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Filosofia Moral Moderna

G. E. M. Anscombe

Começo enunciando três teses que defendo neste artigo. A primeira,


que não nos é proveitoso fazer filosofia moral na situação presente: essa
empreitada deve ser deixada de lado pelo menos até dispormos de uma
filosofia adequada da psicologia, de que conspicuamente carecemos. A
segunda, que os conceitos de obrigação e dever — obrigação moral e dever
moral, digo —, do que é moralmente certo ou errado e do sentido moral de
"deve" têm de ser abandonados, se isso for psicologicamente possível, visto
serem remanescentes, ou derivados de remanescentes, de uma concepção
anterior de ética que, no geral, não sobrevive, sendo apenas perniciosos sem
ela. E a terceira, que as diferenças entre os renomados autores ingleses em
filosofia moral, de Sidgwick até o presente, são de pouca importância.

Quem quer que tenha lido a Ética de Aristóteles e algo da filosofia


moral moderna deve haver notado os enormes contrastes entre ambos. Os
conceitos preeminentes entre os modernos parecem estar ausentes ou, pelo
menos, ocultos ou em um longínquo pano de fundo em Aristóteles. O próprio
termo "moral", que herdamos diretamente de Aristóteles, não parece ter lugar,
em seu sentido moderno, em uma caracterização da ética aristotélica.
Aristóteles distingue entre virtudes morais e intelectuais. Tem o que ele
chama de virtudes "intelectuais" o que nós chamaríamos um aspecto "moral"?
Parece que sim: o critério, presume-se, é que uma falha em uma virtude
"intelectual" — por exemplo, deliberar bem ao calcular como realizar algo de
útil, digamos, no governo municipal — é reprovável. Porém, pode-se indagar,
não é possível transformar qualquer falha em matéria de censura ou
reprovação? Qualquer crítica depreciativa, digamos, do acabamento de um
produto, do design de uma máquina, pode ser chamada de censura ou
reprovação. Assim, para pôr em jogo novamente o termo "moral": por vezes
essa falha é moralmente reprovável, por vezes não. Dispõe Aristóteles dessa
ideia de reprovação moral, por oposição a outros tipos de reprovação? Se sim,
por que ela não é mais central? Há erros, diz ele, que são causas não da
involuntariedade nas ações, mas da vilania, pelo que um homem é censurado.
Significa isso que há uma obrigação moral de não cometer certos erros
intelectuais? Por que ele não discute a obrigação em geral e essa obrigação em
particular? Se alguém pretende expor as teses de Aristóteles e fala, à maneira
moderna, sobre isto e aquilo ser "moral", deve se tratar de alguém muito
obtuso se não se sentir constantemente como alguém cuja mandíbula está fora
de alinhamento: os dentes não mordem como convém.

Não podemos, portanto, procurar em Aristóteles nenhuma


elucidação do modo moderno de falar em obrigação, bem etc. "morais". E
todos os renomados escritores de ética dos tempos modernos, de Butler a
Mill, parecem-me, enquanto pensadores que abordaram esse assunto, cometer
erros que inviabilizam qualquer esperança de se obter deles alguma
iluminação. Faço minhas objeções com a brevidade que o caráter deles
possibilita.

Butler exalta a consciência, mas parece ignorar que a consciência de


um homem pode ditar-lhe fazer as coisas mais vis.

Hume define a "verdade" de modo a que dela se excluam todos os


juízos éticos e professa haver provado com isso que estão daí excluídos. Ele
também implicitamente define a "paixão" de modo a que ter algo em mira seja
ter uma paixão. Sua objeção à passagem de “é” (is) a “deve” (ought) aplicar-se-
ia igualmente à passagem de "é" a "deve a" (owes) ou de "e" a "precisa de"
(needs) (todavia, em razão da situação histórica, há um ponto aqui, ao qual
retorno em breve).

Kant introduz a ideia de "legislar para si mesmo", a qual é tão


absurda como se hoje, quando votos majoritários impõem grande respeito, se
chamasse toda decisão refletida tomada por um homem de um voto
majoritário, o qual, em matéria de proporção, seria esmagador, pois é sempre
1 x 0. O conceito de legislação requer um poder superior da parte do
legislador. As convicções que professa no que diz respeito à mentira são tão
rígidas que jamais lhe ocorre que uma mentira poderia ser relevantemente
descrita como algo além de uma mentira (poderia ser descrita, por exemplo,
como "uma mentira em tais e tais circunstâncias"). Sua regra das máximas
universalizáveis é inútil se não vier acompanhada de estipulações acerca do
que conta como uma descrição relevante de uma ação com vistas a construir
uma máxima a respeito.

Bentham e Mill não percebem a dificuldade do conceito de "prazer".


Geralmente se diz que erram ao cometer a falácia naturalista; essa acusação,
porém, não me impressiona, porque não julgo sejam coerentes as caracteriza
ções dessa falácia. No entanto, o outro ponto — sobre o prazer — parece-me
desde logo uma objeção fatal. Os antigos consideravam esse conceito bastante
desconcertante. Ele reduziu Aristóteles a um mero balbucio acerca do "primor
nos jovens rostos" porque, por boas razões, queria compreendê-lo como se
fosse a um só tempo idêntico e diferente da atividade prazerosa. Gerações de
filósofos modernos tomaram o conceito como não sendo em nada descon
certante, o qual reaparece como problemático na literatura apenas há um ou
dois anos, quando Ryle escreveu a respeito. A razão é simples: desde Locke, o
prazer vem sendo tomado como certo tipo de impressão interna. É contudo,
superficial, se é que essa é a caracterização correta, fazer dele o propósito das
ações. Pode-se adaptar algo que Wittgenstein afirmou acerca do "significado"
e dizer: "o prazer não pode ser uma impressão interna, pois nenhuma
impressão interna pode ter as consequências do prazer".

Além disso, Mill, como Kant, não consegue reconhecer a necessidade


de se estipularem descrições relevantes para que sua teoria tenha conteúdo.
Não lhe ocorreu que assassinatos e roubos podiam ser descritos de outra
maneira. Ele sustenta que, se uma ação proposta é de tal tipo que incida sob
algum princípio estabelecido em termos de utilidade, deve-se praticá-la; se
não incide sob nenhum ou incide sob diversos, esses diversos sugerindo ações
contrárias, a coisa a ser feita é calcular as consequências particulares. Mas
qualquer ação pode ser descrita de modo a que incida sob diversos princípios
de utilidade (assim o digo por concisão), se é que incide sob algum.

Retomo agora a Hume. As características da filosofia de Hume que


mencionei, como tantas outras, inclinam-me a pensar que Hume tenha sido
apenas um — brilhante — sofista; seus procedimentos são certamente
sofísticos. Sou, contudo, forçada não a reverter, mas a acrescentar algo a esse
juízo em razão de uma peculiaridade da filosofia de Hume, a saber, o fato de
que, muito embora chegue a suas conclusões — de que se apaixona — por
métodos sofísticos, suas considerações constantemente introduzem problemas
profundos e importantes. Frequentemente ocorre que, ao exibir os
procedimentos sofísticos alheios, notamos pontos que merecem exploração
ulterior: como resultado dos pontos que Hume pretende ter notado, o óbvio
precisa de investigação. Nisso ele difere, digamos, de Butler. Já se reconhecia
que a consciência pode ditar ações vis. Que Butler escreva sem o levar em
consideração não nos introduz novos tópicos. Com Hume, porém, não é
assim: daí que seja um grande e profundo filósofo, apesar de seus
procedimentos sofísticos. Por exemplo: Suponha-se que digo ao merceeiro: "a
verdade consiste ou bem em uma relação entre ideias, como 100 centavos =
R$1, ou bem em fatos, como: pedi batatas, tu as forneceste e cobraste o valor.
Não se aplica, pois, a uma proposição como a que devo a você uma tal soma."

Ora, se se faz essa comparação, fica claro que a relação entre os fatos
mencionados e a descrição "X deve a Y tanto" é uma relação interessante, a
qual chamo de "Valor bruto relativo a" essa descrição. Ademais, os próprios
"fatos brutos" aqui mencionados possuem descrições relativamente às quais
outros fatos são "brutos" — como, por exemplo, ele transportou as batatas até
minha casa e ele as deixou lá são fatos brutos relativos a "ele me forneceu
batatas". E, por sua vez, o fato que X deve dinheiro a Y é, por sua vez, "bruto"
relativamente a outras descrições — por exemplo, "X pode pagar". Ora, a
relação de "bruteza relativa" é complicada. Menciono alguns pontos: se xyz é
um conjunto de fatos brutos relativos à descrição A, xyz é um conjunto
contido em um conjunto maior de que uma parte é válida se A é válida; no
entanto, o fato de que uma parte seja válida não acarreta necessariamente A,
porque circunstâncias excepcionais podem sempre fazer diferença; e o que
conta como circunstâncias excepcionais para A geralmente só pode ser
explicado por meio de alguns exemplos, nada se podendo oferecer de
teoricamente adequado no que diz respeito a elas, visto teoricamente se poder
sempre imaginar um contexto especial ulterior que reinterprete qualquer
contexto especial. Ademais, muito embora em circunstâncias normais xyz seja
uma justificativa para A, isso não é o mesmo que dizer que A e 'xyz' são o
mesmo; pode haver um contexto institucional que fornece propósito à
descrição A, não sendo A uma descrição dessa instituição (por exemplo, a
declaração de que dou a alguém um centavo não é uma descrição da
instituição do dinheiro ou da moeda deste país). Assim, muito embora seja
ridículo imaginar que não possa haver uma transição, por exemplo, de "é" a
“deve a”, o caráter da transição é na verdade bastante interessante e vem à luz
como resultado de uma reflexão sobre os argumentos de Hume1.

1 Os dois parágrafos acima são um resumo do artigo "On Brute Facts" Analysis 18
(1958): 69-72, reimpresso em ANSCOMBE, G, E. M. Collected Philosophical Papers, vol. III:
Pthics, Religion and Politics (Oxford: Blackwell, 1981), pp. 22-5.
Que eu deva ao merceeiro uma dada soma é um de um conjunto de
fatos que é “bruto” em relação à descrição "sou uma caloteira". "Dar o calote"
é evidentemente um tipo de "desonestidade" ou "injustiça" (naturalmente,
essa consideração não terá efeito algum em minhas ações, a não ser que eu
pretenda cometer ou evitar atos de injustiça).

Até o momento, apesar de suas fortes associações, concebo "dar o


calote", "injustiça" e "desonestidade" de maneira meramente "factual". Que o
possa fazer no caso de "dar o calote" é bem óbvio; "justiça" é algo que não
tenho ideia de como definir, à exceção de dizer que sua esfera é aquela das
ações que dizem respeito a outrem, mas "injustiça", como seu termo privativo,
pode ser explicado por ora como um nome genérico que cobre diversas
espécies, e.g. dar o calote, roubar (que diz respeito às instituições de
propriedade existentes), caluniar, cometer adultério, punir inocentes.

Na filosofia atual requer-se uma explicação para como um homem


injusto pode ser um homem mau ou uma ação injusta, uma ação má; oferecer
tal explicação pertence à ética, mas não se poderá sequer começar a fazê-lo até
que estejamos equipados com uma filosofia coerente da psicologia, pois a
prova que um homem injusto é um homem mau requereria uma
caracterização positiva da justiça como uma "virtude". Essa parte do objeto da
ética, no entanto, nos estará vedada até que tenhamos uma caracterização de
que tipo de característica é uma virtude — problema não da ética, mas da
análise conceitual — e de como ela se relaciona com as ações em que é
instanciada — problema, julgo, que Aristóteles não teve sucesso em realmente
aclarar. Para tanto, precisamos de uma caracterização pelo menos do que é
uma ação humana e de como sua descrição em termos de "fazer tal coisa" é
afetada por sua motivação e pela intenção ou intenções nela, para o que se
exige uma caracterização de tais conceitos.

Os termos "tem de" (should), "deve" (ought) ou "precisa de" (needs) têm
relação com o que é bom ou mau: e.g. o maquinário precisa de óleo, ou tem de
ou deve ser lubrificado no sentido de que funcionar sem lubrificação é ruim
para ele, ou de que ele funciona mal sem lubrificação. Segundo essa
concepção, é claro, "tem de" ou "deve" não estão sendo usados em nenhum
sentido "moral" especial quando se diz que um homem não deve se furtar a
pagar (no sentido aristotélico do termo "moral" — ἠθικός — estão sendo
usados em conexão com um tópico moral, a saber, as paixões e ações [não-
técnicas] humanas). Contudo, possuem hoje um sentido por assim dizer
"moral" especial — i.e. um sentido segundo o qual implicam algum veredicto
absoluto (como culpado/inocente para um homem) com respeito àquilo que é
descrito nas frases em que "deve" é empregue em certos tipos de contexto: não
apenas os contextos que Aristóteles chamaria de "morais" — paixões e ações —
refora, mas também alguns contextos que ele chamaria de "intelectuais".

Os termos comuns (e indispensáveis) "tem de", "precisa de", "deve",


"tem a obrigação de" (must) adquiriram esse sentido especial ao serem
equacionados nos contextos relevantes com "está obrigado a" (is obliged to),
"assumiu o encargo de" (is bound to) e "é exigido" (is required to) no sentido que
se pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei, ou de que algo
pode ser exigido por lei.

Como isso ocorreu? A resposta pertence à História: entre Aristóteles


e nós encontra-se a Cristandade, com sua concepção legalista em ética, visto
que a Cristandade deriva suas noções morais da Torá. (Pode-se estar
inclinado a pensar que uma concepção legalista em ética surge apenas em
povos que aceitam uma lei positiva supostamente divina; que isso não é o
caso é mostrado pelo exemplo dos estoicos, que pensavam que tudo o que
dizia respeito à conformidade com as virtudes humanas era exigido por lei
divina.)

Como consequência do predomínio da Cristandade por muitos


séculos, os conceitos de assumir um encargo, ser permitido ou ser desculpado
se entranharam muito fundo em nossa linguagem e nosso pensamento. O
termo grego ἁμαρτάνϵιν, o mais apto a ser usado nesse sentido, adquiriu o
significado de "pecar" a partir de "enganar-se", "errar o alvo", "errar". O termo
latino peccatum, que corresponde grosso modo a ἁμαρτημα, era ainda mais apto
ao sentido de "pecar" em razão de já estar associado a culpa, um termo
jurídico. Os termos amplos "ilícito", "ilegal", que significam mais ou menos o
mesmo que nosso termo amplo "errado" (wrong), explicam-se por si sós. E
digno de nota que Aristóteles não disponha de tal termo amplo. Ele tem
termos amplos para a iniquidade — "torpe", "vil"; mas, claro, não se é torpe ou
vil por se praticar uma, ou umas poucas, má(s) ação(ões). Tem também
termos como "ignóbil", "ímpio"; e termos específicos que designam privação
da virtude relevante, como "injusto" — mas nenhum termo que corresponda a
"ilícito". A extensão desse termo (i.e. seu espectro de aplicação) pode ser
indicada em terminologia aristotélica apenas por uma frase bem longa: é
"ilícito" aquilo que, seja um pensamento, uma paixão consentida ou uma ação,
é contrário a uma das virtudes cuja falta evidencia que um homem é mau qua
homem. Tal formulação engendraria um conceito co-extensivo com o conceito
"ilícito".

Ter uma concepção legalista em ética é sustentar que o que se precisa


para se estar em conformidade com as virtudes em cuja falha reside a marca
do homem mau qua homem (não apenas, digamos, qua artesão ou lógico) —
que o que se precisa para isso é exigido por lei divina. Naturalmente, não é
possível ter tal concepção a menos que você acredite em um Deus legislador,
como os judeus, os estoicos e os cristãos. Porém, se tal concepção foi
dominante por muitos séculos e é depois abandonada, tem-se o resultado
natural que os conceitos de "obrigação", de assumir um encargo ou ser
exigido por lei permanecem, embora tenham perdido sua raiz; e se o termo
"dever" é investido em certos contextos do significado de "obrigação", também
ele permanece sendo empregue com ênfase e sentimento especiais nesses
contextos.

É como se a noção de "criminoso" permanecesse uma vez abolidos e


esquecidos o código penal e as cortes de justiça. Um Hume que se apercebesse
dessa situação concluiria que havia um sentimento especial, expresso pelo
termo "criminoso", que por si só conferia significado à palavra. Hume
descobriu, pois, uma situação em que a noção de "obrigação" sobreviveu e o
termo "dever" estava investido daquela força peculiar segundo a qual é dito
ser usado em sentido "moral", mas a crença na lei divina já tinha sido
abandonada há muito: pois fôra substancialmente deixada de lado pelos
protestantes quando da Reforma.² Se estou correta, é esta a situação
interessante da sobrevivência de um conceito fora do quadro conceitual que o
tornava realmente inteligível.

2 Eles não negavam a existência da lei divina, mas a doutrina mais


característica do protestantismo consistia em asseverar que a lei divina havia sido dada
não para ser obedecida, mas para mostrar a incapacidade humana de a obedecer,
mesmo sob a graça — o que se aplicava não só às prescrições ramificadas da Torá,
como também às exigências da "lei natural divina". Cf., a esse respeito, o decreto de
Trento contra o ensinamento de que se deve crer em Cristo somente como mediador,
mas não obedecer a ele como legislador.

Quando Hume fez suas célebres observações acerca da transição de


"é" a "deve", estava, então, conjugando pontos bastante diversos. Um é o que
tentei evidenciar em minhas observações sobre a transição de "é" a "deve a" e
sobre a "bruteza” relativa dos fatos. Poder-se-ia evidenciar um ponto
diferente ao se investigar sobre a transição de "é" a "precisa de": das
características de um organismo ao ambiente de que precisa, por exemplo.
Não é o mesmo dizer que se precisa de tal ambiente e, e.g., que você deseja
que ele tenha esse ambiente; é, antes, dizer que tal organismo não se
desenvolve a não ser que disponha de tal ambiente. Tudo depende, por certo,
que você queira que tal organismo se desenvolva! como Hume diria. No
entanto, o de que "tudo depende" no caso de você querer que tal organismo se
desenvolva é se o fato que ele precisa de tal ambiente, ou não se desenvolve
sem ele, tem um mínimo de influência sobre seus atos. Ora, que tal coisa
"deva" ou "é preciso" ser o caso é suposto ter influência sobre seus atos, de
onde pareceu natural inferir que julgar que "deve ser" era na verdade anuir
que o que você julgou que "deve ser" influencia suas ações. E nenhum
montante de verdade quanto ao que é o caso poderia logicamente reivindicar
ter influência sobre suas ações. (Não é tal juízo que nos move, mas nosso ju
ízo de alcançar ou fazer o que nos apetece.) Assim, tem de ser impossível inferir
"precisa de" ou "deve" de "é". No caso, todavia, de uma planta, digamos, a
inferência de "é" a “precisa de" por certo não é em nada duvidosa. É
interessante e vale a pena examinar, mas não é nada suspeito. Seu interesse é
semelhante àquele pela relação entre fatos brutos e menos brutos: trata-se de
relações a que pouco se atenta; mas, embora se possa contrastar "o que
precisa" e "o que tem." — como contrastar de facto e de iure —, isso não torna o
fato de precisar de tal ambiente menos "verdadeiro".

Certamente, no caso daquilo que a planta precisa, a apreciação de tal


necessidade só afetará a ação se você quiser que a planta se desenvolva. Aqui,
portanto, não há conexão necessária entre o que você pode julgar que a planta
"precisa" e o que você quer; porém, há certa conexão necessária entre o que
você pensa que você precisa e o que você quer. A conexão é complicada: é
possível não querer algo que você julga precisar. Porém, e.g., não é possível
jamais querer nada que você julga precisar.

Isso, no entanto, não é um fato a respeito do significado de "precisar"


mas sim do fenômeno de querer. O raciocínio de Hume, poderíamos dizer,
levamos a pensar que deve ser a respeito de "precisar" ou "ser bom para".

Há, pois, dois problemas embutidos desde logo na observação a res-


peito da transição de "é" a "deve". Porém, supondo-se que tenhamos aclarado,
de um lado, a "bruteza relativa" dos fatos e, de outro, as noções envolvidas em
"precisar de" e “desenvolver-se", permaneceria ainda um terceiro problema.
Pois, seguindo Hume, alguém poderia dizer: Talvez tenhas provado teu
ponto acerca da transição de "é" a "deve a" e de "é" a "precisa de", mas apenas
a custo de mostrar que frases contendo "deve a" e "precisa de" exprimem um
tipo de verdades, um tipo de fatos. Permanece, no entanto, impossível inferir
"deve moralmente" de "é".

Essa observação, parece-me, estaria correta. O termo "dever", tendo


adquirido força espantosa, não pode, por ter essa força, ser inferido do que
quer que seja. Pode-se objetar que poderia ser inferido de outras sentenças
que contêm um "dever moral", mas isso não pode ser verdadeiro. A aparência
de que o seja é produzida pelo fato que se diz que "todos os homens são ϕ" e
"Sócrates é homem" implica "Sócrates é ϕ", mas ϕ é aqui um predicado
postiço. Queremos dizer que, se você substitui ϕ por um predicado real, a
implicação é válida. Requer-se, pois, um predicado real, não apenas uma
palavra que não contenha nenhum pensamento inteligível: não apenas uma
palavra que, embora retenha a sugestão de força e seja capaz de exercer
vigoroso efeito psicológico, já não designa nenhum conceito real.

Pois o que ele sugere é um veredicto sobre minha ação, em função de


ela concordar ou estar em desacordo com o que a sentença sobre "dever"
descreve. E onde não se pensa haver nem juiz nem lei, a noção de um
veredicto pode reter seu efeito psicológico, mas não seu significado. Imagine
agora que apenas o termo "veredicto" fosse empregue de tal modo — com uma
ênfase caracteristicamente solene — que retivesse sua atmosfera, mas não seu
significado, e alguém dissesse: "para se ter um veredicto, se precisa de uma lei
e de um juiz". Poder-se-ia responder: "de modo algum, pois, caso houvesse
uma lei e um juiz que desse o veredicto, a questão para nós seria se aceitar tal
veredicto é algo sobre o qual há um Veredicto", E isso é análogo a um
argumento a que frequentemente se refere como decisivo: se alguém sustenta
uma posição em ética segundo a qual existe uma lei divina, tem de concordar
que tem de ter o juízo que deve (deve moralmente) obedecer à lei divina.
Assim, sua ética está exatamente na mesma posição que qualquer outra: ele
tem apenas a 'premissa maior prática":³ "deve-se obedecer à lei divina" onde
outros têm, e.g., "deve-se obedecer em todas as decisões ao princípio da maior
felicidade".

Devo julgar que Hume e nossos atuais escritores de ética teriam feito
um belo serviço ao mostrar que não se pode encontrar conteúdo algum na
noção de "dever moral", não fosse o fato que os últimos filósofos tentaram
encontrar um conteúdo alternativo (bastante suspeito) e reter a força
psicológica do termo. Teria sido mais razoável abandoná-lo. Ele não faz
sentido razoável fora de uma concepção legalista em ética; eles não defendem
essa concepção; e você pode fazer ética sem ela, como nos mostra o exemplo
de Aristóteles. Teria sido um grande avanço se, em vez de "moralmente
errado", fossem sempre invocados gêneros como "inverídico", "impudico"
"injusto". Já não nos indagaríamos se fazer algo é "errado", passando
diretamente de alguma descrição de uma ação a essa noção: indagaríamos,
e.g., se foi injusta, e a resposta por vezes se faria clara de imediato.

Chego agora à época da filosofia moral inglesa marcada por


Sidgwick. Uma surpreendente mudança parece ter lugar entre Mill e Moore.
Mill assume, como vimos, que calcular as consequências particulares de ações
como assassinato e roubo está fora de questão; vimos também que sua posição
é estúpida, porque não fica de todo claro como uma ação pode incidir sob
apenas um princípio de utilidade. Em Moore e nos moralistas acadêmicos
ingleses subsequentes, vemos ser tomado como por demais óbvio que "a ação
correta" significa a ação que produz as melhores consequências possíveis
(reconhecendo-se como consequências os valores intrínsecos atribuídos a
certos tipos de atos por alguns "objetivistas". 4 Ora, segue-se disso que um
homem age bem, subjetivamente falando, se age com vistas ao melhor nas
circunstâncias particulares segundo sua apreciação das consequências totais
dessa ação particular.

3 Como é absurdamente chamada. Visto que premissa maior = premissa que contém o termo que é
predicado na conclusão, é um solecismo falar a seu respeito no que tange ao silogismo prático.
4 Os objetivistas oxonienses evidentemente distinguem entre "consequências" e "valores intrínsecos",
produzindo, com isso, a aparência enganosa de não serem consequencialistas. Contudo, não
sustentam — e Ross explicitamente o nega — que a gravidade de, e.g., obter a condenação de
inocentes é tal que não pode ser sobrepujada, e.g., pelo interesse nacional. Sua distinção entre
“consequências” e “valores intrínsecos", portanto, não tem nenhuma importância.

Ora, segue-se disso que um homem age bem, subjetivamente


falando, se age com vistas ao melhor nas circunstâncias particulares segundo
sua apreciação das consequências totais dessa ação particular. Digo que isso
se segue, não que algum filósofo o tenha dito precisamente assim, pois a
discussão dessas questões pode, evidentemente, se tornar extremamente
complicada: e.g., pode-se ter dúvidas quanto a "tal coisa é a ação correta" ser
uma formulação satisfatória, pelo fato de as coisas terem de existir para poder
receber predicados — de modo que a melhor formulação seja talvez "estou
obrigado a"; ou, ainda, um filósofo pode negar que "correto" seja um termo
"descritivo", e então tergiversar com uma análise linguística e chegar a uma
concepção idêntica a "a ação correta é a que produz as melhores
consequências" (e.g. a concepção que você formula seus "princípios" a fim de
atingir o fim que você escolhe perseguir, a conexão entre "escolha" e "melhor"
sendo supostamente tal que escolher refletidamente significa escolher como
agir de modo a produzir as melhores consequências); ademais, os papéis dos
assim chamados "princípios morais" e do "motivo do dever" têm de ser
descritos; as diferenças entre "bom", "moralmente bom" e "correto" têm de ser
exploradas; as características especiais de sentenças que exprimem "dever"
têm de ser investigadas. Tais discussões engendram uma aparência de
significativa diversidade de opiniões onde o que é realmente significativo é a
similaridade geral. A similaridade geral se torna evidente quando você
considera que todos os mais renomados filósofos morais acadêmicos ingleses
propalam uma filosofia segundo a qual, e.g., não é possível sustentar que não
pode ser certo matar um inocente como meio para qualquer fim que seja e
quem quer que pense de outro modo está em erro. (Tenho de mencionar
ambos os pontos, pois Hare, por exemplo, enquanto ensina uma filosofia que
encoraja uma pessoa a pensar que matar um inocente é o que se deve escolher
em razão de propósitos superiores, ensina igualmente, penso, que, se um
homem escolhe fazer de evitar matar inocentes por qualquer propósito seu
"princípio prático supremo", não se lhe pode impugnar erro: esse é justamente
"o seu princípio". Porém, penso que o ponto que defendo vale, com essa
qualificação, para qualquer filósofo acadêmico inglês desde Sidgwick). Ora,
isso é significativo, pois significa que todos esses filósofos são incompatíveis
com a ética hebraico-cristã, visto ser característico dessa ética ensinar que há
coisas proibidas quaisquer que sejam as consequências no horizonte, tais como:
escolher matar um inocente por qualquer propósito, por melhor que seja:
punição vicária; traição (com o que designo a ação de obter a confiança de um
homem em assuntos de vulto por meio de promessas de amizade digna de
confiança e a seguir o entregar a seus inimigos); idolatria; sodomia; adultério;
fazer falsa profissão de fé. A proibição de certas ações simplesmente em
virtude de sua descrição como tais e tais tipos identificáveis de ação, não
importando quais consequências ulteriores, por certo não é toda a ética
hebraico-cristã; é, porém, uma notável característica sua. E, se todo filósofo
acadêmico desde Sidgwick escreveu de modo a excluir tal ética, não se
aperceber dessa incompatibilidade como o fato mais importante a respeito
desses filósofos e de suas diferenças como insignificantes em comparação é
evidência cabal de certo provincianismo de pensamento.

É notável que nenhum desses filósofos demonstre qualquer consci-


ência de que haja uma ética com a qual está em contradição; é tido por bem
óbvio por eles todos que uma proibição tal como a de cometer assassinato não
opera em face de certas consequências. No entanto, o rigor da proibição tem
como ponto que não se há de ser tentado por temor ou expectativa das
consequências.

Quando se nota a transição de Mill a Moore, suspeita-se que tenha


sido efetuada em algum lugar por alguém. Sidgwick vem à mente como um
nome provável, e se vê mesmo que a transição ocorre como que casualmente
com ele. Trata-se de um autor bastante enfadonho, e o que nele há de impor-
tante ocorre em apartes, notas de pé de página e pequenas partes de
argumentos que nada têm a ver com sua grandiosa classificação dos "métodos
em ética". Uma teoria ética segundo a qual há uma lei divina reduz-se a uma
variedade insignificante em uma nota de pé de página que nos informa que
"os melhores teólogos" (sabe Deus em quem ele está pensando) afirmam que
devemos obedecer a Deus enquanto ser moral. ἢ ϕoρτικὸς (῾) ἔπαινoς, parece-
se ouvir Aristóteles dizer: “não será vulgar o elogio?" (EN 1178bl6). Sidgwick
é vulgar desse modo: ele pensa, por exemplo, que a humildade consiste em
subestimar os próprios méritos — i.e. em uma espécie de inverdade; que há
leis contra a blasfêmia em razão de ela ser ofensiva aos fiéis; e que ser preciso
no que tange à virtude da pureza é perpetrar ofensa contra seus cânones, algo
que ele reprova os "teólogos medievais” de não o perceberem.
Do ponto de vista da presente investigação, o que há de mais
importante em Sidgwick é sua definição de intenção. Sidgwick define
intenção de tal modo que se tem a intenção de todas as consequências
antevistas de uma ação voluntária. Essa definição é evidentemente incorreta, e
ouso mesmo dizer que ninguém a defenderia hoje. Ele a usa para propor uma
tese moral que seria hoje aceita por muitos, a tese que não ter sentido desejo
algum por algo antevisto, quer seja um fim ou um meio para um fim, é
indiferente no que diz respeito a responsabilidade por esse algo. Usando a
linguagem da intenção mais corretamente e evitando a concepção errônea de
Sidgwick, poderíamos formular a tese assim: não ter a intenção de um efeito
de uma ação é indiferente no que diz respeito à responsabilidade de um
homem por esse efeito. Isso soa bastante edificante; julgo mesmo ser
característico de degenerescências muito ruins do pensamento o fato de
soarem edificantes. Podemos ver em que redunda com um exemplo.
Suponhamos que um homem seja responsável pelo sustento de uma criança.
Por conseguinte, deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim
a fazer de sua parte. Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque não quer
mais fazê-lo; e seria também ruim deixar de lhe dar o sustento porque, ao
deixar de fazê-lo, estaria, digamos, compelindo um outro a fazer algo. (Pode-
se conceder, neste argumento, que compelir esse outro a fazer algo seja digno
de admiração.) Agora, porém, ele tem de escolher entre fazer algo ignóbil e ir
preso; se for preso, segue-se que deixará de dar o sustento à criança. Segundo
Sidgwick, não há diferença quanto à sua responsabilidade por deixar de dar o
sustento à criança entre o caso em que deixa porque não quer mais fazê-lo ou
como meio para algum outro propósito e quando ocorre como consequência
antevista e inevitável de seu aprisionamento antes que cometer um ato
ignóbil. Segue-se que ele tem de sopesar a maldade relativa de deixar de dar o
sustento à criança e a de cometer o ato ignóbil, e pode bem ser o caso que
cometer o ato ignóbil seja uma ação menos viciosa do que intencionalmente
deixar de dar o sustento à criança; se, então, for indiferente, no que diz
respeito à responsabilidade, que deixar de dar o sustento à criança seja um
efeito colateral de seu aprisionamento, essa consideração o inclinará a cometer
o ato ignóbil, o qual pode ser ainda bem ruim. E, evidentemente, quando ele
começar a conceber a questão desse modo, a única coisa razoável a considerar
serão as consequências, não a maldade intrínseca desta ou daquela ação, de
tal modo que, se ele julgar razoavelmente que nenhum dano de grande porte
pode advir disso, ele pode cometer um ato muito mais ignóbil do que deixar
de dar o sustento a uma criança; e, se seus cálculos forem de fato errados, se
mostrará que ele não é responsável pelas consequências, já que não as
anteviu, pois a tese de Sidgwick faz com que seja impossível estimar a
maldade de uma ação a não ser à luz das consequências esperadas. Porém, se é
assim, você deve fazer a estimativa da maldade à luz das consequências que
você espera, e disso se segue que você pode desinculpar-se das consequências
reais da maioria das ações ignóbeis, desde que possa argumentar que você não
as anteviu. Ao passo que eu sustentaria que uma pessoa é responsável pelas
más consequências de suas más ações, mas não recebe o crédito pelas boas
consequências destas, e, inversamente, não é responsável pelas más
consequências de suas boas ações.

A recusa de qualquer distinção, no que diz respeito à


responsabilidade, entre consequências antevistas e consequências
intencionadas não é feita por Sidgwick no desenvolvimento de qualquer
"método em ética": ele introduz esse elemento em nome de todos e por conta
própria. Julgo plausível sugerir que a introdução desse elemento por Sidgwick
explica a diferença entre o utilitarismo antiquado e o consequencialismo, como
o chamo, que é a marca distintiva de Sidgwick e de todo filósofo acadêmico
desde Sidgwick: segundo o consequencialismo, o tipo de consideração que
antes seria julgado uma tentação sobre a qual insistem esposas e amigos
aduladores recebe um status nas teorias dos filósofos morais.

É característica necessária do consequencialismo que seja uma


filosofia rasa, pois sempre há casos-limite na ética. Ora, se você é um
aristotélico ou alguém que crê na lei divina, você lidará com um caso-limite
considerando se fazer tal coisa em tal circunstância é, digamos, assassinato ou
um ato de injustiça; e, conforme decida se é ou não é, julgará que é uma coisa
a ser feita ou não. Esse é o método da casuística; e, ainda que ele permita
distorções nas beiradas, não permite que você destrua o núcleo. Se, porém,
você é um consequencialista, seria estúpido propor a questão "o que é certo
fazer em tal circunstância?". O casuísta propõe tal questão apenas para
indagar "seria permissível fazer tal coisa?", "seria permissível não fazer tal
coisa?". Somente se não fosse permissível não fazer tal coisa diria ele que "isso
seria a coisa a fazer".5 De outro modo, ainda que ele possa depor contra
alguma ação, não pode prescrever ação alguma — pois, em um caso real, as
circunstâncias (além daquelas imaginadas) podem sugerir toda espécie de
possibilidades, e você não pode saber de antemão quais possibilidades se
darão. Ora, o consequencialista não tem base para dizer "isto seria
permissível, isto não" porque, de acordo com sua própria hipótese, as
consequências decidem, e ele não se furta a fingir que pode estabelecer quais
reviravoltas podem ser causadas por um homem ao fazer isto ou aquilo. O
máximo que ele pode dizer é: um homem não deve fazer com que aconteça isto
ou aquilo; o consequencialista não tem o direito de dizer que esse homem, em
um caso real, fará com que aconteça tal coisa a menos que faça tal coisa.
Ademais, o consequencialista, de modo a estar de fato imaginando um caso-
limite, tem de assumir algum tipo de lei ou padrão segundo o qual esse é um
caso-limite. De onde obtém esse padrão? Na prática, a resposta
invariavelmente é: dos padrões correntes em sua sociedade ou círculo. E é de
fato a marca de todos esses filósofos serem extremamente convencionais. Não
há neles nada que inspire uma revolta contra os padrões convencionais de seu
tempo. É impossível que sejam profundos; e a chance de que todo um
espectro de padrões convencionais seja decente é pequena. Finalmente, o
ponto de considerar situações hipotéticas, por vezes bastante improváveis,
parece ser o de produzir em você ou em alguém a decisão hipotética de fazer
algo ruim. Não duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas — que
jamais se verão nas situações para as quais fazem as escolhas hipotéticas — a
dar consentimento a más ações similares, ou a enaltecer e lisonjear quem as
pratique, desde que sua malta a faça também, quando as terríveis
circunstâncias imaginadas não se dão.

Quem reconhece as origens das noções de "obrigação" e de um


"dever" moral enfático na concepção ética da lei divina, mas que rejeita um
legislador divino, por vezes busca em torno a possibilidade de reter uma
concepção legalista sem um legislador divino. Essa busca, penso, contém em
si algum interesse. Talvez o que aparece por primeiro sejam as “normas” da
sociedade.
5 Necessariamente um caso raro, pois os preceitos positivos, e.g., "honrar pai e mãe”
quase nunca prescrevem, e ainda mais raras vezes necessitam, alguma ação particular.

Porém, assim como não é possível se deixar impressionar por Butler


quando se reflete sobre o que a consciência pode ditar às pessoas, igualmente,
penso, não é possível se deixar impressionar por tal ideia quando se reflete
sobre o que podem ser as "normas" de uma sociedade. Rejeito como absurdo
que se possa legislar "para si mesmo". O que quer que você faça "para si
mesmo" pode ser admirável, mas não é legislação. Quando se entende isso,
pode-se dizer: tenho de formular minhas próprias regras e essas são as
melhores que consigo formular, e vou me ater a elas até encontrar algo
melhor — como um homem pode dizer: "vou me ater aos costumes de meus
ancestrais". Se isso leva ao bem ou ao mal depende do conteúdo de tais regras
ou costumes. Com sorte, levam ao bem. Tal atitude seria auspiciosa pelo
menos neste aspecto: parece haver nela certa dúvida socrática onde, ao se ter
de recorrer a expedientes, a dúvida socrática é boa; na verdade, há de ser em
geral bom pensar "talvez de algum modo com o qual eu não atine eu possa
estar errado, talvez isso seja terrivelmente errado em essência". A busca por
"normas" pode levar alguém a procurar por leis da natureza, como se o
universo fosse um legislador, mas nos dias de hoje é pouco provável que isso
produza bons resultados: pode fazer com que os mais fracos se tornem
comida segundo as leis da natureza e dificilmente irá infundir noções de
justiça em alguém: o sentimento pré-socrático sobre a justiça como
comparável a um balanço ou uma harmonia que sustém as coisas nos é muito
remoto.

Há ainda outra possibilidade: a "obrigação" pode ser contratual.


Assim como investigamos as leis para descobrir o que se exige que faça um
homem sujeito a elas, investigamos um contrato para descobrir o que se exige
que faça o homem que o pactuou. Pensadores, reconhecidamente remotos,
tiveram a ideia de um foedus rerum, do universo não como legislador, mas
como a encarnação de um contrato. Assim, caso se descobrisse em que
consistia o contrato, saber-se-iam quais as obrigações que se têm. Ora, não se
pode estar sujeito a uma lei sem que ela tenha sido promulgada, e os
pensadores que creem em uma "lei divina natural” sustentam que ela é
promulgada a todo homem adulto em seu conhecimento do bem e do mal.
Semelhantemente, não se pode estar sujeito a um contrato sem tê-lo assinado,
i.e. sem ter dado sinais de que pactuou tal contrato. Pode-se argumentar que
usar a linguagem como se a usa na conduta comum de vida redunda, em
certo sentido, em dar sinais de ter pactuado diversos contratos. Caso alguém
sustentasse essa teoria, gostaríamos de vê-la elaborada. Suspeito que seria em
larga medida formal. Pode-se erigir um sistema que encarne a lei (cujo status
pode ser comparado ao das "leis" lógicas) "o que vale para um vale para o
outro", mas dificilmente se erigirá um sistema que desça a particularidades
tais como a proibição de assassinato ou sodomia. Além disso, ainda que seja
claramente possível alguém estar sujeito a uma lei que não reconhece como lei
e que não concebeu como lei, não parece razoável afirmar que se pode pactuar
um contrato sem o saber: tal ignorância é geralmente suposta destruir a
natureza do contrato.

Resta buscar por "normas" nas virtudes humanas: assim como o ho-
mem tem tantos dentes, que por certo não são o número médio de dentes que
os homens têm, mas é o número de dentes da espécie, talvez a espécie homem,
considerada não apenas biologicamente, mas do ponto de vista da atividade
de pensamento e escolha nos vários setores da vida — poderes, faculdades e
uso das coisas de que precisa —, "tenha" tais e tais virtudes e este "homem"
com o conjunto completo de virtudes seja a "norma", como o "homem" com,
e.g., um conjunto completo de dentes é a norma. Nesse sentido, porém,
"norma" deixa de ser grosso modo equivalente a "lei". Nesse sentido, a noção de
uma "norma" nos aproxima antes de uma concepção aristotélica do que de
uma concepção legalista em ética. Não há, julgo, nada de ruim nisso, mas caso
se tente com isso dar um sentido a "norma", deve-se reconhecer o que
aconteceu com o termo "norma", que se pretendia que significasse "lei — sem
introduzir Deus": deixou de significar "lei". E, assim, as expressões "obrigação
moral", "dever moral" e "dever" (duty) têm melhor lugar no Index, caso se as
consiga pôr aí.

Entretanto, não estará agora claro que se deve investigar diversos


conceitos simplesmente como parte da filosofia da psicologia e — recomen-
do-o vivamente — banir de vez a ética de nossas mentes? Conceitos como:
"ação", "intenção", "prazer", "desejo". Outros mais provavelmente surgirão se
começarmos com esses. Pode até ser que consigamos passar à consideração do
conceito de virtude, com o que, suponho, estar-se-á dando início a algum tipo
de estudo em ética.
Encerro este texto com a descrição das vantagens de se empregar o
termo "deve" de maneira não-enfática, em vez de em sentido distíntivamente
"moral", e de descartar o termo "errado" em sentido distintivamente moral,
usando, em seu lugar, noções como "injusto".

É possível, caso se possa apenas oferecer exemplos, distinguir entre o


que é intrinsecamente injusto e o que é injusto dadas certas circunstâncias.
Fazer com que um homem seja punido judicialmente por algo que ele cla-
ramente não fez é intrinsecamente injusto. Isso se fez, é claro, e frequentes
vezes, de todas as maneiras: subornando-se testemunhas, por regra legal com
base na qual "se estime" ser o caso algo que admitidamente não é o caso, por
insolência aberta dos juízes e de quem tem poder para tanto ao dizer mais ou
menos abertamente: "dane-se o fato de que você não cometeu o crime; vamos
condená-lo do mesmo jeito". O que é injusto dadas, e.g., circunstâncias
normais é privar pessoas de uma propriedade ostensivamente sua sem o
obter em juízo, não pagar dívidas, não respeitar contratos e outras coisas de
mesmo tipo. Ora, as circunstâncias podem fazer grande diferença ao se
estimar a justiça ou injustiça de assim se proceder e estas circunstâncias
podem por vezes incluir as consequências esperadas. Por exemplo, a alegação
de que se é dono de tal item pode ser anulada se apropriar-se dele e dele fazer
uso podem evitar algum desastre, como, e.g., quando se pode usar uma peça
de maquinário alheia para causar uma explosão que a destruiria, mas por
meio de que se poderia desviar um curso d'água ou impedir o avanço do
fogo. Ora, isso não é o mesmo que dizer que o que seria comumente um ato
de injustiça, mas não é intrinsecamente injusto, pode ser justificado por meio
de um cálculo razoável de consequências; longe disso. No entanto, os
problemas suscitados por uma tentativa de se demarcar uma linha divisória
(ou um intervalo divisório) são evidentemente complicados. E se por certo há
aqui observações gerais a serem feitas e limites a serem delineados, a decisão
nos casos particulares seria às mais das vezes determinada κατὰ τòσ ὀρθòσ
λόγoσ — "de acordo com o que é razoável" —, e.g., se tal atraso no pagamento
de tal dívida para com fulano assim circunstanciado da parte de beltrano assim
circunstanciado seria ou não injusto deve ser decidido apenas “de acordo com
o que é razoável”, para o que não pode em princípio haver outro cânone a não
ser dar alguns exemplos. Em outras palavras, enquanto é em razão de uma
grande lacuna na filosofia que não conseguimos oferecer nenhuma
caracterização geral dos conceitos de virtude e justiça e temos de continuar
usando esses conceitos elucidando-os apenas por intermédio de exemplos, há
uma área em que não é em razão de lacuna alguma, antes é em princípio o
caso que não há caracterização possível a não ser por exemplos, e é aí que o
cânone tem de ser "o que é razoável" — o que, evidentemente, não é um
cânone.

Isso é tudo o que pretendo dizer a respeito do que é justo em certas


circunstâncias, mas injusto em outras; e a respeito de como as consequências
esperadas podem ter um papel na determinação do que é justo. Retornando a
meu exemplo do que é intrinsecamente injusto; se o procedimento consiste em
punir judicialmente um homem pelo que claramente se sabe que ele não fez,
não se pode contestar a descrição de tal ação como injusta. Nenhuma
circunstância, nenhuma consequência esperada que não modifique a descrição
como o procedimento de punir judicialmente um homem pelo que se sabe
que ele não fez pode modificar sua descrição como injusta. Alguém que
tentasse objetar a isso estaria apenas fingindo que não sabe o que "injusto"
significa, pois esse é um caso paradigmático de injustiça.

E aqui se vê a superioridade do termo "injusto" sobre os termos "mo-


ralmente certo" e "moralmente errado". No contexto da filosofia moral inglesa
desde Sidgwick, parece legítimo discutir se pode ser "moralmente certo" em
algumas circunstâncias adotar tal procedimento; no entanto, não se pode
argumentar que tal procedimento seria em qualquer circunstância justo.

Não consigo realizar o trabalho filosófico necessário para tanto — e


penso mesmo que ninguém na presente situação da filosofia inglesa possa
fazê-lo —, mas claro está que um homem bom é um homem justo, e um
homem justo é um homem que habitualmente se recusa a cometer ou tomar
parte em quaisquer ações injustas que pudesse cometer ou em que pudesse
tomar parte em razão de temer certas consequências ou a fim de obter certas
vantagens para si ou para outrem. Talvez ninguém discorde disso. Porém,
dir-se-á, o que é injusto é por vezes determinado pelas consequências
esperadas, o que é certamente verdadeiro; mas casos há em que não o é: se
alguém diz "concordo, mas isso requer muita explicação", esse alguém tem
razão e, o que e mais, a presente situação é tal que não podemos dar uma
explicação: não temos o instrumental filosófico. Mas se alguém realmente
pensa de antemão6 que é questão em aberto saber se uma ação como a de obter
a condenação judicial de um inocente deve ser excluída do horizonte de
consideração, não pretendo discutir com ele: sua mente está corrompida.
Em tais casos, nossos filósofos morais tentam nos propor um dilema.
"Se temos um caso em que o termo 'injusto' se aplica puramente em virtude
de uma descrição factual, não se pode indagar se por vezes se deve cometer
uma injustiça? Se 'o que é injusto' é determinado por considerações a respeito
de ser certo fazer tal coisa em tais circunstâncias, não se pode indagar se é
'certo' cometer uma injustiça, precisamente porque 'errado' foi moldado a
partir da definição de injustiça. Porém, se temos um caso em que a descrição
'injusto' se aplica puramente em virtude dos fatos, sem introduzir a descrição
'errado', pode-se talvez indagar se se 'deve' cometer uma injustiça, se pode ser
'certo' fazê-la. E, evidentemente, 'deve' e 'certo' são aqui usados em seu
sentido moral. Ora, ou bem se deve decidir o que é 'moralmente certo' à luz de
certos outros 'princípios' ou, então, formular um 'princípio' acerca disso e
decidir que nunca é 'certo' cometer uma injustiça. No entanto, ainda que se
opte pela segunda alternativa, está-se indo além dos fatos: está-se tomando a
decisão de não, ou de que é errado, cometer uma injustiça. Contudo, em
ambos os casos, se o termo 'injusto' for determinado simplesmente pelos fatos,
não é o termo 'injusto' que determina que o termo 'errado' se aplica, mas a
decisão que cometer uma injustiça é 'errado' juntamente com o diagnóstico da
descrição 'factual' de modo a implicar injustiça. O homem, todavia, que toma
a decisão absoluta que cometer injustiça é 'errado' não tem base para criticar
quem não toma tal decisão como 'efetuando um julgamento falso'".

6 Se ele o pensar na situação concreta, será evidentemente apenas um ser humano


normal em tentação. Em discussão quando da leitura deste artigo, como talvez se
devesse esperar, imaginou-se a seguinte situação: exigia-se de um governo que julgasse,
condenasse e executasse um homem inocente sob a ameaça de "guerra com bombas de
hidrogênio". Parece-me estranho que se tenha tanta esperança de evitar uma guerra
quando se lida com pessoas que fazem uma ameaça como essa, mas o mais importante
a respeito de como casos assim são inventados em discussões é o pressuposto de que
apenas dois caminhos são possíveis: aqui, aceitar ou evidente desafio. Ninguém pode
dizer de antemão quais são as possibilidades em tal situação — e.g. que não há meio de
ganhar tempo fingindo aceitar e ao mesmo tempo habilmence facilitando a "fuga" da
vítima.

Nesse argumento, explica-se o significado de "errado" como "moral-


mente errado", e toda a atmosfera do termo é retida, ao passo que sua subs
stância é garantida ser nula. Permitam-me lembrar que "moralmente errado" é
herdeiro de "ilícito" ou "o que é obrigatório não fazer", noções que pertencem a
uma teoria ética da lei divina. Aqui, dizer que há a obrigação de não fazer o
que é escrito como “injusto" realmente acrescenta algo à descrição, pois o que
obriga é a lei divina — assim como as regras obrigam em um jogo. Assim, se a
lei divina, ao proibir a injustiça, obriga a não cometer injustiça, dizer que há
uma obrigação de não cometer o que é descrito como injusto realmente
acrescenta algo a descrição. E não é senão porque "moralmente errado" é o
herdeiro de tal conceito, mas um herdeiro desligado da família de conceitos
de que provém, que "moralmente errado" tanto vai além da mera descrição
factual "injusto" como parece não ter conteúdo discernível a não ser certo
poder de exercer coação, que digo ser puramente psicológico. E tal é o poder
do termo que os filósofos chegam a supor que a noção de uma lei divina pode
ser abandonada como se não fizesse diferença alguma sustentá-la — porque
pensam que um "princípio prático" como "devo (i.e. estou moralmente
obrigado a) obedecer às leis divinas" é exigido do homem que crê em leis
divinas. No entanto, a noção de obrigação é uma noção que só opera em
contexto legal. E devo dizer que eu me sentiria obstinada a dar os parabéns
aos filósofos morais atuais por privarem o "dever moral" de sua agora ilusória
aparência de conteúdo se eles não manifestassem um odioso desejo de reter a
atmosfera do termo.
É possível, se formos resolutos, descartar o "dever moral" e tornar ao
"dever" comum que, devemos notar, é um termo tão frequente na linguagem
humana que é difícil nos imaginar sem ele. Ora, se a ele tornarmos, não se
poderá razoavelmente indagar se alguma vez não será preciso cometer uma
injustiça, ou se ela não será a melhor coisa a ser feita? Evidente que sim. E as
respostas serão as mais variadas. Um homem — um filósofo — pode dizer
que visto ser a justiça uma virtude e a injustiça, um vício, e visto que virtudes
e vícios se desenvolvem gradualmente em razão da realização das ações em
que são instanciadas, um ato de injustiça tende a tomar um homem mau e o
prosperar de um homem enquanto homem consiste essencialmente em ser
bom e.g. em virtudes. Porém, para qualquer X a que se aplicam tais termos, X
precisa do que faz com que se desenvolva, de modo que um homem precisa
ou deve realizar ações virtuosas. E ainda que, como se deve admitir que
acontece, ele se desenvolva menos no que não é essencial ao evitar a injustiça,
sua vida será prejudicada ao não evitar a injustiça no que é essencial —
portanto, ele deve realizar apenas ações justas. Grosso modo, é assim que
Platão e Aristóteles se pronunciam sobre o assunto, mas é visível a existência
uma enorme lacuna filosófica, que não pode ser superada no presente, e que
tem de ser superada por uma caracterização da natureza humana, da ação
humana, do tipo de característica que é uma virtude e, acima de tudo, do
"prosperar" humano. E esse último conceito é o que parece mais duvidoso,
pois é difícil engolir que um homem que sofre, passa fome e não tem nem
recursos nem amigos esteja prosperando, como o próprio Aristóteles
reconhece. Ainda, alguém dirá que se tem ao menos de permanecer vivo para
poder prosperar. Um outro, nada impressionado com o que vai acima, dirá
duramente: "o que se precisa é tal coisa, que não alcançaremos se não
fizermos isto (que é injusto) — portanto é isto que devemos fazer". Um outro,
ainda, que não acompanha o raciocínio refinado dos filósofos, simplesmente
diz: "sei que em qualquer situação é ignóbil dizer que seria melhor cometer
uma ação injusta". Quiçá diga quem crê em leis divinas: "é proibido e, não
importam as aparências, não pode ser bom para ninguém cometer injustiças"
— ele, como os filósofos gregos, pode pensar em termos de prosperar. Se for
um estoico, tenderá a ter uma noção bem exigente do que consiste esse
prosperar; se for um judeu ou um cristão, não precisará ter uma noção muito
clara: em que lhe é benéfico abster-se da injustiça é algo cuja determinação ele
entrega a Deus, ele próprio dizendo apenas: "não me pode ser bom ir contra
sua lei". (Ele também tem a esperança de uma grande recompensa mais tarde
em uma nova vida quando, e.g., da vinda do Messias, mas no que diz respeito
a isso ele se baseia em promessas especiais).
Coube à filosofia moral moderna — a filosofia moral de todos os
renomados escritores de ética ingleses desde Sidgwick — elaborar sistemas de
acordo com os quais o homem que diz "precisamos de tal coisa e apenas de tal
modo a conseguiremos" pode ser um homem virtuoso: em outras palavras, é
para eles uma questão em aberto saber se um procedimento como a punição
judicial do inocente pode ser em certas circunstâncias o procedimento
"correto" a ser adotado. E muito embora os filósofos morais oxonienses deem
permissão a um homem para "fazer seu princípio" não cometer tal ato, eles
ensinam uma filosofia segundo a qual as consequências particulares de tal
ação poderiam "moralmente" ser levadas em consideração por um homem que
estivesse debatendo o que fazer; e, fossem elas tais que estivessem de acordo
com seus fins, poderia ser um passo em sua educação moral formular um
princípio moral sob o qual ele "lograsse" (para empregar um termo de
Nowell-Smith)7 pôr a ação; ou poderia ser que se tratasse de uma nova
"decisão de princípio", efetuar a qual seria um progresso na conformação de
seu pensamento moral (para adotar a concepção de Hare), decidir que em tais
e tais circunstâncias deve-se obter a condenação judicial de inocentes. E essa é
a minha queixa.
7 Ethics (Harmondsworth: Penguin Books, 1954), p. 308.

Texto originalmente publicado em Philosophy (Journal). Vol. 33, nº 124, 1958, pp. 1-19.

Tradução do livro Sobre a ética nicomaqueia de Aristóteles. Odysseus, 2010, pp. 19-41.

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