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Lenio Luiz Streck

Procurador de Justiça - RS
Conselho Bditorial Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
André Luís Callegari P6s-Doutor em Direito Constitudonal e Henmenôutica pela Universidade de Lisboa
Carlos Alberto Álvaro de Oliveira Professor Titular da Unisinos - RS(Mestrado e Doutorado)e Unesa-RJ; Professor Visitante e
Convidado de Universidades brasileiras e estrangeiras(Faculdade de Direito de Coimbra-PT; Faculdade de
Carlos Alberto Molinaro
Direito de Li^oa-PT; Unh^rsidad Javeriana-CO); membro catedrático da Academia Brasileira de
Daniel Francisco Mitidiero Direito Constitucional; Presidente de Honra do IHJ - Instituto de Hermenêutica Jurídica.
Dard Guimarães Ribeiro
Draiton Gonzaga de Souza
Elaine Harzheim Macedo
Eugênio Facchini Neto
Giovani Agostini Saavedra
Ingo Wolfgang Sarlet
Jose Luis Bolzan de Morais
José Maria Rosa Tesbeiner
Leandro Paulsen
Lenio Luiz Streck HERMENÊUTICA JURÍDICA E(M)CRISE
Paulo Antônio Caliendo Velloso da Silveira

Uma exploração hermenêutica da construção do Direito

IV EDIÇÃO
S914h Streck, Lenio Luiz revista, atualizada e ampliada
Hermenêutica jurídica e(m)crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito / Lenio Luiz Streck. 11. ed. rev., atual, e ampl.-
Porto Alegre; Livraria do Advogado Editora, 2014.
455 p.; 23 cm.
ISBN 978-85-7348-880-7

1. Direito. 2. Dogmática jurídica

índices para o catálogo sistemático


Direito
Dogmática jurídica
A
livraria
(Bibliotecária responsável: Marta Roberto, CRB-10/652) DO ADVOGADO
editora

Porto Alegre,2014
: í

10. A interpretação do Direito no interior da vira-


li" gem lingüística (lato sensu)
I ■
ii
l\ 10.1. A hermenêutica como uma''questão moderna"
r 'í i

li -
i'' No âmbito da interpretação do Direito, naquilo que tradicional

mente chamamos de hermenêutica jurídica,é preciso chamar a atenção
i (dos juristas) para o fato de que "nós não temos mais um significante
primeiro, que se buscava tanto em Aristóteles como na Idade Média,
como ainda em Kant; significante primeiro que nos daria a garantia
de que os conceitos em geral remetem a um único significado".^^
|; Observe-se, desde logo, a importância de um filósofo do porte
de Martin Heidegger para o deslinde da complexidade do problema
filosófico que atravessa dois milênios: as condições de possibilidade
do conhecimento e da compreensão. Tugendhat, por exemplo,diz que
Aristóteles levou a filosofia ocidental para um beco sem saída do qual
nos tentaram tirar, ao mesmo tempo, a filosofia analítico-linguística
e a ontologia fundamental de Heidegger. À pergunta: que beco sem
saída é este?, Emildo Stein responderá, com a propriedade de sem
pre: "Este beco sem saída se chama metafísica. Tanto a filosofia artaKtico-
-Unguística, quanto Heidegger, há mais de cinqüenta anos, criticam a
metafísica porque ela é uma teoria óbjetivadora do ser em lugar de perceber o
ser numa dimensão puramente lógico-semântica ouformal-semântica, A meta
física é basicamente,se pensarmos a coisa mais profundamente,o nome
para um pensamento objetivador que não tem percepção da diferença entre
objeto e significado, A tese da diferença ônticoontológica,que Heidegger
chama às vezes apenas diferença ontológica, encontra uma tradução ade
quada na terminologia de Tugendhat da chamada semânticaformal".^
No plano do Direito, o rompimento com essa tradição é extre
mamente difícil e não se faz sem ranhuras. Com efeito, embora mais
^Cf. Stein,Emüdo.Racionalidade e Existência. Porto Alegre: L&PM,1988,p.39.
^Cf.Stein,Emüdo.A caminho de umafundamentação pós-metítfísica. op. cít., p.88.

líermenêutica Jurídica e{in) Crise 259


w
pontos de aproximação com as reflexões de Apel, Habermas, Fou-
preocupado (ou preocupado ainda) com a'perspectiva objetivista da cault e Denida,^^
interpretação do Direito,Marques Neto assinala que"a recusa de uma Com razão Vattimo. Nesse caminho - que inicia stricto sensu na
concepção metafísica do Direito não se faz sem problemas. O mesmo modernidade -está o nascedouro da própria hermenêutica. Isto por
ocorre, aliás, com a afirmação dessa concepção. Crer que há uma es que a hermenêutica é uma conquista da modernidade. Afinal, se a
sência verdadeira em si mesma do Direito — como que à espera de ruptura com o "mito do dado" {adequatio intéllectum et rei), patente
ser captada em sua inteireza pelo sujeito do conhecimento, seja me em expressões do tipo "isso é assim mesmo",se dá com o alvorecer
diante um trabalho estritamente racional de índole dedutiva, em que da subjetividade - e isso se dá com o advento da modernidade -,o
as normas do Direito racional, isto é, as chamadas leis da natureza, desafio passa a ser a descóberta de que como o sujeito pode vir a atri
seriam apreendidas como autênticos corolários a que se acederia pelo buir sentidos.
raciocínio a partir de princípios autoevidentes estabelecidos a priori; A viragemhermenêutico-ontológica,provocada por Sein und Zeit
seja captando essa essência na dinâmica da vida social, através da in (1927),de Martin Heidegger,e a publicação,anos depois, de Wahrheit
vestigação sociológica do fenômeno jurídico; seja buscando-a na exe und Methode (1960), por Hans-Georg Gadamer, foram fimdamentais
gese dos textos legais crer nisso, não deixa de ser confortável".^^ A para um novo olhar sobre a hermenêutica jurídica. A partir dessa on-
mesma dificuldade se dá com a tentativa de romper com as posturas tologische Wendung,inicia-se o processo de superação dos paradigmas
que apostam no subjetivismo do intérprete,que não deixa de repetir o metafísicos objetivista aristotélico-tomista e subjetivista (filosofia da
fundamentum inconcussum presente nas correntes essencialistas,isto é, consciência), os quais, de um modo ou de outro, até hoje têm susten
o sujeito solipsista apenas substitui a(antiga) essência. Este é o ponto tado as teses exegético-dedutivistas-subsuntivas domineintes naquilo
fulcral que os juristas não conseguem perceber. que vem sendo denominado de hermenêutica jurídica.
Nesse sentido, para a elaboração de uma crítica ao discurso dog- Antes, porém, de analisar suas conseqüências para o pensamento
) mático-jurídico dominante, impregnado por essas perspectivas, são jurídico, cabe uma preparação que nos permita demarcar os percursos
da hermenêutica até a radicalização do giro hermenêutico-ontológico.
imprescindíveis- muito mais por suas aproximações do que por suas
diferenciações - as contribuições das diversas correntes linguístico-
-filosóficas (Wittgenstein, Austin, Habermas, Rorty, só para citar al
gumas) graças às quais a pergunta pelas condições de possibilidade 10.2. A hermenêutica e seus três estágios: técnica especial para
do conhecimento confiável,característico da filosofia moderna,trans interpretação; teoria geral da interpretação e hermenêu
tica fundamental
forma-se na pergunta acerca das condições de possibilidade de sentenças
intersubjetivamente válidas a respeito do mundo,o que significa dizer que
"não existe mundo totalmente independente da linguagem, ou seja, Hermenêutica significa, tradicionalmente, teoria ou arte da inter
não existe mundo que não seja exprimível na linguagem",^ É nessa pretação e compreensão de textos, cujo objetivo precípuo consiste em
linha que a presente obra privilegia Heidegger e Gadamer,com pita descrever como se dá o processo interpretativo-compreensivo.^^'^ Ain-
das de Wittgenstein(das Investigações Füosóficas) e a teoria intrega- 396 Yçj. Vattimo, Giaimi. Éihique de láinterprétation. Paris: La Déconverte, 1991,2® parte,
tiva de Dworkin. Isso ficará mais evidente nas páginas seguintes. p, 93, apud César, Constança Marcondes. Ética e hermenêutica: a crítica do cogito em
li Paul Ricoer.In: Revista brasileira defilosofia. Fac. 184, vol. XLU São Paulo: IBF,out-nov-
Nessa linha de aproximação linguístico-füosófico-hermenêutica, -dez 1996,p.399.
Vattimo lembra que no horizonte da reflexão hermenêutica,centrada ^Esse escorço histórico de construção da hermenêutica pode ser encontrado em au
no problema da interpretação, há uma linhagem que pode ser reco tora como Paul Ricouer em seu Do Texto à Ação. Ensaios de Hermenêutica ü. Porto: Rés,
nhecida, procedendo de Schleiermacher,Dilthey e Nietzsche e flores 1989; e Josef Bleicher {Hermenêutica Contemporânea. Lisboa: Edições 70,1992). Tanibém
ili Rafael Tomaz de Oliveira ressalta pontos importantes desse percurso histórico a partir
í
cendo em Heidegger,Gadamer,Ricoeur,entre outros,e que encontra da idéia de "Era da Hermenêutica", como é apresentada por Emildo Stein (Cf. Tomaz
11 de Oliveira, Rafael. Decisão Judidal e o Concdto de Princípio. Porto Alegre: Livraria do
Cf. Marques Neto,op. dt.,p. 28. Advogado,2008; Stein, Emildo. História e Ideologia. Porto Alegre: Movimento,1972). É
Cf. Oliveira, Reviravolta, op. dt,p.l3.
Hennenêutica Jurídica e(m)Crise 261
260 Lento Luiz Streck
í lí: -

da em seu sentido tradicional, a hermenêutica comporta, além desse uma estrutura metodológica que reduza os erros e as incompreensões,
caráter teórico-descritivo,\ima dimensão prescritiva, na medida em que, possibilitando, assim,a correta compreensão dos textos analisados.
deste processo descritivo, procura-se estabelecer um conjunto mais No século XIX, com a emergência da discussão envolvendo a
ou menos coerente de regras e métodos para se interpretar e compre autonomia das Ciências Hximanas - também chamadas de Ciências
ender corretamente os diversos textos que povoam o cenário cultural do Espírito (Geisteswissenschaften), o filósofo alemão Wilhelm Dilthey
humano,seja no âmbito da arte (literatura,poesia etc.),seja no âmbito passará a empregar o temíb hermenêutica para designar a exploração e
religioso(na interpretação dos textos sagrados),seja no âmbito jurídi formação da estrutura metodológica destas ciências, que estão basea
co(na interpretação dos textos de leis, decretos,jurisprudências etc.). das num processo de compreensão,enquanto as Ciências Naturais-que
Desse modo, temos por esboçados os três campos do conhecimento receberam seu fundamento filosófico a partir da Crítica da Razão Pura
que irão se interessar, de maneira mais direta, pelos problemas her de Kant - estariam baseadas em processos de explicação, desenvolvi
menêuticos: a)a Filologia; h)a Teologia; c)o Direito. dos através de uma sistemática que envolve causas e efeitos.
Já neste ponto inicial, é preciso atentar para um importante de Posteriormente, a partir da primeira metade do século XX,prin
talhe: as reflexões hermenêuticas sempre se desenvolvem numa du cipalmente por meio de Martin Heidegger,o termo hermenêutica pas
pla perspectiva. Há uma perspectiva teórica que procura descrever sará por uma transformação e será uâizado em uma conotação que
como o processo de interpretação e compreensão acontece; que tipo de nunca havia sido pensado antes em toda história da filosofia. Diante
conhecimento é esse; como esse conhecimento se articula no interior
deste novo uso, pelo menos três questões que compõem a doutrina
da dualidade que rege as teorias do conhecimento que opõem sujeito clássica da hermenêutica podem ser questionadas: 1) seu uso restrito
e objeto - em que se afirma haver em toda relação de conhecimento
um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido,sendo objetivo
à interpretação de textos; 2)a prioridade da interpretação sobre a com
das teorias do conhecimento descrever como essa oposição se resolve preensão',3)a estrutura metodológica como meio formal para garantia
na mente, no sujeito que conhece, Essa seria uma perspectiva teórica de certeza e objetividade do processo interpretativo.
da hermenêutica. Com efeito, Heidegger radicaliza o problema hermenêutico de
Por outro lado, há também uma perspectiva prescritiva (prática) modo a introduzir nele algo que poderíamos chamar de elemento an
na medida em que essa descrição visa a atingir um resultado: procura tropológico. Por meio de suas intuições fundamentais, o filósofo pôde
estabelecer regras e métodos que conformem de tal modo o processo perceber que toda compreensão - seja ela compreensão de um texto
de interpretação e compreensão que tome possível reduzir os erros si:! ou da própria história - se encontra já fundamentada em uma com
e mal-entendidos que possam surgir da leitura dos textos. Assim, a preensão que o ser humano tem de si mesmo,enquanto ser histórico
hermenêutica não pretende apenas reunir um conjimto de conheci dotado de existência. Desse modo, todas as estruturas fundamentais
mentos teóricos acerca do problema interpretativo-compreensivo, mas, i;! da existência humana^ passam a ser pensadas e analisadas a partir
na trilha do iluminismo-racionalista, pretende também produzir cri ^Desde as Interpretaçõesfenomenológicas sobre Aristóteles em 1921,passando pelo cvtr-
térios para afirmação de certeza e objetimdade no processo de interpre so Ontologia -Hermenêutica da Fatic^âe em 1923, até chegar à sua obra capitai. Ser e
tação e compreensão. Tempo,em 1927,Heidegger constrói um conceito filosófico re^onsável por uma revo
Este um quadro geral das teorias clássicas da hermenêutica, que lução nas tradicionais teorias da subjetividade e da consciência,Com efeito,o esforço
contínuo do fflósofo para colocar a reflfôíão filosófica nos trilhos da vidafática — que
operam,de uma maneira mais ou menos genérica,da seguinte forma: desde 1921 ele já chamava de faticidade-representou um rompimento com o caráter
primeiro observam-se os problemas que emanam do processo inter- li apodídico que reveste o conceito de subjetividade desde Descartes,bem como rompia
pretativo, depois procura-se resolvê-los a partir da determinação de com as fundamentações empíricas para o conceito de consciência,como podemos ob
servar em John Locke. Esse conceito, que Heidegger oporá à toda tradição filosófica
importante lembrar,ainda na esteira desse complexo que é a história da hermenêutica, anterior (Metafísica), é o concelio de Dasein (ser-aí). Dasein, portanto, será o termo a
a dbra de Günter FigaL Oposicionalidade: o demento hermenêutico e afilosofia, Petrópolis: partir do qual o filósofo designará -filosoficamente-o ser humano,a partir do qual se
Vozes,2008. As principais contribuições desses autores iluminam - em maior ou menor rão analisadas as estruturas Sticas da existência humana.Na descrição realizada pelo
medida - a trajetória da hermenêutica aqui retratada. Uma versão desse escorço está filósofo,Dasein é um tipo de ente que,em seu modo de ser,possui como possibilidade
também em artigo a ser publicado em in^ês(Streck, L.L. The rise ofphüosophical herme- a compreensão do seu ser e do ser dos demais entes íntramundanos. O Dasein é, portanto,o
neutics in law),ai^a inédito. ente que compreende o ser e, nesta compreensão tem implícita uma compreensão de

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àL
desta dimensão hermenêutica que fundamenta a própria existência: De maneira geral, estão esboçados os três estágios pelos quais a
compreender a nós mesmos e a nossa história é condição de possibili hermenêutica teve que passar: de disciplina especial para interpreta
dade para que possamos compreender textos, palavras, histórias etc. ção de textos (sacros,profanos e jurídicos)-também chamada herme
Destarte: nêutica especial; para uma teoria geral da interpretação -com Dilthey
1)além do uso restrito a textos, a hermenêutica passa a se referir e seu projeto de emancipação metodológica das Ciências do Espírito;
às estruturas fundamentais do ser humano; e uma hermenêutica fundamental - enquanto reflexão cravada nas
ir 2)como para interpretar um texto ou uma ação de outra pessoa,de estruturas existenciais concretas do ser humano,tais quais descrevem
I:
vemos pressupor uma compreensão existencial de nós mesmos,a prio Heidegger e Gadamer.
ridade da interpretação sede lugar à compreensão de modo que,não se Procurarei a^ora abordar mais de perto cada um desses estágios.
interpreta para compreender, mas se compreende para interpretar,"^®^
3)o necessário ideal de transparência que se encontrava por de
trás das posturas hermenêuticas tradicionais e que possibilitava a 10.2.1. Hermenêutica especial
crença de que seria possível encontrar um método rígido e definitivo
para evitar erros e mal-entendidos, no interior da hermenêutica hei- Os estudos sobre hermenêutica não se revestiam de uma condi
deggeriana, desaparece. Isto porque, como o próprio fato da existên ção significativa antes da eclosão do Humanismo Renascentista bem
cia, enquanto ser humano situado historicamente, se constitui como como da Reforma Protestante. Apenas o uso canônico do termo,num
elemento essencial para qualquer interpretação: não há transparência sentido,muito restrito à exegese da Bíblia, é que lhe garantia alguma
possível de ser alcançada. A faticidade humana sempre deixa algo de dignidade durante a Idade Média. Mas a transição do medievo para
fora(algo sempre escapa)e isso é inevitável. O que permanece possível a modernidade passou a alterar esse panorama por dois motivos:
é a tentativa de üuminar novos espaços de significados que pressupõe primeiro,em virtude do descobrimento dos escritos profanos - proi
a necessidade de uma pluralidade abrangente de caminhos a se seguir, bidos durante a Idade Média - e a necessidade de interpretação e
que o estreito ideal moderno de método não pode possibilitar.^ entendimento destes escritos; no contexto da Reforma, a necessidade
de se buscar uma outra justificativa para a interpretação da Bíblia que
seu próprio ser. O termo demâo Dasein tradicionalmente designa existência (é neste não estivesse reduzia à oficial,imposta pela Igreja.
sentido que é usado por filósofos da tradição metafísica, como é o caso de Kant, por
exemplo), encontra sérios problemas na tradução para outras línguas. Isso porque Gadamer afirma que o primeiro registro da palavra hermenêu
Heidegger oferece ao termo uma conotação diferenciada que mantém o significado tica como título de livro remonta ao ano de 1654, sendo tributado ao
inicial de existência, mas no sentido daquele ente que, entre todos os outros, existe, teólogo Dannhauer. Foi ele também quem provavelmente sistemati
que é o ser humano.Para Heidegger somente o Dasein existe, porque existência im zou os estudos sobre hermenêutica e começou a fazer a distinção en
plica possibilidades,projetos. Os demais entes intramtmdanos,que estão à disposição
subsistem. Esclarecendo a questão do Dasein Michael Inwood afirma que: "Dasein é o tre uma hermenêutica teológica, uma hermenêutica füológica e uma
modo de Heidegger referir-se tanto ao ser humano quanto ao tipo de ser que os seres hermenêutica jurídica.^^
humanos têm. Vem do verbo dasein que significa 'existir' ou 'estar aí, estar aqui'. O De um modo geral, pode-se dizer que a hermenêutica teológica
substantivo Dasein é usado por outros filósofos, Kant por exemplo para designar a se ocupava com a arte da interpretação dos textos sagrados;enquanto
existência de toda entidade. Mas Heidegger restringe-o aos seres humanos.(...) Por
que Heidegger fala do ser humano dessa maneira? O ser dos seres humanos é notada- que a hermenêutica filológica procurava dar conta da interpretação
mente distinto dos ser de outras entidades do mundo. O Dasein é uma entidade para das alegorias que apareciam nos textos da literatura clássica. Os tex
a qual,em seu Ser, esse Ser é uma questão".Inwood,Michel. Heidegger. Tradução de tos em grego exigiam um esforço muito grande para se determinar os
Adail übirajara Sobral. São Paulo: Loyola,2004,p. 33-34.
^ Cf. Streck, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do método. Enquanto um tenno grego,a palavra tem em vista a multipliddade,com a qual
Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,2004,Capítulo V. se penetra em uma região de objetos, por exemplo, enquanto matemático, enquanto
^Convém registrar aqui uma observação de Hans-Georg Gadamer quando aborda a mestre de obras ou enquanto alguém que filosófa sobre ética"(Gadamer,Hans Georg.
questão do método:"Em verdade,a palavra método soa muito bem em grego.Todavia, Hermenêutica em Retrospectiva. A Virada Hermenêutica. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 2006,
enquanto tima palavra estrangeira moderna,ela designa algo diverso,a saber, um ins p.164).
trumento para todo conhedm«ito,tal como Etescartes a denominou em seu Discurso do ^Cf. Verdade e Método 11, p.113.
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rismas.'^®^ Embora os dois textos apresentem elementos importantes
sentidos das palavras,o que,inevitavelmente,levava a i^a mterpre- para a compreensão do projeto teórico de Schleiermacher, é no livro
I tação da etimologia de cada um dos vocábulos empregados nas peças Hermenêutica e Crítica que encontramos as indicações mais incisivas
clássicas. A hermenêutica jurídica, por sua vez procurava dar conta daquilo que pode ser considerada a maior inovação do autor para os
da interpretação das compilações romanas -era o tempo da recepção estudos sobre hermenêutica.
e vigorava ainda o direito comum,pré-codificação. Heidegger oferece uma apresentação condensada dessa ino
li Essa fase marca em grande medida uma configuração não umtá- vação. Afirma o filósofo da floresta negra que Schleiermacher defi
ria dos estudos hermenêuticos,por isso ela é chamada de Hemeneu- niu em Hermenêutica e Crítica a idéia de hermenêutica como "'arte
tica especial, porque funcionava como uma disciplina especial para (doutrina da arte) da compreensão' da fala de outros, ele coloca-a
interpretação de textos de cada um destes cainpos do conhecimento. em relação, enquanto disciplina, com a gramática e a retórica, com a
Gadamer chama esse período de Hermenêutica Clássica, e ele pas dialética; essa metodologia formal, e enquanto 'hermenêutica geral'
sa a ser importante na medida em que, já nessa época, começam a (teoria ou doutrina da arte da compreender a fala de outros de modo
aparecer os conceitos hermenêuticos fundamentais tais quais: inter geral)abrange as hermenêuticas especiais,a hermenêutica teológica e
ti , pretação,compreensão e aplicação. Também essa época é importante a hermenêutica fílológica".^
í1' por estabelecer uma das preocupações essenciais da hermenêutica: Nota-se, portanto, que a novidade do pensamento de Schleier
1? i' um contraponto refletido contra qualquer tipo de absolutismo dog macher se manifesta a partir da unificação dos estudos hermenêuticos
mático. em tomo de um elemento comum,que ligasse os estudos desenvol
vidos independentemente do campo específico em que se movimen
tasse o intérprete.
10.2.2. Teoria geral da interpretação O que estava na linha de frente de Schleiermacher era o pro
blema dos mal-entendidos que poderiam surgir na compreensão de
um texto. Mal-entendidos estes que poderiam levar a uma interpre
Mas é com o romantismo alemão que a hermenêutica assumirá tação completamente distinta do sentido que o autor do texto impri
I. seus contornos mais sofisticados, chegando a ser tematizada expres
r - miu. Era preciso então criar algo que permitisse que a interpretação
samente como fÜosofia dotada de uma universalidade. Novamente preservasse o sentido correto, tal qual o autor determinou ao texto.
um teólogo,Schleiermacher,é quem efetuará esta tarefa. Devido a sua proximidade com o ilumiiüsmo alemão (Aufklarung), a
Todavia, embora seja correto afirmar a absoluta preponderân saída de Schleiermacher se deu pela via do método. Mas o método de
i cia que encontra a obra de Schleiermacher no contexto da afirmação Schleiermacher era sensivelmente distinto de todos aqueles previstos
da hermenêutica como teoria geral da interpretação, no contexto de sua r-

pela tradição anterior. Era,em parte, uma continuidade com o mode


obra a hermenêutica se apresenta, ainda,como um apêndice lo circular da tradição, através do qual o intérprete se movimentaria
lação aos seus interesses preponderantes: a religião e a política. No do todo para a parte e da parte para o todo, de modo a apurar sua
contexto do romantismo alemão do Aujklãrung, Schleiermacher e, ao compreensão a cada movimentação efetuada. Ao final deste procedi
mesmo tempo, um entusiasta das idéias de liberdade que vêm da re mento, que Schleiermacher denominou Círculo Hermenêutico, o sen
volução francesa e um construtor da concepção de religião como esté tido original estaria preservado, e a compreensão encontraria nele
tica. A hermenêutica,nesse contexto,é uma disciplina ^da auxilia aquilo que o próprio autor imprimiu. A ênfase no "sentido do au
f ; - apêndice da religião e dos estudos sobre arte, principalmente da tor" levará os comentadores do mencionado filósofo a classificar sua
"r J poesia - que seria,ainda,serviente à dialética. ^Cf.Schleiermacher F. D.Hermenêutica:arte e técnica da interpretação.Petrópolis: Vo
i' l O programa de Schleiermacher de uma hermenêutica univer zes. 1999, passhn.; bem como,Schleiermacher, F. D. Hermenêutica e Crítica. Vol. 1. JÇiu:
sal pode ser encontrado em alguns opúsculos e coletâneas de afo- Unijuí,2006.
^Cf. Heidegger,Martin. Ontologia-Hermenêutica da Faticidade. Petrópolis: Vozes,2012,
Cf.Sahanskí, Rüdiger.Romantismo: uma Questão Alemã.São Paulo: Estação Liber p.20.
dade,2010,p.142 e segs.
? Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m)Crise 267
i- 266
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teoria da interpretação como hermenêutica psicológica. A universalida autor. Para resolver esse problema era necessária uma nova visão histórico-
de da hermenêutica estaria garantida pelo método:era uma universa -psicolôgica"
lidade procedimental.^® Portanto, se apresenta claramente que o problema da compre
Para a construção dessa sua inovadora doutrina/ Schleiermacher ensão dos textos - independente da especialidade em que se situem
- é para Schleiermacher um problema que implica a articulação de
não desconsiderou as regras de interpretação que haviam sido ela elementos gramaticais, das partes com o todo dos próprios signos lin
boradas pelos teóricos das hermenêuticas especiais. Na verdade, ele güísticos que o compõem,como também uma aproximação- ou uma
conferiu a elas um sentido sistemático,ligadas por um elemento psi comunhão, seria melhor dizer - com a individualidade do autor, ou
IM n cológico muito forte. dos autores, do texto.
Como afirma Dilthey:"apoiada na virtuosidade filosófica de sé Na verdade, esse elemento psicológico da descoberta - quase
culos,a hermenêutica trouxe à consciência as regras segimdo as quais criativa - da intenção do autor é tão realçada por Schleiermacher que
essas fimções devem operar [interpretação gramatical,histórica,retó- Dilthey chegará a afirmar que "o objetivo último do processo herme
rico-estética e objetiva- acrescentei]. Questionando a razão de ser das nêutico consiste em compreender melhor o autor do que ele próprio
próprias regras, Schleiermacher deu mais um passo rumo à analise se compreendeu".^
do entendimento,isto é,na direção do conhecimento da própria ação Ambos os processos-a elucidação dos elementos gramaticais do
final. Desse conhecimento ele deduziu a possibilidade de uma inter texto e a interpretação histórico-psicológica - apresentam caracterís
pretação universalmente válida de seus recursos,limites e regras . ticas drculares. Na descrição de Dilthey:"a interpretação gramatical,
É evidente, nessa contribuição de Schleiermacher, as influências que avança no texto de conexão em conexão até chegar aos nexos su
da filosofia transcendental e da revolução da subjetividade,levada a premos no todo da obra, e a interpretação psicológica, que parte da
cabo pela modernidade filosófica. As construções de Schleiermacher transposição para dentro do processo criativo, avançando de lá para
a forma exterior e interior da obra e desta à apreensão da unidade da
só são possíveis porque, em um determinado sentido, duas indivi obra na maneira de pensar e no desenvolvimento de seu autor".^
dualidades foram postas ao descoberto: a individualidade do autor Dilthey irá se apropriar dos elementos desenvolvidos por Sch
do texto (que emite a mensagem)e do intérprete que a recebe e pre leiermacher para construir o seu projeto hermenêutico. Continua ele
cisa entendê-la.
perfüando as trilhas abertas pela teoria geral da interpretação. Mas
I' i É por isso que a hermenêutica, no modo como falamos dela, é toma mais difuso e abrangente o campo de análises da hermenêutica.
uma questão moderna: ela precisa desse processo de autoafirmação Schleiermacher havia situado em tomo de duas individualidades o
do sujeito,tão próprio da modernidade,para poder ter seu inicio como seu programa interpretativo: o autor e o intérprete. Dilthey, por sua
doutrina da interpretação (ou,simplesmente,hermenêutica geral). vez, coloca o intérprete como ator do processo histórico e desloca a
Essa impressão não passou despercebida pelo gênio de Dilthey. tarefa interpretativa para a compreensão do todo da própria história,
A afirmação da individualidade foi por ele constatada na segumte vale dizer, das vivências que,juntas, compõem o fluxo histórico. As
afirmação: "ele (Schleiermacher) reconheceu a condição necessária sim, a tarefa será reconstruir não o nexo de individualidades, mas,
para o conhecimento daquele outro processo que revela, nos sinais sim,o nexo de vivências.
gráficos, o conjunto da obra e, na obra, a intenção e a mentalidade do Nesse contexto, surge para Dilthey a necessidade de descrição
de um conceito central não apenas para a compreensão da história
^Para uma ampla exploração histórica da hermenêutica,reconstruindo o caminho de mas de qualquer uma das ciências do espírito: o conceito de vida.
\M i Dilthey desde a reafirmação da hermenêutica no âmbito da filologia e da teologia no Vida, para ele, signifíca a realidade originária nuclear, na qual
esclarecimento alemão {Aufldãrung)e das contradições da hermenêutica romântica,até
sua construção como metodologia das ciências do espírito: Gadamer,Hans-Georg. Ver- radica também todo o conhecimento histórico. Nesse caso, há aqtti
dade e Método. Traços Fundamentais de Uma Hermenêutica Filosófica. Tradução de Flávio
Paulo Meurer.3. ed.Petrópolis: Vozes,1999,p.237-353. ^Cf. Mthey,Wilhelm,op, cit,p.375(grifei)
^Cf. Dilfiiey, Wilhelm. O Nascimento da Hermenêutica.In: Filosofia e Educação: Textos «»Idem,p.378-
Selecionados. São Paulo:Edusp,2010,p.375. ^Idem,ibidem.

268 Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m)Crise 269

M
o embrião daquela que seria uma das críticas mais ferozes ao trans- Na verdade, o erro de Dilthey pode ser resumido da seguinte
cendentalismo kantiano: tudo o que há de objetivo na vida humana forma: a significação não se revela no distanciamento do elemento
repousa no trabalho da vida,formador de pensamento,e não em um compreensivo,não se manifesta com um conteúdo apenas instrumen-
sujeito epistemológico. Assim, a vida humana é sempre uma totali tal/ferramental, mas pelo fato de nós mesmos estarmos inseridos no
dade significativa, xim nexo reunitivo,sendo que a vivência singular nexo de efeitos da historia. A compreensão histórica é, ela própria,
constitui parte da totalidade do decurso da vida.^^° sempre,a experiência de Um efeito e o prolongamento de sua efetivi-
.1» dade.^^^
2Í--Í n|
Ú (i Assim o movimento compreensivo opera como um fator de me
diação entre a vivência individual e o conjunto de vivências que cons Essa questão ficará mais clara a partir da análise daquilo que
tituem o todo da história.
podemos chamar de hermenêuticafundamental.
^lí i A compreensão funcionará, assim, como um médium entre um
nexo significativo e um nexo operativo. Este último representa um
pressuposto necessário, ou um elemento de antecipação da com 10.2.3. Hermenêuticafundamental
preensão das vivências singulares, que se apresenta na descrição do
modo como uma época representa um nexo de significação unitário e Não é neste sentido que Heidegger se apropria da hermenêutica.
consistente: deve-se compreender todos os fenômenos desse tempo a A interpretação que ele efetuará é tão violenta que o fundo metodoló
partir dessa sua estrutura fundamental.^" gico que reveste o sentido da hermenêutica na tradição será destruído.
i-í Em um pequeno livro do início da década de 1920 — no qual o filósofo
I A compreensão histórica significa, nesse sentido, um constan
te crescimento da autoconsciência; uma constante ampliação do ho antecipa muito do que será tratado depois em sua obra máxima: Ser
iii rizonte da vida. A universalidade de Dilthey, como historiador do e Tempo - Heidegger estabelece um novo lugar para a hermenêutica
espírito,repousa justamente nessa ampliação infinita da vida na com- e para o Círculo Hermenêutico de Schleiermacher. O nome da obra já
preei\são. causa impacto: Hermenêutica da Faticidade.^^ A partir deste livro,a her
Esse aspecto representa um ponto de tal modo fundamental que menêutica, até então utilizada exclusivamente para interpretação de
autorizará Gadamer a afirmar o seguinte:"A consciência histórica re textos, passa a ter como "objeto" outra coisa: a.faticidade. Mas o que é
ií faticidade? Em nota anterior, para explicar o giro ontológico de Heide
presenta o fim da metafísica".
Por certo, a concepção de Dilthey representa, ainda, uma con gger, afirmamos que o filósofo dá ao homem o nome de Ser-at e que
tinuidade com alguns elementos da interpretação psicológica de :ít- o modo de ser deste ente é a existência. Todavia, dissemos também
Schleiermacher. Todavia, devemos reconhecer - ainda com Gadamer que este ente - que somos nós - chamado Ser-ai é o que ele já foi, ou
- que a sua concepção de hermenêutica avançou para um sentido seja: o seu passado. Podemos dizer que isso representa aquilo que desde
mais intersubjetivo a partir da identificação de nossa radical condi sempre nos atormenta e que está presente nas perguntas: de onde vie
ção histórica. mos? Para onde vamos? A primeira pergunta nos remete ao passado;
De fato,como diz Gadamer,"precisamos aprender a ler Dilthey a segunda,ao futuro. O passado é selo histórico imprimido em nosso
contra sua própria concepção de método". É o seu apego aos ele ser: Faticidade; o futuro é o ter-que-ser que caracteriza o modo-de-ser
mentos procedimentais de Schleiermacher que leva Dillhey a afirmar do ente que somos(Ser-aí): Existência. Portanto,a hermenêutica é utili
it r zada para compreender o ser (faticidade) do Ser-aíe permitir a abertu
ife a compreensão como um acessório, uma ferramenta das ciências do ra do horizonte para o qual ele se encaminha (existência). Aquilo que
li! espírito. Daí a sua concepção da hermenêutica como um apêndice das tinha um caráter ôntico, voltado para textos, assume uma dimensão
ciências do espírito.
ontológica, visando à compreensão do ser do Ser-aí. Note-se: de um
Cf. Dilthey,Wilhelm.Introdução às Ciências Hunumas.Rio de Janeiro;Forense Univer modo completamente inovador, Heidegger crava a reflexão filosófica
sitária,2010,passim.
Idem,ibidem. Cf. Gadamer,Hans-George. Verdade e Método U,op. ctf., p.46.
Cf. Gadamer,Hans-George. Verdade e Método H,op. cii., p.49. Cf. Heidegger, Martin. Hermenêutica de Ia Faticidad. Texto disponível em cwwwiiei-
deggeiiana.com.ar/henneneulica/mdiDe.htm>. Acessado em 27de julho de 2007.
Idem,ibidem,p.40.

Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m)Crise 271
i ^ ^1 270
I^ f
II
Iji
na concretude, no plano prático e precário da existência humana. Por notar que o homem só compreende o ser na medida em que pergunta
^li pelo ente. Vejamos o nosso caso: colocamos em movimento uma refle
certo que essa reflexão reclama uma abstração muito forte que decor
re do necessário distanciamento para perceber aquilo que de nós está xão sobre o processo na perspectiva de que,ao final, possamos dizer
mais próximo. Porém,a abstração parte de algo concreto,taticamente algo sobre o seu ser(uma definição sobre o processo começaria com:o
determinável, e procura compreender aquilo que nós mesmos ja so processo é...). Mas ninguém negaria que o processo se trata de um ente.
mos. Mas nós compreendemos o que nós mesmosjá somos na medida Um ente que é interrogado em seu ser, pois toda pergunta pelo pro
em que compreendemos o sentido do ser. Também já alertamos para o cesso depende disso: O que é processo? Como é o processo? Assim,em
,
fato de que homem {Ser-aí) e ser estão unidos por um vuiculo indisso bora o ser e o ente se deem numa unidade que é a compreensão que o
i^ ciável. Isto porque,em tudo aquilo com que ele se relaciona,o homem homem (Ser-aíj tem do ser, há entre eles uma diferença. Esta diferença
já compreendeu o ser,ainda que ele não se dê conta disso. Há,em toda Heidegger chama de diferença ontológica e se dá pelo fato de que todo
ação humana,uma compreensão antecipadora do ser que permite que ente só é no seu ser. Em outras palavras, a pergunta se dirige para o
o homem se movimente no mundo para além de um agir no universo ente, na perspectiva de o compreendermos em seu ser.
meramente empírico,ligado a objetos. Relacionamo-nos com as coisas, Falamos do círculo hermenêutico e da diferença ontológica que são
com o empírico,porque de algum modo já sabemos o que e como elas os dois teoremas fundamentais da fenomenologia hermenêutica. Sa
são. Há algo que acontece,além da pura relação objetivadora.^^^ Nosso bemos, então que o homem (Ser-aí) compreende a si mesmo e com
privilégio se constitui pelo fato de termos a "memória do ser";ou seja: preende o ser (círculo hermenêutico) na medida em que pergunta pelos
temos um privilégio ôntico — entre todos os entes apenas nós existimos; entes em seu ser (diferença ontológica).
e um privilégio ontológico - de todos os entes somos os únicos que,em De plano, o fenômeno que toma frente nesta curta exposição é a
seu modo-de-ser, compreendem o ser. Desse duplo privilégio, o filó compreensão. A partir de Heidegger, a hermenêutica terá raízes exis
sofo anota um terceiro: um privilégio ôntico-ontológico — a compreensão
do ser deste ente que somos é condição de possibilidade de todas as tenciais porque se dirige para compreensão do ser-dos-entes. Se nos
outras ontologias(do Direito, da História,do Processo etc.).^^^ paradigmas anteriores vigia a crença de que primeiro interpretamos
Didaticamente, podemos dizer: o fato de podermos dizer que - através de um método - para depois compreender, Heidegger nos
algo é,já pressupõe que tenhamos dele uma compreensão, ainda que mostra a partir da descrição fenomenológica realizada pela analítica
incerta e mediana. E mais! Só nos relacionamos com algo, agimos, di- existencial em Ser e Tempo que compreendemos para interpretar. A in
recionamos nossas vidsis na medida em que temos uma compreensão terpretação é sempre derivada da compreensão que temos do ser-dos-
do ser. Ao mesmo tempo,só podemos compreender o ser na medida á -entes. Ou seja, originariamente o Ser-aícompreende o ente em seu ser
em que já nos compreendemos em nossafaticidade. O acompanhamen e,de uma forma derivada,toma explícita essa compreensão através da
to desta rápida exposição por si sójá dá conta da estrutura circular em interpretação. Na interpretação, procuramos manifestar onticamente
que se movimenta o pensamento heideggeriano. Essa estrutura circu aquilo que foi resultado de uma compreensão ontológica- A interpre
lar é o Círculo Hermenêutico,não mais ligado à interpretação de textos, tação é o momento discursivo-argumentativo em que falamos dos en
mas à compreensão da faticidade e existência do Ser-aí.*^^ É preciso tes(processo, Direito etc.) pela compreensão que temos de seu ser.^
Para uma análise pormenorizada Cf. Stein, Emildo. Pensar é Pensar a D^erença. A ender-se a si mesmo;isso numa espécie de esfera antepredicativa que seria o objeto da
Filosofia e o conhecimento Empírico, ^uí: Editora Unijuí,2002. exploração fenomenológica-daí vem a idéia de círculo hermenêutico,no sentido mais
^Cf. Heidegger,Ser y Tiempo,p.36. profundo".Stein,Racionalidade e Existência, p. 79.
Sobre o dmilo hermenêutico no sentido que assume em Heidegger, Stein anota o Cf. Streck,Jurisdiçõo Constitucional e Hermenêutica,p. 197 e seguintes.
seguinte: "Õ homem se compreende quando compreende o ser, para compreender o ^Assim fala Heidegger:"Eh Ia interpretadón el comprender se apropia comprensora-
ser. Mas logo em seguida Heidegger vai dizer:'Não se compreende o homem sem se mente de Io comprendido por él. En Ia interpretadón el comprender no se convierte en
conq?reender o ser'. Então a ontologia fundamental é caracterizada por esse círculo: es otra cosa,sino que üega a ser él mismo. La interpretadón se funda existendalmente en
tuda-se aquele ente que tem por tarefa compreender o ser e,contudo,para estudar esse el comprender,ynoes ésfe él que Uega a ser por médio de aquélla. La interpretación no consiste
ente que compreende o ser, já é preciso ter compreendido o ser. O ente homem não se en tomar conocimiento de Io comprendido,sino en Ia elaboración de Ias posMidades proyectadas
compreende a si mesmo sem compreender o ser,e não compreende o ser sem compre- en el comprender'"{Sery Tiempo,p. 172)(grifamos).
272 Lento Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m)Crise 273
E como desde sempre compreendemos o ser, não há uma ponte organiza o pensamento e comanda a compreensão não é uma estru
entre consciência e mundo. Aquilo que era reivindicado por Kant foi tura metodológica rígida - como acreditava Schleiermacher — mas a
desmitificado por Heidegger no momento em que o filósofo descobriu diferença ontológica. Todas essas conquistas heideggerianas serão apro
o vínculo entre homem e ser. Não há uma ponte entre consciência e priadas depois por um outro hermeneuta, Gadamer,. que encontrará
mundo porque desde sempre já estamos no mundo compreendendo espaço para construção de sua Hermenêutica Filosófica. O título de sua
o ser. Ou seja, há um vínculo entre ser-aí-set e uma cooriginaridade obra máxima é Verdade e Método, mas bem poderia chamar-se Verdade
IPÍ contra o método ou Verdade apesar do Método, a partir da qual a herme
entre ser e mundo. Não há primeiro o Ser-at e depois o mundo ou nêutica será radicalizada como um agir mediador através da eocperiència
vice-versa. O Ser-aí é ser-no-mundo, e sua faticidade é estar-jogado- da arte, da história e da linguagem.^
-no-mimdo;sua existência é ter-que-ser-no-mundo,sendo que,desde
sempre,está jimto aos entes.®" Veja-se o que diz Gadamer no prólogo do livro de Jean Grondin
li Há outras peculiaridades que poderíamos explorar na transforma sobre a introdução à hermenêutica filosófica: o fato de que somente
na época do romantismo o tema da hermenêutica tenha começado a
ção que se opera na Filosofia com o pensamento heideggeriano. Paia estender-se - e especialmente à teoria das ciências do espírito em seu
efeitos desta investigação,nos damos por satisfeitos com a compreensão conjunto — tem razões ainda mais profundas. Não somente se expan
de que a hermenêutica recebe, a partir de então, um novo tratamento, diu à jurisprudência (teoria do direito) e à teologia, senão também
sendo alçada ao nível do mundo prático.O que precisa ficar estabeleci à filologia e disciplinas afins. Foi sobretudo Dilthey quem deu um
do é que o homem {Dasein) se apresenta no centro do mundo,reunin passo importante nessa direção com sua psicologia descritiva. Porém,
do os fios deste. Ao escolher o homem {Dasein) como ponto central de somente quando Dilthey e sua escola chegaram a ter uma maior in
sua filosofia, Heidegger não se concentra em um ente com exclusão de fluência sobre o movimento fenomenológico,o entender já não ficou
outros; o Dasein traz consigo o mundo inteiro.®" Isso é a^m porque meramente situado ao lado do compreender e do aclarar e,em geral,
o Dasein é desde sempre ser-no-mtmdo; porque sua condição é, em si não ficou limitado a seu uso pelas ciências. Ao contrário, o entender
compreendendo,compreender o ser(Círculo Hermenêutico);e compre constitui a estrutura fundamental da existência humana, sendo que
ende o ser através da pergunta pelo ente(diferença ontológica). por isso é que veio a se situar no centro da filosofia. Desse modo,per
Captar as estruturas da compreensão (que,como vimos,sempre dem sua primazia a subjetividade e a autoconsciência, que em Hus-
é histórica) não é possível ser feito pela via do método, uma vez que serl ainda encontram sua expressão no ego transcendental. Em seu
como elemento interpretativo, o método sempre chega tarde. O que lugar se situa o outro,que já não é objeto para o sujeito,senão que este
A iagifl heideggeriana de ser-no-mundo é de fundamental importância para com- se se encontre em uma relação de intercâmbio lingüístico e vivencial
preender o rompimento definitivo que o filósofo efetua com relação aos dualismos com o outro.Por isso,o entender não é um método,e,sim,uma forma
da tradição metafísica (e.^. consciência e mundo; palavras e coisas; conceitos e obje de convivência entre aqueles que se entendem. Assim se abre uma di
tos etc). Como afirma Heidegger "El Dasein no es primero sólo im ser-om otro, mensão ao lado da qual determinados âmbitos especiais de possíveis
•11 para luego, a partir de ser en convivenda^ Uegar a im m^do objetivo, a Ias cosas. conhecimentos não jogam um papel paralelo ou equivalente, senão
Este punto de partida seria tan errôneo como el dei idealismo subjetivista que ante-
pone primero un sujeto que luego, en derto modo crea un objeto. (...) El Dasein no que esta dimensão constitui a prática da vida mesma.Isto não exclin
está primeramente delante de Ias cosas un ente que posee su propio modo de ser,smo em absoluto que precisamente os métodos da ciência Ccuninhem por
li que el Dasein,en tanto que ente,que se ocupa de sí mismo,es ccnonginariam^te seus próprios caminhos,que consiste na objetivação dos assuntos de
m -con otro y ser cabe el ente intramundano.(...) Sólo si hay Dasein, si el Dasem existe
como ser-en-el-mundo, hay comprensión dei ser, y sólo si existe esta comprensión se sua investigação. Porém,justamente aqui se encontram também os
devela el ente intramundano como Io subsistente y Io a Ia mano. comprCTsion dei perigos de uma limitação teórica da ciência, que consiste em esqui
mundo en tanto que comprensión dei Dasein es comprensión^sí mismo. El yo y el var certas experiências relacionadas com o outro ser humano,outras
mundo se copertenecen mutuamente en im único ente, el Dasein, Yo y mundo no sem palavras, outros textos e sua pretensão de validade devido à autos-
iM dos entes,como sujeto y objeto,tampoco como yo y tu;másbien,yo y mundo son,en Ia satisfáçâo metodológica. Pense-se somente nos poucos passos que se
unidad de Ia estructura deiser-en-el-mundo.Ias condidonesfun^ment^s dei^pio
11 Dasein"{Los Problemas Fundamentales ãe Ui Fenomenología. Tradução de Juan Jose Garaa
Nono.Madrid:Trotta,2000,p.354-335)
avançaram, por exemplo, no esclarecimento da gramática estrutura-
^Cf.Inwood,Heidegger, p.33. ^Cf, Gadamer, Verdade e Método,voL L

274 Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m)Crise 275

'i íl
lista do mito,no qual se investiram enormes energias de investigação de estrutura prévia do sentido - que se funda essencialmente em uma
e certamente não com a finalidade e o resultado de que agora o mito
posição prévia (Vorhabe), visão prévia {Vorsicht) e concepção prévia
comece a falar melhor. Algo parecido se poderia dizer da semântica, (Vorgrijf)- que já ime todas as partes do "sistema".
que toma como objeto o mimdo dos signos ou da textualidade, aos Temos uma estrutura do nosso modo de ser no mundo, que é a
quais o conhecimento científico tem conseguido aproximar-se de ma interpretação. Estamos condenados a interpretar. O horizonte do sen
neira nova e interessante. Entretanto, a hermenêutica não pretende a tido nos é dado pela compreensão que temos de algo. Compreender é
objetivação, senão que se escutar mutuamente e também, por exem um existencial,que é uma categoria pela qual o homem se constitui. A
plo, o escutar de alguém que sabe narrar.^* faticidade,a possibilidade e a compreensão são alguns desses existen
ciais. É no nosso modo da compreensão enquanto ser no mundo que
exsurgirá a "norma" produto da "síntese hermenêutica", que se dá a
partir da faticidade e historicidade do intérprete.
10.3. A hermenêutica jurídica diante dessa intrincada tessitura
H
De qualquer forma,tudo isso que foi descrito aqui aponta para o
século XX como a verdadeira "era da hermenêutica".^ Essa era fun
i' il Na doutrina e na jurisprudência do direito ainda domina a idéia
damenta a tese de que a Teoria do Direito,durante o século XX,efetua
da indispensabilidade do método ou do procedimento para alcançar
a "vontade da norma",o "espírito de legislador",a correta interpreta
uma espécie de recepção destas três revoluções descritas até aqui(da
tf
''I ção do texto etc. Acredita-se que o ato interpretativo é um ato cogniti do fundamento; e da ontologia) encontrando seu ponto
vo e que "interpretar a lei é retirar da norma tudo o que nela contém", ^De re^trar que a passagem de(e/ou o rompimento com)um modelo de interpreta
circunstância que bem denuncia a problemática metafísica nesse cam ção do Direito de cunho objetlvista, reprodutivo,começa a serfeita a partir dos apartes da
po de conhecimento. Semiótica,em sua matriz pragmática, e da hermenêuticafilosófica, com a hermenêutica antirre-
produtiva de Gadamer, pela qual se passa da percepção à compreensão. Ou seja, tanto a prag
A hermenêutica jurídica praticada no plano da cotidianidade do mática como a hermenêutica, ao romperem com os duahsmos metafísico-essencialistas
direito deita raízes na discussão que levou Gadamer a fazer a crítica ao (essência e acidente, substância e propriedade e aparências e realidade), contribuem
processo interpretativo clássico,que entendia a interpretação como sen para a construção de uma hermenêutica jurídica que problematiza as recíprocas impli
cações entre discurso e realidade, além de desmi(s)tificar a tese, prevalecente no âmbi
do produto de uma operação realizada em partes {suhtilitas intélligendi, to do senso comum teórico dos juristas, da possibilidade da separação dos processos
subtilitas explicandi, suhtilitas applicandi, isto é, primeiro compreendo, de produção, de interpretação e da aplicação do texto normativo, mostrando, enfim,
depois interpreto, para só então apUcar). A impossibilidade dessa cisão como contraponto, que existe, no devir da inserção do ser-no-mundo, um processo de
implica a impossibilidade de o intérprete "retirar" do texto "algo que o produção, circulação e consumo do discurso jurídico, em que, somente pela linguagem
- vista como condição de possibilidade e não como mero instrumento ou terceira coisa que se
texto possui-em-si-mesmo", numa espécie de Auslegung, como se fos interpõe entre sujeito e objeto-é possível ter acesso ao mundo(do Direito e da vida). A propó
se possível reproduzir sentidos; ao contrário, para Gadamer,fundado sito da aproximação entre a hermenêutica filosófica e a pragmática wittgensteiniana,
na hermenêutica filosófica, o intérprete sempre atribtd sentido (Sínn- observe-se,com Stein, que as formas de vida de Wlttgenstein (descritas espedahnente
gebung). O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de nos parágrafos 7,19 e 23) correspondem aos modos-de-ser do estar-aí de Heidegger.
O linguisticismofènomenalisfa do Tratactusfoi superado graças à leitura de ''Ser e Tempo"e é
horizontes {Horizontenverschmelzung), porque compreender é sempre o esta a obra que preparou a virada para as Investigações. Cf. Stein, Seis Estudos, op. cit., p. 16.
processo de fusão dos supostos horizontes para si mesmos. Vattimo, por seu turno, acrescenta quefoi graças à urbanização da província heideggeríana
Algumas posturas críticas sobre a hermenêutica jurídica -em es que hoje épossívelfalar cada vez mais de uma proximidade entre Heidegger e Wittgenstein. Tal
proximidade já havia sido assinalada por Pietro Chiodi e depois por Karl Otto Appel.
pecial a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer-receberam Somente depois da "urbanização" é quefin possível uma aproximação como a quefala Rorty,
uma nítida influência da ontologia fundamental de matriz heidegge- que vê nafilosofia do século XX uma linha que se define com r^ência a três nomes: Dewey,
riana,a partir de seus dois principais teoremas:o círculo hermenêutico Wittgenstein e Heidegger. A possibilidade mesma de semelhante aproximação deriva
e a diferença ontológica.Para interpretar,necessitamos compreender; da leitura de Heidegger que urbaniza as teses da linguagem como morada do ser. A
tese fúndamental de Gadamer,de que "ser que pode ser compreendido é linguagem",
para compreender, temos de ter irnia pré-compreensão, constituída anuncia tam desenvolvimento do heideggerismo pelo qual o ser se tende a dissolver na
lingiugem,ou pelo menos nela se resolver (cf. Vattimo, GiannL Elfin dela modemidad
^ Cf. Hans-Georg Gadamer, no prólogo ao livro de Grondin, Jean. Binführung in die - nihilismo y hermenêutica en Ia cultura posmodema. México:Gedisa,1985,p. 118),
phÜosophische Hemeneutík. Darmstadt,Wissenschaftliche Buchgesellschaft. 1991.
Hermenêutica Jurídica e(m)Crise 277
276 Lenio Luiz Streck
|i
de estofo na filosofia hermenêutica de Heidegger e na Hermenêutica cialmente através de um encontro não lingüístico,e que o mundo pos
Filosófica de Gadamer. Esta recepção é percebida em diferentes graus sa ser conhecido como ele é,intrinsecamente, começamos a perceber
em diversos autores* Mas,de uma forma global,em todos eles e possí - graças à viragem lingüística da filosofia e do nascimento da tradi
vel perceber aquilo que José Lamego chama de "acesso hermenêutico ção hermenêutica^- que "os diversos campos da filosofia, que antes
ao Direito".
eram determinados a partir do mundo natural, poderiam ser multi
No que tange à fenomenologia hermenêutica - entendida glo plicados ao infinito por meio da infinitividade humana. A hermenêu
tica será, assim, esta incômoda verdade que se assenta entre duas cadeiras,
balmente, comportando as descobertas tanto de Heidegger quanto de quer dizer, não é nem uma verdade empírica, nem uma verdade absoluta - é
Gadamer - é possível notar nas obras de Josef Esser, Friedrich Müller, uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas do discurso e
Arthur Kaufmann e Ronald Dworkin^^ a recepção dos principais con
da linguagem. A hermenêutica, é assim, a consagração da finitude".^
ceitos desenvolvidos por esta tradição hermenêutica do século 20.Em
todos estes autores, há a possibilidade de se pensar em um acesso her A presente obra pretende mostrar,nessa linha,que os contributos
menêutico para o Direito. da hermenêutica filosófica para o direito trazem uma nova perspecti
Com a filosofia hermenêutica e a hermenêutica filosófica -e isso
va para a hermenêutica jurídica,assumindo fimdamentalimportância
poderá ser vislumbrado na seqüência de forma mais delineada — é as obras de Heidegger e de Gadamer, Com efeito, Heidegger, desen
posta em xeque a idéia de umfunãamentum inconcussum,superando- volvendo a hermenêutica no nível ontológico,^ trabalha com a idéia
1
de que o horizonte do sentido é dado pela compreensão; é na compre
se a dicotomia do esquema sujeito-objeto. Nem mais o assujeitamento ensão que se esboça a matriz do método fenomenológico. A compreensão
do sujeito às essências e nem o solipsismo do sujeito assujeitador dos possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compõe de
(sentido dos)objetos. Desse modo,na medida em que nos libertamos aquisição prévia,vista prévia e antecipação,nascendo desta estrutura
de tais ontologias (tradicionais), é dizer, na medida em que passamos a a situação hermenêutica.^ Já Gadamer, seguidor de Heidegger, ao
não acreditar na possibilidade de que o mundo possa ser identificado com
independência da linguagem, ou que o mundo possa ser conhecido ini- ^Enquanto hermenêutica,radicaliza-se a superação da metafísica, que,em sua essên
cia, a partir dessa postura, nada mais é do que a permanente tentativa de negação da
^No contexto do direito brasileiro,também minha obra apresenta essa "recqjção" da finitude,superação da temporalidade.Em sfíitese,metafísica é a pretensão a uma verda
i hermenêutica pela teoria do direito(além da presente,ver também Verdade e Consenso, de absoluta, e isso signifíca para a hermenêutica autonegação da finitude. Cf, Oliveira,
op. cit;O que é isto-decido conforme a minha consciêTicia?. 4. ed.Porto Alegre:Livraria do Manfredo,op. cit, p,231.
Advogado,2013;Streck,Lerdo;Oliveira,Rafael Tomaz de. O que é isto-as garantias pro Cf. Stein, Emildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: Edipucrs, 1996,
cessuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado,2012; O que é isto — o precedenteju p.38 e segs.
dicial eas súmulas vinculantes? op. cit.- Garantismo, hermenêutica e(neokonstitucionalismo: ^É relevante ressaltar,com Stein,que a ontologia heideggeriana é ap>enas o nome que
um debate com Luigi Ferrajóli, op. cit). Quanto aos demais autores citados no texto,^o se dá à compreensão da totalidade. Não há (outro) universo para o ser humano a não
importantes:Dworkin,O Império do Direito; Uma questão de princípio. São Paulo: Martins ser o universo que a hermenêutica pode desenvolver e mostrar. Entretanto, Heidegger
Fontes, 2001; Leoando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002; Kaufmann, fala de uma ontologia fenomenológica que é uma hermenêutica do ser-aí. Acontece que
i Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,2004; Müller,Frie a palavra ontologia a partir de Heidegger passa a tomar um outro sentido. Forque ele dirá o
P drich. Direito Linguagem e Violência: elementos de luna teoria constitucional. Tradução seguinte: a compreensão que o homem tem do sentido é a de que nóssó temos o sentido
de Peter Naumann.Porto Alegre: Sérgio Antorüo Fabris Editor,1995;Métodos de Traba da compreensão porque se realizam no ser humano duas compreensões:a compreensão
lho do Direito Constitucional. 3. ed.Rio de Janeiro: Renovar,2005;Lamego,Hermenêutica de si mesmo e a compreensão do ser, Cf. Stein,op. cit Ver,também,Heidegger,Martin.
e Jurisprudência. Análise de uma Recepção. Esser,Josef. Principio y norma en Ia elaboración Ser € Tempo.5. ed.,partes I e IL Petrópolis: Vozes,1995.Em Gadamer,a ontologia não mais
jurispruãencial Dei derecho privado. Barcelona:Bosch Casa Editorial,1961,Tassinari,Cla pergunta pdo efetivamente existente, mas pelo "Ser enquanto sentido",a partir de onde somente
rissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Li se pode determinar o que seja a realidade e em que grau algo pode valer como real(Gadamer,
vraria do Advogado,2013. Motta,Francisco José Borges, levando o direito a sério: iima Der Weg in die Kehre,in:Hegel,Husserl,Heidegger,Tübingen,1987,p.272-284). O Ser,
crítica hermenêutica ao protagonísmo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, enquanto sentido, dá-se linguistícamente, naformulação de Gadamer. Daí a assertiva clássica:
I: 2012, Ramires, Maurício. Critica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Ale Ser que pode ser compreendido é linguagem.É por isso que a linguagem emerge como
gre:Livraria do Advogado,2010. Oliveira, Rafael Tomaz de. Decisãojudicial e o coreto o horizonte intranscendível da ontologia hermenêutica. Cf. Oliveira,Reviravolta, op. cit.,
de princípio: a hermenêutica e a (injdeterminaçâo do direito. Porto Alegre: Ijvraria do p.232,
Advogado,2008. Sausen,Dalton. Súmulas, repercussão geral e recursos repetitivos: crítica
à estandardização do direito e resgate hermenêutico.Porto Alegre: Livraria do Advo ^ Ver Heidegger, Ser e Tempo,op. cit.; também Stein, Emildo. A questão do método na
gado,2013. JUõsqfia,op. cit., p.104 e segs.

278 Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m)Crise 279

f í
ILLi,
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dizer que ser que pode ser compreendido é-linguagem, retoma a idéia gang). Pois é o modelo da linguagem e sua forma de realização - ou
de seu professor da linguagem como casa do ser, em que a linguagem seja, o diálogo - que suporta não somente o entendimento entre os
não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado. Daí homens, senão também o entendimento sobre as coisas de que ê feito
que, para Gadamer,^^ ter um mundo é ter uma linguagem. As pala nosso mundo. A teoria do conhecimento no sentido tradicional tem
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vras são especulativas, e toda a interpretação é especulativa, uma vez subvalorizado a articulação lingüística {Sprachlichkeit). Nosso pensa
1^ que não se pode crer em um significado mfinito, o que caracterizaria mento atual, entretanto, encontra-se orientado de modo decisivo ao
o dogma. A hermenêutica, desse modo, é imiversal, pertence ao ser fenômeno da linguagem. Isto se manifesta, acentua Gadamer, "em
da filosofia, pois, como assinala Palmer,'*^ "a concepção especulativa minha própria teoria, no que concerne ao papel que joga a linguagem
do ser que está na base da hermenêutica é tão englobamte como a ra e o lingüístico para toda a compreensão e o conhecimento (Verstehen
I.: und Erkenneny.
zão e a linguagem".
A (nova) hermenêutica pretendida por Gadamer surge no hori
zonte de um problema totalmente humano, diz Fernandez-Largo: a
10.4. A hermenêutica filosófica: abrindo caminho para uma experiência de encontrarmo-nos frente à totalidade do mundo como
hermenêutica jurídica crítica contexto vital da própria existência. A partir disto, a pergunta acerca
de como ê possível o conhecimento e quais são as suas condições, pas
sa a ser um problema menor dentro da globalidade da questão refe
lOA.l. Da filosofia hermenêutica (Heidegger) à hermenêutica filosófica rente ao compreender da existência no horizonte de outros existentes.
(Gadamer) O que a nova hermenêutica irá questionar ê a totalidade do existente
humano e a sua inserção no mundo. Se Schleiermacher havia liberado
De pronto, é necessário observar/advertir o leitor para a diferença a hermenêutica de suas amarras com a leitura bíblica, e Dilthey, da
que existe entre hermenêutica clássica, vista como pura técnica de in dependência , das ciências naturais, Gadamer pretende liberar a herme
terpretação (Auslegung), e a hermenêutica filosófica, de matriz gadame- nêutica da alienação estética e histórica, para estudá-la em seu elemento
riana, que trabalha com um "atribuir sentido" (Sinngebung), isto porque puro de experiência da existência humana, E Heidegger será o corifeu
"en Ia compreensión hermenêutica entendida al modo gadameriano se I
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dessa postura que se caracterizará por explicar a compreensão como
pone también en juego Ia autocomprensión, revelándose en ella Ia pro- L forma de definir o Dasein (ser-aí). O que nos ê dado a entender acerca
pia dimensión dei sujeto: 'Es también siempre Ia obtención de da existência humana, com sua finitude, sua mobilidade, sua projeção
una autocomprensión (Selbsvertãndnisses), más ampUa y profunda. Pero {■<' para o futuro e, em suma, sua precariedade, tudo isto pertencerá à
eso significa que Ia hermenêutica es filosofia y, en tanto filosofia, filo !■> forma primordial do compreender. Por isto, Gadamer vai dizer, já no
sofia práctica'. De acuerdo con Gadamer, tal comprensión posee siempre í início de Verdade e Método, que a compreensão pertence ao ser do que
una dimensión lingüística. Así, 'Ia comunidad de toda comprensión, que se compreende.433
se basa en sua carácter lingüístico (SpracMíchkeit), me parece que consti- Para desenvolver sua tese, Gadamer^^^ diz que Heidegger, quan
tuye un pimto esencial de Ia experienda hermenêutica'".^ do ressuscita o tema do ser e ultrapassa todo o pensamento metafísico,
Por isso Gadamer^ vai dizer que a hermenêutica como teoria ganha, frente às aporias do historicismo, uma posição fundamental
filosófica diz respeito à totalidade de nosso acesso ao mundo (Weltzu- mente nova. O aspecto da compreensão não é um conceito metódi
431 Ver Gadamer. Verdad y Método, leU; também EncamaçÔo, João Bosco da. Que é isto, o co como queria Droysen e tampouco é, como entendia Dilthey, uma i I
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Direito? Taubaté, SP: Cabral Editora, 1997, p. 199. operação que seguiria, em direção inversa, ao impulso da vida sobre a
4^ Ver Paimer, Richard, Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, p. 215. Do mesmo modo, con idealidade. Compreender ê o caráter ôntico original da vida humana
sultar Encamação, ibidem.
^ Cf. Blanco, op. cit., p. 242.
433 Cf. Femandez-Largo, Antonio Osuna. La hermenêutica jurídica de Hans-Georg Gadamer.
434 Cf. Gadamer, Hans Georg. Hermenêutica. In: Diccionario de Hermenêutica. Una obra Valladolid, Espana: Universidad dè Valladolid, 1993, p. 42 e 43, mediante tradução li
vre.
interdisciplinar para Ias ciências humanas. Dirigido por Ortiz-Osés y P. Lanceros, Bilbao: 434 Cf. Gadamer, Verdad y Método I, op. cit., p. 325.
Universidad de Deusto, 1997, p. 228 e 229.
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280 Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 281

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