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Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR
V. 11 - N.º 2 (julho-dezembro - 2014)
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“A PARTE DE FATE”: A LÍNGUA NO SONHO DO OUTRO

Mariana Ruggieri1

RESUMO: Este artigo procura compreender o funcionamento da perspectiva narrativa de Oscar Fate no
romance 2666 de Roberto Bolaño e a fragilidade enunciativa que se manifesta durante a sua viagem para
Santa Teresa, no México. Há interesse particular na dissociação subjetiva e linguística vivenciada pelo
personagem a quem é confiada a tarefa de organizar a história que, como se verá, é escrita em uma língua
que não pertence a ninguém além da obra.
PALAVRAS-CHAVE: Roberto Bolaño; 2666; Sujeito; Tradução; Deslocamento

ABSTRACT: This article aims to understand the procedures of Oscar Fate’s narrative perspective in the
novel 2666 by Roberto Bolaño and the enunciative fragility that is manifested during his trip to Santa
Teresa, in Mexico. The text is particularly interested in the subjective and linguistic dissociation
experienced by the character to whom the role of organizing the story is entrusted. As we will see,
however, the language in which this story is written belongs to no one except the book itself.
KEY-WORDS: Roberto Bolaño; 2666; Subject; Translation; Displacement

“A Parte de Fate” começa em uma espécie de in media res; um parágrafo, assim como
em “A Parte de Amalfitano”, que apresenta o personagem via uma perspectiva desde as
entranhas de seu pensamento, local onde o narrador de 2666 – como em muitas outras obras de
Roberto Bolaño – habita por predileção. Ao adentrar o outro e perseguir até suas ideias mais
traiçoeiras, essa perspectiva narrativa é contaminada pelo ordenamento do mundo empreendido
pelo personagem, passando de intruso a hóspede, como se a tornar-se apenas mais um meio de
enunciação. Não há ponto de vista externo em Roberto Bolaño. A voz enunciativa frágil de “A
Parte de Fate” anuncia no primeiro parágrafo que no transcorrer do capítulo, e também no
transcorrer de seus dias, a sensação que o acompanhará será a de irrealidade. Oscar Fate será
assombrado pela realidade espectral, aquilo que é sempre vagamente familiar e, portanto, nunca
exatamente aquilo que se toma como referência. Nesse interstício entre a parte que se assemelha
e a parte que diferencia, ou na tentativa de operar essa separação para certificar-se de que sabe
ainda o que é real, Fate é tomado por forças agônicas. Que o estatuto da realidade pudesse ser

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Doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada, Universidade de São Paulo. E-mail:
ruggieri.mari@gmail.com

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questionado de forma tão ubíqua e, por vezes, até, embora possa soar estranho, naturalizada, já
estava colocado em “A Parte de Amalfitano”, onde aquilo que é comumente compreendido como
sujeito passa, em dado momento do capítulo, a conviver também com uma outra voz. Óscar
Amalfitano, perdido em meio aos seus esquemas geométricos, duvida de si; Fate, por outro lado,
duvidará daquilo que vê. O parágrafo em questão começa com uma pergunta:

¿Cuándo empezó todo?, pensó. ¿En qué momento me sumergí? Un oscuro lago
azteca vagamente familiar. La pesadilla. ¿Cómo salir de aquí? ¿Cómo controlar
la situación? Y luego otras preguntas: ¿realmente quería salir? ¿Realmente
quería dejarlo todo atrás? Y también pensó: el dolor ya no importa. Y también:
tal vez todo empezó con la muerte de mi madre. Y también: el dolor no importa,
a menos que aumente y se haga insoportable. Y también: joder, duele, joder,
duele. No importa, no importa. Rodeado de fantasmas. (BOLAÑO, 2004,
p.295).

Essa pergunta é a única entre as muitas outras para a qual Fate tentará uma resposta.
Talvez tudo tenha começado com a morte de sua mãe. Essa pergunta e essa resposta são
enunciadas, provavelmente, no momento em que constata que chegou ao limite do impasse entre
o que crê que viu e o que poderia ter sido visto. Deixando-nos com os fantasmas, o narrador
retorna ao ponto onde tudo teria começado – a morte da mãe – como se a convidar o leitor para
ajudar Fate a responder a pergunta, a tomar uma decisão que suplante o talvez. Não estaremos à
altura do desafio.
O parágrafo seguinte começa com Quincy Williams (o nome real de Oscar Fate)
recebendo um telefonema no escritório – ambiente pouco usual na obra de Bolaño – em que lhe
comunicam a morte da mãe. A voz do outro lado da linha exprime apenas o suficiente e torna-se
muda. Williams liga de volta, mas ainda assim não consegue obter mais informações; do outro
lado ruídos de vozes e algo sobre uma vizinha enfartada. A partir daí acompanhamos um homem
aparentemente calmo, embora ele não consiga muito bem compreender o que está acontecendo;
embora o que vivencia nunca se apresente com a nitidez adequada. Os dias transitam entre o
trabalho como jornalista para a revista Amanhecer Negro, horas diante da televisão e sonhos.
Afora um mal-estar aparentemente gástrico, Williams não demonstra nenhum tipo de dor pela
perda e qualquer estranheza tem como origem apenas os seus objetos de reportagem, Barry
Seaman, um ex-pantera negra que se reinventou a partir de um livro de receitas, e o último

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membro da célula comunista do Harlem. Embora o encontro com ambos apresente as suas
peculariedades, entre elas um longo e estranho monólogo na igreja proferido por Seaman, a
perspectiva narrativa os encara com a naturalidade e seriedade de um jornalista. A morte de sua
mãe, porém, parece já marcar algum tipo de transição, isto é, a transição de Quincy Williams
para Oscar Fate, pois após a retirada do corpo da mulher da casa pelos agentes funerários, o
nome Quincy Williams não volta a aparecer no texto. Esse deslocamento será acompanhado
ainda por outro: Fate é convocado a substituir um colega morto na subseção de boxe, embora
seja um repórter da seção política e enviado à Santa Teresa para cobrir uma luta. O personagem
principal, ou a perspectiva principal, passa a ser a de Fate (que não é Fate) e a de um repórter
esportivo (que não é um repórter esportivo).

É ao entrar no deserto e ao perder-se nele, porém, que Oscar Fate começa a descender
lentamente no abismo da dissociação. Dirigindo, rumo ao México, por uma paisagem
continuamente homogênea que provoca a sensação aguda de imobilidade, o jornalista começa a
sucumbir à escuridão, onde se fundem a incerteza sobre aquilo que o circunda e as memórias da
mãe. A enunciação afirmativa que descreve a paisagem passa a ser sempre complementada pela
dúvida: “Pasó junto a una mesa, o eso creyó.” (BOLAÑO, 2004, p.343) ou “En el extremo más
alejado del valle creyó discernir una luminosidad. Pero podía ser cualquier cosa.” (BOLAÑO,
2004, p.343). Passados alguns dias, a dificuldade de precisar qualquer coisa contagia também a
noção que tem de si:

- Tiene que pagar primero - dijo la mujer en español.


- No entiendo - dijo Fate -, soy americano.
La mujer le repitió la advertencia en inglés.
[...]
- Gracias, señorita - dijo en español.
Después salió con su lata de cerveza y su hot-dog a la carretera. Mientras
esperaba que pasaran tres camiones que iban de Santa Teresa a Arizona recordó
lo que le había dicho a la cajera. Soy americano. ¿Por qué no dije soy
afroamericano? ¿Porque estoy en el extranjero? ¿Pero puedo considerarme en el
extranjero cuando, si quisiera, podría ahora mismo irme caminando y no

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caminar demasiado, hasta mi país? ¿Eso significa que en algún lugar soy
americano y en algún lugar soy afroamericano y en algún otro lugar, por pura
lógica, soy nadie? (BOLAÑO, 2004, p.358).

O soy nadie de Oscar Fate refere-se à dissolução dos seus pontos de referência, inclusive
naquilo que diz respeito à sua autorreferência. Não se trata, portanto, da possibilidade de ser
muitas coisas ao mesmo tempo, mas justamente de não ser nada, de apontar para a intuição de
que a tautologia do eu = eu se apresenta muito mais dramaticamente como o eu = {} 2. E, de
novo, o espanto diante da desrealização que o acomete: Fate não entende como a curta distância
viajada poderia operar tal processo. Em “O olhar viajante (do etnólogo)”, Sérgio Cardoso
relaciona alguns tipos de viagens com o (des)encontro de si, propondo uma nova concepção de
temporalidade e da distância como chaves para uma compreensão mais apropriada das
desestabilizações características a muitos deslocamentos. O pressuposto que visa combater é de
que, segundo indicam os dicionários, as viagens são mudanças de lugares, mas somente entre
lugares distantes. Interessado na prescrição da distância, comenta que “distância”, nesta
definição, refere-se, mais provavelmente, ao oposto de próximo.

Assim, podemos observar que a palavra sugere um certo horizonte de inclusão e


envolvimento, que confina cada elemento assinalado e os que lhe estão
próximos, no interior do mesmo campo, nos limites de um certo espaço que
contorna entre eles alguma comunicação ou passagem, e demarca os “arredores”
de cada um. Ou seja, este atributo remete à configuração de um todo – ou, ao
menos, ao contorno de um certo horizonte – que compreende os pontos
envolvidos e possibilita sua apreensão simultânea, sem a qual parece impossível
tal predicação. (CARDOSO, 1988, p.352-353).

A proximidade definida como um contínuo simultâneo, já que orientada pela


permanência de uma duração, configura um horizonte e uma presença, demarcando uma ordem
de coexistências articuladas: “um domínio de conjunções e comunicação, inclusão e
interioridade”. (CARDOSO, 1988, p.353). A distância, portanto, como sentido oposto ao da
proximidade pressuporia a descontinuidade, mas cujas passagens teriam como suporte a
continuidade imposta pela representação do tempo. À maneira clássica, o tempo é um contínuo

2
David Darling, em The universal book of mathematics, explica que o conjunto vazio não é nada senão “o conjunto de todos os
triângulos com quatro lados, de todos os números maiores do que nove e menores do que oito, e o conjunto de todos os
movimentos de abertura, em xadrez, que envolvam um rei.” Tradução minha.

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sucessivo (como o espaço é um contínuo simultâneo), um contínuo que existe sucessivamente


em cada uma de suas partes, por exclusão das outras. A distância encontraria, portanto, na
sucessividade do tempo a sua unidade. Introduz-se, então, o questionamento da possibilidade da
continuidade desta sucessão.

Quando dizemos que o tempo é um contínuo sucessivo (uma totalidade cujas


“partes” nunca existem simultaneamente - juntas -, mas umas depois das
outras) referimos seu movimento contínuo a uma sequência de agoras e o
conformamos à interpretação mais imediata do movimento, o deslocamento de
um lugar para um outro, de uma “coisa” extensa a uma outra, como é pensado
usualmente o movimento. (CARDOSO, 1988, p.355).

Um assunto bastante complexo dentro da filosofia – o paradoxo da flecha de Zeno3, ou o


“instante qualquer” de Bergson e depois Deleuze –, o movimento cuja compreensão só pode ser
realizada na totalidade da extensão percorrida não explica que o movimento, em realidade, não
se identifica à série dos lugares que indicam sua trajetória, pois estes são pontos imóveis,
indiferentes ao movimento. O movimento se dá sempre entre dois pontos; os pontos, por sua vez,
são abstrações que nos permitem ordená-los em unidades desde sempre virtuais. É desta maneira
que a continuidade simultânea da extensão se infiltra na continuidade sucessiva do movimento (e
do tempo) e a sustenta, como condição necessária da unidade virtual do movimento efetivo do
móvel ou do sujeito. De modo que se explica a sucessão (do movimento e do tempo), retendo-se
de um lado a pressuposição da unidade de um espaço, e supondo-se, de outro, a unidade e
identidade do móvel que produz o movimento. Ou seja, as condições de possibilidade do
contínuo sucessivo estão, finalmente, em duas unidades pressupostas: a da extensão e a do
sujeito.

O movimento local parece exigir, como sua condição, a projeção de um trajeto.


Pois, se se move – segundo acreditamos – de alguma coisa para outra, se se está
sempre, enquanto movimento, entre seu ponto de partida e um ponto de
chegada, torna-se impossível pensá-lo se não se detém, de algum modo, a
unidade do percurso que o determina, se não se “conhece” o ponto de chegada
(é isso que permite, por exemplo, afirmar que estar em movimento de um lugar
para outro é estar “virtualmente” neste outro lugar). Se, portanto, não se pré-vê
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Segundo o qual uma flecha em voo, em qualquer instante temporal sem duração, não está nem se movendo para
onde está, nem para onde não está.

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o trajeto e, nele, a estação final do movimento, não podemos representá-lo.


(CARDOSO, 1988, p.356).

Se “A Parte de Fate”, assim como o 2666 inteiro, se define pela busca de algo que não
será possível encontrar, se o movimento, portanto, é sempre incompleto pois nunca se chega lá
onde se quer chegar, em quais termos se poderia pensar o deslocamento? A chave é a
compreensão do tempo como uma dimensão trabalhada por uma diferenciação interna
permanente, em que não há passagem de um ponto a outro, mas autodiferenciação como modo
de existência temporal do presente: articulação e diferenciação latente do passado e do futuro no
campo do presente, “pois este guarda os traços de suas configurações passadas e evoca em si
mesmo outras possíveis”. (CARDOSO, 1988, p.356). A temporalidade deixa de constituir-se
como extensão e agregação, acumulação ou envolvimento, e reivindica como funcionamento a
quebra e a transformação, “estilhaçamento e reorganização de um mesmo ‘campo’, por
desintegração e reconstituição (sempre ‘aberta’) do seu sentido. Se há passagem, ela é, portanto,
de uma configuração a outra de sentido”. (CARDOSO, 1988, p.356, grifo meu).
Diante disso, segundo Sérgio Cardoso, os dicionários não estariam equivocados, pois a
viagem definitivamente pressupõe a distância. O engano está em vincular a distância ao espaço,
ao representar, ingenuamente, esses movimentos como mudanças de um lugar no interior de um
mesmo mundo. Não se trata, portanto, de um ponto de vista sobre um mundo comum, mas de
mundos totalmente diversos de onde partem as perspectivas: “todos os seres veem
(“representam”) o mundo da mesma maneira — o que muda é o mundo que eles veem.”
(CASTRO, 1996, p.127). Esta experiência é geralmente atribuída ao entorno irreconhecível e às
vezes adverso em que se localiza o viajante, tornando-o deslocado ou causando a sensação de
estar fora do lugar, mas o desterro pode ter em sua origem o próprio rearranjo interno do viajante
diante dele mesmo.

Quando consideramos o caráter temporal das viagens, compreendemos que o


dépaysement não testemunha a exterioridade e estranheza do mundo
circundante, ou mesmo a intersecção ou sobreposição imaginária de extensões
diversas (sobreposição fantasmagórica já que - segundo se diz “dois corpos não
podem ocupar o mesmo espaço”), mas assinala sempre desarranjos internos ao
próprio território viajante, advindo das fissuras e fendas que permeiam sua
identidade. Pois, as viagens na verdade, nunca transladam o viajante a um meio

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completamente estranho, nunca atiram em plena e adversa exterioridade


(mesmo porque ele não se encontra “dentro do espaço”, como uma coisa, nem
“fora dele”, como um espírito, como a cada passo insiste em lembrar Merleau-
Ponty); mas, marcadas pela interioridade do tempo, alteram e diferenciam seu
próprio mundo, tornam-no estranho para si mesmo. Assim, neste sentimento de
estranheza, de “alheamento” e distância, seu mundo não se estreita, se abre; não
se bloqueia, mas experimenta a vertigem da desestruturação (sempre, em
alguma medida, marcada pela perda e a morte) que lhe impõem as alterações do
tempo. É desta natureza o estranhamento das viagens: não é nunca relativo a um
outro, mas sempre ao próprio viajante; afasto-o de si mesmo, deflagra-se sempre
na extensão circunscrita de sua frágil familiaridade, no interior dele próprio.
(CARDOSO, 1988, p.359).

Esta experiência, este sentido da viagem que faz deparar com si mesmo, nos remete,
principalmente, ao (des)encontro com o outro que existe em si, o estranho do qual se faz parte e,
portanto, não se configura como plena exterioridade, mas como elemento inscrito em si,
deflagrando a impossibilidade do indivíduo diante de subjetivações múltiplas e intotalizáveis em
um horizonte. Como fantasmas, as experiências diversas assombram Fate, sem possibilidade de
articulação entre si. No caminho de volta aos Estados Unidos, em que conclui que só poderia
estar vivendo no “sueño de otro” (BOLAÑO, 2004, p.337), Fate se esforça para reconhecer o
caminho pelo qual passou na ida ao México, mas o exercício resulta inútil, ele é incapaz de
“reconocer nada de lo que había visto unos días atrás, cuando recorrió el mismo camino en
sentido contrario. Lo que antes era mi derecha ahora es mi izquierda y ya no consigo tener ni un
solo punto de referencia. Todo borrado”. (BOLAÑO, 2004, p.438).
A luta de boxe e as atividades ligadas a ela tornam se apenas um pano de fundo para o
desenrolar de outras histórias. Oscar Fate conhece Chucho Flores, um jornalista mexicano, com
quem passa a percorrer a cidade e seus bares. É ele quem conta a Fate sobre o femicídio em
curso na cidade e o apresenta para Guadalupe Roncal, que está cobrindo os crimes. Enquanto
Oscar Fate tenta uma entrevista com Klaus Haas, um dos principais suspeitos, ele comete –
talvez – o seu próprio crime. Após a luta de boxe, Fate vai com Flores e Rosa Amalfitano para a
casa de Charly Cruz, lá ele se vê em uma situação que o força – o ímpeto parece surgir de uma
força externa a ele – a agir com violência. E em um ato que é parecido não só à luta de boxe que
presenciara anteriormente, mas também à cena de violência dos críticos, na primeira parte do
livro, desfere um golpe certeiro em seu opositor:

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Cuando salían de la habitación sintió cómo Corno lo agarraba de un brazo y


levantaba la mano libre, que empuñaba, le pareció, un objeto contundente. Se
revolvió y golpeó, al estilo Count Pickett, la mandíbula del mexicano de abajo
hacia arriba. Como antes Merolino Fernández, Corono cayó al suelo sin exhalar
ni un solo gemido. [...] Fate miró el cuerpo caído de Corono y pareció meditar
durante unos segundos.
- El coche está en el garaje - dijo -, no nos podemos ir sin él.
- Entonces hay que salir por la parte de delante - dijo Chucho Flores.
- ¿Y éste? - dijo Rosa Amalfitano indicando a Corona -, está muerto?
(BOLAÑO, 2004, p.409).

De modo similar ao desfecho do episódio dos críticos, não se determina o estado de saúde
do ferido, e o que se segue é a fuga. Fate não sabe dizer se ele matou ou se ele não matou e,
vivenciando Santa Teresa como uma cidade que se auto-devora, ao tomar a mão de Rosa
Amalfitano para livrá-la do perigo (real ou imaginado), tem a “conciencia de la frialdad de su
propia mano. He estado agonizando todo este tiempo, pensó. Estoy frío como el hielo. Si ella no
me hubiera dado la mano me habría muerto aquí mismo y hubieran tenido que repatriar mi
cadáver a Nueva York”. (BOLAÑO, 2004, p.408). Fate é acompanhado pela morte em seus
encontros aleatórios; vê a morte repetidas vezes no México e também nele mesmo: “conoce de
primera mano el planeta de los muertos [...] y ya no sabe lo que dice.” (BOLAÑO, 2004, p.347,
grifo meu).
A indivisibilidade do sujeito em xeque opera também uma fissura na linguagem. O soy
nadie torna a enunciação e a ordenação discursiva problemática, ou, de modo indecidível,
estando o vetor indeterminado, a linguagem simultaneamente opera a fissura no sujeito. A
apropriação da palavra pelo sujeito se dá pelo intermédio de signos-chave – os dêiticos – cuja
referência não está completamente estocada no código, pois depende de uma circunstância
existencial relativa. Essas palavras designam pessoas e objetos diferentes de acordo com a
situação de enunciação.

O principal entre os dêiticos é a própria palavra eu, cuja delicadeza e força


estrutural estaria indicada no fato de ser a última das palavras decisivas da
língua que o sujeito aprende a manejar, e a primeira que o afásico perde. A
criança aprende que o signo eu admite investir o eu e o outro (o tu também é eu
e o eu também é tu): fazer esse câmbio é consumar a sua investidura no domínio
da língua. Mas ao fazê-lo, aprendendo então a dirigir e a embrear pessoas,
tempos e espaços na linguagem, o sujeito tem que esquecer praticamente que é

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um outro, acreditando na ficção da linguagem que lhe permite de resto


organizar, delimitar, mapear a terrível infinitude do espaço e do tempo.
(WISNIK, 1988, p.295).

O que Fate vivencia é um curto-circuito na rede dos dêiticos; em descompasso com o


tempo, o ego não o dirige. A dificuldade em encontrar o seu lugar no que é contado, em
encontrar o seu pertencimento àquela série de eventos, atribui-se ao simples fato de que a língua
falada em “A Parte de Fate” não pode ser apropriada por ele, porque não é de ninguém senão da
obra. A enunciação, portanto, torna-se frágil, já que é por intermédio da perspectiva de Fate que
o capítulo é narrado. Ele não fala uma palavra de espanhol, como vemos na cena com a caixa do
posto de gasolina ou nos diversos momentos ao longo do capítulo em que outros personagens
servem como tradutores: “Esta vez fue Rosa Amalfitano quien tradujo. Mientras lo hacía no
sonreía como Charly Cruz sino que se limitó a traducir lo que había dicho la otra mujer con total
seriedad. Entiendo – dijo Fate sin entender nada”. (BOLAÑO, 2004, p.392, grifo meu.)
O capítulo é significativamente composto por diálogos e pelos pensamentos do
protagonista, o que sugere que todos ali estejam falando em inglês, ou que estejam traduzindo,
sem as marcas devidas de tradução, aquilo que se passa em espanhol para o inglês. A retradução
ao espanhol que lemos seria realizada pelo narrador. Mas se há marcas de distintas variações
linguísticas em espanhol nessa retradução, a hipótese de duas traduções consecutivas se vê um
tanto quanto inviabilizada, pois pareceria absurda que uma tradução ao espanhol a partir de um
inglês traduzido de outro espanhol, ao qual não se tem acesso, se configuraria de maneira a
preservar as variações. Há um momento do texto em que isso fica nítido: Rosa Amalfitano, que é
espanhola, conta para Fate, em inglês, sobre uma conversa que teve com Rosa Méndez, essa sim
mexicana. O diálogo, portanto, é mediado pela tradução em inglês do espanhol de Méndez e
depois traduzida de volta ao espanhol de 2666 pelo narrador. Amalfitano conta, em inglês, como
Méndez disse: “Me encanta la palabra follar, qué bonito hablan los españoles.” (BOLAÑO,
2004, p.414). O que está em questão é o jogo entre follar e chingar – sendo o primeiro a maneira
utilizada pelos espanhóis e o segundo pelos mexicanos –, que se mantém ao longo do diálogo
traduzido ao inglês. Não haveria, porém, como denotar essa diferença idiomática, o que indica
que entre Fate e o leitor há um abismo de sentido, isto é, o jogo entre os dois sinônimos, que
indicam origens linguísticas diferentes, só pode ser percebido pelo leitor, que se coloca em um
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espaço externo à diegese. Fate, preso às regras específicas ao texto, não pode realmente
compreender o que está sendo dito.
Além disso, a narração não se preocupa em retraduzir para o espanhol os erros de inglês e
as peculiaridades da pronúncia de inglês dos mexicanos de Santa Teresa, o que indica uma
situação não menos absurda; o espanhol que lemos não é uma tradução e, portanto, a língua em
que se dá a narrativa é uma língua inexistente, que expressa uma impossibilidade: falar inglês
com significantes em espanhol. Nas partes em que Fate fala inglês com o editor do seu jornal, é
possível ver, inclusive com clareza, a estrutura da língua inglesa mantida no espanhol: “Cuántos
putos hermanos están metidos en el asunto?” (BOLAÑO, 2004, p.373) ou “Métete a Count
Pickett en tu jodido culo negro”. (BOLAÑO, 2004, p.374). A irrealidade dessa língua constitui a
própria “sensación de irrealidad” (BOLAÑO, 2004, p.407) que persegue Fate durante os seus
dias em Santa Teresa. Melhor dizendo, não é Santa Teresa que leva à dissociação de Fate, mas o
reconto da sequência dos atos, que não podem ser articulados nessa língua de ninguém. “The fact
that the language in which Fate’s report is read (Spanish) breaks from the one in which it is
experienced (English) – this and other divisions indicate that the subject Fate reflects the
dissociation, rather than the unity, of the series, the history he chronicles”.4 (LEVINSON, 2009,
p.181). A preocupação de Fate não é a de entender o que aconteceu, mas de entender o sentido, a
relação entre os acontecimentos. A sua experiência individual não pode ser compreendida,
porém, dentro de uma estrutura linguística da qual ele não pode se apropriar: “y ya no sabe lo
que dice”.
É no final do capítulo em que a disjunção eu-espaço-tempo atinge o seu ápice, onde são
narrados simultaneamente o retorno aos Estados Unidos com Rosa Amalfitano e a visita à prisão
de Santa Teresa com Guadalupe Roncal. Os dois arcos narrativos são exprimidos em retalhos,
intermediado por aparições da imagem da mãe, rumo à dissolução completa da língua. Ao
deparar-se com o suspeito – segundo Fate, um gigante em meio a um bosque de onde não pode
ser resgatado – os jornalistas não sabem o que perguntar a ele. O capítulo termina quando Roncal
leva a mão à boca, “como si estuviera inhalando un gas tóxico” (BOLAÑO, 2004, p.440), e se

4
“O fato de que a língua na qual o relato de Fate é lido (espanhol) se separa da língua em que é vivenciada (inglês) –
essas e outras divisões indicam que o sujeito Fate reflete a dissociação, no lugar da unidade, da série, da história que
ele conta”. Tradução minha.

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depara com a própria mudez. Dentro de uma prisão, portanto, cuja descrição realizada pela
mexicana no primeiro encontro entre os dois já anunciava o horror: “No sé cómo explicarlo. […]
Parece, no se sorprenda usted de lo que le voy a decir, una mujer destazada. Una mujer
destazada, pero todavía viva. Y dentro de esa mujer viven los presos.” (BOLAÑO, 2004, p.379),
temos, como respostas às primeiras perguntas, somente o silêncio estarrecedor. Fate habita esse
tempo-espaço esquartejado pelo eu que recua diante do caos pulsante da linguagem que não
existe fora da obra. Não havendo tradução, isto é, não havendo transporte de sentido, Fate é
encerrado – preso – a uma perspectiva que não permite exterioridade. Não é possível, assim,
suplantar o talvez, pois não há uma versão real dos fatos ao qual se possa aceder.

REFERÊNCIAS

BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2004a.


CARDOSO, Sérgio. O olhar dos viajantes. In: NEVES, Adauto. O Olhar. São Paulo: Companhia
das Letras. 1988.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. In:
Mana. 2:2, Rio de Janeiro, outubro de 1996, p.115-144.
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Artigo recebido em agosto de 2014.


Artigo aceito em outubro de 2014.

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