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balanço parcial
Há quase trinta anos, o sociólogo norueguês Jon Elster publicava o livro “Ulisses
e as Sereias”, em que propunha aquilo que denomino aqui como sendo uma abordagem
“analítica” das teorias sociais, utilizando-se para tanto de argumentos que,
posteriormente, foram reafirmados e ampliados em outros textos1. Talvez a expressão
“revolução” que utilizo no título deste trabalho seja imprópria: o que o autor propôs não
era, ao menos em seus elementos centrais, exatamente revolucionário. Isso porque, por
um lado, outros autores já haviam defendido posições semelhantes desde o século XIX
e, por outro, mesmo entre os autores do grupo de marxistas analíticos, o livro de G. A.
Cohen – Karl Marx’s theory of history: a defence – já havia sido publicado um ano
antes2.
1
Além de Ulisses (1979) outros textos fundamentais de Elster no período inicial desse empreendimento
incluem “Marxismo, funcionalismo e teoria dos jogos” (1982) e “Sour Grapes” (1983a). Os argumentos
de “Ulysses and the Sirens” são retomados posteriormente em “Ulysses Unbound (2000)”. Para uma
versão atualizada das posições do autor acerca da filosofia das ciências sociais, ver Elster, 2007.
2
Peter Herdström remonta o pioneirismo das posições analíticas a Tocqueville, Weber, Parsons e Merton.
Quanto a contemporâneos de Elster, o autor ressalta a importância de Raymond Boudon, Thomas
Schelling e James Coleman, além do próprio Elster. Ver Herdström (2005, p. 6-9).
3
Cito um exemplo: em um simpósio em torno de “Making sense of Marx”, publicado pela revista Inquiry
em 1986, textos críticos ao livro possuem títulos como “Making nonsense of Marx” e “Making sense of
Elster”. Em sua réplica, no mesmo número da revista, Elster afirma sobre esses textos “The replies to the
‘fundamentalist marxists’ (...) are relatively brief, because the dismissive, unscholarly nature of their
comments”.
Arrisco três razões para o lugar assumido pelos trabalhos desse grupo no interior
dos debates acadêmicos nesse período. Em primeiro lugar, a atividade de Elster e seus
colegas do chamado marxismo analítico procurou, na leitura da obra de Marx a partir de
ferramentas teóricas sempre compreendidas como rivais ao marxismo, reinterpretar um
marco teórico que é tradicionalmente avesso a grandes alterações e, além disso, afetado
por um grande debate acerca de concepções políticas. A revisão proposta pelo grupo,
além disso, introduzia um instrumental saído diretamente do aparato da “ciência social
burguesa4”, em particular da economia neoclássica, e questionava pontos centrais da
teoria marxista, como a teoria do valor de Marx.
Uma segunda razão que pode explicar a popularidade alcançada pelos trabalhos
desse grupo pode ser localizada no interior de um movimento teórico maior. Embora a
penetração do chamado “imperialismo econômico” nas ciências sociais não date deste
período, não há dúvidas de que houve um grande avanço a partir do final dos anos 70.
Enquanto a teoria da escolha racional se convertia no fundamento padrão das pesquisas
sobre instituições políticas, o trabalho de Elster procurava discutir os fundamentos da
racionalidade e seus limites. Ainda que as falhas da racionalidade tenham sido expostas
desde Ulisses, a fundamentação filosófica da escolha racional continua sendo objeto de
intenso debate5.
Por fim, uma terceira razão para a que os trabalhos desses autores tenham
alcançado essa relevância do final dos anos 70 em diante, diz respeito à intensa
atividade exercida por alguns deles. Jon Elster é reconhecidamente um dos autores mais
produtivos nas ciências sociais, Adam Przeworski converteu-se em um dos principais
cientistas políticos dos Estados Unidos, e mesmo autores com uma atividade menor, de
um ponto de vista quantitativo, como Cohen, ocupam posições acadêmicas de grande
4
A oposição entre teoria marxista e “ciência social burguesa”, nestes termos, está presente na frase de
abertura de Marxismo, funcionalismo e teoria dos jogos”. Uma das principais críticas dos marxistas ao
marxismo analítico, aliás, é de que esta corrente não reconhece a distinção de método (Tarrit, 2006, p.
597-600).
5
Duas observações laterais: primeiro, convém notar que a “fundamentação filosófica da racionalidade”,
seja lá o sentido que se queira dar a esta sentença, não recebe a mesma atenção por parte de todos que
trabalham com este modelo. Para vários autores, sobretudo na área da economia, o mais importante seria
a possibilidade de modelar o comportamento dos agentes como se eles agissem com base nos
pressupostos da escolha racional. A segunda observação é que uma leitura cronológica da obra de Jon
Elster mostra o progressivo abandono da teoria da escolha racional.
destaque6. Por certo, tais características não devem ser tomadas como dados acerca da
qualidade ou da correção dos pontos de vista desse grupo: posições acadêmicas e
publicações são, como tudo mais, suscetíveis de disputas de poder, mas dificilmente
esses fatores são capazes de manter posições acadêmicas por longo prazo7.
Passados trinta anos da publicação de Ulisses, o que mudou nas teorias sociais
em razão da abordagem analítica? Por outro lado, o que mudou no interior da
abordagem analítica, e nas formulações de seus principais autores? O texto a seguir não
tem a pretensão de responder de modo completo a essas questões: como um trabalho
ainda em desenvolvimento, indica mais o percurso do que o ponto de chegada desse
debate. Para tanto, procurei seguir a seguinte estratégia: (a) evito refazer o percurso
intelectual deste ou daquele autor ao longo desses trinta anos; (b) ignoro as divergências
conceituais entre os autores citados, que são muitas e variadas; (c) deixo de lado,
também, qualquer pretensão de traçar uma história detalhada dos conceitos centrais da
escola analítica8.
Estabelecido o que não será visto neste texto, resta anunciar sobre o que ele
trata. Escolho três temas que acredito centrais no empreendimento analítico, tanto
originalmente em Ulisses quanto naquilo que, de forma um tanto vaga, trato aqui como
teorias sociais analíticas. Depois de um breve comentário sobre o que seria uma teoria
social analítica, discuto então os temas do abandono das explicações funcionalistas em
favor de explicações intencionais, do individualismo metodológico e da escolha
racional, procurando também mostrar algumas das conexões entre estes temas.
Comecemos por definir melhor sobre o que falamos quando nos referimos a
“teorias sociais analíticas”. Ao referir-se, em uma entrevista, ao marxismo analítico, Jon
Elster, sustenta que ele seria “simplesmente sinônimo de pensamento claro” (Elster,
1991, p. 99). Em uma definição menos informal, Peter Hedström afirma que a teoria
social analítica, ou sociologia analítica, “procura explicar processos sociais complexos,
dissecando-os cuidadosamente e então trazendo ao foco seus componentes constituintes
mais importantes”, procurando explicações “precisas, abstratas, realistas e baseadas em
ações” (Hedström, 2005, p. 1).
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A estratégia de explicação por mecanismos é discutida, a partir de diferentes pontos de vista, em
Hedström e Swedberg, 1998. Para uma discussão aprofundada sobre essa estratégia na obra de Elster,
bem como seus limites, ver Ratton Jr. e Morais, 2003.
propõem a abordagem analítica. Sem dúvida alguma, essa característica, junto com a
“dissecação”, é a que mais aproxima o empreendimento da teoria social analítica
daquele desenvolvido desde a primeira metade do século passado pela filosofia
analítica. Livrar-se do “encantamento da linguagem”, como propunha Wittgenstein, ou
daquilo que Gilbert Ryle denominava de “expressões sistematicamente enganadoras”,
constituía uma atividade fundamental dos filósofos analíticos na busca por evitar
confusões conceituais. Impossível não reconhecer um eco desse empreendimento
filosófico quando Hedström afirma que “definições ambíguas como esta [trata-se de um
trecho de La Distinction em que Pierre Bourdieu define seu conceito de habitus] são
como nuvens mentais que mistificam ao invés de clarificarem” (Hedström, 2005, p. 4).
Mas a busca por clareza pode ainda ir mais longe. Ao menos na leitura de alguns
autores identificados com teorias analíticas, a clareza conceitual pode, ou deve, ser
alcançada através da formalização matemática, o que aparece claramente nos trabalhos
de John Roemer. A formalização e o uso de ferramentas como a teoria dos jogos serviria
para evitar as confusões conceituais que seriam comuns às teorias sociais tradicionais.
Mas o uso das teorias formais pode ser abusivo ainda de outra maneira. Em um
texto bastante crítico, que se propõe a discutir a leitura que Jon Elster faz de Marx,
Robert Paul Wolff (1990) sugere que a clareza conceitual de Elster, assim como o uso
feito por ele da teoria dos jogos e da linguagem analítica, fica muito aquém dos
objetivos pretendidos pelo sociólogo norueguês, criando uma situação que Wolff
denomina como sendo a utilização da “retórica da teoria dos jogos, sem atenção à sua
lógica” (p. 471, nota). De forma ainda mais incisiva, afirma acerca de uma passagem de
“Making sense of Marx” (p. 472)
10
Em recente entrevista para Gerardo Munck, a ser incluída em livro, Przeworski se diz cético quanto ao
uso da teorias dos jogos em todas as situações possíveis, por duas razões: o fato de que algumas vezes as
pessoas não agem de forma estratégica e que a teoria gera equilíbrios múltiplos.
this passage perfectly captures the style and tone of Elster’s analysis:
superficially careful, precise, rigorous, apparently aware of the
complexities of human motivation (...) a quantitative formalism
lurking just below the surface. Clearly, Elster’s language implies, if
we insisted, he could put the whole thing into symbols, thereby
removing the slightest vestige of subjective opinion from his analysis.
And yet, the entire passage is utterly mad – a crackpot account that
sounds as though it comes from Swift’s account of the voyage of
Lemuel Gulliver to Laputa, or from Anatol France’s Penguin Island,
or, worse still, from Robert Nozick’s Anarchy, State, and Utopia.
Não pretendo discutir as afirmações de Wolff aqui, entre outras coisas porque o
estilo formalista, no sentido matemático, de Elster se reduz com o tempo mas,
indicando o que pode ser apenas uma mera coincidência para com a impressão de
Wolff, note-se que foi um erro matemático cometido por Elster na primeira edição de
Ulysses que tornou necessária a correção deste livro e a impressão de uma nova edição
corrigida em 1984.
Por fim, uma quarta característica das teorias sociais analíticas é destacada por
Hedström. Teorias sociais analíticas centram sua análise na ação social dos atores
centrais que participam dos fenômenos sociais analisados. É essa ação que deve ser
explicada pelo mecanismo causal, mostrando porque os atores sociais fazem o que
fazem. Essa estratégia explicativa introduz um elemento que é fundamental para
compreendermos as teorias sociais analíticas: a intencionalidade. Segundo Hedström,
“we can understand why actors do what they do IF we assume that their behavior is
endowed with meaning, that is, that there is an intention explaining why they do what
they do” (p. 5, grifo meu). Intencionalidade é um dos temas centrais nas teorias
analíticas, que passo a discutir.
Funcionalismo e Intencionalidade
O impacto exercido por algumas das características presentes nas propostas das
teorias sociais analíticas, em particular o individualismo metodológico e a escolha
racional, reduziu a atenção para o lugar de uma concepção que está na base dessas
mesmas características. Trata-se da defesa do abandono do funcionalismo, ou das
explicações funcionalistas, em ciências sociais e sua substituição por explicações
intencionais.
11
Ver Cohen (1982) para esta posição.
Individualismo Metodológico e Ontológico
12
O abandono da teoria da escolha racional, por Elster, como a forma privilegiada de explicação da ação
humana, e o crescente interesse nas normas sociais e nas emoções como mecanismos dessa mesma ação,
não afeta sua adesão ao individualismo metodológico.
trata apenas do fato de que as entidades coletivas são compostas por indivíduos, mas se
trata também do fato de que apenas os indivíduos, e não essas entidades coletivas, são
capazes de ações intencionais. Em suma, se a intencionalidade e causalidade compõem
a forma de explicação a ser privilegiada nas ciências sociais, os atores que agem devem
ser capazes de fazê-lo de modo intencional, o que seria próprio dos indivíduos e não de
entidades supra-individuais.
A proposta de Margaret Gilbert não prevê que entidades coletivas, por si só,
devam ser consideradas como sendo portadoras de intencionalidade, muito menos de
Escolha Racional
A racionalidade das crenças pode ser definida como a exigência de que elas
estejam fundadas de maneira sólida nas informações disponíveis. Assim, o exemplo
dado anteriormente, de que utilizo uma calça azul no dia do exame, não se pode ser
considerado como um caso em que a crença seja racional, já que dificilmente haveria
um sólido conjunto de informações sustentando tal crença. Nesse ponto, surge
claramente o limite da avaliação da racionalidade das crenças: não parece possível
estabelecer uma definição formal sobre quando uma crença seria ou não racional, sobre
quando alguém deveria deixar de recolher informações e aceitar a crença do modo como
ela está formada. O que faz com que duas pessoas desenvolvam crenças diferentes
frente às mesmas informações é sua capacidade de realizar um julgamento razoável.
Há um ponto que ainda resta inexplorado nas teorias da escolha racional, e que
diz respeito à diferença importante entre a capacidade de atingir uma determinada
13
Sen, 1977, p. 322.
solução racionalmente, e a plausibilidade de que as pessoas realmente se comportem
desse modo. O problema aqui não se relaciona apenas com o fato de que a racionalidade
extrema é irrealista, mas com a disposição dos indivíduos em realizaram tais cálculos
racionais. O que sugiro aqui, sem argumentar de modo mais consistente, é que uma
maior atenção à diferença entre a existência de uma solução racional, e a realização dos
atos necessários para que tal solução seja colocada em prática, talvez dissolva, por
exemplo, o paradoxo do eleitor. Se for verdade que todos concordam que o custo do
voto é maior do que os benefícios que podem advir daí, é verdade também que ambos,
custos e benefícios, são diferenciados apenas quando o cálculo atinge várias casas
depois da vírgula. Talvez as pessoas não estejam dispostas a aplicar cálculos desse tipo
a questões que não são tão importantes, e neste caso o custo de votar não seja, afinal,
relevante.
No lugar desse modelo que desloca o sentido da ação para o auto-interesse, Pettit
propõe um modelo que supõe o raciocínio econômico como uma espécie de sombra,
sempre pairando sobre motivações não originadas no auto-interesse. Haveria uma
espécie de presença virtual do homo economicus, que não estaria sempre ativo, como
que calculando os ganhos e perdas de cada ação executada, mas sim como um marco
capaz de estabelecer até que ponto o auto-interesse pode ser contrariado ou desprezado.
Essa presença virtual do homo economicus limitaria outras motivações, fundamentadas,
por exemplo, no hábito ou na cultura. Cada vez que o auto-interesse fosse contrariado
de modo extremo certos alarmes soariam, o homo economicus desligaria o piloto
automático e reassumiria o controle das ações.
A idéia central de Satz e Ferejohn é de que, ainda que a teoria padrão da escolha
racional seja uma teoria psicológica, essa interpretação seria opcional, na medida em
que “rational choice theory is consistent with nonpsychological interpretations that in
some contexts are more plausible” (Satz e Ferejohn, 1994, p. 71). Mais do que isso, Satz
e Ferejohn acreditam que a teoria da escolha racional é mais forte quanto mais restrições
existam para a escolha dos atores. A preocupação central dessa teoria deveria ser,
afirmam os autores, muito mais acerca dessas restrições e do modo pelo qual os atores
participam em uma determinada estrutura, e não os mecanismos de decisão desses
atores.
Nesse ponto parece haver alguma confusão sobre o formato da crítica à teoria da
escolha racional. A abordagem de Satz-Ferejohn procura resolver o problema sobre as
motivações existentes em um ambiente onde há apenas uma coisa a se fazer: sobreviver,
seja como partido, firma ou político individual. Grande parte da crítica à escolha
racional, entretanto, não está preocupada com casos tão extremos, mas com situações
nas quais o comportamento não tende à maximização. Não por acaso, os autores
sugerem que o paradigma de sua abordagem é a biologia evolucionária e que, de modo
análogo, “much of rational choice theory operates in the context of powerful selective
mechanisms” (Satz e Ferejohn, 1994, p. 81).
Embora o texto tenha se limitado a esses três componentes das teorias sociais
analíticas, uma série de problemas adicionais poderiam ser colocados, tais como as
diferentes interpretações acerca das explicações por mecanismo, do papel da
formalização nas teorias ou ainda dos diferentes mecanismos alternativos à escolha
racional. Saber de que modo as contribuições da vertente analítica podem ou não ser
incorporadas ou assumidas na pesquisa social é uma tarefa das teorias sociais do século
XXI.
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