste, a supressio, na proteção de
uma expectativa de direito surgida do não exercício, por outrem, de um direito
originalmente legítimo. Neste sentido, o Judiciário tem acatado o direito do possuidor
manter-se no bem, quando reconhecer a perda do direito de reivindicar do proprietário
porque não o exerceu em tempo razoável.
Poder-se-ia até falar mesmo em uma quinta reverberação da função social da posse,
segunda construída pelo Judiciário: a necessidade de comprovação de que o esbulhado,
turbado ou ameaçado dá ao bem a destinação social esperada, para a concessão de liminares
ou mesmo para a tutela final de mérito. Sem que o autor da ação comprove cumprir a
função social, não se concede, em tese, a liminar, ou a tutela final será improcedente.
Vê-se, então, que para além das teorias objetiva e subjetiva da posse, a teoria social
também se impõe, sem afastar os raciocínios construídos pelas antecedentes.

1.3. Natureza jurídica da posse

Uns entendem que a posse é um fato: Sylvio Capanema, por exemplo, defende que a
posse é somente uma situação fática, porque pode ser adquirida até mesmo por um ato
ilícito, como o esbulho, e não pode ser adquirida por título, somente por efetivo contato
com a coisa ou disponibilização desta.
Outra teoria entende que a posse é uma situação fática, pois se consolida dentro do
mundo dos fatos, mas que ganha eficácia jurídica, alçando status de direito, eficácia
jurídica. É a teoria seguida por Savigny.
Ihering, em uma terceira teoria, entende que a posse é um direito, pois se demonstra
como uma situação jurídica de vantagem. Esta tese se desdobra em três outras: há quem
entenda que se trata de um direito real; há em quem a trate como direito obrigacional; e há
ainda quem defenda ser um direito sui generis. Ihering crê ser um direito real, por sua
oponibilidade erga omnes. Darcy Bessone entende se tratar de direito obrigacional, por não
estar elencada no artigo 1.225 do CP, rol taxativo. Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves
entendem ser sui generis, porque não se amolda a nenhjuma das classificações de direitos
em reais e obrigacionais, variando, inclusive, quanto a sua origem: se surgida de um
contrato em que só ela é entregue – como na locação –, é obrigacional; se decorrente da
propriedade em si, é real; e se for autônoma, como a do esbulhador, é sui generis.

1.4. Desdobramentos da posse

Dentro da teoria objetiva de Ihering, o exercício da posse de dá com o exercício de


fato de um dos atributos do domínio, como visto. Savigny diz que é o exercício do corpus,
somado ao ânimo de ser dono. De acordo com a teoria subjetiva, não há como se considerar
o locatário, por exemplo, como possuidor – não há animus domini, sendo mero detentor.
Para a teoria objetiva, de Ihering, o locatário é naturalmente enquadrado como possuidor,
vez que exerce atos próprios de proprietário, atributos do domínio, como o uso.
Ocorre que, no exemplo, o locador também está exercendo atos de posse: está
fruindo o bem, o que se vê na percepção dos aluguéis. Veja que na teoria objetiva, há duas

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

pessoas desempenhando condutas características de posse, simultaneamente, e é por isso


que se diz que há um desdobramento da posse: há o possuidor direto (locatário, no
exemplo) e o possuidor indireto (locador). O artigo 1.197 do CC esclarece:

“Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder,
temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de
quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o
indireto.”

A doutrina já se pacificou quanto ao cabimento da recíproca, na parte final deste


dispositivo: tanto pode o possuidor direto tutelar sua posse contra o indireto, como ali
expresso, como pode o contrário, o indireto tutelar-se contra o direto. Veja o enunciado 76
do CJF:

“Enunciado 76, CJF – Art. 1.197: O possuidor direto tem direito de defender a sua
posse contra o indireto, e este, contra aquele (art. 1.197, in fine, do novo Código
Civil).”

Ambos, por óbvio, têm proteção possessória contra terceiros.


A posse indireta ainda pode se desdobrar mais uma vez, ocorrendo uma
verticalização desta: é o caso da sublocação, em que os três têm posse, sendo o sublocatário
o possuidor direto, e os demais possuidores indiretos.

1.5. Composse

A composse não se confunde com o desdobramento da posse: consiste na união de


duas ou mais pessoas na posse de um bem, de forma não desdobrada. Por exemplo, um
casal que assuma a locação de um imóvel assume a composse direta deste – nos mesmos
moldes de um condomínio.
Em regra, a composse se dá em bens indivisíveis, pro indiviso. Assim se dá em um
loteamento irregular, por exemplo, ou em um condomínio edilício, quanto às áreas comuns.
Os compossuidores podem exercer proteção possessória uns contra os outros,
sempre que o exercício da posse por um deles afastar a regularidade do exercício da posse
pelo outro.
Nada impede que haja a seguinte situação: compossuidores de um terreno indiviso
instalem suas acessões, levantem seus imóveis, e tenham uso específico e individual de sua
acessão naquela parcela do terreno compossuido. Para tanto, é preciso um acordo, não
sendo possível a demarcação, ao livre gosto do compossuidor, da área que quer fracionar
para construir o seu imóvel – sob pena de padecer de proteção possessória pelos demais
compossuidores.

1.6. Inversão do caráter da posse

O artigo 1.203 do CC diz:

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 1.203. Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter
com que foi adquirida.”

O detentor autônomo, aquele que obtém o bem por esbulho, violento ou clandestino,
se torna possuidor, com posse de má-fé, quando cessam os atos de violência ou
clandestinidade, como se viu. Se já ingressou com o intuito de apoderar-se do bem, sua
posse será ad usucapionem.
O problema se dá é quando se está diante da posse em caráter precário. Na situação
precária, o detentor sempre assume o contato com o bem sem a intenção de ser dono.
Quando o detentor precário esbulha o proprietário, tornando-se possuidor, a rigor a sua
posse tem que ser igualmente precária, ou seja, meramente ad interdita, porque não se pode
entender que tenha qualquer animus domini no início, e o ato ilícito de subverter sua
condição de fâmulo em possuidor não pode converter o animus original.
Este sempre foi o pensamento majoritário, mas o STJ tem caminhado, corretamente,
no sentido contrário: se o detentor esbulhou o bem valendo-se da sua condição precária, do
abuso de confiança, não sofrendo a perda por meio dos interditos possessórios ou petitórios
de que o esbulhado dispunha, ele passa a ter uma expectativa tal que faz alterado seu ânimo
em relação ao bem, e que deve ser juridicamente valorada. Mesmo vindo da precariedade, a
posse será ad usucapionem, não porque simplesmente inverteu a detenção em posse, tendo
com isso convertido seu animus, mas sim porque a omissão do titular em proteger sua posse
gerou-lhe esta expectativa, esta sim capaz de inverter a natureza do animus. É, de fato, mais
uma repercussão da supressio.
Em suma, o detentor autônomo pode inverter seu ânimo, tornando-se possuidor ad
usucapionem pelo esbulho. O detentor dependente, idem, desde que haja a expectativa
criada pela omissão do esbulhado na precariedade.

Casos Concretos

Questão 1

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Um co-herdeiro adquire automaticamente a composse de um bem hereditário para


efeito da sucessão "mortis causa" mesmo quando este bem esteja de fato no gozo exclusivo
de outro dos co-herdeiros?

Resposta à Questão 1

Há duas correntes. A primeira defende que a saisine entrega aos herdeiros a


propriedade e a composse do bem, mas a posse só se consolida com o exercício de fato. Por
isso, apenas aquele co-herdeiro que está no gozo de fato terá posse. Todos recebem a
composse, mas o uso exclusivo por um deles afasta a posse indireta dos demais – podendo
eles valerem-se dos interditos possessórios.
Capanema defende, por seu turno, que não há composse: há apenas condomínio,
pois a posse é situação de fato. Veja o que diz o artigo 1.784 do CC:

“Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros
legítimos e testamentários.”

O que o CC transmite é a propriedade, pela saisine, e não a posse, que é uma


situação fática. Repare que houve, na promulgação do novo CC, a supressão do termo
posse da redação do artigo correspondente, no CC de 1916, o artigo 1.572, o que parece
corroborar esta tese do professor Capanema:

“Art. 1.572. Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se,


desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.”

A posse se transmite de fato, e não por título, pelo que apenas o herdeiro que exerce
atos de domínio tem a posse, e não os demais co-herdeiros, os quais poderão se valer
apenas de ações petitórias.

Questão 2

O caseiro Joaquim Nabuco, desde o falecimento de seu patrão, Manoel Pereira, em


10 de fevereiro de 1971, não recebe salário, e passou a residir no imóvel de seu ex-patrão
a partir de 1978, ocasião em que cedeu a casa de caseiro para a sua filha que se casara, e
ainda fez modesta acessão no terreno para outro filho. A despeito de alegar o
desconhecimento da situação fática do imóvel, o fato é que Felix Pereira, filho de Manoel
Pereira, munido de Carta de Adjudicação registrada no cartório imobiliário, ajuíza ação
reivindicatória com o fito de imitir-se na propriedade do imóvel que julga lhe pertencer.
Pergunta-se: O que pode ser deduzido em defesa de Joaquim? Você, como Juiz, como
decidiria?

Resposta à Questão 2

Joaquim, detentor dependente, passou a exercer posse ad interdita, segundo a


corrente clássica, quando esbulhou o bem que tinha precariamente. Contudo, o STJ entende

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

que a omissão do proprietário permite que o possuidor por esbulho altere seu animus, por
supressio do direito de reaver a coisa, o que torna a posse ad usucapionem.
Sendo o juiz da causa, reconheceria a usucapião do réu da reivindicatória, julgando
aa ação improcedente.

Tema III

Posse II. Posse justa e injusta: identificação da posse violenta, clandestina e precária. Convalescimento dos
vícios objetivos da posse. Princípio da manutenção do caráter da posse e a interversão do título da posse.

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Posse de boa-fé: conceito, justo título e análise da situação jurídica do possuidor de boa-fé e má-fé. Aspectos
relevantes do direito de retenção.

Notas de Aula4

1. Classificação da posse

Há vários critérios para classificar a posse, classificação que se faz importante pela
diversidade de aspectos pelos quais a posse se apresenta. Para começar esta classificação, é
importante remontar, inicialmente, à diferença entre o jus possessionis e o jus possidendi.
Jus possessionis são os direitos decorrentes da posse. Se a posse é, em si mesma,
um fato e um direito – para alguns, como se sabe, porque a discussão é infinda –, há
direitos do possuidor que merecem tutela legal, como, por exemplo, o direito de proteger
sua posse contra ingerência indevida de terceiros; o direito a ser indenizado pelas
benfeitorias necessárias; o direito de retenção até a colheita da indenização por tais
benfeitorias; o direito à percepção dos frutos produzidos pela coisa, todos são direitos do
possuidor, jus possessionis.
O jus possidendi, por seu turno, é o direito à posse. É o direito daquele que, ainda
sem posse, tem direito a obtê-la. É, por exemplo, o direito de quem compra algum bem,
devendo receber a sua posse (pois a pose é a otimização econômica da propriedade).
A importância prática desta primeira distinção é alta, pois para que alguém possa
manejar os interditos possessórios, por exemplo, é preciso que tenha jus possessionis, não
bastando o jus possidendi: a defesa da posse é direito do possuidor, e não direito à posse. A
nuance é tênue, nas palavras, como se vê, mas não o é na visualização empírica: se jamais
houve posse, e se pretende havê-la, há jus possidendi, o que fundamenta ações petitórias,
como a imissão na posse, para obtenção da posse; se há posse, e pretende-se protegê-la ou
reavê-la, isto decorre do jus possessionis, e há proteção possessória, por meio dos interditos
possessórios, para proteção da posse.
Outra classificação, proposta por Ihering em sua teoria objetiva, divide a posse em
direta e indireta. Este desdobramento da posse só existe na teoria de Ihering, e não na de
Savigny. Posse direta é a que se transfere a um terceiro, em razão de um contrato, ou em
razão da instituição de um direito real, e é sempre provisória, tendo implícita a obrigação de
restituir o bem ao possuidor indireto. Ao locatário, ao comodatário, ao depositário, como
exemplos, se entrega a posse direta do bem locado, por via contratual; ao credor
pignoratício, ao usufrutuário, como exemplos, passa-se a posse direta em razão da entrega
de um direito real. A posse indireta, por seu turno, é a que remanesce com aquele que
transferiu a posse ao que agora é possuidor direto – locador, comodante, nu-proprietário,
etc.
A importância prática deste desdobramento é que ele fortalece a defesa da posse,
pois tanto um como o outro, tanto o direto como o indireto, são legitimados isolados a
defender a posse contra terceiros. Seguindo-se a teoria de Savigny, todos que se entendem
por possuidores diretos seriam meros detentores, porque carentes do animus domini que
nesta teoria subjetiva é necessário à configuração da posse.
A posse própria, ou em nome próprio, é aquela que incumbe ao proprietário,
quando cumula o domínio e a posse – o que é o mais comum, diga-se. Pode-se confundir
esta posse com a posse direta, porque na prática quem tem a posse própria tem também a
4
Aula ministrada pelo professor Sylvio Capanema de Souza, em 28/7/2009.

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

posse direta, mas o inverso não é verdade: o possuidor direto, criteriosamente, no rigor do
conceito, não tem posse própria, como se vê no exemplo claro do locatário.
A posse se classifica também em natural, de fato, ou civil, jurídica. Posse natural é
a que independe de título, sendo adquirida por alguém que encontra a coisa e com ela trava
contato, como quando há descoberta de uma res nullius, ou de uma res derelicta. A posse
natural decorre de uma situação meramente fática. A posse civil, por seu turno, decorre de
um título, de uma relação jurídica qualquer, como a entrega contratual do locador ao
locatário.
Outra classificação separa a posse originária da posse derivada. A posse originária
é aquela conseguida pelo possuidor por meios próprios, sem qualquer ato de transmissão
pelo possuidor prévio. Exemplo simples é o de quem apreende coisa abandonada, res
derelicta. Posse derivada, ao contrário, é a que é passada por um possuidor ao sucessor, ou
seja, envolve transmissão da posse, e não aquisição original desta. É a posse adquirida pelo
comprador das mãos do vendedor.
A relevância desta divisão é que a posse originária não carrega consigo quaisquer
vícios, iniciando uma relação possessória com marco zero em sua constituição. A derivada,
por sua vez, carrega consigo as mazelas que a posse anterior contivesse.

1.1. Posse justa ou injusta

Esta classificação merece vir tratada em apartado, tamanha sua relevância. Posse
justa é aquela que não tem qualquer vício a contaminá-la. É a posse do locatário, durante o
curso do contrato, do usufrutuário, enquanto regular o usufruto, etc. posse injusta é a que
tem qualquer contaminação por um dos vícios que podem afligir a posse, que, na tradição
romanista, são vim, clam, precarium, ou seja, violência, clandestinidade e precariedade.
A violência ocorre em seu sentido dicionário: é a força física ou moral que compele
o possuidor original a deixar a coisa, passando sua posse ao possuidor injusto. É o esbulho
praticado por coação física ou moral.
A clandestinidade é a posse colhida de forma disfarçada, com astúcia, à revelia do
possuidor legítimo. É aquela posse adquirida sorrateiramente, por exemplo, quando o
possuidor invadiu terreno alheio durante a noite, sem que ninguém visse, e ali se instalou.
A precariedade, ao contrário do que se pode pensar, não é sinônimo de
temporariedade. É posse precária aquela obtida por abuso de confiança, por quem já tinha a
posse temporária, como no caso do possuidor direto: todo possuidor direto é precarista, e
sua posse que é justa se torna injusta quando, devida a restituição, a esta se recusa. Veja que
é sempre temporária, a posse justa do precarista, mas ainda não é precária, somente se
tornando injusta quando, devida a restituição, o possuidor direto abusa da confiança em si
depositada e se recusa a devolver a coisa.
No direito penal, se encontra bem uma correspondência a estas causas de posse
injusta: a posse violenta se confunde com o crime de roubo; a posse clandestina
corresponde ao furto; e a posse precária se equipara à apropriação indébita.
Os vícios da posse não são somente estes. Há casos intermediários. Veja um
exemplo: alguém invade terreno que sabe ser alheio que entendeu abandonado, sem
violência, sem clandestinidade, e sem título algum que lhe configure como precário. Em
uma interpretação literal, dir-se-ia que tal posse é justa, pois nec vim, nec clam, nec

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

precário. Contudo, em uma interpretação mais esclarecida, a perda da posse aqui se dá


contra a vontade do titular, e por isso há injustiça, há esbulho.
Questão intrincada diz respeito à convalescência ou não da posse injusta, se o vício
comporta sanação ou não, quando da remoção do vício. Como exemplo, cessada a
violência, se o esbulhado não tentar recuperar a posse, manejando interdito ou queixando-se
do esbulho à autoridade, diz-se que o vício convalesceu; o mesmo se dá quando o possuidor
original descobre a invasão clandestina, e nada faz.
Note que a violência e a clandestinidade já maculam a posse do atual possuidor
desde o seu início, desde o esbulho, e assim permanece enquanto os vícios estiverem em
curso – enquanto houver a violência e a clandestinidade em curso, em verdade, não há
sequer posse, e sim mera detenção. São vícios que afetam a aquisição da posse na origem,
mas que podem convalescer. Se o esbulhado, cessada a causa, não toma qualquer
providência, a posse convalesce. Veja que não passa a ser justa: apenas cessa o vício, mas a
posse ainda é injusta.
A precariedade, por seu lado, não segue a mesma dinâmica, porque na sua origem a
posse era justa. O locatário, exemplo mais comum, recebeu a coisa em posse justa, quando
firmou o contrato. Recusando-se injustificadamente a restituir o bem, somente então surge
o vício, que é claramente superveniente. Por isso, a doutrina sustenta que a precariedade
não convalesce, permanecendo precária sempre.
Reitere-se: convalescendo ou não o vício, a posse será sempre injusta, quando foi
afetada por eles em algum momento.
A posse injusta ainda comporta que o possuidor a proteja contra terceiros, sendo
posse ad interdicta (classificação que será vista adiante).

1.2. Posse de boa ou má-fé

De início, ressalte-se que não se pode traçar uma correlação absoluta entre a posse
de boa ou de má-fé com a posse justa ou injusta. As classificações, e os motivos, são
diversos, podendo existir, em um exemplo extremo, posse triplamente injusta, com os três
vícios, mas que ainda é de boa-fé. Vejamos.
O conceito de justiça ou injustiça da posse é eminentemente objetivo: basta
constatar se há o vício ou não. O conceito de posse de boa ou má-fé, por seu turno, é
essencialmente subjetivo, pautando-se pela mente do possuidor. É, inclusive, um bom
exemplo de atenção à boa-fé subjetiva no Direito Civil. A posse de boa-fé é aquela,
realmente, em que não há vícios na posse, ou, se os há, o possuidor simplesmente os ignora.
O possuidor de boa-fé tem firme convicção que é legítima a sua posse, desconhecendo
eventuais vícios que a atinjam.
A posse de má-fé é aquela em que o possuidor tem conhecimento dos seus vícios,
ou pelo menos poderia e deveria ter tal ciência, e ainda assim não se demite da posse. Veja
que basta o potencial conhecimento do vício para eivar de má-fé o possuidor, mesmo que
não tenha tal conhecimento: se à luz do homem médio é situação em que se espera ciência
do vício, há má-fé mesmo se não o conhecer efetivamente. Ao contrário, se o
desconhecimento do vício for escusável ao homem comum, a posse é de boa-fé.
A importância prática de identificar a fé do possuidor é enorme. Dentre os exemplos
de relevância, o possuidor de boa-fé tem direito a perceber indenização pelas benfeitorias
necessárias e úteis que tenha realizado no curso de sua posse, podendo até mesmo reter a

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

coisa até tal indenização ser-lhe paga, enquanto o possuidor de má-fé pode colher
indenização apenas pelas benfeitorias necessárias5, e não em qualquer direito de retenção.
O possuidor de boa-fé conserva, ainda, os frutos percebidos, entregando apenas os
pendentes; o de má-fé, deve entregar os frutos pendentes, e indenizar os percebidos. Por
fim, mais um exemplo de diferença é que o possuidor de boa-fé não responde pelo
perecimento da coisa, quando decorrente de fortuito; o de má-fé, responde integralmente,
mesmo quando perece por força maior.
Veja que a lei impõe estas sanções ao possuidor de má-fé como um incentivo a que
ele se demita da posse, o que não se repete quanto ao possuidor de boa-fé.
Quando o possuidor vinha com boa-fé, mas no curso do tempo passa a ter ciência
dos vícios que ignorava, e ainda assim permanece na posse, há a inversão da natureza de
sua fé – a interversão da posse. Até o momento da interversão, será tratado como a sua fé
impunha, ou seja, terá o tratamento de possuidor de boa-fé até aquele momento; dali em
diante, é possuidor de má-fé, sendo tratado como tal.
A fixação deste momento de interversão, na prática, é muito difícil, porém,
especialmente quando não se trata da efetiva ciência dos vícios, mas sim do momento em
que se torna inescusável seu desconhecimento.
Veja um exemplo: locatário adquire posse, a todo ver justa. Ocorre que, no curso do
contrato, é cientificado de que o locador não podia ceder-lhe o bem em locação, porque
adquirira-o por meio de esbulho. Mantendo-se o locatário na posse, após esta cientificação,
está clara a interversão da sua posse, passando a ser de má-fé. Antes da ciência, veja, a
posse do locatário já era injusta, mas era de boa-fé.
Há uma certa confusão corriqueira, ainda, dos conceitos de posse justa e posse com
justo título. A posse com justo título é aquela adquirida por meio de título que se considera
hábil para a transferência da posse, e revela, presumidamente, justiça da posse daquele que
é assim titulado. Mas, como se viu no exemplo acima, em que o locador é um esbulhador, a
posse pode vir para o locatário com um justo título – o contrato de locação –, mas ser
injusta mesmo assim, porque o locador é um esbulhador. O título apenas empresta a
presunção de posse justa, mas esta pode ser afastada por prova contrária.

1.2.1. Direito de retenção

Sobre o direito de retenção, este atende ao possuidor de boa-fé, como dito, que
poderá manter-se com a posse da coisa enquanto não lhe forem indenizados os valores
despendidos com benfeitorias necessárias e úteis. Como dito, o possuidor de má-fé tem
direito a indenizar-se das benfeitorias necessárias, mas nunca terá direito de retenção como
meio de coerção a este pagamento. A retenção, de fato, é um elemento de autotutela do
direito, porque é um meio de coerção para o pagamento da indenização que é levado a cabo
pelo próprio titular do direito, que se mantém na posse da coisa, e não pelo Judiciário.
Outro exemplo de autotutela é o desforço físico imediato, dedicado a repelir com as
próprias mãos, mas sem excessos, o esbulhador.
Grande discussão sobre o direito de retenção é o tempo que ele pode perdurar. A lei
não diz, e por isso duas correntes se formaram. A primeira defende a indefinição deste

5
Esta indenização pelas benfeitorias necessárias, mesmo ao possuidor de má-fé, se justifica porque tais
consertos seriam feitos de qualquer forma, eis que deles depende a manutenção da coisa, e o não pagamento
do possuidor representaria enriquecimento sem causa do proprietário.

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

período, sendo cabível a retenção até que o proprietário o indenize, qualquer que seja o
tempo; a segunda, defende que haja a cessação da retenção quando a ocupação gratuita da
coisa por aquele possuidor, contra a vontade do proprietário, atinja o valor econômico das
benfeitorias pendentes de indenização – porque além disso haveria enriquecimento
indevido do possuidor.

1.3. Posse velha e nova

A posse é considerada nova quando tem menos de ano e dia de duração, e velha
quando já dura mais tempo. Não se pode confundir estes conceitos com os de ação
possessória de força velha com ação possessória de força nova, que, apesar de haver uma
certa similitude de conceitos. A ação possessória de força nova é aquela em que a violação
da posse ocorreu a menos de um ano e um dia, e por isso permite que haja tutela liminar; a
possessória de força velha, por sua vez, é aquela em que o avilte à posse já ocorreu a mais
tempo do que este ano e dia, e por isso não permite liminar.
Veja que a força nova ou velha se pauta pelo tempo em que há a violação, e não em
por quanto tempo o titular da posse violada a detinha, como o é na posse nova ou velha. A
ação de forca velha impede a liminar porque se presume que aquele que teve sua posse
violada há mais de um ano e dia não tem mais urgência em obter o provimento
jurisdicional, presumindo-se a ausência do periculum in mora. Veja o artigo 924 do CPC:

“Art. 924. Regem o procedimento de manutenção e de reintegração de posse as


normas da seção seguinte, quando intentado dentro de ano e dia da turbação ou do
esbulho; passado esse prazo, será ordinário, não perdendo, contudo, o caráter
possessório.”

Há duas correntes sobre esta presunção legal de ausência de urgência. Uma dispõe
que é inafastável: não cabe jamais liminar em ação de força velha, com natureza cautelar ou
antecipatória; outra, entende que presentes os pressupostos da antecipação de tutela, esta
presunção pode ser subvertida, sendo relativa, portanto. Na verdade, o que estaria vedado
pelo artigo 924 do CPC e sua lógica é apenas a concessão da liminar baseada apenas no
fumus boi juris, dispensada a análise do periculum in mora.

1.4. Posse ad interdicta e ad usucapionem

A posse ad interdicta é aquela que autoriza o possuidor a manejar os interditos


possessórios, a proteger sua posse. Conseqüentemente, toda posse de boa ou má-fé, justa ou
injusta, é ad interdicta, porque todo e qualquer possuidor pode manejar os interditos
possessórios.
Veja que mesmo o esbulhador pode defender sua posse contra um terceiro que
queira esbulhá-la posteriormente. Cessada a violência, adquirida a posse injusta, ainda que
de má-fé e injusta, o esbulhador poderá defender sua posse sob todas as formas, contra um
terceiro que pretenda tomar-lhe o bem. É claro que, contra o esbulhado original, este direito
não se sustenta.
Desta forma, vê-se que toda e qualquer posse é ad interdicta. Este é um jus
possessionis essencial a qualquer posse.

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Toda posse é ad interdicta, mas nem toda posse ad interdicta será, porém, ad
usucapionem. Esta é a posse que autoriza o possuidor a reclamar a propriedade do bem, por
via da usucapião. A posse só será ad usucapionem se preencher determinados quesitos:
deve ser contínua, ininterrupta, e deve ser mansa e pacífica, ou seja, inconteste, sem
resistência oposta por outrem.
Outro requisito essencial da posse, para que seja ad usucapionem, é o animus
domini. Esta intenção de ter a coisa como dono, animus rem sibi habendi, é essencial para
que se possa usucapir o bem. Veja que a exigência deste requisito subjetivo parece conflitar
com a adoção, no Brasil, da teoria objetiva de Ihering, mas não conflita. O animus domini
que é exigência de Savigny para configurar a situação de possuidor não é realmente exigido
em nosso ordenamento; o que se exige é que este animus esteja presente naquele possuidor
(veja, já se fala em possuidor, ou seja, tendo o ânimo de dono ou não assim se o considera)
para que possa, com sua posse, adquirir propriedade. Não é um requisito para se tornar
possuidor; é um requisito para se tornar proprietário pela via da usucapião.
A posse de má-fé e injusta pode ser ad usucapionem, se estes requisitos estiverem
preenchidos. Sendo ad usucapionem, bastará o preenchimento de mais um requisito, o
decurso do tempo, para que a posse desperte a propriedade, e é neste último quesito que se
diferenciam a posse de má-fé da posse de boa-fé: a últimas precisará preencher menos
tempo para consolidar propriedade do que a primeira. Se a posse é de boa-fé, diz o CC que
bastam dez anos; se é de má-fé, são necessários quinze anos.

2. Interversão da posse

Interversão da posse é o fenômeno de transmutação da natureza da posse. Por


exemplo, a posse que era de boa-fé se converte em posse de má-fé, ou vice versa; uma
posse direta se converte em posse própria, como quando o locatário que adquire o bem em
que reside, ou o contrário, proprietário que sai de seu bem e aluga-o a terceiro, tendo posse
agora indireta, etc.
Esta dinâmica se repete também quanto ao ânimo da posse: o locatário, que tinha
posse ad interdicta, imagina que o locador abandonou o bem, pelo que passa a tê-lo como
seu: tem agora posse ad usucapionem, com animus domini.
Bom problema concreto surge é na identificação do exato momento em que se dá a
interversão da posse. Este momento é casuístico, e precisará ser demonstrado por meios
probatórios, sempre.

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 22


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Rosalina da Rocha Varlesse propõe demanda possessória (reintegração de posse)


em face de Regina Celia, com o objetivo de recuperar a posse de imóvel de sua
propriedade, alegando que por contrato de comodato, estabeleceu que a demandada
residisse no imóvel. Informa que notificou a ré para que deixasse o bem, em 2002, no
entanto, essa se recusou. Em contestação, a ré alega que exerce a posse no imóvel por
mais de 30 anos, de forma mansa e pacífica. Informa que não foi celebrado um contrato de
comodato, mas, na verdade, um contrato de locação, em 1961. Narra que em 1975, a
autora, juntamente com sua família, mudou-se, não informando o novo endereço,
deixando, inclusive, de cobrar os alugueres, durante todo esse período. Assim, argui a
existência de usucapião, tendo em vista que estava no imóvel a título de possuidora, com
animus domini. Alega que sempre agiu com zelo e boa-fé, arcando com o pagamento de
encargos e tributos, tais como água, luz, IPTU, taxas e contribuições. Informa, ainda, que
realizou uma série de benfeitorias ao longo dos anos. Argumenta que, na hipótese, operou-
se a interversão da posse. Assim, deve ser reconhecida a usucapião extraordinária.
Manifesta-se, ainda, em razão do princípio da eventualidade, pelo direito de indenização
pelas benfeitorias úteis e necessárias realizadas, sob o argumento de manter-se no imóvel
como possuidora de boa-fé, além do direito de retenção do bem até a efetiva indenização.
A pretensão autoral merece prosperar? E o pedido formulado pela demandada? Responda,
fundamentadamente.

Resposta à Questão 1

Veja a Apelação Cível 213.087-4/9-00, do TJ/SP:

“EMENTA. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. INTERVERSÃO.


Inversão do título da posse, iniciado como locação. Possibilidade, uma vez não
existindo mais subordinação, cessados os pagamentos de aluguéis. Posse ad
usucapíonem caracterizada no caso presente pelos elementos dos autos mostrando
a prescribente posição de dona, seja por reforma do imóvel e pagamento de
tributos incidentes sobre o imóvel, seja pela posse incontestada e ininterrupta por
mais de 20 anos, que transcorreu límpida e imperturbada nesse lapso. Recurso
provido em parte.”

Questão 2

João Pereira celebrou contrato escrito de depósito com José da Silva, tendo por
objeto bens móveis que foram guardados na casa deste. Dias após a celebração do
contrato, a sua vizinha Marli Souza, ex-noiva do depositante, subtrai os referidos móveis
na calada da noite, sob a alegação de que os bens eram seus. Admitindo-se como provado
que o depositante se encontrava em viagem para o exterior, ao depositário assiste o direito
de intentar alguma ação?

Resposta à Questão 2

O depositário é possuidor direto, e por isso tem legitimidade para intentar ação
possessória, independentemente de qualquer atuação do depositante. Depositário não é

Michell Nunes Midlej Maron 23


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

mero detentor, e, mesmo que não exerça posse plena, por assim dizer, por não poder usar,
fruir ou dispor da coisa, é possuidor direto, podendo e devendo reavê-la. Veja o artigo 629
do CC:

“Art. 629. O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa


depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como
a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando o exija o depositante.”

Questão 3

Tendo sido efetuado um contrato de comodato pelo prazo de 10 anos, veio a falecer
o comodatário, três anos após o seu início. Seu filho, que com ele residia no imóvel e no
qual permaneceu, realizou em seguida benfeitorias visando seu conforto e melhor
aproveitamento econômico do bem. Tem ele direito a permanecer no imóvel pelo restante
do prazo? Independentemente da solução apresentada, terá direito à retenção?

Resposta à Questão 3

Não, pois o comodato é contrato personalíssimo, extinguindo-se com a morte do


comodatário. Por isso, desde a morte, extinto o contrato, a posse do filho não mais se
justificava, sendo precária desde então, não merecendo indenização porque as benfeitorias
são úteis ou voluptuárias, no caso. Fossem necessárias, haveria indenização. De qualquer
forma, não cabe a retenção, porque a posse é precária e de má-fé.

Tema IV

Posse III. Formas de aquisição originária e derivada. Aquisição pelo incapaz. Apreensão e abandono da
posse. Acessão de posses: união e sucessão. Constituto possessório: conceito, natureza jurídica e aplicação
prática e a situação jurídica do transferente e do adquirente.

Michell Nunes Midlej Maron 24


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Notas de Aula6

1. Formas de aquisição da posse

Como já se pôde antever no estudo das classificações, a posse pode ser originária ou
derivada, quanto à sua forma de aquisição. Posse originária é aquela que se adquire sem
que haja a transferência de um possuidor a outro, realizando-se por ato original do próprio
adquirente – como a apreensão de uma coisa abandonada, res derelicta, ou de coisa que
nunca teve dono, res nullius. A posse derivada, ao contrário, é aquela que vem das mãos de
outrem, por transferência, como no caso da posse direta, adquirida por transferência cedida
pelo possuidor que fica apenas com a indireta, agora.
Sobre a aquisição da posse, havia uma discussão na vigência do CC de 1916, que
previa, no artigo 493, os modos desta aquisição. Veja:

“Art. 493. Adquire-se a posse:


I - pela apreensão da coisa, ou pelo exercício do direito;
II - pelo fato de se dispor da coisa, ou do direito;
III - por qualquer dos modos de aquisição em geral.
Parágrafo único. É aplicável à aquisição da posse o disposto neste Código, arts. 81
a 85.”

Este artigo era um tanto criticável, porque arrolava algo que não precisava ser
arrolado, especialmente diante da própria redação do seu inciso III, completamente aberta.
A maior crítica, porém, era que este artigo era absolutamente incoerente diante da teoria
objetiva de Ihering, adotada já no CC de 1916: se o animus domini era dispensável para a
configuração da posse sob os moldes de Ihering, elencar os modos de aquisição da posse
naturalmente coloca como exigência a presença do ânimo descrito no dispositivo. Por
exemplo, o ânimo de apreender a coisa, no inciso I.
Este artigo, realmente incompatível com a teoria objetiva adotada, foi fruto de
emendas parlamentares, e foi criticado até mesmo pelo patrono do CC de 1916, Clóvis
Beviláqua. O novo CC corrigiu este equívoco, como se vê no artigo 1.204:

“Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o


exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.”

Esta conceituação da aquisição veio inspirada pelo código civil alemão, e é muito
mais coerente com a teoria objetiva que adotamos desde há muito. A posse se define
quando se pode vislumbrar no comportamento daquele que tem a coisa o mesmo
comportamento que o proprietário revelaria. É possuidor todo aquele que tem de fato o
exercício, pleno ou não, de atributos da propriedade – basta o exercício de um deles para
configurar a posse (exceto quando a lei afastar esta condição, chamando a relação de
detenção). Por isso, ihering sempre chamou a posse de exteriorização do domínio.
Sabendo-se disso, é mais relevante saber que há a posse, do que saber-se como ela
foi adquirida. Por isso o artigo acima não se preocupa em definir como se deu esta
aquisição, mantendo-a no plano puramente objetivo. Não se cogita de animus na aquisição,
como outrora; somente se constata objetivamente esta aquisição.
6
Aula ministrada pelo professor Sylvio Capanema de Souza, em 28/7/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 25


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O artigo 1.205 do CC diz quem pode adquirir a posse, e não os meios pelo qual se
dá esta aquisição (pois se o fizesse, seria um retrocesso, como visto):

“Art. 1.205. A posse pode ser adquirida:


I - pela própria pessoa que a pretende ou por seu representante;
II - por terceiro sem mandato, dependendo de ratificação.”

A aquisição mais frequente é a de quem pretende a posse, que a adquire por mão
própria. A aquisição da posse pode se dar também por representante, legal ou convencional
(representante legal ou procurador); ou por terceiro mesmo sem mandato, como o gestor de
negócios, aquisição esta que demandará ratificação pelo efetivo possuidor.
Surge aqui uma questão intrincada: a aquisição direta da posse pelo incapaz é
possível? Por representante é certo que sim, como visto, mas a aquisição pelas próprias
mãos do incapaz é discutida. Há corrente que defende que não é possível, porque o incapaz
não pode praticar atos jurídicos diretamente, e a aquisição da posse é um ato desta
qualidade. Sendo assim, seria necessária, sempre, a representação ou assistência. Ocorre
que esta corrente não prevalece, preponderando a corrente contrária, que reputa
perfeitamente possível esta aquisição pessoal pelo incapaz, porque não se demanda a
vontade qualificada para tanto: não se exige a vontade de quem tenha plena capacidade
civil, bastando que o indivíduo tenha a consciência do significado do ato de posse que
realiza.
Destarte, se o incapaz encontra um bem sem dono, e dele se apropria, é claro que
exerce posse se compreende esta apropriação. Sendo a posse derivada de um negócio
jurídico que demande vontade qualificada, porém, como um contrato de locação, é claro
que oi incapaz não poderá tomar posse sem a devida representação ou assistência.
Última consignação sobre a aquisição da posse é que a posse originária vem
descarregada de quaisquer vícios que a contaminaram no passado. Se é derivada, conserva
consigo os vícios que a eivavam quando estava com o possuidor anterior. É claro que a
ausência de vícios da posse originária se exibe perante terceiros, porque perante o eventual
proprietário ou possuidor anterior, que se supunha inexistir, ainda permanece a posse como
o era. Entenda: se se apreendeu uma coisa que se julgava abandonada, res derelicta, e esta
na verdade pertencia a alguém, contra todos os demais, a posse do adquirente é originária e
límpida, mas perante o real proprietário ou possuidor, é derivada e viciada, contra ele sendo
indefensável.

2. Acessão de posse

A acessão de posse pode se dar pela reunião de posses ou pela sucessão


possessória.
A sucessão de posses consiste na transferência da posse aos herdeiros e legatários,
com os mesmos caracteres. Mas há uma discussão, aqui, no que se refere à sucessão por
herança. Como se sabe, a herança é transmitida universalmente, e por isso tem que se
transferir aos herdeiros exatamente como é, com quaisquer vícios que carregue. O herdeiro,
a rigor, não deve poder iniciar posse nova, mas sim apenas continuar a posse que recebe,
com quaisquer características que esta carregue. Já o adquirente da posse a título singular, o
legatário, tem uma opção entre dar seqüência à posse da forma como recebida, ou dar início

Michell Nunes Midlej Maron 26


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

a posse nova, sem qualquer vínculo aos caracteres da posse anterior. E é aqui que reside
uma discussão, baseada no artigo 1.206 do CC:

“Art. 1.206. A posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os


mesmos caracteres.”

A discussão é se poderia mesmo o legatário iniciar uma posse nova, ante a previsão
abrangente do artigo supra. A maior corrente defende que o termo legatário, ali impresso,
quer se referir ao herdeiro testamentário, mas que é recebedor de uma universalidade ou de
um quinhão da herança, e não de um só bem a título singular, como o legado típico. Trata-
se do herdeiro eleito em testamento – porque não legítimo ou necessário –, e não do
legatário propriamente dito, somente o qual teria esta opção por suceder ou inovar a posse.
Outra corrente, porém, defende que o dispositivo quis dizer exatamente o que disse:
trata-se do adquirente a título singular, o legatário propriamente dito, e não apenas aquele
herdeiro eleito, mas a título universal ou aquinhoado, pelo que o legatário singular também
não poderia optar. Veja o artigo 1.207 do CC, que trata da opção pela comunhão de posses:

“Art. 1.207. O sucessor universal continua de direito a posse do seu antecessor; e


ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para os efeitos
legais.”

Unir a posse à do antecessor consiste em somar os prazos de posse do bem. Se o


adquirente obtém a posse agora, tendo o antecessor possuído, digamos, por dez anos, já
terá, o possuidor atual, dez anos de posse, somados ao tempo de posse que vier a consumar
daqui por diante. É claro que, somados os prazos, é como se o possuidor atual sempre
houvesse possuído a coisa, e por isso todos os eventuais vícios da posse continuam com
esta.
Suceder a posse, sem reuni-las, ao contrário, é terminar o período de posse do
antecessor, dando início a um novo, sendo que, quando assim ocorre, a posse vem isenta de
vícios, eis que estes perecem com a posse descartada.
É claro que, isenta a posse original de vícios, a reunião do tempo é vantajosa, para
efeitos de usucapião. De outro lado, se a posse original é viciada, a inovação é muito mais
vantajosa, eis que se unir os tempos carregará consigo estes vícios.
Uma breve síntese é fundamental: herdeiros legítimos ou testamentários não-
legatários, como sucedem a título universal, continuam sempre a posse do autor da herança,
recebendo a posse com os mesmos caracteres. O adquirente a título singular, inclusive o
legatário típico, pode unir a sua posse à que lhe foi transmitida, somando os prazos, ou
optar por iniciar posse nova, a fim de expurgar os vícios anteriores.

3. Atos de detenção

O artigo 1.208 do CC é a sede:

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim
como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão
depois de cessar a violência ou a clandestinidade.”

Atos de permissão ou tolerância nunca consolidam a posse de quem é permitido ou


tolerado na coisa. Este é um mero detentor da coisa, enquanto tolerado ou permitido pelo
real possuidor, não tendo qualquer proteção possessória, ou expectativa de continuidade na
permissão ou tolerância.
Permissão difere de tolerância, não quanto aos resultados – revelam mera detenção
–, mas sim essencialmente. Permissão pressupõe uma conduta positiva daquele que
permite, ou seja, é um ato de benevolência manifesto expressamente. A mera tolerância, por
seu turno, é uma concessão tácita, sem manifestação expressa permissiva do possuidor, mas
também sem qualquer oposição. É simples: permissão é conduta comissiva; tolerância,
mera omissão em refutar.
Este artigo veio ao mundo, originalmente, para tornar mais simples as relações de
vizinhança, porque torna menos arriscado ao possuidor não defender sua posse contra atos
corriqueiros, o que certamente seria grande fonte de desgastes e conflitos de pequena
monta. Por exemplo, um vizinho que passa pelo terreno de outro com freqüência para
chegar à rua, se possuidor fosse, poderia, ao longo tempo, reclamar manutenção daquela
servidão de passagem em ação possessória, o que faria com que o possuidor original,
temeroso disso, impedisse uma passagem que em nada lhe perturbaria, apenas com o receio
da perda judicial, e até mesmo eventual usucapião daquela servidão (fosse posse).
Mas o artigo também nega qualidade de posse à condição obtida por meio de atos
violentos e clandestinos, enquanto perdurar a violência ou clandestinidade. Estes atos de
esbulho se consideram cessados quando cessa a resistência do possuidor contra aquele que
os pratica. Desde então, nos termos do artigo, passa a existir posse, com a devida natureza
ad interdicta contra terceiros, mas nunca contra o esbulhado.

4. Transferência da posse

A posse de bens móveis se transmite pela tradição, tal como a propriedade. No bem
imóvel, a propriedade depende do registro para se transmitir, mas não a posse: esta se passa
com a mera tradição, tal como nos bens móveis.
A tradição pode ser real, ou material, quando se entrega a coisa nas mãos do
adquirente, efetivamente; e pode ser ficta, quando não há a entrega material do bem, mas há
a prática de um ato que demonstra inequívoca intenção de entregá-lo. Exemplo mais
comum desta tradição ficta é a entrega das chaves ao adquirente de um imóvel. A colocação
da coisa à disposição do adquirente, por qualquer meio, revela a tradição ficta.
Há ainda uma outra situação, chamada tradição contratual, que para uns é
modalidade ficta, e para outros é um tertium genus. Trata-se do constituto possessório. O
CC de 1916 mencionava expressamente esta situação como um dos modos de aquisição da
posse, e o CC de 2002 não repetiu tal previsão, o que levou alguns autores a entender que
não mais subsiste este meio de aquisição no ordenamento. Contudo, não é a melhor leitura:
o instituto permanece existente, mesmo sendo silente o CC, por simples permissão da
autonomia da vontade. É claro que, consequentemente, a cláusula constituti tem que ser
expressa, não sendo presumível do contrato.

Michell Nunes Midlej Maron 28


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Parece mais acertada a corrente que defende que o constituto possessório não se
trata de uma transmissão ficta. Isto porque o constituto possessório consiste, de fato, na
maneira contratual de transferir a posse quando a sua entrega real ou ficta não se realiza, a
fim de conceder proteção possessória desde já ao adquirente. Veja um exemplo concreto:
pessoa que reside em imóvel próprio vende este imóvel a outra; com esta venda, a entrega
se torna uma obrigação imediata. Contudo, pode acontecer de o vendedor precisar se
manter no imóvel, ali residindo, por algum tempo, o que pode ser contratualmente ajustado.
Não tendo sido transferida a posse real, nem entregue as chaves para tanto (o que revela
tradição ficta), se o ex-proprietário vendedor não sair do imóvel, o comprador não terá ação
possessória alguma que lhe proteja, porque jamais teve a posse, real ou ficta. Terá, no
máximo, uma ação reivindicatória. É para sanar esta problemática, extirpar este risco do
comprador que admite a saída tardia do vendedor, que existe a cláusula constituti: ao
contratar a compra e venda, o vendedor apõe a cláusula do constituto possessório, a qual
desempenha justamente o papel de transmitir a posse textualmente, a fim de emprestar
proteção possessória ao comprador, o qual não teria qualquer posse, não fosse a cláusula.
Destarte, o comprador que adquire com a cláusula constituti, quando o vendedor
permanecerá no bem, poderá ajuizar ação de reintegração de posse, quando findo o prazo
da permanência ajustada contratualmente sem que o vendedor saia do bem, não restando
limitado ao rito mais dificultoso da reivindicatória, petitória.
O vendedor que passa o bem contratualmente, com o constituto expresso, está
promovendo uma interversão de sua posse: ele, que tinha posse própria, passa a ter posse
direta, enquanto o adquirente tem posse indireta desde então. O vendedor pode continuar no
bem a qualquer título, decidido contratualmente: pode permanecer como comodatário,
como locatário, etc. Pode, até mesmo, deixar de ser possuidor e passar a detentor, se assim
se decidir no pacto – ficará às ordens do comprador, guardando o bem até deixá-lo.
É claro que se há a entrega das chaves, a cláusula constituti não se justifica no
contrato: há já a transmissão ficta da posse pelas chaves, emprestando-se a proteção
possessória dali consequente.
Vale ressaltar que a cláusula constituti só pode ser invocada contra o próprio
alienante, e nunca contra terceiros: não pode o comprador pretender proteção possessória
contra quem não participou do contrato.
Por fim, diga-se que a posse de bens móveis é passível de constituto possessório,
como assevera o enunciado 77 da Primeira Jornada de Direito Civil do CJF:

“Enunciado 77, CJF – Art. 1.205: A posse das coisas móveis e imóveis também
pode ser transmitida pelo constituto possessório.”

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 29


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Caio vendeu à Tício um terreno de sua propriedade, mas que há cinco anos é
ocupado por Mévio, que ali instalou sua residência, julgando-o abandonado. No corpo da
escritura pública de compra e venda o alienante transferiu ao adquirente o domínio, posse,
direito e ação, em virtude da cláusula constituti, ali expressamente referida. De que ação
dispõe Tício, e em face de quem, para obter ou recuperar a posse do imóvel? Justificar a
resposta, inclusive examinando se persiste em nosso direito o constituto possessório, tendo
em vista a redação dos artigos 1.205 e 1.223 do Código Civil, em comparação com a dos
artigos 494 e 520 do Código anterior.

Resposta à Questão 1

A ação cabível é a reivindicatória em face de Mévio, porque o constituto


possessório não opera efeitos contra o terceiro, alheio ao contrato em que ela foi aposta.
Vale dizer que se Mévio preencher os requisitos da usucapião, poderá alegá-la em defesa.

Questão 2

Antônio moveu ação de reintegração de posse em face de Benedito, alegando o


seguinte: adquiriu o imóvel, objeto da ação, em 19 de março de 2003 (escritura de compra
e venda registrada no RGI); a posse foi-lhe transmitida pelo vendedor Carlos mediante a
cláusula constituti constante da escritura; foi surpreendido com a presença do réu no
imóvel quando procurou ocupá-lo; o réu apossou-se do imóvel clandestinamente, sem
autorização do antigo proprietário, Carlos. Benedito alega que ocupa o imóvel há mais de
5 anos, onde construiu uma pequena casa, na qual reside com sua família. Alega ainda que
o imóvel estava em estado de abandono quando da ocupação, sem cerca e completamente
tomado pelo mato. Junta aos autos notas fiscais de material de construção e arrola
testemunhas (vizinhos) que comprovam o alegado. Decida a questão e examine se a
cláusula constituti está configurada na espécie, bem como se a ação ajuizada é adequada.

Resposta à Questão 2

A ação é inadequada, mesmo que a cláusula constituti esteja, de fato, presente,


porque o vendedor não poderia mais transmitir a posse que não tinha, naquele momento.
Contra o terceiro, a cláusula não pode ser oposta. Por isso, é preciso uma ação petitória para
instrumentalizar a pretensão do autor.

Tema V

Posse IV. Formas de tutela. Autotutela e tutela judicial. Os interditos tipicamente possessórios e os embargos
de terceiros possuidores. A exceptio proprietatis. Posição processual mais favorável do possuidor. Situação

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

jurídica do terceiro adquirente da posse. Situação jurídica do esbulhador em relação a terceiros. Aspectos
processuais.

Notas de Aula7

1. Tutela possessória

A posse conta com tutela específica, completamente independente da propriedade.


Dentre os inúmeros efeitos da posse – há autores que enumeram até cinquenta e dois
efeitos, contando com previsões do direito comparado –, a proteção que a posse merece é,
sem dúvida, o seu efeito mais relevante. Os meios de proteção típicos da posse, como os
interditos possessórios, e até mesmo a autotutela, conferem ao seu titular uma defesa
desatrelada da propriedade, e bastante eficaz.
É certo que um dos grandes efeitos da posse é sua possível indução à propriedade,
com a usucapião e, mais recentemente, com o instituto da legitimação da posse. Contudo, a
proteção possessória é mesmo um dos mais significativos aspectos deste instituto, ante a
exclusividade de tal efeito, e porque é abrangente de qualquer posse: enquanto há espécies
de posse que não são ad usucapionem, todas são ad interdicta. Vejamos, então, cada espécie
de tutela possessória, partindo da análise do artigo 1.210 do CC:

“Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação,
restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de
ser molestado.
§ 1° O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua
própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não
podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.
§ 2° Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade,
ou de outro direito sobre a coisa.”

No caput, o legislador apresenta as três ações possessórias típicas, os três interditos


possessórios que já vêm previstos desde a Roma antiga: a manutenção de posse, a
reintegração de posse e o interdito proibitório, e no § 1°, consta a autotutela. Vejamos cada
um destes métodos de tutela possessória, de forma apartada.

1.1. Autotutela possessória

A autotutela é um modo excepcional de solução de conflitos, pois, como se sabe, as


lides devem ser levadas ao Judiciário, ou a algum sucedâneo hoje instalado(como a
arbitragem), para a sua composição pacífica, sem que a paz social seja agredida.
O § 1° do artigo 1.210 do CC é um dos raros exemplos em que a proteção do direito
pode ser envidada pelo próprio titular, por meio de suas próprias mãos. Mas há alguns
requisitos para tanto. O primeiro, mais que um requisito, é um pressuposto lógico: só pode
envidar autotutela quem seja titular da posse, mesmo que em nome de outrem. O
proprietário, sem posse, não pode exercer autotutela, com base apenas no domínio –
propriedade não fundamenta autotutela. O detentor, destarte, não pode se servir da
autotutela em nome próprio jamais, afinal, não titulariza posse; contudo, pode defendê-la

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Aula ministrada pelo professor Marco Aurélio Bezerra de Melo, em 29/7/2009.

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em nome do possuidor que o comande, ou seja, estará exercendo autotutela possessória em


nome de quem é titular da posse – é um preposto do possuidor8.
Segundo requisito é a imediatidade: como o próprio dispositivo anuncia, somente é
legítimo o desforço quando for imediato, ou seja, deve o possuidor perturbado agir logo.
Terceiro requisito da autotutela legítima é a proporcionalidade: o possuidor não
pode, na defesa de sua posse, exacerbar os meios que satisfaçam tal defesa, tal desforço
pessoal, avançando em excesso.
Último requisito legitimador da autotutela é a existência de uma agressão injusta à
posse. É também um pressuposto lógico, pois não se pode conceber, por exemplo, que
alguém precise repelir algo que não existe, se não houver agressão; tanto quanto é
inconcebível que se justifique a defesa contra uma agressão justa, tal como a de um oficial
de justiça cumprindo mandado de busca e apreensão.
Em síntese: havendo posse a ser defendida, havendo repulsa imediata e proporcional
a uma agressão injusta, há o desforço imediato, sendo legítima a autotutela, a legítima
defesa da posse.
Note-se que não é tecnicamente correto se falar em desforço pessoal como sinônimo
de legítima defesa da posse. A turbação e a ameaça à posse ensejam legítima defesa, eis que
o possuidor ainda tem a coisa consigo quando do ataque; já o esbulho enseja desforço
pessoal, pois a posse já foi extirpada do possuidor original, precisando este obtê-la de volta,
o que é diferente de defendê-la – não a tem mais consigo para poder defendê-la.
Outra questão importante aqui se levanta. O esbulho, como se sabe, pode se dar por
meio da violência, da clandestinidade ou da precariedade, quando há o abuso da confiança.
A questão é como se opera a autotutela em cada modalidade de esbulho. Na violência, a
constatação da defesa possessória por mão própria é mais simples, bastando verificar que a
violência está em curso e o possuidor a está repelindo, de forma imediata e proporcional.
Na clandestinidade, é mais problemática a delineação da autotutela, precisando haver uma
análise mais profunda de seus requisitos.
Como é sabido, o artigo 1.224 do CC determina que a perda da posse por tomada
clandestina só se dá quando o possuidor é cientificado do esbulho, e nada faz, ou é obstado
de fazer. Veja:

“Art. 1.224. Só se considera perdida a posse para quem não presenciou o esbulho,
quando, tendo notícia dele, se abstém de retornar a coisa, ou, tentando recuperá-la,
é violentamente repelido.”

A defesa da posse tomada de forma clandestina, contudo, só pode ser feita por
autotutela se o esbulhado o fizer logo, como diz o artigo 1.210 do CC – a imediatidade
ainda se impõe. E a definição do que seja logo é casuística, não havendo um critério
estático, devendo se pautar pela razoabilidade, mas o desforço pessoal deve ser ato
contínuo, realmente imediato ao esbulho, como regra. Veja que é possível esta medida
pessoal, mas a retomada deve ser realmente imediata, na casuística: é claro que o possuidor
que deixa seu imóvel e retorna após três meses do esbulho ocorrido não poderá operar
desforço, sob pena de se tolerar a barbárie na sociedade, fosse possível esta autotutela.

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Se o detentor exceder-se na defesa, causando dano indevido a quem turbava a posse de seu mandante, a
responsabilidade recairá sobre o possuidor, e é responsabilização sem culpa. É claro que terá regresso contra o
detentor, mas perante o agredido responderá objetivamente o possuidor, pelos atos de seu preposto.

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Exceção que é, a autotutela deve ser interpretada restritivamente, e assim se impõe a análise
do termo “logo”, constante do artigo 1.210, § 1°, do CC, supra.
A demora na intentada de recuperação da posse, quando há o esbulho clandestino,
não significa que a posse foi perdida pelo esbulhado: ele ainda tem posse, e merece toda a
proteção que a esta se impõe, só não tendo mais a autotutela a seu dispor – precisará de
uma ação judicial possessória.
A posse precária, por seu turno, não permite autotutela de modo algum. Aquele que
obtém a posse de forma precária, obtendo-a por abuso de confiança, não pode ser removido
pelas próprias mãos do possuidor. O locatário que, terminado o contrato, se nega a restituir
o bem, não pode ser escorraçado por ato do locador, precisando este de uma ação de
despejo, por exemplo. O mesmo se dá com o comodatário, só que a ação judicial para
movê-lo do bem é a reintegração de posse.

1.2. Interditos possessórios

As ações judiciais de tutela da posse recebem o nome genérico de interditos


possessórios, e todas têm por causa de pedir remota a posse, variando apenas quanto à
causa próxima, que será a ameaça de turbação ou esbulho, quando então chamar-se-á
interdito proibitório; a efetiva turbação, quando se chamará manutenção de posse; ou o
efetivo esbulho, quando receberá o nome de reintegração de posse.
Veremos cada uma das ações possessórias de forma apartada, antecipando, desde já,
algumas notas procedimentais comuns a todas elas, começando pela fungibilidade das
possessórias, característica fundamental: o ajuizamento de uma possessória não impede seu
conhecimento quando o juiz perceber que, na verdade, outro deveria ter sido o interdito –
são fungíveis entre si. Veja o artigo 920 do CPC:

“Art. 920. A propositura de uma ação possessória em vez de outra não obstará a
que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela,
cujos requisitos estejam provados.”

O princípio da fungibilidade tem um fundamento mais pragmático do que ser


simplesmente uma opção legislativa: a posse é dinâmica, podendo estar nas mãos do
turbado quando do ajuizamento da manutenção de posse, e no curso do processo a turbação
tornar-se esbulho, fazendo com que a pretensão de manutenção seja inútil, tornando
necessária a reintegração de posse.
Não pode o princípio da fungibilidade se prestar a abusos processuais, situações
tumultuárias ou erros grosseiros: se a parte narra uma turbação e faz pedido de reintegração
da posse, é claro que não se trata da fungibilidade que intentava o legislador. Trata-se, sim,
de inépcia da inicial, a merecer emenda ou mesmo, quiçá, indeferimento.
O artigo 921 do CPC traz previsão geral sobre cumulação de pedidos, nestas ações:

“Art. 921. É lícito ao autor cumular ao pedido possessório o de:


I - condenação em perdas e danos;
II - cominação de pena para caso de nova turbação ou esbulho;
III - desfazimento de construção ou plantação feita em detrimento de sua posse.”
Veja que boa sorte de pedidos é cabível, inclusive de cunho indenizatórios. Este rol
de pedidos não é taxativo, podendo haver pedidos diversos dos ali previstos, desde que
compatíveis com o rito – afinal, esta é a regra processual geral quanto à cumulação de

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pedidos. Pode, por exemplo, tecnicamente, haver pedido de rescisão de contrato de locação
e reintegração da posse direta ao locador, sem representar qualquer impropriedade.
O artigo 922 do CPC revela o caráter dúplice das possessórias:

“Art. 922. É lícito ao réu, na contestação, alegando que foi o ofendido em sua
posse, demandar a proteção possessória e a indenização pelos prejuízos resultantes
da turbação ou do esbulho cometido pelo autor.”

Toda possessória é uma actio duplex, que permite ao réu obter a tutela oposta à
pretensão do autor, sem precisar, para tanto, reconvir, bastando deduzir, na contestação, o
seu direito perante o autor.
O artigo seguinte, 923 do CPC, é absolutamente relevante:

“Art. 923. Na pendência do processo possessório, é defeso, assim ao autor como ao


réu, intentar a ação de reconhecimento do domínio. (Redação dada pela Lei nº
6.820, de 16.9.1980)”

O § 2° do artigo 1.210 do CPC, há pouco transcrito, reforça a idéia acima


explicitada, que é o banimento absoluto, pelo ordenamento regido pelo novo CC de 2002,
da chamada exceção de domínio nas possessórias. Em ação possessória, não se discute mais
a propriedade, como era permitido no artigo 505 do antigo CC de 1916, dispositivo
altamente contraditório:

“Art. 505. Não obsta à manutenção, ou reintegração na posse, a alegação de


domínio, ou de outro direito sobre a coisa. Não se deve, entretanto, julgar a posse
em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio.”

A súmula 487 do STF, editada à época, acompanhava esta contradição do


dispositivo, como não poderia deixar de ser:

“Súmula 487, STF: Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio,
se com base neste for ela disputada.”

O CC de 2002 pôs fim a esta contradição, apartando de forma absoluta as


discussões possessórias das petitórias baseadas no domínio. A respeito, veja os enunciados
78 e 79 da Primeira Jornada de Direito Civil do CJF:
“Enunciado 78, CJF – Art. 1.210: Tendo em vista a não-recepção pelo novo
Código Civil da exceptio proprietatis (art. 1.210, § 2º) em caso de ausência de
prova suficiente para embasar decisão liminar ou sentença final ancorada
exclusivamente no ius possessionis, deverá o pedido ser indeferido e julgado
improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre
o bem litigioso.”

“Enunciado 79, CJF – Art. 1.210: A exceptio proprietatis, como defesa oponível às
ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu
a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório.”
1.2.1. Interdito proibitório

Como antecipado, trata-se da ação dedicada a repelir judicialmente a ameaça de


turbação ou esbulho. Esta ação é um exemplo cristalino da chamada tutela inibitória, título

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

bem explorado por Marinoni, que visa a obter uma providência jurisdicional destinada a
compelir alguém a não fazer alguma coisa.
Marinoni define a tutela inibitória como a tutela da prevenção de riscos. Este
conceito é bastante bem sucedido, porque dispõe exatamente o que justifica tais ações
judiciais: impedir que o dano chegue a se concretizar. É um meio bastante eficaz, a tutela
inibitória, de proteção efetiva a direitos da personalidade por exemplo, algo que não é tão
eficaz com a tutela ressarcitória, pois se sabe que os aviltes estes direitos não podem ser
desfeitos, mas sim, no máximo, compensados.
O interdito proibitório, portanto, é uma ação de escopo inibitório, que comporta
meios cominatórios para impedir que o pretenso turbador ou esbulhador leve a cabo seu
intento. Cominadas as astreintes, se o réu da ação fizer o que lhe foi determinado não fazer
– turbar ou esbulhar –, padecerá da pena imposta.
Uma questão peculiar, aqui, é a análise das condições da ação. A lei fala em “justo
receio”, como se vê no caput do artigo 1.210 do CC, e este requisito precisa ser avaliado já
na propositura da ação: é integrante do interesse de agir, mais precisamente do interesse-
necessidade.

1.2.2. Manutenção de posse

A manutenção de posse cabe para repelir a turbação que já se encontre em curso.


Turbação é qualquer moléstia à posse alheia, conceito realmente bem abrangente. O pedido,
nesta ação, é o retorno ao estado anterior das coisas, como se encontravam antes da
turbação ter lugar.

1.2.3. Reintegração de posse

A reintegração de posse tem lugar quando o esbulho já se operou, e o possuidor


intenta retomar judicialmente a sua posse. Esbulho é a apreensão de um bem por meios
injustos – violência, clandestinidade ou precariedade. O esbulho pressupõe perda total da
disponibilidade do bem, pois se ainda há como dispor do bem, o possuidor deverá ajuizar a
manutenção de posse.

1.3. Embargos de terceiros possuidores

Veja o artigo 1.046 do CPC:

“Art. 1.046. Quem, não sendo parte no processo, sofrer turbação ou esbulho na
posse de seus bens por ato de apreensão judicial, em casos como o de penhora,
depósito, arresto, seqüestro, alienação judicial, arrecadação, arrolamento,
inventário, partilha, poderá requerer lhe sejam manutenidos ou restituídos por meio
de embargos.
§ 1° Os embargos podem ser de terceiro senhor e possuidor, ou apenas possuidor.
§ 2° Equipara-se a terceiro a parte que, posto figure no processo, defende bens que,
pelo título de sua aquisição ou pela qualidade em que os possuir, não podem ser
atingidos pela apreensão judicial.
§ 3° Considera-se também terceiro o cônjuge quando defende a posse de bens
dotais, próprios, reservados ou de sua meação.”

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

A redação do § 1º do artigo supra deixa claro que o possuidor não proprietário


poderá opor tais embargos, o que transforma este instrumento em uma ação possessória
atípica.
Este instrumento se presta a dar oportunidade de voz processual a quem se sentir
perturbado em sua posse por uma apreensão judicial comandada em processo de que não
fez parte. Assim, se resguarda a necessária adstrição da eficácia subjetiva do julgado, eis
que se não lhe foi oportunizada participação processual, não pode o possuidor ser atacado
por decisão judicial ali proferida.
Veja, agora, o artigo 42, § 3°, do CPC:

“Art. 42. A alienação da coisa ou do direito litigioso, a título particular, por ato
entre vivos, não altera a legitimidade das partes.
(...)
§ 3° A sentença, proferida entre as partes originárias, estende os seus efeitos ao
adquirente ou ao cessionário.”

Este dispositivo tem por efeito evitar diligências maliciosas que podem ser
empreendidas por réus em ações possessórias que, vendo-se em vias de sucumbir na ação,
podem crer que, passando o bem a terceiros, evitarão a força da sentença que lhe seja
desfavorável. O terceiro, recebedor da posse, ao ver-se diante da sentença que determina a
perda do bem, poderia se valer dos embargos de terceiro possuidor, mas não há esta
proteção: a sentença proferida contra o original lhe alcança, por expressa previsão deste
dispositivo supra.

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 36


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Paula propôs Ação de Reintegração de Posse em face de Maria Lúcia e outro.


Aduziu a autora, em síntese, ter exercido a posse sobre determinado bem imóvel, tendo o
mesmo sido invadido pelos réus, imputando-lhes, desse modo, a prática de esbulho. A 1ª
ré ofereceu contestação sustentando que não houve esbulho possessório. Alega que a posse
foi adquirida regularmente de terceiro, que se encontrava na posse anterior do bem.
Ressalta que o imóvel se encontrava de fato abandonado, quando se deu a ocupação pelo
terceiro. Decida a questão, fundamentadamente.

Resposta à Questão 1

O artigo 1.212 do CC traz a seguinte determinação:

“Art. 1.212. O possuidor pode intentar a ação de esbulho, ou a de indenização,


contra o terceiro, que recebeu a coisa esbulhada sabendo que o era.”

O terceiro que recebeu o bem das mãos de um esbulhador, sabendo da origem do


bem, ver-se-á como réu. Contudo, se o terceiro possuidor desconhece a origem do bem,
adquirente de boa fé, não se opõe a ele a previsão do dispositivo.
No caso, a origem do bem não era sequer viciada, pelo que sequer se cogita de
qualquer irregularidade da posse do terceiro adquirente.
A respeito, veja o seguinte julgado do TJ/RJ:

“Processo: 0005689-67.2004.8.19.0038 (2007.001.02335). APELACAO. JDS.


DES. MAURO MARTINS - Julgamento: 25/04/2007 - DECIMA QUARTA
CAMARA CIVEL.
AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. AUTORA QUE ABANDONA BEM
IMÓVEL, QUE VEM A SER LEGITIMAMENTE OCUPADO POR TERCEIRO.
INEXISTÊNCIA DE VÍCIO NA AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA POSSE.
OCUPAÇÃO QUE SE COADUNA COM O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
IMPLÍCITO DA FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE. TRANSFERÊNCIA
POSTERIOR PARA A 1A RÉ, QUE ADQUIRE A POSSE DE MODO
ONEROSO. POSSE DA 1A RÉ QUE SE CARACTERIZA COMO JUSTA.
INEXISTÊNCIA DE LESÃO POSSESSÓRIA. SENTENÇA DE
IMPROCEDÊNCIA QUE SE MOSTRA ESCORREITA. RECURSO
CONHECIDO E DESPROVIDO.”

Questão 2

Marcos, ao viajar para a Europa, deixou sob a guarda de Carlos um automóvel.


Acontece que Antônio, irmão de Marcos, sob o argumento de ser o verdadeiro proprietário
do veículo, tomou-o de Carlos mediante violência. Carlos, inconformado com a atitude de
Antônio, propôs ação de reintegração de posse. Antônio alegou, todavia, que, por ser
Carlos mero detentor, carecia de legitimidade ad causam, devendo o processo ser extinto
sem julgamento do mérito. Pergunta-se:
a) Tem fundamento a argumentação de Antônio? Explique.
b) Poderia Carlos, logo após a agressão, mediante ajuda de amigos, utilizar de
força para reaver o bem? Explique.

Michell Nunes Midlej Maron 37


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

c) Seria legítima a atitude de Marcos no sentido de usar de violência para reaver o


seu automóvel, dois meses após o esbulho, ao retornar de sua viagem? E se o
automóvel realmente pertencesse a seu irmão?
d) Se em ação de reintegração de posse Marcos provar que era o possuidor do
veículo, que houve o esbulho e que conseqüentemente perdeu a posse, poderá o juiz
acatar alegação de domínio, devidamente provada por Antônio? Explique.

Resposta à Questão 2

a) Não. O depositário, figura delineada no caso, é legítimo possuidor da


coisa, e por isso é legitimado para o feito. Esta é a corrente de Caio Mário,
baseada no artigo 1.196 do CC:

“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno
ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.”

Mesmo que não tenha a plenitude do exercício, ainda é possuidor. Vale


mencionar que há uma corrente minoritária que defende que o depositário é
mero detentor, quando então não teria esta legitimidade – mas não há muita
expressão nesta vertente.
b) Seguindo-se a corrente majoritária, de que é possuidor, é cabível qualquer
defesa da posse que incumbe a qualquer possuidor. Se se adotar a corrente que
entende que há detenção, há uma subdivisão, parte defendendo incabível a
autotutela, parte reputando necessária, para que ele possa cumprir o dever de
restituir que o incumbe.
c) O desforço só pode ser utilizado de forma imediata, logo após o esbulho.
a definição de “logo após” é casuística, mas majoritariamente se defende que o
início do prazo ocorre no dia do esbulho, sendo que, minoritariamente, há
quem defenda que o prazo para definição da imediatidade tem início apenas
quando o possuidor teve a ciência do esbulho. Adotando-se a corrente maior,
no caso, não é cabível a autotutela.
Mesmo o bem pertencendo ao irmão de Marcos, sua tomada configura
esbulho, pois deveria ter se valido das medidas judiciais cabíveis.
d) De forma alguma. A ação possessória não comporta absolutamente
nenhuma discussão de cunho dominial, hoje, a teor do artigo 1.210, § 2°, do
CC.

Tema VI

Michell Nunes Midlej Maron 38


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Identificação dos direitos reais. Propriedade: modos de aquisição, conceitos, características, função social
da propriedade, teoria do abuso do direito, alcance e limites constitucionais, legais e convencionais.
Multiplicidade dominial. Propriedade urbana e suas características. Propriedade rural. Expropriação social.
Propriedade resolúvel e revogável. Propriedade limitada. Da descoberta.

Notas de Aula9

1. Propriedade

Há três formas de conceituar propriedade. Há o conceito legal, insculpido no caput


do artigo 1.228 do CC, que é um conceito descritivo, e que consiste no direito real que
assiste a quem possa usar, gozar, dispor e reaver a coisa. Veja:

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o


direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
(...)”

Pode-se também conceituar a propriedade de modo analítico, perscrutando todas as


características da propriedade. Enquanto o conceito legal é descritivo, traçando os poderes
do proprietário, o conceito analítico fornece as características do instituto: a propriedade é
um direito real; é absoluto, pois é oponível erga omnes; e é um direito limitado, por
contornos constitucionais, infraconstitucionais e convencionais, como se infere, por
exemplo, do artigo 1.231 do CC:

“Art. 1.231. A propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário.”

No CC de 1916, o artigo correspondente, 527, falava erroneamente em ilimitação,


pelo que foi bem corrigido pelo legislador de 2002. Veja:

“Art. 527. O domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário.”


O que se presume por propriedade plena, hoje, na forma do artigo 1.231 do CC, é
que não haja gravames, até que se prove alguma destas condições, e não que seja um direito
ilimitado, vez que não o é. Dentre os limites constitucionais à propriedade, pode-se apontar
a possibilidade de usucapião, de requisição administrativa, e a própria exigência de atenção
à função social, marcantemente a que permite a perda da propriedade de terras em que se
cultivem plantas psicotrópicas10, na forma do artigo 243 da CRFB:

“Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas
ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e
especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos
alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem
prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em
decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e
reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e

9
Aula ministrada pelo professor Marco Aurélio Bezerra de Melo, em 29/7/2009.
10
Há uma proposta de emenda constitucional que pretende dar a mesma solução expropriatória às situações
em que se constatar exploração de trabalho escravo.

Michell Nunes Midlej Maron 39


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização,


controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.”

Como limites infraconstitucionais, podem-se apontar como exemplos os direitos de


vizinhança, que limitam a exploração da propriedade, ou as cláusulas restritivas, que
limitam a sua disposição – a inalienabilidade, a incomunicabilidade e a impenhorabilidade.
Veja o artigo 1.848 do CC:

“Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o
testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de
incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.
§ 1° Não é permitido ao testador estabelecer a conversão dos bens da legítima em
outros de espécie diversa.
§ 2° Mediante autorização judicial e havendo justa causa, podem ser alienados os
bens gravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados
nos ônus dos primeiros.”

O instituto das cláusulas restritivas é protetivo, não consistindo em uma limitação


gratuita, sem fundamento, sobre a disponibilidade da propriedade. Por isso, é preciso que
haja justificativa suficiente para embasar a imposição de tais gravames, tal como a
altamente provável dilapidação do patrimônio pelo herdeiro, que é dependente químico de
entorpecentes e provavelmente venderia o bem para sustentar seu vício.
Havendo qualquer das restrições comprovadas, a propriedade deixa de ser
considerada plena. O dispositivo em análise, 1.231 do CC, ainda fala que a propriedade se
presume exclusiva. Pergunta-se: o condomínio é uma exceção à exclusividade da
propriedade?
Na verdade, não se trata de uma exceção à exclusividade, podendo-se falar, no
máximo, em uma mitigação, pois cada condômino, perante terceiros, é titular do todo. O
Brasil, para efeitos de condomínio, adotou a teoria da propriedade integral, diferentemente
do conceito romanista. O quinhão de cada um só é relevante na relação interna, entre os
próprios condôminos, para fins de rateio de despesas, vantagens e responsabilidades;
perante terceiros, cada um representa exclusiva propriedade sobre o bem. É uma mitigação,
e não uma exceção, justamente por ter, o aquinhoamento, alguma relevância – interna –,
mas permanecendo a propriedade exclusiva de quantos forem os condôminos, perante
terceiros.
Outra característica apontada na conceituação analítica da propriedade é a sua
natureza perpétua: ela não se extingue pelo mero decurso do tempo, não tendo fim sequer
pelo não uso. Há dois direitos reais, porém, que são sujeitos à extinção pelo não uso, no
direito positivo: a servidão predial e o usufruto. Na primeira, o legislador imprimiu prazo,
como se vê no artigo 1.389, III, do CC:

“Art. 1.389. Também se extingue a servidão, ficando ao dono do prédio serviente a


faculdade de fazê-la cancelar, mediante a prova da extinção:
(...)
III - pelo não uso, durante dez anos contínuos.”

É claro que as servidões contínuas, que não exigem atuação humana para se
implementarem em seu efeito, como a servidão predial de vista, contínua e não aparente,

Michell Nunes Midlej Maron 40


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

que impede a construção acima de determinado gabarito, não podem ser desconstituídas
pelo não uso, simplesmente porque não se tem possibilidade naturalística de não usá-la.
No usufruto, a extinção pelo não uso vem no artigo 1.410, VIII, do CC:

“Art. 1.410. O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de


Registro de Imóveis:
(...)
VIII - Pelo não uso, ou não fruição, da coisa em que o usufruto recai (arts. 1.390 e
1.399).”

Esta previsão de extinção é uma manifestação da função social do instituto, porque


a não utilização dos poderes pelo usufrutuário põem por terra o sentido da constituição
deste direito real.
Quanto ao usufruto, ainda há uma controvérsia quanto ao prazo. Pode-se entender
que haja uma lacuna quanto ao prazo de não uso, e suprir-se com a analogia ao artigo
1.389, III, do CC, supra; ou pode-se empreender uma interpretação conforme a CRFB, que
vê este silêncio como eloqüente, estabelecendo que o prazo será casuístico – posição de
Marco Aurélio Bezerra de Melo.
O direito real de superfície é apontado por alguns como exemplo de direito desta
natureza que se extingue também pelo não uso, mesmo que no direito positivo não se
encontre esta previsão.
Ainda no conceito analítico, além de ser absoluto, limitado, pleno, exclusivo e
perpétuo, há que se mencionar que a propriedade tem todas as demais características de
todo direito real (sequela, ambulatoriedade, aderência, preferência, etc.), vez que ela é, de
fato, exemplo de direito real por excelência. A propriedade é a maior senhoria que alguém
pode exercer sobre alguma coisa. Em verdade, esta última frase pode ser apontada como o
conceito mais sintético possível de propriedade: é o maior domínio possível sobre uma
bem.

1.1. Modos de aquisição da propriedade

Cada modalidade de aquisição da propriedade será abordada de forma detalhada,


adiante, bastando aqui uma abordagem mais ampla e genérica sobre o tema.
A propriedade pode ser adquirida de forma originária ou derivada.
Majoritariamente, a aquisição é originária quando ela não decorre de uma transferência
entre proprietário anterior e atual, ou seja, não há proprietário anterior a ser considerado na
cadeia. A aquisição derivada, por óbvio, é o contrário: há uma transmissão de propriedade a
ser levada em conta.
Na aquisição originária, os vícios que eventualmente eivassem a coisa não são
carreados ao novel proprietário. Na derivada, podem ser levados os vícios anteriores à
propriedade do adquirente.
Como meios de aquisição originária temos a usucapião; a ocupação de res derelicta
ou res nullius; a acessão imobiliária, etc. Por aquisição derivada, temos como exemplos a
compra e venda, a doação, a sucessão mortis causa, etc.
Para parte da doutrina, a aquisição originária rompe todas as relações que
porventura tivessem aquele bem por objeto. Por exemplo, uma hipoteca que recaísse sobre
um bem seria desconstituída quando este bem fosse usucapido. Segunda corrente, porém,

Michell Nunes Midlej Maron 41


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

defende que não só o fato de ser originária apaga toda e qualquer marca que o bem tenha
consigo: há que se analisar qual é o direito real que está sendo usucapido, porque é aquele
exatamente o que será constituído para o adquirente. Entenda: se o bem usucapido é bem
hipotecado, o adquirente está adquirindo a propriedade do devedor hipotecário, e nada
mais. Se não existia propriedade plena, não pode a usucapião simplesmente criá-la – haverá
a usucapião da propriedade limitada, que é a única que existe, no exemplo da hipoteca.
A descoberta, o encontro de coisa perdida, gera para o descobridor obrigação de
restituir ao dono, mediante recompensa, a qual recebe nome curioso: trata-se do achádego.
Esta recompensa tem parâmetro legal no artigo 1.234 do CC:

“Art. 1.234. Aquele que restituir a coisa achada, nos termos do artigo antecedente,
terá direito a uma recompensa não inferior a cinco por cento do seu valor, e à
indenização pelas despesas que houver feito com a conservação e transporte da
coisa, se o dono não preferir abandoná-la.
Parágrafo único. Na determinação do montante da recompensa, considerar-se-á o
esforço desenvolvido pelo descobridor para encontrar o dono, ou o legítimo
possuidor, as possibilidades que teria este de encontrar a coisa e a situação
econômica de ambos.”

1.2. Função social da propriedade

A propriedade obriga. A propriedade exige que seu titular se comporte de acordo


com o que se espera daquele bem, na sociedade. Desde a Constituição de Weimar, em 1917,
e a Constituição Mexicana de 1919 já se vislumbra este conceito. A função social é mais do
que um mero limite ao exercício da propriedade; é uma obrigação imposta ao proprietário,
que, se descumprida, leva à perda da tutela jurídica. Veja os artigos 5°, XXII e XIII, e 170,
II e III, da CRFB:

“(...)
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
(...)”

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na


livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
(...)”

Assim como a propriedade é um a garantia, a observância de sua função social é um


ônus a ser suportado por quem a titulariza.
Percebe-se uma certa nuance socialista nesta previsão, mas não se fala em
socialismo, muito menos em comunismo, pela adoção desta diretriz. o comunismo
simplesmente nega o conceito de propriedade; o socialismo, por sua vez, empresta muito
mais vigor à atividade prestacional estatal, não sendo delineado pelo mero funcionalismo
dos institutos. Pode-se falar, isto sim, como já dizia Clóvis Beviláqua, que o ordenamento
segue-se guiado pela diretriz da socialidade, que é a orientação funcional social de todos os
institutos.

Michell Nunes Midlej Maron 42


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O artigo 182 da CRFB trata da função social da propriedade urbana:

“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público


municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de
seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades
com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa
indenização em dinheiro.
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo
urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão
previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos,
em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e
os juros legais.”

O artigo 4° do Estatuto da Cidade exprime os instrumentos jurídicos e políticos


capazes de implementar a função social da propriedade. Veja:

“Art. 4° Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de
desenvolvimento econômico e social;
II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões;
III – planejamento municipal, em especial:
a) plano diretor;
b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;
c) zoneamento ambiental;
d) plano plurianual;
e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual;
f) gestão orçamentária participativa;
g) planos, programas e projetos setoriais;
h) planos de desenvolvimento econômico e social;
IV – institutos tributários e financeiros:
a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU;
b) contribuição de melhoria;
c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros;
V – institutos jurídicos e políticos:
a) desapropriação;
b) servidão administrativa;
c) limitações administrativas;
d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano;
e) instituição de unidades de conservação;
f) instituição de zonas especiais de interesse social;
g) concessão de direito real de uso;
h) concessão de uso especial para fins de moradia;
i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;

Michell Nunes Midlej Maron 43


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

j) usucapião especial de imóvel urbano;


l) direito de superfície;
m) direito de preempção;
n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;
o) transferência do direito de construir;
p) operações urbanas consorciadas;
q) regularização fundiária;
r) assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais
menos favorecidos;
s) referendo popular e plebiscito;
VI – estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de
vizinhança (EIV).
§ 1° Os instrumentos mencionados neste artigo regem-se pela legislação que lhes é
própria, observado o disposto nesta Lei.
§ 2° Nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social,
desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação
específica nessa área, a concessão de direito real de uso de imóveis públicos
poderá ser contratada coletivamente.
§ 3° Os instrumentos previstos neste artigo que demandam dispêndio de recursos
por parte do Poder Público municipal devem ser objeto de controle social,
garantida a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade
civil.”

As propriedades especiais, propriedades do intelecto – direito autoral, marcas e


patentes, etc. – são igualmente suscetíveis à função social. Delas se espera, tal como
quaisquer outras propriedades, o implemento da funcionalidade social. Melhor exemplo
desta situação é a patente de medicamentos, propriedade intelectual altamente relevante à
sociedade, cuja quebra de exclusividade na fórmula permite a disponibilização do bem a
muito mais pessoas que dele necessitem.

1.3. Análise do artigo 1.228 do CC

O artigo 1.228 do CC, cujo caput já foi transcrito, precisa de uma análise amiúde,
eis que é a verdadeira sede maior do direito de propriedade. Veja-o na íntegra:

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o


direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1° O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2° São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou
utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3° O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por
necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição,
em caso de perigo público iminente.
§ 4° O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco
anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em
conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse
social e econômico relevante.

Michell Nunes Midlej Maron 44


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

§ 5° No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao


proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel
em nome dos possuidores.”

O caput trata dos poderes essenciais do domínio, que já foram abordados. O § 1°


exprime, mais uma vez, a adesão pátria à diretriz da função social da propriedade, o que
também já foi alvo de análise em tópico anterior.
O § 2° do artigo em questão consagra a teoria do abuso do direito de propriedade.
Na sua primeira parte, traz o viés objetivo, que veda a prática de atos, pelo proprietário, que
não tenham nenhuma serventia a este, o que se verifica concretamente; e no final, adiciona
o viés subjetivo, que é o ânimo de prejudicar quem quer que seja com aquele ato. Veja que
há uma soma de requisitos, na leitura gramatical do dispositivo, mas a melhor doutrina
aconselha que se leia, ali, uma alternatividade: será abuso do direito a prática de atos
inúteis, ou a prática de atos que, mesmo úteis, sejam animados unicamente pelo espírito e
emulação11.
O abuso do direito, por óbvio, pressupõe que o direito exista, para poder ser
abusado. Promovendo abuso do direito que lhe assista, o proprietário está cometendo ato
ilícito, o chamado ilícito funcional, in casu, porque violador justamente da função social
que se espera daquele direito.
Há quem critique a previsão de qualquer subjetividade neste abuso de direito, ou
seja, o ato emulativo. Para quem assim pensa, qualquer uso da propriedade que não
proporcione comodidade ou utilidade a seu titular é abusivo, desde que perturbe outrem. A
perspectiva deve ser objetiva e funcional, tão somente. É por isso que se pode entender, por
exemplo, que passagem forçada seja impostas a um imóvel (mediante a indenização
correta), mesmo que o que precisa de tal passagem não esteja encravado, se não causar
prejuízo relevante ao serviente. Veja, a respeito, o enunciado 88 do CJF:

“Enunciado 88, CJF – Art. 1.285: O direito de passagem forçada, previsto no art.
1.285 do CC, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for
insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração
econômica.”

Pelo ensejo, veja o artigo 1.285 do CC, cuja interpretação conforme a Constituição,
sob o ponto de vista da funcionalidade, deu azo ao enunciado supra:

“Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou
porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe
dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.
§ 1° Sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se
prestar à passagem.
§ 2° Se ocorrer alienação parcial do prédio, de modo que uma das partes perca o
acesso a via pública, nascente ou porto, o proprietário da outra deve tolerar a
passagem.
§ 3° Aplica-se o disposto no parágrafo antecedente ainda quando, antes da
alienação, existia passagem através de imóvel vizinho, não estando o proprietário
deste constrangido, depois, a dar uma outra.”

11
O termo vem do latim emulatio, significando a rivalização, a intenção de causar aborrecimento, prejuízo ou
incômodo.

Michell Nunes Midlej Maron 45


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O vizinho que se nega a conceder passagem, por servidão contratual, está


cometendo um ilícito funcional, se não tem motivos para a tanto se negar. Por isso, a
passagem forçada terá lugar, mesmo sem encravamento do dominante.

Michell Nunes Midlej Maron 46


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Casos Concretos

Questão 1

José, proprietário de terreno adquirido de Lucius por meio de escritura de compra


e venda registrada em 2002, propõe ação reivindicatória em face de Gomes, alegando que
este o ocupa injustamente. Gomes, em contestação, alega que em 1998 pagou o preço do
imóvel a Ian, procurador em causa própria constituído por Lucius, deste obtendo
substabelecimento. Pergunta-se: merece ser acolhida a pretensão de José?

Resposta à Questão 1

O mandato em causa própria tem natureza jurídica, verdadeiramente, de um ato de


alienação. Não é uma mera procuração. Veja o artigo 685 do CC:

“Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula "em causa própria", a sua
revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes,
ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os
bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.”

A previsão desta dinâmica veio emprestar dignidade ao “gaveteiro”, aquele que


tinha seu direito assegurado apenas por um “contrato de gaveta”, método de transferência
de bens imóveis com largo uso, na praxe.
Sendo assim, o que se passou no caso concreto foi a alienação prévia por quem
poderia ter alienado – Ian era mandatário em causa própria –, levando à interpretação de
que Lucius é quem agiu de forma errada. O bom direito é de Gomes; José tem pretensão
improcedente, devendo agir em face de Lucius por indenização que lhe caiba.
Veja o REsp. 238.750:

“REsp 238750 / PE DJ 08/03/2000 p. 127.


REIVINDICATÓRIA. Posse justa. É justa a posse exercida por quem recebeu
substabelecimento de procuração em causa própria outorgada pela proprietária do
imóvel, tendo por objeto este mesmo imóvel, e apresenta recibo de quitação do
preço. Ação improcedente. Recurso conhecido e provido.”

Questão 2

Sérgio, solteiro, falece sem herdeiros e sem testamento (ab intestato), ficando todos
os seus bens para o município, inclusive um imóvel onde residia. Três meses após a
incorporação dos bens ao patrimônio público, André, vizinho do de cujus, ocupa o referido
prédio e ali se mantém durante um ano e um dia, até que o Poder Público, com o objetivo
de arrendar o imóvel, decide expulsar o invasor através da força. Acontece que André,
para fins de garantir sua estadia no prédio, propõe Ação de Manutenção de Posse. O
município, por sua vez, por intermédio de sua procuradoria, contesta a ação e reconvém.
Na contestação alega que: a) André é mero detentor e não possuidor porque os bens
públicos são insusceptíveis de posse, já que a Constituição proíbe, em seus artigos 183, §
3º e 191, parágrafo único, a usucapião dos mesmos; b)Mesmo que André fosse possuidor,
seria de má-fé, não merecendo, assim, a tutela legal, pois esta somente existe para o

Michell Nunes Midlej Maron 47


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

possuidor de boa-fé; c)O município é proprietário enquanto André é no máximo possuidor,


o que significa dizer que a situação de André não pode prevalecer em relação à do
município; d)Não é cabível ação possessória em face de ente público. Decida a questão
analisando cada argumento deduzido na contestação.

Resposta à Questão 2

Os argumentos do município são improcedentes: o de que a posse de má-fé não tem


tutela legal; a dedução da exceção de domínio; a impossibilidade de possessória contra ente
público; e a impossibilidade de posse de bens públicos. Não se está discutindo, aqui, direito
à propriedade, à usucapião, e sim mera posse. Por isso, André deve ter seu pleito provido.
O imóvel é dominical, e a maioria da doutrina entende que não pode ser usucapido,
mas pode ser possuído por terceiros, e esta posse merece a tutela legal, mesmo diante do
Poder Público, como se depreende do artigo 928, parágrafo único, do CPC

“Art. 928. Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem
ouvir o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração; no
caso contrário, determinará que o autor justifique previamente o alegado, citando-
se o réu para comparecer à audiência que for designada.
Parágrafo único. Contra as pessoas jurídicas de direito público não será deferida a
manutenção ou a reintegração liminar sem prévia audiência dos respectivos
representantes judiciais.”

Michell Nunes Midlej Maron 48


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Tema VII

Usucapião de bens imóveis: fundamento, conceito, modo de aquisição, e natureza da sentença. Requisitos da
posse ad usucapionem: posse ininterrupta, sem oposição e com animus domini. A imprescritibilidade dos
bens públicos e a controvérsia sobre a natureza das terras devolutas. O direito de exigir a outorga da
concessão especial de uso para fins de moradia.

Notas de Aula12

1. Usucapião de bens imóveis

A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos


reais, a saber, da servidão predial, do usufruto, do uso e do direito real de habitação –
hipóteses legais –, e do direito real de superfície, segundo a doutrina. O tema, porém,
delimita o estudo apenas à usucapião de bens imóveis.
Definindo esta usucapião, é a aquisição originária da propriedade imóvel, através do
exercício de uma posse qualificada pelo prazo legal. Sendo um modo originário de
aquisição da propriedade, o momento definidor da sua ocorrência é fundamental para
identificar o surgimento do domínio.
Havia uma controvérsia na usucapião de bens imóveis, sobre a natureza da sentença
na ação de usucapião: questionava-se se era declaratória ou constitutiva. Predominou o
entendimento de que é uma sentença declaratória, o que já dá a dica do momento de
aquisição efetiva da propriedade imóvel pela usucapião: esta aquisição se dá quando os
requisitos para tanto são preenchidos, servindo a sentença como ato de reconhecimento
daquela consolidação. A tese de que seria constitutiva se calca somente na necessidade de
que o registro seja instituído a fim de que a propriedade possa ter-se plenamente utilizada –
podendo, por exemplo, dar tal bem em garantia pignoratícia –, mas isto não significa
constitutividade, e sim mero estabelecimento erga omnes da propriedade já existente. É fato
que o usocapiente só poderá desempenhar alguns atos jurídicos imanentes à propriedade
quando esta for registrada, mas isto não significa que já não tivesse tal propriedade quando
reuniu os requisitos da usucapião.
O registro da sentença, então, se presta apenas a atribuir regularidade ao bem, mas o
direito já se encontrava perfeitamente adquirido antes disso. O STF revela coadunar-se a
este entendimento, quando diz, na sua súmula 237, que a usucapião pode ser argüida em
defesa – o que seria impensável se não existisse, já constituído, o direito de propriedade a
fundamentar tal defesa:

“Súmula 237, STF: O usucapião pode ser argüido em defesa.”

Assim, se em uma ação reivindicatória, o réu comprovar ter preenchido os


requisitos da usucapião (o ônus é seu), provado estará que tem a propriedade desde então,
devendo esta ser-lhe reconhecida. Esta sentença, portanto, será de improcedência, eis que o
autor não tem a propriedade alegada, o que gera a seguinte pergunta: poderá ser levada pelo
réu a registro?
A resposta é negativa. O juiz, ali, não declarou a usucapião como providência
imediata do pleito; apenas julgou improcedente o pedido reivindicatório. É preciso uma
12
Aula ministrada pelo professor Sandro Gaspar Amaral, em 13/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 49


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

declaração da usucapião, diretamente constante do dispositivo, e não como mera ratio


decidendi da sentença.
Não pode o réu reconvir, pleiteando a usucapião, na ação reivindicatória, contudo,
tampouco pode atravessar uma ação declaratória incidental. Veja o que dizem os artigo 941
a 945 do CPC:

“Art. 941. Compete a ação de usucapião ao possuidor para que se lhe declare, nos
termos da lei, o domínio do imóvel ou a servidão predial.”

“Art. 942. O autor, expondo na petição inicial o fundamento do pedido e juntando


planta do imóvel, requererá a citação daquele em cujo nome estiver registrado o
imóvel usucapiendo, bem como dos confinantes e, por edital, dos réus em lugar
incerto e dos eventuais interessados, observado quanto ao prazo o disposto no
inciso IV do art. 232. (Redação dada pela Lei nº 8.951, de 13.12.1994)”

“Art. 943. Serão intimados por via postal, para que manifestem interesse na causa,
os representantes da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal,
dos Territórios e dos Municípios. (Redação dada pela Lei nº 8.951, de
13.12.1994)”

“Art. 944. Intervirá obrigatoriamente em todos os atos do processo o Ministério


Público.”

“Art. 945. A sentença, que julgar procedente a ação, será transcrita, mediante
mandado, no registro de imóveis, satisfeitas as obrigações fiscais.”

A ação de usucapião envolve toda uma gama de pessoas alheias à reivindicatória,


como se vê. Há, inclusive, pólo passivo formado por litisconsórcio necessário entre réu e
proprietários confinantes. Por isso, o rito não se compatibiliza com uma reconvenção ou
uma declaratória incidental para fazer constar do dispositivo de improcedência da
reivindicatória a declaração de usucapião. A sentença que assim o fizesse seria nula, por
desrespeito às especialidades do rito de usucapião. A usucapião defensiva só se presta a
servir como fundamentação da improcedência da pretensão reivindicatória, e mais nada.
Vale salientar duas exceções que a CRFB traz, quando prevê dois tipos especiais de
usucapião, a especial urbana e a especial rural, respectivamente nos artigos 183 e 191 da
CRFB:

“Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a
para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja
proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à
mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.”

“Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua
como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural,
não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua
família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.”

Michell Nunes Midlej Maron 50


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O fundamento diferenciado destes institutos, em razão de sua função social, leva a


um tratamento igualmente diferenciado e excepcional quando se enfrenta tais usucapiões
como matérias de defesa. O artigo 7° da Lei 6.969/81, e o artigo 13 do Estatuto da Cidade,
dizem que a sentença de improcedência da reivindicaria baseada na usucapião poderá, sim,
servir-se como título aquisitivo, a ser levado ao registro:

“Art. 7º - A usucapião especial poderá ser invocada como matéria de defesa,


valendo a sentença que a reconhecer como título para transcrição no Registro de
Imóveis.”

“Art. 13. A usucapião especial de imóvel urbano poderá ser invocada como matéria
de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para registro no
cartório de registro de imóveis.”

Definido que a sentença é declaratória do momento em que a propriedade se


consolidou, há que se delinear que momento é este. Os requisitos para definição da
usucapião podem ser divididos em duas categorias: os essenciais e os específicos. Os
requisitos específicos se prestam a diferenciar as espécies de usucapião, e na análise de
cada modalidade serão abordados. Já os requisitos essenciai,s aqueles que estão presentes
em todo e qualquer tipo de usucapião, são, para a maior doutrina: a posse ad usucapionem,
com animus domini; a posse mansa e pacífica; o objeto hábil a ser usucapido; e o
cumprimento do prazo respectivo. Vejamos cada um em apartado.

1.1. Requisitos comuns

1.1.1. Posse ad usucapionem

Não é qualquer posse que permite a usucapião. Apenas aquela que estiver imbuída
de animus domini pode justificar usucapião. É necessário que haja, pelo período necessário
para configurar a propriedade, o sentimento de ser dono da coisa.
Vale mencionar que o promissário comprador, em regra, não tem animus domini,
assim como o devedor fiduciante: eles pretendem obter animus domini, para tanto firmando
o contrato que os permita perseguir esta condição de dono, mas ainda não pode-se dizer que
o sejam – há o dever de restituir o bem se se tornarem, estes possuidores, inadimplentes. É
claro que, havendo eventual interversão da posse, a partir dali passará a contar posse ad
usucapionem, podendo haver usucapião, porque há o animus domini desde então.

1.1.2. Posse mansa e pacífica

A posse ad usucapionem só enseja aquisição da propriedade quando não for atacada


por ninguém. Se o real proprietário questionar, opor resistência à posse daquele que tem-se
como dono da coisa, não há a necessária tranqüilidade na posse para fins de usucapião.
É claro que a única resistência que impede que a posse se transforme em
propriedade é aquela oposta pelo próprio proprietário da coisa. Não se considera intranqüila
a posse guerreada por vizinhos, por exemplo.

Michell Nunes Midlej Maron 51


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

1 1.3. Objeto hábil

O objeto da usucapião só pode ser aquele capaz de ser apropriado pelo usocapiente,
ou seja, aquele que possa passar a integrar o patrimônio do usocapiente. Bens públicos, por
exemplo, não podem ser usucapidos, como dispõe o artigo 102 do CC, não sendo bens
hábeis, portanto:

“Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.”

Animais silvestres também são bens legalmente inaptos à usucapião.


As terras devolutas diferem das terras sem registro. Para o STF, terras puramente
sem registro são aqueles imóveis sem proprietário, e que por isso são usucapíveis. As terras
devolutas são aquelas que pertencem ao Estado, mesmo que sem uso – são bens públicos
quando atendem ao interesse da sociedade, não podendo ser usucapidos. Se não atendem a
nenhuma finalidade pública, são meramente sem registro, e por isso são objetos hábeis à
usucapião.
Vagas de garagem delimitadas, partes integrantes de um bem imóvel, são bens
usucapíveis, porque nada mais são do que bens imóveis como quaisquer outros. Ao
contrário, as vagas que não são destacadas e delimitadas não podem ser usucapidas, porque
são integrantes da área comum de um condomínio. Mas veja que, mesmo sendo área
comum, a apropriação contra a resistência de todos os demais pode levar à usucapião.
É também passível de usucapião o quinhão de um condomínio: nada impede que um
condômino, fazendo uso exclusivo, manso, pacífico, e com animus domini do bem de que é
co-proprietário venha a usucapir os quinhões dos demais condôminos. O condômino
possuidor exclusivo está em presumida relação de comodato dos demais quinhões, sendo
possuidor sem animus domini, em regra, mas se comprovar que não há esta situação, ou
seja, que operou interversão da posse de comodatário para a de pretenso dono, há posse ad
usucapionem e com animo de dono, podendo haver usucapião dos quinhões.

1.1.4. Prazo

O cumprimento do prazo legal na posse da coisa é requisito para a usucapião, e este


prazo varia, na lei, de acordo com o objeto (móvel ou imóvel) e com o tipo de usucapião.
Este prazo já foi alvo de infindáveis discussões sobre sua natureza, mas hoje são findas:
trata-se de prescrição aquisitiva.
O artigo 1.244 do CC traz previsão de aplicabilidade, na usucapião, de todas as
ocorrências típicas da prescrição. Veja:

“Art. 1.244. Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das


causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se
aplicam à usucapião.”

A contabilização do tempo aquisitivo só se dá quanto aos períodos em que não há


interrupção, suspensão ou mesmo fulminação do prazo prescricional – o que ocorreria, por
exemplo, na retirada da posse do usocapiente.
Veja um exemplo: o diplomata proprietário de um imóvel é enviado para trabalhar a
serviço do Brasil em outro país, e quando retorna, após cinco anos, vê que seu bem foi

Michell Nunes Midlej Maron 52


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

esbulhado por pessoas com animo de apropriarem-se do imóvel. Mesmo passados cinco
anos, o artigo 198, II, do CC, estabelece que não corre a prescrição neste caso:

“Art. 198. Também não corre a prescrição:


(...)
II - contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos
Municípios;
(...)”

A suspensão permite que o prazo anterior seja computado; a interrupção não.


Havendo qualquer marco interruptivo, a prescrição aquisitiva volta a correr do zero. O
artigo 202 do CC traz as causas interruptivas, e o inciso I traz o “cite-se” como uma das
hipóteses:

“Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-
se-á:
I - por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o
interessado a promover no prazo e na forma da lei processual;
(...)”

É claro que, tal como na prescrição extintiva de direitos, o artigo 219, § 1°, do CPC
deve ser observado:

“Art. 219. A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz
litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em
mora o devedor e interrompe a prescrição. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de
1º.10.1973)
§ 1° A interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação.(Redação
dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
(...)”

Assim, o tempo corrido entre a distribuição e o despacho não se computa na


prescrição aquisitiva.
No curso do litígio, o prazo de usucapião não corre, porque carece, a posse, de um
dos elementos essenciais: a mansidão. Só voltará a ter esta natureza, recomeçando
eventualmente o prazo aquisitivo, quando findar-se a lide. A doutrina só enuncia uma
exceção a esta assertiva: se o juiz, ao fim do processo, declarar que o autor não tem direito
ao imóvel pleiteado, ele estará declarando que aquela perturbação da posse jamais ocorreu,
ou seja, a posse sempre foi mansa e pacífica, tendo que se computar todo o período do
processo na conta da usucapião.
Aqui é relevante falar da acessão de posses, do artigo 1.243 do CC, que permite,
segundo o já abordado artigo 1.207 do CC, que uma posse seja prolongada pelo sucessor,
quando a título singular. Sendo universal, a acessão é obrigatória, segundo mais amplo
entendimento. Se alguém adquire posse de quem a detinha de má-fé, e se dá a sucessão das
posses, esta posse nova será eivada da mesma má-fé que a acompanhava – e por isso o
prazo será o coincidente com a posse desta natureza. Não reunida as posses do antecessor e
do sucessor, porque a sucessão é a título singular e é permitida a separação das posses, o
prazo a ser observado é o que seja correspondente à natureza da posse do sucessor. Veja o
artigo 1.243 do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 53


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 1.243. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos
antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto
que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e
de boa-fé.”

1.1.5. Posse ininterrupta

Último requisito é que a posse não tenha sido interrompida, no curso de seu
cômputo. O prazo do período aquisitivo não pode contar com solução de continuidade. Veja
que trata-se, aqui, de verdadeira ruptura da posse, ou seja, se o possuidor, por algum
momento, deixou de sê-lo, o período estará fulminado, tendo que ser reiniciado – tal como
na interrupção do prazo aquisitivo.

Michell Nunes Midlej Maron 54


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Casos Concretos

Questão 1

Valentim ingressou em juízo com ação reivindicatória em face de Rosa. A ré, em


defesa, alegou ser a proprietária, pois preencheu os requisitos do usucapião urbano.
Pergunta-se: pode ser admitida tal defesa?

Resposta à Questão 1

É perfeitamente admissível a dedução desta matéria defensiva, como determina a


súmula 237 do STF, e, mais recente, o artigo 13 do Estatuto da Cidade, para a espécie:

“Art. 13. A usucapião especial de imóvel urbano poderá ser invocada como matéria
de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para registro no
cartório de registro de imóveis.”

Neste sentido, veja a Apelação Cível 2002.001.25854, do TJ/RJ:

“Processo: 0004416-87.1997.8.19.0203 (2002.001.25854). APELACAO.


DES. PAULO GUSTAVO HORTA - Julgamento: 17/12/2002 - SETIMA
CAMARA CIVEL. ACAO REIVINDICATORIA. USUCAPIAO ESPECIAL.
NAO CONFIGURACAO. COMODATO. CONFIGURACAO.
AÇÃO REINVIDICATÓRIA - USUCAPIÃO ESPECIAL URBANO ARGÜIDA
EM DEFESA. A usucapião pode ser argüida em defesa (Súmula nº 237 do STF),
mas a declaração da aquisição da propriedade pela prescrição aquisitiva está a
depender sempre da observância do procedimento próprio, previsto nos artigos
941e seguintes do CPC.
O Estatuto da Cidade, que, modificando inteiramente a ordem processual vigente,
permite seja a usucapião especial de imóvel urbano de pequena área invocado
como defesa, valendo a sentença como título no RGI, só teve vigência após a
estabilização do processo, com a citação válida (cf. art. 264 do CPC), não se
aplicando, portanto, na espécie.
No regime anterior, no caso de ser a usucapião argüida em defesa o resultado
prático da ação reivindicatória seria a improcedência do pedido.
Comprovado que a ré vem ocupando o apartamento por mera concessão de um dos
autores, que com ela coabitou por oito anos, a natureza da ocupação é de mero
comodatário e, promovida a notificação extrajudicial para desocupação voluntária
e não tendo sido o imóvel devolvido, é cabível a concessão do pedido
reivindicatório em favor dos proprietários.
Pedido de anulação da sentença por não intervenção do parquet. Não
obrigatoriedade.
Recurso desprovido.”

Questão 2

Maíra propõe ação de reintegração de posse em face de Ayrton. Sustenta ter


celebrado contrato de comodato com o réu, lavrado por escritura pública, sem prazo
determinado. Aduz que enviou primeira notificação ao réu em 16/10/97, para desocupação
do imóvel, não obtendo resultado positivo. Reenviou notificação em 16/05/06, restando
novamente ignorada. Alega o réu, em contestação, ilegitimidade ativa, vez que a autora

Michell Nunes Midlej Maron 55


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

seria cessionária de direitos hereditários. No mérito, alega ter a posse mansa e pacífica do
imóvel há mais de 8 anos. Ressalta que, após a denúncia do contrato em 1997, o comodato
foi revogado, passando a ser possuidor de boa-fé, o que ensejaria o direito de usucapião.
Pugnou pela improcedência do pedido autoral. Decida a questão, fundamentadamente.

Resposta à Questão 2

A posse é precária, comportando reintegração pelo esbulho praticado. Ademais, está


clara a má-fé do possuidor, o que não obsta a usucapião, só que pelo artigo 1.238 do CC.
Vale dizer que, debalde ser comodatário, poderia ter havido a interversão da posse, quando
passaria a ser possuidor ad usucapionem, fenecendo sua intenção em usucapir apenas por
falta de prazo – a reintegração seria procedente, não porque não há usucapião possível, mas
porque o prazo não se completou.
A respeito, veja a Apelação Cível 2006.001.18351, do TJ/RJ:

“Processo: 0003006-78.2005.8.19.0052 (2006.001.18351). APELACAO. DES.


MARCO ANTONIO IBRAHIM - Julgamento: 29/06/2006 - OITAVA CAMARA
CIVEL
Civil. Posse. Ação possessória. Reintegração de posse. Comodato. Usucapião.
Hipótese em que o proprietário de imóvel dado em comodato à parte ré, por
escritura pública cede seus direitos à parte autora. Notificação premonitória da
comodatária que, desatendida, implica em reconhecimento de esbulho. A
continuidade da ocupação do imóvel após o recebimento de notificação
premonitória, extintiva de comodato, não legitima a alegação de posse de boa-fé do
esbulhador e muito menos autoriza a aquisição pela via do usucapião. A mera
existência do contrato de comodato e notificação para extingui-lo, revelam a
inexistência de "animus domini" por parte do possuidor. Recurso desprovido.”

Questão 3

Qual a natureza da sentença que julga procedente pedido de uma ação de


usucapião de imóvel e a partir de quando o usocapiente é considerado o proprietário do
bem? Qual a finalidade do registro da sentença no cartório competente? Fundamente.

Resposta à Questão 3

A sentença é declaratória, segundo a mais ampla corrente, havendo minoritário


entendimento de que seja constitutiva. A propriedade do usocapiente se consolida desde
quando preenchidos os requisitos da usucapião, segundo a corrente majoritária, o que, na
verdade, subdivide-se em dois entendimentos: há uma corrente que, mesmo entendendo
declaratória a sentença, a propriedade surge na data do preenchimento dos requisitos, dali
em diante; e outra, que hoje predomina, que a propriedade retroage ao início da posse ad
usucapionem, e não apenas do preenchimento dos requisitos em diante. Para quem entende
que a sentença seja constitutiva, a propriedade se consolidaria apenas quando esta fosse
registrada.
A finalidade do registro no cartório, para a corrente maior, é dar publicidade da
aquisição da propriedade, e com isso permitir que todos os consectários possam ser
exercidos, tais como a transmissão, a entrega do bem em garantia, etc. Seguindo-se a
corrente menor, o registro é a própria condição para aquisição da propriedade.

Michell Nunes Midlej Maron 56


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Tema VIII

Usucapião de bens imóveis. Modalidades. Usucapião extraordinário. Usucapião ordinário. Usucapião


especial individual urbano. Usucapião especial coletivo urbano. Usucapião rural. Prescrição aquisitiva
intercorrente. Contagem dos prazos. Análise dos artigos 2.028 e 2.029 do Código Civil.

Notas de Aula13

1. Espécies de usucapião

Os requisitos específicos diferenciam os diversos tipos de usucapião. Tais são as


modalidades possíveis: usucapião extraordinária; ordinária; Vejamos cada modalidade com
seus requisitos próprios.

1.1. Usucapião extraordinária

O artigo 1.261 do CC trata da usucapião extraordinária de bem móvel:

“Art. 1.261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá
usucapião, independentemente de título ou boa-fé.”

O artigo 1.238 traz a usucapião extraordinária de bem imóvel.

“Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir
como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e
boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá
de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o
possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado
obras ou serviços de caráter produtivo.”

O prazo da usucapião extraordinária de bem imóvel, em regra, é de quinze anos, ou


excepcionalmente, de dez anos, como se vê no parágrafo do artigo supra. A exceção do
parágrafo precisa do cumprimento da função social da moradia própria habitual
(residência), ou de tornar tal bem produtivo.
Repare na seguinte peculiaridade: o prazo de dez anos começa a ser contado quando
se instala uma das condições ali previstas. Assim, se o possuidor toma o bem em 2003, e
começa a residir em 2004, seu prazo de dez anos corre até 2014. Contudo, se tem a posse
desde 2003, e passa a residir no bem apenas em 2009, a lógica é outra: correrá seu prazo até
2018, quando se preenche o prazo do caput, e não até 2019, como determinaria o parágrafo
único. Veja que pode o prazo do caput se preencher antes do prazo do parágrafo único, e se
acontecer, ele prevalece, em prol do possuidor usocapiente.

1.2. Usucapião ordinária

O artigo 1.260 do CC traz a usucapião ordinária de bem móvel:

13
Aula ministrada pelo professor Sandro Gaspar Amaral, em 13/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 57


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 1.260. Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e
incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a
propriedade.”

O artigo 1.242 do CC traz a usucapião ordinária de bem imóvel:

“Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e


incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel
houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo
cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem
estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e
econômico.”

A ordinária de imóvel, em regra, ocorre em dez anos, como diz o caput do artigo
supra, se preenchidos os requisitos essenciais e havendo boa-fé e justo título.
Será possível a exceção do parágrafo, caindo o prazo para cinco anos, se houver
todos os requisitos essenciais, mais a boa-fé e o justo título, tal como enuncia o caput, e
também os caracteres especiais ali previstos – a aquisição onerosa cancelável (e não
somente após efetivamente cancelada), com moradia ou investimentos de interesse social
ou econômico.
Vejamos um exemplo: uma pessoa, com boa-fé e justo título, esteja na posse de um
imóvel, e seu título é uma aquisição onerosa. Esta aquisição foi levada a registro. Se este
registro poderia ter seu cancelamento desde logo requerido, qualquer que seja o motivo,
enquadra-se no parágrafo único.
Agora, imagine-se que uma pessoa faz doação com cláusula de reversão a outra.
Este possuidor morre (quando então a reversão se opera), mas os seus herdeiros continuam
na posse, pois nunca souberam da cláusula de reversão, ou seja, com boa-fé – também estão
nesta modalidade de usucapião, mas no caput. Se o possuidor donatário, antes de morrer,
tivesse vendido o bem a um terceiro, este terceiro teria posse ad usucaspionem, com justo
título, boa-fé, e adquiriu onerosamente. A propriedade vendida era resolúvel, ante a cláusula
de reversão, e continua reversível, tornando-se o registro cancelável apenas quando do
implemento da condição resolutiva (morte do donatário), a partir do que contar-se-ia o
prazo de dez anos, a princípio (pois o título não era cancelável na aquisição, somente no
implemento da condição).
Ter justo título não significa ter boa-fé, mas sim uma presunção de que haja boa-fé.

1.3. Usucapião especial urbana ou rural

O artigo 183 da CRFB, o 9° do Estatuto da Cidade, e o 1.240 do CC tratam da


usucapião especial urbana:

“Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a
para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja
proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à
mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

Michell Nunes Midlej Maron 58


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.”

“Art. 9° Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e
cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde
que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1° O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos,
independentemente do estado civil.
§ 2° O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor
mais de uma vez.
§ 3° Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a
posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da
sucessão.”

“Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a
para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja
proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1° O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à
mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2° O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo
possuidor mais de uma vez.”

A rural vem no artigo 191 da CRFB e no artigo 1.239 do CC, além de ter lei
específica, a Lei 6.969/81, que dispõe sobre a aquisição, por usucapião especial, de imóveis
rurais:

“Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua
como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural,
não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua
família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.”

“Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua
como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural
não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua
família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.”

A função social da propriedade rural, que justifica esta modalidade de usucapião,


sempre existiu, apenas tendo sido aumentado o objeto que tolera tal meio de aquisição
especial, de vinte e cinco para cinquenta hectares. Já a função social do imóvel urbano, que
se define pela moradia, é uma inovação do ordenamento pós CRFB de 1988.
Aqui, há uma nota essencial de função social da posse, também. A lei deixa isto
claro, ao dispensar menção, em qualquer dos casos, à boa-fé ou justo título dos possuidores:
mais relevância tem a função social e a destinação do bem do que a condição subjetiva do
possuidor.
Também o prazo é reduzido a apenas cinco anos, em qualquer caso. São exigidos,
porém, alguns requisitos específicos: a área máxima a ser usucapida é de até duzentos e
cinquenta metros quadrados, em solo urbano, e até cinquenta hectares, em solo rural; o
possuidor usocapiente não pode ser proprietário de qualquer outro imóvel, rural ou urbano;
e há uma finalidade social específica a ser cumprida: sendo rural, o imóvel deve servir de

Michell Nunes Midlej Maron 59


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

moradia ao possuidor, e se tornar produtivo graças ao labor deste possuidor ou sua família;
e se for urbano, prestar-se à moradia do possuidor.
Destarte, estando o bem locado a terceiros, em qualquer dos casos, a usucapião
especial é impossível; sendo imóvel comercial, também. Pode até haver usucapião de outra
modalidade, mas não esta especial, urbana ou rural.
A inspiração destas normas é a proteção aos desfavorecidos, ou seja, sua
interpretação deve ser teleológica, e não apenas literal. Por isso, há que se perscrutar se
quem preenche os requisitos formais da usucapião especial precisa mesmo desta proteção,
pois do contrário, esta não se justifica. Como exemplo, alguém muito rico que ocupe um
imóvel nas condições do artigo 1.240, supra, ou mesmo uma situação de fraude à lei:
alguém que era proprietário de um bem, e vende-o para usucapir outro, nestas condições.
Mas há quem entenda que quem preenche todos os requisitos formais pode, sim, fazer jus a
esta usucapião especial.

1.4. Usucapião coletiva

Imagine-se que haja a invasão de um terreno por um grupo, o qual ali instala
moradia, cada um dos possuidores do terreno construindo sua casa, mas todos possuindo o
terreno, a mesma área urbana, como um todo. Ao pretender a usucapião, todos os
possuidores tornar-se-ão proprietários do imóvel, do terreno, que é um só – apesar de haver
diversas acessões, há um só imóvel geral, o terreno não loteado. Esta é a usucapião
coletiva.
Veja que se houvesse o loteamento, a definição das frações, esta usucapião seria
impossível. Seria preciso o fracionamento, a definição legal de cada parcela do solo, e
somente então aa consolidação da propriedade – o que, na prática, tornaria o processo
infindável.
O artigo 10 do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01, traz o instituto:

“Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados,
ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos,
ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos
ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente,
desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1° O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo,
acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2° A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz,
mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de
imóveis.
§ 3° Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor,
independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de
acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 4° O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de
extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos
condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do
condomínio.
§ 5° As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão
tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os
demais, discordantes ou ausentes.”

Michell Nunes Midlej Maron 60


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Veja que o tamanho do imóvel é o inverso da usucapião especial urbana individual:


deve ser superior a duzentos e cinquenta metros quadrados. Os possuidores não podem ser
proprietários de outro imóvel, e devem consistir em população de baixa renda, além de
fixarem ali a sua moradia.
A situação de pobreza, a permitir que o possuidor se enquadre neste critério de
baixa renda, é de cunho bastante subjetivo. O juiz deverá constatar qual seja esta condição
na casuística, pois há zonas limítrofes entre classe média baixa e pobreza que são de difícil
definição.
O juiz, ao fixar o fracionamento ideal do bem, não poderá atribuir frações ideais
desiguais entre os possuidores, como dispõe o § 3° do artigo supra. Contudo, é permitido
aos próprios possuidores traçar este fracionamento desigual, se o quiserem, o que passará a
constar da sentença.
O artigo 1.228 do CC, já analisado, traz no § 4° uma previsão que é considerada por
alguns como uma modalidade de usucapião coletiva, o que não corresponde à realidade
jurídica de tal dispositivo, eis que é claramente uma situação de expropriação judicial em
prol da função social do bem. Reveja:

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o


direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
(...)
§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco
anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em
conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse
social e econômico relevante.
(...)”

Vejamos um exemplo que envolve direito intertemporal. Pessoas iniciaram posse de


área urbana de dois mil metros quadrados, em 1988, por meio de invasão, sem desenvolver
ali qualquer função social, residência ou labor. Qual o tempo de usucapião para tal
situação? Veja o artigo 2.028 do CC:

“Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e
se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do
tempo estabelecido na lei revogada.”

Estamos diante da usucapião extraordinária, do caput do artigo 1.238 do CC, que no


artigo 550 do CC de 1916 era vintenária, como se vê:

“Art. 550. Aquele que, por 20 (vinte) anos, sem interrupção, nem oposição,
possuir como seu um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de
título de boa fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juiz que assim o
declare por sentença, a qual lhe servirá de título para transcrição no Registro de
Imóveis. (Redação dada pela Lei nº 2.437, de 7.3.1955)”

Até 11 de janeiro de 2003, quando o CC de 2002 entrou em vigor, já se passaram


quinze anos, e o artigo 2.028, supra, prevê que quando isto acontecer permanece o prazo
anterior. Sendo assim, estes possuidores usucapiram este bem em 2008.

Michell Nunes Midlej Maron 61


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Ocorre que o proprietário do bem invadido morreu em 1992, deixando a herança


para seu filho, que contava com dez anos. Com esta idade, não correrá prescrição contra si,
ficando suspensa até completar dezesseis anos, na forma do artigo 198, I, do CC:

“Art. 198. Também não corre a prescrição:


I - contra os incapazes de que trata o art. 3º;
(...)”

Vê-se, então, que correu prazo de quatro anos antes da suspensão, de 1988, ficando
suspenso até 1998, quando o herdeiro completou dezesseis anos; de 1998 até o CC de 2002,
computam-se mais cinco anos, até a vigência material, em 2003. Por isso, os nove anos são,
neste exemplo, menos da metade do prazo do artigo anterior, que era de vinte anos, e
portanto o prazo a ser considerado é o do novo CC, qual seja, de quinze anos, ocorrendo a
usucapião em 2009 – pois restavam seis anos por cumprir, desde 2003, tendo computados
nove anos antes do novo CC.
Há quem diga, minoritariamente, que o prazo do novo artigo deveria começar em
2003, ou seja, no exemplo, os nove anos de posse prévia deveriam ser descartados, vindo a
usucapião a ocorrer em 2018. É corrente minoritária por ser obviamente contrária aos
propósitos da lei.
Aproveitando o mesmo exemplo da invasão deste terreno, suponha-se agora que os
possuidores exerçam ali a moradia habitual, desde sempre. O tempo a ser considerado,
aqui, será o do parágrafo único do artigo 1.238 do CC, ou seja, dez anos. A aplicação do
artigo 2.028 do CC é impossível, porque não se trata de redução ou aumento do prazo: a
hipótese do parágrafo único simplesmente não existia no CC de 1916. Por isso, aplica-se o
artigo 2.029 do CC, que é específico para a usucapião:

“Art. 2.029. Até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos
estabelecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242
serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência
do anterior, Lei no 3.071, de 1° de janeiro de 1916.”

Até 11 de janeiro de 2005, os prazos estabelecidos no dispositivo em questão,


parágrafo único do artigo 1.238 do CC, e do parágrafo único do artigo 1.242 (usucapião
ordinária), sofrem acréscimo de dois anos, qualquer que seja o tempo já transcorrido: o
prazo que era de dez anos torna-se doze, e o de cinco, sete.
Destarte, se a posse com moradia habitual, no exemplo, se iniciou e 1988, tendo
havido a interrupção pela menoridade, até janeiro de 2003 haveria nove anos; dali, ao invés
de correr apenas mais um ano, usucapindo em 2004, deverá observar mais três, pela adição
legal, correndo até 2006. Estes dois anos acrescidos servem para promover uma adaptação
à nova ordem jurídica, evitando surpresas.

Michell Nunes Midlej Maron 62


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Casos Concretos

Questão 1

O Estado do Rio de Janeiro impugna o reconhecimento da propriedade pela


usucapião, sob o argumento de que por não ter registro o imóvel, este seria público e,
portanto, imprescritível. Diante dessa alegação, decida a questão, dando a melhor solução
para o caso.

Resposta à Questão 1

A condição de terra devoluta não se presume pela simples ausência de registro. O


Estado precisa comprovar esta situação, a fim de que, com isso, o bem se torne
reconhecidamente público. Por isso, a terra sem registro, sem prova de que seja devoluta, é
res nullius, bem sem dono, podendo ser usucapida.
A respeito, veja o REsp. 113.255:

“REsp 113255 / MT. DJ 08/05/2000 p. 89.


CIVIL. USUCAPIÃO. ALEGAÇÃO, PELO ESTADO, DE QUE O IMÓVEL
CONSTITUI TERRA DEVOLUTA. A ausência de transcrição no Ofício
Imobiliário não induz a presunção de que o imóvel se inclui no rol das terras
devolutas; o Estado deve provar essa alegação. Precedentes do Supremo Tribunal
Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial não conhecido.”

Questão 2

Maria das Dores preenche todos os requisitos da usucapião especial urbana,


exercendo posse sobre imóvel de propriedade da Companhia Estadual de Habitação,
sociedade de economia mista, que abandonou um empreendimento para a construção de
100 casas populares. A ré contesta o pedido de reconhecimento de usucapião, sob o
argumento da imprescritibilidade do bem público. Decida a questão.

Resposta à Questão 2

O bem é privado, e o objeto é hábil, portanto, sendo perfeitamente possível a


usucapião.
A respeito, veja a Apelação Cível 1995.001.01862, do TJ/RJ:

“Processo: 006895-51.1995.8.19.0000 (1995.001.01862). APELACAO. DES.


SYLVIO CAPANEMA - Julgamento: 10/12/1998 - TERCEIRA CAMARA
CIVEL.
USUCAPIAO. IMOVEL DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA
PROCEDENCIA DA ACAO.
Acao de usucapiao. Os imoveis que pertencem `as sociedades de economia mista,
que tem personalidade juridica de direito privado, especialmente as que se
destinam `a promover o acesso do povo `a moradia, e que nao se destinam a uso
especial, podem ser usucapidos. Completado o prazo da prescricao aquisitiva
durante o curso do processo, deve ser acolhida a pretensao, aplicando-se a regra do
art. 462 do CPC. Desprovimento do recurso.”

Michell Nunes Midlej Maron 63


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Tema IX

Registro de imóveis. Conceito. Princípios. Atributos. Eficácia. Atos praticados pelo cartório do registro de
imóveis. Importância jurídica da prenotação. Procedimento administrativo de dúvida.

Notas de Aula14

1. Registro de imóveis

O sistema registral brasileiro é relativamente recente, tendo surgido em meados de


1860. O sistema só surgiu por aqui quando se viu necessidade de regulamentação do
sistema hipotecário, que, sem o registro público, era bastante tumultuado e inseguro.
Veja o artigo 1° da Lei 6.015/73:

“Art. 1º Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela


legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam
sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei. (Redação dada pela Lei nº 6.216, de
1974)
§ 1º Os Registros referidos neste artigo são os seguintes: (Redação dada pela Lei
nº 6.216, de 1974)
I - o registro civil de pessoas naturais; (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1974)
II - o registro civil de pessoas jurídicas; (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1974)
III - o registro de títulos e documentos; (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1974)
IV - o registro de imóveis. (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1974)
§ 2º Os demais registros reger-se-ão por leis próprias. (Redação dada pela Lei nº
6.216, de 1974)”

Do caput se depreende as funções do sistema registral: atribuir autenticidade,


eficácia e segurança aos atos jurídicos dependentes de registro. Em especial, o registro de
imóveis é fundamental, ante a necessária publicidade de que precisam os direitos reais –
sendo certo que todos os direitos reais, sobre móveis ou imóveis, precisam desta
publicidade. Em relação aos bens móveis, porém, a publicidade da situação se dá pela mera
constatação fática, pelo mero contato com o bem móvel, enquanto nos bens imóveis a
constatação da situação jurídica depende mormente do registro, eis que o contato direto não
é tão revelador como o é nos móveis.
Dois sistemas registrais do direito comparado são os de maior influência na matéria,
em nível mundial: o francês e o alemão. No sistema registral francês, a pactuação do
contrato já transfere a propriedade, até mesmo de bem imóvel. O Código Civil Francês, de
1804 – o Código Napoleônico –, resgatou, neste momento pós revolucionário, resgatou os
institutos de direito privado mais importantes – contrato, propriedade, poder familiar –
atribuindo a estes institutos uma força absoluta, justamente por receio das intervenções
estatais abusivas do passado. E é por isso que este sistema de poder absoluto do contrato
que se estruturou o sistema registral francês sem que o registro tivesse a força de emprestar
eficácia à transmissão da propriedade, bastando o próprio contrato para tanto. O registro,
nesta ordem, só se prestava à publicidade do ato. Impera até hoje esta sistemática, na ordem
registral francesa: quem celebra o contrato de compra e venda já é proprietário desde então.
No sistema germânico, ao contrário, a propriedade se transfere de forma muito mais
burocrática, sendo necessários três atos para tanto: a própria celebração do contrato, que
14
Aula ministrada pelo professor Fernando Augusto Andrade Ferreira Dias, em 16/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 64


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cria o direito obrigacional, mas não a transferência do direito real, desde já; em seguida,
deve ser celebrado um contrato perante o oficial registrador, este sim considerado contrato
real, e que passa a substituir o primeiro, de fato, porque nele consta tudo que constava no
original, mais a fé pública estabelecida pelo ato cartorário; e, por fim, produzem-se os atos
cartorários pertinentes à publicidade do contrato, como as matrículas e averbações.
Por esta alta burocracia do sistema alemão, a presunção gerada pelo registro é
absoluta. Não se pode anular registro com base em algum vício que, por exemplo, eivasse o
primeiro contrato, porque o segundo, firmado perante o oficial, impõe-se perfeito.
No Brasil, o primeiro ato é idêntico ao do sistema alemão: o contrato cria o direito
obrigacional, mas ainda não o real. A obrigação criada pelo contrato é justamente a de
transferir a propriedade. Em seguida, o contrato precisa ser levado ao registro de imóveis,
pois enquanto não houver tal registro, não há transferência efetiva da propriedade, não
havendo a pactuação de novo contrato real no registro, mas sim a plana inscrição do pacto
obrigacional no registro, com os atos cartorários dali decorrentes. Por isso, a presunção de
validade do registro é relativa, e não absoluta, como na Alemanha.
Veja uma situação peculiar: indivíduo celebra contrato de compra e venda, sendo
que logo após, antes de ser levado o contrato a registro, o vendedor morre. Como não
houve registro, o imóvel ainda pertence ao proprietário obituado, e por isso, pela saisine,
passa aos herdeiros. O comprador só é credor do direito obrigacional, mas ainda poderá
levar o bem a registro, consolidando sua propriedade, mesmo após a morte do original
proprietário.
Assim, em síntese, duas características peculiares do sistema brasileiro de registro
de imóveis são a transferência da titularidade por meio do registro, a vinculação do título ao
modo de transferência, título que é o negócio jurídico que autoriza esta transferência; e a
presunção relativa de titularidade, de regularidade do registro, eis que não há escrutínio dos
vícios porventura incidentes sobre o contrato, e geração de um novo, pelo oficial cartorário,
como na Alemanha.
Há quem diga que, por esta dinâmica, o contrato de compra e venda de imóvel seja
um negócio jurídico complexo, pois que só se aperfeiçoaria com uma pluralidade de atos.
Contudo, não é a melhor orientação. O contrato, em si, é simples, gerando seus efeitos por
si só – a criação das obrigações; a transferência da propriedade, esta sim, é ato complexo,
pois demanda dois atos: a pactuação do contrato e a feitura do registro.
Explicadas as bases do registro de imóveis brasileiro, passemos à analise pontual
deste sistema, regido pela Lei 6.015/73.

1.1. Estrutura do registro de imóveis

O artigo 173 da Lei de Registros Públicos apresenta os livros componentes do RGI:

“Art. 173 - Haverá, no Registro de Imóveis, os seguintes livros: (Renumerado do


art. 171 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
I - Livro nº 1 - Protocolo;
II - Livro nº 2 - Registro Geral;
III - Livro nº 3 - Registro Auxiliar;
IV - Livro nº 4 - Indicador Real;
V - Livro nº 5 - Indicador Pessoal.
Parágrafo único. Observado o disposto no § 2º do art. 3º, desta Lei, os livros nºs 2,
3, 4 e 5 poderão ser substituídos por fichas.”

Michell Nunes Midlej Maron 65


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O livro 1, de protocolo, é a porta de entrada do registro de imóveis, em que se faz o


primeiro registro dos títulos. No livro 2, há o registro geral de todos os dados referentes ao
imóvel, todas as transferências de titularidade, alterações de direitos reais, etc. No livro 3,
de registro auxiliar, constam todos os atos que não sejam diretamente referentes a direitos
reais exercidos sobre bens imóveis, mas que podem sobre o repercutir sobre o bem, tal
como o registro de uma cédula de crédito, ou de um pacto antenupcial, etc. O livro 4 é um
livro índice, que se destina a identificar, por exemplo, se um determinado imóvel está
registrado naquele ofício, buscando-se pelo número da matrícula. E o livro 5, igualmente, é
um índice que se presta a localizar bens, mas no qual a busca se realiza pela pessoa, e não
pela matrícula do imóvel.

1.2. Atos registrais do RGI

Basicamente, quatro são os atos que o oficial cartorário do RGI pode realizar: a
matrícula, o registro, a averbação e a prenotação.
A matrícula consiste na anotação inicial do imóvel. Todos os imóveis alodiais
(particulares) são matriculados em algum ofício registral, ou devem sê-lo, mas há, na
situação concreta, imóveis não registrados. Outrora, se considerava estes imóveis como
bens devolutos, e por isso o Estado seria seu titular – sendo impassíveis de usucapião. Hoje,
porém, os bens sem registro são res nullius, podendo haver a usucapião.
A matrícula foi criada junto com o sistema registral da Lei 6.015/73, mas a
propriedade preexistia a tal marco legal. Por isso, o sistema anterior deve ter expressão na
matrícula, a qual descreverá toda a gama de relações percorrida pelo bem até aquele
momento.
O segundo ato do oficial é o registro. São passíveis de registro todos os atos
descritos no artigo 167, I, da Lei de Registros Públicos, que será transcrito logo adiante. De
maneira geral, pode-se dizer que todos os atos de transferência de titularidade são passíveis
de registro, assim como todos os atos de anotação de ônus reais.
O terceiro ato é a averbação, e estão previstos os atos averbáveis no inciso II do
artigo 167 da lei em comento. Em geral, todos os atos que não impliquem em transferência
de titularidade ou criação de ônus reais são averbáveis (ressaltando que as extinções de
direitos reais são averbáveis, e não registráveis, como as criações). Veja:

“Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. (Renumerado


do art. 168 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
I - o registro: (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).
1) da instituição de bem de família;
2) das hipotecas legais, judiciais e convencionais;
3) dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de
vigência no caso de alienação da coisa locada;
4) do penhor de máquinas e de aparelhos utilizados na indústria, instalados e em
funcionamento, com os respectivos pertences ou sem eles;
5) das penhoras, arrestos e seqüestros de imóveis;
6) das servidões em geral;
7) do usufruto e do uso sobre imóveis e da habitação, quando não resultarem do
direito de família;
8) das rendas constituídas sobre imóveis ou a eles vinculadas por disposição de
última vontade;

Michell Nunes Midlej Maron 66


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9) dos contratos de compromisso de compra e venda de cessão deste e de promessa


de cessão, com ou sem cláusula de arrependimento, que tenham por objeto imóveis
não loteados e cujo preço tenha sido pago no ato de sua celebração, ou deva sê-lo a
prazo, de uma só vez ou em prestações;
10) da enfiteuse;
11) da anticrese;
12) das convenções antenupciais;
13) das cédulas de crédito rural;
14) das cédulas de crédito, industrial;
15) dos contratos de penhor rural;
16) dos empréstimos por obrigações ao portador ou debêntures, inclusive as
conversíveis em ações;
17) das incorporações, instituições e convenções de condomínio;
18) dos contratos de promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades
autônomas condominiais a que alude a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964,
quando a incorporação ou a instituição de condomínio se formalizar na vigência
desta Lei;
19) dos loteamentos urbanos e rurais;
20) dos contratos de promessa de compra e venda de terrenos loteados em
conformidade com o Decreto-lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, e respectiva
cessão e promessa de cessão, quando o loteamento se formalizar na vigência desta
Lei;
21) das citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, relativas a imóveis;
22) (Revogado pela Lei nº 6.850, de 1980)
23) dos julgados e atos jurídicos entre vivos que dividirem imóveis ou os
demarcarem inclusive nos casos de incorporação que resultarem em constituição
de condomínio e atribuírem uma ou mais unidades aos incorporadores;
24) das sentenças que nos inventários, arrolamentos e partilhas, adjudicarem bens
de raiz em pagamento das dívidas da herança;
25) dos atos de entrega de legados de imóveis, dos formais de partilha e das
sentenças de adjudicação em inventário ou arrolamento quando não houver
partilha;
26) da arrematação e da adjudicação em hasta pública;
27) do dote;
28) das sentenças declaratórias de usucapião; (Redação dada pela Medida
Provisória nº 2.220, de 2001)
29) da compra e venda pura e da condicional;
30) da permuta;
31) da dação em pagamento;
32) da transferência, de imóvel a sociedade, quando integrar quota social;
33) da doação entre vivos;
34) da desapropriação amigável e das sentenças que, em processo de
desapropriação, fixarem o valor da indenização;
35) da alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel. (Incluído pela Lei nº
9.514, de 1997)
36) da imissão provisória na posse, e respectiva cessão e promessa de cessão,
quando concedido à União, Estados, Distrito Federal, Municípios ou suas
entidades delegadas, para a execução de parcelamento popular, com finalidade
urbana, destinado às classes de menor renda. (Incluído pela Lei nº 9.785, de 1999)
37) dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso
especial para fins de moradia; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.220, de
2001)
38) (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.257, de 2001)
39) da constituição do direito de superfície de imóvel urbano; (Incluído pela Lei nº
10.257, de 2001)

Michell Nunes Midlej Maron 67


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40) do contrato de concessão de direito real de uso de imóvel público. (Redação


dada pela Medida Provisória nº 2.220, de 2001)
II - a averbação: (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).
1) das convenções antenupciais e do regime de bens diversos do legal, nos
registros referentes a imóveis ou a direitos reais pertencentes a qualquer dos
cônjuges, inclusive os adquiridos posteriormente ao casamento;
2) por cancelamento, da extinção dos ônus e direitos reais;
3) dos contratos de promessa de compra e venda, das cessões e das promessas de
cessão a que alude o Decreto-lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, quando o
loteamento se tiver formalizado anteriormente à vigência desta Lei;
4) da mudança de denominação e de numeração dos prédios, da edificação, da
reconstrução, da demolição, do desmembramento e do loteamento de imóveis;
5) da alteração do nome por casamento ou por desquite, ou, ainda, de outras
circunstâncias que, de qualquer modo, tenham influência no registro ou nas
pessoas nele interessadas;
6) dos atos pertinentes a unidades autônomas condominiais a que alude a Lei nº
4.591, de 16 de dezembro de 1964, quando a incorporação tiver sido formalizada
anteriormente à vigência desta Lei;
7) das cédulas hipotecárias;
8) da caução e da cessão fiduciária de direitos relativos a imóveis;
9) das sentenças de separação de dote;
10) do restabelecimento da sociedade conjugal;
11) das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade
impostas a imóveis, bem como da constituição de fideicomisso;
12) das decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos
registrados ou averbados;
13) " ex offício ", dos nomes dos logradouros, decretados pelo poder público.
14) das sentenças de separação judicial, de divórcio e de nulidade ou anulação de
casamento, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais
sujeitos a registro.(Incluído pela Lei nº 6.850, de 1980)
15 - da re-ratificação do contrato de mútuo com pacto adjeto de hipoteca em favor
de entidade integrante do Sistema Financeiro da Habitação, ainda que importando
elevação da dívida, desde que mantidas as mesmas partes e que inexista outra
hipoteca registrada em favor de terceiros. (Incluído pela Lei nº 6.941, de 1981)
16) do contrato de locação, para os fins de exercício de direito de preferência.
(Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)
17) do Termo de Securitização de créditos imobiliários, quando submetidos a
regime fiduciário.(Incluído pela Lei nº 9.514, de 1997)
18) da notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios de
imóvel urbano;(Incluído pela Lei nº 10.257, de 2001)
19) da extinção da concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela
Lei nº 10.257, de 2001)
20) da extinção do direito de superfície do imóvel urbano. (Incluído pela Lei nº
10.257, de 2001)
21) da cessão de crédito imobiliário. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
22. da reserva legal; (Incluído pela Lei nº 11.284, de 2006)
23. da servidão ambiental. (Incluído pela Lei nº 11.284, de 2006)”

A prenotação, quarto ato registral, nada mais é do que o ato do oficial quando
recebe o título no protocolo. Este ato é inscrito no livro 1 do RGI.

1.2. Principiologia

Michell Nunes Midlej Maron 68


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

1.2.1. Constitutividade

O primeiro princípio basilar do sistema registral imobiliário é a constitutividade. A


titularidade dos bens imóveis é transferida pela movimentação cartorária, em regra,
assumindo o registro um caráter ex nunc. Mas há outras formas de treansferência da
propriedade, a exemplo da usucapião: o registro não constitui a propriedade para o
usucapente, apenas dando-lhe publicidade, pois a propriedade já se consolidou no
preenchimento dos requisitos da usucapião, retroagindo até o início da posse ad
usucapionem. Da mesma forma, a propriedade se transfere sem registro pela saisine, ou
pela acessão natural, etc. Nestes casos, o registro tem eficácia ex tunc.
O caráter constitutivo da propriedade pelo registro se dá pela confluência do
negócio jurídico e do seu registro. Apresentado o contrato formalmente consistente, ele será
registrado, e a propriedade se estabelece. Para que se desconstitua esta propriedade, é
preciso demonstrar uma invalidade do contrato ou do registro, ou ainda uma ineficácia
registral, mas até que isto ocorra, o adquirente é o proprietário presumido.
Se um terceiro comprovar que o contrato era nulo, por exemplo (como uma
transferência a non domino), o fará por meio de uma ação de anulação de registro, que o
permitirá reivindicar seu bem. O artigo 1.247 do CC dá a nota:

“Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado


reclamar que se retifique ou anule.
Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel,
independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.”

Veja que o proprietário poderá reivindicar o imóvel, em razão do cancelamento do


registro, até mesmo de terceiros que tenham boa-fé, segundo o parágrafo único do artigo
supra. Há cinco exceções legais a esta regra, porém, a começar pelo artigo 161 do CC:

“Art. 161. A ação, nos casos dos arts. 158 e 159, poderá ser intentada contra o
devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada
fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé.”

Sendo a transferência feita em fraude contra credores, ou fraude à execução, a


nulidade faz cancelado o registro, mas os terceiros de boa-fé (aqueles que desconhecem o
vício) serão resguardados em sua propriedade. A primeira transferência, por óbvio, não
garante o adquirente, sabedor que é do vício.
Segunda exceção, em que o caráter constitutivo é definitivo, vem no § 2° do artigo
167 do CC:

“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou,
se válido for na substância e na forma.
(...)
§ 2° Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do
negócio jurídico simulado.”

Mesmo havendo simulação, nulificando o negócio original, o terceiro não será


prejudicado por isso, se tiver boa-fé.
Terceira hipótese é a do artigo 879, parágrafo único, do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 69


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 879. Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em


boa-fé, por título oneroso, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de
má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos.
Parágrafo único. Se o imóvel foi alienado por título gratuito, ou se, alienado por
título oneroso, o terceiro adquirente agiu de má-fé, cabe ao que pagou por erro o
direito de reivindicação.”

Caracterizado o pagamento indevido através da transferência de um bem imóvel,


aquele que adquiriu este imóvel de boa-fé não estará obrigado a devolvê-lo ao solvens que
pagou indevidamente, a não ser que tenha recebido-o a título gratuito. Se mesmo a título
oneroso, houve má-fé, deve restituir o bem ao proprietário original.
Quarta hipótese é prevista no artigo 1.817 do CC:

“Art. 1.817. São válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de


boa-fé, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro, antes da
sentença de exclusão; mas aos herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de
demandar-lhe perdas e danos.
Parágrafo único. O excluído da sucessão é obrigado a restituir os frutos e
rendimentos que dos bens da herança houver percebido, mas tem direito a ser
indenizado das despesas com a conservação deles.”

Quinta hipótese vem no artigo 1.268 do CC, mas é refutada pela doutrina mais
moderna. Vejamos porque:

“Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a
propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento
comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé,
como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono.
§ 1° Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade,
considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição.
§ 2° Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio
jurídico nulo.”

Esta previsão é atinente ao bem móvel, do qual se garante, pelo princípio da


confiança, a tradição irreversível do bem ao adquirente de boa-fé. A aplicação deste artigo
aos bens imóveis, porém, é possível, e pode-se pensar nesta situação exatamente em casos
de alienações de terrenos, anunciadas publicamente.

1.2.2. Preferência

Segundo atributo é a preferência: tem prioridade aquele que primeiro alcançar o


protocolo, quem primeiro fizer a prenotação. Segue-se o brocardo prior tempore, potior
jure, ou seja, “primeiro no tempo, melhor no direito”.
Veja que os títulos que forem prenotados posteriormente ao primeiro da fila não
serão descartados, senão quando terminada a análise da regularidade do primeiro, caso em
que, considerado escorreito, somente então os demais serão refutados. Rejeitado o primeiro,
passar-se-á ao segundo, e assim por diante.
Esta preferência comporta exceções, pois quando os títulos forem compatíveis em
concomitância, um não obsta o outro. Por exemplo, pode haver dupla hipoteca, coexistindo

Michell Nunes Midlej Maron 70


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

no bem, mas a prioridade na execução incumbe àquela que primeiro foi prenotada (mesmo
que a segunda tenha sido registrada primeiro, por maior agilidade cartorária).
Se o título for prenotado, e a prenotação for cancelada por falta de cumprimento de
exigências e pendências, o título perde a prioridade que lhe era garantida.
Outro caso peculiar é o da prenotação, no mesmo dia, de dois títulos incompatíveis:
a prioridade será determinada pela hora da lavratura da escritura pública, e não pela
prenotação primeiramente realizada. Veja os artigos 191 e 192 da Lei 6.015/73:

“Art. 191 - Prevalecerão, para efeito de prioridade de registro, quando


apresentados no mesmo dia, os títulos prenotados no Protocolo sob número de
ordem mais baixo, protelando-se o registro dos apresentados posteriormente, pelo
prazo correspondente a, pelo menos, um dia útil. (Renumerado do art. 192 com
nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).”

“Art. 192 - O disposto nos arts. 190 e 191 não se aplica às escrituras públicas, da
mesma data e apresentadas no mesmo dia, que determinem, taxativamente, a hora
da sua lavratura, prevalecendo, para efeito de prioridade, a que foi lavrada em
primeiro lugar. (Renumerado do artigo 192 parágrafo único pela Lei nº 6.216, de
1975).”

Assim, se uma escritura pública é prenotada no mesmo dia que outra da mesma
data, mas mais tarde, ainda terá prioridade se a hora de sua lavratura for anterior À da que
foi prenotada anteriormente, no mesmo dia.
Outra exceção é a hipótese do artigo 189 da Lei em comento:

“Art. 189 - Apresentado título de segunda hipoteca, com referência expressa à


existência de outra anterior, o oficial, depois de prenotá-lo, aguardará durante 30
(trinta) dias que os interessados na primeira promovam a inscrição. Esgotado esse
prazo, que correrá da data da prenotação, sem que seja apresentado o título
anterior, o segundo será inscrito e obterá preferência sobre aquele. (Renumerado
do art. 190 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).”

1.2.3. Força probante relativa

O sistema registral gera presunção relativa, juris tantum, que pode ser
desconstituída por prova em contrário. Por conta desta presunção, há força probatória nos
registros.
O artigo 1.245, § 2°, do CC, que trata do tema, merece uma crítica:

“Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título


translativo no Registro de Imóveis.
§ 1° Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido
como dono do imóvel.
§ 2° Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de
invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser
havido como dono do imóvel.”
O dispositivo fala em invalidade do registro, mas pode haver quebra da presunção
porque este registro é ineficaz, mesmo sendo válido – como quando se demonstra a
usucapião, por exemplo, de pessoa diversa da titular do registro, o qual é válido, mas
ineficaz.

Michell Nunes Midlej Maron 71


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

A força probante, então, é juris tantum, em regra, mas há casos de presunção


absoluta, jure et de jure. Um caso é o do registro Torrens, dedicado ao registro altamente
burocrático de imóveis rurais, que atribui praticamente a impossibilidade de erros ou falhas
no registro, e por isso este se torna absoluto. Outro caso de presunção absoluta do registro é
o da sentença de usucapião: este não pode ser questionado, porque para se alcançar a
sentença há um enorme procedimento burocrático em esfera judicial, permitindo a certeza
suficiente a tornar o título inquestionável.

1.2.4. Continuidade

A cadeia de propriedade não pode sofrer interrupções, as chamadas soluções de


continuidade: há que ser presente todo o histórico da titularidade do bem, desde o primeiro
apropriante até o atual proprietário. Não é possível se admitir períodos lacunosos, tampouco
é possível a ocorrência de registros incompatíveis – algum deles será nulo.
Na usucapião, o registro se inicia novamente, sendo uma certa mitigação à
continuidade: inicia-se a propriedade do zero, com a usucapião.
Quando o bem for público, sem registro, também há uma quebra da continuidade,
pois apenas os bens alodiais imprescindem de registro.
Outra situação em que se pode vislumbrar quebra da continuidade se dá nos
contratos com pessoa a declarar. Nesta modalidade, o contratante sai do pólo e um
terceiro, apontado pelo contratante, assume o contrato como se sempre houvesse ali
figurado. O problema é se o contrato for levado a registro antes da extromissão do
pactuante originário, o que implicará em sua saída quando o apontado assumir o pacto:
durante o curso do pacto antes da extromissão, a propriedade ficará em nome de quem
jamais teve escopo de adquiri-la, o que parece uma incongruência. A questão ainda está em
construção, ante a parca utilização deste contrato, na praxe.
Veja uma situação peculiar: indivíduo celebra promessa de compra e venda com
outro, e a registra; no meio tempo, enquanto correm os pagamentos pelo promitente
comprador, o mesmo alienante vende efetivamente o mesmo bem a um terceiro, que
encaminha tal título a registro. O oficial do cartório terá que registrar esta venda definitiva,
não podendo entender que há quebra de continuidade: a promessa ainda não transferiu a
propriedade ao promitente comprador, o qual é titular apenas de direito real de aquisição. A
propriedade do promitente vendedor é resolúvel, e pode ser vendida nesta qualidade. O
adquirente definitivo terá o registro, mas quando o promitente terminar de pagar, terá o bem
a si transferido – a propriedade do adquirente definitivo se resolve, então, e ele sequer terá
direitos de evicto, por saber da situação do bem.
Outra situação peculiar é a venda de um bem que já fora vendido, mas cujo título
não fora registrado: o segundo adquirente, primeiro a registrar, é proprietário do bem, e o
primeiro, que não registrou, terá que buscar indenização do vendedor. Contudo, se o
segundo adquirente, primeiro a registrar, soubesse da venda anterior não registrada, estará
abusando do direito ao fazer o registro, pelo que a doutrina entende que deverá ser
desconstituído o seu registro, perdendo o bem, mas podendo buscar indenização do
vendedor estelionatário. Esta posição é doutrinária, ainda sem expressão na jurisprudência.
Última questão diz respeito à alienação fiduciária de bens imóveis, prática que vem
se incrementando no ordenamento. Neste contrato, que é registrado no RGI, havendo a
mora, o credor notifica o RGI, e o oficial é quem notifica o devedor, quando, não purgada a

Michell Nunes Midlej Maron 72


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

mora, haverá a consolidação da propriedade nas mãos do credor, que poderá leiloar o bem e
se ressarcir do prejuízo. Veja o artigo 26 da Lei 9.514/97:

“Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora
o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em
nome do fiduciário.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, o fiduciante, ou seu representante legal
ou procurador regularmente constituído, será intimado, a requerimento do
fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo
de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento,
os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os
encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao
imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.
§ 2º O contrato definirá o prazo de carência após o qual será expedida a intimação.
§ 3º A intimação far-se-á pessoalmente ao fiduciante, ou ao seu representante legal
ou ao procurador regularmente constituído, podendo ser promovida, por solicitação
do oficial do Registro de Imóveis, por oficial de Registro de Títulos e Documentos
da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva recebê-la, ou pelo
correio, com aviso de recebimento.
§ 4º Quando o fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente
constituído se encontrar em outro local, incerto e não sabido, o oficial certificará o
fato, cabendo, então, ao oficial do competente Registro de Imóveis promover a
intimação por edital, publicado por três dias, pelo menos, em um dos jornais de
maior circulação local ou noutro de comarca de fácil acesso, se no local não
houver imprensa diária.
§ 5º Purgada a mora no Registro de Imóveis, convalescerá o contrato de alienação
fiduciária.
§ 6º O oficial do Registro de Imóveis, nos três dias seguintes à purgação da mora,
entregará ao fiduciário as importâncias recebidas, deduzidas as despesas de
cobrança e de intimação.
§ 7° Decorrido o prazo de que trata o § 1o sem a purgação da mora, o oficial do
competente Registro de Imóveis, certificando esse fato, promoverá a averbação, na
matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, à
vista da prova do pagamento por este, do imposto de transmissão inter vivos e, se
for o caso, do laudêmio. (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 8° O fiduciante pode, com a anuência do fiduciário, dar seu direito eventual ao
imóvel em pagamento da dívida, dispensados os procedimentos previstos no art.
27. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)”

1.2.5. Especialidade

O registro demanda descrição exauriente e detalhada do bem e dos titulares, pois é


um meio de especificação do bem e de suas qualidades. Por isso, por exemplo, é que se
exige a averbação de um casamento, a fim de que a titularidade não seja sombreada por
qualquer dúvida.

1.2.6. Publicidade

Todos os atos notariais são públicos, porque este é justamente o escopo maior do
sistema registral. É por isso que qualquer pessoa do povo, sem sequer precisar demonstrar o

Michell Nunes Midlej Maron 73


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

motivo, pode obter vista ou certidão de qualquer ato notarial que lhe convenha, sem ser
questionado pelo oficial sobre a finalidade de tal informação.

1.2.7. Legalidade

Como se disse, há uma presunção juris tantum de regularidade do registro. Para


ganhar esta presunção, o título passou por uma análise de sua legalidade, assim que foi
apresentado ao oficial cartorário, que deve ser feita em trinta dias.
Vislumbrada alguma nulidade absoluta no título, o registro fica afastado, não sendo
registrado, ou, se já o foi, cancelando-se.
Se a nulidade for relativa, há controvérsia sobre a realização ou não do registro.
Como a nulidade relativa só pode ser argüida por quem seja interessado, o oficial deverá
proceder ao registro, mesmo se perceber tal nulidade, e o cancelamento deverá ser feito por
provocação de quem seja interessado.
A quebra na continuidade do título também obsta o registro.
Há quem diga que, se tratando da constituição de gravame, se o valor da garantia
superar o valor do bem, não se pode registrar a garantia. Esta posição não é a mais acertada,
por dois motivos: o oficial não é avaliador, para saber do exato valor do bem; e se, mesmo
sendo menor, não impede que a garantia seja útil.
Quando o oficial aponta irregularidades a serem sanadas, o dono do título poderá
simplesmente cumpri-las, ou discordar das exigências. Se assim o fizer, suscitará o
procedimento administrativo da dúvida, que será instaurado e resolvido na vara de registros
públicos, com atuação do MP. O autor, aqui, é o oficial de registro, mas pode haver a
chamada dúvida inversa, que é aquela que é ajuizada pelo próprio requerente do registro, e
não pelo oficial, quando requerido pelo interessado que o oficial ajuíze a dúvida e este não
o fizer.
A decisão do procedimento de dúvida tem cunho administrativo, para a maior parte
da doutrina e jurisprudência, não se revestindo da coisa julgada. Por isso, a questão pode
ser levada à via judicial ordinária. Quando a decisão for de procedência da dúvida – ou seja,
o oficial estava errado –, a doutrina diz que não há interesse no ajuizamento de ação
ordinária pelo oficial; contudo, pode o MP, se entender necessário ao interesse público,
ajuizar tal ação anulatória do registro.
O registro que se demonstrar incongruente com a realidade pode ser retificado.
Erros materiais, como aqueles de grafia, inclusive, podem ser retificados de ofício. Quando
o erro, qualquer que seja, influir sobre direitos de terceiros, estes precisam ser notificados
pelo oficial cartorário, para opor qualquer resistência. Se a matéria se tornar litigiosa, a
ação de retificação precisa ser ajuizada. Veja o artigo 213 da Lei 6.015/73:

“Art. 213. O oficial retificará o registro ou a averbação: (Redação dada pela Lei nº
10.931, de 2004)
I - de ofício ou a requerimento do interessado nos casos de: (Incluído pela Lei nº
10.931, de 2004)
a) omissão ou erro cometido na transposição de qualquer elemento do título;
(Incluída pela Lei nº 10.931, de 2004)
b) indicação ou atualização de confrontação; (Incluída pela Lei nº 10.931, de 2004)
c) alteração de denominação de logradouro público, comprovada por documento
oficial; (Incluída pela Lei nº 10.931, de 2004)

Michell Nunes Midlej Maron 74


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

d) retificação que vise a indicação de rumos, ângulos de deflexão ou inserção de


coordenadas georeferenciadas, em que não haja alteração das medidas perimetrais;
(Incluída pela Lei nº 10.931, de 2004)
e) alteração ou inserção que resulte de mero cálculo matemático feito a partir das
medidas perimetrais constantes do registro; (Incluída pela Lei nº 10.931, de 2004)
f) reprodução de descrição de linha divisória de imóvel confrontante que já tenha
sido objeto de retificação; (Incluída pela Lei nº 10.931, de 2004)
g) inserção ou modificação dos dados de qualificação pessoal das partes,
comprovada por documentos oficiais, ou mediante despacho judicial quando
houver necessidade de produção de outras provas; (Incluída pela Lei nº 10.931, de
2004)
II - a requerimento do interessado, no caso de inserção ou alteração de medida
perimetral de que resulte, ou não, alteração de área, instruído com planta e
memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de
anotação de responsabilidade técnica no competente Conselho Regional de
Engenharia e Arquitetura - CREA, bem assim pelos confrontantes. (Incluído pela
Lei nº 10.931, de 2004)
§ 1° Uma vez atendidos os requisitos de que trata o caput do art. 225, o oficial
averbará a retificação. (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 2° Se a planta não contiver a assinatura de algum confrontante, este será
notificado pelo Oficial de Registro de Imóveis competente, a requerimento do
interessado, para se manifestar em quinze dias, promovendo-se a notificação
pessoalmente ou pelo correio, com aviso de recebimento, ou, ainda, por solicitação
do Oficial de Registro de Imóveis, pelo Oficial de Registro de Títulos e
Documentos da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva
recebê-la. (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 3° A notificação será dirigida ao endereço do confrontante constante do Registro
de Imóveis, podendo ser dirigida ao próprio imóvel contíguo ou àquele fornecido
pelo requerente; não sendo encontrado o confrontante ou estando em lugar incerto
e não sabido, tal fato será certificado pelo oficial encarregado da diligência,
promovendo-se a notificação do confrontante mediante edital, com o mesmo prazo
fixado no § 2o, publicado por duas vezes em jornal local de grande circulação.
(Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 4° Presumir-se-á a anuência do confrontante que deixar de apresentar
impugnação no prazo da notificação. (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 5° Findo o prazo sem impugnação, o oficial averbará a retificação requerida; se
houver impugnação fundamentada por parte de algum confrontante, o oficial
intimará o requerente e o profissional que houver assinado a planta e o memorial a
fim de que, no prazo de cinco dias, se manifestem sobre a impugnação. (Redação
dada pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 6° Havendo impugnação e se as partes não tiverem formalizado transação
amigável para solucioná-la, o oficial remeterá o processo ao juiz competente, que
decidirá de plano ou após instrução sumária, salvo se a controvérsia versar sobre o
direito de propriedade de alguma das partes, hipótese em que remeterá o
interessado para as vias ordinárias. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 7° Pelo mesmo procedimento previsto neste artigo poderão ser apurados os
remanescentes de áreas parcialmente alienadas, caso em que serão considerados
como confrontantes tão-somente os confinantes das áreas remanescentes. (Incluído
pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 8° As áreas públicas poderão ser demarcadas ou ter seus registros retificados pelo
mesmo procedimento previsto neste artigo, desde que constem do registro ou
sejam logradouros devidamente averbados. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 9° Independentemente de retificação, dois ou mais confrontantes poderão, por
meio de escritura pública, alterar ou estabelecer as divisas entre si e, se houver
transferência de área, com o recolhimento do devido imposto de transmissão e

Michell Nunes Midlej Maron 75


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

desde que preservadas, se rural o imóvel, a fração mínima de parcelamento e,


quando urbano, a legislação urbanística. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 10. Entendem-se como confrontantes não só os proprietários dos imóveis
contíguos, mas, também, seus eventuais ocupantes; o condomínio geral, de que
tratam os arts. 1.314 e seguintes do Código Civil, será representado por qualquer
dos condôminos e o condomínio edilício, de que tratam os arts. 1.331 e seguintes
do Código Civil, será representado, conforme o caso, pelo síndico ou pela
Comissão de Representantes. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 11. Independe de retificação: (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
I - a regularização fundiária de interesse social realizada em Zonas Especiais de
Interesse Social, nos termos da Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, promovida
por Município ou pelo Distrito Federal, quando os lotes já estiverem cadastrados
individualmente ou com lançamento fiscal há mais de vinte anos; (Incluído pela
Lei nº 10.931, de 2004)
II - a adequação da descrição de imóvel rural às exigências dos arts. 176, §§ 3o e
4o, e 225, § 3o, desta Lei. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 12. Poderá o oficial realizar diligências no imóvel para a constatação de sua
situação em face dos confrontantes e localização na quadra. (Incluído pela Lei nº
10.931, de 2004)
§ 13. Não havendo dúvida quanto à identificação do imóvel, o título anterior à
retificação poderá ser levado a registro desde que requerido pelo adquirente,
promovendo-se o registro em conformidade com a nova descrição.(Incluído pela
Lei nº 10.931, de 2004)
§ 14. Verificado a qualquer tempo não serem verdadeiros os fatos constantes do
memorial descritivo, responderão os requerentes e o profissional que o elaborou
pelos prejuízos causados, independentemente das sanções disciplinares e penais.
(Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)”

Casos Concretos

Questão 1

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Ailton comprou imóvel de Consuelo. A regular escritura pública é lavrada e


registrada. Tempos depois, verifica-se que a área enunciada na escritura pública de
compra e venda é maior do que a que constava no registro. Pergunta-se: qual é a medida a
ser adotada por Ailton?

Resposta à Questão 1

O registro precisa refletir a realidade fática, e se não o fizer, precisa ser retificado.
A respeito, veja a Apelação Cível 1997.001.00928, do TJ/RJ:

“Processo: 0000473-89.1997.8.19.0000 (1997.001.00928). APELACAO. DES.


LUIZ ZVEITER - Julgamento: 27/05/1997 - SEXTA CAMARA CIVEL.
REGISTRO DE IMOVEIS. RETIFICACAO DE METRAGENS. ART. 213.
PARAGRAFOS. LEI DE REGISTROS PUBLICOS
Lei de Registro Publico. Pedido de retificacao de metragens no Registro
Imobiliario. Exegese do art. 213 e seus paragrafos da Lei n. 6.015/73. Observadas
as citacoes dos confrontantes, bem como alienantes,, nao havendo impugnacao
fundamentada por parte destes e bem definidos o limite de cada area na planta e
memorial descritivo trazido `a colacao pela apelante, nao ha' necessidade de se
remeter as vias ordinarias, podendo ser corrigido o registro neste procedimento.
Recurso provido.”

Questão 2

As instituições financeiras X e Y discutem nos autos de um processo de execução


acerca de quem teria a prioridade no recebimento de uma dívida. O primeiro banco alega
que tem a prioridade, pois registrou primeiro, enquanto que o segundo sustenta que o seu
título foi prenotado antes. A quem assiste razão?

Resposta à Questão 2

O título que primeiro foi prenotado tem prioridade na execução, mesmo que o outro
tenha alcançado o registro antes, por maior agilidade na análise da sua legalidade. A
eficácia retroage até a data da prenotação, e por isso o banco Y tem razão – sua prenotação
prévia lhe garante prioridade.

Tema X

As acessões imobiliárias. Acessões naturais e artificiais. Diferença entre benfeitorias e acessões artificiais.
Mitigação ao princípio superfícies solo cedit. Efeitos da boa-fé e da má-fé na construção em solo alheio.

Michell Nunes Midlej Maron 77


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Aquisição e perda da propriedade móvel. A tradição na aquisição a non domino. O abandono como modo de
perda da propriedade imóvel.

Notas de Aula15

1. Acessões

A propriedade imóvel se adquire de forma originária ou derivada. De forma


originária, adquire-se por usucapião ou justamente por acessão, que é o que será foco de
estudo, aqui.
Acessão é justaposição de um bem sobre outro, e pode ser natural, quando a força
da natureza, sozinha, leva à adesão da matéria; ou artificial, quando a justaposição é obra
do homem. Subdividindo-se, a acessão artificial pode ser uma construção ou uma
plantação.
A propriedade imóvel abrange o solo, o subsolo e o espaço aéreo respectivo, na
forma dos artigos 1229 e 1.230 do CC:

“Art. 1.229. A propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo


correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o
proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura
ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las.”

“Art. 1.230. A propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos
minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e
outros bens referidos por leis especiais.
Parágrafo único. O proprietário do solo tem o direito de explorar os recursos
minerais de emprego imediato na construção civil, desde que não submetidos a
transformação industrial, obedecido o disposto em lei especial.”

Tudo o que for incorporado ao solo, natural ou artificialmente, passa a acompanhar


sua natureza, pelo princípio do superficies solo cedit: aquilo que se adere à superfície do
solo, passa a acompanhá-lo em sua natureza imobiliária. Nada mais é do que uma
especificação do princípio da gravitação jurídica, pelo qual o acessório segue o principal,
como dispõe o artigo 233 do CC:

“Art. 233. A obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não
mencionados, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso.”

No regime do CC de 1916, subsistia a figura da acessão intelectual, que eram


aquelas coisas que, ainda que não aderidas fisicamente ao solo, eram intelectualmente
destinadas ao melhor aproveitamento deste. Era uma acessão feita por vontade do
proprietário, passando a ser intelectualmente imóvel porque assim o quis o proprietário.
Hoje, esta figura acabou absorvida por um instituto mais amplo, qual seja, o das pertenças.
Por isso, há duas categorias a serem observadas nesta questão do superficies solo
cedit: as acessões físicas, naturais ou artificiais; e as pertenças, destinadas negocialmente a
acompanhar a natureza imóvel do bem, eis que fisicamente não são a este incorporadas (são
destacada do imóvel).

15
Aula ministrada pelo professor André Roberto de Souza Machado, em 24/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 78


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

As benfeitorias também têm o caráter de acessoriedade, mas não se confundem com


as acessões ou com as pertenças enquanto modo de aquisição da propriedade imobiliária.
Veja que este comparativo, entre benfeitorias e acessões, só é mesmo possível quando se
analisam acessões artificiais, construções e plantações, pois as naturais são por demais
distintas – não há como se confundir uma avulsão, por exemplo, com uma benfeitoria.
A diferença entre benfeitoria e acessão artificial é bastante difícil, de fato. O critério
é até simples; difícil é a sua verificação na casuística, pois há zonas bastante cinzentas. O
critério distintivo é o de serem, as acessões, elementos novos de propriedade, enquanto as
benfeitorias não o são. Entenda: a acessão é coisa nova, enquanto a benfeitoria é a
valorização, o incremento de coisa já existente. Benfeitorias são obras ou serviços
realizados naquilo que já existe, sem constituir coisa nova, servíveis à conservação, ao
incremento da utilidade, ou ao simples deleite e aformoseamento da coisa já existente,
enquanto acessões são coisas novas, diferentes da propriedade anterior.
Uma pintura de paredes é claramente uma benfeitoria, não havendo propriedade
nova, e sim a mera valorização da já existente. O mesmo se dá quando há a troca de um
telhado inteiro, por exemplo: mesmo que valorize muito o bem, o direito de propriedade
não se altera: continua, o proprietário, a ter a mesma propriedade sobre o solo e sobre a
casa, apenas tendo esta se valorizado. Já a construção de uma casa em um terreno é
claramente uma acessão, não sendo possível se considerar que a casa erguida seja uma mera
benfeitoria feita naquele terreno: há nova propriedade, porque o dono do terreno, que antes
era só dono do terreno, agora tem uma ampliação do seu domínio – é dono do terreno e da
casa. Há o surgimento de um elemento novo de propriedade.
Há um critério pragmático para identificar benfeitorias e acessões, de forma plana:
ao se construir uma casa, é preciso que haja a alteração do registro daquele terreno no RGI,
a fim de registrar aquele novo elemento de propriedade – é acessão; se se tratar de apenas
uma obra – como o telhado ou a pintura das paredes –, não há que se falar em alteração do
registro de propriedade, pelo que não há elemento novo de propriedade – estamos diante de
uma benfeitoria.
Em linhas gerais, portanto, vê-se que o vulto da obra guarda uma certa pertinência
em relação aos conceitos: quão maior, mais relevante, mais provável de ser acessão.
Contudo, como dito, há uma zona cinzenta de difícil solução, a ser verificada na casuística.
Por exemplo, a construção de uma piscina: pode ser uma benfeitoria ou uma acessão, a
depender do papel que desempenhar na propriedade do dono do terreno. Construída em
uma área não edificada, impõe grande alteração no direito de propriedade, e mesmo que
não demande averbação no RGI, é acessão; se construída em área já edificada, pode ser
considerada simples benfeitoria, útil ou voluptuária.
Esta questão da magnitude da obra ser determinante pode ser ilustrada com
dispositivos atinentes ao condomínio edilício, nos quais se exige quorum maior de votação
para acessões do que o quorum exigido para benfeitorias. Veja os artigos 1.341, II, 1.342 e
1.343 do CC:

“Art. 1.341. A realização de obras no condomínio depende:


(...)
II - se úteis, de voto da maioria dos condôminos.
(...)”

“Art. 1.342. A realização de obras, em partes comuns, em acréscimo às já


existentes, a fim de lhes facilitar ou aumentar a utilização, depende da aprovação

Michell Nunes Midlej Maron 79


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

de dois terços dos votos dos condôminos, não sendo permitidas construções, nas
partes comuns, suscetíveis de prejudicar a utilização, por qualquer dos
condôminos, das partes próprias, ou comuns.”

“Art. 1.343. A construção de outro pavimento, ou, no solo comum, de outro


edifício, destinado a conter novas unidades imobiliárias, depende da aprovação da
unanimidade dos condôminos.”

O princípio superficies solo cedit é mitigado em algumas circunstâncias, nas quais a


gravitação se inverte. Isto ocorre em duas situações: no direito de superfície e na acessão
inversa. A regra é que o acessório, a edificação ou a plantação, acompanha o principal, o
solo; logo, se o indivíduo planta ou constrói em solo alheio, a edificação ou plantação
acompanha aquele solo, seu dono passando a ser dono da acessão; ou, se o proprietário do
solo constrói ou planta com matéria-prima alheia, o dono do solo passa a ser dono da
edificação ou plantação.
Contudo, nos dois casos mencionados, a regra se excepciona. No direito de
superfície, a exceção decorre do desdobramento que se dá sobre o direito de propriedade:
passa a existir a propriedade fundeira, propriedade do solo, e a propriedade superficiária,
propriedade das acessões impostas ao solo. Nos casos de concessão do direito de superfície
por sobrelevação, o proprietário fundeiro é dono do solo e da edificação até certa altura, e o
proprietário superficiário é dono da acessão a partir daquela altura – é o popularmente
chamado “direito de laje”. Neste caso, do direito de superfície, o princípio do superficies
solo cedit é suspenso, porque o direito de superfície é temporário, e não perpétuo (como
ocorreria caso se estivesse falando de enfiteuse). Quando acabar o direito de superfície,
todos os efeitos da gravitação passarão a ser operados, ou seja, o proprietário fundeiro
passará a concentrar propriedade plena, inclusive das acessões.
O Estatuto da Cidade permite o direito de superfície por prazo indeterminado, como
se vê no artigo 21. Se se entender que esta concessão gera perpetuidade, o superficies solo
cedit ficará interrompido, e não apenas suspenso; contudo, a indeterminação do prazo não
significa perpetuidade – significa apenas que será necessária denúncia –, para a maior
corrente, e por isso ocorre, ainda assim, suspensão da aderência ao solo.

“Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do


seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública
registrada no cartório de registro de imóveis.
(...)”

Findo o direito de superfície, então, tem lugar a gravitação, e o proprietário fundeiro


passa a ser dono das acessões.
A segunda exceção, como dito, é a acessão inversa. Para se compreendê-la, porém,
precisa ser explicada a acessão típica, antes. Vejamos.

1.1. Acessões típicas naturais

A acessão típica se dá, como dito, quando há a incorporação de um elemento novo à


propriedade imobiliária já existente, por força da natureza ou por atuação humana. O

Michell Nunes Midlej Maron 80


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

legislador apresenta quatro hipóteses de acessão natural: a formação de ilhas fluviais (não
marítimas, pois se o forem são terrenos de marinha, podendo no máximo ser alvo de
enfiteuses); o abandono de álveo; a aluvião; e a avulsão.
As quatro situações envolvem imóveis cortados por rios, ou limítrofes a rios.
Vejamos cada uma, brevemente.

1.1.1. Formação de ilhas

Na formação de ilhas, havendo uma ilha surgida no meio do rio, esta pertencerá
proporcionalmente aos proprietários ribeirinhos, traçando-se uma medianiz no meio do
álveo (o rio em si), partindo-se o rio nesta metade: a parte da ilha que estiver de cada lado
pertencerá ao proprietário ribeirinho correspondente.
Se a ilha se forma totalmente em um dos lados da medianiz, ela pertence
inteiramente ao proprietário correspondente.
Veja o artigo 1.249 do CC:

“Art. 1.249. As ilhas que se formarem em correntes comuns ou particulares


pertencem aos proprietários ribeirinhos fronteiros, observadas as regras seguintes:
I - as que se formarem no meio do rio consideram-se acréscimos sobrevindos aos
terrenos ribeirinhos fronteiros de ambas as margens, na proporção de suas testadas,
até a linha que dividir o álveo em duas partes iguais;
II - as que se formarem entre a referida linha e uma das margens consideram-se
acréscimos aos terrenos ribeirinhos fronteiros desse mesmo lado;
III - as que se formarem pelo desdobramento de um novo braço do rio continuam a
pertencer aos proprietários dos terrenos à custa dos quais se constituíram.”

A maior controvérsia, nesta situação, é a possível necessidade de uma ação


demarcatória se houver dúvidas quanto aos limites.

1.1.2. Abandono de álveo

Se o rio se extingue, a solução é que a metade do leito do rio será incorporada ao


terreno de um dos proprietários ribeirinhos, e a outra metade será incorporada ao terreno da
outra margem. Simples assim.
Veja o artigo 1.252 do CC:

“Art. 1.252. O álveo abandonado de corrente pertence aos proprietários ribeirinhos


das duas margens, sem que tenham indenização os donos dos terrenos por onde as
águas abrirem novo curso, entendendo-se que os prédios marginais se estendem até
o meio do álveo.”

Novamente, o maior problema possível, aqui, é a ocorrência de dúvidas quanto aos


limites, a ensejar a demarcatória.

1.1.3. Aluvião e avulsão

Veja os artigos 1.250 e 1.251 do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 81


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 1.250. Os acréscimos formados, sucessiva e imperceptivelmente, por


depósitos e aterros naturais ao longo das margens das correntes, ou pelo desvio das
águas destas, pertencem aos donos dos terrenos marginais, sem indenização.
Parágrafo único. O terreno aluvial, que se formar em frente de prédios de
proprietários diferentes, dividir-se-á entre eles, na proporção da testada de cada um
sobre a antiga margem.”

“Art. 1.251. Quando, por força natural violenta, uma porção de terra se destacar de
um prédio e se juntar a outro, o dono deste adquirirá a propriedade do acréscimo,
se indenizar o dono do primeiro ou, sem indenização, se, em um ano, ninguém
houver reclamado.
Parágrafo único. Recusando-se ao pagamento de indenização, o dono do prédio a
que se juntou a porção de terra deverá aquiescer a que se remova a parte
acrescida.”

O que se passa, em ambas as situações, é que a correnteza do rio traz a parte sólida
que adere à propriedade ribeirinha, fixando-se como parte deste imóvel, agora, acrescendo
seu território. A diferença reside em um só aspecto: se a movimentação da parcela sólida se
deu paulatinamente ou de forma violenta: sendo um acréscimo lento, há aluvião; sendo o
acréscimo fruto de correnteza violenta, há avulsão.
As consequências, porém, diferem mais: quando se tratar de aluvião, o terreno
acrescido pertence ao seu proprietário, que não deverá indenizar nada a quem quer que seja
pelo acréscimo experimentado – basta alterar sua metragem no RGI, e estará regularizada
sua situação.
Quando se tratar de avulsão, porém, o acréscimo violento provavelmente fez algum
outro proprietário, rio acima, perder parte de seu terreno, e por isso o proprietário do
terreno acrescido manterá o acréscimo, se tornando dono da parcela sólida aderida, mas
deverá indenizar aquele que perdeu parte da propriedade. Aplica-se o superficies solo cedit,
mas mediante indenização. Somente quando não reclamada a indenização, em prazo de um
ano, é que o proprietário do terreno acrescido ficará eximido de seu pagamento.
Veja que se o proprietário do bem acrescido na aluvião recusar-se a pagar
indenização, será permitido ao dono do terreno prejudicado retomar a parcela perdida, por
desmembramento ou por remoção: ou levantará o terreno de volta, levando-o rio acima; ou
ficará com a parcela onde está, demarcando-a, se impossível a remoção.
A indenização se baseia no valor do imóvel que sofreu a diminuição, porque é o
valor de prejuízo realmente percebido, porque se se calculasse tal indenização com base no
valor do terreno ao qual a avulsão fez aderir a parcela de terra, poderia acontecer caso de
insuficiência, se o terreno for menos valioso, ou enriquecimento sem causa, se o terreno
aderido for mais valioso.
O direito de escolha, entre manter o acréscimo, mediante indenização, ou deixar que
se levante a terra aderida, pertence ao proprietário do terreno em que foi acrescida a
parcela. Quem perde a parcela tem pretensão indenizatória; quem acresce, tem direito a
exercer o superficies solo cedit ou não.

1.2. Acessões típicas artificiais

A matéria é regida no CC nos artigos 1.253 a 1.258, os quais serão abordados


pontualmente.

Michell Nunes Midlej Maron 82


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

A primeira regra geral sobre acessões artificiais é a presunção relativa de que toda
acessão artificial foi realizada pelo dono do imóvel, o que vem consignado no artigo 1.253
do CC:

“Art. 1.253. Toda construção ou plantação existente em um terreno presume-se


feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o contrário.”

Destarte, o ônus de provar que quem produziu a acessão artificial não foi o dono do
terreno incumbe ao terceiro que porventura tenha este interesse.
Partindo desta regra, o legislador tece exceções que cobrem boa parte das possíveis
ocorrências casuísticas. A primeira é a situação em que haja a construção ou plantação, pelo
próprio dono do solo, mas com materiais alheios; ou a construção ou plantação em solo
alheio, mas com materiais próprios – duas faces de uma mesma moeda, variando do ponto
de vista do construtor. Veja o artigo 1.254 do CC:

“Art. 1.254. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno próprio com
sementes, plantas ou materiais alheios, adquire a propriedade destes; mas fica
obrigado a pagar-lhes o valor, além de responder por perdas e danos, se agiu de
má-fé.”

Neste caso, a idéia é que o dono do solo, que agiu de boa-fé, mantém a acessão
(superficies solo cedit), mas deve indenizar o preço das coisas alheias usadas na sua
construção ou plantação. Se agiu de má-fé, ainda assim manterá a acessão, aplicando-se
ainda o superficies solo cedit, mas além de indenizar as coisas usadas, pagará também por
eventuais perdas e danos comprovados.
Veja agora o artigo 1.255 do CC:

“Art. 1.255. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em
proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé,
terá direito a indenização.
Parágrafo único. Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor
do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do
solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver
acordo.”

Novamente, vê-se no caput a mera atenção ao superficies solo cedit, variando


apenas quanto à fé do produtor da acessão em terra alheia: se procedeu de boa-fé, será
indenizado pelo que usou; se de má-fé, perderá as coisas, sem qualquer indenização a si
devida.
Questão que surge, aqui, é se é possível ao executor da acessão em terreno alheio
com coisa própria que agiu de boa-fé – tendo direito a ser indenizado, portanto – terá algum
direito de retenção da acessão até que lhe seja paga a indenização. O CC silencia sobre isto,
mas se for aplicado o sistema geral das benfeitorias por analogia, tem-se que: as
benfeitorias necessárias devem ser indenizadas, e se o executor procedeu de boa-fé, tem
retenção; as benfeitorias úteis geram direito à indenização, e também à retenção. As
acessões artificiais não podem ser equiparadas a necessárias, porque, salvo na hipótese de
edificação compulsória para implemento da função social, não são realmente necessárias,
jamais. São equiparáveis, porém, às benfeitorias úteis, e por isso a regra será esta: há a

Michell Nunes Midlej Maron 83


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

retenção, por analogia ao tratamento dado às benfeitorias úteis, tratamento dado no artigo
1.219 do CC:

“Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias


necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a
levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de
retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.”

Esta é a posição refletida no enunciado 81 da Primeira Jornada de Direito Civil do


CJF, acompanhado pela maioria da doutrina:

“Enunciado 81, CJF – Art. 1.219: O direito de retenção previsto no art. 1.219 do
CC, decorrente da realização de benfeitorias necessárias e úteis, também se aplica
às acessões (construções e plantações) nas mesmas circunstâncias.”

1.2.1. Acessão inversa

O parágrafo único do artigo 1.255 do CC, supra, dá a nota desta situação: se a


acessão exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou
edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada por
acordo ou judicialmente.
Veja que há uma inversão na dinâmica do superficies solo cedit: aqui, é o principal
que seguirá o acessório, ou seja, a acessão será mais relevante para efeitos de concentração
da propriedade de todo o bem do que o principal.
Contra o terceiro de boa-fé, em geral, não é adequado o manejo de ações
possessórias. Veja o artigo 1.212 do CC:

“Art. 1.212. O possuidor pode intentar a ação de esbulho, ou a de indenização,


contra o terceiro, que recebeu a coisa esbulhada sabendo que o era.”

Veja, a este respeito, o enunciado 80 da Primeira Jornada de Direito Civil do CJF:

“Enunciado 80, CJF – Art. 1.212: É inadmissível o direcionamento de demanda


possessória ou ressarcitória contra terceiro possuidor de boa-fé, por ser parte
passiva ilegítima diante do disposto no art. 1.212 do novo Código Civil. Contra o
terceiro de boa-fé, cabe tão-somente a propositura de demanda de natureza real.”

Contra o terceiro de boa-fé, portanto, é adequada a ação petitória. Assim, o


proprietário só poderá ajuizar ação reivindicatória contra este terceiro de boa-fé que
realizou acessões em seu terreno.
O réu, então, poderá deduzir em seu favor, em reconvenção ou pedido contraposto
na reivindicatória, o reconhecimento da acessão inversa, de forma que, reconhecida esta
configuração, na forma do artigo 1.255, parágrafo único, do CC, a ele seja entregue a
propriedade do solo em que se instalou a acessão, invertendo o superficies solo cedit.
Mediante indenização paga ao dono do terreno, portanto, o dono da acessão feita de boa-fé
passará a ser dono da integralidade da coisa, principal mais acessório.
É um caso claro em que a posse se sobrepõe à propriedade: o possuidor de boa-fé,
que realizou acessões vultosas, terá prioridade em face do proprietário do terreno.

Michell Nunes Midlej Maron 84


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O artigo 1.228 do CC, §§ 4° e 5°, já abordados, que para a maior parte da doutrina
trata-se de uma hipótese de desapropriação judicial, é definido por Pablo Renteria,
isoladamente, como uma hipótese de acessão inversa. Reveja o dispositivo:

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o


direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
(...)
§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco
anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em
conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse
social e econômico relevante.
§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao
proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel
em nome dos possuidores.”

Este autor entende que o que se passa, ali, é a inversão da acessão, mas com um
critério diferente do econômico: a acessão invertida se dá pelo maior valor social da
acessão do que o do solo. O valor social da construção supera o do solo, e por isso se
protege as acessões ao invés da propriedade do solo.

1.2.2. Má-fé bilateral

Veja o artigo 1.256 do CC:

“Art. 1.256. Se de ambas as partes houve má-fé, adquirirá o proprietário as


sementes, plantas e construções, devendo ressarcir o valor das acessões.
Parágrafo único. Presume-se má-fé no proprietário, quando o trabalho de
construção, ou lavoura, se fez em sua presença e sem impugnação sua.”

A diferença é que somente o valor das coisas alheias será indenizado, não se falando
em quaisquer outras perdas ou danos a serem indenizadas.
O parágrafo único do artigo supra fala que há má-fé do proprietário do solo quando,
vendo a acessão ser feita, não impugna sua execução. Esta impugnação deve ser feita assim
que possível, assim que o proprietário tomar ciência da realização da acessão.
O artigo 1.257 do CC traz exceção a este artigo supra, de fácil compreensão literal:

“Art. 1.257. O disposto no artigo antecedente aplica-se ao caso de não pertencerem


as sementes, plantas ou materiais a quem de boa-fé os empregou em solo alheio.
Parágrafo único. O proprietário das sementes, plantas ou materiais poderá cobrar
do proprietário do solo a indenização devida, quando não puder havê-la do
plantador ou construtor.”

1.2.3. Acessão inversa parcial

Os artigos 1.258 e 1.259 do CC apresentam esta hipótese peculiar:

“Art. 1.258. Se a construção, feita parcialmente em solo próprio, invade solo alheio
em proporção não superior à vigésima parte deste, adquire o construtor de boa-fé a
propriedade da parte do solo invadido, se o valor da construção exceder o dessa

Michell Nunes Midlej Maron 85


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

parte, e responde por indenização que represente, também, o valor da área perdida
e a desvalorização da área remanescente.
Parágrafo único. Pagando em décuplo as perdas e danos previstos neste artigo, o
construtor de má-fé adquire a propriedade da parte do solo que invadiu, se em
proporção à vigésima parte deste e o valor da construção exceder
consideravelmente o dessa parte e não se puder demolir a porção invasora sem
grave prejuízo para a construção.”

“Art. 1.259. Se o construtor estiver de boa-fé, e a invasão do solo alheio exceder a


vigésima parte deste, adquire a propriedade da parte do solo invadido, e responde
por perdas e danos que abranjam o valor que a invasão acrescer à construção, mais
o da área perdida e o da desvalorização da área remanescente; se de má-fé, é
obrigado a demolir o que nele construiu, pagando as perdas e danos apurados, que
serão devidos em dobro.”

A acessão, nestes casos, apenas invade em parte o solo alheio, não sendo
integralmente realizada neste solo alheio, como na acessão inversa comum, acima
abordada.
O acessório, no caso do artigo 1.258, supra, aproxima o principal apenas em parte,
ou seja, não mais do que cinco por cento do total do terreno invadido. A dinâmica é muito
similar à da acessão inversa comum: o dono da acessão que, na parte invadida, supera em
valor o terreno invadido, indenizará este valor, e ficará com o terreno.
A diferença maior está no parágrafo único deste artigo: enquanto na acessão inversa
comum apenas o possuidor de boa-fé pode dela se valer, aqui também será possível ao
possuidor que implantou a acessão de má-fé valer-se da inversão, desde que observadas as
condições do parágrafo. A indenização será em décuplo, porque leva em conta não só a
restitutio in integrum daquele que perde o terreno, mas também um evidente caráter
punitivo16 ao malfeitor esbulhador, e só será possível inverter mediante indenização, mesmo
em décuplo, se não for possível desfazer a obra sem destruir a acessão.
Veja que é socialmente interessante esta inversão permitida ao construtor de má-fé,
pois se não fosse possível, a solução seria o desfazimento incontinenti da obra – e é de se
imaginar o custo social, por exemplo, de uma demolição de um prédio de vinte andares que
invadiu, na sua construção, meio metro de um terreno vizinho, mesmo que de má-fé.
Diferentemente ocorre no caso do artigo 1.259, supra: sendo de boa-fé, e excedendo
a parcela mínima, há a inversão, mas além da indenização do valor do solo perdido, há
também que se pagar eventuais perdas e danos ao proprietário invadido; se de má-fé o
invasor, aí então não há inversão: a demolição é mandatória, qualquer que seja o valor da
acessão, além de custear as eventuais perdas e danos provadas pelo dono do solo invadido.

2. Aquisição da propriedade móvel

16
Não há, portanto, que se falar em enriquecimento sem causa do esbulhado, que recebe a indenização em
valor dez vezes superior ao que valia a parte invadida de seu terreno: há causa, e esta é a própria ilicitude do
comportamento daquele que de má-fé violou o seu terreno.

Michell Nunes Midlej Maron 86


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

A propriedade móvel se adquire, originariamente, por usucapião, ocupação, achado


de tesouro, especificação, confusão, comistão e adjunção. De forma derivada, se adquire
pela tradição ou pela sucessão.

2.1. Usucapião

A usucapião ordinária e extraordinária, segue exatamente a mesma lógica da


usucapião imobiliária. Veja os artigos 1.260 a 1.262 do CC:

“Art. 1.260. Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e
incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a
propriedade.”

“Art. 1.261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá
usucapião, independentemente de título ou boa-fé.”

“Art. 1.262. Aplica-se à usucapião das coisas móveis o disposto nos arts. 1.243 e
1.244.”

Há uma discussão severa acerca da possibilidade ou não da usucapião de bem fruto


de furto ou roubo, ou qualquer ilícito penal. A doutrina se divide, mas o STJ tem pendido a
rejeitar a usucapião de res furtiva, entendendo que a natureza delituosa da aquisição
manteria o bem eternamente na clandestinidade, impedindo a posse ad usucapionem. Só
haveria extinção da clandestinidade quando o proprietário furtado ou roubado não
comunicasse o fato às autoridades, nem tomasse providência alguma na retomada do bem.

2.2. Ocupação

Veja o artigo 1.263 do CC:

“Art. 1.263. Quem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a
propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei.”

A ocupação se presta a adquirir coisa abandonada, res derelicta, ou que nunca teve
dono, res nullius.
A ocupação não é prevista para a aquisição de bem imóvel, porque classicamente se
entende que não existe imóvel sem dono: se não há ninguém titularizando-o, é bem do
Estado, terra devoluta. Em uma perspectiva moderna, porém, há quem admita que possa
haver terra sem dono capaz de ser adquirida por legitimação de posse, ou por usucapião,
partindo da ocupação que gera posse justa.

2.3. Achado de tesouro

Veja os artigos 1.264 a 1.266 do CC:

“Art. 1.264. O depósito antigo de coisas preciosas, oculto e de cujo dono não haja
memória, será dividido por igual entre o proprietário do prédio e o que achar o
tesouro casualmente.”

Michell Nunes Midlej Maron 87


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 1.265. O tesouro pertencerá por inteiro ao proprietário do prédio, se for


achado por ele, ou em pesquisa que ordenou, ou por terceiro não autorizado.”

“Art. 1.266. Achando-se em terreno aforado, o tesouro será dividido por igual entre
o descobridor e o enfiteuta, ou será deste por inteiro quando ele mesmo seja o
descobridor.”

2.4. Especificação

Veja os artigos 1.269 a 1.271 do CC

“Art. 1.269. Aquele que, trabalhando em matéria-prima em parte alheia, obtiver


espécie nova, desta será proprietário, se não se puder restituir à forma anterior.”

“Art. 1.270. Se toda a matéria for alheia, e não se puder reduzir à forma
precedente, será do especificador de boa-fé a espécie nova.
§ 1° Sendo praticável a redução, ou quando impraticável, se a espécie nova se
obteve de má-fé, pertencerá ao dono da matéria-prima.
§ 2° Em qualquer caso, inclusive o da pintura em relação à tela, da escultura,
escritura e outro qualquer trabalho gráfico em relação à matéria-prima, a espécie
nova será do especificador, se o seu valor exceder consideravelmente o da matéria-
prima.”

“Art. 1.271. Aos prejudicados, nas hipóteses dos arts. 1.269 e 1.270, se ressarcirá o
dano que sofrerem, menos ao especificador de má-fé, no caso do § 1o do artigo
antecedente, quando irredutível a especificação.”

Trabalhando em coisa alheia, a coisa nova resultante pertence ao que trabalhou,


sendo devido ao dono da coisa original apenas o seu valor. Bom exemplo é o do pintor que
faz obra de arte com materiais alheios.
O incapaz pode adquirir a propriedade desta forma, e de qualquer outra forma: trata-
se do ato-fato jurídico, em que a capacidade é irrelevante. Se o fato existe e é eficaz, pouco
importa a validade. Por exemplo, um incapaz que pinta um quadro com materiais alheios,
terá como seu o bem por especificação, se este assumir maior valor do que as matéria s
primas utilizadas.

2.5. Comistão, confusão ou adjunção

Veja os artigos 1.272 a 1.274 do CC:

“Art. 1.272. As coisas pertencentes a diversos donos, confundidas, misturadas ou


adjuntadas sem o consentimento deles, continuam a pertencer-lhes, sendo possível
separá-las sem deterioração.
§ 1° Não sendo possível a separação das coisas, ou exigindo dispêndio excessivo,
subsiste indiviso o todo, cabendo a cada um dos donos quinhão proporcional ao
valor da coisa com que entrou para a mistura ou agregado.
§ 2° Se uma das coisas puder considerar-se principal, o dono sê-lo-á do todo,
indenizando os outros.”
“Art. 1.273. Se a confusão, comissão ou adjunção se operou de má-fé, à outra parte
caberá escolher entre adquirir a propriedade do todo, pagando o que não for seu,
abatida a indenização que lhe for devida, ou renunciar ao que lhe pertencer, caso
em que será indenizado.”

Michell Nunes Midlej Maron 88


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 1.274. Se da união de matérias de natureza diversa se formar espécie nova, à


confusão, comissão ou adjunção aplicam-se as normas dos arts. 1.272 e 1.273.”

A comistão é a forma pela qual se adquire a propriedade móvel de coisa sólida que
se misturou indissociavelmente a outra. Bom exemplo é o de duas safras de grãos de
proprietários diversos que, acidentalmente, se misturam em um só silo. A solução é o
condomínio, em que as cotas partes serão proporcionais ao original de cada proprietário.
A confusão se dá quando surge também mistura indissociável de duas propriedades,
só que líquidas. A solução também é o condomínio, com cotas partes proporcionais às
quantidades e valores originais.
A adjunção é similar às anteriores, mas a diferença é que a separação até seria
possível, mas não é recomendável porque causaria prejuízos insanáveis aos bens
misturados. Bom exemplo é uma embalagem e seu rótulo: a retirada dos rótulos é possível,
mas não é recomendável, ante a deterioração potencial de ambos, embalagem e rótulo.
A respeito, veja o REsp. 5808:

“REsp 5808 / SP. DJ 17/12/1992 p. 24212.


TRIBUTARIO - ISS - ICM - ETIQUETAS ADESIVAS FEITAS SOB
ENCOMENDA - ADJUNÇÃO A PRODUTOS DESTINADOS A VENDA - DL
406/68 - C. CIVIL ART. 615, PARAG. 1. A COMPOSIÇÃO DE ETIQUETAS
ADESIVAS, FEITAS SOB ENCOMENDA DE DETERMINADO CLIENTE QUE
AS AJUNTARA A PRODUTOS FINAIS COMO ELEMENTO DE
IDENTIFICAÇÃO, GARANTIA, ORIENTAÇÃO OU EMBELEZAMENTO, E
ATIVIDADE DESCRITA NA LISTA ANEXA AO DL N. 406/68, COMO
HIPOTESE EM INCIDENCIA DE ISS - NÃO DE ICM. A CIRCUNSTANCIA
DE TAIS ETIQUETAS SEREM AJUNTADAS A PRODUTOS VENDIDOS
PELO ENCOMENDANTE, E IRRELEVANTE, POIS A ETIQUETA TERA
PEDIDO IDENTIDADE, PELO FENOMENO DA ADJUNÇÃO (C.CIVIL ART.
615, PAR. 1.).”

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 89


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

João levantou de boa-fé uma casa de três pavimentos no interior de um terreno


pertencente a José, cujo valor era extremamente menor em relação ao valor da acessão.
Proposta a ação reivindicatória, esta é julgada procedente com o reconhecimento da boa-
fé do construtor que pleiteia o direito de retenção deduzido na contestação e o
arbitramento de um valor indenizatório para o terreno, pois pretende adjudicar para si o
imóvel. Decida a questão.

Resposta à Questão 1

O pedido de acessão inversa deve ser atendido, na forma do artigo 1.255, parágrafo
único, do CC. Vale dizer que, quando não for cabível a acessão inversa, a retenção pela
acessão feita de boa-fé é possível, ante a aplicação analógica do artigo 1.219 do CC.

Questão 2

Marcelino Silva propôs ação indenizatória, pelo rito ordinário, em face de Joselito
Rocha, alegando que construiu uma acessão no imóvel locado junto ao réu. Sendo assim, o
autor requereu a indenização referente à construção, comprovando que o valor gasto
nunca fora abatido dos aluguéis pagos. Em sua defesa, o réu aduziu que o aluguel da
época ficou abaixo do preço para que a construção pudesse ser realizada. Argüiu, ainda,
que a 5ª cláusula do contrato de locação veda a indenização referente a quaisquer
benfeitorias realizadas. Por fim, alegou que os institutos da benfeitoria e acessão se
confundem, nada devendo pela construção. Decida a pleiteada indenizatória, indicando os
fundamentos de fato e de direito aplicáveis.

Resposta à Questão 2

Acessão e benfeitoria não são a mesma coisa, mas o direito à indenização e à


retenção é o mesmo para ambos, quando silenciam as partes. Esta é a regra legal. Contudo,
no contrato de locação, é válida a cláusula que estabelece renúncia prévia, pelo locatário, a
benfeitorias realizadas. Veja a súmula 335 do STJ:

“Súmula 335, STJ: Nos contratos de locação, é válida a cláusula de renúncia à


indenização das benfeitorias e ao direito de retenção.”

O STJ entende que a locação é um contrato paritário, não de adesão e não


consumerista, em regra, e por isso emitiu esta súmula – pois o direito é disponível. É claro
que se o locatário não fizer a benfeitoria necessária, porque não será por ela indenizado,
não poderá o locador dele reclamar – a obra ficará sem ser feita. A renúncia prévia não
impõe que o locatário faça as benfeitorias.
Como as benfeitorias e as acessões são coisas diferentes, não significa que, tendo
renunciado à indenização por uma, também renunciou à indenização pela outra. Para se
entender que renunciou às acessões, é preciso que haja expressa cláusula de renúncia a
estas no contrato, não podendo a cláusula de renúncia à indenização pelas benfeitorias ser
entendida como estendida às acessões.
Neste sentido, veja a Apelação Cível 2005.001.34600, do TJ/RJ:

Michell Nunes Midlej Maron 90


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Processo: 0006064-37.1999.8.19.0008 (2005.001.34600). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. JOSE CARLOS PAES - Julgamento: 25/10/2005 - DECIMA
QUARTA CAMARA CIVEL.
APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZAÇÃO POR ACESSÃO. CABIMENTO. 1. Os
institutos da benfeitoria e da acessão não se confundem. No caso da benfeitoria, é
ela acessório de obra levada a efeito pelo homem com o propósito de conservar,
melhorar ou simplesmente embelezar uma coisa determinada. Já a acessão pode ser
definida como o aumento do volume ou do valor da coisa principal em virtude de
um elemento externo, ou seja, quando uma coisa se une ou se incorpora a outra,
aumentando-lhe o volume, sendo, na verdade, um meio de aquisição do domínio.
2. Aquele que constrói em terreno alheio, perde em favor do proprietário a obra
realizada, restando, todavia, o direito de ser indenizado, quando atuou de boa-fé. 3.
Improvimento da apelação.”

Tema XI

Michell Nunes Midlej Maron 91


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Direitos de vizinhança: conceito, natureza jurídica, diferença para as servidões prediais. Uso anormal da
propriedade: teorias conceituais, critérios de nocividade e soluções judiciais. Árvores limítrofes. Passagem
forçada. Passagem de cabos e tubulações. Regime de águas. Limites entre prédios. Direito de tapagem.

Notas de Aula17

1. Direitos de vizinhança

O legislador procurou estabelecer regras detalhadas de convivência, porque a seara


da vizinhança é passível de diversos conflitos, ante a sempre potencial fonte de conflitos
que se percebe neste convívio forçado.
A natureza jurídica das regras atinentes ao direito de vizinhança é claramente de
direitos obrigacionais, pessoais, mesmo que a topografia do CC os coloque sob égide dos
direitos reais.
Tais direitos obrigam vizinhos em suas relações entre si, e estão alocados
topograficamente nos tópicos inseridos em direitos reais tão-somente por serem obrigações
de natureza propter rem, “sobre a coisa”, tendo sido uma opção do legislador escolher este
tratamento pela intima relação da propriedade ou posse com o seu exercício.
Por conceito, então, direitos de vizinhança são relações pessoais estabelecidas por
lei, vinculando proprietários ou possuidores de imóveis vizinhos, objetivando disciplinar
suas relações, amenizando os potenciais conflitos desta dinâmica, induzidos pela
proximidade e convivência diuturna.
A natureza jurídica é de obrigações propter rem, como dito, pois ligadas à
propriedade de imóveis avizinhados. Assemelham-se às cotas condominiais, por exemplo.
Direitos de vizinhança não se confundem com as chamadas servidões prediais, tais
como a servidão de passagem ou a de vista. Servidões são direitos reais, sem qualquer
dúvida, e como tal, têm natureza absoluta, oponibilidade erga omnes e sequela, enquanto as
obrigações são relativas aos que delas tomam parte.
O primeiro dos direitos de vizinhança diz respeito ao uso anormal da propriedade, e
merece ser abordado em tópico próprio.

1.1. Uso anormal da propriedade

A propriedade é de fato o mais pleno dos direitos reais, mas não significa que pode
ser exercida indiscriminada e ilimitadamente. A propriedade sofre limitações
constitucionais, infraconstitucionais, contratuais, e por isso não pode o proprietário usar
anormalmente seu imóvel. Por uso anormal da propriedade, então, se entende aquele que
excede os limites da função social da propriedade, tornando-se abuso do direito, e, com
isso, ato ilícito, na forma do artigo 187 do CC:

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes.”

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Aula ministrada pelo professor Sylvio Capanema de Souza, em 17/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 92


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O CC de 1916 falava em mau uso da propriedade; o atual preferiu falar em uso


anormal, o que é mais abrangente, até mesmo por criar antinomia terminológica com o uso
normal da propriedade, que é o que não cria perturbação a outrem.
O primeiro direito de vizinhança que assiste ao proprietário ou possuidor é o de
fazer cessar, repelir interferências que coloquem em risco a segurança, a saúde ou o sossego
seus e de seus coabitantes, provocados por seus vizinhos pelo uso anormal das suas própria
posse ou propriedade.
No CC de 1916, além de mau uso, classificava também este uso anormal como uso
nocivo (o que gerou grande discussão, à época, se eram sinônimos ou não, mau uso e
nocividade). Outra confusão terminológica do CC der 1916 era o uso do termo “inquilino”
como aquele legitimado a reclamar por seus direitos de vizinhança, e não qualquer
possuidor, como hoje o é: é claro que não só o locatário quem tinha a proteção calcada em
direitos de vizinhança, mas também qualquer outro possuidor, como o comodatário, por
exemplo. O legislador apenas se valera de uma metonímia, usando a espécie no sentido do
gênero – locatário ao invés de possuidor.
No artigo 1.277 do CC, não mais há esta problemática interpretativa:

“Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer


cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o
habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.
Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da
utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as
edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da
vizinhança.”

O CC refere-se à segurança, ao sossego e à saúde. Segurança remete à idéia de


integridade física dos moradores. Como exemplo, o proprietário que percebe que o vizinho
estoca fogos de artifício explosivos, em condições inseguras, sente-se periclitado com isto,
e pode fazer cessar este risco exigindo a remoção deste material para um local adequado. O
sossego, por seu turno, está ligado ao direito ao repouso, pelo que a causação de ruídos
excessivos, por exemplo, gera proteção ao vizinho prejudicado. E a saúde está mais ligada
ao risco de disseminação de patologias pela vizinhança, como quando o vizinho desenvolve
em sua propriedade alguma atividade prejudicial à saúde, quer porque seja radioativa,
química ou qualquer coisa do gênero – sendo tudo casuísmo, a ser verificado em concreto.
Vale explicitar que a expressão “propriedade vizinha”, utilizada no caput do artigo
supra, não significa apenas aquela propriedade lindeira, que faz fronteira com a que se sente
perturbada. O conceito de vizinho é mais amplo, não comportando definição objetiva: se o
imóvel estiver em posição tal que os efeitos de seu uso anormal alcancem o reclamante,
tratar-se-á de vizinho, mesmo que esteja a grande distância, e com diversos imóveis
interpostos. Por exemplo, uma casa de festas que causa enorme barulho pode ser alvo de
proteção do direito de vizinhança por proprietário que tem seu imóvel a cem, duzentos
metros de distância, se se comprovar que os decibéis emitidos lhe alcançam de forma
perturbadora do sossego; ou uma indústria que se situa há três quilômetros, mas cujas
emissões poluentes alcançam imóveis a esta distância, perturbando a saúdo dos que ali
residem.
Os limites entre o tolerável e o intolerável, no direito de vizinhança, são mormente
casuísticos. Há situações em que a interferência prejudicial não desperta proteção, por tão
insignificante que o seja. As tais ações de dano infecto, que são as destinadas a deduzir

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pretensões contra tais interferências prejudiciais de vizinhança, são de difícil solução,


justamente por sua falta de objetividade analítica: não há muitos critérios objetivos e
seguros para definir os limites de tais direitos, sendo difícil encontrar o limiar entre o uso
normal e o anormal da propriedade.
A doutrina, porém, propõe alguns critérios para tanto, e o primeiro, como não
poderia deixar de ser, é o da razoabilidade: é preciso verificar se a interferência está dentro
de padrões de razoabilidade. Veja um exemplo: para uma família que tem três filhos, é
perfeitamente razoável que, três vezes por ano, faça festas de aniversário que provoquem
barulho além do comum, perturbando os vizinhos sim, mas ainda sendo razoável. Outro
parâmetro doutrinário oferecido é o da tolerabilidade: a vida em sociedade é naturalmente
permeada por alguns incômodos, e assim sendo, os indivíduos têm que ter uma certa monta
de tolerância a interferência vindas da vizinhança – o que guarda bastante relação com a
razoabilidade. É tolerável uma discussão eventual de vizinhos em altos brados, mas não é
tolerável, por irrazoável, uma discussão diária e gritante por parte dos vizinhos.
Princípio importante nas relações de vizinhança é o da anterioridade: trata-se de um
critério de início de hermenêutica, ou seja, se o proprietário já se encontrava naquela área,
desenvolvendo atividade que perturbe um pouco a vizinhança, não podem os vizinhos que
para lá se mudaram posteriormente pretender impedir aquela atividade. É claro que este
critério não se sobrepõe à razoabilidade ou à tolerância, devendo a estes serem conjugados.
Exemplo concreto é foi o de um aeroporto que foi alvo de ação visando à proibição de seu
funcionamento pelas comunidades vizinhas, ao argumento do tremendo barulho que
causava. Ora, comprovado que foi que o aeroporto se instalara em uma região desértica, e
que somente ao longo dos anos foram as comunidades que para lá migraram, cercando-o,
não é razoável que seja o aeroporto ser proibido de atuar – pode-se, no máximo, impor
medidas não exageradas de limitação ao uso do bem, como a proibição de pousos e
decolagens de aeronaves de porte enorme, com igualmente enorme estrondo.
A vocação da área em que se situa o imóvel deve ser considerada como parâmetro
de mensuração de todos os outros, portanto: tanto a razoabilidade quanto a tolerabilidade e
a anterioridade são variantes de acordo com a área em que se situa o imóvel. Áreas
eminentemente residenciais estão sujeitas a menor grau de perturbação, enquanto áreas de
cunho comercial ou industrial são sujeitas a níveis mais altos de interferências.
O novo CC trouxe, de fato, alguma parametrização objetiva aos direitos de
vizinhança, atentando para estas construções doutrinárias apontadas, o que pode ser visto
no parágrafo único do artigo 1277 do CC, supra: a definição das vocações das áreas,
eminentemente fática, conta com um parâmetro objetivo, qual seja, o zoneamento urbano.
Há certas interferências que, mesmo bastante perturbadoras, se impedidas de serem
empreendidas, poderão trazer um prejuízo muito maior do que trazem ao convívio de
vizinhança, e por isso precisam ser mantidas. Exemplo concreto ocorreu em Duque de
Caxias, no Rio de Janeiro, quando os moradores de um bairro comprovaram que eram
submetidos a permanente intoxicação pela fumaça emitida pela Reduc – refinaria
petrolífera da região –, e que portanto era preciso impedir tal emissão de gases, o que só
seria possível com a interdição da refinaria, o seu fechamento. É claro que este fechamento
provocaria a virtual extinção da própria comunidade, pois toda a economia do local gira em
torno desta empresa; a crise gerada seria muito maior do que o benefício proporcionado.
Por isso, a decisão judicial foi conciliatória: não fechou a empresa, mas a condenou a
instalar equipamentos altamente sofisticados para a contenção das emissões, somente assim

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permitindo a manutenção da atividade. A redução ou eliminação da interferência, mesmo


que esta seja possibilitada por decisão judicial, é direito do vizinho perturbado, como
dispõe o artigo 1.279 do CC:

“Art. 1.279. Ainda que por decisão judicial devam ser toleradas as interferências,
poderá o vizinho exigir a sua redução, ou eliminação, quando estas se tornarem
possíveis.”

Em tais casos, em que o interesse público justifica a manutenção da interferência,


haverá que se indenizar os prejudicados, de forma cabal. É o que diz o artigo 1.278 do CC:

“Art. 1.278. O direito a que se refere o artigo antecedente não prevalece quando as
interferências forem justificadas por interesse público, caso em que o proprietário
ou o possuidor, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal.”

Na casuística apresentada, que envolve dano ao meio ambiente, trata-se esta


indenização do instituto do poluidor-pagador, aquele que, por aviltar o meio ambiente, deve
pagar indenização pelos danos causados.

1.2. Árvores limítrofes

As árvores que nascem em zonas limítrofes entre propriedades diversas têm


tratamento expresso pelo CC. Se a árvore estiver exatamente sobre a linha divisória, surge
um condomínio legal, necessário, entre os confinantes, na forma do artigo 1.282 do CC:

“Art. 1.282. A árvore, cujo tronco estiver na linha divisória, presume-se pertencer
em comum aos donos dos prédios confinantes.”

Aplica-se, portanto, o regramento dedicado ao condomínio geral: ambos devem


concorrer para a manutenção da árvore, e ambos têm direito igual a parcela dos frutos,
nenhum deles podendo abatê-a ou colher seus frutos isoladamente.
Quando a árvore não esteja exatamente sobre a linha divisória, ela pertence ao
proprietário do terreno de onde brota, exclusivamente. Contudo, se ela estiver próxima ao
limite do terreno, e se ela deitar galhos ou estender raízes sobre a propriedade vizinha,
poderá o proprietário invadido cortar-lhe os excessos que adentram ao seu terreno. Trata-se
de um direito potestativo do proprietário vizinho, invadido pela árvore de propriedade do
vizinho, que não é ato ilícito nem abuso de direito. Veja o artigo 1.283 do CC:

“Art. 1.283. As raízes e os ramos de árvore, que ultrapassarem a estrema do prédio,


poderão ser cortados, até o plano vertical divisório, pelo proprietário do terreno
invadido.”

É claro que se o corte da galhada ou da raiz invasiva poderá, sim descambar para o
abuso de direito, quando, por exemplo, causar a morte ou a queda da árvore do vizinho. A
questão é casuística.
Se a árvore é de um só proprietário, mas estende galhada sobre a propriedade
vizinha, os frutos pendentes, mesmo que presentes nos galhos que invadiram o terreno,
ainda pertencem ao proprietário da árvore. Os frutos caídos naturalmente na propriedade
vizinha, porém, passam a pertencer a este vizinho, na forma do artigo 1.284 do CC:

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“Art. 1.284. Os frutos caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do


solo onde caíram, se este for de propriedade particular.”

Repare em um detalhe: o fruto percebido só será de propriedade de outra pessoa


quando caído em sua propriedade particular. Se o fruto cai em terreno público – na rua, por
exemplo –, não será res nullius, coisa de quem quiser pegar: continua a pertencer ao
proprietário da árvore, mesmo caído em bem público, porque o artigo supra fala que a
propriedade é do dono do solo quando o fruto for caído em propriedade particular. É claro
que, se o proprietário da árvore não recolher os frutos em tempo hábil, razoável, eles
passam a ser coisas abandonadas, res derelicta, e por isso podem ser apropriados por quem
quiser, sem configurar ilícito penal.

1.3. Passagem forçada

Este direito de vizinhança assiste aos proprietários de prédios encravados. São


assim considerados aqueles que não têm acesso à rua, nascente ou porto, e que por isso é
absolutamente necessário que passe pelo imóvel vizinho, a fim de acessar tais logradouros.
Veja o artigo 1.285 do CC:

“Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou
porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe
dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.
§ 1° Sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se
prestar à passagem.
§ 2° Se ocorrer alienação parcial do prédio, de modo que uma das partes perca o
acesso a via pública, nascente ou porto, o proprietário da outra deve tolerar a
passagem.
§ 3° Aplica-se o disposto no parágrafo antecedente ainda quando, antes da
alienação, existia passagem através de imóvel vizinho, não estando o proprietário
deste constrangido, depois, a dar uma outra.”

A confusão mais corriqueira que se faz em relação a este instituto é a sua


identificação com a servidão de passagem. Os institutos são completamente diferentes: a
passagem forçada é um direito obrigacional que pode ser fixado judicialmente, em ação
própria de passagem forçada, na qual se pleiteia ao juiz a fixação dos rumos da sua
passagem, enquanto a servidão de passagem é direito real, estabelecido contratualmente,
sem interferência do Judiciário.
É evidente que o direito de passagem forçada é oneroso, cabendo indenização cabal
aos proprietários que serão forçados a tolerar tal passagem. A indenização cabal é aquela
que é integral, exatamente correspondente à desvalorização do imóvel – que decerto
ocorrerá, pois a venda de um bem com um gravame é sempre desvalorizada.
A passagem deve ser estabelecida de acordo com o que for menos inconveniente ao
prédio concedente. Para tanto, o juiz se valerá de parâmetros periciais que indiquem qual a
solução menos gravosa ao proprietário constrangido, mas ainda assim eficaz.
As despesas de manutenção da passagem forçada são incumbidas ao que dela se
vale, ou seja, o dono ou possuidor do prédio encravado.
A lei não faz distinção quanto às causas que ensejaram o encravamento. Tendo este
surgido naturalmente, ou por reiterados desmembramentos do imóvel pelo proprietário,

Michell Nunes Midlej Maron 96


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culminando em uma parcela encravada, este terreno encravado artificialmente ainda assim
terá direito à passagem forçada.
O encravamento é físico, ou seja, é objetivo: ou existe passagem, e não é encravado,
ou não existe passagem alguma, e é encravado. Hoje, no entanto, reconhece-se até mesmo
aquele chamado encravamento jurídico: trata-se do prédio que até tem uma via de acesso à
rua, mas esta via é extremamente dificultosa, além das dificuldades que seriam
normalmente toleráveis. Um exemplo esdrúxulo mas bastante ilustrativo seria o de uma
casa, localizada em uma escarpada, em que o dono só acessa a rua por meio de cordames de
rapel: fisicamente, há acesso direto à rua, mas é tão difícil que é como se juridicamente não
houvesse tal acesso. Por tamanha dificuldade, entende-se que este prédio é juridicamente
encravado, merecendo a passagem forçada.
Outro exemplo de encravamento jurídico é ainda mais peculiar: trata-se de um
encravamento subjetivo, que toma em conta as condições do ocupante do imóvel. Veja um
exemplo: uma casa é situada de tal forma que o seu acesso direto à rua é feito por uma
elevação bastante íngreme do terreno, mas que é superável por pessoa com saúde razoável
– sendo que, se passar por pequena parte do terreno vizinho, o acesso é plano e bem menos
extenso. Sendo seu morador pessoa saudável, não há que se falar em encravamento, e a
passagem pelo terreno vizinho não pode ser coactada. Contudo, se o morador for uma
pessoa com dificuldades físicas – uma senhora idosa, por exemplo –, para a qual o acesso
disponível em seu terreno seja extremamente penoso, praticamente inviabilizando sua
movimentação, pode-se falar em encravamento jurídico, em apreço à condição subjetiva do
possuidor – e com isso haverá a passagem forçada pelo vizinho, mediante indenização.
As condições da passagem são casuisticamente definidas, tendo em conta as
necessidades do passante e a menor gravosidade para o cedente. Mesmo que inicialmente
estabelecida de uma forma, se as condições fáticas se alterarem, e exigirem o alargamento
da passagem, por exemplo (passa a ser preciso a passagem de caminhões, e não só carros),
este alargamento poderá ser concedido, mediante indenização complementar.
Se o encravamento cessar ulteriormente – se for aberta nova via de acesso público
ao imóvel outrora encravado, por exemplo –, pode o imóvel dominado pela passagem
exigir sua extinção, seu levantamento. Da mesma forma, se o encravamento jurídico cessar,
pode cessar a passagem forçada. O exemplo de encravamento subjetivo dado é bom para tal
fim: quando a senhora de idade vender seu imóvel a pessoa saudável, capaz de superar com
facilidade o aclive que consiste em seu acesso próprio à rua, não mais subsistirá
necessidade de que haja a passagem forçada, pois o encravamento jurídico desapareceu.
A passagem forçada merece toda a proteção possessória imanente aos direitos reais
que envolvam posse. Se o dono prédio pelo qual é instituída a passagem forçada, por
exemplo, fechar-lhe o curso, inadvertidamente, o possuidor do direito de passagem poderá
ajuizar reintegração de posse. Qualquer medida de proteção possessória é viável pelo
proprietário do prédio encravado que for turbado, esbulhado ou ameaçado em seu direito de
passagem.

1.3.1. Manutenção da passagem

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O CC de 1916 dizia que se a passagem forçada não for conservada, por negligência
do seu beneficiário – perdendo-se seus rumos –, ele poderia requerer a sua reabertura, mas
para tanto deveria ter que pagar em dobro a indenização inicialmente paga pela passagem
forçada original.
É claro que esta previsão não se repetiu no CC de 2002. A indenização não é uma
forma de locupletamento do serviente, tampouco é uma punição àquele que precisa da
passagem: é uma forma de recompor os eventuais prejuízos que a passagem pode acarretar
ao dono do prédio que a cede, porque pode desvalorizá-lo – e é esta desvalorização o
patamar da indenização.
Por isso, não subsiste esta previsão de indenização em dobro no aviventamento da
passagem forçada: se for necessário aviventar a passagem, o interessado, aquele encravado,
deverá arcar com os custos da obra, somente.

1.4. Passagem de cabos e tubulações

O CC de 2002 inovou ao trazer o instituto da passagem forçada de cabos e


tubulações, como se vê nos artigos 1.286 e 1.287 do CC:

“Art. 1.286. Mediante recebimento de indenização que atenda, também, à


desvalorização da área remanescente, o proprietário é obrigado a tolerar a
passagem, através de seu imóvel, de cabos, tubulações e outros condutos
subterrâneos de serviços de utilidade pública, em proveito de proprietários
vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa.
Parágrafo único. O proprietário prejudicado pode exigir que a instalação seja feita
de modo menos gravoso ao prédio onerado, bem como, depois, seja removida, à
sua custa, para outro local do imóvel.”

“Art. 1.287. Se as instalações oferecerem grave risco, será facultado ao


proprietário do prédio onerado exigir a realização de obras de segurança.”

Há diferenças claras entre a passagem de cabos e tubulações e a passagem forçada,


destinada a socorrer imóveis encravados, como visto. A passagem de tubulações e cabos
não tem qualquer relação com encravamento do imóvel: o bem pode ter frente para a via
pública, e ainda assim ter direito a impor passagem de cabos e tubulações a terrenos
vizinhos.
Basta, para ter direito à passagem destas instalações pelos vizinhos, que a sua
colocação por outros meios seja extremamente onerosa. Por exemplo, se a passagem de
cabeamento pelo vizinho contíguo pode ser feita com dez metros de fiação, a custo “x”, e a
outra opção é circundar o terreno sem passar pelo vizinho, usando cem metros de fio a
custo dez vezes maior, o proprietário poderá constranger o vizinho a tolerar a passagem.
O CC diz que sempre que possível a passagem será subterrânea, o que se impõe
para evitar o enfeiamento, e consequente desvalorização, do imóvel dominado pela
passagem.
Também é facultado ao dono do terreno onerado exigir que obras de segurança
sejam feitas, com a óbvia finalidade de prevenir que sofra danos com tal passagem.
A passagem de tubulações e cabos é onerosa, devendo o beneficiado pagar cabal
indenização ao vizinho que cedeu o terreno.

Michell Nunes Midlej Maron 98


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Havendo situação superveniente que demande a retirada da passagem imposta, esta


pode ser determinada. Aliás, esta é uma regra quanto a estes direitos que envolvem relações
de inserção em imóveis alheios: as sentenças que os determinam não fazem coisa julgada
material, e sim meramente formal, podendo fatos supervenientes provocarem a alteração de
seu teor.

1.5. Águas

A matéria é disciplinada pelo Código de Águas, Lei . O regramento introduzido pelo


CC não revoga o Código de Águas, pois as normas do CC são mais especificamente
dedicadas às relações de vizinhança, enquanto que o Código de Águas é de mais amplo
espectro. O CC complementa esta norma geral de águas, no que diz respeito à disciplina da
água em relações de vizinhança.
As águas, enquanto bens públicos, e seu tratamento na forma pública, são regradas
pelo Código de Águas. O que o CC regulamenta é o uso privado das águas em relações de
vizinhança (águas que continuam sendo públicas por natureza). É a mescla necessária entre
o direito às águas, públicas, e o direito à propriedade, privado, que é regulado pelo CC. O
uso das águas, ainda públicas, pode interferir nas relações de vizinhança, e é para estas
interferências, potencialmente conflituosas, que há o regramento civilista.
Algumas das regras do CC são muito interessantes. Veja o artigo 1.290 do CC:

“Art. 1.290. O proprietário de nascente, ou do solo onde caem águas pluviais,


satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode impedir, ou desviar o curso
natural das águas remanescentes pelos prédios inferiores.”

Assim, não pode o dono de um terreno que sedia uma nascente, ou onde caem águas
pluviais, tendentes a correr para terrenos inferiores, represar as suas águas além do que lhe
seja necessário ao uso próprio. Se o curso das águas naturais dirige-se ao terreno inferior, só
é lícito ao dono do terreno superior tolher-lhe o curso até o limite de sua necessidade. Se
desviar mais do que precisa, estará agindo contrariamente ao que o direito de vizinhança
impõe sobre o tema. É uma regra de denso cunho ético e social, impondo a simples
solidariedade entre os vizinhos, pois as águas que sobejem ao uso do dono do prédio donde
brotam, e corram naturalmente para outros, não têm por que ser tolhidas em seu curso –
seria um egoísmo inaceitável pelo direito.
Da mesma forma, o proprietário do terreno inferior não pode impedir que as águas
naturais – nascente ou chuva – sigam seu curso natural sobre seu terreno. Não lhe é dado
impedir-lhe o curso. Veja o artigo 1.288 do CC:

“Art. 1.288. O dono ou o possuidor do prédio inferior é obrigado a receber as


águas que correm naturalmente do superior, não podendo realizar obras que
embaracem o seu fluxo; porém a condição natural e anterior do prédio inferior não
pode ser agravada por obras feitas pelo dono ou possuidor do prédio superior.”

Contudo, como o próprio artigo supra ressalva, não pode o proprietário do prédio
superior, de onde escoam as águas, agravar o escoamento das águas além daquele
naturalmente percebido. Um exemplo: determinado terreno superior é regado por chuvas,
as quais tendem a um escoamento natural para o terreno inferior que se faz por três vias
naturais, levando um tempo “x” para escoarem-se. Não pode o terreno inferior reclamar

Michell Nunes Midlej Maron 99


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deste escoamento, tampouco impedi-lo. Contudo, imagine-se que o dono do terreno


superior, desejoso de ver seu alagamento cessar mais rapidamente, conflui as águas por
meio de uma tubulação, fazendo com que o escoamento se acelere – o que acarreta um
alagamento mais rápido do prédio inferior. É esta dinâmica que o artigo supra repudia: não
pode o inferior deixar de receber águas naturais que para lá escoem, mas não é obrigado a
tolerar agravamento deste escoamento por intervenções artificiais feitas pelo proprietário
superior.
As águas artificialmente captadas seguem regra diversa. O proprietário de um
terreno pode construir um poço artesiano em sua área, empreendendo despesas com obra,
bomba d’água, etc. Neste caso, não há qualquer obrigação de fornecimento da água que
colher, mesmo a sobejante, a quem quer que seja. Não são águas naturais, como as
nascentes e a s pluviais.
O CC tem uma previsão ecológica no artigo 1.291, também referente à relação de
vizinhança:

“Art. 1.291. O possuidor do imóvel superior não poderá poluir as águas


indispensáveis às primeiras necessidades da vida dos possuidores dos imóveis
inferiores; as demais, que poluir, deverá recuperar, ressarcindo os danos que estes
sofrerem, se não for possível a recuperação ou o desvio do curso artificial das
águas.”

1.5.1. Passagem forçada de água

O proprietário de um terreno pode exigir que o vizinho tolere a passagem de água


por seu imóvel, a fim de alcançar o seu próprio, desde que seja indispensável tal passagem.
Entenda: um imóvel não tem água alguma – não tem nascente, não recebe
escoamento de águas pluviais, não sedia curso de rio, não tem águas profundas acessíveis
por meio de poços artesianos, nada. Precisando de água, e sabedor de que há um rio
corrente a dois quilômetros de distância, tem direito de captar tal água e trazê-la a seu
imóvel, mas para tanto deverá, no percurso, passar por terreno vizinho. Esta passagem
forçada é possível, na forma do artigo 1.293 do CC:

“Art. 1.293. É permitido a quem quer que seja, mediante prévia indenização aos
proprietários prejudicados, construir canais, através de prédios alheios, para
receber as águas a que tenha direito, indispensáveis às primeiras necessidades da
vida, e, desde que não cause prejuízo considerável à agricultura e à indústria, bem
como para o escoamento de águas supérfluas ou acumuladas, ou a drenagem de
terrenos.
§ 1° Ao proprietário prejudicado, em tal caso, também assiste direito a
ressarcimento pelos danos que de futuro lhe advenham da infiltração ou irrupção
das águas, bem como da deterioração das obras destinadas a canalizá-las.
§ 2° O proprietário prejudicado poderá exigir que seja subterrânea a canalização
que atravessa áreas edificadas, pátios, hortas, jardins ou quintais.
§ 3° O aqueduto será construído de maneira que cause o menor prejuízo aos
proprietários dos imóveis vizinhos, e a expensas do seu dono, a quem incumbem
também as despesas de conservação.”

Esta passagem forçada de água não se confunde com a servidão de aqueduto, tal
qual a passagem, forçada de pessoas não se confunde com a servidão de passagem. A
servidão de aqueduto é um direito real estabelecido entre os vizinhos, contratualmente,

Michell Nunes Midlej Maron 100


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enquanto a passagem de água forçada é um direito de vizinhança, obrigacional. O paralelo é


bem exato entre servidão de passagem e servidão de aqueduto é bem exato, assim como o é
entre a passagem forçada de pessoas e a passagem forçada de águas.
Da mesma forma que a colheita da água pode ser feita por massagem forçada, o seu
escoamento ou drenagem também é direito de quem não tem outro meio para fazê-lo, senão
a canalização passando por terrenos vizinhos – o que deve sempre ser feito da forma menos
onerosa, e de preferência subterrânea.

1.6. Direito de tapagem

O proprietário ou possuidor de um prédio tem o direito de cercá-lo, delimitá-lo,


extremar seus limites, determinando com precisão a área de se bem em relação aos imóveis
lindeiros, em nome da segurança e da privacidade. Veja o artigo 1.297 do CC:

“Art. 1.297. O proprietário tem direito a cercar, murar, valar ou tapar de qualquer
modo o seu prédio, urbano ou rural, e pode constranger o seu confinante a proceder
com ele à demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a
renovar marcos destruídos ou arruinados, repartindo-se proporcionalmente entre os
interessados as respectivas despesas.
§ 1° Os intervalos, muros, cercas e os tapumes divisórios, tais como sebes vivas,
cercas de arame ou de madeira, valas ou banquetas, presumem-se, até prova em
contrário, pertencer a ambos os proprietários confinantes, sendo estes obrigados,
de conformidade com os costumes da localidade, a concorrer, em partes iguais,
para as despesas de sua construção e conservação.
§ 2° As sebes vivas, as árvores, ou plantas quaisquer, que servem de marco
divisório, só podem ser cortadas, ou arrancadas, de comum acordo entre
proprietários.
§ 3° A construção de tapumes especiais para impedir a passagem de animais de
pequeno porte, ou para outro fim, pode ser exigida de quem provocou a
necessidade deles, pelo proprietário, que não está obrigado a concorrer para as
despesas.”

Pode exigir que esta delimitação seja realizada, quando houver resistência à sua
pretensão, em ação judicial com este escopo específico, denominada ação demarcatória.
Os custos da demarcação devem ser rateados entre os interessados, pois é o que
definirá a exata proporção do objeto de sua propriedade.
Os muros e tapumes podem ser erguidos exatamente na linha divisória entre os
terrenos, quando então serão considerados em condomínio dentre os vizinhos, pertencendo
metade de sua espessura a cada um dos vizinhos; ou poderá ser construído inteiramente nos
limites de um dos terrenos, pertencendo apenas ao seu proprietário.
O direito de travejamento, quando o muro limite é situado exatamente na linha
divisória, consiste no direito de fixar amarras, escoras, ou quaisquer métodos de
engenharia, no muro limítrofe, tomando até a metade de sua espessura – o que é garantido,
desde que não afete a segurança da estrutura.
É possível a construção de muros e tapumes com o intento especial de impedir a
passagem de animais, ou com qualquer outra finalidade especial que não a mera divisão.
Quem der causa à necessidade do muro especial deverá arcar com os custos, o que é
avaliado na casuística.

Michell Nunes Midlej Maron 101


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

1.7. Direito de penetração

Dispõe o artigo 1.313 do CC:

“Art. 1.313. O proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o


vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para:
I - dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção,
reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório;
II - apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente.
§ 1° O disposto neste artigo aplica-se aos casos de limpeza ou reparação de
esgotos, goteiras, aparelhos higiênicos, poços e nascentes e ao aparo de cerca viva.
§ 2° Na hipótese do inciso II, uma vez entregues as coisas buscadas pelo vizinho,
poderá ser impedida a sua entrada no imóvel.
§ 3° Se do exercício do direito assegurado neste artigo provier dano, terá o
prejudicado direito a ressarcimento.”

O proprietário tem direito de penetrar em imóvel vizinho para buscar coisa sua lá
atirada, por algum fortuito, ou para reparar seu próprio imóvel ou muro. Para tanto, é
necessário somente o prévio aviso de que estará ali entrando, a fim de minorar os riscos de
conflito.
O direito de penetração não é ilimitado: mesmo tendo havido aviso e autorização
prévia para entrada, não é razoável que esta se dê em ritmo diuturno, o que pode acontecer,
por exemplo quando as crianças de uma casa atiram a bola com que brincam praticamente
todo dia no terreno do vizinho.

1.8. Direito de alteamento

Pode o proprietário elevar seu muro, caso entenda necessário e veja proveito
legítimo nesta providência, como aumento da sua privacidade e segurança. É claro que este
alteamento não pode ser feito sem qualquer propósito justificado, se for causador de
prejuízos ao vizinho – quer porque este perderá em vista, em recepção da luz solar, ou
qualquer outro prejuizo.

1.9. Direito de construir

Inerente à propriedade, e, quiçá, seu maior baluarte, é o direito de dispor. Inserido


neste, está o direito de construir.
Este direito, contudo, está longe de ser absoluto. Há severas restrições ao direito de
construir, muitas trazidas no CC, mas quase todas previstas nos códigos de obras dos
Municípios, entes federativos competentes para elaborar leis definidoras das posturas sobre
construção imobiliária. É nestes diplomas que surgem os gabaritos de altura, os
espaçamentos, as normas em relação às metragens mínimas dos imóveis, chegando a
miudezas como os níveis de aeração e iluminação mínimos dos imóveis. Em síntese, não é
simplesmente dado ao proprietário levantar um imóvel, a seu arbítrio: deve respeitar
inúmeras restrições normativas.
O Estatuto da Cidade, norma bastante influente no direito de construir, chega a
impor, em determinados casos, a realização de audiências públicas sobre uma proposta de
construção que tenha relevância social, a ser realizada entre os vizinhos e cercanias.

Michell Nunes Midlej Maron 102


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Algumas regras podem ser trazidas aqui, a título de exemplos. Veja o artigo 1.301
do CC, por exemplo:

“Art. 1.301. É defeso abrir janelas, ou fazer eirado, terraço ou varanda, a menos de
metro e meio do terreno vizinho.
§ 1° As janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como as
perpendiculares, não poderão ser abertas a menos de setenta e cinco centímetros.
§ 2° As disposições deste artigo não abrangem as aberturas para luz ou ventilação,
não maiores de dez centímetros de largura sobre vinte de comprimento e
construídas a mais de dois metros de altura de cada piso.”

A previsão de construção de janelas com vista para o terreno vizinho nunca a menos
de metro e meio de tal terreno se presta a garantir um mínimo de privacidade. O mesmo se
dá com as janelas que, mesmo não voltadas para o terreno alheio, sejam construídas perto
do limite – o espaçamento mínimo é de setenta e cinco centímetros.
A pretensão de fechamento da janela que o vizinho abriu a menos de metro e meio
do limite do seu terreno prescreve em uma no e um dia. Assim, se o proprietário de um
terreno constrói na linha divisória e coloca ali uma janela, se o vizinho prejudicado não
reclamar em menos de ano e dia, perderá a pretensão de fechamento de tal janela. Sendo
esta a situação, se o vizinho prejudicado pretender construir em seu terreno, terá este
problema a enfrentar: a janela em sua linha divisória imporá a ele um recuo de metro e
meio adentro de seu terreno, mesmo que não queira abrir janela – pois não poderá, por
exemplo, construir um muro limítrofe fechando a janela do vizinho.
A construção na linha divisória pode, porém, regularmente, contemplar seteiras, que
são aquelas aberturas para luz ou ventilação que não ultrapassem dez centímetros de largura
e vinte de comprimento, e estejam situadas a mais de dois metros de altura. Ocorre que há
uma diferença enorme das seteiras para as janelas, porque enquanto a pretensão de
fechamento de janelas irregulares prescreve em ano e dia, as seteiras podem ser tapadas a
qualquer tempo, ou seja, se o vizinho quiser edificar muro na linha limítrofe, nada impede
que com isto vede a seteira. Veja o artigo 1.302 do CC:

“Art. 1.302. O proprietário pode, no lapso de ano e dia após a conclusão da obra,
exigir que se desfaça janela, sacada, terraço ou goteira sobre o seu prédio; escoado
o prazo, não poderá, por sua vez, edificar sem atender ao disposto no artigo
antecedente, nem impedir, ou dificultar, o escoamento das águas da goteira, com
prejuízo para o prédio vizinho.
Parágrafo único. Em se tratando de vãos, ou aberturas para luz, seja qual for a
quantidade, altura e disposição, o vizinho poderá, a todo tempo, levantar a sua
edificação, ou contramuro, ainda que lhes vede a claridade.”

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 103


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Lucas propõe ação, postulando lhe seja reconhecido direito a passagem e


determinada a demolição de obstáculo. Sustenta que resta cabalmente demonstrado o
encravamento de seu imóvel, possuindo direito de passagem, inerente ao direito de
propriedade. Alega que é proprietário de lote de terreno localizado em Joconé, na Praia
do Sudoeste, onde foi construído um muro, que inviabilizou o acesso à rua e desvalorizou o
bem. O condomínio réu, por sua vez, relata que o imóvel somente encontra-se encravado
porque os genitores do autor alienaram os terrenos em torno, sem ressalvar qualquer
servidão de passagem. Aduz que o encravamento provocado não enseja proteção. Decida a
questão, fundamentadamente.

Resposta à Questão 1

Qualquer que seja a causa do encravamento, este precisa de proteção, sob pena de se
inviabilizar economicamente o uso do bem. Hoje, até mesmo o encravamento jurídico é
admitido, flexibilizando-se o antigo conceito de encravamento (conceito antigo, físico, ao
qual se adequa o imóvel em tela, diga-se). Por isso, a passagem forçada é mandatória, tendo
razão Lucas.
Vale dizer que a medida protetiva mais razoável não seria a demolição do muro, e
sim a abertura de um portão cujas chaves ficariam em poder dos interessados, proprietário
do imóvel sediante da passagem e proprietário do imóvel encravado.
Assim decidiu o TJ/RJ, na Apelação Cível 2006.001.48901:

“Processo: 0000156-47.2002.8.19.0055 (2006.001.48901). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. LUIS FELIPE SALOMAO - Julgamento: 19/12/2006 -
DECIMA OITAVA CAMARA CIVEL. TERRENO ENCRAVADO. PASSAGEM.
FORCADA. DIREITO DE ACESSO. COLOCACAO DE PORTAO. EXCLUSAO
DA INDENIZACAO.
Apelação Cível. Ação objetivando garantir direito de passagem e demolição de
muro, com consequente indenização. O direito a passagem forçada é atribuído ao
titular do terreno vizinho como forma de garantir o direito de ir e vir do imóvel
encravado. Natureza de direito potestativo e obrigacional. Funda-se na inexistência
de alternativa para acesso ao imóvel, conforme dispõe o artigo 559, do Código
Civil de 1916 (artigo 1.285, atual Código Civil) independentemente de quem deu
causa ao confinamento do terreno. Não há confundir o conceito de direito de
passagem forçada com servidão, esta fruto da vontade e aquela da lei. Perícia que
demonstra cabalmente o encravamento do imóvel. Desnecessária, no entanto, a
demolição do muro, bastando a colocação de portão que viabilize o acesso.
Inexistência de prova quanto à alegação de perdas e danos, não devendo ser
acolhida a indenização pretendida pelo autor. Por outro lado, registre-se, ainda, que
a concessão de passagem enseja direito de indenização ao proprietário do prédio
serviente, nos termos do artigo 560, do CC/16 (correspondência no mesmo artigo
1.285, CC/2002) a ser apurado em ação própria. Recurso provido, em parte.”

Questão 2

Michell Nunes Midlej Maron 104


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Na comarca de Miguel Pereira foi proposta ação de demarcação de terras pelo


usufrutuário do Sítio Nova Esperança em face do legítimo proprietário do Sítio Rio Feliz,
tendo em vista conflito acerca do real limite divisório das terras possuídas pelo autor e
pelo réu. O réu alega que o autor é parte ilegítima por não ser o proprietário, na forma
prescrita no artigo 1.298 do Código Civil. Decida a questão.

Resposta à Questão 2

O artigo 1.298 do CC, citado na contestação, diz o seguinte:

“Art. 1.298. Sendo confusos, os limites, em falta de outro meio, se determinarão de


conformidade com a posse justa; e, não se achando ela provada, o terreno
contestado se dividirá por partes iguais entre os prédios, ou, não sendo possível a
divisão cômoda, se adjudicará a um deles, mediante indenização ao outro.”

Como permite a adjudicação como solução, há uma corrente que defende que
somente o proprietário tem direito a esta ação de demarcação, e não o possuidor a qualquer
título, como o usufrutuário.
Contudo, a tendência moderna é do fortalecimento da posse, e é igualmente forte o
entendimento doutrinário de que o usufrutuário (assim como o superficiário, o enfiteuta, o
locatário, enfim, todos aqueles que têm a posse direta) poderá, sim, legitimar-se à ação
demarcatória – afinal, tem uso e gozo do bem.

Tema XII

Michell Nunes Midlej Maron 105


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Direito de construir: limites, estilícidio, travejamento, parede-meia, alteamento, direito de penetração.


Condomínio voluntário. Conceito e natureza jurídica. Direitos e deveres do condômino. Condomínio pro
diviso e pro indiviso. Administração do condomínio. Condomínio de fato. Condomínio necessário.

Notas de Aula18

1. Direito de construir

Antes de dar início ao tratamento do tema, é importante traçar alguns conceitos


básicos, formando uma espécie de miniglossário para o assunto a ser abordado. Vejamos.
Parede-meia: segundo o artigo 1.306 do CC, o condômino da parede-meia pode
utilizá-la até ao meio da espessura, não pondo em risco a segurança ou a separação dos dois
prédios, e avisando previamente o outro condômino das obras que ali tenciona fazer; não
pode sem consentimento do outro, fazer, na parede-meia, armários, ou obras semelhantes,
correspondendo a outras, da mesma natureza, já feitas do lado oposto. Veja o dispositivo:

“Art. 1.306. O condômino da parede-meia pode utilizá-la até ao meio da espessura,


não pondo em risco a segurança ou a separação dos dois prédios, e avisando
previamente o outro condômino das obras que ali tenciona fazer; não pode sem
consentimento do outro, fazer, na parede-meia, armários, ou obras semelhantes,
correspondendo a outras, da mesma natureza, já feitas do lado oposto.”

Alteamento: consiste em aumentar a parede-meia. Veja o artigo 1.307 do CC:

“Art. 1.307. Qualquer dos confinantes pode altear a parede divisória, se necessário
reconstruindo-a, para suportar o alteamento; arcará com todas as despesas,
inclusive de conservação, ou com metade, se o vizinho adquirir meação também na
parte aumentada.”

Travejamento, ou madeiramento: é o direito de colocar uma trave, viga ou madeira


no prédio vizinho nos casos em que há o alinhamento da parede-meia. Veja o artigo 1.304
do CC:

“Art. 1.304. Nas cidades, vilas e povoados cuja edificação estiver adstrita a
alinhamento, o dono de um terreno pode nele edificar, madeirando na parede
divisória do prédio contíguo, se ela suportar a nova construção; mas terá de
embolsar ao vizinho metade do valor da parede e do chão correspondentes.”

Visto isso, passemos propriamente ao direito de construir. Direito de construir é um


conceito que, hoje, assume duas possíveis conotações, uma tradicional e uma mais voltada
para o aspecto econômico. Para tratar do aspecto tradicional do direito de construir, é
importante a releitura do artigo 1.228 do CC:

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o


direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1° O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas.
18
Aula ministrada pelo professor André Pinto da Rocha Osório Gondinho, em 17/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 106


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

§ 2° São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou


utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3° O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por
necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição,
em caso de perigo público iminente.
§ 4° O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco
anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em
conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse
social e econômico relevante.
§ 5° No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao
proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel
em nome dos possuidores.”

Este artigo básico da propriedade é o que fundamenta o direito de construir, porque


mesmo que não esteja ali previsto expressamente, dentre o rol de poderes do proprietário, o
direito de construir, ele é ínsito ao uso, ao gozo, e especialmente ao poder de dispor, que
significa dar à coisa o melhor destino que bem entender. A construção, muitas das vezes, é
pressuposto para o uso e gozo da coisa.
A propriedade é tradicionalmente compreendida por meio do complexo de poderes
conferidos ao titular: usar, gozar, dispor da coisa e o direito de reavê-la de quem quer que
injustamente a possua ou detenha. Como decorrência da faculdade de dispor, entende-se
que o proprietário tem o direito de construir em seu imóvel, ressalvados os direitos de
vizinhança e os regulamentos administrativos. Veja o artigo 1.299 do CC, que inicia o
tratamento do tema neste diploma:

“Art. 1.299. O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe
aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos.”

O direito de construir, ligado à propriedade, encontra dois limites a serem


observados: o direito de vizinhança, como um todo, e as limitações administrativas. O
código é pródigo no tratamento da matéria, traçando normas referentes a miudezas nas
relações de vizinhança, eis que estas são potencialmente fontes constantes de litígios.
Veja que, então, a princípio, o direito de construir é absoluto, podendo o proprietário
erigir o que bem entender, salvo se colidir com normas relativas a direitos de vizinhança e
normas administrativas limitativas. É absoluto, em tese, mas limitável, em concreto (pela
lei ou por limitações administrativas).
Neste conceito, o direito de construir parte de uma compreensão absoluta para um
conteúdo concreto a partir de limitações legais (vizinhança e ordem pública urbanística).
Essa é uma visão tradicional do direito de construir, pois enxerga o mesmo como uma
faculdade do direito de propriedade, mas não como um direito autônomo, como o faz, por
exemplo, a Lei 10.257/01 – Estatuto da Cidade.

1.1. Perspectiva moderna do direito de construir

O Estatuto da Cidade é o diploma mais importante em termos de função social da


propriedade urbana. É este diploma que melhor representa a regulamentação desta função

Michell Nunes Midlej Maron 107


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

social, apenas genericamente inserida na CRFB (diferente da função social da propriedade


rural, que é traçada de forma detalhada já na própria CRFB). A CRFB simplesmente remete
à legislação, ao Estatuto e aos planos diretores, para a definição da função social da
propriedade urbana.
A perspectiva moderna, então, ilustrada no Estatuto da Cidade, reputa ao direito de
construir uma autonomia plena, na qual o proprietário pode dispor autonomamente de seu
direito de construir, desatrelado da propriedade em si. Veja, por exemplo, o instituto da
outorga onerosa do direito de construir, no artigo 28 do Estatuto:

“Art. 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá
ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante
contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.
§ 1° Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação entre a
área edificável e a área do terreno.
§ 2° O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para
toda a zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana.
§ 3° O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos
coeficientes de aproveitamento, considerando a proporcionalidade entre a infra-
estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área.”

A outorga onerosa do direito de construir, portanto, prevista neste dispositivo, é a


entrega de mais direito do que o ordinariamente possível, em áreas determinadas no plano
diretor. O acréscimo do direito de construir corresponderá uma contrapartida a ser paga
pelo beneficiado.
Aqui é relevante o conceito de solo criado, que é justamente o aproveitamento
daquele terreno além do limite ordinário estabelecido para aquela área, definida como de
direito de construir extensível. Veja o conceito de solo criado traçado por Hely Lopes
Meirelles:

“Considera-se ‘solo criado’ toda área edificável além do coeficiente único do


aproveitamento do lote, legalmente ficado para o local. O ‘solo criado’ será sempre
um acréscimo ao direito de construir, além do coeficiente base de aproveitamento
estabelecido pela lei: acima desse coeficiente, até o limite que as normas edilícias
admitirem, o proprietário não terá o direito originário de construir, mas poderá
adquiri-lo do município, nas condições gerais que a lei local dispuser para a
respectiva zona”

Assim, pela outorga, cria-se novo solo potencial, ou seja, se havia, por exemplo,
direito a construir dez pavimentos, passa-se a poder construir doze. Este é o solo criado.
É possível a transformação urbanística estrutural por meio de operações urbanas
consorciadas, conceito apresentado no § 1° do artigo 32 do Estatuto da Cidade:

“Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área
para aplicação de operações consorciadas.
§ 1° Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e
medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos
proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o
objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais,
melhorias sociais e a valorização ambiental.
§ 2° Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras
medidas:

Michell Nunes Midlej Maron 108


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

I – a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do


solo e subsolo, bem como alterações das normas edilícias, considerado o impacto
ambiental delas decorrente;
II – a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em
desacordo com a legislação vigente.”

Por meio deste instituto, uma grande área da cidade poderá ser reestruturada, para
solucionar um problema qualquer que a aflija – o desuso e a desvalorização, por exemplo.
Para esta modificação estrutural, o Estatuto permite a emissão de títulos representativos de
extensão do direito de construir, chamados certificados de potencial adicional de
construção, títulos que serão leiloados e que permitirão ao adquirente construir mais em seu
imóvel.
Veja agora o instituto da transferência do direito de construir, no artigo 35 do
Estatuto:

“Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário
de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar,
mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em
legislação urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado
necessário para fins de:
I – implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico,
ambiental, paisagístico, social ou cultural;
III – servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas
por população de baixa renda e habitação de interesse social.
§ 1° A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar ao Poder
Público seu imóvel, ou parte dele, para os fins previstos nos incisos I a III do
caput.
§ 2° A lei municipal referida no caput estabelecerá as condições relativas à
aplicação da transferência do direito de construir.”

Aqui, o proprietário de imóvel urbano em que o direito de construir é mais limitado


do que os demais, por interesse público, poderá transferir seu direito de construir para outro
local, nos moldes que ali poderia ser exercido – construindo ele mesmo ou alienando este
direito de construir.
O direito de construir, como se vê, nesta perspectiva moderna, tem valor por si só,
como se vê nestes dispositivos supra, para a perspectiva mais moderna, economista, deste
direito. O título permissivo da construção pode ser negociado, como um bem incorpóreo
qualquer. Pode, por exemplo, um Município “vender” direito de construir a um
determinado proprietário, adicional ao que é da natureza do terreno, a fim de captar fundos
para qualquer finalidade pública.
A falta do direito de construir é tão significativa que pode, de fato, acabar com
qualquer valor de um imóvel: um terreno inserido em uma área de proteção ambiental, em
que não se pode construir de forma alguma, por exemplo, tem valor meramente simbólico.
O direito de construir se extingue em seu exercício: quando há a construção,
efetivamente, o direito de construir deixa logicamente de existir, passando a haver a
propriedade sobre o que se construiu.

1.2. Limitações ao direito de construir

Michell Nunes Midlej Maron 109


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Primeira limitação concreta é o chamado estilicídio, previsto no artigo 1.300 do CC,


e artigo 105 do Código de Águas:

“Art. 1.300. O proprietário construirá de maneira que o seu prédio não despeje
águas, diretamente, sobre o prédio vizinho.”

“Art. 105. O proprietário edificará de maneira que o beiral de seu telhado não
despeje sobre o prédio vizinho, deixando entre este e o beiral, quando por outro
modo não o possa evitar, um intervalo de 10 centímetros, quando menos, de modo
que as águas se escoem.”

A figura jurídica do estilicídio visa atender às situações criadas pelos proprietários


que deixam ficar os beirados dos telhados dos seus prédios urbanos a gotejar sobre prédios
vizinhos. É a proibição ao gotejamento.
Outra limitação concreta é a abertura de janelas com distância mínima, tratada no
artigo 1.301 do CC:

“Art. 1.301. É defeso abrir janelas, ou fazer eirado, terraço ou varanda, a menos de
metro e meio do terreno vizinho.
§ 1º As janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como as
perpendiculares, não poderão ser abertas a menos de setenta e cinco centímetros.
§ 2º As disposições deste artigo não abrangem as aberturas para luz ou ventilação,
não maiores de dez centímetros de largura sobre vinte de comprimento e
construídas a mais de dois metros de altura de cada piso.”

Para os terrenos rurais, a distância é maior, porque se presume que os imóveis sejam
maiores. E esta limitação de distância é genérica, e não apenas no que tange a janelas. Veja
o artigo 1.303 do CC:

“Art. 1.303. Na zona rural, não será permitido levantar edificações a menos de três
metros do terreno vizinho.”

Sobre o tema, veja a súmula 120 do STF:

“Súmula 120, STF: Parede de tijolos de vidro translúcido pode ser levantada a
menos de metro e meio do prédio vizinho, não importando a servidão sobre ele.”

A razão da proibição legal contida no artigo 1.301 do CC é impedir o devassamento


de prédio alheio, com as suas conseqüências danosas às relações de vizinhança. Uma vez
que as aberturas não permitam que alguém veja o que se passa na sua casa vizinha, nem que
se debrucem como nas janelas, nem que por elas sejam lançados quaisquer objetos para
fora, em virtude de vidros de vedação, fixos, opacos, destinados tão – somente ao
escoamento da luz, não há razão para não ser possível a obra. A limitação protege a
privacidade.
A proibição de madeiramento em parede divisória que não suporte nova
construção, na forma do já transcrito artigo 1.304 do CC, é um limite expresso ao direito de
construir. Outro limite é a proibição de utilização de parede meia que ponha em risco a
segurança ou a separação dos dois prédios, constante do artigo 1.306 do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 110


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 1.306. O condômino da parede-meia pode utilizá-la até ao meio da espessura,


não pondo em risco a segurança ou a separação dos dois prédios, e avisando
previamente o outro condômino das obras que ali tenciona fazer; não pode sem
consentimento do outro, fazer, na parede-meia, armários, ou obras semelhantes,
correspondendo a outras, da mesma natureza, já feitas do lado oposto.”

A proibição de encostar na parede divisória chaminés, fogões e fornos muito


grandes para não incomodar o vizinho, na forma do artigo 1.308 do CC, é outro limite
expresso:

“Art. 1.308. Não é lícito encostar à parede divisória chaminés, fogões, fornos ou
quaisquer aparelhos ou depósitos suscetíveis de produzir infiltrações ou
interferências prejudiciais ao vizinho.
Parágrafo único. A disposição anterior não abrange as chaminés ordinárias e os
fogões de cozinha.”

Outro limite é a proibição de construção poluidora de água ou de subtração de


fonte, dos artigos 1.309 e 1.310 do CC. Como exemplo, não se pode construir fossa junto
de poço de água, e não se pode desviar córrego. Veja:

“Art. 1.309. São proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar, para uso
ordinário, a água do poço, ou nascente alheia, a elas preexistentes.”

“Art. 1.310. Não é permitido fazer escavações ou quaisquer obras que tirem ao
poço ou à nascente de outrem a água indispensável às suas necessidades normais.”

É também um limite geral a proibição de se executar obras arriscadas, como diz o


artigo 1.311 do CC:

“Art. 1.311. Não é permitida a execução de qualquer obra ou serviço suscetível de


provocar desmoronamento ou deslocação de terra, ou que comprometa a segurança
do prédio vizinho, senão após haverem sido feitas as obras acautelatórias.”

Por fim, há também a proibição de construção de currais, canis, pocilgas,


estrumeiras e afins, sem a observância de distância compatível com o conforto da
vizinhança, proibição oriunda da boa-fé objetiva, e não de norma expressa.
Qualquer das limitações que, transgredidas, causem danos a vizinhos, são hipóteses
de responsabilidade objetiva. Não se perquire da culpa do dano, bastando que haja este e o
nexo com a conduta do vizinho transgressor. Veja o que diz Hely Lopes Meirelles:

“A construção, por sua própria natureza, e mesmo sem culpa de seus executores,
comumente causa dano à vizinhança, por recalques de terreno, vibrações do
estaqueamento, queda de materiais e outros eventos comuns na edificação.
(...)
Essa responsabilidade independe de culpa do proprietário ou do construtor, uma
vez que não se origina na ilicitude do ato de construir, mas sim, da lesividade do
fato da construção. É um caso de típico de responsabilidade sem culpa, consagrado
pela lei civil, como exceção defensiva da segurança, da saúde e do sossego dos
vizinhos”

Veja trecho de julgado constante da Revista dos Tribunais:

Michell Nunes Midlej Maron 111


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Não é qualquer inconveniente relacionado com construção relacionado com


construção em imóvel contíguo que lesa direito e autoriza o embargo. Ainda que o
prédio sofra algum prejuízo no tocante à ventilação e à vista, o proprietário não
pode, só por isso, sem que se haja apurado a infração de disposição legal, impedir
que o vizinho realize a obra.” (RT 664/129)

Os instrumentos judiciais mais comuns para dar tratamento às transgressões às


limitações do direito de construir são a ação de nunciação de obra nova e a ação
demolitória. Há também a ação de dano infecto, correlata, mas que não se adequa ao caso
porque ela visa a tutelar a integridade de um imóvel diante da provável ruína do imóvel
vizinho – e não da construção irregular.
O diferencial entre a nunciação de obra nova e a demolitória está exatamente no
conceito de obra nova. Para Hely Lopes Meirelles, obra nova é a obra inacabada, que:

“(...) segundo a jurisprudência corrente, deve-se entender toda aquela em que ainda
faltam partes de sua estrutura, e não apenas pintura ou remate de materiais já
empregados.”

Adroaldo Furtado Fabrício aduz:

“Outro ponto a determinar-se é até quando a obra é ‘nova’, isto é, permanece


inconclusa. São numerosos e bem conhecidos os julgados segundo os quais a obra
se considera pronta e portanto já não cabe a ação de nunciação, quando à sua
conclusão só faltem arremates, pinturas, acabamento decorativo etc.”

Quando a obra não for nova, e sim já acabada, a ação passa a ser demolitória. A
diferença básica é que, na nunciação, da obra nova, pode haver suspensão da construção
imediata, por liminar, evitando maiores irregularidades ainda. Na demolitória, tudo que
poderia ter sido feito de forma errada já o foi, restando a demolição.
A respeito, veja o REsp. 311.507:

“REsp 311507 / AL. 11/09/2001.


DIREITO DE VIZINHANÇA. Terraço. Ação demolitória. Contra a construção do
terraço a menos de metro e meio do terreno vizinho (art. 573 do CC), cabia ação de
nunciação de obra nova até o momento de sua conclusão, entendendo-se como tal
aquela a que faltem apenas trabalhos secundários.
Uma vez concluída a obra (faltava apenas a pintura), cabível a ação demolitória,
com prazo decadencial de ano e dia (art. 576 do CCvil), que se iniciou a partir da
conclusão e não se interrompeu com a notificação administrativa.
Recurso conhecido e provido.”

Veja a sede normativa das ações, no CPC, respectivamente nos artigos 934, da
nunciação, e 1.302, de uma hipótese de demolitória:
“Art. 934. Compete esta ação:
I - ao proprietário ou possuidor, a fim de impedir que a edificação de obra nova em
imóvel vizinho lhe prejudique o prédio, suas servidões ou fins a que é destinado;
II - ao condômino, para impedir que o co-proprietário execute alguma obra com
prejuízo ou alteração da coisa comum;
III - ao Município, a fim de impedir que o particular construa em contravenção da
lei, do regulamento ou de postura.”

Michell Nunes Midlej Maron 112


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 1.302. O proprietário pode, no lapso de ano e dia após a conclusão da obra,
exigir que se desfaça janela, sacada, terraço ou goteira sobre o seu prédio; escoado
o prazo, não poderá, por sua vez, edificar sem atender ao disposto no artigo
antecedente, nem impedir, ou dificultar, o escoamento das águas da goteira, com
prejuízo para o prédio vizinho.
Parágrafo único. Em se tratando de vãos, ou aberturas para luz, seja qual for a
quantidade, altura e disposição, o vizinho poderá, a todo tempo, levantar a sua
edificação, ou contramuro, ainda que lhes vede a claridade”.

Veja que se o proprietário desatento deixar de requerer o desfazimento da janela, por


exemplo, em ano e dia, jamais poderá requerer este desfazimento. Simplesmente perde o
direito a ele. Assim, surge para o vizinho que construiu a janela uma verdadeira servidão
sobre seu direito de construir, ou seja, o vizinho adquire o direito de construir janela a
menos de metro e meio do limite, não podendo o prejudicado mais se insurgir contra esta
irregularidade. Mais do que isso, o vizinho moroso deverá, agora, respeitar aquela
construção irregular que se consolidou, respeitando a servidão ali representada, ou seja: não
poderá ele próprio construir de forma a violar a utilidade daquela construção – no caso, não
poderá obstruir a janela. Se for uma servidão de luz, não poderá obstruir a sua passagem, e
assim por diante.

2. Direito de penetração

O artigo 1.313 do atual Código Civil reconhece que o proprietário ou ocupante é


obrigado a tolerar que o vizinho adentre no seu imóvel, desde que haja prévio aviso, em
duas hipóteses. Veja o dispositivo:

“Art. 1.313. O proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o


vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para:
I - dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção,
reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório;
II - apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente.
§ 1° O disposto neste artigo aplica-se aos casos de limpeza ou reparação de
esgotos, goteiras, aparelhos higiênicos, poços e nascentes e ao aparo de cerca viva.
§ 2° Na hipótese do inciso II, uma vez entregues as coisas buscadas pelo vizinho,
poderá ser impedida a sua entrada no imóvel.
§ 3° Se do exercício do direito assegurado neste artigo provier dano, terá o
prejudicado direito a ressarcimento.”

Na primeira hipótese, é permitida a entrada se o vizinho, temporariamente, dele for


usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou
do muro divisório. Como exemplo, o proprietário deve tolerar a entrada do vizinho para
reparos em paredes ou corte de galhos de árvores. Esse direito de tolerância é aplicado aos
casos de limpeza ou reparação de esgotos, goteiras, aparelhos higiênicos, poços e nascentes
e ao aparo de cerca viva.
A segunda hipótese em que se permite a entrada é quando deve ser dado ao vizinho
apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que ali se encontrem casualmente. Como
exemplo, o vizinho entra no imóvel de outrem para pegar uma bola de futebol ou um gato
perdido. Uma vez sendo entregue a coisa buscada pelo vizinho, o proprietário pode impedir
novas entradas no imóvel.

Michell Nunes Midlej Maron 113


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

3. Condomínio

A noção tradicional de propriedade liga-se à idéia de assenhoramento de uma coisa


com exclusão de qualquer outro sujeito. Já a de condomínio compreende o exercício do
direito dominial por mais de um dono, simultaneamente. Dá-se condomínio, quando a
mesma coisa pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma delas igual direito,
idealmente, sobre o todo e cada uma de suas partes. Isso porque a fração ideal da coisa
não é uma parcela material desta. Veja o conceito de Caio Mário:

“Cada cota ou fração, não significa que a cada um dos co-proprietários se


reconhece a plenitude dominial sobre um fragmento físico do bem, mas que todos
os comunheiros têm direitos qualitativamente iguais sobre a totalidade dele,
limitados contudo na proporção quantitativa em que concorre com os outros co-
proprietários na titularidade sobre o conjunto.”

3.1. Classificações

3.1.1. Quanto à origem

Quanto à origem, o condomínio pode ser voluntário ou convencional, que é o


pactuado, em que as partes escolhem erigir um condomínio; eventual, incidente ou de fato
(condomínio fortuito), que é o que não resulta de um concurso de vontades, mas da
casuística inevitável – como a sucessão hereditária, os que ocorrem em direitos de
vizinhança, ou em qualquer outra circunstância em que o estado de comunhão provém de
um fato não decorrente da manifestação volitiva dos comunheiros; e pode ser ainda
condomínio forçado, necessário ou legal, que nasce de imposição da ordem jurídica,
classificação que se sobrepõe e confunde com a classificação anterior, condomínio de fato -
como o são as questões de vizinhança, como as paredes-meias, cercas, muros e valas.

3.1.2. Quanto ao tempo

Quanto ao tempo, o condomínio é permanente ou transitório. Nos permanentes –


como as paredes-meias –, enquanto a coisa subsistir, e houver donos diferentes dos imóveis
lindeiros, haverá condomínio. Nos transitórios, a situação se desfará em algum momento,
tal como quando há o condomínio voluntário.

3.1.3. Quanto à forma

Quanto à forma, o condomínio pode ser pro indiviso ou pro diviso. O condomínio
pro indiviso ocorre quando a coisa é indivisível, não podendo delimitar parcela desta que
incumbe a cada um dos condôminos. No pro diviso, a coisa pode ser facilmente fracionada.
Esta classificação é bastante relevante, eis que quando da extinção do condomínio há
grande diferença: se o condomínio é pro diviso, basta fracionar a coisa e cada um terá sua
parcela, na proporção de sua cota; se é pro indiviso, a única solução para dissolvê-lo é

Michell Nunes Midlej Maron 114


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

alienar a coisa, quer entre os próprios condôminos (que têm preferência), quer para
terceiros. A extinção do condomínio, diga-se, contempla direitos potestativos aos
condôminos: se a coisa pode ser fracionada, cada condômino tem direito a exigir sua
parcela, e não o produto de alienação, se não quiser; se a coisa não pode ser dividida, a
venda se impõe, mas se entrega preempção aos condôminos na aquisição das cotas dos
demais. Sobre o tema, veja os artigos 1.320 e 1.322 do CC:

“Art. 1.320. A todo tempo será lícito ao condômino exigir a divisão da coisa
comum, respondendo o quinhão de cada um pela sua parte nas despesas da
divisão.”

“Art. 1.322. Quando a coisa for indivisível, e os consortes não quiserem adjudicá-
la a um só, indenizando os outros, será vendida e repartido o apurado, preferindo-
se, na venda, em condições iguais de oferta, o condômino ao estranho, e entre os
condôminos aquele que tiver na coisa benfeitorias mais valiosas, e, não as
havendo, o de quinhão maior.”

Veja agora o REsp. 791.147:

“REsp 791147 / SP. DJ 26/03/2007 p. 238. RECURSO ESPECIAL.


CONDOMÍNIO. BEM DIVISÍVEL. ALIENAÇÃO JUDICIAL COMPULSÓRIA,
REQUERIDA POR APENAS UM DOS CONDÔMINOS, QUE NÃO DETÉM O
MAIOR QUINHÃO. IMPROCEDÊNCIA.
- Em sendo divisível a coisa comum, não pode o condômino exigir sua alienação.
No caso, o condomínio resolve-se com a divisão (Código Beviláqua, Art. 629).
- Ofende o Art. 629 do CC/1916 a decisão que - em reconhecendo ser divisível o
bem sob condomínio - determina sua venda.
‘Em sendo divisível a coisa comum, não pode o condômino exigir sua alienação.
No caso, o condomínio resolve-se com a divisão (Código Beviláqua, art. 629).
Ofende o art. 629 do CC /1016 (art. 1320 do CC/2002 ) a decisão que – em
reconhecimento ser divisível o bem sob domínio – determina sua venda’ (STJ – 3ª
T., REsp 791.147, Min. Gomes de Barros J. 27-2.07, DJU 26.3.07).”

3.2. Poderes e deveres dos condôminos

Cada condômino ou consorte pode usar livremente a coisa, conforme seu destino,
utilizando-a de tal forma que exerça todos os direitos compatíveis com o estado de
indivisão. Não se lhe permite, evidentemente, excluir os demais condôminos, pois que a
coisa não é de um, mas de todos. Veja o E.D. no REsp. 622.472:

“EREsp 622472 / RJ. EMBARGOS DE DIVERGENCIA NO RECURSO


ESPECIAL. DJ 07/11/2005 p. 73.
PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DAS COISAS. CONDOMÍNIO.
PAGAMENTO DE ALUGUERES. FRUTOS. EXERCÍCIO DO DIREITO.
CONCOMITÂNCIA. IMPEDIMENTO DO USUFRUTO. RESISTÊNCIA REAL.
COBRANÇA.
1. Ação cujo objeto mediato revela pretensão de condômina-herdeira ao pagamento
de alugueres em razão do uso exclusivo de bem imóvel recebido como herança
inviabilizando o uso comum por outros condôminos.
2. O artigo 1.319 do novo Código Civil, correspondente ao artigo 627 do Código
Bevilácqua, assim dispõe: "Cada condômino responde aos outros pelos frutos que
percebeu da coisa e pelo dano que lhe causou".

Michell Nunes Midlej Maron 115


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

3. A exegese do referido dispositivo pressupõe relação negocial onerosa entre um


dos condôminos e o terceiro, posto cediço em doutrina que "o não uso da coisa
comum por alguns dos condôminos não lhe dá o direito a aluguer, ou prestação,
que fique em lugar de uso que teria podido exercer, salvo negócio jurídico entre os
condôminos" (Pontes de Miranda, in "Tratado de Direito Privado", Borsoi, Tomo
XII, 1955, pág. 41).
4. O uso exclusivo do condômino que enseja a pretensão de percebimento de
aluguéis pressupõe oposição daquele titular em relação aos demais comunheiros,
os quais, na forma da lei, podem postular a alienação judicial do bem em face da
indivisão incompatível com a coabitação.
5. É que o condômino que habita o imóvel comum engendra exercício regular de
direito somente encetando "abuso de direito" se impede os demais do manejo de
qualquer dos poderes inerentes ao domínio. 6. Isto por que, o instituto do
Condomínio assenta-se na idéia de comunidade de direitos e tem como primado a
possibilidade de todos os condôminos exercerem a um só tempo os atributos da
propriedade, desde que de forma compatível com a situação de pluralidade de
proprietários.
7. In casu, no exercício da ampla cognição a Turma que lavrou o acórdão
embargado assentou que: "na hipótese dos autos, uma única moradora, em imóvel
de 130 m² não impede, pela sua simples presença no local, que outro condômino
usufrua do bem e, como não há notícia de possível resistência a esta utilização,
impõe-se a conclusão de que a utilização exclusiva, neste período, se deu por total
desinteresse dos demais interessados, situação que não pode ensejar o pagamento
de valores a título de aluguel da fração ideal."
8. Subjaz, assim, consectária com a justiça da decisão, que o condômino deve
comprovar de plano qual o cerceamento ou resistência ao seu direito à fruição da
quota parte que lhe é inerente do bem imóvel, a fim de justificar a cobrança de
frutos em razão de aluguel, o que inocorreu in casu.
9. Embargos de divergência desacolhidos.
‘Para que um condômino possa exigir do outro contraprestação em razão do uso da
coisa comum é preciso que haja resistência a esse uso e que ele impeça a fruição
do bem por outrem, não sendo nada devido quando a utilização exclusiva acontece
por simples desinteresse’ (STJ-RT 844/201: Corte especial, Ed no REsp 622.472)”

Cada condômino ou comunheiro tem a liberdade de alhear a sua parte ou gravá-las,


respeitando o direito preferencial reconhecido ao demais condôminos para a sua aquisição
tanto por tanto. Não lhe é lícito, todavia, alhear ou gravar a coisa comum, sem o
consentimento dos demais.
Cada condômino ou comproprietário tem a faculdade de reivindicar de terceiro a
coisa comum, independentemente da anuência dos demais.
Na sua qualidade de compossuidor, qualquer condômino pode defender a sua posse
contra outrem.
O dever de concorrer para as despesas comuns, na proporção das respectivas partes,
seja para a sua conservação, seja para se pôr termo à indivisão.
Cada consorte responde aos demais pelos frutos que perceber da coisa comum, e
bem assim pelos danos que lhe cause.
Nenhum dos co-proprietários poderá alterar a coisa comum sem o consentimento
dos demais.
A nenhum condômino é lícito, sem prévio consenso dos outros dar posse, uso ou
gozo da propriedade a estranho.

3.3. Administração do condomínio

Michell Nunes Midlej Maron 116


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

A administração do condomínio se dá sempre por maioria, calculada pelos


quinhões. As deliberações são sempre tomadas por maioria absoluta do quinhão, e não por
maioria de cabeças.
Os artigos 1.323 a 1.326 do CC tratam do tema:

“Art. 1.323. Deliberando a maioria sobre a administração da coisa comum,


escolherá o administrador, que poderá ser estranho ao condomínio; resolvendo
alugá-la, preferir-se-á, em condições iguais, o condômino ao que não o é.”

“Art. 1.324. O condômino que administrar sem oposição dos outros presume-se
representante comum.”

“Art. 1.325. A maioria será calculada pelo valor dos quinhões.


§ 1° As deliberações serão obrigatórias, sendo tomadas por maioria absoluta.
§ 2° Não sendo possível alcançar maioria absoluta, decidirá o juiz, a requerimento
de qualquer condômino, ouvidos os outros.
§ 3° Havendo dúvida quanto ao valor do quinhão, será este avaliado
judicialmente.”

“Art. 1.326. Os frutos da coisa comum, não havendo em contrário estipulação ou


disposição de última vontade, serão partilhados na proporção dos quinhões.”

3.4. Condomínio de fato

Existem duas espécies legais ou típicas de condomínio: o geral ou tradicional,


disciplinado pelo Código Civil nos artigos 1.314 a 1.330, pontualmente abordados; e o
especial ou relativo, também chamado de horizontal e agora edilício, introduzido pela Lei
4.591/64, e atualmente regulado também pelo CC nos artigos 1.331 a 1358, que também
serão vistos pontualmente. Na primeira modalidade, toda a coisa fica sujeita ao regime
comum, sem se cogitar da propriedade individual, e sua extensão incide sobre a
integralidade da coisa, e não apenas em parte desta. Já na segunda espécie, além das partes
comuns relativas a todos os proprietários, existem as partes autônomas de propriedade de
modo singular ou coletiva.
O condomínio de fato, por seu turno, não tem tipificação legal. É uma situação de
fato qualquer que, naturalmente, gera uma compropriedade sobre uma coisa. Não há
previsão legal das situações do condomínio de fato, e isto é a nota distintiva desta
classificação.
O condomínio de fato consiste nos aglomerados de proprietários que se reúnem
informalmente comportando-se como condôminos, sem que d direito haja uma efetiva
situação condominial.
O condomínio de fato possui uma natureza jurídica híbrida e dúplice
concomitantemente. E híbrida porque possui ao mesmo tempo característica do direito
obrigacional e do direito real.
Ao sofrer influência do princípio da autonomia privada, os proprietários de lotes
constituem uma associação com o objetivo de atuarem de forma condominial no que se
refere aos seus interesses privados com incidência sobre um bem público especificamente
de uso comum do povo.

Michell Nunes Midlej Maron 117


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

3.5. Loteamento fechado

Semelhante ao condomínio, e ainda sob a égide legal, há a figura do loteamento


fechado, instituído pela Lei 6.766/79, que dispõe sobre as vias de circulação e os
logradouros públicos, cuja utilização resta assegurada apenas aos proprietários e aos
moradores, mediante permissão ou concessão de uso.
A estrutura do loteamento fechado é muito semelhante à do condomínio horizontal.
Ocorre, porém, uma diferença entre ambos os institutos no que diz respeito aos espaços
livres de uso comum de todos. Verifica-se que as suas naturezas se distinguem, por ser a
propriedade horizontal um verdadeiro condomínio neste aspecto, pois os titulares possuem
em comum o domínio destes espaços, enquanto que no loteamento fechado, estes espaços
livres pertencem ao município, constituindo-se então numa comunhão de uso.
No loteamento clássico, não existe condomínio: uma vez loteados os terrenos, cada
proprietário é dono apenas de seu lote, e as áreas de passagem, como as vias e as praças
públicas, não são pertencentes aos donos dos lotes – são públicas, como dito. No
loteamento fechado, há a mesma divisão de lotes, mas há um fechamento, um cercamento
do terreno loteado, com autorização do Poder Público, em que a situação continua sendo de
propriedades autônomas por cada lote, mas a utilização das áreas comuns (vias, praças),
que continuam públicas, passa a ser dos proprietários dos lotes. As ruas e praças não
passam a ser propriedade dos donos dos lotes, pois são bens públicos, mas o uso das áreas
fica limitado, tendo o Poder Público, em contrapartida por esta permissão de fechamento, a
expressa desincumbência pelos serviços públicos atinentes àquelas vias comuns, que ficam
a cargo dos condôminos (asfalto, iluminação, limpeza, a manutenção como um todo).
No condomínio urbanístico, outra figura, há um condomínio clássico, em que há
unidades autônomas de propriedade individual, e condomínio sobre as áreas comuns (as
vias internas, praças, etc). Trata-se de um condomínio similar ao edilício, que será abordado
em tema próprio. Veja um esquema gráfico das diferenças entre estes institutos:

Condomínio Urbanístico Loteamento Fechado


Formado pela subdivisão em unidades autônomas (o Formado pela subdivisão em lotes (o proprietário tem
proprietário tem direito a uma fração do todo). direito ao seu lote).

Área interna para recreação e verde e uma área pública A área para equipamentos comunitários e áreas verdes
para implantação de equipamentos comunitários e áreas pode ser interna ou externa ao loteamento, conforme lei
verdes, externas ao condomínio. municipal e/ou concessão de uso.

As vias públicas (ruas internas) e áreas de verdes ou de


As áreas internas (vias públicas, áreas de recreação) são
equipamentos pertencem ao Município e seu uso e
particulares, devendo pagar inclusive IPTU.
manutenção é concedido à associação de moradores.
Os loteamentos podem ser revertidos e integrados ao
Os condomínios são definitivos, são irreversíveis.
sistema urbano.

Há quem diga que o loteamento fechado é inconstitucional, porque está afetando


bens públicos de uso comum ao uso particular dos donos dos lotes. E há ainda a alegação
de inconstitucionalidade formal da Lei 6.766/79, porque é lei federal tratando de matéria de
competência municipal. A questão é bastante controvertida.
O loteamento fechado de fato consiste na exata formatação do loteamento fechado,
só que sem a autorização do Poder Público. Há o cercamento, o fechamento, sem que o
Poder Público tenha permitido. É o que se chama de loteamento irregular.

Michell Nunes Midlej Maron 118


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Casos Concretos

Questão 1

Paulo, sob a alegação de que teve diminuída a ventilação e luminosidade em sua


casa, além de completo devassamento, em razão da construção de um segundo pavimento
na casa do vizinho, propõe ação de nunciação de obra nova em face de Roberto. Informa o
autor que o réu não possui licença da autoridade municipal para levantar a construção e
que a janela, que teve prejudicada a ventilação, foi construída com inobservância da

Michell Nunes Midlej Maron 119


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

distância legalmente exigida, mas com anuência do réu. Em contestação, o réu sustenta
que a falta de autorização pela autoridade municipal é questão tão somente de direito
público e que não guarda qualquer relação de causalidade com o prejuízo que o autor
alega ter sofrido e, ainda, que efetivamente anuiu com a construção irregular da janela,
mas que isso não pode impedí-lo de edificar regularmente nos limites de sua propriedade.
Decida a questão.

Resposta à Questão 1

Não pode o vizinho inerte exigir o desfazimento da obra, se deixou passar o prazo
de seu direito (ano e dia). Poderá, porém, edificar dentro dos limites legais, exercendo seu
direito de construir nos limites de sua propriedade, conforme a lei.
A respeito, veja a Apelação Cível 2001.001.14634, do TJ/RJ:

“Processo: 0091340-57.1999.8.19.0001 (2001.001.14364). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. FERNANDO CABRAL - Julgamento: 22/11/2001 -
SEGUNDA CAMARA CIVEL.
NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. VIZINHANÇA. OBRAS DE ACRÉSCIMO.
DANOS CAUSADOS A PROPRIEDADE VIZINHA. DIREITO DE
VISIBILIDADE, CLARIDADE E VENTILAÇÃO. CONSTRUÇÃO SEM
LICENÇA. IRRELEVÂNCIA. DESFAZIMENTO DE OBRA.
IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. Ação de nunciação de obra nova. Construção
de um segundo pavimento no prédio vizinho. Interferência que provoca a redução
da ventilação e iluminação do prédio dos autores. Obra realizada sem autorização
da Municipalidade. Irrelevância. Edificação realizada nos limites da propriedade
dos demandados. Inconvenientes causados pela abertura de janelas a menos de
metro e meio do prédio contíguo. Direito do proprietário de construir em seu
terreno e aumentar as dimensões de seu imóvel. A abertura de janelas com
inobservância da distância legalmente prevista, sem oposição do proprietário
vizinho, manifestada no prazo de ano e dia, fecha-lhe as portas para exigir o
desfazimento da obra, mas não o inibe de edificar nos limites de sua propriedade.
Uso normal e necessário da coisa própria. Recurso ao qual se dá provimento, para
julgar improcedente o pedido.”

Questão 2

Associação dos Amigos do Residencial Solar ajuíza ação de cobrança em face de


José da Silva, em que busca o recebimento de contribuições relativas ao rateio de despesas
comuns correspondentes a prestação de serviços de vigilância, limpeza e jardinagem do
loteamento Solar. Aduz em síntese que o réu é proprietário do lote 115 e usufrui de
inúmeros benefícios, mas, a partir de julho de 2007, deixou de adimplir com a sua parte,
embora o tenha feito até então. Em sede de contestação, afirma o réu que adquiriu o
referido lote no final de 2006, que possui na sua residência serviço de vigilância através de
monitoramento prestado por empresa particular e que, quanto ao lixo produzido por sua
unidade, uma parte é destinada a reciclagem e o restante é pessoalmente entregue no
depósito. Por fim, assevera que jamais se associou à entidade autora. Quanto ao serviço
de jardinagem prestado, não houve impugnação específica. Considerando os fatos
devidamente provados, decida a questão com base no posicionamento atual do Superior
Tribunal de Justiça.

Michell Nunes Midlej Maron 120


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Resposta à Questão 2

O STJ tem posicionamento bastante oscilante sobre o tema. O TJ/RJ, por seu turno,
tem sido bastante coerente, adotando a posição firmada no enunciado 79 da sua súmula:

“Súmula 79, TJ/RJ: Em respeito ao princípio que veda o enriquecimento sem


causa, as associações de moradores podem exigir dos não associados, em
igualdade de condições com os associados, que concorram para o custeio dos
serviços por elas efetivamente prestados e que sejam do interesse comum dos
moradores da localidade.”

A discussão consiste na ponderação e identificação da prevalência de um de dois


princípios: o da livre associação e o do não enriquecimento sem causa. Quem defende a
livre associação, diz que se a pessoa não aderiu voluntariamente à associação, não pode ser
imputada pelos ônus por ela geridos; quem defende a pioridade ao não enriquecimento sem
causa, diz que não pode o não associado valer-se dos bônus inevitáveis de sua situação, sem
arcar com o rateio dos ônus. Vê-se que o TJ/RJ opta pela prevalência deste último, mas o
STJ é dividido.
A respeito, veja os julgados abaixo:

“CIVIL. AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL. LOTEAMENTO ABERTO OU


FECHADO. CONDOMINIO ATÍPICO. SOCIEDADE PRESTADORA DE
SERVIÇOS. DESPESAS. OBRIGATORIEDADE DE PAGAMENTO.
Proprietário de lote integrante de loteamento aberto ou fechado, sem condomínio
formalmente instituído, cujos moradores constituíram sociedade para prestação de
serviços de conservação, limpeza e manutenção, deve contribuir com o valor
correspondente ao rateio das despesas daí decorrentes, pois não se afigura justo
nem jurídico que se beneficie dos serviços prestados e das benfeitorias realizadas
sem a devida contraprestação. Precedentes. AgRg no Resp 490419/SP; Relatora
Ministra NANCY ANDRIGHI; Órgão Julgador T3 – Terceira Turma; Data do
Julgamento: 10/06/2003; Data de Publicação / Fonte: DJ 30.06.2003 p. 248.”

“CIVIL. LOTEAMENTO. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. COBRANÇA DE


CONTRIBUIÇÃO POR SERVIÇOS PRESTADOS.
Proprietário de lote não está obrigado a concorrer para o custeio de serviços
prestados por associação de moradores, se não os solicitou. Recurso especial
conhecido e provido. Resp 444931 / SP; Relator Ministro ARI PARGENDLER;
Órgão Julgador T3 – Terceira Turma; Data do Julgamento: 12/08/2003; Data da
Publicação / Fonte: DJ 06.10.2003 p. 269; RJADCOAS vol. 52 p. 68.”

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. ASSOCIAÇÃO DE


MORADORES. TAXAS DE MANUTENÇÃO DO LOTEAMENTO.
IMPOSIÇÃO A QUEM NÃO É ASSOCIADO. IMPOSSIBILIDADE.
As taxas de manutenção criadas por associação de moradores, não podem ser
impostas a proprietário de imóvel que não é associado, nem aderiu ao ato que
instituiu o encargo. EREsp 444931/SP; Relator Ministro FERNANDO
GONÇALVES; Relator p/ Acórdão; Ministro HUMBERTO GOMES DE
BARROS; Órgãos julgador S2 – SEGUNDA SEÇÃO; Data do Julgamento:
26/10/2005; Data da publicação / Fonte: DJ 01.02.2006 p. 427; RDDP vol. 37 p.
140.”

“CIVIL E PROCESSUAL. LOTEAMENTO FECHADO. SERVIÇOS DE


VIGILÂNCIA, LAZER, ADMINISTRAÇÃO E CONSERVAÇÃO PRESTADOS

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

AO PROPRIETÁRIO DOS IMÓVEIS. COMPRA DO LOTE E ADESÃO AOS


ESTATUTOS. RECUSA AO PAGAMENTO DAS DESPESAS COMUNS. AÇÃO
DE COBRANÇA. PROCEDÊNCIA.
I. Procede a ação de cobrança movida por associação de moradores instituída em
loteamento fechado contra titular de lotes que após a aquisição e a adesão aos
estatutos, deixa de adimplir com o pagamento das despesas comuns relativas a
serviços a ele disponibilizados ou por ele fruídos. II. Precedentes do STJ. III.
Recurso especial conhecido e provido. (REsp 443305/SP, Rel. Ministro ALDIR
PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 07/02/2008, DJe
10/03/2008).”

O julgado abaixo é bastante interessante, pois reconhece a polêmica, e entende a


necessidade de análise da casuística (mas não decide a questão, por conta da
impossibilidade de avaliar fatos e provas no REsp.):

“REsp 302538 / SP. RECURSO ESPECIAL 2001/0010829-6. Relator Ministro


LUIS FELIPE SALOMÃO - QUARTA TURMA - 05/08/2008. LOTEAMENTO.
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES QUE COBRA CONTRIBUIÇÃO
COMPULSÓRIA POR SERVIÇOS PRESTADOS. ALEGAÇÃO DE QUE A
OBRIGAÇÃO FOI ASSUMIDA QUANDO DA AQUISIÇÃO DO TERRENO.
RECURSO ESPECIAL COM BASE NA ALÍNEA “C”. NÃO-CUMPRIMENTO
DAS EXIGÊNCIAS PREVISTAS NOS ARTS. 541, PARÁGRAFO ÚNICO, DO
CPC, E 255, § 2o, DO RISTJ. DISSONÂNCIA INTERPRETATIVA NÃO
DEMONSTRADA. NÃO OBSTANTE A POLÊMICA EM TORNO DA
MATÉRIA, COM JURISPRUDÊNCIA OSCILANTE DESTA CORTE, A
POSIÇÃO MAIS CORRETA É A QUE RECOMENDA O EXAME DO CASO
CONCRETO. PARA ENSEJAR A COBRANÇA DA COTA-PARTE DAS
DESPESAS COMUNS, NA HIPÓTESE DE CONDOMÍNIO DE FATO, MISTER
A COMPROVAÇÃO DE QUE OS SERVIÇOS SÃO PRESTADOS E O RÉU
DELES SE BENEFICIA. NO CASO, O EXAME DESSA MATÉRIA SIGNIFICA
REVOLVER OS SUBSTRATOS FÁTICOS DA CAUSA DECIDIDA,
INCIDINDO, PORTANTO, AS SÚMULAS 5 E 7/STJ. RECURSO ESPECIAL
NÃO CONHECIDO.”

“ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. CONDOMÍNIO DE FATO. COBRANÇA


DE DESPESAS COMUNS. PRINCÍPIO DO NÃO ENRIQUECIMENTO SEM
CAUSA.
Em respeito ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, as associações de
moradores podem exigir dos não associados, em igualdade de condições com os
associados, que concorram para o custeio dos serviços por elas efetivamente
prestados e ou sejam do interesse comum dos moradores da localidade.
Referência: Uniformização de Jurisprudência nº 2004.018.00012 na Apelação
Cível nº 2004.001.13327 – Julgamento em 04/04/2005 – Votação: Por maioria –
relator: Des. Sérgio Cavalieri Filho – Registro de Acórdão em 15/07/2005 – fls.
6469/6487.”

Pode-se dizer, portanto, que a posição atual do STJ é a de que a matéria é dada aos
fatos, porque se há enriquecimento sem causa ou não é questão de fato, imperscrutável em
recurso especial.

Questão 3

Michell Nunes Midlej Maron 122


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Paulo e Pedro ajuizaram ação de extinção de condomínio voluntário celebrado


entre as partes. Sustentam que construíram um prédio em condomínio com Marcos e
Matheus na Rua X, composto de 3 andares, quando ficaram fixados os quinhões de cada
um, mas as partes se desentenderam, razão pela qual pleiteiam a extinção do condomínio,
através da alienação do imóvel, já que indivisível a coisa. Em contestação, os réus
pretendem a criação de um condomínio edilício, ou, caso o magistrado prefira, a
preservação do condomínio, subdvidindo-o em áreas delimitadas e exclusivas. Decida
fundamentadamente a questão.

Resposta à Questão 3

A conversão é inadmissível. A alienação do bem, e entrega das parcelas resultantes a


cada condômino, na proporção de suas cotas, é a solução para a extinção do condomínio
pro indiviso.
A respeito, veja a Ação Rescisória 2003.006.00103, do TJ/RJ:

“Processo: 0015607-49.2003.8.19.0000 (2003.006.00103). 1ª Ementa - ACAO


RESCISORIA. DES. SYLVIO CAPANEMA - Julgamento: 16/08/2004 - ORGAO
ESPECIAL. ACAO RESCISORIA. ALIENACAO DE QUINHAO EM COISA
COMUM. VIOLACAO DE NORMA LEGAL.
Ação rescisória. Extinção de condomínio. Alienação do imóvel. Impossibilidade de
divisão. Erro de fato ocorrido. Violação de texto expresso de lei. Sendo o imóvel
indivisível, e em se tratando de condomínio voluntário, é direito potestativo do
condômino extinguí-lo, pela alienação da coisa comum, não tendo amparo legal
convertê-lo em edilício, à revelia de alguns condôminos. Demonstrado o erro de
fato e a violação do texto expresso de lei, impõe-se a rescisão do acórdão, e, no
juízo rescisório, que se profira outra decisão, para se negar provimento à apelação,
determinando-se que se proceda a alienação judicial do imóvel. Procedência do
pedido.”

Tema XIII

Condomínio edilício. Natureza jurídica. Modos de instituição. Convenção de condomínio. Órgãos.


Atribuições do síndico. Regramento das garagens. Questões polêmicas a partir da vigência do Código Civil.
Cota Condominial. Incorporação mobiliária.

Notas de Aula19

1. Condomínio edilício
19
Aula ministrada pelo professor Sylvio Capanema de Souza, em 4/8/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 123


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O condomínio, gênero, é uma exceção ao princípio da exclusividade da


propriedade: a regra é que se uma coisa pertence a um, não pode pertencer a outro, ao
mesmo tempo. O domínio de uma pessoa exclui o de outra. A instituição do condomínio,
portanto, é exceção a esta regra – condomínio significa domínio conjunto.
O CC de 2002 disciplina três modalidades de condomínio: o legal, ou necessário,
constituído por lei; o voluntário, eleito por pacto; e o edilício, que será tema de estudo
amiúde neste tópico.
O condomínio voluntário, pelo ensejo, é aquele em que toda a coisa pertence aos
condôminos, sem chance de parte da coisa ser exclusiva de um só dos condôminos, e que,
por ser divisível, gera direito potestativo para qualquer condômino de extinguí-lo,
retirando-se do condomínio quando quiser, alienando sua fração com preferência aos
demais condôminos, sob pena de anulação da alienação feita a terceiros com preterição dos
condôminos (o que se chama de direito real de preferência).
Há duas ações para extinguir o condomínio voluntário, quando não há acordo entre
os condôminos: a ação de divisão, quando a coisa comum pode ser fisicamente dividida
entre os condôminos, passando cada um a ser proprietário exclusivo da parte que lhe
couber; e a ação de alienação de coisa comum, que se presta a dissolver o condomínio
sobre coisa indivisível, quando a única solução é a alienação da coisa, repartindo-se o
produto da venda entre os condôminos, na proporção das cotas de cada um. Ambas as ações
têm rito especial traçado no CPC.
Passando agora ao efetivo tema do estudo, o condomínio edilício, tem-se que a
principal característica deste condomínio, que o distingue mormente do condomínio
voluntário, é que no condomínio edilício é obrigatória a presença de coisas que sejam de
propriedade comum, e coisas de propriedade exclusiva dos condôminos. Há uma simbiose,
uma interpenetração de duas propriedades distintas: há a propriedade comum de todos os
condôminos, tal qual no condomínio voluntário; e há partes que pertencem exclusivamente
a cada condômino.
O condomínio edilício veio a campo quando as cidades começaram a crescer
demais, impondo a verticalização dos imóveis para contemplar a necessidade de moradia,
assim como a supervalorização dos imóveis. Por isso, a idéia geral de condomínio edilício
realmente remonta aos edifícios de apartamentos, mas é perfeitamente possível um
condomínio edilício somente de casas, bastando que estejam preenchidas suas
características: um terreno com áreas comuns – ruas, parques, praças – e as partes
exclusivas – as casas. Uma vila em que haja casas exclusivas, mas a área comum não seja
de propriedade de todos – as ruas internas são públicas, por exemplo –, contudo, não é um
condomínio edilício. O que definirá se é ou não condomínio edilício é a presença de áreas
de propriedade comum e áreas exclusivas, de fato.
O CC criou esta expressão, “edilício”, bastante infeliz, para representar este tipo de
condomínio. Quando surgiu a Lei de Condomínios, Lei 4.591/64, não era este o nome,
sendo comumente chamado de condomínio em planos horizontais, porque as propriedades
se dividiam pelas lajes, uma se sobrepondo à outra em planos horizontais, como em um
edifício comum – ou simplesmente condomínio especial, para se diferenciar do voluntário.
Diz-se que o nome é derivado dos edis, funcionários públicos romanos incumbidos do
ordenamento das coisas. Enfim, foi uma má escolha de nomenclatura.

Michell Nunes Midlej Maron 124


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

A principal característica do condomínio edilício, além da mencionada hibridez


entre coisas comuns e coisas exclusivas – unidades autônomas e partes comuns,
respectivamente. Outro aspecto peculiar é a indivisibilidade do condomínio edilício, oposta
à divisibilidade do voluntário, que é naturalmente divisível, quer a coisa seja fracionável,
quer não. Por isso, é claro que o proprietário de um apartamento jamais poderá pretender
alienar o terreno, parte comum, de forma a extinguir o condomínio, como poderia fazer
caso fosse condomínio voluntário. Nem mesmo a maioria absoluta reunida pode pretender
esta dissolução – algo que só se vê possível em havendo unanimidade.
Outro aspecto distintivo é a absoluta liberdade que o proprietário tem sobre a coisa
exclusiva: pode dispor de sua unidade autônoma como bem quiser e entender, não havendo
que ofertar a outros condôminos em preferência, sequer precisando avisá-los da alienação
que pretende operar.
É também uma característica do condomínio edilício as formalidades e solenidades
que o revestem: o condomínio é extremamente solene, exigindo-se uma convenção, uma
assembléia anual ao menos, a eleição formal de um síndico, a prestação de contas da
administração, etc. O condomínio voluntário, ao contrário, é totalmente informal.
Os conflitos entre os condôminos, no modelo edilício, são freqüentes. Isto porque a
sua dinâmica leva a que diversas pessoas com personalidades altamente diferentes
coabitem, coexistam, e respeitem direitos alheios no cotidiano.

1.1. Natureza jurídica

A identificação da natureza jurídica do condomínio edilício é bastante discutida,


pela seguinte questão que se coloca: tem o condomínio personalidade jurídica ou não?
O melhor entendimento é o que sustenta a inexistência de personalidade jurídica do
condomínio edilício, e por isso sua natureza jurídica é de ente despersonalizado, ou seja,
pessoa formal, mas não pessoa jurídica, muito menos natural. Assim sendo, o condomínio
edilício jamais pode ser titular de direitos, tampouco de deveres. Os titulares dos direitos
são os condôminos, e não o próprio condomínio20.
Esta conclusão, interpretação autêntica (pois é a de Caio Mário, relator da Lei de
Condomínios), defende que falta ao condomínio o principal substrato de uma pessoa
jurídica, a argamassa que a faz surgir, qual seja, a affectio societatis. Não há esta intenção
em formar associação em um condomínio: esta associação deriva dos fatos.
Mesmo não sendo pessoa jurídica, o condomínio é pessoa formal. É por isso que
pratica atos em nome próprio, agindo em substituição aos condôminos, no interesse destes.
A lei cria esta capacidade, a fim de permitir a manifestação de um só ente, mesmo que
despersonalizado, em lugar de todos os condôminos, quer para realizar negócios jurídicos,
quer para atuar em juízo. Para tanto, o síndico assume a posição de representante legal do
condomínio, dos condôminos, manifestando a vontade de todos. O condomínio edilício tem
legitimidade ad causam e ad processum, e quem por ele assina é o síndico.
Mas há quem defenda que o condomínio edilício deve ter reconhecida
personalidade jurídica, porque apresenta todas as características que seriam suficientes para
configurar tal personalidade. Esta corrente ganha força no enunciado 246, alterador do 90
do CJF, que se refere à interpretação do artigo 1.331 do CC:

20
O mesmo questionamento, e a mesma conclusão, se repete em relação ao espólio, à massa falida, aos
consórcios e às sociedades de fato.

Michell Nunes Midlej Maron 125


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Enunciado 246, CJF – Art. 1.331: Fica alterado o Enunciado n. 90, com supressão
da parte final: “nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar
interesse”. Prevalece o texto: “Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao
condomínio edilício”.”

“Enunciado 90, CJF – Art. 1.331: Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao
condomínio edilício nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar
interesse. (Alterado pelo En. 246 da III Jornada).”

“Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e
partes que são propriedade comum dos condôminos.
§ 1° As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos,
escritórios, salas, lojas, sobrelojas ou abrigos para veículos, com as respectivas
frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade
exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários.
§ 2° O solo, a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribuição de água,
esgoto, gás e eletricidade, a calefação e refrigeração centrais, e as demais partes
comuns, inclusive o acesso ao logradouro público, são utilizados em comum pelos
condôminos, não podendo ser alienados separadamente, ou divididos.
§ 3° A cada unidade imobiliária caberá, como parte inseparável, uma fração ideal
no solo e nas outras partes comuns, que será identificada em forma decimal ou
ordinária no instrumento de instituição do condomínio. (Redação dada pela Lei nº
10.931, de 2004)
§ 4° Nenhuma unidade imobiliária pode ser privada do acesso ao logradouro
público.
§ 5° O terraço de cobertura é parte comum, salvo disposição contrária da escritura
de constituição do condomínio.”

Outro argumento que reforça esta segunda corrente, que ainda é minoritária, é o
artigo 63 da Lei 4.591/64, que diz que os condôminos poderão leiloar extrajudicialmente a
fração ideal daquele condômino inadimplente no curso da obra, e que, no § 3°, dá indício
de que o próprio condomínio poderá adjudicar a fração em seu nome, o que demonstraria
personalidade jurídica:

“Art. 63. É lícito estipular no contrato, sem prejuízo de outras sanções, que a falta
de pagamento, por parte do adquirente ou contratante, de 3 prestações do preço da
construção, quer estabelecidas inicialmente, quer alteradas ou criadas
posteriormente, quando fôr o caso, depois de prévia notificação com o prazo de 10
dias para purgação da mora, implique na rescisão do contrato, conforme nêle se
fixar, ou que, na falta de pagamento, pelo débito respondem os direitos à respectiva
fração ideal de terreno e à parte construída adicionada, na forma abaixo
estabelecida, se outra forma não fixar o contrato.
(...)
§ 3º No prazo de 24 horas após a realização do leilão final, o condomínio, por
decisão unânime de Assembléia-Geral em condições de igualdade com terceiros,
terá preferência na aquisição dos bens, caso em que serão adjudicados ao
condomínio.
(...)”

Caio Mario, redator desta lei, diz que a menção ao condomínio, ali, é um lapso do
texto, e que deve ser entendida a redação como se reportando aos condôminos, e não ao
condomínio: a adjudicação é feita aos condôminos.

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

1.2. Instituição do condomínio edilício

O condomínio pode surgir por ato inter vivos, ou por testamento, na forma do artigo
1.332 do CC:

“Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento,
registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além
do disposto em lei especial:
I - a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva,
estremadas uma das outras e das partes comuns;
II - a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao
terreno e partes comuns;
III - o fim a que as unidades se destinam.”

Os condôminos podem simplesmente se reunir, adquirir um terreno em conjunto e


contratar a construção do edifício, repartindo as unidades autônomas e áreas comuns,
frações ideais.
Por testamento, a hipótese é simples: alguém é proprietário exclusivo de um edifício
com todos os apartamentos, e, ao testar, deixa cada um a uma pessoa: está instalado o
condomínio edilício.
Também pode surgir o condomínio edilício através de um contrato de
incorporação, o que é até mais frequente, na prática. Este contrato é tipificado nesta Lei
4.591/64, segunda parte (pois a primeira parte, que disciplina o funcionamento do
condomínio edilício, foi revogada pelo CC, que tratou especialmente da matéria).
As frações ideais são um componente especial do condomínio edilício. É com elas
que se consegue, no campo das idéias, fracionar a parcela de propriedade que cada
condômino dispõe sobre a coisa comum – o terreno. Se há, suponha-se, um terreno com
uma edificação de dez unidades autônomas, o terreno é fracionado idealmente (no campo
ideológico, e não fisicamente) em dez partes, cabendo a cada unidade autônoma uma destas
frações.
A fração ideal é indissociável da unidade. É a “âncora” que prende esta unidade ao
terreno comum, não se podendo aliená-la de forma autônoma, tampouco alienar o
apartamento sem alienar conjuntamente a fração ideal. Pode-se, com tranqüilidade,
entender que a fração ideal é parte de uma propriedade maior, mista, composta por ela e
pela unidade autônoma.

1.3. Organização e administração do condomínio edilício

A Lei 4.591/64 criou e o CC manteve a forma de estabelecer o regramento sobre o


funcionamento e organização condominial: a convenção de condomínio. A convenção pode
ser tida pela “constituição privada” do condomínio, disciplinando direitos e deveres
individuais dos condôminos, organizando a administração do condomínio, estabelecendo as
competências dos órgãos da administração, as penalidades cabíveis, e tudo o mais.

Michell Nunes Midlej Maron 127


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

A convenção não institui o condomínio: o que o faz é o ato inter vivos ou mortis
causa, como se disse. A convenção constitui o funcionamento do condomínio, e não o
próprio condomínio.
A Lei de Incorporações, 4.591/64, determina que não se pode lançar um
empreendimento imobiliário, uma incorporação, sem se registrar no RGI respectivo o
memorial de incorporação. Este documento é composto por diversos elementos, como o
título de propriedade do terreno, e a minuta da futura convenção, do futuro condomínio. Por
ser minuta, é claro que pode haver alteração à vontade dos condôminos, quando da efetiva
entrega das unidades autônomas.
A convenção só se considera aprovada quando se reunir a aprovação de ao menos
dois terços dos condôminos. Por isso, pode acontecer de existirem condomínios edilícios
sem convenção, quer porque criados antes de ser esta uma exigência legal, quer porque
ainda não aprovada pelo quorum mínimo necessário.
Enquanto ainda sem convenção, o condomínio edilício se regerá pelas regras
mínimas traçadas no próprio CC. Havendo convenção, ela pode estabelecer regras diversas
daquelas do CC, prevalecendo sobre o Código, a não ser em determinadas hipóteses em que
as regras do CC são cogentes, não admitindo afastamento convencional. A regra geral,
portanto, é a da autonomia da vontade, mas há limites cogentes. Como exemplo de limite, a
multa moratória por atraso no pagamento da cota condominial: esta não pode ser fixada em
patamar superior ao do CC, que é fixado em dois por cento; ou a modificação da fachada,
que exige unanimidade na aprovação, sendo este quorum regra cogente do CC.
A convenção de condomínio é um conjunto de regras de comportamento, elaboradas
pelos próprios condôminos, para estabelecer limites entre eles, com a finalidade precípua de
proporcionar maior harmonia na convivência. Ela se torna lei entre os condôminos, e há
quatro correntes relevantes sobre a natureza jurídica deste documento.
A primeira corrente entende que a convenção é um estatuto, como os das
associações, corrente hoje ultrapassada porque o estatuto pressupõe a affectio societatis,
que como visto não se vislumbra no condomínio.
Segunda corrente entende que a convenção tem real natureza de um contrato,
formado pela plúrima manifestação de vontade dos condôminos. Esta corrente está
igualmente superada, porque a convenção registrada é oponível erga omnes, e não somente
entre os condôminos – quem vier a comprar, ou mesmo locar, unidade autônoma após o
registro da convenção, a ela se submete. Isto violaria frontalmente o princípio da
relatividade contratual, fosse contrato.
Terceira corrente entende que se trata de um ato normativo, ato institucional,
oponível a todos que porventura se utilizarem da coisa, do imóvel, superando muito a
natureza de mero contrato.
A quarta corrente, de Marco Aurélio Bezerra de Melo, entende que se trata de um
ato-regra: é um ato na primeira fase, quando é aprovado pelos condôminos e funciona
somente entre eles; e é uma regra de direito, quando da segunda fase, posterior ao registro,
porque se torna uma regra de conduta obrigatória para todos que da coisa se utilizarem.
Além da convenção, pode haver também o regulamento interno, documento que
disciplina questões menores, de somenos importância na convivência condominial. O
interesse em se criar este documento é que ele admite quorum bem menor para sua
alteração, o que não se admite na convenção – cujo quorum de alteração, de dois terços, é
cogente.

Michell Nunes Midlej Maron 128


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

1.3.1. Cláusulas limitativas do direito de propriedade inseridas na convenção

A convenção pode dispor sobre o modo de utilização das partes comuns,


restringindo-o a critério da maioria ou da unanimidade, a depender do caso. Poderá também
restringir o uso das partes exclusivas, das unidades autônomas?
A regra geral é que os condôminos têm ampla liberdade na fixação das cláusulas
restritivas do uso das áreas comuns e unidades autônomas. Se quiserem, podem, a
princípio, impor quaisquer limites à utilização das unidades autônomas, tais como: não ter
animais domésticos, não ter mais de tantas pessoas em seu domicílio, etc.
Ocorre que a validade destas cláusulas limitativas da propriedade é o tema mais
espinhoso no que se refere à convenção condominial. Isto porque, como dito, é possível
traçar limites na convenção, mas há também que se observar o princípio da disponibilidade
da propriedade privada. Há dois interesses confrontantes: o coletivo, e o individual de cada
condômino, e a solução para tal conflito é dada somente pela aplicação da razoabilidade.
O principal critério para saber se tais cláusulas limitativas são válidas ou não é
verificar se elas atentam contra direitos da personalidade, ou contra direitos
constitucionalmente garantidos. Será claramente inconstitucional, por exemplo, uma
cláusula que limite o número de pessoas a residir num apartamento, ou uma cláusula que
imponha que em um condomínio só poderão residir pessoas com nível superior, ou de
determinada raça – são claramente discriminatórias, inadmissíveis, atentatórias à dignidade
da pessoa humana.
A inadmissibilidade de animais é uma cláusula tolerável, a princípio, pois não
ofende direitos fundamentais. Há bastante jurisprudência neste sentido. Contudo, há
também jurisprudência que dispõe que a cláusula que veda animais de toda sorte não pode
ser admitida, porque é um direito individual que deve prevalecer, sendo mesmo, por vezes,
indispensável à manutenção da saúde mental da pessoa (como ocorre, por exemplo, com
pessoas idosas que são sozinhas). E há ainda uma terceira corrente que diz depender de qual
tipo de animal se está tratando: a vedação seria legítima para animais que oferecem risco
aos vizinhos, mas não para aqueles que são inofensivos, que não causam perturbação
alguma.
A vedação da entrada de funcionários dos condôminos em determinadas
dependências pode ser legítima ou não. Vedar a entrada de uma babá na área da piscina, por
exemplo, é indevido, se a babá está naquele local exercendo seu mister – cuidando da
criança. De outra forma, não é abusivo vedar a entrada da babá na área da piscina para dela
fruir, de forma alheia ao seu trabalho. A questão é casuística.
Vedar determinadas atividades, como determinados comércios, é também, a
princípio, admissível. Nada impede, por exemplo, que em um prédio se vede a instalação de
uma boate na loja térrea, porque se percebe claramente que haveria perturbação aos que ali
residem, caso fosse permitida. É claro que, a depender do grau de limitação ao uso
comercial, pode ser que a vedação seja abusiva, desarrazoada, passando a ser tida por
inconstitucional, violadora da livre iniciativa, ou da liberdade de trabalho.
O regramento das garagens é variado. O mais comum é que a garagem seja um
acessório do principal, já sendo incluída na fração ideal do condômino, ou seja, faz parte da
metragem do imóvel. Segundo sistema é aquele em que a garagem é tida por parte comum
do condomínio, e seu uso será disciplinado pela convenção, livremente. E há um terceiro

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

sistema, em que a garagem é um bem autônomo, contando até mesmo com fração ideal
própria. Sendo um acessório do apartamento, não pode ser alienada separadamente; sendo
autônoma, pode ser alienada de forma apartada.
É frequente uma cláusula limitativa que veda a venda ou aluguel da garagem a
pessoas que não sejam condôminos, e esta cláusula é perfeitamente válida, pois se justifica
pela segurança do condomínio como um todo. O próprio CC permite esta vedação,
expressamente.

1.3.2. Órgãos do condomínio

Há, em regra, três órgãos de administração do condomínio: o síndico, a assembléia


geral e os conselhos fiscal e consultivo. O CC dispõe como obrigatórios o síndico e a
assembléia, não se referindo aos conselhos, que são, portanto, facultativos.
O síndico pode ser apenas um ou mais de um, condômino ou não, remunerado ou
não, a depender do que a convenção dispuser. A convenção é amplamente livre para definir
a situação do síndico, inclusive quanto à possibilidade ou não de reeleição, e tudo mais. O
síndico é o representante legal do condomínio, é um mandatário dos condôminos, eleito
para representá-los. É, em analogia ao Estado, o Poder Executivo do condomínio edilício.
A assembléia geral é o poder máximo do condomínio. É nela que se deliberam todas
as questões condominiais, e sujeitam o síndico a suas decisões. É nela que se elege e
destitui o próprio síndico, diga-se. A assembléia geral pode ser ordinária ou extraordinária,
e a lei exige que haja pelo menos uma ordinária ao ano, para tratar das matérias anuais,
como a aprovação de contas. A assembléia extraordinária se presta a deliberações
excepcionais, e pode haver quantas forem necessárias ao ano, ou nenhuma. A convocação
da extraordinária incumbe ao síndico, mas quando ele não o fizer, pode um determinado
quorum de condôminos, instaurado na convenção, convocar tal assembléia.
As decisões tomadas na assembléia obrigam a todos os condôminos, mesmo aqueles
que não compareceram ou votaram contrariamente, desde que tenham sido regularmente
votadas as matérias, nos respectivos quoruns. As assembléias seriam, por assim dizer, o
Poder Legislativo e também o Judiciário do condomínio.
Os votos em assembléia são proporcionais às frações ideais dos condôminos, em
regra, mas a convenção pode estabelecer de forma diversa, dizendo que os votos são iguais,
por unidade autônoma.
Os conselhos são livremente criados pela convenção, e se prestam a analisar
questões de forma mais especializada, a fim de auxiliar o síndico em tomadas de decisões.

1.4. Cota condominial e frações ideais

O condomínio edilício impõe aos condôminos uma obrigação propter rem, que é o
pagamento de fração das despesas condominiais, na proporção de sua cota. Esta cota,
segundo o CC, é calculada pela área da unidade, e respectiva fração ideal da unidade, mas a
convenção pode estipular que as cotas são por unidade, iguais, independentemente das
diferentes áreas das unidades autônomas.

Michell Nunes Midlej Maron 130


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

A fração ideal é calculada de acordo com a área: simplesmente se mede á área de


cada unidade autônoma, e se calcula a que fração do todo ela corresponde, atribuindo-se tal
número decimal à fração.
O inadimplemento das cotas condominiais pode ensejar a penhora do apartamento
pelo condomínio, na execução destas cotas. E veja que, mesmo se se tratar de bem de
família, a impenhorabilidade não se opõe ao próprio condomínio, por ser a dívida propter
rem criada pela própria coisa.

Casos Concretos

Questão 1

O Condomínio do Edifício São Bento ajuizou ação possessória em face de José da


Silva, alegando, em síntese, que o condômino utiliza-se, com exclusividade, de área comum
do edifício, em total afronta ao artigo 3º da Lei 4.591/64 e artigos 1.331,§2º e 1.335, II do

Michell Nunes Midlej Maron 131


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Código Civil. Pretende, portanto, que o condômino em questão desocupe a área em 30


dias, sob pena de multa diária. Em contestação, sustenta o réu que foi autorizado
(permissão) pela assembléia a utilizar a área sem prazo determinado e assim o faz há mais
de 25 anos; que a área em questão, apesar de comum, não desperta interesse de uso dos
demais condôminos, e nem prejudica a segurança e circulação, consistindo em uma
espécie de área de serviço do primeiro andar. Por fim, aduz que o condomínio não alegou
qualquer fato novo para a retomada do espaço e protesta pela improcedência do pedido.
Você, juiz, como decidiria a questão? Que teoria e princípios poderiam ser aplicados ao
caso? Sendo improcedente a questão, como ficaria o direito do condômino - detentor ou
possuidor?

Resposta à Questão 1

O réu é mero detentor da área comum que ocupa, pois que tal ocupação é fruto de
mera tolerância por parte dos demais, tolerância que não induz posse. Contudo, mesmo não
havendo posse, há por parte do detentor a aquisição do direito de permanecer como está,
pela ocorrência do fenômeno da supressio: o condomínio, ao tolerar sem oposição este uso
por tanto tempo, renunciou ao seu direito. Por isso, o direito do condômino prevalece, e só
o perderia se fosse demonstrado fato novo que ensejasse ao condomínio o direito de alterar
as circunstâncias.

Questão 2

Diante de execução extrajudicial sofrida, Pedro ingressa com embargos à execução


com vistas a livrar da constrição judicial seu único imóvel, bem como duas vagas de
garagem ali estabelecidas com inscrição própria no registro de imóveis. Argúi para tanto o
artigo 1º da lei nº 8.009/90. Pergunta-se: No caso concreto, especificamente com relação
às vagas de garagem, podem estas ser penhoradas para satisfazer o crédito do exeqüente?

Resposta à Questão 2

Quanto ao apartamento, os embargos do devedor são procedentes, pois de fato há a


proteção do bem de família. Já quanto às vagas de garagem autônomas, estas são imóveis
apartados do bem de família, e que por isso poderiam ser penhoradas. Fossem partes
integrantes do apartamento, e a impenhorabilidade deste a elas se estenderia; como são
autônomas, não se estende, e são penhoráveis.

Tema XIV

Direitos Reais sobre as coisas alheias de gozo. Superfície: conceito, modo de constituição, objeto, institutos
análogos, direitos e obrigações e extinção. Servidão predial: conceito, modo de constituição, objeto,
características, classificação, direitos e obrigações e extinção.

Notas de Aula21
21
Aula ministrada pelo professor Sylvio Capanema de Souza, em 4/8/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 132


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

1. Direito de superfície

O direito de superfície se trata de um direito real sobre coisa alheia, limitado,


incidente sobre a superfície de imóvel alheio. O imóvel deve ser ocioso, pois se pode ceder
a superfície de imóvel já plantado ou construído: o objetivo da superfície é justamente
otimizar economicamente o imóvel que não está sendo utilizado pelo seu proprietário. No
direito português, até existe esse direito de superfície sobre imóvel construído ou plantado,
o que se chama de superfície por cisão, mas no Brasil não há esta variante.
Severa polêmica reside em que o direito de superfície, em nosso ordenamento, não
está disciplinado apenas no CC: antes deste Código, o Estatuto da Cidade já tratava do
instituto, e de forma diferente da que veio regrada no CC, pelo que a discussão que surgiu
diz respeito à revogação ou não desta previsão anterior pela mais recente. Alguns defendem
que o CC tratou de maneira exaustiva deste direito real, e portanto revogou totalmente o
capítulo a ele referente no Estatuto da Cidade. Outros, como Ricardo Lira e Sylvio
Capanema, entendem que as duas normas subsistem, aplicando-se o CC aos imóveis rurais,
e o Estatuto da Cidade regulamenta a superfície em imóveis urbanos.
O direito de superfície guarda bastante similitude com a extinta enfiteuse particular.
As enfiteuses anteriores ao CC de 2002, porém, são mantidas, como se sabe, respeitadas
como atos jurídicos perfeitos; as enfiteuses públicas, regidas pelas normas administrativas,
também permanecem no ordenamento, podendo ser instituídas, como ocorre com
aforamento de terras de marinha e terras devolutas.
Mesmo sendo similares, há diferenças marcantes: a enfiteuse é perpétua,
extinguindo-se apenas nos casos expressamente previstas em lei, enquanto que a superfície
não pode ser perpétua. Na enfiteuse há o laudêmio, percentual pago ao nu proprietário na
alienação do domínio útil pelo foreiro, algo que não existe na superfície, etc.
O proprietário de um imóvel não plantado ou construído pode, então, alienar a
superfície deste imóvel a um terceiro, que se chamará superficiário, a fim de que este plante
ou construa ali – é como se houvesse um desdobramento da propriedade, e por isso o
proprietário do imóvel se chama nu proprietário, pois que despido do direito de uso da
superfície de seu bem.
O CC estabelece expressamente que o direito de superfície só pode ser concedido
por prazo determinado, como se vê no artigo 1.369 deste Código, abaixo transcrito. O
estatuto da cidade, por seu turno, estabelece que pode ser concedido por prazo determinado
ou indeterminado (o que não se confunde com perpétuo), como se vê no artigo 21 deste
diploma:

“Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de


plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública
devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for
inerente ao objeto da concessão.”

“Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do


seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública
registrada no cartório de registro de imóveis.

Michell Nunes Midlej Maron 133


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

§ 1° O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o


espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo,
atendida a legislação urbanística.
§ 2° A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa.
§ 3° O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que
incidirem sobre a propriedade superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à
sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da
concessão do direito de superfície, salvo disposição em contrário do contrato
respectivo.
§ 4° O direito de superfície pode ser transferido a terceiros, obedecidos os termos
do contrato respectivo.
§ 5° Por morte do superficiário, os seus direitos transmitem-se a seus herdeiros.”

O direito de superfície se constitui mediante escritura pública, já que se refere a um


direito real sobre imóvel, e deverá ser devidamente registrado no RGI, para ter
oponibilidade contra terceiros.
A concessão de uso da superfície pode ser onerosa ou gratuita, podendo o valor ser
pago de qualquer modo, da forma que convencionarem as partes, nu proprietário e
superficiário.
O CC estabelece que o direito de superfície não pressupõe uso do subsolo, a não ser
quando indispensável ao uso da superfície. Se o superficiário for construir, digamos, um
edifício naquele terreno, é claro que precisará adentrar o subsolo para tanto, cravando ali as
fundações do prédio, o seu alicerce. A rigor, contudo, não pode se valer do subsolo para a
construção de uma garagem, calcado apenas no direito de superfície – esta utilização do
subsolo não é presumidamente entregue ao superficiário. Já o Estatuto, como visto no
artigo supra, é expresso em entregar ao superficiário o uso do subsolo e do espaço aéreo, a
coluna de ar nos limites da superfície.
Tudo o que o superficiário construir ou plantar na superfície transferir-se-á ao
proprietário do imóvel quando expirado o seu prazo, sem qualquer direito de indenização
ou retenção ao superficiário, a não ser que se estabeleça isto expressamente. No silêncio do
contrato, a propriedade do superficiário sobre os bens construídos ou plantados é
naturalmente resolúvel. Por isso, os contratos de superfície geralmente são pactuados por
prazo suficiente a permitir que o superficiário recupere os investimentos empreendidos,
mais algum percentual de lucro – do contrário, não haveria sentido nesta contratação. Veja
o artigo 1.375 do CC:

“Art. 1.375. Extinta a concessão, o proprietário passará a ter a propriedade plena


sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as
partes não houverem estipulado o contrário.”

Há quem vislumbre enriquecimento sem causa nesta hipótese, mas não é a melhor
leitura: o superficiário usou a superfície de tal forma que, ao fim do prazo, não terá
experimentado qualquer prejuízo – ao contrário, tendo tido oportunidade de haver lucro.
O superficiário pode alienar a terceiros o direito de superfície, respeitado o prazo do
contrato original. Nada impede, por exemplo, que tendo o superficiário pactuado um
contrato de vinte anos, chegando aos cinco anos venha a alienar o direito de superfície que
lhe resta, de quinze anos, a terceiros, nos mesmos moldes do contrato original. Esta
alienação não importa em qualquer pagamento ao nu proprietário, o que difere da enfiteuse,

Michell Nunes Midlej Maron 134


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

como dito, em que a alienação do domínio útil a terceiros importa no pagamento do


laudêmio ao nu proprietário. Veja o artigo 1.372 do CC:

“Art. 1.372. O direito de superfície pode transferir-se a terceiros e, por morte do


superficiário, aos seus herdeiros.
Parágrafo único. Não poderá ser estipulado pelo concedente, a nenhum título,
qualquer pagamento pela transferência.”

Os tributos que incidem sobre a superfície são suportados pelo superficiário. A falta
de pagamento dos tributos é causa de rescisão do contrato pelo nu proprietário, assim como
a falta de pagamento das parcelas contraprestacionais da superfície. A ação correspondente
é a de rescisão contratual, cumulada com reintegração da posse.
A morte do superficiário entrega o direito de superfície aos herdeiros, pelo tempo
que faltar do contrato, quando por prazo determinado. Não se trata, portanto, de um
contrato intuitu personae, pois é direito real transferível a terceiros, inclusive por sucessão.
É claro que a superfície não transfere a propriedade do imóvel, e por isso a sua
alienação pode ser livremente procedida pelo nu proprietário. Nada obsta que venda o
terreno a terceiros, mas há direito de preferência ao superficiário, que não pode ser
preterido na opção de compra do bem. Tanto por tanto, o superficiário terá direito de
adquirir o bem antes de terceiros, e se o fizer, o contrato de superfície se extinguirá pela
confusão, concentrando-se na mesma pessoa as figuras de superficiário e nu proprietário.
Veja o artigo 1.373 do CC:

“Art. 1.373. Em caso de alienação do imóvel ou do direito de superfície, o


superficiário ou o proprietário tem direito de preferência, em igualdade de
condições.”

O superficiário não pode dar à superfície destinação diferente daquela prevista no


contrato. Se a entrega da superfície é para construir determinada coisa, não pode o
superficiário simplesmente decidir fazer outra, ou plantar. O objeto traçado deve ser
respeitado. Veja o artigo 1.374 do CC:

“Art. 1.374. Antes do termo final, resolver-se-á a concessão se o superficiário der


ao terreno destinação diversa daquela para que foi concedida.”

Havendo desapropriação do imóvel sobre o qual está constituído direito de


superfície, a indenização será paga a ambos, proprietário e superficiário, na proporção dos
valores de seus direitos. Não havendo acordo, o cálculo será pericial, determinando o valor
da superfície e do terreno, a fim de calcular as proporções. Leia o artigo 1.376 do CC:

“Art. 1.376. No caso de extinção do direito de superfície em conseqüência de


desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor
correspondente ao direito real de cada um.”

É perfeitamente possível a concessão de superfície em terrenos públicos, mas esta


deve respeitar as regras do direito administrativo, sobremaneira no que diz respeito à
necessidade de licitação. A superfície de imóvel público equipara-se à concessão de uso de
bem público.

Michell Nunes Midlej Maron 135


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O direito de superfície pode ser concedido a pessoas naturais ou jurídicas, não


havendo qualquer restrição legal a esta titularidade.

1.1. Especificidades do instituto no Estatuto da Cidade

Como já se pôde adiantar, a Lei 10.257/01 permite que a superfície seja instaurada
por prazo indeterminado, o que não é admitido no CC.
Também se disse que, na superfície estatutária, o uso da coluna de ar e do subsolo
são insertos no direito de superfície, o que não ocorre na superfície do CC. Pode, inclusive,
haver a contratação da superfície exclusivamente para o uso do subsolo ou do espaço aéreo:
nada obsta que se pretenda haver apenas o subsolo para a construção de garagens
subterrâneas, por exemplo (como há no centro do Rio de Janeiro), ou a superfície destinada
a impedir que determinado proprietário de imóvel erija em seu terreno um prédio alto, a fim
de não obstar a vista de um imóvel que se situa atrás do terreno em questão – cujos
proprietários, superficiários da coluna de ar do terreno em frente, pretendem manter a vista,
mas não houve a constituição de uma servidão de vista (que é sempre por prazo
indeterminado) sobre o terreno em frente, do nu proprietário.
A discussão sobre a revogação ou não do direito de superfície do Estatuto pelo CC é
ferrenha. A corrente que diz que houve esta revogação entende que o CC, posterior ao
Estatuto, tratou exaustivamente do tema, causando a revogação desta lei anterior.
A segunda corrente defende que a revogação tácita não se operou, porque esta só
ocorre quando a incompatibilidade entre os diplomas for incontornável – sempre que
possível a compatibilização entre as leis, esta deve ser feita. E esta compatibilização é
possível, in casu: o CC rege somente a superfície rural, e o Estatuto da Cidade rege a
superfície urbana, sendo lei especial sobre o tema para a área urbana.

1.2. Superfície vs. enfiteuse

Na enfiteuse, há um desdobramento da propriedade, dividindo-se esta em domínio


útil e domínio direto. O domínio útil passa ao foreiro, enfiteuta, e o direto permanece com o
proprietário do bem, o aforador. Na superfície não há esta repartição.
A enfiteuse particular era perpétua, somente se extinguindo em casos expressamente
previstos na lei, como quando o foreiro morresse sem deixar herdeiros, ou deixasse de
pagar o foro por três anos consecutivos, ou deixasse de pagar tributos incidentes sobre o
imóvel, ou outras causas legais. A superfície pode ser por prazo determinado, como visto.
Na enfiteuse particular, é direito potestativo do foreiro adquirir o domínio direto do
imóvel após dez anos de constituição da enfiteuse, passando a ser proprietário pleno. O
preço de aquisição corresponde a dois e meio laudêmios, e vinte foros. Mesmo contra a
vontade do aforador, a aquisição era feita, à vontade do enfiteuta. É claro que esta dinâmica
não existe no direito de superfície, não havendo este poder legal de aquisição do imóvel
pelo superficiário.
Extinto o contrato de enfiteuse, de emprazamento (sinônimo de enfiteuse), o
aforador vai haver para si as coisas incrementadas no imóvel, mas deverá indenizá-las ao
foreiro – o que não ocorre na superfície, a não ser quando expresso no contrato.
A alienação do domínio útil na enfiteuse é possível, mas há direito de preferência ao
aforador. Se este não quiser concentrar a propriedade, adquirindo o domínio útil e

Michell Nunes Midlej Maron 136


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

somando-o ao domínio direto, ou seja, se não quiser exercer a preferência, o foreiro poderá
alienar o domínio útil a terceiros, quando então o aforador terá direito a um valor percentual
desta venda, o chamado laudêmio, que é de cinco por cento nas enfiteuses públicas, e dois e
meio por cento na particular (se o contrato não dispuser de forma diversa).
Vê-se que o direito de superfície se trata, de fato, de uma evolução da enfiteuse,
afastados os seus defeitos que a tornavam um instituto desinteressante ao proprietário: não
se perde o imóvel pela aquisição potestativa; e não se verifica a perpetuidade para o
aforador. Tanto o aforamento quanto a superfície tem por objetivo dar destinação sócio-
econômica ao imóvel que era ocioso (tanto que a falta de uso do bem enseja a extinção dos
institutos), mas a superfície é um instituto mais perfeito.

1.3. Superfície vs. locação

A locação não se confunde com a superfície: a primeira é direito pessoal de ter a


posse direta do bem, enquanto a segunda é direito real sobre o bem alheio. A locação tem
que ser onerosa, ou então se trata de comodato; a superfície pode ser onerosa ou gratuita,
sem desnaturar-se.
Na locação, as benfeitorias e acessões são indenizadas, salvo disposição expressa
em contrário; na superfície, não.
A locação desdobra a posse, e não a propriedade: há posse direta e indireta, mas a
propriedade pertence apenas ao locador.

2. Servidões

Trata-se de outro direito real limitado, exercido sobre coisa alheia, e o nomen juris
se refere à sujeição de um imóvel a outro. A servidão é predial, sempre, porque se trata de
uma imposição sobre um imóvel. Não existe servidão pessoal, não havendo como se pensar
em sujeição real de uma pessoa a outra, por óbvio.
Na servidão, há sempre um imóvel serviente e um dominante. Não é o proprietário
que é o serviente, nem o outro proprietário que é dominante – são os seus respectivos
imóveis que assumem estas posições.
Neste instituto, na servidão, se destaca de um imóvel determinadas utilidades
econômicas, que se transferem a um outro imóvel, o qual poderá delas passar a se valer.
Este imóvel do qual se retiram as utilidades passa a ser chamado imóvel serviente, e o que
recebe passa a ser conhecido como dominante.
Condição sine qua non para o surgimento da servidão é que haja imóveis de
diferentes proprietários, portanto. Não há necessidade de se constituir servidão quando o
imóvel serviente pertence ao mesmo proprietário do imóvel dominante – e por isso uma
causa de extinção da servidão é a confusão.
As servidões podem ser de diversas espécies, a depender da utilidade que se
pretende passar ao imóvel dominante. Dentre as mais comuns está a servidão de passagem,
que consiste no direito de passar por um outro imóvel, que vai assistir ao imóvel que
precisa desta passagem. Há também a servidão de vista, que impõe ao serviente a não
obstrução da vista do imóvel dominante; e a servidão de aqueduto, que permite a passagem
de canais de água no terreno de um imóvel.

Michell Nunes Midlej Maron 137


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Não se pode confundir a servidão com a obrigação negativa, de não fazer alguma
coisa. Não se pode, por exemplo, confundir a servidão de passagem com uma obrigação de
não obstruir a passagem em si. Da servidão, surgirá obrigação de não fazer aquilo que a
servidão permite, mas a servidão em si não é a obrigação pessoal: é um direito real que
obriga a todos os proprietários envolvidos. A diferença é tênue: enquanto a obrigação é uma
relação pessoal, direito pessoal daquele que vê a outra parte obrigada a não fazer, só
obrigando as partes que intervieram no contrato. É um direito relativo às partes
contratantes. A servidão é direito real, opondo-se contra todos em razão do imóvel.
Além disso, a obrigação negativa não tem direito de sequela, detido pela servidão:
se o terreno daquele que celebrou obrigação de não obstruir passagem for vendido, o
proprietário superveniente não se verá obrigado a não fazer, ou seja, poderá obstruir a
passagem quando quiser: a obrigação era pessoal do alienante. Já o imóvel serviente de
passagem, quando vendido, levará consigo a servidão, direito real erga omnes que é, e o
adquirente terá que observá-la – há sequela, aderência ao imóvel. Por isso, a servidão deve
ser registrada no RGI, a fim de operar efeitos erga omnes. Não havendo registro, o terceiro
adquirente não poderá ser obrigado a suportá-la.
É corriqueira também a confusão entre a servidão de passagem e a passagem
forçada. A servidão de passagem é instituída negocialmente, enquanto a passagem forçada
é um direito de vizinhança, conferido ex lege, e obtida por sentença em ação específica,
ação de passagem forçada, em que o juiz verificará os requisitos da lei, especialmente o
encravamento, traçando os rumos da passagem de forma a onerar o mínimo possível o
imóvel que a servirá. Na servidão de passagem, negocial, nada há que se envolver o
Judiciário em sua constituição, que será feita à vontade dos contratantes.
A passagem forçada é um direito conferido ao proprietário de prédio encravado,
sem acesso à rua; a servidão de passagem não demanda este encravamento, bastando que
haja maior comodidade na passagem pelo serviente do que aquele acesso à rua que o
dominante porventura já tenha. A passagem forçada é um direito obrigacional de
vizinhança, enquanto a servidão de passagem é um direito real constituído sobre coisa
alheia.
A servidão é gratuita ou onerosa, sendo que geralmente é onerosa por conta da
diminuição de valor do imóvel sobre o qual recai.
Há servidões aparentes e não aparentes. As servidões são aparentes quando podem
ser percebidas pelos sentidos, como uma servidão de passagem ou de aqueduto – pode-se
perceber a passagem, como a formação de uma trilha, ou a passagem dos tubos. A servidão
de vista, por seu turno, é bom exemplo de servidão não aparente, que não se expõe aos
sentidos. A importância prática desta diferença é que as servidões aparentes consideram-se
constituídas desde a assinatura do contrato, vinculando desde logo as partes, o registro
apenas servindo para criar oponibilidade erga omnes do direito real. Já as servidões não
aparentes se constituem no registro do título, a não na mera assinatura do contrato. Além
disso, as servidões aparentes podem ser adquiridas por usucapião, enquanto as não
aparentes não podem.
As servidões podem ser ainda contínuas ou descontínuas. As contínuas são aquelas
que independem de atos humanos para se apresentarem, para apresentarem efeitos: a
servidão de aqueduto e a de vista são bons exemplos, pois a água corre quer haja
intervenção humana colhendo-a ou não, assim como a vista permanece lá, quer haja alguém

Michell Nunes Midlej Maron 138


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

olhando ou não. Já a servidão de passagem é descontínua, pois só se manifesta na atuação


humana: se ninguém por ela passar, não há manifestação da passagem.
Perde-se o direito à servidão pelo desuso, por dez anos. Assim como o tempo
permite a sua aquisição, pela usucapião, permite a perda pelo desuso.

Casos Concretos

Questão 1

Mário ajuizou ação de reintegração de posse em face de Lúcio. Alega que há


muitos anos utiliza-se de um caminho existente na propriedade do réu para chegar à sua

Michell Nunes Midlej Maron 139


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

propriedade, sem que tenha sofrido, ao longo do tempo, qualquer obstáculo. Todavia, ao
decidir vender o imóvel e comunicar o fato ao réu, este lhe fechou a passagem, impedindo
o tráfego. Sustenta que existe uma outra passagem; contudo, afirma que sempre utilizou o
caminho em questão, por mais de 45 anos. Desta forma, entende que restou caracterizado
o esbulho praticado pelo réu ao tentar colocar um obstáculo no caminho utilizado,
impedindo-lhe a passagem. Pondera, ainda, que o caminho alternativo está tomado pela
vegetação e encontra óbice para seu desmatamento por ser área de preservação. Em
contestação, o réu aduz que na propriedade do autor existe um outro caminho que também
conduz à via municipal, não se fazendo necessária a passagem pelo seu terreno. Assim,
deduz ser desnecessário manter o estado atual, não sendo plausível que o autor continue a
passar por sua propriedade, já que o imóvel dele não está encravado. Decida a questão
fundamentadamente.

Resposta à Questão 1

A situação se consolidou pela constância: a tolerância inicial induziu o surgimento


do direito de Mário em manter a situação jurídica estabelecida ao longo de tanto tempo.
Pode-se falar em surrectio, como fundamento ao seu direito, independentemente de
qualquer encravamento ou não do imóvel. O feito deve ser julgado procedente.

“Processo: 0004821-34.2000.8.19.0037 (2005.001.50124). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. RICARDO RODRIGUES CARDOZO - Julgamento:
18/01/2006 - DECIMA QUINTA CAMARA CIVEL.
SERVIDAO DE PASSAGEM. PASSAGEM FORCADA. DISTINCAO.
Ação possessória. Servidão de passagem utilizada, sem oposição. Passagem
forçada. Distinção. Passagem forçada é o direito de trânsito pelo imóvel alheio
vizinho, com vista ao acesso à via pública. O titular do direito à passagem forçada
é o dono do imóvel encravado, isto é, sem saída para via pública. A servidão de
passagem ou de trânsito tem a finalidade de facilitar o acesso a um prédio,
independentemente de existir ou não encravamento. Nasce do acordo de vontade
entre os proprietários do prédio dominante e do prédio serviente. Dúvidas
inexistem de que há muitos anos os Apelados vêm utilizando a servidão de
passagem, sendo certo, inclusive, que os Réus quando adquiriram sua propriedade
tomaram ciência do fato, portanto, sabiam da liberalidade dos seus antecessores no
sentido de que podiam os Autores fazer o trajeto sem qualquer resistência. Assim,
não se tratando de passagem forçada, mas de servidão utilizada pelos Autores, não
há razão para que seja desrespeitada pelos Réus, que durante anos permitiu a
travessia. Recurso desprovido, nos termos do voto do Desembargador Relator.”

Tema XV

Usufruto: conceito, modo de constituição, objeto, características, direitos e obrigações e extinção. O usufruto
simultâneo e o instituto do fideicomisso. A concessão de uso como direito real resolúvel. O direito real de
habitação no direito sucessório.

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Notas de Aula22

1. Usufruto

O usufruto é direito real de gozo ou fruição sobre coisa alheia, no qual o


proprietário, por sua vontade, concede ao titular o direito de usar e fruir de seu bem, tirando
proveito econômico deste bem sem alterar a sua substância, a essência da coisa.
O usufruto já foi conhecido, há tempos atrás, como uma espécie de servidão
pessoal, comparando-se às servidões prediais. Esta idéia não mais se aplica, mesmo que o
instituto continue exatamente o mesmo, desde então: o proprietário da coisa se despe de
dois poderes inerentes ao c]domínio – o uso e gozo – em prol do usufrutuário, onerosa ou
gratuitamente (caso em que, em regra, o usufruto assume um caráter subsistencial para o
usufrutuário). De qualquer forma, o usufruto, hoje, tem natureza jurídica inconteste de
direito real, e não servidão pessoal, estando expressa esta natureza no artigo 1.225, IV, do
CC:

“Art. 1.225. São direitos reais:


(...)
IV - o usufruto;
(...)”

O artigo 1.390 e os seguintes do CC tratam do usufruto, e serão vistos


pontualmente. O artigo 1.390 trata do objeto do usufruto:

“Art. 1.390. O usufruto pode recair em um ou mais bens, móveis ou imóveis, em


um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os
frutos e utilidades.”

O usufruto pode ser pleno ou limitado. Ser pleno é dar ao usufrutuário a mais ampla
liberdade de usufruir do objeto, ou seja, dar seu uso e gozo irrestrito. Nada impede, porém,
que seja restringida parte do uso ou gozo do bem, ao se constituir o usufruto: pode o
proprietário vedar determinadas formas de uso ou fruição, tornando o usufruto limitado.
O usufruto pode abranger bens corpóreos ou incorpóreos, pois se refere ao
patrimônio como um todo – e bens incorpóreos, quando existem, estão insertos no
patrimônio.
O artigo 1.392 do CC trata do princípio da gravitação jurídica no usufruto: os
acessórios e acrescidos ao objeto do usufruto são também objeto deste. Veja:

“Art. 1.392. Salvo disposição em contrário, o usufruto estende-se aos acessórios da


coisa e seus acrescidos.
§ 1° Se, entre os acessórios e os acrescidos, houver coisas consumíveis, terá o
usufrutuário o dever de restituir, findo o usufruto, as que ainda houver e, das
outras, o equivalente em gênero, qualidade e quantidade, ou, não sendo possível, o
seu valor, estimado ao tempo da restituição.
§ 2° Se há no prédio em que recai o usufruto florestas ou os recursos minerais a
que se refere o art. 1.230, devem o dono e o usufrutuário prefixar-lhe a extensão do
gozo e a maneira de exploração.

22
Aula ministrada pela professora Consuelo Aguiar Huebra, em 19/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 141


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

§ 3° Se o usufruto recai sobre universalidade ou quota-parte de bens, o


usufrutuário tem direito à parte do tesouro achado por outrem, e ao preço pago
pelo vizinho do prédio usufruído, para obter meação em parede, cerca, muro, vala
ou valado.”

Em regra, portanto, pode o usufrutuário haver seus direitos sobre os acessórios,


acessões e benfeitorias, em regra, salvo disposição expressa em contrário no ato
constitutivo do usufruto.
O CC de 1916 trazia como figura apartada o usufruto de bens consumíveis, tratado
de forma diferente do usufruto comum. Lá, havia ampla permissão para tal usufruto, sem
restrições. O novo CC, no § 1° do artigo supra, diz que se é possível a constituição de
usufruto sobre bens consumíveis, mas não de forma isolada, como era possível: eles só
poderão estar em usufruto se forem acessórios de um bem não consumível, e não de forma
autônoma.
Havendo bens consumíveis, o usufruto sobre eles será chamado de usufruto
impróprio, ou quase usufruto. Isto porque se no usufruto comum há necessidade de
conservação da substância e essência da coisa, criando o dever de restituição do bem ao fim
do usufruto na exata forma em que lhe foi entregue, sendo esta coisa consumível, esta
preservação é impossível: o máximo que poderá ser feito é a restituição das que houver, ou
de coisas equivalentes, ou, em último caso, do valor a que correspondam. Por isso é
usufruto impróprio, eis que a regra do usufruto próprio não são plausíveis, não sendo
possível a plena restituição do mesmo bem.
O § 2° do artigo acima trata das florestas e recursos minerais que porventura haja no
imóvel dado em usufruto. Veja o artigo 1.230 do CC, ao qual este dispositivo remete:

“Art. 1.230. A propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos
minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e
outros bens referidos por leis especiais.
Parágrafo único. O proprietário do solo tem o direito de explorar os recursos
minerais de emprego imediato na construção civil, desde que não submetidos a
transformação industrial, obedecido o disposto em lei especial.”

O dono do imóvel pode conceder o usufruto dos recursos minerais, nos mesmos
limites que este uso e fruição é permitido a si próprio, ou seja, nos limites do parágrafo
único deste artigo supra. É simples: não pode dar em usufruto mais do que tem para dar, e o
usufrutuário terá o mesmo direito que o proprietário teria.
Destarte, no contrato deve haver a exata delimitação desta exploração, tanto das
reservas minerais, sujeitas também a este limitador legal, quanto das florestas, caso em que
devem ser observadas as restrições ambientais pelo usufrutuário, assim como o seriam pelo
proprietário.

1.1. Características principais do usufruto

O usufruto é personalíssimo, intuitu personae. Tem, em regra, uma certa nota de


subsistência, alimentar do usufrutuário, especialmente quando gratuito. Por ser
personalíssimo, a morte do usufrutuário é uma causa expressa de extinção do usufruto,
mesmo que o usufruto tenha sido estabelecido por prazo certo, e a morte tenha se dado

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

antes do seu término: o usufruto não cumprirá seu prazo, extinguindo-se logo com a morte,
passando-se aos herdeiros, justamente por sua natureza intuito personae.
Repare que nem mesmo se o nu proprietário consignar expressamente esta
possibilidade de conceder a sucessão do usufruto aos herdeiros do usufrutuário, ignorando
esta regra de extinção pela morte do usufrutuário, será possível esta continuidade do
contrato: o usufruto sucessivo é absolutamente vedado, sendo nula a cláusula que o
estabeleça. O contrato seria válido entre usufrutuário e nu proprietário, reputando-se não
escrita a cláusula de sucessão.
Por ser intuitu personae, o usufruto é também inalienável. O artigo 1.393 do CC
trata deste aspecto, e parece contraditório, assim como o artigo

“Art. 1.393. Não se pode transferir o usufruto por alienação; mas o seu exercício
pode ceder-se por título gratuito ou oneroso.”

“Art. 1.399. O usufrutuário pode usufruir em pessoa, ou mediante arrendamento, o


prédio, mas não mudar-lhe a destinação econômica, sem expressa autorização do
proprietário.”

A alienação é impossível, mas a cessão ou o arrendamento são possíveis. Os


dispositivos não autorizam a alienação, porque alienar é transferir o direito de usufruto – o
que não se permite. O que é admitido, nos casos acima, é a cessão do exercício do usufruto,
o que não é a cessão do próprio direito de usufruto. Assim, pode o usufrutuário alugar o
objeto do usufruto, quando então estará cedendo o exercício do uso, sendo que a
titularidade do direito ao uso ainda é sua. Por isso não há contradição nas normas acima.
Não há, portanto, qualquer violação à natureza personalíssima do usufruto nestas
cessões, tampouco há frustração de sua natureza alimentar, quando presente: a cessão
onerosa do exercício do usufruto a terceiros, pelo usufrutuário, não altera a figura do
usufrutuário, e ainda implementa o escopo alimentar, porque estará obtendo frutos do bem
para sua subsistência (os aluguéis, por exemplo).
O nu proprietário pode alienar o imóvel, porque ao passar o usufruto não passou o
direito de dispor da coisa, que guarda consigo. Quem adquirir o bem, porém, terá que
respeitar o usufruto, tolerando-o até seu termo final – o que dificulta a venda, decerto.
O usufruto não se compara nem de longe com a locação, nem m esmo quando há
sublocação permitida. Embora aparentemente o contrato de locação, com permissão
expressa de sublocação, guarde semelhanças com o contrato de usufruto, eles são
completamente diferentes, a começar pelo fato de que a locação é um contrato de natureza
obrigacional, pessoal, enquanto o usufruto tem natureza real, e produz efeitos erga omnes.
Em segundo lugar, a sublocação só é permitida ao locatário se o contrato contiver expressa
autorização para tanto, enquanto no usufruto a fruição do bem é inerente ao instituto – o
usufrutuário pode ceder o uso a terceiros. Por fim, a lei do inquilinato, no que diz respeito à
sublocação, estabelece um teto de cobrança deste valor, a fim de impedir que o locatário
tire proveito econômico dela – o que é exatamente o contrário do usufruto, que pode ser
cedido por qualquer valor ao terceiro, incrementando ainda mais a fruição do usufrutuário.
Se o usufrutuário for devedor de terceiros, pode o seu credor penhorar seu direito de
usufruto? A penhora do próprio direito é impossível – junto com a inalienabilidade vem a
incomunicabilidade. Contudo, a penhora do exercício do direito é perfeitamente possível:
assim como o exercício pode ser cedido, pode ser penhorado. Desde que a penhora do

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exercício não mine a própria subsistência do usufrutuário – é sua única renda, ou é sua
moradia –, a penhora do exercício é possível.
Além de ser personalíssimo e inalienável, o usufruto é temporário. Até mesmo o
usufruto vitalício é temporário, porque se extingue com um termo incerto, qual seja, a
morte. Não é perpétuo. Até mesmo o usufruto constituído em favor de pessoa jurídica é
temporário, se extinguindo na extinção da pessoa jurídica, ou em prazo de trinta anos, se
esta não se extinguir. Veja o artigo 1.410, III, do CC:

“Art. 1.410. O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de


Registro de Imóveis:
(...)
III - pela extinção da pessoa jurídica, em favor de quem o usufruto foi constituído,
ou, se ela perdurar, pelo decurso de trinta anos da data em que se começou a
exercer;
(...)”

A extinção é automática, ex lege. Nada impede que haja a constituição de novo


usufruto, mas aquele anterior se extingue inexoravelmente.

1.2. Constituição do usufruto

O usufruto pode ser constituído por ato inter vivos, mero contrato (podendo ser um
contrato de doação com reserva de usufruto para o doador, bastante comum, diga-se), ou
mortis causa, em testamento. No testamento, é comum o legado de usufruto, em que se
entrega este direito real sobre algum bem a algum dos herdeiros, ou a terceiro.
Pode haver usufruto por usucapião. Aparentemente, é difícil se imaginar a posse de
um imóvel não induzir a usucapião do próprio imóvel, como seria a regra, mas há um
exemplo que é o seguinte: imagine-se que um usufruto é estabelecido por contrato, por
prazo de quinze anos. Corridos dez anos, se descobre que o contratante que se passou por
nu proprietário, concedendo o usufruto, na verdade não era dono do imóvel. Neste caso, o
suposto usufrutuário estaria irregularmente usufruindo do bem, porque o contrato seria
nulo. Contudo, por ter justo título e boa-fé, este possuidor terá direito de usucapir o
usufruto, exclusivamente, não podendo usucapir a própria coisa, porque claramente não
tinha animus domini sobre esta: tem animus fruendi sobre o direito de usufruto, e não sobre
a propriedade, sendo por isso usucapível tão-somente o usufruto.
O usufruto se constitui pelo registro no RGI, no caso do contrato ou do testamento.
Na usucapião, o direito se constitui no cumprimento dos requisitos, a sentença, declaratória,
sendo levada a registro apenas para haver efeitos erga omnes. Veja o artigo 1.391 do CC:

“Art. 1.391. O usufruto de imóveis, quando não resulte de usucapião, constituir-se-


á mediante registro no Cartório de Registro de Imóveis.”

O usufruto pode ser constituído também por lei, ou judicialmente, ou ainda por
subrogação. O usufruto legal é instituto afeito ao direito de família, como se vê no artigo
1.689, I, do CC:

“Art. 1.689. O pai e a mãe, enquanto no exercício do poder familiar:


I - são usufrutuários dos bens dos filhos;
II - têm a administração dos bens dos filhos menores sob sua autoridade.”

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Esta norma é cogente, e se presta a funcionar como uma espécie de remuneração


dos pais pela administração dos bens dos filhos.
Sob a égide do CC de 1916, havia ainda outro usufruto legal, o antigo usufruto
vidual, constituído pela lei em prol do cônjuge ou companheiro supérstite, quanto a parte do
patrimônio do cônjuge ou companheiro falecido. Assim o era por conta da ausência da
condição de herdeiro a estas figuras, e por isso não mais vige. O nome deste usufruto vem
da sua duração, que vigia e enquanto perdurasse a viuvez.
O usufruto judicial é aquele imposto por sentença. Pode o juiz, na execução, ao
invés de determinar a penhora dos bens, por ser menos gravoso ao devedor, determine a
constituição de usufruto pelo credor sobre bens do devedor, a fim de que com a fruição ele
venha a satisfazer seu crédito. É claro que isso é pouco factível, mas é possível,
especialmente em se tratando de uma obrigação alimentar, por exemplo: o usufruto
alimentar é medida altamente eficaz de satisfação do crédito do alimentante.
O usufruto por subrogação, por fim, assim se verifica: imagine-se que haja um
usufruto sobre bem imóvel que é segurado. Este bem, por algum acaso, vem a perecer. O
usufruto se subrogará na indenização paga, ou seja, o usufrutuário do imóvel perecido será
usufrutuário do dinheiro pago como indenização. Ao ser aplicado o valor da indenização
paga pela companhia de seguro na construção de um novo imóvel, o usufrutuário se
subrogará naquele novo bem. E repare que enquanto o usufruto estiver sobre o dinheiro,
está desenhada uma hipótese de usufruto impróprio. Os artigos 1.407 a 1.409 do CC se
referem a hipóteses de subrogação, mas serão vistos adiante, quando da abordagem dos
deveres do usufrutuário, eis que se encontram neste capítulo do CC.

1.3. Direitos do usufrutuário

O artigo 1.394 do CC inicia o capítulo que se refere aos direitos do usufrutuário:

“Art. 1.394. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos
frutos.”

O usufrutuário tem a posse direta do bem, deixando a indireta com o nu


proprietário. O usufrutuário, portanto, tem direito à proteção possessória contra todos que a
perturbem indevidamente, inclusive o possuidor indireto.
O usufrutuário pode extrair frutos de toda sorte, naturais, industriais ou civis.
Quanto aos produtos, porém, há enorme divergência quanto à possibilidade de que o
usufrutuário os perceba. Isto porque, como se sabe, o produto esgota a si ou a coisa de que
é retirado, e por isso haveria, em tese, alteração da essência da coisa, o que é vedado no
usufruto. Com base neste argumento, da alteração da essência da coisa, há quem defenda
que a retirada de produtos é inadmissível. Todavia, a ampla maioria da doutrina entende
que os produtos, assim como os frutos, podem ser extraídos pelo usufrutuário,
simplesmente porque a lei não proíbe esta extração.
Quanto aos frutos há regras especiais nos artigos 1.396 a 1.398 do CC:

“Art. 1.396. Salvo direito adquirido por outrem, o usufrutuário faz seus os frutos
naturais, pendentes ao começar o usufruto, sem encargo de pagar as despesas de
produção.

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Parágrafo único. Os frutos naturais, pendentes ao tempo em que cessa o usufruto,


pertencem ao dono, também sem compensação das despesas.”

“Art. 1.397. As crias dos animais pertencem ao usufrutuário, deduzidas quantas


bastem para inteirar as cabeças de gado existentes ao começar o usufruto.”

“Art. 1.398. Os frutos civis, vencidos na data inicial do usufruto, pertencem ao


proprietário, e ao usufrutuário os vencidos na data em que cessa o usufruto.”

Quanto aos frutos industriais, que não são expressamente versados nesta parte do
CC, aplica-se, para quase unanimidade da doutrina, o dispositivo referente aos naturais.
Somente Nelson Rosenvald defende que não é aplicável esta norma aos industriais.
O usufruto de créditos é tratado no artigo seguinte, 1.395 do CC:

“Art. 1.395. Quando o usufruto recai em títulos de crédito, o usufrutuário tem


direito a perceber os frutos e a cobrar as respectivas dívidas.
Parágrafo único. Cobradas as dívidas, o usufrutuário aplicará, de imediato, a
importância em títulos da mesma natureza, ou em títulos da dívida pública federal,
com cláusula de atualização monetária segundo índices oficiais regularmente
estabelecidos.”

Se o usufrutuário não faz o que este dispositivo supra impõe, poderá o nu


proprietário extinguir o usufruto, por conta da inadimplência desta obrigação específica.
Veja o artigo 1.410, VII do CC:

“Art. 1.410. O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de


Registro de Imóveis:
(...)
VII - por culpa do usufrutuário, quando aliena, deteriora, ou deixa arruinar os bens,
não lhes acudindo com os reparos de conservação, ou quando, no usufruto de
títulos de crédito, não dá às importâncias recebidas a aplicação prevista no
parágrafo único do art. 1.395;
(...)”

Mais do que resolver o contrato, o usufrutuário que assim proceder deverá arcar
com eventuais perdas e danos causadas ao proprietário.

1.4. Deveres do usufrutuário

O artigo 1.399 do CC, há pouco transcrito, impõe o primeiro dever ao usufrutuário:


o de manter a coisa em perfeito estado, e o de respeitar a destinação a que foi esta constrita
quando da constituição do usufruto. Se foi dado o usufruto para finalidade agrícola, a
tredestinação é causa de extinção do direito.
Esta regra, porém, não se aplica ao usufruto legal, dos pais sobre os bens dos filhos
sob poder familiar, pela simples razão que é completamente livre a destinação de tais bens.
A proteção do nu proprietário, aqui – o filho –, é também legal, e específica, como se vê no
artigo 1.691 do CC:

“Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos
filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole,


mediante prévia autorização do juiz.
Parágrafo único. Podem pleitear a declaração de nulidade dos atos previstos neste
artigo:
I - os filhos;
II - os herdeiros;
III - o representante legal.”

O principal dever do usufrutuário, como já se disse, é a devolução da coisa no


estado em que recebida. No capítulo dedicado aos deveres do usufrutuário, o primeiro
artigo do CC, 1.410, estabelece a forma de se definir o estado inicial do bem, justamente a
fim de promover a segurança para ambos, nu proprietário e usufrutuário, de que quando da
restituição este dever está cumprido. Veja:

“Art. 1.400. O usufrutuário, antes de assumir o usufruto, inventariará, à sua custa,


os bens que receber, determinando o estado em que se acham, e dará caução,
fidejussória ou real, se lha exigir o dono, de velar-lhes pela conservação, e entregá-
los findo o usufruto.
Parágrafo único. Não é obrigado à caução o doador que se reservar o usufruto da
coisa doada.”

A lei não comina sanção para o descumprimento deste ato de inventariança, e por
isso a doutrina diz apenas que, não havendo esta prova, a lei presume que o bem tenha sido
entregue em bom estado geral ao usufrutuário – presunção relativa, mas que pesa, a priori,
contra o usufrutuário, que deverá provar que defeitos não foram por ele causados.
Este artigo cria ainda um outro dever ao usufrutuário, exigível pelo nu proprietário:
pode este exigir caução, sob pena de perder, o usufrutuário, o poder de administração da
coisa, que passa ao nu proprietário. Neste caso, o que se passa é estranho: o nu proprietário,
que agora é administrador da coisa fruída por outrem, deverá zelar para que os frutos sejam
probamente entregues ao usufrutuário, e, para tanto, é devida por ele ao usufrutuário, agora,
uma caução para garantir esta probidade na administração. Ocorre verdadeira inversão nas
responsabilidades. É claro que, administrador que é, deve ser remunerado por este trabalho,
retendo parte dos frutos que está administrando. Veja o artigo 1.401 do CC:

“Art. 1.401. O usufrutuário que não quiser ou não puder dar caução suficiente
perderá o direito de administrar o usufruto; e, neste caso, os bens serão
administrados pelo proprietário, que ficará obrigado, mediante caução, a entregar
ao usufrutuário o rendimento deles, deduzidas as despesas de administração, entre
as quais se incluirá a quantia fixada pelo juiz como remuneração do
administrador.”

Conforme o parágrafo único do artigo 1.400 do CC, a caução é inexigível do doador


que se torna usufrutuário do bem doado.
As deteriorações ordinárias do bem, aquelas consideradas normais e inevitáveis, não
demandam reparação. Isto porque o direito de uso, embutido no usufruto, traz este desgaste
consigo. Veja o artigo 1.402 do CC:

“Art. 1.402. O usufrutuário não é obrigado a pagar as deteriorações resultantes do


exercício regular do usufruto.”

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As despesas ordinárias de conservação, por óbvio, são incumbências do


usufrutuário, sem que seja ressarcível, por óbvio: é despesa de uso do bem, e o uso é dele,
naquele período. É um dever de manutenção e conservação. A mesma lógica se aplica aos
tributos e prestações propter rem. Veja o artigo 1.403 do CC:

“Art. 1.403 Incumbem ao usufrutuário:


I - as despesas ordinárias de conservação dos bens no estado em que os recebeu;
II - as prestações e os tributos devidos pela posse ou rendimento da coisa
usufruída.”

Quanto às despesas propter rem, como a copta condominial, por exemplo, são
cobráveis, segundo a maioria da jurisprudência, tanto do nu proprietário quanto do
usufrutuário, mas como incumbem a este último, se o nu proprietário pagar, terá regresso
contra ele.
As despesas extraordinárias, bem como as ordinárias que não tenham custo módico,
incumbem ao nu proprietário. Veja o artigo 1.404 do CC:

“Art. 1.404. Incumbem ao dono as reparações extraordinárias e as que não forem


de custo módico; mas o usufrutuário lhe pagará os juros do capital despendido com
as que forem necessárias à conservação, ou aumentarem o rendimento da coisa
usufruída.
§ 1° Não se consideram módicas as despesas superiores a dois terços do líquido
rendimento em um ano.
§ 2° Se o dono não fizer as reparações a que está obrigado, e que são
indispensáveis à conservação da coisa, o usufrutuário pode realizá-las, cobrando
daquele a importância despendida.”

O § 1° deste artigo supra define o custo módico: se a despesa supera dois terços
daquilo que o usufrutuário poderia fruir do bem durante um ano, a despesa para sua
manutenção não pode ser considerada módica.
O artigo 1.406 do CC estabelece outro dever do usufrutuário relevante:
“Art. 1.406. O usufrutuário é obrigado a dar ciência ao dono de qualquer lesão
produzida contra a posse da coisa, ou os direitos deste.”

O fato de ter que cientificar o proprietário da perturbação da posse não impede que
o próprio usufrutuário defenda a coisa, valendo-se de todas as formas de proteção da posse.
A ciência deve ser dada para que o nu proprietário também possa exercer esta defesa, se
quiser.
Veja que a proteção possessória não é dever do usufrutuário, é um direito: se ele
quiser, pode deixar de proteger a posse. Ocorre que se o usufrutuário deixar de cumprir este
dever de informar, e deixar de proteger a posse, aí sim haverá uma quebra de deveres a
ensejar tanto a rescisão do contrato quanto a responsabilização do usufrutuário por
eventuais perdas e danos.
É claro que se o usufrutuário sequer souber do ataque à posse, não pode ser
imputado pela não comunicação desta ao nu proprietário.
Os artigos 1.407 a 1.409 do CC trazem hipóteses de subrogação no usufruto.
Vejamos cada dispositivo:

“Art. 1.407. Se a coisa estiver segurada, incumbe ao usufrutuário pagar, durante o


usufruto, as contribuições do seguro.

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

§ 1° Se o usufrutuário fizer o seguro, ao proprietário caberá o direito dele


resultante contra o segurador.
§ 2° Em qualquer hipótese, o direito do usufrutuário fica sub-rogado no valor da
indenização do seguro.”

Se a coisa contar com seguro, o usufrutuário deve arcar com seu pagamento
enquanto durar o usufruto – faz parte do direito de manutenção da coisa. Se esta vier a
perecer, o direito ao crédito pela indenização incumbe ao proprietário, porque o seguro
indeniza a propriedade da coisa. Contudo, recebida a indenização, ela é de propriedade do
nu proprietário, mas o usufruto que recaía sobre a coisa perdida agora recai, nos mesmos
moldes, sobre o dinheiro da indenização – ocorre a constituição por meio de subrogação,
como já se viu, criando-se um quase usufruto, usufruto impróprio.
A norma deste artigo é de direito privado, e por isso nada impede que haja a
imposição contratual de custeio do seguro incumbindo ao nu proprietário.
O artigo 1.408 do CC diz:

“Art. 1.408. Se um edifício sujeito a usufruto for destruído sem culpa do


proprietário, não será este obrigado a reconstruí-lo, nem o usufruto se
restabelecerá, se o proprietário reconstruir à sua custa o prédio; mas se a
indenização do seguro for aplicada à reconstrução do prédio, restabelecer-se-á o
usufruto.”

Havendo perecimento do bem, sem culpa do proprietário, o usufruto simplesmente


se extingue, por perda do objeto. Não há obrigação de reconstrução da coisa, muito menos
subrogação do usufruto nesta se a coisa for reconstruída pelo proprietário, à sua custa. A
hipótese de subrogação que este dispositivo traz é somente aquela em que o dinheiro
proveniente do seguro que eventualmente existia vier a ser empregado na construção de
nova coisa: se já existia subrogação do usufruto sobre o dinheiro pago pela seguradora,
como dispõe o artigo anterior, nada mais lógico que, havendo emprego deste dinheiro em
nova construção, a subrogação se estenda ao bem resultante. Trata-se do mesmo usufruto,
com alteração objetiva.
Veja que se o proprietário reconstrói a coisa por sua conta, com dinheiro seu, porque
não havia seguro, está construindo coisa nova com dinheiro novo, completamente alheio ao
usufruto original, que fora extinto por perda do objeto. É por isso que, neste caso, não há
que se falar em subrogação.
Havendo culpa do proprietário no perecimento do bem, ele está obrigado a
reconstituí-lo, e, fazendo-o, naturalmente, o usufruto se subrogará naquele bem resultante.
Se não o fizer, não reconstruir, há descumprimento contratual – o objeto foi perdido pelo
perecimento culposo do proprietário –, e o nu proprietário deverá arcar com eventuais
perdas e danos perante o usufrutuário.
O artigo 1.409 do CC traz duas outras hipóteses legais de subrogação: na
desapropriação e nos danos causados por terceiros. Veja:
“Art. 1.409. Também fica sub-rogada no ônus do usufruto, em lugar do prédio, a
indenização paga, se ele for desapropriado, ou a importância do dano, ressarcido
pelo terceiro responsável no caso de danificação ou perda.”

Michell Nunes Midlej Maron 149


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Se o bem foi desapropriado, ou se o terceiro causa danos ao bem, haverá pagamento


de indenização. Tal qual no seguro, o usufruto se subroga no valor pago, e no eventual bem
construído ou adquirido com o valor da indenização.
Em todos os casos em que haverá subrogação, nos interregnos entre as alterações
objetivas do contrato, o prazo do usufruto, se não vitalício, fica suspenso, recomeçando de
onde estava quando da perda da coisa.

1.5. Causas de extinção do usufruto

O artigo 1.410 do CC, já ocasionalmente abordado, traz as causas expressas de


extinção deste contrato. Veja-o na íntegra:

“Art. 1.410. O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de


Registro de Imóveis:
I - pela renúncia ou morte do usufrutuário;
II - pelo termo de sua duração;
III - pela extinção da pessoa jurídica, em favor de quem o usufruto foi constituído,
ou, se ela perdurar, pelo decurso de trinta anos da data em que se começou a
exercer;
IV - pela cessação do motivo de que se origina;
V - pela destruição da coisa, guardadas as disposições dos arts. 1.407, 1.408, 2ª
parte, e 1.409;
VI - pela consolidação;
VII - por culpa do usufrutuário, quando aliena, deteriora, ou deixa arruinar os bens,
não lhes acudindo com os reparos de conservação, ou quando, no usufruto de
títulos de crédito, não dá às importâncias recebidas a aplicação prevista no
parágrafo único do art. 1.395;
VIII - Pelo não uso, ou não fruição, da coisa em que o usufruto recai (arts. 1.390 e
1.399).”

Este rol não é taxativo, é exemplificativo. Bom exemplo de causa extintiva do


usufruto que não está presente neste artigo é o implemento de condição resolutiva do
contrato, se aposta esta: contratado usufruto condicionado, e não a termo, o implemento da
condição extingue o contrato.
As causas de extinção do usufruto de bem imóvel arroladas são todas indiretas,
porque a causa direta, a extinção em si, só vem de um evento: o cancelamento do registro
deste contrato no RGI. No usufruto de bem móvel, as causas são diretas.
A renúncia ao usufruto, pelo usufrutuário, é ato formal que deve ser levado a
registro, feita por escritura pública. Tanto a renúncia como a morte permitem a extinção do
usufruto sem necessidade de sentença judicial para tanto, segundo a jurisprudência – basta
proceder ao cancelamento no RGI. Veja a súmula 13 do TJ/RJ:
“Súmula 13, TJ/RJ: USUFRUTO. EXTINÇÃO POR MORTE DO
USUFRUTUÁRIO. DESNECESSIDADE DE PROCEDIMENTO JUDICIAL.
‘Extinto pela morte do usufrutuário, o usufruto instituído por ato intervivos, o
cancelamento do gravame, no Registro de Imóveis, independe de prévia decisão
judicial.’”

O CC de 1916 tratava da renúncia como caso excepcional de alienação ao direito de


usufruto, porque se entendia que o direito de usar e fruir era transferido, por este ato, ao nu

Michell Nunes Midlej Maron 150


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

proprietário. Ocorre que não se trata de uma transferência, e sim de uma retomada, pelo que
não se trata de hipótese de alienação.
O alcance do termo final do prazo é causa natural de extinção do usufruto, quando
não coincida com a morte do usufrutuário, como no usufruto vitalício.
O usufruto em prol da pessoa jurídica se extingue pelo fim desta, quando não fixado
termo, ou em até trinta anos, se ela perdurar tanto tempo. Se o contrato previr prazo maior,
considera-se a parte que exceder a trinta anos ineficaz, valendo o pacto por trinta anos.
O inciso IV do artigo 1.410 acima trata de hipótese peculiar, que depende de decisão
judicial: o usufruto se extingue pela cessação do motivo pelo qual se originou. Motivo,
como se sabe, não se confunde com causa: o motivo é altamente subjetivo, e não consta do
contrato, em regra, pelo que a verificação de seu fim depende de análise judicial.
O perecimento da coisa faz extinto o contrato, a não ser que se enquadre em uma
das modalidades de subrogação já analisadas, quando então há mero deslocamento objetivo
do usufruto.
O inciso VI do artigo 1.410 do CC fala em consolidação como causa de extinção do
usufruto. Consolidar nada mais é do que operar a confusão entre as figuras de nu
proprietário e usufrutuário, de um lado ou de outro da relação: se o proprietário obtém o
usufruto, ou se o usufrutuário adquire o bem, há consolidação do domínio pleno nesta
pessoa, extinguindo-se o contrato de usufruto.
O inciso VII do artigo em comento trata da extinção por culpa do usufrutuário: se
este aliena, deteriora, ou deixa arruinar os bens, inobservando o dever primordial de
conservação, o usufruto se extingue. Esta violação contratual depende de medida judicial
para sua constatação, e consequente extinção do contrato. Na parte final deste dispositivo,
já abordada outrora, no usufruto de títulos de crédito, é causa de extinção do contrato a não
aplicação das importâncias recebidas pelo crédito na forma da lei, ditada no artigo 1.395 do
CC, já transcrito, e que diz que o usufrutuário aplicará, de imediato, a importância em
títulos da mesma natureza, ou em títulos da dívida pública federal.
O usufruto também se extingue pelo não uso ou não fruição da coisa, ou seja, o
motivo genérico de todo usufruto, especialmente o gratuito, qual seja, o amparo alimentar,
deixa de existir, e o usufruto perde a sua função. Esta extinção deve ser declarada
judicialmente, e o maior problema, aqui, é a ausência de previsão de prazo legal de inércia:
por quanto tempo o bem deve ficar sem uso ou fruição até ser decretada a extinção do
usufruto?
Marco Aurélio Bezerra de Melo capitaneia corrente que, ante o silêncio da lei, deve
ser aplicado o maior prazo prescricional existente no CC, que hoje é de dez anos. Este
argumento encontra amparo no artigo 1.389, III, do CC, que fala neste prazo para a
extinção da servidão pelo não uso:

“Art. 1.389. Também se extingue a servidão, ficando ao dono do prédio serviente a


faculdade de fazê-la cancelar, mediante a prova da extinção:
(...)
III - pelo não uso, durante dez anos contínuos.”

A corrente majoritária, porém, é a adotada pelo CJF, como se vê no seu enunciado


252, da Terceira Jornada de Direito Civil:

“Enunciado 252, CJF – Art. 1.410: A extinção do usufruto pelo não-uso, de que
trata o art. 1.410, inc. VIII, independe do prazo previsto no art. 1.389, inc. III,

Michell Nunes Midlej Maron 151


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

operando-se imediatamente. Tem-se por desatendida, nesse caso, a função social


do instituto.”

Veja que simplesmente não há prazo, para esta corrente: constatado o não uso ou
não fruição, o usufruto simplesmente se extingue imediatamente, a depender unicamente da
prova, em juízo, de que a função social do instituto, seu motivo genérico (o peso alimentar),
se esvaiu. Esta subjetividade é criticada pela outra corrente, de Marco Aurélio, que diz que
tal verificação casuística pode gerar situações absurdas e desiguais – mas é a posição
majoritária.
Há ainda uma última causa legal de extinção do usufruto, traçada no artigo 1.411 do
CC:

“Art. 1.411. Constituído o usufruto em favor de duas ou mais pessoas, extinguir-se-


á a parte em relação a cada uma das que falecerem, salvo se, por estipulação
expressa, o quinhão desses couber ao sobrevivente.”

Trata, este artigo, do usufruto simultâneo, dado concomitantemente a dois ou mais


usufrutuários, que se tornam compossuidores da coisa, e é perfeitamente válido – não se
confundindo com o usufruto sucessivo, que é vedado, como dito. No caso do usufruto
simultâneo, a morte de um dos co-usufrutuários não dá direito ao outro de acrescer o
usufruto da coisa, automaticamente: morto um dos co-usufrutuários, seu quinhão de
usufruto extingue-se, ou seja, o nu proprietário passa a ter consigo aquela parcela de direito
de usar e fruir a coisa, tornando-se compossuidor direto da coisa, concomitantemente ao co-
usufrutuário sobrevivente. Esta norma é dispositiva, porém, podendo o contrato de usufruto
contemplar ao co-usufrutuário sobrevivente o direito de acrescer a seu usufruto o direito de
usufruto deixado pelo falecido.
Há uma só exceção, em que o direito de acrescer é legalmente entregue ao co-
usufrutuário supérstite: a do legado deixado em usufruto simultâneo no testamento. Veja o
artigo 1.946 do CC:

“Art. 1.946. Legado um só usufruto conjuntamente a duas ou mais pessoas, a parte


da que faltar acresce aos co-legatários.
Parágrafo único. Se não houver conjunção entre os co-legatários, ou se, apesar de
conjuntos, só lhes foi legada certa parte do usufruto, consolidar-se-ão na
propriedade as quotas dos que faltarem, à medida que eles forem faltando.”

Veja que o direito de acrescer, aqui, é dado quando o legado for deixado na forma
conjunta, ou seja, sem definição de cota para nenhum dos usufrutuários simultâneos. Se o
usufruto não for conjunto, ou seja, for estabelecida a cota de usufruto de cada um, a regra
volta a ser a geral: não haverá direito de acrescer, e o nu proprietário consolidará as
parcelas de usufruto daqueles co-usufrutuários que vierem a falecer (pois se entende que o
testador estabeleceu teto de usufruto para cada um dos usufrutuários simultâneos,
presumindo-se a vontade de não permitir acréscimo).
Novamente, é regra dispositiva, e se o testador quiser pode expressar que não
haverá direito de acrescer entre os co-usufrutuários legatários.

2. Direito de uso e direito real de habitação

Michell Nunes Midlej Maron 152


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Estes direitos têm muita semelhança com o usufruto, e por isso a proximidade do
estudo dos institutos.
Quanto ao direito real de uso, veja o que diz o artigo 1.413 do CC

“Art. 1.413. São aplicáveis ao uso, no que não for contrário à sua natureza, as
disposições relativas ao usufruto.”

Já em relação ao direito real de habitação, veja o artigo 1.416 do CC:

“Art. 1.416. São aplicáveis à habitação, no que não for contrário à sua natureza, as
disposições relativas ao usufruto.”

Escalonando os três direitos – usufruto, uso e habitação –, poder-se-ia dizer que o


uso é um usufruto minimizado, carente da fruição – é um mini-usufruto; e o direito real de
habitação representa apenas um dos poderes do usufruto.
Veja o artigo 1.412 do CC:

“Art. 1.412. O usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem
as necessidades suas e de sua família.
§ 1° Avaliar-se-ão as necessidades pessoais do usuário conforme a sua condição
social e o lugar onde viver.
§ 2° As necessidades da família do usuário compreendem as de seu cônjuge, dos
filhos solteiros e das pessoas de seu serviço doméstico.”

Ora, como pode o caput deste dispositivo dizer que o usuário perceberá os frutos, se
esta fruição é uma prerrogativa do usufruto? Entenda: o direito real de uso é conferido
apenas para o uso, sendo esta, de fato, sua única finalidade – e não a fruição.
Excepcionalmente, porém, é permitido ao usuário extrair frutos da coisa, nos limites das
necessidades subsistenciais sua e de sua família. Como exemplo, pode o usuário de uma
casa plantar no terreno desta e colher dali os frutos para alimentação de sua família; ou o
usuário de um apartamento alugar um quarto, a fim de obter renda alimentar, se desprovido
de qualquer meio de subsistir.
O que não é permitido, jamais, é que o usuário extraia frutos do bem além do limite
da necessidade subsistencial, porque então estar-se-ia equiparando a um usufruto. É por
isso que os §§ do artigo 1.412 do CC se dedicam a identificar os limites da necessidade do
usuário e sua família. A referência da parte final do § 2°, a “pessoas de seu serviço
doméstico”, é texto em desuso, porque se referia originalmente àqueles empregados
domésticos que residiam junto aos patrões, dependendo economicamente do usuário. Hoje,
não se justifica mais esta previsão, ante a gama de direitos trabalhistas com que os
empregados domésticos contam.
Para Nelson Rosenvald, a melhor maneira de se diferenciar o uso do usufruto é
justamente entender que a percepção de frutos pelo usuário não só é excepcional, se
limitando à necessidade subsistencial do usuário e família, mas também que estes frutos
autorizados são somente os naturais. É posição minoritária, porque limita a forma de
obtenção da subsistência, sendo que a lei assim não o fez. Por isso, a melhor e maior
corrente é a que defende que a extração de qualquer tipo de fruto, desde que subsistencial, é
possível.
O direito real de habitação, por seu turno, não deixa de ser um direito real de uso,
mas com o único escopo de implemento da moradia, adstrito, portanto, a bens imóveis. O

Michell Nunes Midlej Maron 153


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

direito real de habitação, portanto, é o menor dos três, porque é de escopo absolutamente
limitado à moradia: não se permite a fruição em hipótese alguma. Aquele que recebe o
direito real de habitação já tem na moradia gratuita a benesse final do instituto. Veja o
artigo 1.414 do CC:

“Art. 1.414. Quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia,
o titular deste direito não a pode alugar, nem emprestar, mas simplesmente ocupá-
la com sua família.”

A habitação é direito temporário e inalienável. Pode ser estabelecida em função de


mais de uma pessoa, que deverão coabitar pacificamente. Se, constituído o direito de
habitação a um conjunto de pessoas, algumas delas exercê-lo e outras não, aquelas que não
o exercem não poderão exigir aluguel daquelas que exercem, por expressa vedação legal
constante do artigo 1.415 do CC:

“Art. 1.415. Se o direito real de habitação for conferido a mais de uma pessoa,
qualquer delas que sozinha habite a casa não terá de pagar aluguel à outra, ou às
outras, mas não as pode inibir de exercerem, querendo, o direito, que também lhes
compete, de habitá-la.”

Casos Concretos

Questão 1

Como se verifica a extinção do usufruto simultâneo decorrente de ato entre vivos e


mortis causa? Aponte a distinção entre o instituto em questão e o fideicomisso.

Resposta à Questão 1

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O usufruto simultâneo é aquele em que o nu proprietário contempla mais de um


usufrutuário ao mesmo tempo. Estabelecido por ato inter vivos, o usufruto simultâneo se
extingue parcialmente, à medida que cada um dos usufrutuários falece, consolidando-se as
parcelas de uso e fruição na pessoa do nu proprietário, a não ser que o contrato tenha
estabelecido expressamente o direito de acrescer, como dispõe o artigo 1.411 do CC.
Se o usufruto simultâneo for estabelecido em testamento, instituído mortis causa, a
regra é a inversa: a morte de cada co-usufrutuário gera direito de acréscimo automático da
sua parcela de uso e fruição aos usufrutuários sobreviventes, a não ser que o testamento
estabeleça que não haverá este direito de acrescer, mas sim a consolidação na pessoa do nu
proprietário – na forma do já visto artigo 1.946 do CC.

Questão 2

José, nu-proprietário, ajuizou ação de extinção de usufruto em face do espólio de


Joaquim Pereira, tendo em vista o falecimento do usufrutuário. Realizada a citação, o réu
requer a extinção do feito sem julgamento do mérito, sob o argumento de que não há a
necessidade do provimento jurisdicional para extinguir usufruto por morte do
usufrutuário. Decida a questão.

Resposta à Questão 2

A resposta é integralmente dada pela mera leitura da súmula 13 do TJ/RJ, já


transcrita, que ilustra bem a dispensa de sentença judicial para a extinção do usufruto pela
morte do usufrutuário. Está correto o réu.

Tema XVI

Direito real de aquisição. Compromisso de compra e venda de bem imóvel. Direito de arrependimento.
Efeitos do registro no cartório imobiliário. Imóveis loteados e não loteados. Parcelamento do solo urbano.
Adjudicação compulsória.

Notas de Aula23

1. Direito real de aquisição


23
Aula ministrada pela professora Consuelo Aguiar Huebra, em 19/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 155


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

A promessa de compra e venda, no CC, está mencionada no artigo 1.225, VII, e


regulada como direito real nos artigos 1.417 e 1.418:

“Art. 1.225. São direitos reais:


(...)
VII - o direito do promitente comprador do imóvel;
(...)”

“Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou


arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no
Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à
aquisição do imóvel.”

“Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do


promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a
outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no
instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do
imóvel.”

A promessa de compra e venda é um contrato, afeto, a princípio, ao direito das


obrigações e não ao direito das coisas. É o pacto pelo qual uma das partes assume
obrigação de fazer, qual seja, firmar outro contrato, a compra e venda definitiva, desde que
a outra parte lhe pague o que é devido. Sob esta ótica, a promessa de compra e venda é um
contrato preliminar, antecedente ao definitivo, que tem por objeto tão-somente a pactuação
futura do contrato definitivo.
O artigo 1.088 do CC de 1916 dispunha o seguinte:

“Art. 1.088. Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato,
qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as
perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts.
1.095 a 1.097.”

A idéia que se passava era que as partes da promessa poderiam, a qualquer tempo,
se arrepender do contrato, deixando de firmar o contrato definitivo – mesmo depois de
recebido o pagamento integral, que seria simplesmente devolvido, com juros e correção
monetária. Ocorre que a desistência poderia, em alguns casos, criar uma situação danosa
irreparável para a parte contrária: se o promitente vendedor desistisse, porque o imóvel se
valorizou muito com o tempo, o promitente comprador nada poderia fazer, e o montante
devolvido seria insuficiente para adquirir bem equivalente; e se o promitewnte comprador
desistisse, porque o imóvel se desvalorizou, o prejuízo vindo desta especulação ao
promitente vendedor era patente.
Em 1937, o Decreto 58 veio tratar do tema, regulamentando a promessa de compra
e venda em imóveis loteados. O primeiro direito que este diploma estabeleceu foi o de que
as promessas que, dali em diante, envolvessem imóveis loteados, não mais poderiam sofrer
arrependimento: estabeleceu, portanto, a irretratabilidade da promessa de compra e venda
de imóveis loteados. Com isso, estabeleceu também o direito de adjudicação compulsória
para o promitente comprador, que com sua parte do contrato preliminar cumprida, sujeitava
o promitente vendedor à sua vontade, quando se recusasse este a fazer o que se
comprometera – ir ao cartório firmar a escritura definitiva de compra e venda.

Michell Nunes Midlej Maron 156


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Assim surgiu o direito à adjudicação compulsória do imóvel, obtido judicialmente


pelo promitente comprador que adimpliu integralmente sua parte no trato. A sentença servia
para operar a transferência no registro.
Mais do que isso, o Decreto 58/37 já dizia que se a promessa de compra e venda
estivesse registrada no RGI, ela se tornaria oponível erga omnes, ou seja, o promitente
comprador tinha direito de sequela contra terceiros, buscando a adjudicação compulsória do
bem, se este fosse vendido a terceiros pelo promitente vendedor. Veja os artigos 15 e 16
deste Decreto 58:

“Art. 15. Os compromissários têm o direito de, antecipando ou ultimando o


pagamento integral do preço, e estando quites com os impostos e taxas, exigir a
outorga da escritura de compra e venda.”

“Art. 16. Recusando-se os compromitentes a outorgar a escritura definitiva no caso


do artigo 15, o compromissário poderá propor, para o cumprimento da obrigação,
ação de adjudicação compulsória, que tomará o rito sumaríssimo. (Redação dada
pela Lei nº 6.014, de 1973)
§ 1 º A ação não será acolhida se a parte, que a intentou, não cumprir a sua
prestação nem a oferecer nos casos e formas legais. (Redação dada pela Lei nº
6.014, de 1973)
§ 2 º Julgada procedente a ação a sentença, uma vez transitada em julgado,
adjudicará o imóvel ao compromissário, valendo como título para a transcrição.
(Redação dada pela Lei nº 6.014, de 1973)
§ 3 º Das sentenças proferidas nos casos deste artigo, caberá apelação. (Redação
dada pela Lei nº 6.014, de 1973)
§ 4º Das sentenças proferidas nos casos dêste artigo caberá o recurso de agravo de
petição.
§ 5º Estando a propriedade hipotecada, cumprido o dispositivo do § 3º, do art. 1º,
será o credor citado para, no caso dêste artigo, autorizar o cancelamento parcial da
inscrição, quanto aos lotes comprometidos.”

Vê-se, portanto, que os direitos do promitente comprador foram trazidos ao


ordenamento, originalmente, neste Decreto, com a adstrição apenas aos imóveis loteados,
porém. Para ampliar este alcance objetivo a fim de se chegar aos imóveis não loteados, veio
a Lei 649/49, que estendeu tal dinâmica aos imóveis não loteados. Veja o artigo 1° desta lei:

“Art. 1º O Artigo 22, do Decreto-lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, passa a ter


esta redação:
‘Os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e
venda de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato da sua
constituição ou deva sê-lo em uma ou mais prestações desde que inscritos em
qualquer tempo, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros e
lhes confere o direito de adjudicação compulsória, nos têrmos dos artigos 16 desta
lei e 346 do Código do Processo Civil.’”

Veja que esta norma não determinava a irretratabilidade da promessa de compra e


venda de imóveis não loteados, abrindo a possibilidade de as partes ajustarem
expressamente a possibilidade de desistência. Obviamente, na inexistência de cláusula de
arrependimento, a promessa era irretratável e irrevogável por simples observância do pacta
sunt servanda, mas havia possibilidade de consignar esta cláusula de arrependimento, a
qual era vedada na promessa de imóvel loteado.

Michell Nunes Midlej Maron 157


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Em 1979, a Lei 6.766 regulou as promessas de compra e venda em imóveis loteados


na zona urbana, fazendo com que o Decreto 58/37 passasse a vigorar apenas em relação aos
imóveis rurais. Esta lei repetiu todas as previsões do decreto, e foi além: estabelece a
irretratabilidade da promessa, e a dispensa da ação de adjudicação compulsória ante a
recusa injustificada do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva: o próprio
contrato quitado serve como título para a alteração do registro, como se vê no artigo 26, §
6°, deste diploma:

“Art. 26 - Os compromissos de compra e venda, as cessões ou promessas de cessão


poderão ser feitos por escritura pública ou por instrumento particular, de acordo
com o modelo depositado na forma do inciso VI do art. 18 e conterão, pelo menos,
as seguintes indicações:
(...)
§ 6º Os compromissos de compra e venda, as cessões e as promessas de cessão
valerão como título para o registro da propriedade do lote adquirido, quando
acompanhados da respectiva prova de quitação. (Incluído pela Lei nº 9.785,
29.1.99)
(...)”

Os artigos 1.417 e 1.418 do CC regulam, hoje, alguns efeitos da promessa de


compra e venda de imóveis não loteados, ou seja, não se contrapõem a esta Lei 6.766/79.
Tanto é assim que o artigo 1.417 do CC fala em possibilidade de constar cláusula de
arrependimento, o que não é possível em imóveis loteados.
Havendo possibilidade de arrependimento, à parte contrária resta apenas a
devolução dos valores pagos, com juros e correção. Contudo, parte da jurisprudência tem
entendido que, mesmo havendo esta cláusula, ela só poderá ser invocada até o recebimento
da primeira parcela das prestações pela promessa, ou seja, recebido qualquer valor (exceto
o sinal, que não é parcela, e sim arras), a cláusula de arrependimento perde vigência. Assim
sendo, caberá adjudicação compulsória, mesmo neste caso. De outro lado, há jurisprudência
que diz que a perda da vigência da cláusula de arrependimento não se dá no recebimento da
primeira parcela, mas sim quando acontecer a quitação integral do preço.
Vê-se que a promessa de compra e venda não é um contrato preliminar comum. A
obrigação de fazer um novo contrato, que é a obrigação do contrato preliminar, aqui, não
depende necessariamente da vontade das partes em firmar o pacto definitivo, porque se
houver recusa injustificada, a lei supre esta vontade faltante, por meio da adjudicação
compulsória. Destarte, é um contrato preliminar impróprio, sendo a sua ideia a de que a
cada parcela paga, o promitente comprador adquire a proporcional propriedade do bem.
Marco Aurélio Bezerra de Melo, atento a este raciocínio, defende que a promessa de
compra e venda é um contrato sujeito a condição resolutiva: a condição é que se não pagar
todas as parcelas, perde o bem – e não suspensiva, no sentido de que se pagar todas as
parcelas, adquire o bem, como entende outra parte da doutrina.
Pela grande quantidade de informações, vale trazer uma síntese: a promessa de
compra e venda é um contrato preliminar, que tem por objeto principal, a princípio, uma
obrigação de fazer, qual seja, realizar a escritura definitiva de compra e venda.
O artigo 1.088 do CC de 1916, já transcrito, tratando dos contratos do tipo
preliminar, estabelecia a possibilidade de arrependimento para qualquer das partes, antes da
realização do contrato definitivo, o que muitas vezes gerava para o promitente comprador

Michell Nunes Midlej Maron 158


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

um dano irreparável, posto que mesmo obtendo o preço de volta com juros e correção,
muitas vezes não conseguia mais adquirir imóvel do mesmo porte.
O Decreto 58/37 passou a regular a promessa de compra e venda, estabelecendo sua
irretratabilidade cogente, e a possibilidade de adjudicação compulsória na hipótese de
recusa injusta da realização da escritura definitiva, por parte do promitente vendedor, e
também a oponibilidade erga omnes da promessa registrada no RGI.
Entretanto, chegou-se à conclusão de que este Decreto não se aplicava aos imóveis
não loteados, e por isso veio a Lei 649/49, que também concedia aos promitentes
compradores o direito à adjudicação compulsória, mas não estabelecia a irretratabilidade da
promessa.
Em 1979, nasceu a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, Lei 6.766/79, que
reproduziu as proteções do Decreto 58/37, estabelecendo, ainda, no artigo 26, § 6°, já
transcrito, a possibilidade do promitente comprador registrar o imóvel em seu nome sem a
necessidade da escritura definitiva ou da ação de adjudicação compulsória, desde que
apresente ao RGI o instrumento da promessa acompanhado do recibo de quitação. Esta lei
regula a promessa de compra e venda de imóveis loteados urbanos, de forma que o Decreto
58/37 é atualmente aplicado somente aos loteamentos rurais.
Os artigos 1.417 e 1.418 do CC, já transcrito, tratam da promessa de compra e
venda de imóveis não loteados, o que fica claro na redação do primeiro destes dispositivos,
que permite a estipulação de cláusula de arrependimento – o que é inadmissível nos
imóveis loteados. Vale esclarecer que a jurisprudência é unânime no sentido de que, mesmo
existindo cláusula de arrependimento expressa, o direito potestativo de arrepender-se perde
vigência, sendo que a maioria entende que só pode ser exercido pelo promitente vendedor
até a quitação da última parcela, havendo ainda alguns julgados que dispõem que o direito
de arrependimento, nestes casos, só é cabível até as arras penitenciais, ou seja, até o
pagamento da primeira parcela, e não da última.
Vale ainda mencionar que a promessa de compra e venda pactuada junto a uma
incorporadora tem regras diferentes das que se apresentou, porque além de se tratar de uma
relação consumerista, o artigo 32, § 2°, da Lei de Incorporação Imobiliária, Lei 4.591/64, a
reputa irretratável e irrevogável:

“Art. 32. O incorporador sòmente poderá negociar sôbre unidades autônomas após
ter arquivado, no cartório competente de Registro de Imóveis, os seguintes
documentos:
(...)
§ 2° Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de
cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem
direito real oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória
perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência
posterior ao término da obra. (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004)
(...)”

Qualquer cláusula que contrarie este dispositivo é nula.


Por fim, vale dizer que qualquer cláusula resolutiva expressa ou tácita depende de
notificação para ser exercida: simplesmente não existe mora ex re nas promessas de compra
e venda, qualquer que seja sua modalidade. Havendo inadimplemento pelo promitente
comprador, ele deve ser notificado, não se exercendo a cláusula resolutiva expressa sem
antes facultar a purga da mora. Veja a súmula 76 do STJ:

Michell Nunes Midlej Maron 159


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Súmula 76, STJ: A falta de registro do compromisso de compra e venda de imóvel


não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o devedor.”

Assim o é para que o promitente comprador tenha tempo de purgar a mora, ante a
relevância dos direitos envolvidos neste contrato.

1.1. Relevância do registro

O artigo 1.417 do CC dispõe que surge, na promessa registrada, o direito real de


aquisição. Surgiria o direito real de adjudicar a coisa para si, a princípio, em observação
literal deste dispositivo, quando houvesse o registro da promessa. Contudo, esta não é a
leitura que se deve fazer deste artigo: o registro não é necessário para haver direito à
adjudicação compulsória. Veja a súmula 239 do STJ:

“Súmula 239, STJ: O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao


registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.”

A lógica desta súmula é que a promessa de compra e venda é um contrato, e como


tal é oponível entre as partes, é lex inter partes, desde quando pactuado. O registro só se faz
necessário quando se pretender opor a promessa a terceiros, porque somente com o registro
a promessa ganha publicidade e oponibilidade erga omnes. Se o registro fosse necessário
para que o pacto se tornasse oponível entre as partes, o princípio da relatividade e
obrigatoriedade contratual seria jogado por terra.
Destarte, a adjudicação compulsória será possível entre as partes, promitentes, quer
esteja registrada a promessa ou não. O registro só se exige para que possa o promitente
comprador intentar adjudicação compulsória contra terceiros.

Casos Concretos

Questão 1

Ana celebrou contrato de promessa de compra e venda com a Incorporadora X. No


dia aprazado, o imóvel não foi entregue pela incorporadora, e Ana parou de pagar as
parcelas ajustadas. Com fundamento no descumprimento da obrigação, Ana ajuíza ação
em face da Incorporadora pleiteando a rescisão contratual, mais danos materiais e
morais. Em contestação, a incorporadora pugna pela manutenção do contrato, e alega que
a demora na entrega do imóvel se deu em razão da grande inadimplência da maior parte
dos adquirentes, e que a autora também deixou de cumprir a sua obrigação, parando de
pagar as parcelas ajustadas. Decida a questão.

Michell Nunes Midlej Maron 160


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Resposta à Questão 1

Ana deixou de cumprir suas obrigações no exercício regular da exceção do contrato


não cumprido, ou seja, ela não descumpriu o contrato. A incorporadora não tem qualquer
sustentação para seus argumentos, pois deveria ter condições para adimplir o contrato.
Desta forma, a promitente compradora tem direito a todo o ressarcimento que pleiteia, à
exceção dos danos morais, que não ocorrem pelo simples descumprimento contratual, como
aconteceu in casu, na forma da súmula 75 do TJ/RJ:

“Súmula 75, TJ/RJ: DESCUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL.


DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. MERO ABORRECIMENTO. DANO
MORAL. INEXISTÊNCIA.
O simples descumprimento de dever legal ou contratual, por caracterizar mero
aborrecimento, em princípio, não configura dano moral, salvo se da infração
advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte.”

A respeito, veja a Apelação Cível 2001.001.17003, do TJ/RJ:

“Processo: 0060153-94.2000.8.19.0001 (2001.001.17003) 1ª Ementa –


APELACAO. DES. SIDNEY HARTUNG - Julgamento: 06/11/2001 - QUARTA
CAMARA CIVEL.
INCORPORACAO IMOBILIARIA. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE
IMOVEL. ATRASO NA ENTREGA DA OBRA. RESCISAO DE CONTRATO.
MORA DO PROMITENTE COMPRADOR. IRRELEVANCIA. DANO MORAL.
DESCABIMENTO. MULTA. INOCORRENCIA. DESCONSIDERACAO DA
PERSONALIDADE JURIDICA. IMPOSSIBILIDADE. SUCUMBENCIA.
Apelacao civel. Rescisao contratual. Compromisso de compra e venda. Atraso no
termino da obra. Alegacao de inadimplemento da maioria dos adquirentes de
imoveis do empreendimento. Mora do autor. Irrelevancia. Danos morais. Nao
cabimento. Multa imposta pelo art. 35, par. 5. da Lei n. 4591/64. Inocorrencia.
Desconsideracao da personalidade juridica. Impossibilidade. Oficio `a
Procuradoria Geral de Justica. Onus da sucumbencia. A Lei Civil impoe nos
contratos bilaterais o dever de as partes cumprirem suas obrigacoes, sendo
irrelevante o fato de que o Autor interrompeu o pagamento de suas prestacoes, pois
tal fato se verificou apos o prazo determinado pelo contrato para a entrega da obra,
nao se anunciando na hipotese a 2a parte do citado dispositivo. A alegada
inadimplencia de grande parte dos adquirentes e' fato irrelevante em face do autor
porque, alem de nao demonstrar esta circunstancia, deveria estar devidamente
mnunido de meios para cumprir o contrato, diante da atividade que exerce, sendo
fato previsivel eventuais atrasos, ainda mais que o contrato foi celebrado em 1995,
e a entrega das unidades imobiliarias seriam 3 (tres) anos apos. E' tambem
irrelevante a alegacao de que a obra praticamente se encerrou pois tambem de ha'
muito verificou-se o seu inadimplemento, acarretando ao Autor o direito de
rescisao de contrato e indenizacao cabiveis. A hipotese nao comporta danos
morais, pois evidente que o inadimplemento contratual em si nao causou qualquer
constrangimento moral para o Autor. Nao se aplica a multa prevista no art. 35, par.
5. da Lei n. 4591/64 quando se verifica que o incorporador outorgou ao Autor o
contrato referente a transacao imobiliaria, efetuando na forma devida o registro do
memorial de incorporacao. Embora nao incida tambem na hipotese a multa
prevista no par. 6. do art. 66 da referida lei, por ser modalidade de pena por pratica
de contravencao penal, procede o pedido de expedicao de pecas para o devido
encaminhamento a Douta Procuradoria de Justica. Se nao verificado abuso de

Michell Nunes Midlej Maron 161


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

direito, ilicitude ou violacao do contrato social de forma a atingir o direito do


Consumidor, inadmissivel a desconsideracao da personalidade juridica,
considerando-se, inclusive, o carater restritivo da norma contida no art. 28 do
CDC. Tendo a verba honoraria observado os requisitos a ela pertinentes na
hipotese dos autos, inclusive quanto `a fixacao do percentual de 10% (dez por
cento) sobre o montante da condenacao, deve a mesma ser mantida. Parcial
provimento do recurso da parte autora; improvimento do recurso da parte re'.”

Questão 2

José prometeu comprar de João um imóvel não loteado em 60 prestações de R$


3.000,00, e quitou a obrigação em 10 de fevereiro de 2004. Diante da recusa do promitente
vendedor em outorgar voluntariamente a escritura definitiva, viu-se na contingência de
ajuizar ação de adjudicação compulsória em face de João que, citado, alega não estar
obrigado a fazer a escritura, pois o compromisso não se encontra devidamente registrado,
nos termos do artigo 1.418 do Código Civil e do entendimento do Supremo Tribunal
Federal. Diante da alegação do réu, como deverá decidir o juiz?

Resposta à Questão 2

O registro não é necessário para surgir direito à adjudicação compulsória para o


promitente comprador, quando exercido diretamente contra o promitente vendedor. A
súmula 308 do STJ, já transcrita, é clara neste sentido. O registro é relevante apenas para
opor a promessa perante terceiros, mas não perante as próprias partes do processo.

Tema XVII

Direitos reais de garantia: conceito, características, requisitos subjetivos, objetivos, formais. Vencimento
antecipado da dívida. Penhor: conceito, objeto e modalidades. Análise crítica do penhor legal. Propriedade
fiduciária: conceito, objeto, legislação aplicada, análise crítica da prisão civil do depositário infiel.

Notas de Aula24

1. Direitos reais de garantia

24
Aula ministrada pelo professor Carlos Santos de Oliveira, em 23/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 162


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O artigo 1.225 do CC elenca os direitos reais existentes no Brasil, como se sabe,


estabelecendo ali, além da propriedade, direitos reais de gozo ou fruição, quais sejam, a
superfície, as servidões, o usufruto, o uso e a habitação, além dos inovativos direitos reais
de concessão de uso especial para fins de moradia e concessão de direito real de uso.
Estabelece também o direito real de aquisição, do promitente comprador de imóvel. E, por
fim, traz dos direitos reais de garantia, nos incisos VIII a X:

“Art. 1.225. São direitos reais:


(...)
VIII - o penhor;
IX - a hipoteca;
X - a anticrese.
(...)”

1.1. Propriedade fiduciária

O CC trouxe, no artigo 1.361, também a propriedade fiduciária:

“Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel


infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.
§ 1° Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por
instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e
Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição
competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro.
§ 2° Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da
posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa.
§ 3° A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o
arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária.”

A propriedade é plena quando nela estão inseridos todos os atributos reais possíveis,
mas pode ser limitada, quer pela cessão de parte de seus atributos – quando o proprietário
entrega o uso, a fruição, como quando concede a superfície –, ou pode ser ainda resolúvel,
que é a propriedade fadada a se extinguir.
Veja: na propriedade resolúvel, não há propriedade plena, pois existe uma limitação
temporal: a propriedade durará apenas o tempo que levar para que outrem a adquira, pelo
pagamento de parcelas correspondentes a sua aquisição. O exemplo mais clássico de
propriedade resolúvel é o fideicomisso: o testador deixa um determinado bem ao fiduciário,
que terá a propriedade deste bem até quando o fideicomissário puder recebê-lo em seu
patrimônio – ou seja, o fiduciário tem a propriedade até certo termo, quando esta se
resolverá em favor do fideicomissário.
Na propriedade fiduciária, do artigo 1.361 do CC, a propriedade do credor sobre o
bem subsiste como garantia da dívida contraída perante si pelo ex-dono da coisa, mas é
uma propriedade destinada a se resolver, retornando ao devedor, quando quitadas todas as
parcelas da dívida garantida.
A propriedade fiduciária, que é do uma variação do direito de propriedade, não está
no rol dos direitos traçado no artigo 1.225 do CC, e poderia ser considerada um quarto
direito real de garantia.

1.2. Disposições gerais sobre os direitos reais de garantia

Michell Nunes Midlej Maron 163


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O direito real de garantia pode ser definido como direito subjetivo da parte, que,
através de manifestação da vontade, tem o condão de afetar um determinado bem como
garantia de uma determinada obrigação. Vejamos cada qual destes direitos classicamente
apontados – a hipoteca, o penhor e a anticrese – de forma apartada, deixando de lado a
alienação fiduciária em garantia, que foi alvo de tema próprio.
As disposições gerais sobre os direitos reais de garantia têm início no artigo 1.419
do CC:

“Art. 1.419. Nas dívidas garantidas por penhor, anticrese ou hipoteca, o bem dado
em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação.”

Tal “parte geral” dos direitos reais de garantia, que vai até o artigo 1.430 do CC, é
aplicável a todos os direitos reais desta natureza, inclusive, alguns dispositivos, até mesmo
à alienação fiduciária em garantia, quarta modalidade identificada no CC, como dito, pela
previsão do artigo 1.367 do CC:

“Art. 1.367. Aplica-se à propriedade fiduciária, no que couber, o disposto nos arts.
1.421, 1.425, 1.426, 1.427 e 1.436.”

Veja que até mesmo um artigo de tratamento especial ao penhor (1.436 do CC) é
aplicável à propriedade fiduciária do CC.
Os direitos de garantia são, antes de tudo, direitos reais, e com isso têm todas as
características destes, com algumas exceções. Característica geral dos direitos reais,
altamente relevante nos de garantia, é a sequela. A partir do momento em que se outorga
este direito real ao garantido, a coisa passa a ser afetada a garantir a obrigação de direito
pessoal, a ele aderindo, e por isso quando inadimplida a obrigação, a coisa pode ser
reivindicada pelo credor garantido.
A preferência é uma das exceções: incide sobre o penhor e a hipoteca, mas não
sobre a anticrese. Veja o artigo 1.422 do CC:

“Art. 1.422. O credor hipotecário e o pignoratício têm o direito de excutir a coisa


hipotecada ou empenhada, e preferir, no pagamento, a outros credores, observada,
quanto à hipoteca, a prioridade no registro.
Parágrafo único. Excetuam-se da regra estabelecida neste artigo as dívidas que, em
virtude de outras leis, devam ser pagas precipuamente a quaisquer outros créditos.”
Veja que o dispositivo não fala da anticrese, conforme se verifica na previsão do
artigo seguinte, 1.423 do CC: o credor anticrético, mais do que preferência, tem a retenção
do bem. Veja:

“Art. 1.423. O credor anticrético tem direito a reter em seu poder o bem, enquanto
a dívida não for paga; extingue-se esse direito decorridos quinze anos da data de
sua constituição.”

1.2.1. Vedação ao pacto comissório

Característica especial dos direitos reais de garantia é a proibição de pacto


comissório. Esta cláusula, o pacto comissório, é instituto que permite ao credor ficar com o

Michell Nunes Midlej Maron 164


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

bem, tornar-se proprietário dele, caso o devedor não honre a dívida – espécie de
adjudicação automática do bem em lugar da dívida inadimplida. Veja o artigo 1.428 do CC:

“Art. 1.428. É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou


hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no
vencimento.
Parágrafo único. Após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento
da dívida.”

Trata-se de uma proteção ao devedor, que não perderá o bem automaticamente


quando houver a inadimplência da dívida, sem passar, para tanto, pelo necessário processo
contraditório que garanta lisura na satisfação deste credor.
É claro que, como é esta proibição protetiva do devedor, ele pode dela abrir mão,
mas não previamente ao inadimplemento, no contrato – nem mesmo se previr
expressamente que será imposta a dação somente após o inadimplemento. Poderá dar o bem
em pagamento da dívida, naturalmente, em dação em pagamento, mas apenas se o quiser
fazer, após a inadimplência, tal como diz o parágrafo único do próprio artigo supra. E veja
que é necessário que haja o inadimplemento para que isto seja possível, não podendo, a
dação, ser o meio eleito primariamente para pagamento da dívida.

1.2.2. Indivisibilidade dos direitos reais de garantia

O artigo 1.421 do CC trata da indivisibilidade do direito real de garantia:

“Art. 1.421. O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa


exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens,
salvo disposição expressa no título ou na quitação.”

O que esta norma prevê é que não é possível que a garantia vá se desfazendo na
proporção do pagamento da dívida garantida, a não ser que esta seja a dinâmica imposta
pelas partes no contrato, expressamente. Não pode, no silêncio do contrato, o devedor
entender que seu bem está parcialmente liberado do gravame, na proporção da parcela paga
da dívida.
Este artigo mereceria uma releitura, à luz do princípio do adimplemento substancial,
não para entender-se que haja a exoneração parcial da garantia, mas sim para reputar
exonerada esta quando quase todas as parcelas forem quitadas: restará a parcela final da
dívida, mas não haverá mais a garantia pelo bem, por conta do pagamento de quase todas as
parcelas. É uma leitura moderna, bastante antenada com a constitucionalização do Direito
Civil, eis que premia a boa-fé objetiva, demonstrada pelo devedor substancialmente
adimplente, que não é mal pagador.

1.2.3. Acessoriedade

O artigo 1.419 do CC, há pouco transcrito, determina que o direito real de garantia é
acessório a um direito obrigacional: a obrigação é principal, não podendo existir direito real
de garantia autônomo – o que é muito óbvio, eis que se não há o que se garantir, não há
sentido em se criar garantia vazia.

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

1.2.4. Requisitos

O artigo 1.420 do CC estabelece os requisitos objetivos e subjetivos destes direitos


reais de garantia:

“Art. 1.420. Só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em
anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese
ou hipoteca.
§ 1° A propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais
estabelecidas por quem não era dono.
§ 2° A coisa comum a dois ou mais proprietários não pode ser dada em garantia
real, na sua totalidade, sem o consentimento de todos; mas cada um pode
individualmente dar em garantia real a parte que tiver.”

Segundo se vê no caput, somente pode outorgar a garantia somente aquele que tem
a disposição sobre o bem, e, antes disso, que seja capaz para tanto, ou representado ou
assistido, conforme a incapacidade. Este é o requisito subjetivo destes direitos.
Ainda no caput, se vê requisito negativo imposto para que o bem possa ser dado em
garantia: que não seja vedada a sua alienação. Esta inalienabilidade afeta aqueles chamados
bens fora do comércio. Aqui cumpre chamar atenção para o conceito da
extracomercialização, que é justamente esta natureza de bem fora do comércio: podem os
bens ser absolutamente extracomerciais, como as águas oceânicas, o ar atmosférico, etc.,
que assim o são por sua própria natureza; ou relativamente extracomerciais, quando esta
característica é dada por lei ou por força da vontade, como os bens públicos afetados –
legalmente extracomerciais – ou os bens gravados por cláusula de inalienabilidade, como
no clausulamento restritivo em testamento, por exemplo.
Ora, se a garantia tem por escopo liquidar o bem e com isto quitar a dívida
garantida, quando inadimplida, não podendo o bem ser alienado, não há qualquer préstimo
na sua outorga em garantia.
A garantia, em regra, é dada pelo próprio devedor, com bem próprio, mas a lei
permite que seja dado bem de terceiro, por este terceiro, em garantia da dívida alheia. É
disposição de vontade, nada impedindo esta dinâmica. Por exemplo, pode uma pessoa dar
bem próprio em penhor para garantir a dívida de seu amigo, por mera questão de amizade.
Além dos requisitos objetivos e subjetivos dos direitos reais de garantia, há também
que ser observado os requisitos formais, impostos no artigo 1.424 do CC:

“Art. 1.424. Os contratos de penhor, anticrese ou hipoteca declararão, sob pena de


não terem eficácia:
I - o valor do crédito, sua estimação, ou valor máximo;
II - o prazo fixado para pagamento;
III - a taxa dos juros, se houver;
IV - o bem dado em garantia com as suas especificações.”

O que este artigo impõe é a chamada especialização da garantia, especialização do


direito real de garantia, que é a necessária definição exata de seus limites.
Além da especialização, outro requisito formal imposto à constituição do direito real
de garantia é o registro, tornado necessário pelos artigos 1.227, 1.432 e 1.438 do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 166


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

“Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos
entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos
referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.”

“Art. 1.432. O instrumento do penhor deverá ser levado a registro, por qualquer
dos contratantes; o do penhor comum será registrado no Cartório de Títulos e
Documentos.”
“Art. 1.438. Constitui-se o penhor rural mediante instrumento público ou
particular, registrado no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição em que
estiverem situadas as coisas empenhadas.
Parágrafo único. Prometendo pagar em dinheiro a dívida, que garante com penhor
rural, o devedor poderá emitir, em favor do credor, cédula rural pignoratícia, na
forma determinada em lei especial.”

A ausência do registro faz com que se perca a garantia real perante terceiros, mas
não significa que o negócio seja inexigível entre as partes. A necessidade do registro é
justamente para criar oponibilidade erga omnes, ante a publicidade, mas o negócio não
registrado ainda é vigente entre as partes que o pactuaram.

1.2.5. Vencimento antecipado da dívida

O artigo 1.425 do CC trata das hipóteses em que ocorre o vencimento antecipado da


dívida:

“Art. 1.425. A dívida considera-se vencida:


I - se, deteriorando-se, ou depreciando-se o bem dado em segurança, desfalcar a
garantia, e o devedor, intimado, não a reforçar ou substituir;
II - se o devedor cair em insolvência ou falir;
III - se as prestações não forem pontualmente pagas, toda vez que deste modo se
achar estipulado o pagamento. Neste caso, o recebimento posterior da prestação
atrasada importa renúncia do credor ao seu direito de execução imediata;
IV - se perecer o bem dado em garantia, e não for substituído;
V - se se desapropriar o bem dado em garantia, hipótese na qual se depositará a
parte do preço que for necessária para o pagamento integral do credor.
§ 1° Nos casos de perecimento da coisa dada em garantia, esta se sub-rogará na
indenização do seguro, ou no ressarcimento do dano, em benefício do credor, a
quem assistirá sobre ela preferência até seu completo reembolso.
§ 2° Nos casos dos incisos IV e V, só se vencerá a hipoteca antes do prazo
estipulado, se o perecimento, ou a desapropriação recair sobre o bem dado em
garantia, e esta não abranger outras; subsistindo, no caso contrário, a dívida
reduzida, com a respectiva garantia sobre os demais bens, não desapropriados ou
destruídos.”

Vale mencionar que deteriorar-se é diferente de depreciar-se, apesar de o efeito ser o


mesmo, qual seja, a redução do valor do bem: o bem se deteriora fisicamente, perdendo sua
integridade, e com isso perdendo preço; já a depreciação diz respeito somente à perda de
valor, sem implicar necessariamente em degradação física do bem, mas sim por causas
externas à sua física. Bom exemplo de depreciação é o de um imóvel que vê surgir em sua
frente uma favela: mesmo estando em perfeitas condições, exatamente como antes, o seu
preço cairá muito no mercado.
Se o bem é dado em garantia quando avaliado em determinado valor, e porventura
há sua depreciação ou deterioração, o devedor será instado a reforçar ou substituir a

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EMERJ – CP IV Direito Civil IV

garantia, voltando ao valor original; se não o fizer, a dívida garantida será considerada
desde já vencida e exigível na integralidade.

1.3. A questão da prisão do depositário infiel

O tema sempre foi altamente polêmico, e sempre se entendeu que ou a prisão de


qualquer depositário era medida indevida, ou que, fosse possível, apenas o depósito regular
– o voluntário ou o necessário – poderia ensejar prisão civil, e nunca aquele depósito
irregular, do Decreto-Lei 911/69.
O STF pacificou a questão, recentemente, reputando impossível qualquer prisão de
depositário infiel, mantendo a prisão por dívida de alimentos como a única prisão civil
válida no nosso ordenamento. Veja o RE 466.343:

“RE 466343 / SP - SÃO PAULO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a):


Min. CEZAR PELUSO. Julgamento: 03/12/2008. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.
Publicação: 05-06-2009.
EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária.
Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da
previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc.
LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de
Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido.
Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a
prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.”

Um pouco antes desta pacificação pelo plenário, o STF ainda fazia uma distinção
entre o depósito judicial e o contratual, entendendo que no judicial ainda seria possível a
prisão, mas não no contratual. Veja o HC 92.541 do STF, que retrata a exceção do
depositário judicial infiel:

“HC 92541 / PR – PARANÁ. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min. MENEZES


DIREITO. Julgamento: 19/02/2008. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação:
25-04-2008.
EMENTA Habeas corpus. Processual civil. Depositário judicial infiel. Prisão civil.
Constitucionalidade. Impossibilidade de exame aprofundado de fatos e de provas
na via restrita do habeas corpus. Ordem denegada. Precedentes. 1. Hipótese que
não se amolda à questão em julgamento no Plenário desta Corte sobre a
possibilidade, ou não, de prisão civil do infiel depositário que descumpre contrato
garantido por alienação fiduciária. No presente caso, a prisão decorre da não-
entrega dos bens deixados com o paciente a título de depósito judicial. 2. A decisão
do Superior Tribunal está em perfeita consonância com a jurisprudência desta
Corte no sentido de ser constitucional a prisão civil decorrente de depósito judicial,
pois a hipótese enquadra-se na ressalva prevista no inciso LXVII do art. 5º em
razão da sua natureza não-contratual. 3. Impossibilidade de exame de fatos e de
provas na via restrita do procedimento do habeas corpus a fim de verificar o estado
clínico do paciente para decidir sobre o deferimento de prisão domiciliar. 4. Ordem
denegada.”

Se o depósito for judicial, portanto, o STF ainda entendia que sua infidelidade
poderia levar à prisão civil, como se vê, o que era uma posição bastante estranha, eis que
nem o Pacto de São José da Costa Rica, nem a CRFB, trazem distinção a este respeito entre
o depósito contratual e o judicial, o que levaria à conclusão de impossibilidade da prisão

Michell Nunes Midlej Maron 168


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

civil por qualquer infidelidade do depósito, seja ele contratual ou judicial. Porém, esta
posição do STF já foi deposta, como visto, pelo entendimento do plenário, exposto no RE
466.343, acima transcrito: não subsiste mais qualquer prisão de depositário infiel em nosso
ordenamento.

1.4. Penhor

O penhor é uma modalidade de direito real de garantia que tem por objeto bens
móveis, ou mobilizáveis (como os bens imóveis por acessão intelectual, as atuais
pertenças).
O penhor é direito real, que se constitui por manifestação de vontade, não se
confundindo jamais com a penhora, que é um ato judicial complexo de constrição de bens
para satisfação de créditos judicialmente reconhecidos.
O contrato de penhor, pelo qual se institui este direito real de garantia, é um contrato
real, e não meramente consensual: de nada vale a manifestação de vontade de constituir o
penhor se não houver a efetiva entrega da posse do bem garantidor ao credor. Veja o artigo
1.431 do CC:

“Art. 1.431. Constitui-se o penhor pela transferência efetiva da posse que, em


garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por
ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação.
Parágrafo único. No penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, as coisas
empenhadas continuam em poder do devedor, que as deve guardar e conservar.”

Sem a entrega da posse, não há contrato formado: este só se aperfeiçoa pela tradição
do bem dado em garantia. Antes disso, o contrato assinado não é suficiente para criar a
relação jurídica.
O parágrafo único do artigo supra trata dos penhores especiais, cuja nota marcante é
justamente a de que os bens dados em garantia permanecerão na posse do proprietário
devedor. Isto significa, portanto, que o contrato de penhor especial não é real: não se exige
a tradição para que o contrato seja formado. Nos penhores especiais, o contrato é
consensual, pois fosse real poderia inviabilizar o próprio adimplemento da dívida garantida,
eis que os bens ali empenhados são, em regra, instrumentos de trabalho do devedor, pelo
meio dos quais amealhará renda para pagar a dívida garantida.
Há regramento específico a todos os penhores especiais no CC. O penhor rural, por
exemplo, é gênero que se divide em penhor agrícola e penhor pecuário. Novidade trazida
pelo CC de 2002 é o tratamento especial dado do penhor de veículos, instrumento
facilitador da aquisição destes tipo de bem, tal como a própria alienação fiduciária.

1.4.1. Penhor legal

O penhor, como dito, é criado por força da vontade das partes, como regra geral dos
direitos reais de garantia. O artigo 1.467 do CC, porém, inaugura o tratamento normativo de
uma espécie de penhor instituído pela lei, e não contratualmente:

“Art. 1.467. São credores pignoratícios, independentemente de convenção:


I - os hospedeiros, ou fornecedores de pousada ou alimento, sobre as bagagens,
móveis, jóias ou dinheiro que os seus consumidores ou fregueses tiverem consigo

Michell Nunes Midlej Maron 169


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

nas respectivas casas ou estabelecimentos, pelas despesas ou consumo que aí


tiverem feito;
II - o dono do prédio rústico ou urbano, sobre os bens móveis que o rendeiro ou
inquilino tiver guarnecendo o mesmo prédio, pelos aluguéis ou rendas.”

Nas hipóteses ali mencionadas, o legislador entendeu que surge o penhor como
garantia legalmente instituída às obrigações ali contraídas, por sua peculiaridade.
No inciso I, o legislador implementou o penhor legal por conta da absoluta
transitoriedade da presença física do devedor, que, ausentando-se, pode fugir à obrigação
com muita facilidade. A crítica a este dispositivo é a seguinte: as relações ali açambarcadas
serão, via de regra, consumeristas, e o CDC prevê, no artigo 42, que não poderá o credor
expor o consumidor a situações vexatórias na cobrança da dívida, e nada mais
constrangedor do que ter seus bens de uso retidos para pagamento de débito.

“Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a


ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à
repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido
de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.”

Assim, a previsão do CC será de difícil compatibilização com esta norma do artigo


do CDC supra, na casuística.
No inciso II, o legislador dispôs que as pertenças, e talvez as benfeitorias
voluptuárias, são passiveis de penhor legal para pagamento dos aluguéis ou rendas devidos
ao credor. É claro que este penhor encontra óbice em sua execução na inviolabilidade do
domicílio, que pode impedir a captação física do bem.

Casos Concretos

Questão 1

Em procedimento especial de busca e apreensão de veículo alienado


fiduciariamente em garantia, não foi encontrado o bem pelo Sr. Oficial de Justiça. Logo a
seguir peticionou o réu nos autos, através de advogado, alegando ter sido o veículo
furtado quando estacionado na porta de sua casa. Inadmitindo a alegação, requereu o
autor a simples conversão do procedimento de busca e apreensão em procedimento
especial de depósito, deferido pelo juiz. Contestou o réu, impugnando a conversão pela
irregularidade do depósito em causa e em face do furto, quando anexou certidão policial
do registro de ocorrência. A sentença, fundada na perfectibilidade legal da conversão e

Michell Nunes Midlej Maron 170


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

também por ter sido irrecorrida a decisão que a determinou, julgou procedente o pedido e
ordenou a expedição de mandado de entrega do bem em 24 horas ou do equivalente em
dinheiro, sob pena de prisão até um ano.Responder, justificadamente:
1) A conversão era cabível?
2) A pena de prisão era pertinente à hipótese e, em caso positivo, era obrigatória
ou facultativa e mensurável no decisum da sentença?
3) Desatendida a obrigação, cumprida ou não, concedida a pena de prisão, haverá
outro meio eficaz para a satisfação do crédito?

Resposta à Questão 1

1) Sim: não há nenhuma inconstitucionalidade nesta previsão do DL 911/69, desde


que observada a ampla defesa nesta convolação.
2) Não existe mais a prisão civil do depositário. A título de leitura histórica, porém,
sobre quando se entendia cabível esta medida, ela era facultativa, e não
obrigatoriamente mencionada na sentença – a pena de prisão só seria decretada
se necessária, ou seja, não sendo cumprido o mandado, na forma do artigo 904,
parágrafo único, do CPC:

“Art. 904. Julgada procedente a ação, ordenará o juiz a expedição de mandado para
a entrega, em 24 (vinte e quatro) horas, da coisa ou do equivalente em dinheiro.
Parágrafo único. Não sendo cumprido o mandado, o juiz decretará a prisão do
depositário infiel.”

3) Sim: todos os meios ordinários de satisfação creditícia coercitiva constantes do


ordenamento, como a penhora de bens.

A propósito, veja a Apelação Cível 2003.001.00320, do TJ/RJ:

“Processo: 0032679-17.2001.8.19.0001 (2003.001.00320). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. CASSIA MEDEIROS - Julgamento: 15/04/2003 - DECIMA
OITAVA CAMARA CIVEL.
ALIENACAO FIDUCIARIA. BUSCA E APREENSAO. CONVERSAO DA
BUSCA E APREENSAO EM ACAO DE DEPOSITO.
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO DE
VEÍCULO QUE NÃO FOI ENCONTRADO ALEGAÇÃO DE FURTO DO
MESMO - CONVOLAÇÃO EM AÇÃO DE DEPÓSITO - DEFERIMENTO DO
PEDIDO DE PURGA DA MORA - IMPUGNAÇÃO DO VALOR DO BEM
CONSTANTE DA PLANILHA APRESENTADA PELO AUTOR. A teor do
disposto no artigo 333, inciso II, do Código de Processo Civil incumbe ao réu o
ônus da prova quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do
direito do autor. Ausência de prova de que o valor exigido é excessivo, até porque,
deferido o pedido do réu de remessa dos autos ao Contador para o cálculo do
débito, não foram recolhidas as custas correspondentes. Confirmação da sentença
que julgou procedente o pedido, com a condenação do réu a restituir o veículo
descrito na inicial, no prazo de 24 horas, ou a importância de R$ 7.962,08, que é o
valor do bem, segundo estimativa do autor, deixando todavia, de decretar a prisão
do mesmo e ressalvando ao autor a utilização da faculdade prevista no artigo 906
do Código de Processo Civil. Desprovimento do recurso.”

Questão 2

Michell Nunes Midlej Maron 171


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

João celebrou contrato de alienação fiduciária em garantia, devidamente


registrado no órgão competente, com o Banco Y, para aquisição de um veículo automotor,
em que ficou estipulado que João pagaria 60 prestações, no valor Z. Em decorrência de
problemas financeiros, João tão-somente adimpliu quinze parcelas do contrato. Em virtude
do inadimplemento, o Banco Y propôs ação de Busca e Apreensão, com esteio no Decreto-
lei 911/69, com pedido de liminar, em que o autor comprovou a mora e a propriedade do
bem. Pergunta-se:
1) Quais são os meios de defesa que possui o devedor fiduciante para evitar que a
propriedade plena se consolide nas mãos do credor fiduciário?
1.1) E se o devedor fiduciante tivesse quitado um total de 80% do valor do
contrato? Haveria algo mais a ser alegado?
1.2) Haveria alguma conseqüência se o objeto do contrato fosse um táxi, utilizado
no ofício do devedor fiduciante?
2) Quanto ao registro do contrato, qual o órgão competente?
3) É possível a penhora do veículo, em razão de dívidas do devedor fiduciante? E
do credor fiduciário?
4) Caso o bem, objeto do contrato, não fosse encontrado, e convertida a ação de
busca e apreensão em ação de depósito, é cabível a aplicação do meio de coerção
prisão civil do depositário infiel?

Resposta à Questão 2

1) A primeira medida é a purga da mora, que é hoje admitida pela maior parte da
doutrina, mas qualquer outro argumento cabível, por apreço à ampla defesa, será
admitido.
1.1.) Talvez se pudesse falar, neste caso, na aplicabilidade da teoria do
adimplemento substancial, mantendo o devedor a coisa e encaminhando a cobrança
do restante à via ordinária.
1.2.) Não: a liminar ainda poderia ser concedida.
2) O registro, segundo o artigo 1.361, § 1°, do CC, se dá no Detran e no RTD,
segundo corrente majoritária no TJ/RJ. Porém, há quem entenda que o registro no
Detran é suficiente.
3) O veículo é de propriedade do credor fiduciário, sendo hipótese de propriedade
resolúvel. Por isso, as dívidas do devedor fiduciante não podem gerar penhora sobre
aquele bem, podendo, no máximo, gerar uma penhora condicionada à resolução da
propriedade do credor, quando então o devedor passa a ser proprietário do bem. Já
quanto às dívidas do credor fiduciário, é possível a penhora, pois há propriedade sua
– só que resolúvel, sendo possível a perda futura do objeto da penhora.
4) Como se sabe, não subsiste mais qualquer espécie de prisão civil do depositário
infiel no nosso ordenamento.

Michell Nunes Midlej Maron 172


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

Tema XVIII

Hipoteca: conceito, objeto, remissão pelo credor sub-hipotecário e pelo adquirente, remição do bem,
prenotação, registro e extinção. Análise crítica da execução extrajudicial. Anticrese.

Notas de Aula25

1. Hipoteca

Este direito real de garantia tem por objeto bens imóveis (sendo para tal efeito assim
considerados os navios e aeronaves), sendo uma das principais qualidades deste instituto
não desapossar o devedor do bem dado em garantia. É por isso que este é o direito real de
garantia de maior aplicabilidade no mundo jurídico.
25
Aula ministrada pelo professor Carlos Santos de Oliveira, em 23/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 173


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O artigo 1.473 do CC apresenta quais bens podem ser objeto de hipoteca:

“Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca:


I - os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles;
II - o domínio direto;
III - o domínio útil;
IV - as estradas de ferro;
V - os recursos naturais a que se refere o art. 1.230, independentemente do solo
onde se acham;
VI - os navios;
VII - as aeronaves.
VIII - o direito de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481,
de 2007)
IX - o direito real de uso; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
X - a propriedade superficiária. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
§ 1° A hipoteca dos navios e das aeronaves reger-se-á pelo disposto em lei
especial. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 11.481, de 2007)
§ 2° Os direitos de garantia instituídos nas hipóteses dos incisos IX e X do caput
deste artigo ficam limitados à duração da concessão ou direito de superfície, caso
tenham sido transferidos por período determinado. (Incluído pela Lei nº 11.481, de
2007)”

Os imóveis e seus acessórios podem ser dados em hipoteca conjunta, incluindo-se


como acessórios as benfeitorias, as acessões e até mesmo as pertenças.
Nos incisos II e III, o legislador permitiu que o domínio direto, exercido pelo
proprietário, e o domínio útil do bem, aquele exercido pelo enfiteuta, podem ser objeto de
hipoteca. Mesmo extinguindo a enfiteuse, o legislador atentou para aquelas preexistentes,
que estão vigentes.
É possível a constituição de mais de uma hipoteca sobre o mesmo bem, o que é uma
enorme vantagem. Se o imóvel vale o suficiente para garantir mais de uma dívida, assim
poderá ser estabelecida a garantia. Veja o artigo 1.476 do CC:

“Art. 1.476. O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele,
mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor.”

Havendo mais de uma hipoteca, a regra é que a prioridade no pagamento da dívida


pela excussão será daquele que primeiro prenotou o título constitutivo do gravame. Por
isso, o CC é feliz ao trazer dispositivos dedicados à proteção do credor hipotecário de
segundo grau, aquele que ter-se-á satisfeito depois. Na verdade, não fosse assim, o credor
de segundo grau ficaria à mercê do de primeiro grau, pois somente poderia atuar –
executando sua hipoteca – depois que aquele primeiro o fizesse. Veja os artigos 1.477 e
1.478 do CC:

“Art. 1.477. Salvo o caso de insolvência do devedor, o credor da segunda hipoteca,


embora vencida, não poderá executar o imóvel antes de vencida a primeira.
Parágrafo único. Não se considera insolvente o devedor por faltar ao pagamento
das obrigações garantidas por hipotecas posteriores à primeira.”

“Art. 1.478. Se o devedor da obrigação garantida pela primeira hipoteca não se


oferecer, no vencimento, para pagá-la, o credor da segunda pode promover-lhe a
extinção, consignando a importância e citando o primeiro credor para recebê-la e o
devedor para pagá-la; se este não pagar, o segundo credor, efetuando o pagamento,

Michell Nunes Midlej Maron 174


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

se sub-rogará nos direitos da hipoteca anterior, sem prejuízo dos que lhe
competirem contra o devedor comum.
Parágrafo único. Se o primeiro credor estiver promovendo a execução da hipoteca,
o credor da segunda depositará a importância do débito e as despesas judiciais.”

Por conta disso, o credor de segundo grau tem a possibilidade de até mesmo remir o
bem, criando uma barreira a eventuais conluios entre o primeiro credor e o devedor – ele
“compra” a dívida do primeiro credor, passando a ser credor integral do devedor
hipotecário.
Assim como no penhor, é necessária a especialização e o registro, sendo registrada a
hipoteca na respectiva competência: imóveis no respectivo RGI; embarcações na Marinha;
e aeronaves na Aeronáutica. O CC é bem literal no que pertine ao registro, a exemplo da
hipoteca de estradas de ferro, como se vê no artigo 1.502:

“Art. 1.502. As hipotecas sobre as estradas de ferro serão registradas no Município


da estação inicial da respectiva linha.”

1.1. Extinção da hipoteca

Veja os artigos 1.499 a 1. 501 do CC:

“Art. 1.499. A hipoteca extingue-se:


I - pela extinção da obrigação principal;
II - pelo perecimento da coisa;
III - pela resolução da propriedade;
IV - pela renúncia do credor;
V - pela remição;
VI - pela arrematação ou adjudicação.”

“Art. 1.500. Extingue-se ainda a hipoteca com a averbação, no Registro de


Imóveis, do cancelamento do registro, à vista da respectiva prova.”

“Art. 1.501. Não extinguirá a hipoteca, devidamente registrada, a arrematação ou


adjudicação, sem que tenham sido notificados judicialmente os respectivos
credores hipotecários, que não forem de qualquer modo partes na execução.”

A averbação do cancelamento da hipoteca gera os efeitos de sua extinção, pois se é


necessário o registro constitutivo, é necessária averbação extintiva.

1.2. Execução extrajudicial

O Decreto-Lei 70/66 prevê a execução extrajudicial, via leilão, de imóveis


integrantes do sistema financeiro de habitação. Este leilão extrajudicial é tido por
constitucional, desde que não haja nenhuma discussão sobre a dívida. Se o valor da dívida,
ou qualquer outro aspecto, for litigioso, controverso, o leilão extrajudicial é inadmissível. A
este respeito, veja a decisão proferida no EREsp. 462.629:

“REsp 462629 / RS. DJ 10/03/2003 p. 239. CIVIL E PROCESSUAL. S.F.H.


EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. EXISTÊNCIA DE AÇÃO REVISIONAL DO
CONTRATO DE MÚTUO. TUTELA ANTECIPADA. IMPEDIMENTO À
COBRANÇA COM BASE NO DECRETO-LEI N. 70/66. LEGITIMIDADE.

Michell Nunes Midlej Maron 175


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

I. Conquanto de reconhecida constitucionalidade, a execução do Decreto-lei n.


70/66, por se proceder de forma unilateral e extrajudicialmente, não deve acontecer
na pendência de ação revisional de contrato de financiamento habitacional movida
pelo mutuário, pertinente a concessão de tutela antecipada para tal finalidade.
II. Recurso especial não conhecido.”

“EREsp 462629 / RS. EMBARGOS DE DIVERGENCIA NO RECURSO


ESPECIAL. DJ 09/11/2005 p. 136. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CAUTELAR.
EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. A execução extrajudicial, tal como prevista no
Decreto-Lei nº 70, de 1966, pressupõe crédito hipotecário incontroverso, sendo
imprestável para cobrar prestações cujo montante está sob discussão judicial.
Embargos de divergência não conhecidos.”

Veja Também o REsp. 754.516:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSOESPECIAL.


CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE IMÓVEL. EXECUÇÃO
EXTRAJUDICIAL. DECRETO-LEI N.º 70/66. DÍVIDA CONTROVERSA.
PENDÊNCIA DE DEMANDA JUDICIAL DE NATUREZA REVISIONAL DO
DÉBITO. VIOLAÇÃO DO ART. 4.º, § 2.º, DA LEI N.º 9.507/97. AUSÊNCIA DE
PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS N.º 282 E 356 DO STF. DIVERGÊNCIA
JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA. AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO E DEMONSTRAÇÃO ANALÍTICA DO DISSÍDIO.
1. É inviável a apreciação, em sede de Recurso Especial, de matéria sobre a qual
não se pronunciou o tribunal de origem, porquanto indispensável o requisito do
prequestionamento. Ademais, como de sabença, "é inadmissível o recurso
extraordinário, quando não ventilada na decisão recorrida, a questão federal
suscitada" (Súmula 282/STF), e "o ponto omisso da decisão, sobre o qual não
foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso
extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento" (Súmula N.º 356/STJ).
2. A admissão do recurso especial pela alínea "c" do permissivo constitucional
exige a demonstração do dissídio na forma prevista pelo RISTJ, com a
demonstração analítica das circunstâncias que assemelham os casos confrontados,
bem como pela juntada de certidão ou de cópia integral do acórdão paradigma, ou,
ainda, a citação do repertório oficial de jurisprudência que o publicou, não
bastando, para tanto, a simples transcrição das ementas dos paradigmas.
3. A execução extrajudicial, nos moldes em que originariamente prevista pelo
Decreto-Lei n.º 70/66, pressupõe a existência de crédito incontroverso. Destarte, se
o valor em execução é objeto de dissídio entre as partes e, mais do que isso, já
tenha se instalado, a este propósito, demanda de natureza judicial, fica o credor
impossibilitado de recorrer à modalidade executória extrajudicial.
4. É assente na Corte que, a despeito da reconhecida constitucionalidade do
Decreto-Lei n.º 70/66, a forma de execução disciplinada em seus arts. 31 a 38, por
se proceder de forma unilateral e extrajudicialmente, encontra-se obstada durante a
pendência de ação revisional do contrato de financiamento Documento: 2246658 -
Despacho / Decisão - Site certificado - DJ: 14/03/2006 Página 1 de 8 habitacional
promovida pelo mutuário (Precedentes: EREsp n.º 462.629/RS, Rel. Min. Ari
Pargendler, DJ de 09/11/2005; REsp n.º 662.358/PE, Rel. Min. José Delgado, DJ
de 17/10/2005; e REsp n.º 745.708/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJ de
10/10/2005).
5. Recurso especial a que se nega seguimento (CPC, art. 557, caput).”

1.3. Hipoteca e posse

Michell Nunes Midlej Maron 176


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

A constituição de hipoteca, como não incide sobre a posse do bem – este permanece
como o devedor – não consiste em gravame suficiente a demandar proteção possessória. A
respeito, veja o REsp. 768.102:

“CIVIL. DIREITO DAS COISAS. POSSE. MANUTENÇÃO. AÇÃO DE ANO E


DIA. PROCEDIMENTO SUMÁRIO. PROPRIEDADE. DISCUSSÃO.
IMPOSSIBILIDADE. HIPOTECA. IRREGULARIDADE. TURBAÇÃO DE
DIREITO. NÃO CONFIGURAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE EFETIVA
VIOLAÇÃO AO PLENO EXERCÍCIO DA POSSE.
- A ação de ano e dia de manutenção de posse (art. 926 e segs. do CPC) é medida
cujo escopo específico é a obtenção, mediante um juízo de cognição sumária, de
mandado judicial que faça cessar ato turbador.
- Ainda que o interesse da manutenção de posse não se esgote na cessação do ato
turbador – o art. 921 do CPC admite cumular ao pedido possessório o de: (i)
condenação em perdas e danos; (ii) cominação de pena para caso de nova turbação
ou esbulho; e (iii) desfazimento de construção ou plantação feita em detrimento da
posse – a presente ação não comporta discussão na seara dos direitos oriundos da
propriedade, pois a recorrida se limita a defender sua posse.
- Independentemente de a turbação ser qualificada como de fato ou de direito, não
se pode olvidar que, em qualquer hipótese, a vis inquietativa somente se
caracteriza se a violação efetivamente puser em xeque o usufruto da posse.
- Confrontando-se a constituição de hipoteca e a posse, fica patente que aquela não
gera qualquer efeito sobre essa. Em outras palavras, a hipoteca, por si só, não
limita de nenhuma forma o pleno exercício da posse. Recurso especial conhecido e
provido. (REsp 768102/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA
TURMA, julgado em 17/04/2008, DJe 30/04/2008).”

2. Anticrese

A anticrese é um instituto em absoluto desuso, porque sua forma de constituição


acarreta um efeito malquisto para todos os envolvidos e para a sociedade: a dificuldade no
alcance do seu escopo, que é o de satisfazer o crédito. Isto porque, nesta garantia, o devedor
passa o bem imóvel às mãos do credor anticrético, que ficará com a posse e administração
de tal bem até que, com os frutos da administração, o credor satisfaça seu crédito. Há,
portanto, um trabalho do credor para sua autosatisfação, o que lhe é um certo transtorno; e
há a perda da posse pelo devedor, algo igualmente incômodo. Em suma, ninguém aprecia
esta solução.
Veja o artigo 1.506 do CC:

“Art. 1.506. Pode o devedor ou outrem por ele, com a entrega do imóvel ao credor,
ceder-lhe o direito de perceber, em compensação da dívida, os frutos e
rendimentos.
§ 1° É permitido estipular que os frutos e rendimentos do imóvel sejam percebidos
pelo credor à conta de juros, mas se o seu valor ultrapassar a taxa máxima
permitida em lei para as operações financeiras, o remanescente será imputado ao
capital.
§ 2° Quando a anticrese recair sobre bem imóvel, este poderá ser hipotecado pelo
devedor ao credor anticrético, ou a terceiros, assim como o imóvel hipotecado
poderá ser dado em anticrese.”

Não se pode, por exemplo, constituir duas anticreses sobre o mesmo bem, como se
pode na hipoteca, em que a coisa permanece com o devedor: a anticrese envolve a perda da

Michell Nunes Midlej Maron 177


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

posse, temporariamente, em favor do credor, impedindo que nova garantia idêntica seja
imposta.
O artigo 1.507, inovativo no sistema em relação ao CC de 1916, cria a necessidade
de prestação de contas por parte do credor anticrético ao devedor, o que é mera questão de
lógica e justiça, porque quem administra coisa alheia deve fazê-lo na melhor forma
possível. Veja:

“Art. 1.507. O credor anticrético pode administrar os bens dados em anticrese e


fruir seus frutos e utilidades, mas deverá apresentar anualmente balanço, exato e
fiel, de sua administração.
§ 1° Se o devedor anticrético não concordar com o que se contém no balanço, por
ser inexato, ou ruinosa a administração, poderá impugná-lo, e, se o quiser, requerer
a transformação em arrendamento, fixando o juiz o valor mensal do aluguel, o qual
poderá ser corrigido anualmente.
§ 2° O credor anticrético pode, salvo pacto em sentido contrário, arrendar os bens
dados em anticrese a terceiro, mantendo, até ser pago, direito de retenção do
imóvel, embora o aluguel desse arrendamento não seja vinculativo para o
devedor.”

Casos Concretos

Questão 1

Em ação de execução de despesas condominiais, foi penhorado e levado à praça


pública o próprio imóvel gerador do débito, hipotecado ao Banco X. O credor hipotecário,
intimado da praça, não se manifestou, e o imóvel foi arrematado na segunda praça pelo
maior lance. Feito o depósito, expedida carta de arrematação, bem como o mandado de
imissão de posse, o arrematante requer o cancelamento da hipoteca no Registro de
Imóveis. Opõe-se ao pedido o Banco X por entender que "quem comprou o imóvel comprou
a dívida hipotecária porque esta, que é real, não se extingue em processo que tem outro
crédito por objeto e que corre entre partes distintas". Sustenta não ser possível a execução
por terceiro de imóvel hipotecado e que a arrematação não produz efeito sobre a hipoteca.
Mesmo que assim não fosse, o produto da execução seria do credor hipotecário. Decida.

Resposta à Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 178


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

O imóvel objeto de hipoteca pode ser penhorado em qualquer execução, que não a
própria execução hipotecária, pois a lei só exige a intimação do credor hipotecário para
tanto, a fim de exercer preferência no recebimento. Esta preferência, contudo, não subsiste
diante de dívidas propter rem, como nas cotas condominiais, que prevalecerão sobre o
crédito garantido pela hipoteca.
A respeito, veja o Agravo de Instrumento 1999.002.01321, do TJ/RJ:

“Processo: 0019799-64.1999.8.19.0000 (1999.002.01321). 1ª Ementa - AGRAVO


DE INSTRUMENTO. DES. SERGIO CAVALIERI FILHO - Julgamento:
30/03/1999 - SEGUNDA CAMARA CIVEL. DESPESAS CONDOMINIAIS.
PENHORA DO IMOVEL HIPOTECADO. ARREMATACAO.
CANCELAMENTO DE HIPOTECA. REGISTRO DE IMOVEIS. ART. 649. ART.
826. C.P.C.
HIPOTECA. DESPESAS CONDOMINIAIS. EXECUCAO DO IMOVEL
HIPOTECADO. POSSIBILIDADE. EXTINCAO DA HIPOTECA PELA
ARREMATACAO. PREFERENCIA DO CREDITO DO CONDOMINIO.
CONCLUI-SE PELA POSSIBILIDADE DA EXECUCAO DE IMOVEL
HIPOTECADO, DESTINADA AO PAGAMENTO DE DIVIDA
CONDOMINIAL, TENDO EM VISTA QUE A UNICA EXIGENCIA QUE A LEI
FAZ, PARA A VALIDADE DA SUA VENDA JUDICIAL, E A NOTIFICACAO
DO RESPECTIVO CREDOR. CONQUANTO TENHA O ARTIGO 849, VII, DO
CODIGO CIVIL SUSCITADO ALGUMAS DUVIDAS INICIALMENTE,
DANDO MARGEM A QUE ALGUNS SUSTENTASSEM QUE SO A
ARREMATACAO EFETUADA NO PROPRIO EXECUTIVO HIPOTECARIO
EXTINGUE A HIPOTECA, DOUTRINA E JURISPRUDENCIA MODERNAS
FIRMARAM-SE NO SENTIDO DE QUE A EXTINCAO TAMBEM SE
VERIFICA EM QUALQUER VENDA EFETUADA EM HASTA PUBLICA,
DESDE QUE REGULARMENTE NOTIFICADO O CREDOR HIPOTECARIO,
SUBROGANDO-SE O GRAVAME NO PRODUTO DA ARREMATACAO. AS
DESPESAS CONDOMINIAIS NAO CONSTITUEM DIVIDAS DO
PROPRIETARIO CONDOMINO, MAS SIM ENCARGOS DA PROPRIA
COISA, NA MEDIDA EM QUE DECORREM DE DESPESAS NECESSARIAS
A SUA CONSERVACAO E SUBSISTENCIA. SAO GRAVAMES PROPTER
REM, ESTABELECIDOS PARA A PRESERVACAO DO CONJUNTO
CONDOMINIAL, PELO QUE ACOMPANHAM A COISA E SAO POR ELA
GARANTIDOS, SEJA QUEM FOR O SEU DONO. DESTARTE, EM CASO DE
EXECUCAO POR DEBITOS CONDOMINIAIS, O CREDITO HIPOTECARIO
NAO SE SOBREPOE AO CREDITO DO CONDOMINIO, POIS NAO HA
NENHUM VINCULO JURIDICO QUE IMPONHA A ESTE O DEVER DE
SUPORTAR EM FAVOR DO CREDOR HIPOTECARIO AS DESPESAS
NECESSARIAS A CONSERVACAO E SUBSISTENCIA DO IMOVEL
HIPOTECADO. DESPROVIMENTO DO RECURSO.”

Questão 2

Proprietário do terreno e construtor, Caio alienou e entregou pronto o apartamento


1001, que fora antes hipotecado em garantia do financiamento parcial do empreendimento,
comprometendo-se a dar baixa no gravame em certo termo. Não deu. E acabou falecendo
em estado de mora, deixando dois filhos, um legítimo e outro adotado pela Lei nº 8.069/90,
diante do chamamento do Espólio ao cumprimento da obrigação, havendo o primeiro
respondido que tal não seria possível porque a herança não suportava o pagamento de
todas as dívidas do falecido, atuando a favor dele o benefício do inventário. Analise a

Michell Nunes Midlej Maron 179


EMERJ – CP IV Direito Civil IV

questão, destacando os aspectos jurídicos mais significativos, tais como natureza das
obrigações, institutos e conceitos abrangidos, com os respectivos efeitos e regimes,
correções necessárias, a condição familiar e o problema sucessório do adotivo, em tudo
citando os dispositivos legais adequados.

Resposta à Questão 2

Se a hipoteca foi constituída pelo construtor, aquele que pagou suas parcelas não
pode se ver na contigência de ter seu bem hipotecado. Sobre aquela unidade, não é possível
incidir a hipoteca. Veja a súmula 308 do STJ:

“Súmula 308, STJ: A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro,


anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem
eficácia perante os adquirentes do imóvel.”

O adquirente tem direito à baixa na hipoteca, não podendo ser obrigado a pagar
duas vezes pelo mesmo bem.
Veja, correlata, a Apelação Cível 2008.001.00503, do TJ/RJ:

“Processo: 0015039-25.2006.8.19.0001 (2008.001.00503). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. ANA MARIA OLIVEIRA - Julgamento: 06/05/2008 -
OITAVA CAMARA CIVEL
Embargos de terceiro propostos por proprietária de imóvel sobre o qual recaiu
hipoteca judiciária determinada em ação de nulidade da partilha realizada no
inventário dos bens deixados por Moacyr Peixoto Vieira. Procedência dos
embargos, revogada a hipoteca judiciária incidente sobre o bem. Apelação de
ambas as partes. Cabimento dos embargos de terceiro por não ter a Embargante
figurado como parte na ação de nulidade de partilha na qual o gravame foi
deferido. Embargante que adquiriu o bem imóvel em data anterior à hipoteca
judiciária, em ocasião na qual não pendia litigiosidade sobre o bem. Certidão
imobiliária na qual sequer constava ter o imóvel integrado o espólio de Moacyr
Peixoto Vieira. Hipoteca judiciária que enseja turbação. Gravame corretamente
revogado. Pretensão da Embargante de ver declarada a ineficácia de qualquer
decisão proferida na ação de nulidade de partilha quanto à compra e venda por ela
realizada que não é de ser acolhida por não terem os vendedores integrado a
referida ação. Aquisição de boa-fé que somente pode ser desconstituída em ação
própria, sendo o negócio jurídico válido e eficaz. Ausência de justificativa para a
revogação do benefício da gratuidade de justiça concedido à Embargada.
Desprovimento das apelações.”

Michell Nunes Midlej Maron 180

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