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DIREITO EMPRESARIAL:
UMA LEITURA DA RECUPERAÇÃO
EMPRESARIAL EXTRAJUDICIAL NA
PERSPECTIVA DISCURSIVA
HABERMASIANA
NITERÓI
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO
Niterói
2017
Universidade Federal Fluminense
Superintendência de Documentação
Biblioteca da Faculdade de Direto
TANIA MARCIA KALE
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Gilvan Luiz Hansen
Universidade Federal Fluminense
____________________________________________
Membro titular externo: Prof. Dr.Clodomiro José Bannwart Júnior
Universidade Estadual de Londrina
_____________________________________________
Membro titular externo: Prof. Dr. Elve Miguel Cenci
Universidade Estadual de Londrina
_____________________________________________
Membro titular interno: Prof. Dr Edson Alvisi Neves
Universidade Federal Fluminense
____________________________________________
Membro titular interno: Prof. Dr Eder Fernandes Mônica
Universidade Federal Fluminense
Niterói
2017
A minha família, principalmente as minhas filhas Talita e Ester,
que souberam entender a minha ausência.
AGRADECIMENTOS
Inicialmente agradeço imensamente ao Prof. Gilvan Luiz Hansen pela oportunidade e pelo
apoio concedido. Por conduzir de forma mansa e tranquila a orientação e o conhecimento
adquirido. Por confiar que eu chegaria até aqui.
A Rosely Dias pela ajuda preciosa, pois sem o apoio, sua técnica e principalmente pelo
conforto nas horas do meu desespero manteve-me calma com seu bom humor característico,
me fazendo acreditar que tudo já tinha dado certo.
A Maria Carolina Duarte pelo apoio e preocupação com a condução do trabalho, com as
indicações preciosas de pessoas e livros.
Aqueles amigos e amigas que acreditaram que eu chegaria aqui, não sem tensão ou
sofrimento, mais com a alegria do propósito cumprido.
A banca que solicitamente aceitou ao convite feito pelo meu orientador Gilvan.
E Aquele que não me abandona nunca – Deus!
EPÍGRAFE (OPCIONAL)
KALE, Tania Marcia. DIREITO EMPRESARIAL: UMA LEITURA DA RECUPERAÇÃO
EMPRESARIAL EXTRAJUDICIAL NA PERSPECTIVA DISCURSIVA
HABERMASIANA. 2017. Fls 107.Tese (Doutorado em Sociologia e Direito) Universidade
Federa Fluminense, Niterói.2017.
RESUMO
Este estudo objetiva realizar uma leitura habermasiana das relações de recuperação
empresarial, com o foco na recuperação empresarial extrajudicial. Abordar a empresa como
fenômeno social, enquanto instituição que, de acordo com seu dinamismo e poder de
transformação, define as relações sociais contemporâneas. Versa-se especificamente a
recuperação empresarial extrajudicial como possibilidade construtiva de interações negociais,
fundadas em ações éticas e morais. Nesta perspectiva, estuda-se a possibilidade da
democratização do Direito Empresarial, tendo em vista o fato de a legislação prever que a
decisão está restrita aos interessados e à sociedade, cabendo ao Estado legislador o papel de
garantidor dos direitos fundamentais mínimos. Para tanto, o embasamento teórico adotado na
presente tese respalda-se principalmente na ação comunicativa de Jürgen Habermas, na busca
de um consenso baseado em práticas dialógicas e ausência de coação, fundamentais à
construção do plano de recuperação extrajudicial da empresa.
ABSTRACT
This study aims to perform a Habermasian reading of business reciovery relationships, with a
focus on extrajudicial corporate recovery. To approach the company as a social phenomenon,
as an institution that, according to its dynamism and transforming power, defines
contemporary social relations. It deals specifically with the out-of-court corporate recovery as
a positive possibility of business interactions based on ethical and moral actions. From this
viewpoint, this thesis presents a study about the possibility of democratization of Business
Law, considering that legislation establishes that the decision is restricted to the interested
parties and to society, and the State legislator plays its role as the guarantor of the minimum
fundamental rights. For this, the theoretical basis adopted in this thesis is based mainly on the
communicative action of Jürgen Habermas, in the search for a consensus based on dialogical
practices and lack of coercion, fundamental to the construction of the company's extrajudicial
recovery plan.
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12
INTRODUÇÃO
ver refletindo as pequenas ondas até suas margens, metáfora que mostra com fidelidade a
dimensão e o alcance do término da atividade empresarial.
A possibilidade de recuperar a empresa em crise econômico-financeira, afastando-a
da falência e oportunizando sua revitalização, é sem dúvida reconhecer a empresa como
fenômeno socioeconômico passível de proteção jurídica, uma vez que, a proteção, conforme
será observado, não se restringirá aos interesses dos credores e devedores, mas vai também
impactar toda a comunidade que dela depende.
Para a realização deste trabalho, que tem uma natureza multidisciplinar, a
metodologia adotada foi estudos dos textos e da bibliografia atinentes ao debate sobre os
fundamentos éticos-morais no que diz respeito a Lei n.º11.101/2005 que prevê institutos
como a falência e a recuperação empresarial, essa última nas modalidades judicial e
extrajudicial. Traz-se como cerne da questão a perspectiva discursiva da recuperação
empresarial extrajudicial, analisando a Lei n.° 11.101/2005, a Lei n.° 12.846/2013, o Decreto
Lei n.º 8.420/2015, a Portaria da CGU nº 909/2015, além da Constituição da República
Federal de 2008 e o Código Civil de 2002.
Para atingir os objetivos e discutir os problemas atinentes ao tema a que nos
propusemos, abordamos, no primeiro capítulo, a mudança histórica do significado de ócio,
negócio e direito à preguiça, tecendo uma visão crítica sobre a imposição do capitalismo e sua
nova organização do trabalho, no entendimento de comércio e empresa.
O segundo capítulo busca retratar o perfil do comerciante brasileiro nos períodos
legislativos do país, à medida que possa sair da condição de falido e de abrir a possibilidade
de seu soerguimento, diante do insucesso de seu empreendimento. Dentro deste quadro é
realizada a análise conceitual do empreendimento e seu resultado, bem como as possíveis
causas do insucesso.
O terceiro capítulo analisa a mudança de concepção da teoria dos atos de comércio
para a teoria da empresa de influência italiana. Diante desta nova concepção, se verifica a
transmutação de procedimento do Decreto-lei n° 7.661/1945, que prevê o instituto da
concordata e a falência, para a atual Lei n° 11.101/2005, conhecida como Lei de Recuperação
Empresarial e Falência, a qual prevê a recuperação empresarial judicial, extrajudicial e
especial, bem como a falência. Ainda neste mesmo capítulo, fazemos uma análise acerca da
mudança ético-moral no cenário do Direito Empresarial com a vigência da Lei n.º
12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, e com o Decreto n.º 8.420/2015 que a
regulamenta. Ambas as normas preveem a responsabilidade da pessoa jurídica e as
consequências da participação em atos ilícitos, corroborando sua responsabilidade social.
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CAPÍTULO 1
O SIGNIFICADO DO NEGÓCIO NO TEMPO
Arendt (2007, p.94) ainda destaca que aqueles que eram chamados de banausoi, isto
é, homens cujo principal interesse fosse seu oficio, não o mundo público Torna-se cristalino
entender que o negócio é concebido como a negação da arte da contemplação e da atividade
do conhecimento – negócio – caracterizado por uma atividade servil, apesar de necessário à
manutenção da vida dos homens livres, imprescindível para garantir a vida e a preservação do
ócio e, consequentemente, a vida na polis.
Com um ethos muito próprio, o trabalho, o negócio e o ócio trazem significados
conexos e complexos, que refletem a organização social de determinada época. Assim, com a
passagem da Idade Média para a Modernidade, uma nova estrutura social, filosófica e
histórica foi delineada. Diante dessa transição, se percebe a mudança de significado através
dos pensamentos que refletem a concepção de trabalho e reproduzem o entendimento do que é
empresa e empresário na contemporaneidade.
Não há precisão quanto ao momento da guinada de valor do significado entre ócio e
trabalho. Surpreende que o ócio adquire um significado de inação, um convite ao vício, como
afirma Chauí(1999, p. 2), opondo-se ao negócio. E o trabalho passa a ter um valor diretamente
relacionado à questão moral de cumprimento de dever, de honestidade.
Como explicar que argumento convenceu a tantos e foi capaz de irradiar tamanha
transformação social? O que levou a ideia de trabalho organizado em um único lugar,
denominado fábrica, justificado pelo aparecimento da tecnologia e pelo lucro, que homens
realizassem seu trabalho de forma fracionada e repetitiva, fragmentando seu conhecimento e
tendo como consequência o não reconhecimento do produto produzido? Que tipo de sistema
econômico aumenta a produtividade e traz como consequência a exploração e pobreza? Como
essa proposta viabilizou a transformação moderna da realidade social?
Alguns desses questionamentos encontram explicações no fenômeno do capitalismo,
que é justificado pelo excesso de produção, pela organização do trabalho, pela exploração dos
trabalhadores, pela produção de riquezas e com a mesma força a da geração de pobreza.
Pensamento este, considerado moderno para Decca (1984, p.20).
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Já Weber (1985, p.6), em sua obra A ética protestante e o espírito capitalista, afirma
que o desenvolvimento do capitalismo ocidental se desenvolveu com características próprias
como a organização racional do trabalho livre, o favorecimento da economia e da religião
protestante. E assim, a ideia de lucro sempre existiu em todas as épocas e que esta não é
exclusividade do capitalismo. Considerou que, mesmo com o desenvolvimento das técnicas e
da ciência, o que proporcionou as condições para o aparecimento do capitalismo foi a
associação de peculiaridades como a saída do trabalho de dentro de casa e o desenvolvimento
da contabilidade racional. Todavia, o que preponderou para tal desenvolvimento foi a
organização racional do trabalho.
Na verdade, quando o referido autor fala sobre as peculiaridades do aparecimento do
capitalismo, ele estabelece um vínculo entre o trabalho e a religião protestante em seus
diversos segmentos. Diante disso, identifica o trabalho como uma construção moral religiosa,
em que o exercício laboral cristão diante dos olhos de Deus é uma vocação no sentido de
chamado e afirma que:
[...]o único modo de vida aceitável por Deus não era o superar a moralidade
mundana pelo ascetismo monástico, mas unicamente o cumprimento das
obrigações impostas ao indivíduo pela sua posição no mundo, bem como o
único modo de vida aceitável por Deus (WEBER, 1985, p.6).
[...] o trabalhador fica mais pobre à medida que produz mais riqueza e a sua
produção cresce em força e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria
ainda mais barata à medida que cria mais bens [...]. A alienação do
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De acordo com sua concepção sobre o trabalho, Marx considera que a produtividade
do trabalhador está diretamente relacionada à criação de riqueza de outrem e tem como
consequência a geração da miséria deste mesmo trabalhador. Portanto, não deixa nada de
significativo para a vida a não ser a perda da liberdade e a exploração. No caso é pertinente
trazer, neste momento, a crítica de Hannah Arendt a Marx quando ela observa que o autor
reduz todo o labor ao trabalho:
[...] realmente, é típico de todo labor nada deixar atrás de si: o resultado do
seu esforço é consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido.
E, no entanto, esse esforço, a despeito da futilidade, decorre de enorme
premência; motiva-o um impulso mais poderoso que qualquer outro, pois a
própria vida depende dele. A era moderna em geral e Karl Marx em
particular, fascinados, por assim dizer, pela produtividade real e sem
precedentes da humanidade ocidental, tendiam quase irresistivelmente a
encarar todo labor como trabalho e falar do animal laborans em termos
muito mais adequados ao homo faber, como a esperar que restasse apenas
um passo para eliminar totalmente o labor e a necessidade (ARENDT, 2007,
p.98).
Dentro do contexto descrito e contatado por Decca (1978) em que o trabalho é visto
como degradação humana, oprimindo o trabalhador e impondo uma nova moral, “a moral do
tempo é dinheiro”, pois a necessidade de produzir é maior do que a de viver, de manter
relações afetivas, sociais e interacionais. É a partir desta afirmação, que autor chama atenção
para a organização do trabalho em locais como as fábricas, onde a sociedade assimila a nova
organização que define valores, normas e glorifica o trabalho, modificando todas as relações
sociais até então estabelecidas e, com o capitalismo, essas relações tomam o rumo religioso de
glorificação do trabalho e reduzem a humanidade a mera produtora de seres oprimidos pelo
próprio trabalho.
Nessa perspectiva, ainda aponta que a mudança de entendimento, ou melhor, a visão
do ócio e do trabalho é responsável pelo impedimento do conhecimento além do já
estabelecido e aduz que:
Dentro daquilo que nos interessa, determinadas respostas já são bastante
conhecidas. Por exemplo, quando falamos da produção de conhecimentos
técnicos que não conseguem se impor socialmente, buscamos a resposta, via
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Ressalte-se que o olhar de De Masi está de acordo com a realidade italiana, pois se
constata que a realidade de outros países ainda é industrial, necessária inclusive à
sobrevivência. Há um retorno ao pensamento de Aristóteles, que afirmava que os escravos
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eram necessários ao ócio, precisavam de alguém para trabalhar, produzir para outros
pensarem na polis (ARISTÓTELES, 2010).
Sob ótica diversa, Habermas (2014) pensa o trabalho como interação social e afirma
que o homem usa seu potencial criativo na transformação da natureza nos projetos que
concebe através do uso da razão livre e autônoma.
Elucidando o pensamento habermasiano, Hansen (1999) comenta que o homem se
reconhece e é reconhecido socialmente no (e graças ao) seu produto, que serve de meio para a
construção de sua identidade como pessoa.
Neste sentido, Habermas (2014) alega que o trabalho promove interações
intersubjetivas, mediadas linguisticamente. Apesar de reconhecer esta possibilidade, o autor
entende que o trabalho não promoveu o bem-estar social, pelo seguinte motivo:
um povo diferente, uma organização político-social e econômica para eles pouco proveitosa,
uma vez que buscavam produtos diferenciados, bem como novos consumidores dos produtos
gerados na Europa.
A carta de Pero Vaz de Caminha, ao descrever de forma cuidadosa as pessoas e o
ambiente que encontrou, cuida para não decepcionar o investidor da expedição e não
demonstrar toda a frustação do que aqui foi encontrado. Em trechos da carta expõe
descritivamente as pessoas e a facilidade de transformá-las em cristãs, a alimentação, os
costumes e o ambiente em que vivem. Quanto ao lugar, tem a preocupação de demonstrar a
possibilidade de explorá-lo, não deixando de expor a exuberância da natureza. Em conhecido
trecho da carta, o escrivão afirma que inúmeras são as possibilidades de produção e que, em
se plantando, tudo pode ser colhido: “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira [a terra] é
graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”.
(BRASIL, 2017)
Pelo que se deduz por meio dos documentos históricos, inicialmente o Brasil não
desperta no colonizador a merecida importância e fica durante décadas relegado ao
esquecimento, uma vez que o interesse português prioriza o comércio das Índias. A terra
recém-descoberta não apresenta um imediato retorno comercial lucrativo e ainda por cima
necessita de muita mão de obra para desenvolver atividades e tomar posse de suas extensas
regiões. Só após trinta anos a partir do descobrimento, período conhecido como pré-colonial,
é que o Brasil apresenta importância econômica com a extração do pau-brasil.
Nessa época exigia-se para a ocorrência da exploração uma autorização do rei de
Portugal, uma vez que o pau-brasil, devido a sua importância econômica na Europa, era
considerado “estanco”, que significa monopólio real. O primeiro a ter concedida tal
autorização foi Fernando de Noronha que instala uma feitoria. Deve ser ressaltado que a
exploração aqui realizada fica por conta e risco do explorador, que só tinha a obrigação de
pagar a Portugal parte do lucro advindo da comercialização da madeira (COSTA,1999, p.37).
Isto posto, é constatado que a colonização implantada no Brasil tem como escopo o
atendimento das necessidades extraterritoriais, motivo pelo qual o comerciante no Brasil tinha
suas relações jurídicas regidas pelas leis de Portugal.
A figura retratada do comerciante durante todo o período colonial não tinha uma
essência brasileira, visto que a sociedade encontrava-se em fase de formação e muitos dos que
aqui estavam eram estrangeiros. Sendo assim, no caso de insucesso da empreitada comercial,
levando-a à falência, a legislação aplicada era as Ordenações Afonsinas que, segundo
Nogueira (2015), tinham tanto regras de Direito Civil como regras de Direito Comercial
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mescladas sem qualquer rigor sistemático. Para ilustração de sua afirmativa, Nogueira (2015,
p.45-46) cita o trecho do Título LXVII, extraído das referidas Ordenações:
E se algum devedor promete a seu credor lhe pagar a dívida a tempo certo, e
não lha pagando, que fosse preso na prisão nossa ou do Conselho, até que lhe
pagasse, se ele não pagar a dívida ao tempo que prometeu, poderá ser preso
por mandado da Justiça até que pague: e a Justiça o deve mandar prender,
sendo para ela requerida. E acordando devedor e credor, que não pagando a
tempo certo o devedor a dívida ao credor, ele o pudesse prender por sua
própria autoridade, mandamos que tal convenção não valha, e não possa por
poder dela o credor prender seu devedor, mas faça o requerimento à Justiça, e
ela o prender. Mas o credor achar seu devedor fugindo, por não lhe pagar a
dívida, em tal caso mandamos que se o credor não puder haver a cópia da
presença do juiz para o mandar prender em todo o caso, levando-o logo à
prisão do Conselho, recontando à Justiça pela guisa que o prende, e
requerendo-lhe que lhe mande pôr sobre ele boa guarda, para se dele fazer
cumprimento de direito.
Conforme pode ser observado, o comerciante era percebido como alguém que agia
de má-fé em caso de insucesso da sua atividade comercial e comparado a um meliante. Eram-
lhe impostas penas de prisão e até mesmo de degredo, o que justificava a fuga de alguns
quando da falência.
A possibilidade de reorganização da empresa não estava descartada nas Ordenações
Filipinas, uma vez que não houvesse dolo ou culpa, todavia o requisito para essa alternativa
era a pobreza advinda de grandes perdas. Esta visão não é a que atualmente temos em nossa
legislação, conforme é enfocado adiante.
Diante do exposto, a legislação imposta não era compatível com a realidade
empresarial brasileira da época, pois, do período colonial até a chegada da família real ao
Brasil, as leis vigentes eram aquelas que prevaleciam exclusivamente nas iniciativas
comerciais portuguesas. A legislação brasileira toma impulso com a chegada do Príncipe
Regente D. João, a partir do advento da abertura dos portos às nações amigas. Agora, sim,
podemos falar acerca dos primórdios da existência do Direito Comercial brasileiro.
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O Código Comercial teve longa tramitação. Dividido em três partes, cuja primeira
parte tratava das pessoas do comércio, contratos e obrigações; a segunda, do comércio
marítimo; a terceira, das quebras. Veio ser promulgado pela Lei n° 556/1850, entrando em
vigor em janeiro de 1851. Deve ser ressaltado que, para melhor aplicação do Código
Comercial, dois decretos o regularam: o Decreto nº 737 regulamentava a parte processual e o
Decreto nº 738 regulamentava os tribunais do comércio e o processo das quebras.
A imagem do comerciante desta época, no que diz respeito à falência, não era das
melhores. O procedimento ao qual estavam submetidos dava oportunidade a fraudes e
consequentemente ao não pagamento aos credores. Assim, a elaboração de novas normas que
garantissem a moralidade das relações comerciais foi exigida pelos comerciantes da época.
Portanto, a proposta do Código Comercial vem, neste período, atender às expectativas e aos
desejos dos que estavam na situação de crise econômico-financeira e de toda uma sociedade
envolvida. Todavia, este mesmo Código de 1850, devido à grave crise econômica, sofreu
modificações através de decretos que buscavam regulamentar a falência, adequando o
procedimento visto como lento, complicado e moroso, características que importavam na
ruína do falido e no sacrifício do credor (MENDONÇA, 2005). Mesmo com propostas
apresentadas de modificações do referido Código após a detecção dos problemas, com o
advento da República o processo de mudança não foi concluído.
Importante discussão marca o início da República, quando se questiona a reforma do
Código Comercial brasileiro no que diz respeito a falências por meio do Decreto nº 917.
Segundo Mendonça (2005), os credores abusaram das vantagens que se lhe deram e
procuraram tirar partido da situação dos devedores. Estes, por sua vez, não tiveram mais
escrúpulos desde que contaram com a impunidade. Observa-se que, durante esta época, a
discussão era em torno do procedimento da falência, previsto no Decreto nº 917, o qual trazia
medidas que proporcionavam escândalos no que se refere as negociações realizadas.
Motivada pelo acima descrito, abre–se discussão entre os interessados –
comerciantes, juristas, associações de comerciantes e o Instituto Brasileiro de Advogados –
todos em prol da modificação legislativa do processo da falência. Sob a lente habermasiana do
discurso, da competência dos atos de fala e da percepção de democracia participativa, arrisca-
se a dizer que o Direito Empresarial proporciona o que ele denomina de agir comunicativo.
No clamor por uma modificação legislativa assiste-se à invasão do diálogo num ambiente
onde a racionalidade instrumental é a regra, possibilitando, por meio da linguagem e do
diálogo, o agir comunicativo para concretizar a ação comunicativa.
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CAPÍTULO – 2
A IMAGEM DO COMERCIANTE NO BRASIL
[...] Nas formas de vida coletiva podem assinalar dois princípios que se
combatem e regulam diversamente as atividades dos homens. Esses dois
princípios encarnam-se nos tipos aventureiro e trabalhador. Já nas
sociedades rudimentares manifestam-se eles, segundo sua predominância, na
distinção fundamental entre os povos caçadores ou coletores e os povos
lavradores. Para uns, o objeto final, a mira de todo o esforço, o ponto de
chegada, assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por
secundários, quase supérfluos, todos os processos intermediários. Seu ideal
será colher fruto sem plantar árvore. Esse tipo de humano ignora fronteiras.
No mundo tudo se apresenta em generosa amplitude e, onde quer que se erija
um obstáculo a seus propósitos ambiciosos, sabe transformar os obstáculos
em trampolim. Vive em espaços ilimitados, dos projetos vastos, e horizontes
distantes. O trabalhador ao contrário é aquele que enxerga primeiro a
dificuldade de vencer, não o triunfo alcançar. O esforço lento e pouco
compensador e persistente, que, no entanto, mede todas as possibilidades de
desperdício e sabe tirar o máximo de proveito do insignificante, tem sentido
bem nítido para ele. Seu campo visual é naturalmente restrito. A parte maior
que o todo. [...] Que ambos participam, em maior ou menor grau, de
múltiplas combinações e é claro que, em estado puro, nem o aventureiro,
possuem existência real fora do mundo das ideias. Mas também não há
dúvida deque os dois conceitos nos ajudam a situar e a melhor ordenar nosso
conhecimento dos homens e dos conjuntos sociais (HOLANDA, 2001, p.43-
44).
Por certo, estas rotas ultramarinas criaram – além dos oficiais agraciados
com mercês do tipo liberdades da Índia – os seus próprios personagens, no
caso, os negociantes com grande cabedal e capazes de estabelecer redes de
contato: sócios, parceiros circunstanciais, caixeiros etc., nas diferentes partes
do ultramar. Por conseguinte, o império luso seria também o espaço para a
existência de um grupo especial de empresários, cujos empreendimentos e
fortunas se fizeram, literalmente, nos vários mares onde os portugueses, em
diferentes graus, estavam presentes.
Portanto, o comerciante que aqui se instalava desenvolvia suas atividades a partir das
relações pessoais e familiares, estendendo-se além dos limites territoriais da colônia. Essas
relações avalizavam o comerciante que, em cada lugar, tinha uma rede de conhecimentos de
parentela. Por outro lado, essas relações não se restringiam ao setor privado, à sociedade civil,
mas estavam também diretamente ligadas ao Poder Público, pois se identificavam entre os
comerciantes aqueles que exerciam cargos públicos, não se limitando a cada esfera
propriamente dita (pública e privada). Tanto é assim que, em sua tese, Florentino e Fragoso
(2001, p.212), afirmam o seguinte:
Algo não muito diferente ocorreu com Antônio Teles da Silva, capitão-mor
das naus da Índia e governador do Brasil entre 1534-1535 e, na década de
1640.
A primeira década da economia na República brasileira foi marcada por várias crises
financeiras, a mais grave foi à crise denominada de Encilhamento. O Brasil, neste primeiro
período do século XIX era reconhecido como um centro periférico agroexportador, todavia a
essa economia voltada para o mercado externo permitiu que fossem estabelecidas condições
para que se fortalecesse o mercado interno (CROCE, 2013)
Neste cenário onde as crises foram avassaladoras, os bancos
brasileiros, os comerciantes pagaram um alto preço. Esta situação foi
motivada segundo Croce (2013):
Em 1889, muitos bancos foram criados diante de um cenário de um cenário
de euforia na economia brasileira, proporcionado pelo evento da Abolição da
Escravidão. Tal transformação estrutural no mercado de trabalho do Brasil
levou o governo imperial a lançar uma política econômica que incentivou à
aglomeração dos bancos e de seus ativos, o que estimulou grande parte da
sociedade, que antes aplicava suas poupanças em ativos imobilizados, ou
seja em terras, benfeitorias e escravos, em investir em papéis como títulos da
dívida pública, ações da Bolsa de Valores e outras transações financeiras.
Devemos atentar que nesta época o Legislativo brasileiro pôs em vigor, além de outras
leis não menos importantes, o Código Comercial de 1850, que legislava sobre o comerciante,
o comércio marítimo e sobre as quebras (falências), também as leis Eusébio de Queiroz que
suspendia o tráfico negreiro e incentivava a mão de obra imigrante e a Lei das Terras que
normatizava a aquisição de terras públicas.
Observa-se que este período o comerciante estava voltado para a produção agrária, que
era base de nossa economia e a possibilidade de industrialização exigiria um esforço político
econômico no sentido de mudança do que já estava posto. Não seria fácil para o comerciante
que estava estruturado no trabalho da terra mudar sua condição de uma hora para outra.
Ressalta-se ainda que:
[...] a economia brasileira no século XIX, alicerçada pela mão de
obra escrava e pela atividade de agroexportação, criou bases para que
dinamizassem, em seu interior, as condições as condições de fortalecimento
do mercado interno possibilitando uma visão das peculiaridades regionais
(CROCE, 2013)
32
.
34
CAPÍTULO -3
O COMERCIANTE E O RESULTADO DO EMPREENDIMENTO
Diante do conceito do Instituto Ethos, fica claro qual seja a função social da empresa.
Percebe-se que, de acordo com o entendimento de sua função social, a empresa age em
conformidade com seus interesses, adequando-os às expectativas e aos desejos dos
stakeholders, ou seja, das partes interessadas. Ainda nesta perspectiva, a empresa age de
acordo com a lei, adequando seus interesses à legislação vigente no que diz respeito, por
exemplo, ao meio ambiente ou mesmo a incentivar preservação da saúde de seus
trabalhadores para adoecerem menos.
Reconhecendo este viés instrumental da responsabilidade social da empresa,
Shimamura e Cenci, (2010, p.67)afirmam que a ética na empresa pode ser utilizada
instrumentalmente, como estratégia de negócio lucrativa, uma vez que pode orientar seus
investidores a acreditarem na ação “politicamente” correta, durante a promoção, por exemplo,
da sustentabilidade dos produtos produzidos, com a preocupação da empresa em preservar o
meio ambiente. Assim, o mercado vai considerar os investidores como se desenvolvessem
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valores sociais que acreditam serem corretos. Todavia, esta é uma ação exclusivamente
voltada para o cumprimento da lei, não na construção de um mundo melhor. Ressalte-se que
ambos acreditam na possibilidade da ação comunicativa habermasiana na aplicação das
relações empresariais.
Com base nesta argumentação, não há como entender a moral fundamentada na ética
discursiva de Habermas (2001, p.98), já que ele a entende como uma construção dialógica na
qual os envolvidos constroem, a partir diálogo, consensos e nesta perspectiva não cabem a
ausência da argumentação e a imposição do poder ou do dinheiro.
Até aqui, buscou-se posicionar a empresa e sua ideia de êxito e lucro na perspectiva
habermasiana, com o intuito de mais adiante discutir a possibilidade de uma leitura sobre a
construção do plano de recuperação empresarial, a partir do conceito de discurso de
Habermas, bem como a possibilidade de democratização destas relações. Para tanto, temos
que objetivamente falar sobre o insucesso da empresa no que diz respeito à falência e à
possibilidade de sua recuperação. Assim nos próximos tópicos trataremos do insucesso e suas
causas endógenas e exógenas, bem como a legislação pretérita e atual que trata do assunto.
Neste passo, é bom esclarecer, ou melhor, apontar outras diferenças entre o instituto
da concordata e o da recuperação. A concordata, como já dito era um favor legal concedido
pelo juiz, já na recuperação os credores não estavam restritos a concordar ou não com o
pedido; cabia analisar, discutir a proposta do devedor. E assim, ao discutirem a proposta de
recuperação feita pelo devedor vão refletir sobre a sua viabilidade, as condições em que se
encontra a empresa, a sua verdadeira situação econômica. “Podem verificar se a insolvência
jurídica é só uma presunção ou traduz a insolvência econômica. Podem conceder a
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oportunidade, porque participarão dela. Não são conformados destinatários de um favor legal,
mas sujeitos ativos da recuperação” (FAZZIO JUNIOR, 2015. p. 93).
Fazio Junior (2015, p.99) ainda comenta que a “concordata era vista como imposição
baseada no cumprimento dos requisitos legais aos credores e não resolvia a conjuntura da
empresa” “traduzindo-se em mera procrastinação da morte empresarial”. (Inversamente, a
recuperação é um instituto que analisa a viabilidade de restauração da empresa em dificuldade
econômica e financeira).
Diante do novo contexto legal, Lei n.º 11.101/2005, a falência perde sua
característica coercitiva de cobrança de dívida, uma vez que prevê o mínimo de 40salários
mínimos de dívidas (artigo 94) para seu pedido, bem como a apresentação do plano de
recuperação no prazo de contestação impede a decretação de falência (artigo 95),e ainda há
possibilidade de realização do depósito elisivo em 10 dias (artigo 98).
Assim, há o impedimento da prática de pedir falência, como ocorria, por valores
mínimos, causando o abarrotamento do Judiciário. Observa-se que o legislador preocupou-se
em utilizar os princípios norteadores da atividade empresarial como: preservação da empresa,
função social e a razoabilidade. Nesta perspectiva afasta a intenção do credor de utilizar a
falência como meio de recebimento do devido.
Cabe chamar atenção para a possibilidade oferecida pela Lei n.º 11.101/2005 na
venda antecipada dos bens do falido (artigo 111), garantindo seu valor ou mesmo a sua perda
de valor pela deterioração, sem a necessidade de esperar a fase instrutória do processo,
contrariamente ao que previa o Decreto-Lei n° 7.661/1945.
Vale ainda observar que a LREF enumera as possibilidades de realização do ativo na
seguinte ordem de preferência (artigo 140): alienação da empresa, com a venda de seus
estabelecimentos em bloco; alienação da empresa, com a venda de suas filiais ou unidades
produtivas isoladamente; alienação em bloco dos bens que integram cada um dos
estabelecimentos do devedor; alienação dos bens individualmente considerados. Ainda, no
que diz respeito à alienação dos bens, prevê que o juiz, ouvido o administrador judicial e
atendendo a orientação do Comitê, poderá utilizar as modalidades de leilões, propostas
fechadas e a novidade – o pregão.
Atenta-se para a previsão do artigo 141 da LREF, estabelecendo que o adquirente do
ativo da empresa, ou aquele que requereu a recuperação e teve seu plano aprovado em juízo,
não sucede nas obrigações tributárias e nas trabalhistas.
Outra mudança trazida pela LREF foi à redução da participação do Ministério
Público no processo de falência, contrária ao que acontecia no Decreto Lei n° 7.661/1945.
44
Assim, agirá o Ministério Público quando houver indícios de crimes falimentares, na forma
do artigo 187 da referida Lei. Também nas alienações dos bens da massa falida (artigo 142 da
LREF), nas impugnações (artigo 143 da LREF), na substituição de administradores judiciais
ou dos membros do Comitê nomeados em desobediência a lei (artigo 30, paragrafo 2º da
LREF) entre outras atribuições.
Cabe ainda ser ressaltado que não mais existe a figura do síndico, hoje existe o
administrador judicial que, sob a observância do comitê de credores e da assembleia de
credores, exerce a sua função de administração. O administrador, opostamente ao Decreto-
Lei nº7.661/1945, tem suas funções e é um profissional de confiança do juiz devendo ter
formação específica como nos demonstra Negrão (2015. p.110-111):
reclamações dos interessados; emitir parecer sobre alienação ou oneração de bens e direitos;
representar ao juiz em caso de violação dos direitos dos credores; requerer ao juiz a
convocação de assembleia geral.
Mais uma diferença entre as legislações ora estudadas são relativas à assembleia
geral de credores. Segundo Negrão (2015, p.110-111), no Decreto Lei nº 7.665/1945, suas
atribuições foram reduzidas a duas hipóteses legais que tiveram, ao longo dos 60 anos de
vigência, quase nenhum uso, descrevendo-as da seguinte maneira:
por outros países, a fim de considerar o grau de praticidade que representa para a resolução
das questões de insolvência empresarial dentro do ordenamento pátrio.
47
CAPÍTULO - 4
A TRANSFORMAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO DO INSUCESSO EMPRESARIAL
TRAZIDA PELA LEI N° 11.101/2005
Bulgarelli (1991) percebe e concorda com Ascarelli (1947) quando este observa que
a problemática do Direito Empresarial se dá pela rápida mudança do fenômeno econômico da
empresa que rompe com tradicionais categorias jurídicas de longa tradição, concebidas em
diferente contexto do atual, que vão repercutir de forma profunda na economia, na sociedade
e consequentemente no direito. Entretanto, alerta que o direito vai elaborando,
complementando e revisando os códigos e oferecendo visões interpretativas aos casos
concretos apresentados ao Judiciário, à medida que procura adequar o direito à realidade
negocial em contínua renovação.
Portanto, deve ser observada e levada em consideração a importância dos conflitos
jurídicos envolvendo a empresa e os direitos a ela relacionados, sendo necessário examinar as
condutas e os interesses envolvidos, dignos de tutela com intuito de viabilizar a melhor forma
possível a convivência entre empresa e sociedade. Nesta esteira, ao conceituar empresa deve-
se ter um olhar apurado para o desenvolvimento de suas funções e de sua dinâmica social,
bem como pela complexidade das relações envolvidas, buscando não petrificar olhares e
conceitos para problemas específicos advindos das relações econômicas, pois, conforme
vimos constatando, essas relações são múltiplas.
Sob esse ponto de vista, vale trazer a Teoria dos Perfis da Empresa ou a Teoria do
Fenômeno Poliédrico da Empresa de Asquini, que foi publicada em 1943 na revista italiana
em artigo intitulado Profili dell’impresa. O autor inicia seu artigo, com base no Código Civil
italiano de 1942, legislação esta que influenciou nosso Código Civil no que diz respeito à
empresa, afirma o seguinte:
O conceito de empresa é um fenômeno poliédrico, o qual tem, sob aspecto
jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que
o integram. As definições jurídicas podem, portanto, ser diversas, segundo o
diferente perfil, pelo qual o fenômeno econômico é encarado. Esta é a razão
da falta da legislativa, é esta, ao menos em parte, a razão da falta de encontro
das diversas opiniões até agora manifestadas na doutrina. Um é o conceito de
empresa, como fenômeno econômico, diversas as noções jurídicas relativas
aos diversos aspectos do fenômeno econômico. [....] Quando se fala
genericamente de direito da empresa, de direito da empresa comercial
(direito comercial), de direito agrícola (direito agrário) se considera a
empresa na sua realidade econômica unitária (matéria de direito). Mas
51
empregados (salário), indo além do aspecto contratual e patrimonial, sendo este um particular
aspecto institucional (ASQUINI, 1996.p.124).
No final, Asquini (1996, p.124-125). reconhece a unidade do conceito de empresa
como fenômeno econômico e, portanto, como matéria de direito. A empresa existe e vive
como fenômeno econômico, sem rupturas, e neste sentido a teoria jurídica da empresa se
deveria compor pelas seguintes partes: a) o estatuto profissional do empresário; b) o
ordenamento institucional da empresa (disciplina do trabalho na empresa); c) disciplina do
patrimônio aziendal e do estabelecimento; d) disciplina da atividade empresarial nas relações
externas (relações de empresa) Afirma, ainda, que esta é a matéria mais viva e mais rica de
conteúdo na teoria da empresa.
Com a vigência do Código Civil brasileiro de 2002, quando revogou o Código
Comercial de 1850, que trazia a teoria francesa dos atos de comércio enumerados no
Regulamento n°737/1850, passa a vigorar com a similitude trazida pela teoria da empresa
defendida por Asquini. Por que falamos em similitude e não como a original teoria da
empresa?
Primeiro, porque apesar de termos artigos idênticos aos da legislação italiana, a
situação política, social e econômica vigente à época era completamente diferente. A teoria da
empresa nasce na Itália sob o regime fascista, enquanto no Brasil a expectativa politica e
social era outra. Segundo, a legislação italiana insere a empresa no contexto do Direito do
Trabalho, Carta de Lavoro, livro V. Nossa legislação tem espaço próprio no Código Civil, no
qual pode ser observada a inserção dos direitos e deveres, em face do seu relevante papel
social para a sociedade como produtora de bens e geradora de emprego e riquezas, motivo
pelo qual hoje se tem o princípio mínimo que é o da sua preservação.
A ideia de preservação da empresa demonstra uma mudança de valores no que diz
respeito ao seu papel social e à sustentabilidade do ambiente empresarial. Isto pode ser
observado na mudança da legislação, quando se refere às possibilidades trazidas pela Lei n°
11.10/2005, que normatiza a falência, a recuperação judicial e extrajudicial, viabilizando,
dentro do atual contexto socioeconômico, o princípio da continuidade da empresa,
reconhecendo o interesse público de sua conservação.
Neste sentido, percebemos que está em jogo não somente a realização do crédito,
mas também algumas garantias sociais como a manutenção de empregos; a produção e a
circulação de mercadorias, bens e serviços; a geração de tributos; a distribuição de riquezas; a
livre-concorrência; a redução de preços; o abastecimento contínuo; todos esses haveres
embasados no princípio da preservação da empresa.
Diante das possibilidades oferecidas, o sujeito que promove a recuperação pode ser o
empresário devedor, na espécie de recuperação judicial, ou o credor, na espécie extrajudicial,
pois a Lei não veda a oportunidade de composição entre os interessados. E qual a leitura a se
fazer desse agir? Antes de ser presumida a condição de insolvente ao devedor/empresário,
uma vez que se observa o descumprimento das obrigações de pagar, a Lei oferece
oportunidade de composição e saída da situação da crise econômico-financeira em que se
encontra o devedor/empresário e, diante do oferecimento do plano, recuperar a condição de
pagar.
59
p.93).: “Essa é a grande diferença da LREF em relação ao sistema da LFC. Acabou-se o favor
judicial da concordata. Agora, há um favor creditício que o juiz oficializa. E está certo, porque
quem tem o direito de crédito é quem tem, também, disponibilidade dele”.
Na concordata não eram disponibilizadas aos credores outras possibilidades que não
a aceitação da proposta remissória ou dilatória, pois estava subentendida a impossibilidade do
cumprimento da obrigação. Então, estava posto o impasse: se houvesse impugnação do
pedido de concordata, os devedores não pagariam e faliam, bem como os credores não
receberiam e, diante da falência, a possibilidade era ainda menor.
Inversamente da concordata, a recuperação possibilita aos credores a discussão
conforme já aludido. Eles não vão para a discussão sem saber a verdadeira situação do
devedor/empresário. Ao apresentar o plano de recuperação, o devedor/empresário
disponibiliza sua verdadeira situação, através de argumentos corroborados pelos documentos
exigidos pela Lei. Daí, ao acordarem com a proposta do plano, vai ser iniciado seu
cumprimento. Havendo rejeição ao plano, duas opções poderão ser encaminhadas. A primeira
é que, uma vez rejeitado, poderá ser aberto um período de discussão, quando, diante dos
argumentos apresentados, se as partes chegarem a um acordo ou a um consenso, poderão,
então, elaborar um novo plano de recuperação. Contudo, se diante da recusa do plano for
observada a inviabilidade, será convertido o pedido em falência.
A LREF pode ser vista como transformadora das relações empresariais no que diz
respeito a empresas em situação de crise econômico-financeira. Inicialmente podemos
justificar tal assertiva observando a mudança de tratamento dado ao empresário, pessoa
natural e pessoa jurídica, que se dedica à atividade econômica. Com fundamento na
continuidade da atividade empresarial, a abordagem passa a ser a empresa, não mais o
empresário; assim o interesse volta-se para o coletivo, não mais para o individual. Diante
disso, a figura do empresário/devedor passa a ter um tratamento menos desumano, um novo
olhar e novo contexto são delineados, espancando a ideia do empresário incompetente,
criminoso, fraudador e a mercê dos credores.
Enfatizando outro aspecto da Lei, a causalidade centrada na crise econômico-
financeira, em vez de estar na situação de insolvência, nos remete à possibilidade de
procedimentos mais justos. Na verdade, a realidade é trazida através da análise, ou melhor, do
conceito de viabilidade, momento em que se instala a transparência das relações, a partir da
demonstração da real situação da empresa e de sua possibilidade diante do pedido de
recuperação. Aqui está em jogo o crédito e este tem o sentido de acreditar que o direito de um
futuro recebimento de uma obrigação pode ser cumprido, a partir da proposta oferecida pelo
62
devedor/empresário, cuja intenção é dar continuidade a sua atividade. Sabemos que não está
descartada a possibilidade de procrastinação da falência, porém queremos deixar claro que,
com participação dos credores na observação, fiscalização, análise da confecção e execução
do plano, torna mais difícil essa possibilidade. Da mesma forma, quando a Lei possibilita a
recuperação, judicial ou extrajudicial, opta pelo afastamento da falência e abre caminho para o
que se propõe: a preservação da empresa.
A recuperação enquanto mecanismo de superação da crise econômico-financeira
simplifica alguns procedimentos que comparando com o procedimento da antiga LFC
podemos observar que se dispendia tempo, mas nem sempre o crédito era recebido com
sucesso. Ao flexibilizar os procedimentos preventivos, amplia-se a possibilidade de acordo
entre credores e devedores, mitigando a função jurisdicional. Importa perceber que a
viabilidade da desjudicialização do procedimento a partir da recuperação extrajudicial.
Esse procedimento chama-nos a atenção pela possibilidade de construção de um
acordo fora do Judiciário, completamente alheio à supervisão judicial, mas não sem observar
a Lei. A proposta legal da recuperação extrajudicial demonstra a vontade de o legislador
chancelar um procedimento menos formal entre credores e devedores para chegarem a um
resultado satisfatório para ambos, compondo de forma que vença o melhor argumento,
observadas as possibilidades de continuidade da empresa. Apesar de o procedimento
acontecer fora do Judiciário, a Lei prevê a homologação do acordo.
De acordo com a Lei n° 11.101/2005, o devedor/empresário em crise econômico-
financeira pode negociar diretamente com o credor na construção de um plano de recuperação
extrajudicial. É uma inovação legal a reunião dos interessados para a criação de possibilidades
neste sentido, vencendo o melhor argumento, obtido mediante consenso.
de divisão entre o espaço público e privado. Observa-se que o Estado, a partir deste ponto de
vista, vai garantir direitos fundamentais mínimos, não sendo o único responsável pelo espaço
público. Portanto, a empresa passa a propiciar, ou melhor, passa a ser também responsável
pelo espaço público.
Tal situação pode ser observada a partir da discussão e do reconhecimento da
responsabilidade da empresa na manutenção do meio ambiente saudável para a coletividade
onde esta inserida. Em função disso, podemos afirmar que a empresa também está a serviço
do bem comum, devendo ser reconhecidas sua responsabilidade e suas finalidades sociais.
Sendo assim, constata-se que o Estado atualmente não se encontra sozinho para a
concretização bem-estar social, pois atualmente a empresa também participa da concretização
dos fins sociais. Diante dessa realidade explícita, não se deve reduzir os interesses
empresariais a somente a lucro e à distribuição dos dividendos aos investidores.
Sendo a empresa entendida desta maneira ampla, abre-se a possibilidade da
discussão ética sobre a recuperação empresarial, instituto jurídico cuja base é a negociação
entre credor e devedor, através do diálogo, da análise dos discursos apresentados pelos
interessados para chegar ao consenso, aqui visto como a construção do plano de recuperação
empresarial. Para tanto, dois argumentos fundados na ideia habermasiana da teoria da ação
comunicativa serão utilizados: o agir ético e moral, bem como a agir instrumental.
O ano de 2013 o país foi fortemente agitado por uma série de manifestações
populares, conhecidas como Manifestação dos Vinte Centavos, Manifestações de Junho ou
Jornada de Junho, entre outras, que demonstravam cabalmente a insatisfação da população
brasileira com a implantação político-econômica e social, e a necessidade de se abrir
discussão sobre os destinos da gestão governamental. Em resposta aos protestos, o governo
brasileiro anunciou várias medidas para atender parte das reivindicações dos manifestantes e o
Congresso Nacional votou uma série de concessões (a chamada agenda positiva), tornando a
corrupção crime hediondo e arquivando a PEC n° 37, que propunha a proibição de sua
investigação pelo Ministério Público, além de proibir o voto secreto em votações para cassar o
mandato de legisladores acusados de irregularidades. (WARREN. 2014, p.418)
Apesar de sancionada a Lei n° 12.846, em 1º de agosto de 2013, sua ocorrência à
época das manifestações não se deu pela motivação acima mencionada, mas sim pelo
cumprimento por parte do Brasil de compromissos assumidos, em âmbito internacional, com
a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no combate à
corrupção. A OCDE é uma organização pública internacional, formada pela associação de
países membros, cuja missão é a promoção de políticas que proporcionem a melhoria das
66
condições econômicas das nações e o bem-estar econômico e social das pessoas. Foi o fórum
escolhido pelos Estados Unidos da América do Norte para convencer a comunidade
internacional a adotar a responsabilização de seus nacionais em razão de práticas corruptas
praticadas no exterior (PETRELUZZI e RIZEK.2014.p.24).
No ano de 1997, após diversas discussões na OCDE, os Estados Unidos
convenceram a comunidade internacional a adotar a mencionada prática. Em 30 de novembro
de 2000, a República Federativa do Brasil ratificou e promulgou a Convenção sobre Combate
à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais
da OCDE (MARINELLA, 2015.p.17-18), através do Decreto-Lei n° 3.682.
Vale relatar alguns fatos internacionais que motivaram a discussão sobre a corrupção
e seu combate através de leis, convenções e acordos. Em 1997, o Legislativo norte-americano
edita o Foreign Corrupt Pratice Act(FCPA) que impunha às pessoas físicas e jurídicas
atingidas por ele a proibição da prática de atos de corrupção ou pagamento de propinas que
atingiam ou beneficiavam membros da administração pública de outros países. Segundo
Petrelluzzi e Rizek (2014, 12) s em razão de práticas corruptas praticadas no exterior o FCPA
foi o primeiro estatuto legal a criminalizar (civil, administrativamente e penalmente) conduta
de subornar ou corromper agentes públicos estrangeiro, impondo sanções monetárias de
elevados valores às pessoas jurídicas, conforme esclarece adiante:
Todavia, ele afirma que a edição dessa legislação decorreu do entendimento norte-
americano no sentido de o pagamento de propinas a agente público ser algo que desvirtua a
concorrência e viola as leis de mercado, atingindo os fundamentos do regime capitalista, não
se tratando apenas de questão ética ou postura moral, mas, sobretudo, de manter o sistema
saudável e impedir práticas que turbam o mercado (PETRELLUZZI E RIZEK, 2014, p.24).
Com a adoção desta normatização, a situação das empresas americanas passou por
problemas de competitividade em relação a outros países. Tal situação levou os Estados
67
Como assevera Marinella (2016.p.33), existem dois outros marcos legais no combate
à corrupção. A primeira a tratar do tema sob ótica internacional foi a Convenção
Interamericana contra Corrupção, com a assinatura realizada na cidade de Caracas, em1996,
quando 23 países ratificaram a Convenção, entre eles o Brasil. Esta Convenção tem o mesmo
escopo da Convenção da OCDE, elencando princípios e prevendo a implementação de
mecanismos contra as práticas corruptas, a criação de sistemas de compras governamentais
comprometidos com a publicidade, equidade e eficiência, incluindo ainda procedimentos de
cooperação e sequestro de bens e outros. Conforme afirma Petrelluzzi (2014.p.28), esta
Convenção tem maior alcance que a Convenção da OCDE, sendo o mais importante marco
regional na luta contra corrupção.
Outro instrumento também de suma importância dentro da perspectiva do combate à
corrupção também ratificada pelo Brasil é a Convenção das Nações Unidas contra Corrupção.
Este texto, como afirma Petrelluzzi, além de sua importância, teve por base a Resolução n°
55/25 da Assembleia Geral das Nações Unidas, resultante da Convenção de Palermo contra a
Delinquência Organizada Transnacional. Entre as propostas e definições trazidas por esta
Convenção, que combate de forma incisiva a corrupção, apresentou mecanismos que
possibilitam a repatriação de recursos provenientes de atos de corrupção. A preocupação em
combater a corrupção fica clara, ao demonstrar o empenho em debelar crimes de lavagem de
dinheiro, utilizando como instrumento determinante para sua caracterização o sigilo bancário.
69
1.079/1950, também vigente até os dias de hoje, com capítulo específico para definir crimes
de responsabilidade contra probidade administrativa (PETRELLUZZI, 2014, p. 30)
No âmbito de responsabilidade civil, a Lei Pitombo-Godoi Ilha (Lei n° 3.164/1957) e
a Lei Bilac Pinto (Lei n° 3.502/1958) foram avanços conceituais, mas que, na prática,
significavam pouco na busca de ressarcimento ao Erário por condutas desviadas de agentes.
Estas leis estabeleceram regras para o sequestro de bens por tráfico de influência, por abuso
no desempenho de cargo público, bem como por enriquecimento ilícito (PETRELLUZZI,
2014, p.30).
Os dispositivos anteriores que vigiam para, de forma diferenciada, combaterem a
corrupção, segundo Petrelluzzi (2014, p. 31), “tiveram pouquíssima efetividade”. Porém a Lei
da Ação Popular (Lei 4.717/1965) foi um marco legal histórico ao possibilitara propositura de
ação civil por:
Art.1º Qualquer cidadão (grifo nosso), para a anulação ou declaração de
nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos
Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedade de
economia mista, de sociedades mútuas de seguro nas quais a União
represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais
autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o
tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta do
patrimônio ou receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da
União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer
pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.
Apesar de este diploma legal não estabelecer sanções diretas aos agentes públicos
responsáveis pelos atos lesivos ao Erário, a inovação trazida pela referida Lei é a
instrumentalização mediante a qual qualquer cidadão pode controlar os atos administrativos
por intermédio do Judiciário.
Salienta-se que, com a vigência da Constituição Federal de 1988, a Ação Popular
teve ampliada sua área de atuação, possibilitando a anulação de atos lesivos “à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.” Chama a atenção o
conceito de moralidade administrativa trazido por Petrelluzzi (2014.p.32), embasado na teoria
pioneira de Maurice Hauriou, comenta que a moralidade administrativa é o “conjunto de
regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração; [...] há moral administrativa
que é imposta de dentro e que vigora no próprio ambiente institucional e condiciona a
utilização de qualquer poder jurídico”. As questões sobre moralidade e eticidade serão
discutidas adiante, com mais detalhamento.
A Lei da Ação Civil Pública(Lei n. 7.347/1985) disciplina a propositura de ações
para a defesa de interesses transindividuais (proteção a bens de natureza coletiva). Trata-se de
71
Observa-se num primeiro plano que o bem tutelado pela Lei Anticorrupção é o
patrimônio público nacional ou estrangeiro, buscando, em função dos princípios da
Administração Pública, a moralidade administrativa. Neste contexto, o caput dispõe o
seguinte sobre a responsabilidade: é administrativa e civil de pessoas nacionais e estrangeiras.
A responsabilização não mais se impõe subjetivamente, a Lei disciplina a responsabilidade
objetiva e alcança a pessoa jurídica e suas relações jurídicas. Nesta ótica “não mais será
possível, para o sancionamento de pessoa jurídica, que se exija vínculo de ordem subjetiva
74
com a pessoa natural que tenha praticado o ato ilícito favorecendo os interesses de pessoa
jurídica” (PETRELLUZZI, 2014, p 53).
Como acima exposto, já existem leis que sancionam subjetivamente, por isso, neste
panorama, as pessoas jurídicas de direito público são protegidas pela Lei e somente em
situações específicas se colocam no polo passivo da relação, ou seja, quando infringem o
artigo 5º e incisos da Lei n° 12.846/2013. Neste contexto, as sociedades empresárias são o
ponto de convergência legal à sujeição da norma, sendo estatal ou não causando prejuízo, ou
melhor, lesão ao Erário, será sancionada objetivamente. Tal condição não significa a exclusão
de culpabilidade e imposição de sanção das pessoas naturais, que responderão, dependendo da
infração, se penal, civil e administrativamente.
Seguindo este eixo de pensamento, a ocorrência da lesão à Administração Pública
está prevista no artigo 5º da Lei n° 12.846/2013, ato este já reprovado em outras leis. A
semelhança com a Lei de Improbidade é tal, que autores como Marinella e também Santin
denominam-na Lei de Improbidade Empresarial, a saber:
Vale ainda trazer, como fez Marinella (2015) em sua obra, o pensamento de Santin
(2014)
pessoa jurídica quando existe um programa de compliance implantado e efetivo, o que não
ocorre no Brasil.
Percebe-se que a Lei Anticorrupção brasileira apresenta caráter preventivo, com o
escopo de diminuir a possibilidade de ilícitos nas relações empresariais. Todavia, a referida
previsão legal não expressa as diretrizes a serem seguidas quanto à implantação dos
elementos mínimos do programa de compliance, bem como os benefícios trazidos com a
implementação efetiva do programa.
Antes da edição do Decreto n° 8.420/2015, Petrelluzzi afirma que os programas de
compliance já tinham como base o Anti-Corruption Ethics and Compliance Handbook for
Business da OCDE, documento este que estabelece parâmetros de boas práticas em controle
interno, ética e compliance. Assevera o referido autor que este Manual teve uma nova edição
em novembro de 2013. Com base nas recomendações nele contidas, Petrelluzzi (2014, p.77)
afirma que:
Um programa de compliance deve contemplar o comprometimento da alta
direção da empresa com uma clara e transparente política anticorrupção,
além de assegurar, entre os diversos níveis de empresa, autoridade e
independência para monitoramento do programa. Além disso, a empresa
deve ter uma política clara sobre brindes, presentes, viagens, entretenimento,
despesas, contribuições políticas, doações, patrocínio e também sobre
pagamentos de facilitação.
A palavra leniência deriva do latim lenitate, que tem como significado mansidão ou
brandura. Tanto na esfera penal, com o instituto da delação premiada prevista na Lei de
Organização Criminosa, na Lei de Drogas e na Lei de Lavagem de Dinheiro, quanto na
administrativa, a Lei Antitruste, o escopo do acordo de leniência não é outro senão garantir a
efetividade das investigações. Motivo pelo qual o referido acordo, quando passou a ser
utilizado em casos recentes, não foi visto como novidade pelos juristas. Entende Marinella
que ele é um ajuste que permite ao infrator participar da investigação, com o fim de prevenir
ou reparar dano de interesse coletivo (MARINELA, 2013.p.189). Na mesma linha de
entendimento Petrelluzzi e Rizekassim (2014.p.91) explicam os acordos deleniência: “Em
verdade, os acordos de leniência são espécies de delação premiada, hipótese em que oferece a
leniência, ante a colaboração de um infrator, para a apuração dessa infração, sobretudo em
relação a seus autores e partícipes”
Importa salientar que a esta ideia não tem origem no Brasil, mas sim foi uma
experiência norte-americana, que ao longo do tempo alcançou dimensão internacional e
também sofreu vários ajustes. No Brasil o Programa de Leniência foi introduzido como uma
das ações da então Secretaria do Desenvolvimento Econômico na área do direito da livre
concorrência, previsto inicialmente na Lei nº 8.884/1994, acrescentado pela Lei nº
10.149/2000. Com a nova Lei Antitruste (Lei n° 12.529/2011), se estabelece o Programa de
Leniência, autorizando o CADE, por meio da Superintendência-Geral, celebrar acordo de
leniência (MARINELLA, 2013. p. 189). Cabe aqui ressaltar que os requisitos previstos na
referida Lei para o cumprimento do acordo encontram-se no artigo 86, o qual prevê a
participação de pessoas físicas e pessoas jurídicas.
Na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), o acordo de leniência está previsto no
artigo 16, que atribui à autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública a competência
para a celebração do acordo, todavia reservou para Controladoria Geral da União, no
parágrafo 10, a competência para a celebração de acordo de leniência para atos da
Administração Pública federal ou estrangeira. Importante destacar que neste mesmo
dispositivo existem outras previsões, como por exemplo: I- a identificação dos demais
envolvidos na infração, e quando couber; II- obtenção de céleres informações e documentos
que comprovem o ilícito sob apuração. Vale trazer a informação apresentada por Petrelluzzi e
Rizek (2014.p.91) em sua obra que, por razões culturais e em razão da tradição jurídica
brasileira, houve uma resistência ao instituto.
Ainda neste dispositivo legal, artigo 16, parágrafo 1º, são estabelecidos requisitos
necessários e cumulativos para a realização do acordo de leniência, assim descritos: a pessoa
80
jurídica deverá ser a primeira dentre as infratoras a manifestar seu interesse em colaborar para
a apuração do ilícito; deve se comprometer em cessar a prática de atos lesivos à
Administração Pública; por fim, deverá admitir a participação no ilícito e cooperar plena e
permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo sob suas
expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento. Aqui cabe
observar que a questão ética é trazida para as relações empresariais, no intuito de reestruturar
as relações, bem como a confiabilidade delas.
No parágrafo 2º da Lei Anticorrupção, está previsto que a celebração do acordo de
leniência isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do artigo 6º - publicação
extraordinária da decisão condenatória, e no inciso IV do artigo 19 - proibição de receber
incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e
de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de
um ano e no máximo de cinco anos, além da possibilidade de reduzir o valor da multa
aplicável em até dois terços (MARINELA. 2013.p.189).
Conforme pode ser observado, a Lei é clara no que se refere às sanções
administrativas previstas, pois, apesar de o acordo ser realizado, serão imputadas as demais
sanções previstas, como perdimento de bens, suspensão ou interdição de atividades, bem
como a possibilidade da dissolução compulsória da pessoa jurídica. Deve-se atentar para o
fato de que a pessoa jurídica também está obrigada, por óbvio, a reparar o dano causado, não
sendo objeto do acordo de leniência, como previsto no artigo 16, parágrafo 3º. Ainda no
mesmo dispositivo, no parágrafo 6º, o acordo de leniência deve ser mantido em sigilo até sua
efetivação, exceto na hipótese das investigações e do processo administrativo. Ressalte-se
que, se houver frustação do acordo entre a pessoa jurídica e a Administração Pública, o
parágrafo 7º aduz que não será reconhecida a prática do ilícito, garantindo à pessoa jurídica
que nenhum prejuízo será provocado.
Cabe uma última observação sobre o parágrafo 5º, que prevê a extensão do acordo de
leniência para o grupo econômico, levando em conta que este é um conjunto ou coletivo de
empresas que, ligadas por vínculos de coordenação e subordinação, atuam em sincronia para
lograr maior eficiência em sua atividade (PETRELUZZI e RIZEK. 2014.p.91). Demonstra o
legislador a razoabilidade, em virtude de haver o reconhecimento da interdependência das
empresas do grupo econômico.
A Lei Anticorrupção pode ser vista como possibilidade ética das relações entre a
pessoa jurídica e a Administração Pública, uma ética discursiva fundamentada na razão
comunicativa, como nos ensina Habermas. A ética discursiva é uma teoria moral que
81
pressupõe a linguagem (FREITAG, 1992, p.238). Desse modo, a ética discursiva vai ter como
instrumento a linguagem que não será suficientemente capaz de manter as relações sociais
complexas sem o risco de ameaçá-las. Nesta perspectiva, o direito se coloca como um médium
linguístico e institucional, realizando interações sociais, políticas e econômicas na busca da
legitimidade de suas ações.
No próximo capítulo, vamos abordar como os princípios da ética discursiva, tal como
concebida por Habermas, pode contribuir para uma interpretação ainda mais humanista dos
princípios da Lei n° 11.101/2005, especialmente no que tange à recuperação extrajudicial.
82
CAPÍTULO 5
RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL À LUZ DA ÉTICA DISCURSIVA
A ética discursiva proposta por Habermas tem como pressuposto a linguagem. Para o
referido filósofo, a linguagem é um medium que não pode ser suplantado, quando se busca
entender ou validar algo no mundo. Diante disso, entende que a linguagem é um meio de
interações entre sujeitos e que todo agir, quando racional, precisa ser fundamentado,
justificando sua ação na busca de pretensão de validade. Neste sentido, corrobora-se o
seguinte pensamento:
Deve ser ressaltado que esta mediação realizada através da linguagem ocorre dentro
de um contexto que Habermas chamou de mundo vivido (Lebenswelt). Este mundo, no qual a
linguagem se insere, é formado por sistemas onde os sujeitos agem como atores,
pressupondo-os capazes de linguagem e de ação. De acordo com Habermas, este mundo
interage com outros três mundos, que é dividido em três outros mundos, e assim:
Quando o falante diz algo dentro de um contexto cotidiano, ele se refere não
somente a algo no mundo objetivo (como a totalidade daquilo que é ou
poderia ser o caso), mas ao mesmo tempo a algo no mundo social (como a
totalidade de relações interpessoais reguladas de um modo legítimo) e a algo
84
Para Habermas (2012a), o ato de fala deve ser claro de maneira que haja interação
entre os concernidos. Ao expor os três mundos, ele se remete em conexão entre o falante, o
ouvinte e o mundo onde estão inseridos. Afirma que dizer algo a alguém e compreender o que
é dito não é algo simples, por isso fala em conexão. Estar num ambiente discursivo exige
participação, devendo ser assumida uma atitude performativa em face de algo no mundo.
O autor reitera que a atitude performativa permite uma orientação mútua por
pretensões de validade (verdade, correção normativa, sinceridade) que o falante desenvolve,
na expectativa de uma tomada de posição por sim/não da parte do ouvinte. Traduz a busca do
entendimento, através da avaliação crítica pelo reconhecimento intersubjetivo e sustenta que o
reconhecimento intersubjetivo de cada pretensão particular pode servir de fundamento a um
consenso racionalmente motivado (HABERMAS, 2012a).
Entende-se o porquê do referido filósofo afirmar que compreender o que é dito exige
participação e não a mera observação (grifos nossos).(HABERMAS, 2012a). Se os
concernidos investem na compreensão de uma ação de fala e entendem o que é dito, tornando-
o aceitável, sinaliza que as razões apresentadas validaram a ação, ou seja, se no ato de fala
apresenta argumento e esse é aceito como o melhor argumento apresentado, fica demonstrado
87
que houve reconhecimento intersubjetivo pelas partes que participaram da ação, validando
desta forma os argumentos postos.
Assim sendo, toda vez que um falante problematiza um tema e apresenta argumentos
em busca de reconhecimento intersubjetivo, ou seja, levanta pretensões de validade sobre o
ato de fala, expondo-o a críticas e consequentemente podendo ser aceito ou rejeitado, age
comunicativamente. A pretensão é tornar uma ideia, um pensamento, um sentimento, um
acordo ou mesmo um contrato com validade universal. Essa ideia de universalidade será vista
mais adiante.
Quando Habermas (2003) fala em ação comunicativa, se refere ao ato performativo,
o ato de fazer coisas, ou seja, falar e agir. Vale ressaltar que, quando se refere a ato ou atitude
performativa, se remete à teoria do ato de fala de Austin com a classificação de locucionário,
ilocucionário e perlocucionário.
Para maior entendimento do aqui exposto, busca-se em Austin (1990) a explicação
de cada ato acima classificado:
a) No ato locucionário pode ser percebido que, o concernido está dizendo algo,
proferindo uma sentença com sentido, a ideia habermasiana é trazer no cotidiano
a expressão do sujeito de um pensamento, um sentimento, um fato qualquer etc.
b) No ato ilocucionário o concernido fala e age, existe uma interação entre o falante
e o ouvinte, o que se pressupõe simetria, onde ambos estejam interagindo, um
fala e o outro está disponível para escutar, não há imposição, não há
empoderamento de uma das partes ou coação. A avaliação deste ato está na
conexão existente entre os concernidos ou nos possíveis concernidos. Eles devem
estar conectados numa proposta, numa ação.
c) No perlocucionário, ao se expressar o concernido causa um efeito, traz
consequências ao ouvinte, é o ato com objetivo de persuasão para o
convencimento. Esses atos se remetem ao mundo subjetivo (AUSTIN, 1990).
utilizar tais vocábulos com certo sentido e referência mais ou menos definidos (AUSTIN
(1990, p. 85-86)
Habermas fundamenta a teoria do agir comunicativo com base nos atos de fala
classificados por Austin, supracitados. Entretanto, seu foco são os atos ilocucionários.
Justifica-se esta assertiva, pois esses atos necessitam de uma interação entre os concernidos
que, ao se comunicarem num ambiente discursivo, estabelecem uma relação intersubjetiva
onde o que vale é o melhor argumento. Assim sendo, pressupõe-se que os argumentos
apresentados sejam claros, inteligíveis, sem coação e que os concernidos estejam em simetria.
De acordo com o afirmado, Habermas (2013, p.79 ) define o que é o agir comunicativo como:
Tanto no agir comunicativo quanto no agir estratégico são usados os atos de fala
ilocucionários. Esses atos de fala apresentam determinada força, expectativas de resultados e
demandam respostas, todavia os resultados dos agires serão diferentes. No agir estratégico, os
sujeitos envolvidos estarão inevitavelmente em situação assimétrica, tendo em vista que um
deles buscará a qualquer custo impor uma situação. Contrariamente, no agir comunicativo os
concernidos estarão na situação que Habermas denomina de discurso, tipo especial de ação
89
É importante antes de iniciar a leitura da LREF com base nos atos de fala, referir-se
sinteticamente sobre o poder comunicativo e a formação legítima do direito. Para Habermas, o
direito não regula contextos interacionais em geral, como é o caso da moral, mas serve como
um medium para o auto-organização de comunidades jurídicas que se afirmam, num ambiente
social, sobre determinadas condições históricas (HABERMAS, 2012a, p.191).
O autor alega que para a realização do direito, necessita de formação pública de
opinião e de vontade, onde o principio do discurso vai ser o caminho democrático para
legitimar o direito, visto que está voltado para casos concretos, situações dadas e fins
pragmaticamente escolhidos.
De acordo com esse pensamento habermasiano, a moral é uma construção
intersubjetiva, de interesses simétricos dos concernidos e expressa vontade geral, e é
racionalmente aceito. O direito enquanto medium deve atender as expectativas morais, pois
também expressa uma forma de vida compartilhada intersubjetivamente, de interesses
estabelecidos e fins objetivamente escolhidos.
O Direito enquanto médium vai regulamentar as relações empresariais relativas à
recuperação extrajudicial, na busca de atender as expectativas coletivas, bem como as
expectativas intersubjetivas daqueles que, inseridos num contexto empresarial, não querem
estar em situação de falência.
No que se refere ao atendimento das expectativas, pode-se arriscar em afirmar que,
na busca pelo afastamento da falência e na obtenção da recuperação, seja judicial ou
extrajudicial, a empresa, inicialmente, atende o princípio legal da manutenção da fonte
92
produtora, a preservação da empresa e sua função social, e nessa direção, procura atender as
expectativas compartilhadas intersubjetivamente.
Neste sentido, podemos afirmar que o pedido de recuperação atenderá aos anseios da
sociedade, do mercado, e de outros envolvidos como trabalhadores e consumidores. Os
primeiros não amargarem o desemprego, e os segundos não se privarem pela ausência do
produto e o não atendimento às suas necessidades.
Acerca da expectativa do devedor e do credor pode-se afirmar que ao negociarem a
negociação da recuperação da empresa discutem a viabilidade do soerguimento espancado a
antiga visão de lesão a terceiros. Neste ato os devedores buscam convencer os credores
envolvidos com bons argumentos, discussões pautadas na veracidade e transparência nas
relações, boa fé e confiança.
O devedor recorre ao diálogo enquanto possibilidade de construção do consenso para
a confecção do plano de recuperação de sua empresa. Neste momento, a negociação
apresentar condições práticas de entendimento entre os falantes.
Quando se dispõe ao diálogo como forma de reconstrução das relações em crise,
persegue-se um procedimento onde as argumentações serão apresentadas num processo de
entendimento mútuo, de maneira que tanto o proponente (devedor) quanto o oponente
(credor) possam, mediante a atitude discursiva, aprofundar, indagar, verificar as pretensões de
validez sem pressão ou coação das partes. Essa assertiva pode, num mundo virtual, hipotético,
ser facilmente entendida, mas num meio empresarial pode ser contestada, pois os interesses
econômicos e políticos estão em jogo.
Pode-se atentar que o pensamento habermasiano, quando prevê o agir estratégico, ao
afirmar que as relações atuais se tornam patológicas porque estão dominadas pelo poder e
pelo dinheiro, encontra espaço, como o existente na Lei n° 11.101/2005, para a recuperação
proporcionada pelo diálogo. Porém, pode acontecer que tal argumento não seja convincente,
tendo em vista a pressão econômica e política, conduzindo a relação empresarial à coação.
Entretanto, já está comprovado que essa situação coercitiva é historicamente falível, por isso
deve-se ter em mente que se não houver simetria na negociação, na construção consensual do
plano, o remédio amargo que restará será a falência, na qual ambas as partes perdem. O
processo dialógico de construção do plano de recuperação extrajudicial é onde ambas as
partes ganham, aliás, toda a sociedade ganha.
A construção do plano além da previsão legal, onde todos os interessados encontram-
se presentes é um procedimento que, fundamentado de acordo com os ideais habermasianos,
93
segue o ponto de vista procedural para a estruturação cooperativa das pretensões de validez e
consequentemente do consenso:
Habermas (2003, p.110) buscou nos pressupostos de seu discípulo Robert Alexy, as
pretensões de validade, que necessariamente se impõe nas situações ideais de fala. Esses
pressupostos são de caráter: (1) lógicos-semânticos procedural: (2)procedurais, (3)
processuais, assim exemplificados :
Considerando a assertiva citada por Austin (1990, p. 27), de que “nossa palavra é
nosso penhor” por meio da qual afirma estar presente a moralidade, associada à
fundamentação ética discursiva habermasiana, que está apoiada na pretensão de validade e
veracidade através da prática dialógica, busca-se fundamentar o contrato realizado de forma
coletiva por empresários – o plano de recuperação empresarial – como uma ação discursiva
com condições inevitáveis de chegada ao consenso.
As relações empresariais têm como pano de fundo o mundo da vida comercial, que,
em princípio, se encontra em equilíbrio. Todavia, quando se instala uma situação de
desequilíbrio econômico-financeiro, pressuposto para o pedido de recuperação empresarial,
essa estabilidade é questionada e pode-se afirmar que o mundo da vida foi afetado, pelo
levantamento de questões, pelo discurso. Frente a essa ocorrência, o uso da linguagem é
utilizado como um instrumento de interações racionais para a reconstrução da harmonia
perdida, segundo o pensamento habermasiano.
Corrobora-se com a ideia de Austin de que dizer algo não é simplesmente falar, vai
além, “dizer algo é fazer algo”, e requer procedimento, feliz ou sem tropeços, de um
proferimento performativo altamente desenvolvido e explícito, o único, aliás, que aqui nos
preocupa (AUSTIN, 1990, p. 30).
Tal como Alexy citado Habermas, quando se refere a condições ideais de
comunicação, Austin também relaciona condições necessárias para a comunicação ocorrer
sem o que ele denomina de infelicidades, assim sem pretensões de reivindicar caráter
definitivo. Neste sentido, Austin (1990, p. 31) relaciona os seguintes procedimentos:
busca de pretensões de validez, verdade, correção e sinceridade terão que ser corroboradas
pela atitude, pela ação dos concernidos para só assim produzir os efeitos do ato. Dentro desta
perspectiva, a força ilocucionária produzirá como efeito o contrato, ou melhor, o plano de
recuperação extrajudicial. Aqui a ideia perlocucionária de produção de efeitos dos atos de fala
adveio de uma convenção.
Observa-se que a construção do plano de recuperação extrajudicial através dos atos
de fala exige o que Habermas denomina de situação ideal de fala, que é a suposição que se faz
quando os que entram em situação de discurso criam condições possíveis ou mesmo
inevitável para a chegada ao consenso. Não basta uma interação linguística, é necessário que
os concernidos numa situação discursiva proporcionem iguais oportunidades para expressar
sentimentos, atitudes, intenções e promessas, comprometendo-se ao cumprimento do referido
plano. Atenta-se que a construção do plano de recuperação deve ser igualmente boa para
todos os envolvidos, pois o plano só terá atingido a pretensão de validade, veracidade,
correção e sinceridade, se o melhor argumento tiver convencido a todos os concernidos.
Diante do exposto, cabe retomar a questão inicial acerca da necessidade de
homologação do Judiciário do acordo realizado extrajudicialmente, uma vez que a previsão
legal possibilita a construção consensual e de forma autônoma do plano de recuperação.
Pode-se arriscar a usar a lente kantiana no que diz respeito a autonomia das relações
quando da tomada das decisões no âmbito da recuperação empresarial, tendo em vista que a
nova legislação oportuniza tomadas de decisão extrajudicialmente. Deve ser ressalto que os
efeitos das decisões podem ter dois desfechos diferentes, quais sejam: caso o resultado seja o
consenso apresenta-se ao judiciário o plano de recuperação da empresa, em caso não ocorra o
consenso é pedido à falência da empresa.
É oportuno atentar que diante do principio da preservação da empresa e da
continuidade da atividade empresarial o que se busca na Lei de Recuperação de Empresa é a
viabilidade de sua conservação.
Arrisca-se afirmar que o Estado, em seu novo papel, transmuda-se numa espécie de
coordenador de um processo social discursivo e não como dono da verdade, mais como o
guardador da racionalidade comunicativa. ]
De acordo com a Lei 11.101/2005, no que se refere a recuperação o Estado, num
primeiro momento, se abstém de intervir na negociação entre credores e devedores. A Lei
possibilita uma interação comunicacional dialógica, através da linguagem ilocucionária, em
que ambos apresentarão seus argumentos na construção do plano de recuperação quando será
observada por eles a viabilidade da continuidade da atividade empresarial.
Entende-se que, por meio da racionalidade dialógica, os interessados se colocam
numa situação discursiva, em busca do entendimento mútuo para validar suas propostas e
reconstruir sua relação em desequilíbrio. Esse contexto coaduna com o que Habermas
qualifica como condições ideais de fala.
98
Diante desse contexto o direito como a filosofia exerce papeis semelhantes no que
diz respeito a sua função de interprete e mediador de situações discursivas do mundo da vida.
O Estado frente a situação de desequilíbrio econômico e financeiro da empresa, oportuniza
através da Lei de Recuperação Empresarial a tomada de decisão por meio de discussões
racionais promovidas pelos concernidos, cabendo-lhe o papel de mediar e aplicar o direito.
99
CAPÍTULO 6
CONCLUSÃO
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