Sie sind auf Seite 1von 16

CUIDADOS METODOLÓGICOS NO ESTUDO

DA HISTÓRIA DO DIREITO DE PROPRIEDADE

Sérgio Said Staut Jr.*

RESUMO: A obra “Senhores e Caçadores”, de Edward Thompson, proporciona um excelente


exemplo da formação da noção moderna de propriedade. Demonstra o valor que começa a
assumir, na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, um espaço fechado ou um objeto delimitado
de uso e gozo exclusivo, praticamente absoluto e restrito de um senhor, denominado
proprietário, sujeito de direito. Partindo desse interessante relato histórico, o presente trabalho
analisa alguns cuidados metodológicos no estudo da história do direito de propriedade a
partir das reflexões do historiador italiano Paolo Grossi.

1 SENHORES E CAÇADORES: UM dessa lei em maio de 1723, denominada “9


CASO PARADIGMÁTICO George I c. 22”, que ficou conhecida como
“A Lei Negra”, 2 foram criados mais de
Edward P. Thompson, um dos maiores
cinqüenta novos delitos capitais.
historiadores do século XX, na sua importante
A “Lei Negra” foi elaborada com o intuito,
obra “Senhores e Caçadores”, analisa entre
ou pretexto, de proteger as florestas e os
outras questões a história de uma lei na
Inglaterra do século XVIII.1 Com a aprovação bosques ingleses contra os “caçadores
clandestinos” e evitar “desordens sociais”
que vinham ocorrendo especialmente nas
* Mestre em Direito pela UFPR e Doutorando
em Direito das Relações Sociais na área de História do
Direito no Programa de Pós-Graduação da Faculdade
de Direito da UFPR. Professor e Advogado. 2 Essa lei foi denominada de “A Lei Negra” em

1 Deve ser observado que Edward Thompson em “homenagem” aos caçadores das florestas inglesas
“Senhores e Caçadores” vai muito além da observação que, para capturarem de maneira mais fácil os
histórica de uma lei, o autor por meio da reconstrução animais selvagens, especialmente os servos (gamos
de vários acontecimentos que marcaram o percurso ou veados), utilizavam o artifício de pintar os rostos
da Lei Negra analisa o que representou o século XVIII de negro, geralmente com carvão, ficando assim
na Inglaterra e o próprio papel do direito naquele camuflados. (THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores.
período histórico. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989).

155
regiões em torno das Florestas de Windsor e à força de qualquer pessoa presa por qualquer
de Hampshire. um desses delitos.”5
Em virtude da amplitude e abrangência Assim, a simples caça sem autorização
da “Lei Negra”, que extrapolava em muito a de um animal na floresta, mesmo que para
simples defesa das florestas inglesas e a comer; a destruição da cabeceira de um lago
contenção dos distúrbios sociais, dificilmente piscoso; a derrubada de uma árvore ou a
uma conduta criminosa não poderia ser coleta de lenha numa região não permitida;
encaixada nessa nova lei.3 ou o fato da pessoa ser encontrada armada
Conforme relata Thompson, o “principal ou disfarçada vagando por uma floresta, são
conjunto de infrações era a caça, ferimento ou alguns exemplos de crimes punidos com a
roubo de gamos ou veados, e a caça ou pesca
pena de morte pela “Lei Negra”.
clandestina de coelhos, lebres e peixes.”4
Em virtude tanto de “sua severidade
Todas essas infrações eram “passíveis de
como pelo caráter frouxo e indiscriminado
morte se os infratores estivessem armados
do seu esboço, a Lei não tinha precedentes.
e disfarçados, e, no caso dos cervos, se os
Fornecia um versátil arsenal de morte
delitos fossem cometidos em qualquer
adequado para a repressão de muitas formas
floresta real, ou estivessem os delinqüentes
de distúrbio social.”6
armados ou não. Outros delitos referiam-se à
Além disso, a “Lei Negra” serviu, em grande
destruição da cabeceira ou outeiro de
medida, aos interesses dos proprietários,
qualquer lago piscoso; ao abate ou mutilação
especialmente à oligarquia Whig, 7 que
dolosa de cabeças de gado; à derrubada de
árvores ‘plantadas em qualquer aléia ou em adquiriram, com essa nova lei, um importante
crescimento em qualquer jardim, pomar ou instrumento legal não apenas de defesa de
plantação’; ao ateamento de fogo a qualquer suas propriedades “imóveis” (propriedades
casa, celeiro, meda de feno etc.; a disparos rurais, parques, florestas e a própria casa)
dolosos contra qualquer pessoa; ao envio de e de suas propriedades “móveis” (gado,
cartas anônimas exigindo ‘dinheiro, veação animais selvagens, lenha, turfa etc.), mas,
ou qualquer outra coisa de valor’; e ao resgate conforme observa Thompson, um meio para
a consolidação da noção moderna de
propriedade como um, ou talvez “o” direito
3 Thompson observa que, apesar da nova lei natural, absoluto, exclusivo e inviolável.
prever em torno de cinqüenta delitos capitais, um
“cálculo mais rigoroso, porém mais legalista,
considerando as diversas categorias de pessoas a
cometer cada infração (armadas ou não, disfarçadas 5 THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... p. 22.
ou não, principais responsáveis em primeiro ou
6 THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... p. 247.
segundo grau, cúmplices etc.), resulta num total de
200 a 250 delitos. Além do mais, a Lei estava 7 Nas palavras de Thompson: “Certamente tentei
esboçada de modo tão vago que se converteu em
mostrar, na evolução da Lei Negra, uma expressão
terreno prolífico para decisões judiciais cada vez
da ascendência de uma oligarquia Whig, que criou
mais abrangentes.” (THOMPSON, E. P. Senhores e
novas leis e distorceu antigas formas legais, a fim de
Caçadores..., p. 23).
legitimar sua propriedade e status próprios;”
4 THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... p. 22. (THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... p. 351).

156
Qualquer perturbação ao sagrado direito de propriedade como delitos capitais.”.9 Bruxas
propriedade deveria ser punida com a morte. e feiticeiros não eram mais torturados e
Ressalta-se, ainda, que os acontecimentos queimados na Europa civilizada, eram os
envolvendo a “Lei Negra” demonstraram o crimes contra a propriedade que mandavam
papel, inúmeras vezes, desempenhado pelos as pessoas à forca. Eis a evolução e
Estados Modernos na defesa da propriedade humanização do direito moderno.
privada. Como ensina Thompson, “O Estado Como demonstra de forma muito interessante
britânico, concordavam todos os legisladores Thompson, a história da “Lei Negra” é uma
do século 18, existia para preservar a história complexa. A reconstrução histórica
propriedade e, incidentalmente, as vidas e realizada pelo autor e sua análise atestam que
liberdades dos proprietários (...) [e] talvez as relações conflitantes e os direitos
nenhum acontecimento tenha contribuído envolvidos naquele período abrangiam
tanto para acostumar a mentalidade das muito mais do que um simples conflito entre
pessoas a esse método de Estado do que a delinqüentes (caçadores) e proprietários
aprovação de 9 George I c. 22, que veio a ser (senhores), em um contexto marcado por
conhecida como ‘A Lei Negra de Waltham’ uma lei rigorosa e injusta. Em “Senhores e
ou simplesmente, ‘A Lei Negra”.8 Caçadores” observa-se, de certa maneira, a
Entretanto, um dos temas mais passagem e o embate de concepções feudais
importantes abordadas no livro, e esse é um de pertencimento para uma visão moderna
ponto fundamental do presente trabalho, é a em matéria de propriedade e de sua regulação
questão do embate entre direitos ou, talvez, jurídica. Parece ser possível falar em ruptura.
um conflito entre concepções de mundo Em “Senhores e Caçadores” observar-se
profundamente diversas. Nesse ponto, a “Lei uma disputa entre os direitos e costumes
Negra” parece ser um caso emblemático não feudais envolvendo diferentes relações de
apenas do século XVIII, mas de toda a história pertencimento e o direito moderno abstrato
da Modernidade. e “universal” de propriedade privada, de
Em uma passagem de “Senhores e caráter individual e exclusivo, que estava em
Caçadores” a mudança dos tempos e do ampla expansão e consolidação não apenas
direito resta expressa com muita clareza e, na Inglaterra do século XVIII. Segundo
por isso, deve ser ressaltada: “Sob alguns Thompson, o “que muitas vezes estava em
aspectos, o século 18 demonstrou uma questão não era a propriedade defendida pela
tolerância: homens e mulheres não eram mais lei contra a não-propriedade; eram outras
mortos ou torturados, por suas opiniões ou definições dos direitos de propriedade; para
crenças religiosas, como feiticeiros ou o proprietário de terras, o fechamento das
heréticos; políticos destituídos não mais terras comunais; para o trabalhador rural, os
subiam ao cadafalso. Mas, a cada decênio, direitos comunais; para os funcionários das
definiam-se mais e mais invasões da florestas, ‘terrenos preservados’ para os

8 9 THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... p. 254.


THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... p. 21.

157
servos; para os habitantes da floresta, o direito que começa a assumir, na Inglaterra dos
de apanhar torrões de grama.”10 séculos XVII e XVIII, um espaço fechado ou
Para os trabalhadores rurais, para os um objeto delimitado de uso e gozo
moradores da floresta, bem como para as exclusivo, praticamente absoluto e restrito
pessoas acostumadas a retirar o seu sustento de um senhor, denominado proprietário,
do campo e das florestas, romper com alguns sujeito de direito. 11 Thompson verifica,
costumes e tradições feudais representava ainda, através desse caso concreto, a mudança
de direitos e o papel desempenhado pela
uma séria violação aos direitos preservados
nova ordem legal e pelo próprio Estado na
e protegidos por inúmeras gerações. Não
defesa de interesses proprietários. O historiador
respeitar as antigas posses e ocupações
inglês observa uma mudança de sentido na
costumeiras, impedir pessoas da região de
própria sociedade em direção a uma postura
residir, cortar madeira, pegar galhos, apanhar
extremamente individualista12 e potestativa
turfa, recolher madeira e caçar nas “suas”
na sua relação com as coisas e, enfim,
florestas, significava uma clara ruptura com demonstra que os conceitos jurídicos não
o direito até então vigente naquelas regiões. podem ser afastados do seu chão e do seu tempo.
Conforme observado, diferentes direitos
e diferentes fundamentações, uma disputa de,
2 PROPRIEDADE E HISTÓRIA
pelo menos, dois grandes períodos históricos.
Mas não era só isso, existiam também outros O interessante exemplo retirado de
interesses em jogo. Não era apenas aos “Senhores e Caçadores” demonstra a
proprietários que interessava a “Lei Negra”. necessidade de se analisar com muito cuidado
Como relata Thompson, existia naquele a relação entre as pessoas e as coisas. Quando
período toda uma burocracia que cuidava
ou pelo menos deveria cuidar das florestas,
11 Conforme explica Bernard Edelman, “A
mas que em realidade utilizava as suas
ideologia denuncia-se delineando o seu acto de
prerrogativas e os seus poderes em benefício nascimento. E o seu acto de nascimento é o postular
próprio, apropriando-se privativamente dos que o homem é naturalmente um sujeito de direito,
isto é, um proprietário em potência, visto que é de
bens extraídos dos parques e das florestas sua essência apropriar-se da natureza.” (EDELMAN, B.
do Rei. Além disso, essa lei fornecia aos O direito captado pela fotografia. Coimbra:
Centelho, 1976. p.25).
governantes um forte instrumento (legislativo)
12 Em passagem muito interessante Gerd
para a repressão de qualquer perturbação ou
Bornheim exprime essa mudança de sentido ao
revolta social. trabalhar com a noção de propriedade privada aos
Sem dúvida, a obra “Senhores e Caçadores”, moldes elaborados pela burguesia. Nas palavras de
Gerd Bornheim: “Abrevio o tema dizendo que o
de Edward Thompson, proporciona um
súdito medieval, o homem subordinado ao rei e ao
excelente exemplo da formação da noção papa, empenhavam-se em construir as muralhas da
moderna de propriedade. Demonstra o valor cidade e mesmo as do império; o burguês, como
que emoldurando os seus procedimentos de auto-
afirmação, despreocupa-se da cidade e limita-se à
construção do muro que protege a sua própria casa.”
10 THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... (BORNHEIM, G. O Sujeito e a norma, In: NOVAES, A.
p. 351. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 250).

158
se fala em propriedade e de sua regulamentação Essa concepção metodológica depende,
jurídica é necessário observar que “por trás entretanto, do que se entende por História e
de uma mesma morfologia geralmente há, em qual o papel da História do Direito no
perspectiva histórica, uma muito diversa desenvolvimento da pesquisa e da reflexão
semântica.”13 É necessário ir um pouco além acadêmica. Orientação importante a ser
da mera semelhança terminológica das seguida é dada por Paolo Grossi: “um dos
construções jurídicas. papéis, e certamente não o último, do
Não é possível esquecer que o direito historiador do direito junto ao operador do
é um produto histórico 14 e, por isso, a direito positivo seja o de servir como sua
compreensão das categorias e dos institutos consciência crítica, revelando como complexo
jurídicos, bem como das suas implicações o que na sua visão unilinear poderia parecer
na realidade, não pode estar distanciada do simples, rompendo as suas convicções
estudo e da reflexão a respeito das diferentes acríticas, relativizando certezas consideradas
temporalidades e localidades em que foram absolutas, insinuando dúvidas sobre lugares
pensados e idealizados os diferentes direitos. comuns recebidos sem uma adequada
A reflexão sobre direito e propriedade deve confirmação cultural”.16
estar atenta à realidade, aberta a críticas e A História do Direito não pode ser utilizada
consciente do ambiente econômico, político para justificar e legitimar simplesmente a
e cultural em que foi constituído.15 propriedade moderna. Entender a propriedade
na sua profunda historicidade tem a função de
dessacralizar, relativizar o moderno direito
13 FONSECA, R. M. A “Lei de Terras” e o advento
“natural” de propriedade e compreender
da propriedade moderna no Brasil, “in”: Anuário
Mexicano de Historia del Derecho, México: Instituto que “aquela” concepção de propriedade
de Investigaciones Jurídicas Unam n. 17, ano 2005, corresponde a “uma” forma de propriedade e
p.97-112. p. 98.
não “a” única maneira de entender e regular
14 Nas palavras de António Manoel Hespanha:
juridicamente a relação entre os homens e
“A História do direito realiza esta missão sublinhando
que o direito existe sempre em sociedade e que, seja
qual for o modelo usado para descrever as suas relações
com os contextos sociais (simbólicos, económicos, 16 GROSSI, P. Mitologias jurídicas da modernidade.
etc.), as soluções jurídicas são sempre contingentes Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 11.
em relação a um dado envolvimento (ou ambiente). A compreensão da História do Direito, no presente
São, neste sentido, sempre locais.” (HESPANHA, A. trabalho, também parte do entendimento de que a
M. Panorama histórico da cultura jurídica européia. função dessa disciplina, ou como quer Hespanha, “a
Lisboa: Publicações Europa-América, 1997. p. 15). missão da História do Direito é antes a de
15 Nessa linha, conforme sustenta Ricardo problematizar o pressuposto implícito e acrítico das
Marcelo Fonseca, deve-se entender “a história não disciplinas dogmáticas, ou seja, o de que o direito dos
apenas como uma ‘introdução’ ao estudo ou à nossos dias é o racional, o necessário, o definitivo.”
análise que, após ser utilizada sem critério, não (HESPANHA, A. M. Panorama histórico…, p. 15).
será retomada em nenhum outro momento da Para uma ampla discussão metodológica sobre a
pesquisa: a história pode (e deve) atravessar o próprio História do Direito, ver a monografia de Mestrado
estudo, constituindo o seu cerne metodológico.” de Ricardo Marcelo Fonseca, da UFPR, intitulada
(FONSECA, R. M. A história no direito e a verdade no “Direito e História: relações entre concepções de
processo: o argumento de Michel Foucault. Genesis, história, historiografia e a história do direito a partir
Curitiba, n.º 17, p.570-585, jul./set. 2000. p. 574). da obra de António Manuel Hespanha”.

159
as coisas. Trata-se de um trabalho de desenvolvidos por Paolo Grossi, verificar
desmitificação,17 perspectiva que “retira o e evitar os principais “riscos culturais” na
caráter absoluto das certezas de hoje, análise da propriedade e de sua história.
relativiza-as pondo-as em fricção com certezas
diferentes ou opostas experimentadas no 3 PESADO CONDICIONAMENTO
passado, desmitifica o presente, garante que MONOCULTURAL DA PALAVRA
sejam analisadas de modo crítico, liberando PROPRIEDADE
os fermentos atuais da estática daquilo que
é vigente e estipulando o caminho para a O primeiro grande risco cultural ao se
construção do futuro.”18 trabalhar com a idéia de propriedade, segundo
Para percorrer o caminho proposto são Paolo Grossi, é o pesado condicionamento
necessários alguns cuidados metodológicos cultural que a expressão propriedade
na análise historiográfica da propriedade. adquiriu na Modernidade.20 A referência ao
Nessa linha, as reflexões de Paolo Grossi termo propriedade (especialmente privada)
sobre história do direito de propriedade e carrega, e não é de hoje, um significado muito
demais formas de pertencimento (ou das específico na história, limitado a uma
relações entre as pessoas e as coisas) são concepção individualista e potestativa da
fundamentais e devem servir como um norte relação entre os homens e os bens.
ao desenvolvimento de toda pesquisa em A palavra propriedade remete habitualmente

relação ao tema. Paolo Grossi é conhecido e a uma forma de apropriação dos bens que
especialmente reconhecido por suas parte sempre de um sujeito proprietário e de
reflexões sobre a propriedade. Como afirmou seu poder exclusivo e soberano21 sobre as
o grande jurista espanhol Francisco Tomás y coisas, ou seja, uma perspectiva de propriedade
Valiente: “Grossi es el gran historiador de la que adquiriu uma posição hegemônica quase
propiedad.”19 Deve-se, observando alguns que absoluta na Modernidade.
dos cuidados metodológicos sugeridos e Deve-se tomar cuidado ainda que o termo
seja utilizado no plural. Nas palavras de
Grossi, “la nostra insegna [La proprietà e le
17 Segundo Paolo Grossi, “O historiador, que por proprietà], pur con tutte le sue pluralizzazioni,
profissão é um relativizador e, conseqüentemente, porta impresso il richiamo ingombrante a un
um desmitificador, sente-se no dever de advertir o universo ´proprietario`, e proprietà è sempre
jurista que um nó como esse pode e deve ser desfeito,
e que seu olhar deve ser liberado da lente vinculante un minimo di appartenenza, di poteri esclusivi
colocada diante de seus olhos por duzentos anos de e dispositivi conferiti a un determinato
habilíssima propaganda.” (GROSSI, Paolo.
soggetto dall`ordine giuridico. Parlare
Mitologias jurídicas da modernidade, Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2004. p. 12).
18 GROSSI, P. Mitologias jurídicas..., p. 26.
20 GROSSI, P. Il dominio e le cose: percezione
19 TOMÁS Y VALIENTE, F. Laudatio a Paolo Grossi
medievali e moderne dei diritti reali. Milano: Giuffrè,
“in” CAPPELLINI, P. et alii. De la Ilustración al
1992, p.603 e segs. p. 603-609.
Liberalismo: symposium em honor al profesor Paolo
Grossi. Madrid: Centro de estudios constitucionales, 21 GROSSI , P. L’inaugurazine della proprietà

1995. p. 34. moderna. Napoli: Guida Editori, 1980, p. 23.

160
soltanto di proprietà, anche se al plurale, existir, pois, a “figura do sujeito proprietário –
significa restare ben racchiusi entro la nicchia dependendo de uma visão individualista e
di una cultura dell`appartenenza individuale. antropocêntrica – ainda não encontra lugar.”25
E questo è un orizzonte troppo angusto.”22 O primado é do todo sobre o individual.26 Só
Paolo Grossi, em um trabalho muito foi possível o nascimento e o desenvolvimento
interessante intitulado “Un altro modo di de uma visão individualista e potestativa de
possedere”, vai demonstrar que na Europa propriedade em um tempo e local em que o
do século XIX, em plena consagração do indivíduo é a medida e o fundamento de
modelo burguês de apropriação privada, todas as coisas.
surge com força na consciência jurídica desse Observando os exemplos acima esboçados
século a reflexão a respeito de formas das propriedades coletivas, das diferentes
coletivas de propriedade e inúmeras outras relações de pertencimento em outras
relações entre as pessoas e os bens, abalando civilizações, que não a moderna civilização
a monocracia da propriedade individual. européia ocidental, e analisando outros
Evidentemente que esse “corpo estraneo períodos históricos como a Idade Média, é
nell’organismo ottocentesco doveva essere possível concluir que a palavra “proprietà
o assorbito o rigettato. E fu rigettato.”23 deve essere soltanto un artifizio verbale per
Além disso, como nos explica esse autor, indicare la soluzione storica che un
em inúmeras outras civilizações africanas, ordinamento dà al problema del legame
asiáticas e até mesmo americanas existem giuridico più intenso fra um soggeto e un
“pianeti giuridici diversi dove non è tanto la bene”.27 Não é demais alertar: apesar das
terra che appartiene all`uomo ma piuttosto mesmas palavras ou expressões os sentidos
l`uomo alla terra, dove l`appropriazione históricos podem ser muito diversos.
individuale appare invenzione sconosciuta
o assetto marginale”.24 Sistemas profundamente
4 O CARÁTER ABSOLUTO DO
diferentes em que o primado é do objetivo
DISCURSO JURÍDICO DA
sobre o subjetivo.
PROPRIEDADE
Analisando algumas linhas gerais do
direito medieval (europeu) e a maneira Um segundo risco cultural que deve ser
como a relação entre homens e coisas era evitado no estudo da história do direito de
compreendida, também se observa que a
noção moderna de propriedade, presa ao
ideário de um sujeito titular de poderes sobre 25 FONSECA, R. M. A Lei de terras e o advento

a coisa, não tinha nenhuma possibilidade de da propriedade..., p.102-103.


26 Sobre a civilização medieval, explica Grossi:

“A livello sociale non emerge l’individuo, creatura


22 che sarebbe condannata a morte nella sua solitudine
GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p.606.
in modo non dissimile dalla formica avulsa dal suo
23 GROSSI , P. Un altro modo di possedere: formicaio”. (GROSSI, P. Dalla società di società alla
l’emersione di forme alternative di proprietà alla insularità dello stato fra medievo ed età moderna,
coscienza giuridica postunitaria. Milano: Giuffrè, Napoli: Istituto Universitario Suor Orsola Benincasa,
1977. p. 14. s/d. p.14).
24 GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p.607. 27 GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p.605-606.

161
propriedade é a absolutização da idéia de dois grandes problemas na reflexão da
propriedade nos moldes em que foi pensada história do direito de propriedade. Uma
na Modernidade, sedimentada sobre as bases primeira distorção decorre da compreensão
do individualismo proprietário.28 Segundo do passado como um simples prelúdio do
Paolo Grossi, “Storicizzare l`archetipo è presente ou como uma simples continuidade
esigenza ovvia ed elementare per lo storico do que se tem hoje, e a propriedade acaba
del diritto”.29 por ser entendida como uma construção
Ocorre que uma determinada concepção praticamente imutável, estática, o que implica
de propriedade, marcada por uma perspectiva em eliminar a historicidade própria do conceito.
profundamente subjetiva da relação entre os Uma outra grave distorção, que decorre dessa
falsa noção de linearidade, é apresentar o
homens e as coisas, fruto de uma mudança
direito moderno de propriedade como fruto
antropológica radical, passa a ser entendida
da constante evolução das relações sociais,
e tutelada pelo moderno direito estatal como
das teorias e dos institutos jurídicos, deixando
um direito natural por excelência, e a história
“claro” a ilusão que os “tempos atuais” são
é utilizada por um certo discurso historiográfico
melhores que o passado e a humanidade
para a sua justificação e legitimação.
caminha em direção ao progresso.
Esse procedimento historicista,30 que se
A propriedade privada é interiorizada
caracteriza especialmente por trabalhar com
através do procedimento histórico.31 Nas
o passado de forma linear, causa no mínimo
palavras de Paolo Grossi: “La soluzione storica
tende a diventare ideologia facendo un
28
clamoroso salto di piani, e il modesto istituto
Individualismo proprietário que não concebe
o direito sem a proteção privilegiada da propriedade giuridico che è conveniente tutelatore di
de matriz individualista, excludente e patrimonialista. determinati interessi di ceto e di classe, è
Como observa José Antônio Peres Gediel, “A liberdade
de apropriação privada de bens assegurada pela lei e
sottratto alla relatività del divenire e
garantida pelo Estado passou a atribuir ao proprietário connotato di assolutezza. L`istituto da
poderes exclusivos de fruição das potencialidades coagulo sociale rischia sempre di diventare
econômicas dos bens apropriados, em oposição aos
demais sujeitos.” (GEDIEL. J. A. P. Os transplantes un modello, la rappresentazione della
de órgãos e a invenção moderna do corpo. Curitiba:
Moinho do Verbo, 2000. p. 16).
29 GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p.611. 31 Nessa linha de raciocínio vale lembrar a lição

30 Segundo Ricardo Marcelo: “Em suma, este de José Reinaldo de lima Lopes : “Quais as mudanças
discurso histórico do direito (que aqui eu chamaria pelas quais passou a propriedade ao longo da história?
de historicismo jurídico) acaba desempenhando a Especialmente, considerada a tradição ocidental de
função de justificar e legitimar o direito de hoje, estudo do direito desde o século XII, quais as
contribuindo, em certa medida, para imunizá-lo de diferenças observáveis? Uma primeira intuição pode
críticas em prol de uma suposta ‘tradição histórica’.” levar qualquer um à idéia de que propriedade é uma
(FONSECA, R. M. A história no direito..., p. 573). categoria do espírito, uma categoria sempre igual a
Deve ser verificado, como demonstra Ricardo Marcelo si mesma. Aí começam as armadilhas. Certamente
Fonseca, que do ponto de vista metodológico o uma distinção entre meu e teu pode ser universal.
historicismo (história tradicional) é uma história Mas a propriedade, como regime jurídico, tem
positivista, perspectiva também adotada no presente formas muito distintas ao longo da história.” (LOPES,
trabalho. (FONSECA, R. M. Direito e história...). J. R. L. O direito na História, p. 401.)

162
validità suprema, l`ápice espressivo d`una 5 ABORDAGEM FORMALISTA DO
ricerca del bene sociale.”32 A concepção DIREITO DE PROPRIEDADE
individualista e potestativa de propriedade
Um outro cuidado metodológico na
é absolutizada e imunizada de qualquer reflexão
análise histórica da propriedade e das
crítica. A forte propaganda revolucionária
propriedades é compreender que estas noções
burguesa conseguiu naturalizar o que em
e a sua regulação no âmbito do direito não
realidade é histórico.
são apenas um conjunto formal de normas e
Deve-se evitar a armadilha de compreender
regras devidamente concatenadas. Como
o passado de forma linear, como se tudo fosse
explica Grossi, “La proprietà non consisterà
uma relação pura e simples de causa e efeito,
mai in una regoletta tecnica ma in una
pois o “estudo linear da história do direito,
risposta all`eterno problema del rapporto fra
(que amontoa tudo o que já passou numa
uomo e cose, della frizione fra mondo dei
superposição harmônica e coerente de
soggetti e mondo dei fenomeni, e colui che
institutos jurídicos através do tempo) acaba
si accinge a ricostruirne la storia, lungi
impondo uma lógica ao passado que em
dal cedere a tentazioni isolazionistiche,
verdade lhe é estranha, ao mesmo tempo em
dovrà, al contrario, tentar di collocarla
que lança sobre a época pretérita as questões,
sempre all`interno di uma mentalità e di un
preocupações, valorações e ansiedades que
sistema fondiario con funzione eminemente
pertencem ao presente”.33
interpretativa.”35
Abandonando o discurso historicista,
A compreensão do direito de propriedade
verifica-se que a construção da propriedade
como um complexo de regras é resultado de
como um direito abstrato, individual,
uma armadilha do moderno direito burguês,
praticamente absoluto de usar, gozar e dispor,
um direito monopolizado pelo Estado e
consagrada no movimento de codificação
praticamente reduzido à figura da Lei
(especialmente no Código Civil Francês) é
(primado ou até mesmo exclusividade da Lei
uma invenção moderna e não um instituto
sobre todas as outras fontes do direito).
trans-histórico como “se fosse um diamante
Na civilização jurídica moderna o direito
que desde sempre foi valioso, e que o tempo,
sofre um processo violento de redução
no máximo, teve a função de lapidar com
e simplificação ao ser colonizado pelo
capricho e sabedoria, de modo a transformar
Estado e retirado do espaço plural da
essa pedra numa jóia cada vez mais
sociedade. Grossi denomina esse processo de
preciosa.”34 Relativizar e desmitificar esse
“absolutismo jurídico”.36
pensamento é obrigação do historiador do
direito de propriedade.
35 GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p.614.
36 GROSSI , P. Assolutimo giuridico e diritto
32 GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p.609-610. privato, Milano: Giuffrè, 1988. Segundo esse autor,
33 “Assolutismo giuridico significa una civiltà giuridica
FONSECA, R. M. A história no direito..., p. 572.
che perde (o attenua di parecchio) la percezione
34 FONSECA, R. M. A Lei de Terras e o advento
della complessità; una civiltà giuridica che è divenuta
da propriedade..., p. 97-98. un ordine semplice, estremamente coerente nelle sue

163
Nesse direito pós-revolucionário marcado ser uma fonte unitária (forte monismo
por sua pretensão à totalidade e universalidade, jurídico – em que a lei proveniente do Estado
bem como por sua estatização, a forma é a fonte quase que exclusiva do direito);
Código37 (o Código no seu modelo moderno) ii) tende a ser fonte completa (toda a
filho do Iluminismo e de inspiração experiência, toda a realidade são reduzidos
jusnaturalista (racionalista) é o grande a um sistema de regras jurídicas); iii) tende a
símbolo dessa nova mentalidade jurídica e o ser fonte exclusiva (o direito estatal como a
abrigo privilegiado do sagrado direito de única fonte legítima de direito, materializada
propriedade privada. “O jusnaturalismo vem no Código). “Como norma que presume
a desembocar no mais agudo positivismo prender a complexidade do social em um
jurídico, e o Código, mesmo se portador de sistema fechado, o Código, toda codificação,
valores universais, é reduzido à voz do somente pode traduzir-se em uma operação
soberano nacional, à lei positiva desse ou drasticamente redutiva (...)”.40
daquele Estado.”38 Esse processo de codificação é fruto de
A forma Código tem a pretensão de um determinado momento histórico marcado
regular todas as zonas do ordenamento pela hegemonia da burguesia em sociedade,
jurídico, especialmente a propriedade. Isso pelo desenvolvimento do capitalismo e do
significa dizer que até o final do século XVI liberalismo econômico, pela constituição dos
o que era regulado e normalizado fora do Estados Liberais, entre outros fatores. O Direito,
poder soberano, pela própria sociedade, nesse mundo moderno (especialmente com
através de práticas e costumes, passa a ser a codificação francesa), passa a ser muito
regulamentado por uma única lei, abstrata e mais loi e sempre menos droit.41 Não é sem
geral. “O drama do planeta moderno razão que as fontes legislativas e sua história
consistirá em realizar o processo de absorção assumem fundamental importância de
de todo o direito na lei, na sua identificação legitimação do atual sistema de apropriação.
na Lei.”.39 A regulação jurídica das relações
entre as pessoas e as coisas é atingida 6 HISTÓRIA AGRÁRIA, CONCATENAÇÃO
diretamente por essa nova racionalidade. DOS FATOS E AUTONOMIA DA
O Código (forma código) se caracteriza DIMENSÃO JURÍDICA
por uma tipicidade inconfundível: i) tende a
Um outro grave risco cultural é a perda
da especificidade do fenômeno jurídico,
muitas vezes diluído pela chamada “storia
linee essenziali, forte di una sua logica rigorosa, ma
troppo poco sensibile al divenire e, soprattutto, al agraria, per la storia cioè del fatto técnico
mutamento.” (p. 7). ed economico coltivazione-produzione”.42
37 Para uma reflexão crítica e muito interessante

sobre o papel do Código na Modernidade, verificar


CAPPELLINI, P.; SORDI, B. Codici: una riflessione
40 GROSSI, P. Mitologias jurídicas…, p. 125.
di fine millennio. Milano: Giuffrè. 2000.
38 41 GROSSI, P. Mitologias jurídicas..., p. 115.
GROSSI, P. Mitologias jurídicas..., p. 114.
39 42 GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p. 617.
GROSSI, P. Mitologias jurídicas..., p. 50.

164
O historiador do direito não pode ficar preso O contesto econômico-agrário, em que
ao formalismo, que compreende o direito as relações de pertencimento são pensadas, é
como um simples conjunto de fontes formais, muito importante, mas por si só não é
mas também deve evitar o equívoco oposto, suficiente para explicar o fenômeno jurídico.
ou seja, não deve desprezar o fenômeno Como explica Paolo Grossi, “Fare delle
proprietà un elemento del paesaggio storico
jurídico nas suas profundas peculiaridades
grazie agli strumenti della storia agraria è
e o papel fundamental desempenhado
dunque meritorio purché si eviti il rischio di
pelo direito na ordenação e constituição
disperdere nella varietà del paesaggio la
da realidade.
limpidezza della dimensione giuridica”.44
A história agrária tem o mérito de libertar O historiador do direito deve estar atento às
o discurso historiográfico sobre o direito de especificidades do seu ofício, tomando o
propriedade da simplificação dos esquemas cuidado para não identificar o direito e o seu
formais de análise, quebrando com a “pureza” papel na sociedade apenas como um reflexo
das construções jurídicas, mas corre o risco de um determinado contexto econômico, de
de se perder em uma simples concatenação uma infra-estrutura.
de fatos econômicos e observação de dados O exemplo, analisado por Thompson em
técnico-agrários. Um amontoado de fatos, “Senhores e Caçadores”, é muito interessante
bem como a confusão entre a dimensão porque demonstra, em certa medida, o papel
jurídica e a econômica não auxilia na fundamental exercido pelo direito, ou por
uma concepção de direito que naquele
compreensão das relações entre os homens e
momento começava a ser identificado com a
os bens e a sua ordenação.
lei, na Inglaterra do século XVIII e XIX.
O se quer, nesse ponto, é evitar que a
Uma função desempenhada pela “Lei Negra”
análise do direito de propriedade ao longo
na mudança de concepções jurídicas e de
da história perca a sua autonomia. Para isso,
construção da própria mentalidade moderna
é importante considerar a observação de individualista e proprietária. Enfim, nas
Paolo Grossi sobre a história agrária: “Un palavras do próprio historiador (não
rilevante punto di metodo che emerge è propriamente do direito), E. P. Thompson,
l`esigenza di un ricorso critico al serbatoio “O direito importa, e é por isso que nos
della storia agraria. Non creda lo storico del incomodamos com toda essa história.”45
diritto di trovarvi la panacea capace di
esaudire le sue aspirazioni. Poiché proprietà 7 DIREITO E PROPRIEDADE COMO
è soprattutto mentalità, il cumulo di dati MENTALIDADES
tecnico-agrari può, in determinati contesti,
Outro cuidado metodológico fundamental
fungere anzi, o per contrasto o per estraneità
é compreender que a “proprietà è, per queste
o per non-coincidenza rispetto a quella, da
elemento storiograficamente fuorviante.”43
44 GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p. 624.
45 THOMPSON , E. P. Senhores e Caçadores...,
43 GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p. 620. p. 359.

165
insopprimibili radici, più di ogni altro istituto, momentos históricos muito distantes,
mentalità, anzi mentalità profonda.” 46 embora essa noção só tenha adquirido toda a
Mentalidade compreendida como “quel sua força no mundo moderno apenas no
complesso di valori circolanti in un’area século XIX . Como ensina Grossi, para
spaziale e temporale capace per la sua vitalità entender a construção da propriedade
di superare la diaspora di fatti ed episodi sparsi moderna é necessário revisitar, no mínimo, a
e di costituire il tessuto connettivo nascosto e teologia voluntarista dos séculos XIV e XV,49
costante di quell`area, ed è pertanto da cogliersi estudar o pensamento da Segunda Escolástica
come realtà unitiva”.47 Propriedade e o próprio espanhola, 50 analisar o individualismo
direito são mentalidades profundas. possessivo dos séculos XVII e XVIII, para se
Como já foi ressaltado, o direito é um chegar então às cartas constitucionais do
produto eminentemente histórico, imanente século XVIII e dos códigos do século XIX.
à sociedade e que pertence a uma dimensão É necessário, portanto, compreender que
civilizatória, pois, participa concretamente propriedade é antes de tudo mentalidade.
na vida das pessoas. Segundo Grossi, não há
como conceber o direito sem compreender a 8 UMA PROFUNDA DESCONTINUIDADE
sua dimensão profundamente humana e
social, é produto dos homens e só existe em Considerar a ruptura existente entre os
relação, mas é também organização (auto- diferentes modelos de pertencimento é uma
organização), pois é o direito que organiza o precaução metodológica sem a qual não é
caos social e estrutura a vida em sociedade. possível trabalhar com o tema da propriedade.
Não se confunde simplesmente com ordem Deve-se observar “che la storia della
imperativa ou com coação e, por isso, é appartenenza e dei rapporti giuridici sulle cose
ordenamento, um ordenamento observado è necessariamente segnata da una profonda
que encontra validade no seio e nos valores discontinuità; necessariamente, giacché
de uma determinada sociedade.48 proprietà è soprattutto mentalità”(...)“Tante
O direito é uma dimensão bastante ´proprietà` – per così dire – quante sono le
profunda de uma determinada sociedade e a esperienze giuridiche succedutesi nel
reflexão sobre as diferentes relações de tempo.”.51 A história das relações entre os
pertencimento, envolvendo as pessoas e as
coisas, não pode deixar de considerar esse
dado fundamental. 49Verificar: GROSSI, P. Usus facti: la nozione di
O percurso histórico do conceito proprietà nella inaugurazione dell’età nuova, “in”
Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero
moderno de propriedade é bastante longo, Giuridico Moderno, I (1972).
alguns de seus alicerces são encontrados em 50 Verificar: GROSSI, P. La proprietà nel sistema

privatistico della Seconda Scolastica, “in” GROSSI,


Paolo (a cura di). La seconda scolastica nella
46 formazione del diritto privato moderno. Milano:
GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p. 625.
Giuffè, 1973, p. 117 e segs. Verificar também:
47 GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p. 624. VILLEY , M. A formação do pensamento jurídico
48
moderno, São Paulo: Martins Fontes, 2005.
GROSSI, P. Primeira lição sobre direito (trad.
Ricardo Marcelo). Rio de Janeiro: Forense, 2006. 51 GROSSI, P. Il dominio e le cose..., p. 630-631.

166
homens e os bens é uma história marcada por Na observação de Ricardo Marcelo
diferentes experiências jurídicas constituídas Fonseca, “este era o mote da Escola Histórica
em variados contextos e culturas. Identificar Alemã do século XIX, quando o ‘argumento
as suas diferenças, peculiaridades e rupturas histórico’ tem um papel dogmático fundamental:
é tarefa do historiador. por um lado revelar o direito proveniente do
Na obra de Thompson, conforme observado, ‘espírito do povo’ (‘Volksgeist’), inserido em
a descontinuidade das concepções de suas tradições históricas, e por outro proteger
pertencimento é bem observada. Um novo o direito contra as inovações arbitrárias e
direito de propriedade que surge com muita desviadas do verdadeiro ‘passado histórico’”.54

força, apoiado pelas forças da burguesia Buscam no direito romano o fundamento


para a defesa de suas idéias e concepções,
emergente e tutelado pelo moderno direito
utilizando uma forte argumentação que se
monista e estatal, sufocando inúmeras outras
sustenta em toda a tradição dos textos
formas de relação de sobrevivência entre
antigos. O discurso histórico novamente é
aquelas pessoas e as suas florestas.
apropriado pela lógica do presente.
A concepção equivocada que acaba
Ocorre que a utilização corrente dos
identificando o passado com o presente
precedentes, muito mais do que explicar
ao eliminar a idéia de ruptura é sentida
alguma coisa, leva o leitor (intencionalmente
especialmente na doutrina jurídica tradicional
ou não) a acreditar que o que se estuda em
em matéria de propriedade. Basta observar a
matéria de direito de propriedade, atualmente,
constante preocupação da maior parte dos
é algo que desde sempre vem sendo tratado,
autores de manuais dogmáticos com os ou seja, as preocupações presentes são as
precedentes históricos,52 Por esse procedimento mesmas do passado mesmo que existam mais
de utilização dos precedentes, os “institutos de dois mil anos de diferença separando essas
contemporâneos são assim ‘naturalizados’ e civilizações e os seus sistemas de pensamento.
tidos como resultado da tradição”.53 António M. Hespanha narra um exemplo
emblemático dessa equivocada “necessidade”,
mas com intenção legitimadora, de vinculação
52 Nas palavras de Hespanha: “Os historiadores
entre o passado e o presente em matéria de
do direito fazem, freqüentemente, uma leitura do
direito passado na perspectiva do actual, procurando propriedade. Segundo o autor, “quando
lá os ‘prenúncios’, as ‘raízes’ dos conceitos, dos elaborava o borrão da encíclica Quadragesimo
princípios e das instituições actuais. Por exemplo
(...) se estudam a propriedade, pegam na história do
anno, o Cardeal De Gasperi, preocupado em
dominium sobre as coisas, conceito que, em algumas encontrar uma fundamentação histórica e
definições romanas (ius utendi ac abutendi), parece tradicional para a doutrina da Igreja de defesa
corresponder à actual propriedade individualista (...).
[Entretanto,] um estudo da lógica originária do da propriedade privada contra os erros do
conceito, bem como da sua integração no seu contexto comunismo, saudara com uma entusiástica
conceitual ou institucional de então, mostraria que,
anotação << Ecco il diritto di proprietà! >>
se se respeitar a autonomia do conceito histórico,
este não corresponde, de forma alguma, ao actual.
(HESPANHA, A. M. Panorama histórico..., p.73).
53 FONSECA, R. M. Direito e história..., p. 36. 54 FONSECA, R. M. Direito e história..., p. 36.

167
um passo de S. Tomás onde se falava de sustentando são as inúmeras relações de
dominium no sentido não exclusivista e não pertencimento existentes na civilização
individualista que o termo então tinha. [Este] medieval ordenadas pelo direito.
É um exemplo de como as preocupações A experiência jurídica medieval, como
contextuais agem sobre a leitura. Mas, explica Paolo Grossi, é bastante típica e pode
geralmente, os processos de contextualização ser entendida a partir de algumas de suas
social da leitura são menos directos.”55 principais características: i) é um direito que
Deve-se, portanto, evitar o grave equívoco se desenvolve no vazio relativo do poder
de identificar nas relações de pertencimento político – o direito não é identificado como
da Antigüidade, especialmente aquelas uma manifestação do poder político, pois
reguladas pelo direito romano, ou em qualquer não é possível, ainda, falar de Estado e
outro período histórico anterior à Modernidade soberania (no sentido moderno dos termos)
o simples reflexo do presente.56 A propriedade naquele período; ii) verifica-se uma relativa
privada nos moldes como foi constituída pelo indiferença do poder político pelo direito
pensamento jurídico moderno, especialmente que permite que este se crie e se desenvolva
pelas suas características de simplicidade e no coração da sociedade; iii) um forte
abstração, é uma grande novidade do ponto pluralismo observado nesse direito medieval;
de vista historiográfico. Prova do que se está iv) a sua factualidade – um direito que se dá
e se verifica na práxis; v) a sua historicidade –
construção histórica e não ato de império ou
55HESPANHA , A. M. Panorama histórico..., poder de um príncipe ou soberano; vi) um
p.46-47, nota nº 43.
direito bastante rico e complexo sem
56 Como explica José Reinaldo de Lima LOPES, pretensões de simplificação e abstração como
a “visão geral do direito antigo, incluindo o direito
romano, serve para marcar as essenciais diferenças
o direito moderno; vii) reicentrismo dessa
entre o que hoje chamamos direito e o que foi o experiência jurídica – baseada nas coisas e
direito de civilizações já desaparecidas. De fato, de na natureza destas e não na idéia de um sujeito
alguma forma, inseridos que estamos na órbita da
civilização ocidental, é claro que a herança romana
titular de direitos; ix) além do reicentrismo o
nos chegou, assim como algo da herança grega. Apesar comunitarismo – a comunidade como a
disso é bom lembrar que o direito romano só nos cédula vital – não existe ainda o “indivíduo”
chega porque foi ‘redescoberto’ e verdadeiramente
‘reinventado’ duas vezes na Europa ocidental: a
nessa sociedade e o direito é em larga medida
primeira vez nos séculos XII a XV e a segunda vez no determinado pela “perfeição” da comunidade
século XIX, respectivamente pelos juristas da e o papel que cada um exerce nesse todo.
universidade medieval, glosadores e comentadores,
e pelos professores alemães que tentavam a unificação
x) direito baseado na noção de “ordem”
nacional. (...) Nestes termos, a redescoberta do direito existente no mundo que leva a pluralidade à
romano nunca veio acompanhada das mesmas unidade; xi) uma presença da igreja na
instituições ou ambiente cultural originais e aqui
será bom marcar estas diferenças.” (LOPES, J. R. L.
constituição dessa mentalidade jurídica; xii)
O Direito na história..., p. 29 e 30.). Uma análise um direito marcado pela práxis.57
interessante sobre as particularidades das idéias de
propriedade no direito romano em relação ao direito
moderno é verificada na obra de Henrique da Silva
Seixas Meireles: “Marx e o Direito Civil (para a 57GROSSI , P. L’Ordine giuridico medievale.
crítica histórica do ‘paradigma civilístico’)”. Roma-Bari: Laterza, 1995.

168
Especificamente em matéria de diferentes com histórias bastante diversas
pertencimento verifica-se no mundo que devem ser contadas.
medieval uma civilização profundamente
possessória, com um número muito amplo e REFERÊNCIAS
aberto de ordens jurídicas atípicas, em que
BORNHEIM, G. O sujeito e a norma. In:
prevalece o primado do todo sobre o
NOVAES, A. Ética. São Paulo: Companhia das
individual,58 numa ordem “profundamente Letras, 1992.
ligada às coisas, no interior das quais se
CAPPELLINI, P.; SORDI, B. Codici: una
insere o indivíduo operante, em meio a uma riflessione di fine millennio. Milano: Giuffrè. 2000.
visão de mundo profundamente reicêntrica EDELMAN. B. O direito captado pela
e claramente objetiva da ordem natural fotografia. Coimbra: Centelho, 1976.
e social.”.59 FONSECA, R. M. A “Lei de Terras” e o advento
É o reino da efetividade, da prevalência de da propriedade moderna no Brasil. “in”: Anuário
situações efetivas de utilização, gozo e exercício Mexicano de Historia del Derecho, México:
Instituto de Investigaciones Jurídicas Unam n.
de acordo com as múltiplas possibilidades e
17, ano 2005, p.97-112.
potencialidades das coisas. Não existe, ainda,
FONSECA, R. M. Direito e história: relações
uma relação de dependência ou de domínio do
entre concepção de história, historiografia e a
sujeito sobre a coisa. A propriedade moderna história do direito a partir da obra de António
na sua simplicidade e abstração não é Manuel Hespanha. Curitiba, 1997, 118 f.,
encontrada na civilização medieval. Dissertação (Mestrado em Direito), Setor de
Ciências Jurídicas, Universidade Federal
Uma última observação. Falar de ruptura
do Paraná.
remete para uma outra ordem de precauções
FONSECA, R. M. A história no direito e a
metodológicas que o historiador do direito
verdade no processo: o argumento de Michel
deve observar para não cometer graves Foucault. Genesis, Curitiba, n.º 17, p.570-585,
equívocos. Não se pode esquecer que “a jul./set. 2000.
experiência histórica brasileira é muito GEDIEL. J. A. P. Os transplantes de órgãos e a
diversa daquela européia e por isso devemos invenção moderna do corpo. Curitiba: Moinho
tomar cuidado ao importar à realidade luso- do Verbo, 2000.
americana as categorias utilizadas pelos GROSSI, P. Assolutismo giuridico e diritto
historiadores que se voltam ao velho privato. Milano: Giuffrè, 1988.

mundo.” 60 São planetas jurídicos muito

feudalismo, por exemplo, é problemático e não


58 funcional quando voltado à realidade colonial
Nas palavras de Grossi: “perfezione della
comunità e imperfezione del singolo.” ( GROSSI, P. brasileira, já que todo o projeto de colonização fazia
L’Ordine giuridico medievale..., p. 196). parte de um processo de expansão comercial que
era próprio do início do capitalismo”. Uma obra de
59 FONSECA, R. M. A “Lei de Terras” e o advento
história do direito brasileiro muito interessante, que
da propriedade..., p. 101-102. procura tratar as relações de pertencimento no Brasil
60FONSECA, R. M. A “Lei de Terras” e o advento considerando as suas peculiaridades e diferenças, é
da propriedade..., p. 98-99. Um bom exemplo é o o livro: VARELA, L. B. Das Sesmarias à propriedade
conceito de feudalismo, nas palavras de Ricardo moderna: um estudo de história do direito brasileiro.
Fonseca, no mesmo texto citado, “O conceito de Rio de Janeiro: Renovar. 2005.

169
GROSSI, P. Il dominio e le cose: percezione GROSSI, P. Usus facti: la nozione di proprietà
medievali e moderne dei diritti reali. Milano: nella inaugurazione dell’età nuova, “in” Quaderni
Giuffrè, 1992, p.603 e segs. p. 2-4. Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico
Moderno, I (1972).
GROSSI, P. Dalla società di società alla
insularità dello stato fra medievo ed età TOMÁS Y VALIENTE, F. Laudatio a Paolo
moderna, Napoli: Istituto Universitario Suor Grossi “in” CAPPELLINI, P. et alii. De la
Orsola Benincasa, s/d. Ilustración al Liberalismo: symposium em
honor al professor Paolo Grossi. Madrid:
GROSSI, P. La proprietà nel sistema
Centro de estudios constitucionales, 1995.
privatistico della Seconda Scolastica, “in”
GROSSI, P. (a cura di). La seconda scolastica HESPANHA, A. M. Panorama histórico da
nella formazione del diritto privato moderno. cultura jurídica européia. Lisboa: Publicações
Milano: Giuffè, 1973 Europa-América, 1997.
GROSSI, P. L’inaugurazine della proprietà LOPES, J. R. L. O direito na história: lições
moderna. Napoli: Guida Editori, 1980. introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000.
GROSSI, P. L’Ordine giuridico medievale. MEIRELES, H. S. S. Marx e o direito civil (para
11.ed., Roma-Bari: Laterza, 1995. a crítica histórica do ‘paradigma civilístico’).
Coimbra: Almedina, 1990.
GROSSI, P. Mitologias jurídicas da modernidade.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores.
2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
GROSSI, P. Primeira lição sobre direito (trad.
Ricardo Marcelo Fonseca), Rio de Janeiro: VARELA, L. B. Das Sesmarias à propriedade
Forense, 2006. moderna: um estudo de história do direito
brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar. 2005.
GROSSI, P. Un Altro Modo di Possedere:
l’emersione di forme alternative di proprietà alla VILLEY, M. A formação do pensamento
coscienza giuridica postunitaria, Milano: jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes,
Giuffrè, 1977. 2005.

170

Das könnte Ihnen auch gefallen