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Pluralidade de sujeitos ou os filhos da pós-modernidade

João Luiz Leitão Paravidini (Universidade Federal de Uberlândia) – paravidini@ufu.br


Daniela de Castro Brito Landim (Universidade Federal de Uberlândia) – dani_landim@hotmail.com
Giselle Carvalho Bernardes (Universidade Federal de Uberlândia) – gisellebernardes@yahoo.com.br

Resumo
Tendo como premissa que o essencial da existência humana acontece em um ‘espaço relacional do
conversar’, no entrelaçamento entre a dimensão da linguagem e do emocionar, sendo neste mesmo
espaço de interação que ocorre a criação do mundo em que vivemos, nos propusemos discorrer
sobre essa possível articulação entre o que se desenrola no plano das transformações sócio-
culturais e o que se faz observar na clínica da infância. Este trabalho surgiu de reflexões,
questionamentos e formulações interpretativas, visando circunscrever e analisar esta articulação,
através do que divisamos nas (des) articulações do sujeito do desejo, ou seja, nestes novos modos
de subjetivação infantis, e nas respectivas funções parentais na contemporaneidade. Onde pudemos
afirmar que os processos terapêuticos, que implicam em um significativo reposicionamento da
representação desejante da criança na subjetividade de seus pais, somente terão continuidade se
estes pais puderem se disponibilizar, sensivelmente, para o estado de sofrimento em que a criança
esteja imersa.

Palavras-chave: Infância, Psicopatologia, Contemporaneidade, Parentalidade.

Este trabalho partiu de reflexões, questionamentos e formulações interpretativas, visando


circunscrever e analisar essa possível articulação entre o que se desenrola no plano das
transformações sócio-culturais e o que se faz observar na clínica da infância, através do que
divisamos nas (des) articulações do sujeito do desejo, ou seja, nestes novos modos de subjetivação
infantis e nas respectivas funções parentais na contemporaneidade, a partir de um estudo de caso
clínico.
Ao entrar em cena as mudanças da pós-modernidade, Maia (2002) pontua que o ideal pós-
moderno implica sermos ou estarmos eternamente insatisfeitos, ávidos por consumo, tomados por
um vazio e laços afetivos frágeis. Na contemporaneidade esses laços precisam gerar prazer
imediato, e se por ventura surge qualquer ameaça de dor, o outro é rapidamente descartado para
preservar a ilusória sensação de felicidade – atributo fundamental e irrevogável das individualidades
contemporâneas. É nessa cultura que estão imersos os filhos da pós-modernidade, filhos de uma
(des) articulação da relação pais-filhos, e assim, permeando uma pluralidade de sujeitos.
Não parece ser uma idéia absurda que o essencial da existência humana aconteça em um
‘espaço relacional do conversar’ e que neste mesmo espaço de interação ocorra a criação do mundo
em que vivemos.
Embora possamos evocar certa sonoridade winnicottiana destas colocações, não é dele que
estamos nos referenciando, mas em Humberto Maturana (2004). Este último introduz o papel da
linguagem ou do linguajear como um fenômeno biológico relacional em quem ocorre a coexistência
de interações recorrentes, sob a forma de fluxo recursivo de coordenações comportamentais
consensuais, ao mesmo tempo, que há um contínuo entrelaçamento ao vivenciar das emoções
(emocionar). Maturana chama a este entrelaçamento entre a dimensão da linguagem e do emocionar
de conversar e daí vem sua premissa fundamental de que todo viver humano acontece em redes de
conversação.
Apesar deste não ser o motivo central de trazer este autor, não deixa de ter uma significativa
ressonância com o caso clínico que será abordado neste trabalho. Porém antes, temos um outro
ponto a tratar. E ele refere-se a uma breve afirmação deste.

O curso da história humana se desenrola geração após geração. É essa mesma


trajetória que segue o emocionar adquirido pelas crianças no crescimento em relação
com seus pais, outros adultos, outras crianças e com o mundo circundante. Nestas
circunstâncias, para compreender as mudanças culturais, devemos entende as
alterações históricas do emocionar humano em sua relação com o crescimento das
crianças. (MATURANA, 2004: p.12)

Era este aspecto que parecia nos faltar em determinados momentos da articulação entre o que
se desenrola no plano das transformações sócio-culturais e o que se fazia observar na clínica da
infância, através do que divisamos nas (des) articulações do sujeito do desejo e nas respectivas
funções parentais.
Donde interessou a segunda premissa de Maturana (2004, p. 33), em que uma cultura é uma
rede fechada de conversações e que as mudanças culturais podem ser pensadas a partir de
ocorrências de modificações nas conversações nas redes coloquiais em que vivem as comunidades.
Ora, é exatamente neste contexto primordial que entram as crianças, posto que é através delas
que se busca fixar ou conservar as modificações empreendidas nas redes de conversações, nestes
novos modos de subjetivação (emocionar). É a isto que por vezes chamamos de novas formações
psicopatológicas, implicados em modelos de apreensão de si e do outro.
Para circunscrever e analisar essa articulação entre o que se desenrola no plano das
transformações sócio-culturais e o que se faz observar na clínica da infância, através das
implicações destes novos modos de subjetivação infantis e suas respectivas funções parentais na
contemporaneidade, explicitaremos o caso clínico de Carlos 1 . Os atendimentos, junto a essa
criança, contemplavam o modelo da Técnica de Intervenções Terapêuticas Conjuntas Pais –
Filhos, conforme as formulações inicialmente propostas por Marisa Mélega (1998), baseadas no
Método de Observação da Relação Mãe – Bebê de Esther Bick (1964).
Marisa Mélega sustenta a função analítica marcantemente contida no enquadre desta
intervenção. Ela afirma que:

Oferecer um enquadre em que o terapeuta e a família podem observar e comunicar o


que está emergindo durante o encontro é usar o método analítico em sua amplitude. As
interações que vão surgindo durante o encontro expressas em linguagem verbal, pré-
verbal, lúdica ou por atuação, são exemplos vivos da história do grupo, e do lugar que
cada um ocupa; história e lugar que falam de relações conflitivas que se repetem pela
impossibilidade de encontrar soluções, pela impossibilidade de pensá-las. (MÉLEGA,
1998, p.119).

Carlos foi trazido para consulta por recomendação de seu pediatra, que requereu uma
avaliação psicológica devido à presença do que lhe pareceram ser alguns sintomas autistas. Ele
estava a duas semanas de completar três anos de idade. A princípio os pais traziam como queixa
inicial a questão da linguagem. Segundo os pais, Carlos conversava bem, mas não tinha diálogo.
Houve um total de seis encontros que transcorreram durante os meses de fevereiro e março de 2005.
Apesar de a queixa inicial variar um pouco (não conversava para o pai, não dialogava para a
mãe), a criança passava a maior parte do tempo falando sem parar. Com o tempo, foi possível
identificar que ali se fazia presente uma televisão ligada que ninguém assistia ou entendia a
programação, ou quando paravam para assistir o tédio era o refúgio de todos.
Aos poucos, algumas palavras foram se fazendo entender, em uma lógica demonstrativa
explícita que era a da apresentação de programa infantil – cenas de TV – ‘oi criançada’, ‘oi
meninada’, por exemplo.
Esta lógica demonstrativa explícita é aquela em que, como expectadores, tudo parece estar
posto na cena. Nada há para ver para além da cena. A indiferença ou o tédio não passam de reações
de natureza específica ante ao Nada.

1
Criança atendida em psicoterapia pelo Professor Dr. João Luiz Leitão Paravidini.
Ao serem questionados sobre o modo como se sentiam diante da dificuldade do filho, os pais
responderam: nós ficamos desapontados, porque ele dá atenção pros bichinhos, mas não nos
responde, não procura. O pai acrescenta: quando precisa ele chama, mas não chama por “papai”.
O terapeuta pergunta: até hoje ele não te chamou de papai? O pai responde que não. Logo comenta:
você ainda não é o papai dele? E você ainda não é a mamãe dele? Ao que a mãe responde: ele não
chama a gente diretamente por papai e mamãe, mas diz, por exemplo, “mamãe tá dormindo”,
quando me vê deitada. Pai: quando precisa ele chama, mas não chama por “papai”. O terapeuta
ainda tentando entender o que se passava lhes pergunta: é como se vocês não tivessem uma relação
direta com ele, mas que a relação fosse indireta? A mãe tenta simplificar a estória e conclui mais
uma vez: o problema é na parte da comunicação.
Logo depois, na seqüência desta mesma sessão, transcorre a seguinte situação: A criança está
atrás do terapeuta e de seus pais, e chama “papai” duas vezes. O terapeuta diz que ele está
chamando o papai. O pai diz que achou que o filho estava falando em suas brincadeiras, não achou
que fosse com ele. O pai então se levanta, vai até Carlos e conversa com o filho. Utiliza-se de
palavras descritivas (lógica demonstrativa explícita) e numa fluência artificial, que demonstram a
sua “falta de jeito”, seu desconserto e pouca espontaneidade (robótico). O filho não interage com
nenhuma das brincadeiras propostas pelo pai naquele momento. O pai insiste para que o filho o
chame novamente, mas isto não acontece. Vai se formando uma densa nuvem de frustração no ar.
Posteriormente, o pai esclarece ao terapeuta que ele, o pai, tem um problema de audição, mas que
isso não lhe traz dificuldades.
Na sessão seguinte, o pai relata que a criança falou papai algumas outras vezes em casa,
porém, segundo ele, “daquele jeito como ele falou aquele dia aqui”. Deixou claro que não se tratava
de um assunto de pai e filho, mas apenas daquelas “brincadeiras” solitárias da criança, que fala, mas
não se comunica, não conversa.
Podemos pensar que, diversamente ao que se passa numa brincadeira de faz-de-conta, o pai
deste menino foi procurar a si mesmo no chamado do filho, tendo que ali haver a estrita
correspondência entre o falado e a suposta coisa falada, o que tanto nos faz lembrar o discurso da
ciência moderna. A verdade contida nos fatos que falam por si! Sendo assim, a alegada meia surdez
nos permite evocar a necessidade de que este chamamento da criança tenha que se transformar num
grito (impossível) para romper com a densa espessura de impermeabilidade aos significantes que
lhe possam atingir os tímpanos do desejo, transformando-se assim em mensagens próprias, num
jogo do que pode ser, não tão somente do que é, ipsis fatu. Somente assim apreendemos que
conversar não é algo tão simples, embora possa parecer, e quão importante de fato é.
Decorrentes desta primeira ordem de articulação, encontramo-nos diante da ausência de
movimentação das produções discursivas lúdicas (daquilo que pode vir a ser), tanto da parte
daquele que ocupa seja a posição instituída de pai ou de mãe, como também de menino-suposto.
Este enrijecimento, ou mesmo, este girar no vazio nos assombra e nos desafia, posto que ali também
se expressa a dificuldade própria a esta criança de ser tomada como sujeito de um discurso passível
de interlocução.
Caso contrário, se ninguém vier ali produzir alguma injunção desejante, ela permanecerá fora
da circulação discursiva, atestando-lhe a condição de um sujeito– assujeitado. Mas não só a ela que
nos referimos. Somente aquele, e tomamos o exemplo do pai neste caso, que pudesse reconhecê-la
como obra de seu desejo, e não idêntica a si mesmo (não sombra), haveria de poder escutá-la como
autora de suas próprias palavras. E assim, nem a criança e muito menos o pai estão colocados em
posição de sujeito de desejo.
Esta criança e toda a família apresentam elementos que nos fazem pensar em diferentes
problemas contemporâneos da linguagem, dificuldades que os implicam na articulação da fala entre
si, apresentando a presença maciça de uma fala descritiva, cujos contatos entre os membros, pai,
mãe, criança, irmão, as redes relacionais, aparentam ser muito frouxas ou fracas, no sentido
desejante – o que faz facilmente com que se aferre à literalidade (a coisificação da palavra) para se
sustentarem ante ao vazio. Mas que vazio é este, que se faz tão ameaçador?
Fazendo um giro na lógica constitutiva dos discursos, podemos antevê-lo (ao vazio) como
pura negatividade, como condição diferencial entre o estatuto do ser vivo, do ser biológico, do ser
natural e a condição de dependência do Outro, forjado na própria articulação da linguagem, dos
significantes e na simbólica aventura dos possíveis e impossíveis. Condição inexorável que se
define pelo que em psicanálise chamamos de Desamparo Originário. Sabemos que nós, seres
humanos, estamos em condições de defasagem em relação à natureza desde a formação
embrionária. Estamos muito aquém desta, por pouco compreendê-la e muito desejar codificá-la
(como se pode ver, por exemplo, com o projeto Genoma), mas também muito além, à medida que
nela sempre introduzimos alguma significação que nunca houvera ali estado.
Se, tomamos, por exemplo, a situação descrita sobre o chamar ‘papai’, podemos perceber que
o pai foi em busca de sua própria imagem narcísica (um eu ideal), tendo ali deixado antever o
esgotamento dos ideais de eu – o prazer do chamamento. Estamos, portanto, diante da falência dos
componentes simbólicos fundamentais à constituição do sujeito humano, tão observados no
momento contemporâneo. Frente à falência de possibilidade de se introjetar componentes
simbólicos de um Outro distinto, como, por exemplo, valores e o desejo, assistimos na
contemporaneidade cada vez mais a utilização de um mecanismo mental chamado de
incorporação. Herzog e Salztrager delineiam este mecanismo da seguinte maneira:

A incorporação se constitui como um procedimento eminentemente defensivo,


convocado para salvaguardar determinado estado de coisas e se opor a qualquer
mudança psíquica que o trabalho de elaboração da perda objetal possa promover.
(2003, p.40).

Neste ponto já migramos da esfera do desejo para a relação do sujeito com gozo. Esta relação
é uma espécie de estado de dialética suprimida, uma forma de produzir o curto circuito do desejo.
O gozo, em sua posição antecedente e imobilizadora do sujeito do desejo, sustenta-se não só em
função da imediatez da descarga em atos, mas por sobrepujar permanentemente toda e qualquer
articulação dircursiviva que não seja a da própria subserviência ao imperativo: Goza. Encontramos
neste curto circuito do desejo a imobilidade da dialética constitutiva do sujeito – desejos de sujeitos
– sujeito de desejos. Aí, onde haveria de estar à afirmação primordial do desejo do sujeito, com sua
conseqüente abertura de significação em devir, fixa-se numa relação de objeto de gozo do outro,
como garantia permanente frente à angústia do ser de desejo, cuja significância não se abre para
outra coisa que não a repetição de si mesma. Nesta maquinação, tornar-se sujeito de desejos não só
é não-garantido como também in-desejável, in-suportável. Neste ponto lembramos das
psicopatologias do vazio, remetidas à lógica do excesso, a drogadição, as bulimias, as anorexias, os
autismos, etc... Pensando então nas condições a que estão remetidos os sujeitos em geral na
contemporaneidade,

(...) nós poderíamos mesmo falar em um deslocamento da política da


felicidade a um outro paradigma que poderíamos chamar de política do gozo.
Trata-se de uma política marcada não mais pelos imperativos de adequação
entre Lei e satisfação subjetiva, mas pela possibilidade de uma relação de
iminência com um gozo que se conjuga no particular, gozo que seria modo de
assunção da multiplicidade plástica e infinita da sexualidade (SAFATLE,
2004).

Vale lembrar que os únicos paraísos (condições de certeza) a que podemos alçar são os
impossíveis, dada à condição básica de estar o desejo em posição diferencial ante o suposto
referente – a coisa, o ser, a antecedência humana. Portanto, a realização estrutural do desejo faz dele
um impossível, já que o seu objeto causador só se torna dimensionável nos discursos humanizantes
e catalizadores de potências inquietantes e, seus possíveis objetos de realização estão remetidos à
esfera dos significantes, deles originando vivências em forma de restos angustiantes articulados a
um futuro do pretérito – o que haveria de ter sido. De outra feita dar-se a isso o nome de vazios,
incompletudes, hiâncias, vertigens que podem por vezes propiciar puros atos de reencontro do
objeto absoluto através do apagamento total do sujeito posto a desejar – tal como vemos nas
diversas circunstâncias de passagens ao ato, a que são remetidos os sujeitos com diferentes
condições psicopatológicas.
Como dissemos no início, baseamo-nos nas premissas de Maturana (2004) de que, em suma,
as mudanças culturais podem ser pensadas a partir de ocorrências de modificações nas redes de
conversações coloquiais em que vivem os seres em comunidade, implicando em novos modos de
subjetivação (emocionar). E a isto por vezes também chamamos de novas formações
psicopatológicas, em que estão articulados os modelos de apreensão de si e do outro.
Tomemos dois exemplos, ilustrados por situações provenientes da dinâmica transferencial no
atendimento clínico de Carlos, destas redes de conversação, que resultam em condições singulares
do emocionar.

1.a situação: tudo é meu.


Perto de Carlos, a mãe pega a figura de uma menina e a movimentando, vai falando com ele:
“Carlos, me dá uma banana?” . A criança responde dando a ela o objeto pedido e ela faz
outras demandas sucessivas: “Carlos, a menininha quer sorvete”, “Carlos, a menininha quer
ir pra casinha”, “Carlos, a menininha quer brincar com o macaco”. Carlos vai respondendo,
mas aos poucos ele vai parando de responder, e apenas pega as figuras da mão de sua mãe
que, não mais atendida em suas demandas sucessivas e intensas, resolve ir pegando a todas
as figuras por si mesma. Carlos vai se irritando e falando em sua língua confusa à medida
que sua mãe continua pegando as figuras na mesa e ele as colocando de volta no lugar.
Terapeuta ri e fala para todos: sossega Carlos, que ninguém tá entendendo nada que você tá
falando, só que você fica bravo quando mexe nos bonequinhos (se refere à brincadeira dele
com a mãe).
Carlos fica em pé olhando as figuras em cima da mesa e a mãe continua pegando e
mostrando a ele. Carlos pega o que está na mão dela e põe no lugar onde estava antes.
Terapeuta pergunta a mãe: à medida que você vai brincando com ele, o que você sente?
A mãe começa a falar deles em casa e o terapeuta diz que está se referindo a aquele
momento. Ela fica sem graça, volta-se para Carlos e não responde.
O pai entra na brincadeira e pega as figuras em cima da mesa. Carlos se irrita, pega da mão
do pai e põe de volta no lugar. O pai repete o gesto algumas vezes, e Carlos fica cada vez
mais irritado, enquanto o pai ri.
Terapeuta fala com Carlos também rindo: é tudo brincadeirinha, Carlos!
O pai continua e entrega uma figura para a observadora, e depois outra para o terapeuta.
Carlos vai até os mesmos e pega as duas para colocar de volta no lugar, ficando cada vez
mais irritado.
Terapeuta continua sorrindo: seu pai quer te irritar, Carlos!
O pai pára de pegar e agora pede as figuras para Carlos: me dá a escada, Carlos! Por favor!
Carlos não dá e ele continua pedindo outras coisas. A criança então diz em voz alta: não!
Terapeuta: você ouviu? “Não”. Eu nunca ouvi uma resposta tão clara!
Terapeuta fala com a mãe: é por isso que eu te perguntei o que você sente. Você começou a
brincar com ele, estava interessante e depois ele não quis mais.
Mãe: aí depois ele pára, né?
Terapeuta: ele não, é que você queria que tudo fosse da menininha (figura com a qual ela
brincava). Ele tem o jeito dele e você queria que fosse do seu jeito. Você queria que tudo fosse
da menininha e ele que tudo ficasse no lugar. Aí acabou a brincadeira! Ou tudo é do jeito
dele, ou do seu. Viraram duas crianças! E o papai só olhando, não faz nada!
Mãe: mas quando ele brincar com outras crianças vai ser assim; não vai ter um adulto
compreensivo!
Terapeuta: mas não tinha mesmo, você ficou emburrada! ...

A ausência de um “adulto compreensivo” , como nos disse a mãe de Carlos, expressa bem a
intolerância às circunstâncias de frustração, fazendo com que toda situação seja vivida sob o
império de um gozo. Cuja condição paradoxal coloca-se na contundente afirmação de si, mas que,
ao mesmo tempo, faz imobilizar a dinâmica subjetivante / desejante do próprio prazer de jogar. Isso
é o que dissemos anteriormente quanto ao apagamento da diferença entre o desejo e sua realização.
Esta espécie de onipotência e arrogância permanente, mas que tem como contraponto o próprio
fracasso da constituição da relação lúdica: a impotência do contato, da vinculação e da formação
dos laços afetivos. A isso que tão bem ela nomeou de um adulto compreensivo, demonstrando que
pode ao mesmo tempo vislumbrar este lugar possível, porém esvaziado em sua premência de
ocupação, já que isto implicaria num desdobramento de si mesmo – do eu ideal, tão arraigado nos
primórdios de uma infância que se faz extensiva e dos ideais de eu, que vêm confrontar o sujeito
com as suas injunções valorativas histórico-sociais – ser mãe, adulta e esperançosa. É aqui que faz
fracassar a transmissão e com isto o difícil trabalho de filiação humana.

2 ª situação: O avesso do quebra cabeça


Enquanto um brinquedo “quebra – cabeça” estava com todas as suas peças interligadas,
formando um cartão de, no máximo 16 X 22 cm, Carlos vai separando as suas peças com afã. Seu
estado de tensão é visível, através da sua expressão facial acirrada e o frenesi com que tenta
desfazer as ligações entre as peças, chegando a rasgar algumas delas. Todo este empreendimento é
produzido sobre o olhar e comentários de seus pais. O quebra-cabeça está com a figura voltada
para cima enquanto é desmontado. Ao tentar montá-lo Carlos busca as curvas que se encaixam,
não demonstrando procurar pistas nas cores, figuras, tons, apenas nos encaixes. Quando os
encaixes não vão se dando nas primeiras tentativas, surge um novo frenesi. Os pais sugerem peças,
mas Carlos parece não escutá-los. Ele vai virando as peças ao contrário, com as figuras para
baixo, ficando de frente para o papelão e as curvas, que se sobressaem. Carlos enfim, consegue
fazer os encaixes e, o seu papai aliviado, diz: veja como ele consegue encaixar facilmente as peças.
Ele não teve dificuldade alguma.
Terapeuta: mas para isso ele teve que se livrar da figura e ficar de cara para o papelão.
O pai diz: e tem alguma coisa errada nisso?
É-lhe respondido sob o impacto da surpresa de sua pergunta: ele faz ali o mesmo que faz com
vocês, quando evita olhar e ouvir o que vocês lhe falam, pois isso o perturba, o incomoda
profundamente. Assim, vocês acabam falando com ele como se fossem de papelão, só apontando e
descrevendo o que é uma coisa ou outra; um trem azul, um carro vermelho... sem figuras ou
emoções coloridas, que possam perturbar.
E o pai retorna com sua questão, só que desta vez emocionalmente angustiado: mas o que ele
faz está fazendo está certo ou errado?

O que dizer então? De fato não se trata nem de certo nem de errado. Porém daquilo que se faz
suprimir por esgotamento através deste hiper-dimensionamento colada no âmbito da competência,
da técnica e da eficácia, que permitam alcançar em curto circuito a laçada gozante. Com isto fica de
fora a descoberta lúdica, aquela da laçada longa, aquela da volta a mais em torno do objeto que se
dá sem que se perceba, porém fundamental para a insurgência do sujeito de desejos e objetos
contornáveis.
Em termos da afiliação, este pequeno episódio diz muito do quanto esta criança tem a
encontrar na rede discursiva paterna de hesitação e de aflição evitativa, que o faz com que ele não
se aperceba de que do lado do papelão está apenas o descanso mórbido narcísico, em que sua
própria mensagem retorna ao filho onde podemos encontrar um sujeito suposto inteiro, mas que
“NADA HÁ”.
Paradoxo psicopatológico, mas que já se engendra no paradoxo da transmissão de valores
éticos na contemporaneidade, cuja perspectiva é de englobar o direito e o avesso. Nesse sentido não
há, pois, conflito, apenas o estado de suficiência ou insuficiência, posto que a norma, enquanto
linguagem (Ehrenberg, 2004) ou as redes de conversação (Maturana, 2004), que regula esta
condição é da autonomia. Ou se é capaz de decidir e agir por conta própria ou se fracassa. Mas no
caso em questão este limite da autonomia é um estado de automania, tão característico de crianças
com condições que nem se articulam ao diagnóstico de autismo infantil ou mesmo de psicose. Nelas
podemos ainda perceber a procura de filiação em lugares onde não há nenhuma mensagem, nada
está sendo dito para além de afluxo de regulações normativas.
Em termos mais gerais, deparamo-nos com uma lógica demonstrativa explícita de
presentificação do gozo, tendo em vista o achatamento peculiar entre campo das possibilidades
simbólicas e imaginárias, ora como expressão inerte advinda do campo imaginário sem a
articulação com o simbólico, ora o contrário, admitindo-se a competência autônoma e autômata à
revelia de qualquer implicação com o outro.
Para finalizar, remetemo-nos a uma entrevista de Gilles Lipovetsky (2004), no “Caderno
Mais!”, da Folha de São Paulo, na qual ele afirma ser

a sociedade hipermoderna uma sociedade esquizofrênica em que convivem, de um lado,


uma sociedade hiperfuncional, da funcionalidade da técnica, da ciência, que trabalha
cada vez mais com critérios mensuráveis, de eficácia e operacionalidade.
Paralelamente, assiste-se à ascensão de comportamentos disfuncionais e os dois existem
juntos (...) Logo, tem-se de um lado uma sociedade em que cada vez mais impera a
ordem e, de outro, a desordem – no fundo, um quadro de patologia e de caos. A situação
paradoxal da sociedade hipermoderna, dividida entre a apologia do excesso e o elogio à
moderação traz como conseqüência uma inquietante desestabilização emocional e
fragilização do indivíduo. (LIPOVETSKY , 2004)

Não é por acaso que nestas crianças em estados paradoxais (automanias) e, nos casos que
chamamos de patologias do vazio, estas duas condições, ordem e caos, hiperfuncionalidade e
fragmentação, plenitude e vazio, estão na base de suas estruturações.
O paradoxo da transmissão de valores éticos na contemporaneidade engendra a perspectiva
suposta de englobar o direito e o avesso. Esta paradoxalidade e, decerto, a mudança paradigmática
que nela vemos se instaurar faz com que retornemos ao nosso ponto de partida, cotejando-o com
um outro olhar: o desenvolvimento emocional infantil precoce e as condições de risco de
sofrimento psíquico grave.
Assim, os processos terapêuticos, que implicam em um significativo reposicionamento da
representação desejante da criança na subjetividade de seus pais, somente terão continuidade se
estes pais puderem se disponibilizar, sensivelmente, para o estado de sofrimento em que a criança
esteja imersa.
Será possível “criar filhos” sem que se apresente a condição de perda, incerteza, risco e
vacuidade trazidos pelo que ainda não pôde ou poderá ser preenchido, senão pelo des-dobrar-se de
si mesmo para se fazer em devir? Será possível “criar filhos” sem se perder na nostalgia do tempo
do houvera sido, mas que ainda assim valerá a pena se deixar viver nesta aposta presente, mesmo
sendo o outro que poderá sair ganhando?
Ah! Tempos difíceis esses!!! Tempos em que as fragilidades narcísicas se encontram em cada
gesto, em cada molécula de vivência de cotidiano, ou o reforço de si ou a ameaça ao existir. E
nesse sentido, o Outro ameaçador ganha contornos violentos, estranhos e incontornáveis, haja vista
que o mesmo está ali em posição de também ser o mais familiar possível: gente grande que fica
pequena e gente pequena que fica monstruosamente grande.
No específico caso clínico, a questão deste limite da autonomia faz presente através de um
estado que designamos por automania, tão característicos de crianças com condições que não se
articulam ao diagnóstico de autismo infantil ou mesmo de psicose infantil (estando sob o afluxo de
ambos, porém não somente). Nestes casos podemos perceber a procura de uma condição de filiação
em lugares onde não há nenhuma mensagem, nada está sendo dito para além de afluxo de
regulações normativas pedagógicas estritas (lógica demonstrativa explícita).
O sofrimento do homem contemporâneo anda em descompasso com a dor. Esta, calcada no
campo do indizível, só pode ser significada por meio do sofrimento, imanente ao campo das
relações humanas, da existência, do si em meio aos outros. É o sofrimento quem dá o tom à dor do
sujeito e a dor só com - passa com o sofrimento. E assim é a vida!
Referências Bibliográficas

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