Identidades Étnicas e Culturais: novas perspectivas para a história
indígena. In: Martha Abreu; Raquel Soihet. (Org.). Ensino de História - conceitos, temáticos e metodologia. 1 Ed.Rio de Janeiro:, 2003, v. , p. 27-37
Resenha
Identidades étnicas e culturais: novas perspectivas para a história indígena, artigo de
Maria Regina Celestino de Almeida, faz parte do volume organizado por Martha Abreu e Rachel Soihet, intitulado Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia (2003). O trabalho reúne textos de diversos especialistas brasileiros acerca das problemáticas contemporâneas da historiografia, num exercício de conexão ao contexto educativo. No capítulo que aqui analisa-se, Almeida, professora da UFF, especialista em História indígena e relações étnicas, apresenta uma crítica à visão tradicional da historiografia acerca desses personagens, buscando desconstruir os recorrentes preconceitos e lugares-comuns, com base na História Cultural.
No decorrer da tradição historiográfica, o indígena só aparecia como um outro. No caso
particular brasileiro, sua existência só era estabelecida em relação ao europeu. Só a partir do contato com estes, ele surgiria como personagem histórico. Quer dizer, a própria história era considerada um atributo dos povos civilizados. Ao indígena, restava a etnografia. Não é de se estranhar, portanto, a concepção estabelecida até pouco tempo, de que o índio era ingênuo, facilmente manipulado aos interesses do colonizador – além da visão declaradamente racista, que simplesmente desconsidera sua humanidade. Para essa interpretação, que perdura até hoje, os indígenas são meramente vítimas, indefesas e passivas. Como se, dentro da estrutura de dominação, não houvesse a mínima possibilidade de mobilidade e agência. E é justamente esse aspecto que passou a ser criticado com o recurso à Antropologia.
Da crítica historiográfica, Maria de Almeida passa ao exercício da reconstrução
Histórica. Com isso busca responder ao problema da relação entre europeus e indígenas, e entre colonizadores e colonizados. Antes de mais nada, é preciso ter em mente que os grupos indígenas já existiam nesse território antes de 1500. Essas comunidades se relacionavam com outras, por meio da aliança ou do conflito, e com seu meio natural. Isso propiciava a diluição de uma cultura na outra, e o incremento de práticas e hábitos, isto é, sua constante transformação social, política e cultural. Já havia, portanto, uma historicidade viva entre os povos nativos. Nesse sentido, é necessário compreender quem era o indígena no momento de contato com o europeu. Como a autora aponta, entre os tupis, habitantes da costa, a prática da aliança política, com outros povos, já era muito forte. O que os levou a contribuir com os europeus não foi ingenuidade, mas interesse. Podemos pensar que eles se uniam aos europeus quando estes se colocavam contra seus rivais, ou para conquistar território e outras benesses. No entanto, como Almeida alerta, essa posição estava em constante mudança. Quando a colonização engrossou, com o aumento da demanda de trabalho forçado, e a ampla desapropriação dos indígenas, foi necessário adotar uma outra estratégia.
Para melhor controle, a certa altura da colonização, os portugueses estabeleceram
aldeias onde os diversos grupos étnicos deveriam confluir. Os indígenas tiveram, nesse momento, que optar entre manter suas comunidades autônomas, e sofrer com o ataque bélico colonial, ou se submeterem ao poder da coroa, mas sob proteção. Optando por essa alternativa, eles estariam perdendo sua tradicional forma de organização social e cultural. Mas, dentro dos aldeamentos, houve uma articulação das estruturas coloniais ao uso de suas lideranças.
A experiência desses aldeamentos é interpretada, pela autora, a partir de Jonathan Hill.
Este afirma que, mesmo em condições hostis, os grupos humanos podem reconstituir significados e fortalecer suas identidades culturais (ALMEIDA, p. 28). Como essas aldeias eram pensadas pelo colonizador, a coroa havia de reconhecer os índios aldeados como seus súditos. Era essa a prerrogativa por eles utilizada ao se comunicarem ao rei, pedindo ajuda financeira ou outros favores, para manterem sua autonomia comunitária. Diante da estrutura social em que se encontravam, onde sua antiga organização étnica havia sido impossibilitada, a busca pelo reconhecimento jurídico de sua condição como aldeados, será um fator de união aos indígenas.
Segundo Almeida, o sentimento de comunidade que se instaurou nesses locais, e a união
em torno de um mesmo objetivo político, permitiu a reformulação identitária dos indígenas. Membros de um agrupamento amplo e genérico, criado pela administração portuguesa, eles puderam recriar sua cultura, mantendo um certo grau de autonomia em relação aos outros grupos da colônia.
Em consonância à autora, podemos concluir que, diante do processo de colonização, os
indígenas passaram por um constante processo de reformulação étnica, social e política. Esses personagens puderam reconstruir e ressignificar os códigos simbólicos genéricos que lhes foi atribuído pelos portugueses. Mesmo que numa circunstância adversa, de forte opressão física e simbólica, eles tomaram para si o comando da sua própria história.