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A cidade como negócio: produção

do espaço e acumulação do capital


no município de São Paulo
Adriano Botelho

Resumo Abstract
O artigo tem como tema a crescente inser- T he subject of the present article is the
ção da produção do espaço nos circuitos de increasing insertion of spatial production
acumulação capitalista, espaço esse que, in the circuits of capitalist accumulation.
além de produto, se torna produtivo na ló- This space, besides being a product, is also
gica de valorização do capital. Nesse senti- productive in the logic of capital valuation.
do, seu objetivo é analisar os impactos da In this sense, the article aims to analyse the
acumulação na configuração espacial urbana impacts of accumulation on the urban space
e na estrutura de desigualdades socioespa- configuration and on the structure socio-
ciais através do estudo do caso do proces- spatial inequalities. To achieve this, it studies
so de formação do mercado imobiliário no the process of real estate market formation
município de São Paulo, destacando-se a in the City of São Paulo, highlighting the
recente atuação dos Fundos de Investimen- case of the Real Estate Investment Funds
to Imobiliários e Certificados de Recebíveis and the Real Estate Bonus. These financial
Imobiliários. Tais instrumentos representam tools represent a new level of interaction
um novo grau de interação entre o capital between the financial capital and the real
financeiro e o mercado imobiliário, com pro- estate market, with deep consequences to
fundos efeitos para a configuração do tecido the urban tissue configuration and to socio-
urbano e para a segregação socioespacial. spatial segregation.
Palavras-chave: urbano; capital financei- Keywords: urban; financial capital; real
ro; mercado imobiliário; segregação socio- estate market; socio-spatial segregation;
espacial; São Paulo. São Paulo.

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adriano botelho

Introdução operacional e instrumentalmente pela classe


hegemônica. O espaço capitalista não esta-
ria, porém, purgado de suas contradições,
O espaço, ao longo da história do modo de
apesar da hegemonia de uma classe. Segun-
produção capitalista, passou a fazer parte
do Lefvebvre (1976), a burguesia, enquanto
dos circuitos de valorização do capital, seja
classe dominante, dispõe de um duplo poder
pela mercantilização da terra, seja por seu
sobre o espaço: através da propriedade pri-
parcelamento (por loteamento ou por ver-
vada do solo, que se estende à totalidade do
ticalização) ou, como vem ocorrendo mais
espaço (exceção feita aos direitos das cole-
recentemente, por sua crescente inclusão
tividades e do Estado) e através da globali-
nos circuitos de circulação do capital finan-
dade, a saber, o conhecimento, a estratégia,
ceiro. A produção do espaço passa a ser um
a ação do Estado propriamente dito. Exis-
elemento estratégico para a acumulação do
tiriam conflitos inevitáveis entre esses dois
capital. Segundo Henri Lefebvre, escrevendo
aspectos (burguesia e Estado) e, no plano
em 1970, ocorreria uma crescente depen-
institucional, essas contradições se fariam
dência do capitalismo em relação à produção
patentes entre os planos gerais de ordenação
e ao consumo do espaço nas últimas déca-
espacial levados a cabo pelo Estado e os pro-
das, pois:
jetos parciais dos negociantes “de espaço”.
Para o entendimento da produção do
[...] o capitalismo parece esgotar-
espaço, sobretudo do espaço urbano, deve-
se. Ele encontrou um novo alento
16 na conquista do espaço, em termos
se levar em consideração, então, o monopó-
triviais na especulação imobiliária, lio de uma classe, o que exclui principalmen-
nas grandes obras (dentro e fora das te os pobres da propriedade fundiária (Har-
cidades), na compra e venda do espa- vey, 1980). Isso porque a classe que detém
ço. E isso à escala mundial. (...) A es- a maior parte dos recursos pode, através
tratégia vai mais longe que a simples do dinheiro, ocupar, modelar, fragmentar
venda, pedaço por pedaço, do espa- o espaço da forma que melhor lhe convém.
ço. Ela não só faz o espaço entrar na A maximização dos valores de troca produz
produção da mais-valia, ela visa uma benefícios desproporcionais para alguns gru-
reorganização completa da produção pos e diminui as oportunidades para outros.
subordinada aos centros de informa- Faz-se necessário, portanto, uma com-
ção e decisão. (1999, p.142) preensão de como o capital, crescentemen-
te, domina o espaço para que temas como
A relação entre o espaço (sua produ- a estruturação do espaço urbano, a segre-
ção, vivência, percepção, concepção e con- gação socioespacial e a fragmentação desse
ceituação) e o modo capitalista de produção espaço, entre outros, possam ser devida-
deve ser vista como uma via de mão-dupla, mente tratados.
como parte de uma relação dialética e com- O presente trabalho tem por objetivo
plexa. Pois o espaço não é o locus passivo analisar como a crescente inserção do es-
das relações sociais, já que possui um papel paço urbano nas estratégias de acumulação
ativo, como saber e como ação, utilizado do capital tem efeitos profundos na sua

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produção e configuração, e como, por sua uma energia, uma força de trabalho, um
vez, estrutura as desigualdades socioespa- instrumento, por exemplo – para transfor-
ciais. Ou seja, na medida em que a cidade mar-se em valor adicionado à mercadoria
se torna um grande negócio para o capital, resultante do processo de trabalho. O con-
as leis de mercado passam a ditar as regras sumo produtivo usa a realidade material
do ordenamento da configuração socioespa- ao mesmo tempo em que também produz
cial urbana, com efeitos devastadores para (Lefebvre, 2000). E, como a privatização
a boa parte de sua população. dos meios de produção é uma determinação
Assim, no próximo item, será discutido geral do capitalismo, isso implica uma cres-
como o espaço é integrado na acumulação cente privatização do espaço, na medida em
capitalista, sendo, além de produto, tam- que este se incorpora ao capital como meio
bém produtivo para o capital. Em seguida de produção.
será analisado o caso da evolução histórica À dimensão utilitária do espaço, que o
do mercado imobiliário no município de São torna um valor de uso para a sociedade, se
Paulo, destacando-se os Fundos de Inves- sobrepõem determinações históricas da pro-
timento Imobiliários e dos Certificados de dução e da reprodução social, as quais, sob
Recebíveis Imobiliários, para exemplificar a vigência das relações capitalistas de pro-
como o espaço é crescentemente modelado dução, sintetizam o valor de troca e o valor
pela ação do capital ao inserir-se nos circui- de uso. O valor de troca se sobrepõe histo-
tos de valorização financeira. Por fim, serão ricamente ao valor de uso, o que significa
feitas algumas considerações sobre os efei- que, para usufruir determinados atributos 17
tos que essa dominação do espaço pelo ca- do lugar é preciso que se realize, antes de
pital acarreta para a população que vive nas tudo, seu valor de troca. Assim, os proces-
grandes cidades através do exame do caso sos de valorização do espaço passam, neces-
da metrópole paulistana. sariamente, pela mercantilização do próprio
espaço, mais concretamente pela mercantili-
zação dos lugares (Seabra, 1988).
O consumo e a produção De forma mais abrangente, a produção
e o consumo do espaço, assim como a ur-
do espaço sob o modo
banização, estão inseridos no amplo proces-
de produção capitalista so de reprodução das relações de produção
capitalistas, na medida em que são guiados
O espaço é uma condição geral de existên- pelos ditames da propriedade privada e são
cia e reprodução da sociedade. No modo de regulados pelas necessidades do capital, de
produção capitalista, ele é utilizado como gerar valor excedente. Segundo Lefebvre:
meio de produção para a geração de mais-
valia (além de propiciar a obtenção de uma [...] não é somente a sociedade inteira
renda aos proprietários fundiários), sendo, quem se torna o lugar da reprodução
nesse sentido, consumido produtivamente. (das relações de produção e não so-
O consumo produtivo sempre faz desapa- mente dos meios de produção), mas
recer uma realidade material ou natural – é o espaço inteiro. Ocupado pelo neo­

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ca­p italismo, setorializado, reduzido se sentido, a propriedade fundiária (e suas


a um meio homogêneo e, portanto, metamorfoses em direção à transformação
fragmentado, esmigalhado (somente do título de propriedade em uma ação ne-
migalhas do espaço são vendidas à gociável no mercado financeiro) assume
“clientela”), o espaço se torna a sede importante papel na circulação capitalista,
do poder. (1973, p.116) sendo a garantia contratual de intercambia-
bilidade entre compradores e vendedores,
O espaço – e em particular o espaço bem como a garantia legal de extração da
urbano – passa, então, a ter cada vez maior renda fundiária.
importância para o capital, ao mesmo tem- O circuito do imobiliário foi, durante
po em que é “influenciado” pela dinâmica muito tempo, um setor subalterno, subsidiá­
do modo de produção capitalista. A predo- rio, e, paulatinamente, se foi convertendo
minância do financeiro nas estratégias de em um setor paralelo, destinado a inserir-se
acumulação capitalistas tem a produção do no circuito de reprodução capitalista, poden-
espaço como uma das condições de sua rea­ do, inclusive, tornar-se o setor principal se o
lização (Carlos, 2004). São exemplos desse circuito de reprodução capitalista, baseado
espaço produzido em consonância com o na produção-consumo se vê interrompido
capital financeiro a construção de shopping por algum motivo conjuntural ou mesmo es-
centers, empreendimentos de turismo e la- trutural (Lefebvre, 1976).
zer, centros empresariais, grandes condo- Os capitais buscam, assim, um circuito
18 mínios verticais e horizontais, hotéis e flats. secundário, baseado na mercantilização da
Além disso, grandes operações de rearranjo terra e do habitat, anexo com respeito ao
espacial são levadas a cabo pelo Estado em circuito normal do capital (produção-consu-
parceria com o capital, com a finalidade de mo de mercadorias), como setor compensa-
criar novos espaços que sirvam à lógica da tório da reprodução capitalista. Deve-se ter
circulação do capital, como é o caso de al- claro, porém, que o espaço não é uma coisa
gumas das Operações Urbanas de São Paulo entre as coisas, um produto qualquer entre
(Faria Lima, Águas Espraiadas, Água Bran- os produtos, ele compreende as coisas pro-
ca, etc.). duzidas e suas relações na sua coexistência e
Da mesma forma que o capital “imobili- simultaneidade. Por isso, produzir o espaço
za-se no imobiliário”, o ambiente construído não é o mesmo que produzir uma mercado-
e o solo, de bens imóveis passam a ser “bens ria qualquer, como um quilo de açúcar ou
móveis”, que circulam através dos títulos de um metro de tecido (Lefebvre, 2000).
propriedade que a cada momento podem ser Para se ter uma idéia do peso do setor
transformados em dinheiro. Para que possa imobiliário, tem-se o exemplo de São Paulo,
haver um valor de troca do espaço, é neces- onde as atividades imobiliárias foram res-
sário que haja também intercambiabilidade ponsáveis por 20,8% dos investimentos rea­
de frações desse espaço, que é conseguida lizados na Grande São Paulo no período de
através do fracionamento e da homogenei- janeiro de 1995 a maio de 2000, seguidas
zação de parcelas crescentes do espaço (a pela indústria automobilística, com 17,4%,
produção de “células” intercambiáveis). Nes- a indústria química, com 9,8%, o comércio

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varejista, com 7,1%, e telecomunicações, setor imobiliário, e se é tomada em consi-


com 6,2% (Carlos, 2004). deração a crescente integração desse setor
O setor imobiliário teria, assim, uma à reprodução capitalista, ele estaria cada
função essencial a desempenhar na luta con- vez mais sujeito às oscilações cíclicas do mo-
tra a tendência de baixa da taxa de lucro do de produção capitalista, diminuindo sua
média, característica do modo de produção margem de autonomia para a absorção de
capitalista, já que o setor da construção au- capitais excedentes.
fere lucros superiores à média da produção Dessa forma, o espaço, consumido
industrial, pois esse setor emprega, rela- produtivamente nas estratégias de acumu-
tivamente a outros setores da economia, lação capitalista, é transformado, tem suas
mais capital variável com relação ao capital qualidades alteradas pelo consumo; porém,
constante, apesar dos importantes avanços possui a capacidade de, ao ser transforma-
técnicos no setor. Trata-se, então, de uma do, também transformar e produzir o novo;
fonte de mais-valia considerável. Mas esse como nos lembra Lefebvre, o consumo do
setor enfrenta uma grande dificuldade: a espaço é duplamente produtivo, na medida
lenta obsolescência de seus produtos, difi- em que produz tanto mais-valia como ou-
cultando a rotação do capital e o aumento da tro espaço (2000).2 No caso da sociedade
demanda do seu mercado. Essa obsolescên- regida pelo modo de produção capitalista
cia, dados os avanços tecnológicos externos contemporâneo, o novo, o “outro espaço”,
ao setor da construção e ao marketing que seria a urbanização do planeta. E essa ur-
cria continuamente novas necessidades aos banização, comandada pelos princípios da 19
consumidores, pode ser acelerada, criando geração de mais-valia, estaria marcada pela
um movimento constante de relocalização, crescente segregação socioeconômica e cul-
destruição e reconstrução no e do espaço. tural (ibid., 1978).
A existência de “bolhas imobiliárias”1
nas diversas economias capitalistas em mo-
mentos que precedem crises é um indicador
de que o setor imobiliário é, num primeiro A formação do mercado
momento, um setor compensatório da eco- imobiliário paulistano
nomia, atraindo os capitais excedentes, mas
que, ao se sobrevalorizar e “explodir”, é co-
mumente o estopim de crises prolongadas
e sérias, que envolvem toda a economia. O
Da fundação de São Paulo
Japão experimentou uma “bolha imobiliária”
a meados do século XVIII
nos anos 80, e a explosão dessa bolha in-
dicou o início de uma longa recessão nesse Com relação à mercantilização da terra e à
país. Nos anos 70, antes da crise no capita- formação da propriedade fundiária, o perío­
lismo que se iniciou nessa década, também do que vai da fundação do núcleo que deu
houve uma “bolha imobiliária” nas econo- origem à cidade de São Paulo até meados do
mias dos países capitalistas centrais. Ou seja, século XVIII poder ser caracterizado como
há limites para a absorção de capitais pelo marcado pela quase inexistente separação

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entre o público e o privado: as terras eram conhecidas são de 1583 (Taunay, 2003).
concedidas na forma de datas, sem critérios As terras eram facilmente concedidas pela
precisos e definidos para sua concessão pela Câmara, como seria natural numa localida-
Câmara, não havendo um mercado imobiliá- de em que havia muita terra e pouca gen-
rio na São Paulo de então (Silva, 1980). te. Os beneficiários tinham que pagar, em
O regime político de propriedade de contrapartida, foros anuais, de valor muito
terras teve como fundamento, no Brasil, até baixo, havendo ainda concessões sem foro
1822, a sesmaria, forma de propriedade nem pensão alguma, pagando o concessio-
instituída pelo Estado absolutista português nário somente o dízimo. A população que vi-
em 1375, introduzido no Brasil em 1530. via nos arredores da vila não se preocupava
A concessão se fazia gratuitamente, sob a em estabelecer a propriedade fundiária, na
exigência de ocupação com cultivo e desbra- medida em que a posse já lhes garantia o
vamento da terra, e a obrigatoriedade do direito de uso da terra.
pagamento de um dízimo da produção à Or- A existência de algumas poucas transa-
dem de Cristo, à qual o Brasil oficialmente ções de compra e venda de terras na São
pertencia (Andrade, 2002) e em certos ca- Paulo quinhentista revela que o preço cobra-
sos, pagava-se também um foro anual. Dada do pela terra e pela construção era irrisó-
a vasta extensão do país e sua escassa popu- rio. Assim, em 1594, quatro mil réis valiam
lação, a oferta de terra era tão grande que “umas casas situadas no centro da vila”, va-
limites precisos das propriedades não eram lor igual ao de uma espada (Taunay, 2003).
20 estabelecidos, nem eram relevantes. Segundo Saes (1992), esse paradoxo seria
O mecanismo de sesmarias configurava apenas aparente, pois construir uma casa
uma das formas de organização fundiária exigia apenas o uso do trabalho do indígena
dos núcleos urbanos que, na maioria das escravizado que não custava praticamente
vezes, se combinava com as datas, espécie nada em termos monetários, já os produtos
de sesmaria urbana. Uma vez constituída a manufaturados eram provenientes do exte-
vila, a Câmara detinha o poder de doar e re- rior, sendo transacionados em moeda, que
tirar terras, ou seja, cabia à municipalidade era escassa na vila.
a concessão de “terras e chãos” a partir do
“rossio da vila”, ou seja, as terras comunais
pertencentes à vila, outorgadas pelo dona- A cidade comercial
tário da capitania (Rolnik, 1999). O proces- e o boom cafeeiro
so de obtenção de sesmarias era bastante
moroso e burocrático, o que estimulava, ao São Paulo, em fins do século XVIII, inicia sua
lado do processo legal de apropriação de transição para o período de predomínio do
terras pela doação de datas e de sesmarias, capital mercantil, que articularia a produção
a apropriação direta por pessoas de meno- de sua hinterlândia com o exterior. Segun-
res recursos e prestígio: eram os chamados do Paul Singer (1977) a função comercial
posseiros. de São Paulo ampliou-se a partir do século
Dentro da área demarcada da vila de XVIII e começos do século XIX, ao servir a
São Paulo, as mais antigas cartas de data cidade de entreposto ao intercâmbio entre

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diversas regiões do país, que não lhe eram província, passando a ser a sede da burocra-
diretamente tributárias e o interior paulis- cia, o centro dos gastos de receitas provin-
ta, cuja agricultura perdera parcialmente ciais e, em 1828, a Faculdade de Direito é aí
seu caráter de subsistência, adquirindo um estabelecida, atraindo estudantes de muitas
modesto setor de exportação de açúcar, partes do Império, membros das elites re-
principalmente com a produção de cana-de- gionais, o que impulsionou o comércio e o
açúcar nas áreas de Campinas e Itu, o que setor de serviços que atendia a esses estu-
possibilitou o desenvolvimento de alguns dantes. O crescimento econômico e popula-
circuitos propriamente urbanos de riqueza cional da cidade, porém, ainda era lento, o
(Seabra, 1987). que contribuía para o pequeno desenvolvi-
Em 1822, com a Independência, foi mento do mercado imobiliário. As relações
extinto o regime de sesmarias e iniciou-se sociais tinham por base as relações escravis-
um período de amplo apossamento de ter- tas, o que minimizava a necessidade de se-
ras, sem clara definição dos procedimentos gregação espacial no interior da cidade, já
a serem adotados para a sua obtenção. Mas que a hierarquia social estava bem definida
não podemos dizer que nesse momento já por essas relações.
havia uma disputa pela propriedade da terra; Somente com a expansão da cafeicul-
segundo Seabra (1987), os contornos dessa tura no oeste paulista, justamente a partir
disputa apenas estavam começando a se de- de meados do século XIX, é que a cidade
finir, tornando-se mais acirrados em meados passará a experimentar um novo surto de
do século XIX, com o maior desenvolvimento crescimento, mais acelerado que o ocorrido 21
das relações capitalistas na cidade. no século XVIII e primeira metade do XIX. É
Com a Lei de Terras de 1850, ficou es- a partir de 1868 que o sistema São Paulo-
tabelecido que a única forma legal de acesso Santos se insere de forma cada vez mais
à terra seria a compra devidamente registra- sólida no grande negócio cafeeiro, com a
da. Reconhecia-se, assim, a mercantilização construção da ferrovia (1867), e, a partir
da terra e distinguia-se legalmente sua pos- da última década do século XIX, arrebata ao
se e seu uso de sua propriedade legal. Em Rio de Janeiro sua posição hegemônica, tor-
1854, em decorrência da regulamentação nando-se o grande eixo de comercialização
da Lei de Terras, todos os moradores que do mais importante produto de exportação
estivessem em vilas ou cidades, em áreas ur- brasileiro no período.
banas e rurais, obrigatoriamente, deveriam Os anos iniciais da década de 1870 se-
ir até a igreja da freguesia em que moravam riam fundamentais para o desenvolvimento
para definir ou provar sua propriedade (Gle- de São Paulo, na medida em que esse foi o
zer, 1994/95). período em que, no oeste paulista, a zona
Anteriormente ao boom cafeeiro, São pioneira da época, se dá uma inflexão na re-
Paulo passou por um desenvolvimento eco- lação entre terra e trabalho, iniciando-se o
nômico lento, porém cumulativo, desen- processo de desaparecimento da renda capi-
volvimento esse também incentivado por talizada na pessoa do trabalhador (escravo),
fatores extra-econômicos (Singer, 1977). que é substituído pela terra como principal
Em 1822, a cidade tornou-se a capital da fonte de riqueza.

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Apesar do comércio cafeeiro localizar- ras de São Paulo, “mais do que indicar os
se sobretudo em Santos, foi em São Paulo vetores de crescimento da cidade, expressa
que se concentraram os estabelecimentos uma mudança de mentalidade e de interes-
bancários, dado o seu status de capital da se sobre o valor do solo urbano” (Costa,
província, tendo em vista a dependência dos 2003, p. 60).
negócios bancários da política econômica Pode-se dizer que, a partir de 1880,
do governo. Outro fator, proveniente da algumas circunstâncias levaram os imóveis
cafeicultura, que influiu no desenvolvimen- urbanos a se tornarem uma das mais inte-
to econômico e urbano de São Paulo foi o ressantes opções de investimentos (Brito,
fato de que numerosos fazendeiros fixaram 2000): a disponibilidade de capitais, que
residência na capital, ampliando o mercado vinha se configurando pelo menos desde
imobiliário da cidade e o setor comercial e 1850, com a proibição do tráfico de escra-
de serviços para atender a esse grupo. De vos liberando os recursos aí imobilizados
acordo com Saes (1992), a transferência por comerciantes e fazendeiros; o cresci-
dos fazendeiros para São Paulo também te- mento demográfico e econômico da capital,
ve por efeito a transferência para a cidade, o que aumentou bastante a demanda por
não apenas de sua residência, mas também imóveis por todas as classes de renda; a
de crescentes parcelas do seu capital, confi- busca por aplicações seguras em uma con-
gurando a “capital do capital” dos fazendei- juntura política incerta nos últimos anos do
ros. Outro elemento importante foi o esta- Império e início da República. Vale lembrar
22 belecimento da Hospedaria dos Imigrantes,3 que a economia cafeeira era sujeita a mui-
transformando São Paulo em um mercado tas oscilações (problemas climáticos, crises
de força de trabalho para a economia cafe- externas, superprodução e oferta excessiva,
eira. O grande afluxo de imigrantes para o etc.), o que fortalecia o papel da terra ur-
trabalho na lavoura teve por efeito o esta- bana como reserva de valor para os capitais
belecimento de muitos deles na cidade, con- excedentes. Outro elemento importante pa-
tribuindo para o crescimento desta. ra o estímulo à formação de uma atividade
Segundo Langenbuch (1968), aproxi- imobiliária importante nos primeiros anos
madamente até a década de 1890, a cidade da República foi o chamado “Encilhamento”
de São Paulo era circundada por um cintu- (1889-1891), 4 que teve em São Paulo o
rão de chácaras, que, além de fins agrícolas, efeito de criar quinze bancos e 207 compa-
encerravam importante função residencial nhias, muitas delas baseando seus negócios
para as famílias abastadas. Essas chácaras na atividade imobiliária (Barbosa, 1987).
formavam um bloco relativamente compac- Como exemplo do processo de valori-
to, que circundava a cidade, estendendo-se zação das terras na cidade tem-se o caso de
até as atuais áreas de Ponte Grande, Pari, Frederico Glette e Vitor Nothmann que, ao
Brás, Mooca, Cambuci, Vila Mariana, Jar- lotearem a Chácara Mauá para famílias de
dim Paulista, Vila América, Santa Cecília, cafeicultores, gastaram cerca de cem contos
Barra Funda e Bom Retiro. Foram loteadas na aquisição do terreno e auferiram um re-
por seus proprietários, desde fins do Impé- sultado final de oitocentos contos na venda
rio. O desmembramento das antigas cháca- dos lotes (Toledo, 1978).

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Ao mesmo tempo em que se forma um Ao findar o século XIX, já se havia esta-


mercado fundiário na cidade, formas pré-ca- belecido na cidade de São Paulo um mercado
pitalistas de uso e apropriação da terra ainda imobiliário considerável, constituído por ca-
eram comuns: a concessão de datas e enfi- sas, oficinas e quartos para aluguel e lotea­
teuses continuava a ser prática corrente, da mentos de antigas chácaras. O crescimento
mesma forma que a grilagem de terras mu- demográfico decorrente, principalmente,
nicipais era muito comum (Brito, 2000). Em da imigração e a diversificação econômica
1893, pela lei nº 39, de 24/5/1893, o serviço resultante da riqueza gerada pela atividade
de enfiteuses e arrendamentos foi regulado, cafeeira acirraram a disputa por localizações
suprimindo-se formalmente a cessão de ter- na cidade, o que favoreceu o mercado de
renos por datas. Apesar de regulamentado e venda de terras e aluguel de edificações. En-
interrompido sob o ponto de vista formal, o tre 1887 e 1890 o preço médio dos terre-
processo de grilagem das terras municipais, nos em São Paulo teria triplicado (Raffard,
muitas vezes de enormes extensões e por 1892). Já existia, por sua vez, uma seg-
um único indivíduo ou empresa, continuou a mentação desse mercado em submercados:
ocorrer, num momento em que o mercado as casas de negócio do centro, os quartos e
imobiliário da cidade se consolidava e a cida- casas de aluguel residencial em vários bair-
de enfrentava grande falta de moradias de- ros da cidade, os loteamentos elegantes e as
corrente de seu rápido crescimento. glebas para lotear para os trabalhadores.
De acordo com Seabra (1987), com a
inauguração da fase das ferrovias como mo- 23
dalidade de transporte, surgem novas ten- A formação da metrópole
dências quanto aos processos de ocupação industrial
da cidade: os baixos terraços das várzeas do
Tietê e do Tamanduateí foram ocupados pe- Nos primeiros anos do século XX, o proces-
las linhas férreas, provocando uma valoriza- so de industrialização já se encontra conso-
ção das faixas de terras por elas percorridas. lidado na capital paulista e a racionalidade
E os vetores ferroviários foram predomi- do capital monopolista já se manifesta de
nantemente ocupados pela indústria e pelas forma clara através das grandes concessio-
camadas de mais baixa renda da população nárias de serviços públicos, na incorporação
(Villaça, 1978), sendo que tanto o Rio Ta- de novas tecnologias importadas do exterior
manduateí quanto a linha férrea constituíam (iluminação, bondes elétricos), das grandes
um marco que delimitava as áreas da popu- companhias loteadoras e das próprias indús-
lação mais rica e a mais pobre. A oeste desse trias já instaladas, com o seu par indissociá­
marco situavam-se os bairros das camadas vel, a formação de um proletariado que se
de mais alta renda. Dessa forma, durante concentra nos bairros operários e nos cor-
décadas, a cidade encontrou-se dividida en- tiços. Segundo Petrone (1955), nos primei-
tre os bairros centrais e os além-Tamandua- ros cinqüenta anos do século XX, o processo
teí (oeste e leste do rio, respectivamente). E de industrialização transformou a “metró-
a segregação socioespacial tornou-se assim pole do café” na dinâmica e movimentada
nítida, bem demarcada. “metrópole industrial”, sendo que no final

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dos anos 30 São Paulo já era o maior centro como a Vila Economizadora5), e os sócios
industrial da América do Sul. podiam adquirir essas moradias através de
Nesse período a cidade se expande, com financiamento da companhia que distribuía
o crescimento dos subúrbios, localizados a bonificações, pensões e aposentadorias.
cerca de três, quatro ou mais quilômetros Algumas companhias de maior porte
dos limites urbanos, como Santana, Penha, dedicaram-se ao negócio imobiliário nesse
Ipiranga, Pinheiros e Água Branca (Azevedo, período, reunindo capitais nacionais e estran-
1961). Ocorre um aumento no número de geiros. Não se pode deixar de mencionar,
edifícios e do número de andares de muitos como exemplos de grandes empresas que
deles, cresce o número de veículos motori- atuaram no setor imobiliário em São Pau-
zados, criam-se os “bairros-jardim” para a lo, o caso da Companhia City (Wolff, 2001),
população de maior renda, e a população da criada em 1911, reunindo sócios brasileiros
cidade aumenta a um ritmo acelerado. e estrangeiros e o caso da Companhia Light,
Nas primeiras décadas do século XX grande proprietária de terras nas margens
o ritmo da construção civil se intensifi- do Rio Pinheiros (Seabra, 1987).
cou, tornando-se uma importante fonte de Inicia-se, concomitantemente à expan-
acumu­lação: expandiram-se as atividades in- são da cidade, o processo de verticalização:
dustriais e comerciais ligadas à construção as construções verticais passaram de 4% do
física da cidade, à expansão dos prédios, total em 1910 para 33% em 1920 (Barbo-
ao calçamento de ruas e à urbanização de sa, 1987). O capital imobiliário, então em
24 bairros. Pelo menos até a década de 1930, constituição, exigia a multiplicação do solo
a construção de casas de aluguel, de diver- urbano, o que foi conseguido através da
sos tipos e tamanhos, era vista como uma verticalização das áreas centrais mais valori-
forma de investimento de retorno certo e zadas, constituindo uma nova estratégia de
seguro, pois, além de uma renda mensal, o valorização do capital (Somekh, 1997).
investidor contava com a excepcional valori- Ao lado da verticalização do centro,
zação imobiliária ocasionada pela expansão observa-se nesse período já uma expan-
da cidade (Bonduki, 1998). são horizontal da cidade decorrente das
A partir de 1910, esses empreendi- facilidades de transporte. A operação da
mentos passam a ser feitos também por The São Paulo Tramway Light and Power,
companhias prediais e mútuas. As compa- iniciada em 1899, acarretou uma segun-
nhias prediais eram, ao mesmo tempo lo- da onda de explosão das vilas na zona su-
teadoras, incorporadoras, construtoras e burbana, nas superfícies vazias situadas às
administradoras de imóveis. Já as mútuas margens dos rios, nos interstícios da rede
eram companhias de Crédito Imobiliário, de estradas de ferro ou nas proximidades
que operavam captando poupança através dos terminais da Light.
de um sistema de pagamento mensal dos No final dos anos 30, lentamente, co-
sócios. Esse capital era investido em terre- meça a ocorrer uma mudança no padrão de
nos e construções de “habitações econômi- crescimento da cidade, marcado pela substi-
cas” (que podiam ser pequenos grupos de tuição do transporte sobre trilhos (bondes)
casas geminadas até centenas de habitações, pelo transporte sobre rodas (ônibus, auto-

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a cidade como negócio: produção do espaço e acumulação do capital no município de são paulo

móveis) e pela constituição da autoconstru- radias, sem contar com o déficit já existente
ção na periferia como forma predominante e o número considerável de prédios demo-
de habitação das camadas de baixa renda, lidos em função do boom imobiliário e de
o que resultou no espraiamento progressi- desapropriações para obras viárias (ibid.).
vo e na diminuição da densidade da cidade. Para agravar a situação, deixara de ser in-
Soma-se a isso, principalmente a partir dos teressante investir na construção de casas
anos 40, a verticalização nas zonas centrais e de aluguel devido ao congelamento dos
a consolidação do centro/sudoeste da cidade aluguéis (Lei do Inquilinato de 1942) e às
como centralidade privilegiada, concentran- restrições governamentais ao financiamen-
do os bairros residenciais de alta renda e os to de incorporações de edifícios. Em virtu-
principais centros de comércio e serviços. de dessa situa­ção, nos anos 40, houve uma
Nesse contexto, a especulação imobiliá­ aceleração da construção de arranha-céus
ria tornou-se intensa. Segundo Langenbuch­ na área central, destinados a investidores
(1968), a falta de lotes disponíveis nas ou aos setores de rendas mais altas, e queda
áreas­ mais próximas à ocupação mais densa na edificação de prédios para o mercado de
da cidade e seu alto preço obrigaram parte locação residencial de menor renda. Exem-
dos novos moradores (sobretudo migrantes plo ilustrativo do agravamento da escassez
nacionais) a se estabelecerem em áreas mais de moradia em São Paulo é o surgimento,
afastadas. A instalação das indústrias ao lon- na década de 1940, das primeiras favelas,
go das ferrovias estimulava os operários a se localizadas em terrenos municipais.
estabelecerem em torno das estações ferro- A partir de 1950 a produção imobiliá­ 25
viárias fora da “cidade”, onde poderiam ad- ria diversifica-se, com empreendimentos
quirir terrenos ou alugar casas a preços mais realizados e financiados pelas companhias
baixos. Surge, assim, um extenso “cinturão construtoras e com a atuação dos Institutos
de loteamentos residenciais suburbanos”, Previdenciários e outros órgãos estatais ou
mas ainda escassamente edificados e ocupa­ paraestatais no desenvolvimento suburbano
dos. A enorme oferta de lotes baratos – (Langenbuch, 1968). Muitos loteamentos
pois distantes e desprovidos de benfeitorias seguiram a implantação industrial, localizan-
urbanas –, podendo ser pagos a prestação, do-se nos novos eixos rodoviários iniciados
com a possibilidade de serem ocupados sem a partir do final da década de 1940, espe-
os custos e os aborrecimentos envolvidos na cialmente ao longo das vias Dutra e Anchie-
feitura e aprovação de uma planta e sem o ta. A cidade se expandiu em várias direções,
risco de perturbação pela fiscalização viabi- ocupando as várzeas e as colinas, englo-
lizou o mercado de loteamentos distantes e bando antigos núcleos isolados, adensando
criou uma alternativa habitacional de massa loteamentos e áreas já ocupadas, levando a
para os trabalhadores (Bonduki, 1998). população para cada vez mais longe do cen-
A cidade de São Paulo, centro industrial tro. Ao lado das atividades propriamente
do país, teve sua população aumentada de industriais, a atividade de lotear, exercida
1,3 milhão de habitantes em 1940 para 2,2 pela iniciativa privada, foi uma das locomo-
milhões em 1950. Esse aumento demográ- tivas dessa urbanização acelerada (Sampaio,
fico criou uma necessidade adicional de mo- 1994). Dentre os loteadores, havia empre-

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sários industriais (os Matarazzo, os Álvares os proprietários fundiários e para os pro-


Penteado, os Abdalla, etc.), proprietários motores imobiliários graças à valorização
de empresas de material de construção, lo- dos vazios urbanos criados e zelosamente
teadores proprietários de empresas imobi- mantidos no processo.
liárias e construtoras, banqueiros, etc. Na Num contexto de constante arrocho
maior parte dos casos dos empresários imo- salarial, desemprego e alta rotatividade no
biliários, a atividade de lotear não constituía trabalho, tornou-se cada vez mais difícil
nem a única e nem a mais importante ativi- para a população trabalhadora ter acesso
dade da empresa, e sim um lucrativo com- à propriedade (mesmo que irregular) do
plemento de suas atividades. terreno para realizar a autoconstrução. As
O crescimento que a cidade experimen- “soluções” de moradia encontradas por uma
tou na primeira metade do século XX con- crescente parte da população mais pobre
tinuou, de forma acelerada, nas duas déca- foram as favelas, os cortiços ou a migração
das seguintes à década de 1950. A Região para as áreas mais distantes do município
Metropolitana de São Paulo, ou Grande São ou de seu entorno. Ao lado das iniciativas
Paulo, foi a sede do chamado “milagre bra- particulares de promoção habitacional (o
sileiro” da década de 1970, sendo objeto de cortiço, a favela e a casa autoconstruída na
intensos investimentos que remodelaram
periferia), o Estado assumiu um papel mais
o espaço urbano de maneira radical: cons-
ativo na questão habitacional. A criação do
trução de vias expressas, pontes, viadutos,
BNH em 1964 foi um indicador desse fato,
26 alargamento e abertura de novas avenidas
mas não conseguiu atender às camadas mais
com vistas a facilitar a circulação automobi-
pobres da população, pois grande parte de
lística e das mercadorias.
seus recursos serviu ao financiamento de
O processo de periferização se acelerou
moradias para os estratos de rendimento
a partir de 1964, impulsionado pelo arro-
médio e alto, de acordo com o interesse
cho salarial e pela intensificação da especula­
das empresas do ramo da construção civil.
ção imobiliária, num período de acentuado
O BNH produziu mudanças radicais no siste-
crescimento industrial e expansão do aglo-
ma financeiros público e privado, bem como
merado metropolitano, provocando um au-
propiciou a modernização e concentração
mento de nove vezes da mancha urbana do
das empresas do ramo de construção civil,
município de 1960 a 1990.
visando sempre a acumulação capitalista
Esse padrão de crescimento periférico
mais do que o atendimento ao problema ha-
mostrou-se uma grande fonte de lucros de-
bitacional (Souza, 1994).
rivados da especulação imobiliária. Segundo
Kowarick e Campanário (1994), a terra re-
tida para fins especulativos, em meados da
década de 1990, atingia 27% da área dis- A metrópole a partir
ponível para edificação. O desenvolvimento da década de 1970
extensivo e horizontal da Grande São Paulo,
alimentado pela abertura dos loteamentos A partir da década de 1970 observa-se uma
irregulares, foi, sem dúvida, proveitoso para relativa e restrita desconcentração industrial

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no país, na região Sudeste e no estado de A cidade ilegal, forjada a partir da dé-


São Paulo (Lencioni, 1994). De acordo com cada de 1940, cujo processo de formação
Rolnik (2001), a indústria mudou radical- de periferias se intensificou na década de
mente, com grandes reflexos não apenas so- 1960, continua a representar a maior parte
bre a estrutura de empregos, como também da área urbanizada e é o local de moradia
sobre a organização espacial da cidade: gran- da maior parte dos habitantes de São Pau-
des e médias indústrias deixam a localização lo. Já a expansão urbana da cidade “legal”
junto aos eixos ferroviários e rodoviários e das duas­ últimas décadas passou a ser de-
milhares de pequenas fábricas se misturam terminada por grupos empresarias que se
com outros usos no tecido urbano, ocupan- deslocam para o quadrante sudoeste do mu-
do até mesmo áreas da extrema periferia. À nicípio, evadindo-se do centro tradicional. O
medida que as indústrias saíram da cidade velho centro torna-se, então, um problema
ou se deslocaram para outras áreas­ dela, os social, engendrando associações e projetos
bairros industriais tradicionais tiveram seu
(com o apoio do Estado) de “revitalização”,
uso redefinido para usos residenciais, co-
que envolvem importantes interesses do ca-
merciais e de lazer.
pital imobiliário e financeiro.
Ao lado das transformações nas indús-
A crise que se abateu sobre a econo-
trias, o setor terciário adquiriu maior peso
mia durante as décadas de 1980 e 1990
nas atividades econômicas da metrópole,
teve efeitos sobre o financiamento de apar-
destacando-se o setor financeiro, o que con-
tamentos para a classe média (o BNH foi
tribuiu para uma produção do espaço ligada 27
extinto em 1986) e boa parte desta última
a estratégias monopolistas, com maior par-
também perdeu poder aquisitivo. Dessa
ticipação do capital financeiro nos empre-
forma, o mercado imobiliário passou a con-
endimentos imobiliários. Ao mesmo tempo,
centrar seus lançamentos nas camadas mais
deu-se o aumento do desemprego, do sub­
emprego e da economia informal e a pre- ricas, que poderiam arcar com os custos da
carização da moradia de grande parte dos produção habitacional. Uma saída para a
trabalhadores (com o aumento do número classe média foi o autofinanciamento atra-
de favelados e moradores de cortiços). vés de cooperativas e consórcios habitacio-
Segundo Caldeira (2000), a São Pau- nais, o que, de fato, fez com que a produ-
lo do final dos anos 90 seria mais diversa ção imobiliária destinada às rendas médias
e fragmentada do que era nos anos 70. A se reaquecesse após 1993 (Castro, 1999).
oposição centro-periferia continuaria a mar- Esses empreendimentos, muitas vezes, loca-
car a cidade, mas a São Paulo de hoje seria lizam-se em antigas áreas industriais, fora
uma região metropolitana mais complexa, do tradicional eixo sudoeste de valorização e
que não poderia mais ser mapeada pela sim- concentração da riqueza.
ples oposição de rico versus pobre, sendo, O mercado imobiliário destinado às
antes de tudo, uma cidade de muros, com camadas de rendimentos mais altos da po-
uma população obcecada por segurança e pulação é mais imune às crises econômicas
discriminação social (ibid.). e depende menos de financiamento, público

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ou privado, sendo o preferido dos empre- ditos para as obras ser fundamental. Além
sários do setor. O surgimento, em meados disso, a demanda desse setor encontra-se
da década de 1990, de novas modalidades fragmentada entre os diversos usos a que se
de captação de recursos por parte do setor destina a produção imobiliária e às diversas
imobiliário, como os Fundos de Investimen- faixas de renda da população que procura
to Imobiliário (FIIs) e os Certificados de Re- um imóvel para morar, havendo muitas ve-
cebíveis Imobiliários (CRIs), ligadas ao capi- zes a necessidade de financiamento para a
tal financeiro, sinalizaram uma reafirmação efetivação da demanda. Ou seja, como nos
do vetor sudoeste da cidade como área de demais ramos industriais, o setor da cons-
valorização privilegiada. Em 2002, 63% trução necessita de um capital autônomo
dos lançamentos de alto padrão que ocorre- (Topalov, 1979) para a viabilização de suas
ram na Grande São Paulo concentraram-se atividades produtivas e para a realização do
nos distritos de Moema (597 lançamentos), capital aí investido.
Os Certificados de Recebíveis Imobi-
Campo Belo (488 lançamentos), Morumbi
liários (CRIs) e os Fundos de Investimento
(406 lançamentos), Jardins (23 lançamen-
Imobiliário (FIIs) são instrumentos intro-
tos) e Alto de Pinheiros (130 lançamentos)
duzidos no Brasil no seio da reestruturação
(Lage, 2003).
do financiamento habitacional da década de
Tais instrumentos, que significam uma
1990. Apesar de serem considerados por
nova etapa de inserção da produção do es-
alguns agentes do setor imobiliário como
paço nos circuitos de valorização do capital,
28 o futuro do financiamento da habitação de
serão analisados no próximo item.
mercado, tais instrumentos ainda não rea-
lizaram todas as suas potencialidades por
uma série de fatores que serão analisados
Os novos instrumentos mais adiante. Em sua grande maioria, ain-
de financeirização da atuam no país como forma de abreviar o
do setor imobiliário tempo de circulação do capital comprome-
tido com a produção imobiliária existente e
A necessidade de recursos volumosos para não como maneira de reunir capitais para o
a compra de materiais – quase sempre bens financiamento de novos projetos, ao contrá-
intermediários duráveis –, para o pagamen- rio do que ocorre em países onde esses ins-
to da força de trabalho, para a adequação trumentos são mais antigos.
às inovações tecnológicas (particularmente Em 1997, foi promulgada a Lei 9.514,
sensível na construção de imóveis comer- que estabeleceu o Sistema Financeiro Imobi-
ciais) e para o acesso ao solo urbano, tendo liário (SFI), aprovada pelo Congresso Nacio-
em vista a barreira colocada ao setor pela nal a partir de proposta de lei da Associação
propriedade fundiária, faz com que o apor- Brasileira de Entidades de Crédito Imobiliá­
te inicial de recursos necessários à produção rio (ABECIP); trata-se de um sistema de
imobiliária seja elevado, superando muitas financiamento complementar ao tradicional
vezes a capacidade de investimento dos em- Sistema de Financiamento Habitacional (que
presários do setor. Daí a necessidade de cré- não deixou de existir com a criação do SFI).

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a cidade como negócio: produção do espaço e acumulação do capital no município de são paulo

São inovações no financiamento imobiliário títulos que adquiriram sobre o ativo securi­
nacional através da criação de instrumentos tizado. Assim, os títulos são gerados por
de securitização imobiliária que possibilitam uma entidade legal, criada exclusivamente
a transformação de bens imóveis em títulos para suportar a operação de securitização.
mobiliários. A lei que criou o SFI introdu- Essas entidades são as Sociedades de Propó-
ziu também um novo veículo legal denomi- sito Específico (SPE).
nado Companhia Securitizadora de Créditos Os FIIs foram criados em junho de
Imobiliários, sociedades com propósitos de 1993, pela Lei 8.668, e regulamentados
fazer a securitização dos recebíveis imobiliá­ pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários)
rios através da emissão dos CRIs - títulos em janeiro do ano seguinte, ano em que foi
imobiliários equivalentes a debêntures. lançado o primeiro FII, o Memorial Office
Tais inovações buscam articular o setor Building, na cidade de São Paulo. Atualmen-
imobiliário com o mercado financeiro, esta- te, já estão em funcionamento cerca de 60
belecendo um processo de desintermediação fundos, com um patrimônio líquido de cer-
bancária para o financiamento da produção, ca de R$ 2,4 bilhões.6 Os projetos-alvo dos
ao mesmo tempo em que oferecem possi- FIIs são variados, desde shopping centers e
bilidades de ganhos financeiros aos investi- parques temáticos a hospitais, de edifícios
dores. O mecanismo da securitização amplia de escritórios e galpões industriais a con-
as possibilidades de captação de recursos e juntos habitacionais e condomínios de alto
acesso a financiamento aos “originadores” padrão. As grandes “estrelas” dos FIIs são
desses créditos (as incorporadoras, cons- os shoppings­ centers (como o Shopping Pá- 29
trutoras, etc.), dando-lhes acesso direto tio Higienópolis em São Paulo) e os edifícios
ao mercado de capitais e reduzindo, teori- comercias de alto padrão. Em consulta rea-
camente, os custos e riscos da captação de lizada junto aos prospectos de FIIs deposita-
recursos financeiros. A securitização tam- dos na CVM, em novembro de 2002, apenas
bém possibilitaria uma aceleração do tempo dezesseis fundos imobiliários criados até
de giro do capital das empresas, através de aquela data tinham como objetivo o merca-
transformação dos direitos a receber pela do residencial, de um universo de cerca de
venda dos imóveis a prazo em títulos ven- sessenta atuantes no país naquele momento.
didos à vista. Dessa forma, a incorporadora Alguns outros possuíam em sua finalidade a
não necessita esperar pelo vencimento da aquisição genérica de imóveis, sem especifi-
dívida dos mutuários para recuperar o capi- car o tipo de mercado a que se destinavam.
tal investido. Até 1999, os principais investidores
Considerando que os investidores em nos FIIs eram os grandes fundos de pensão
títulos imobiliários securitizados têm como (como a Previ, a Valia, a Petros, a Funcef,
grande interesse a qualidade dos recebíveis etc.) e investidores institucionais. Somente
e do ativo originado, é essencial que os ati- a partir desse ano é que se buscou atrair
vos negociados sejam separados da estru- os pequenos e médios investidores, com o
tura jurídica do “originador”, evitando que lançamento de fundos com cotas de valor
o eventual fracasso da instituição emitente unitário mais baixo, como é o caso do Eu-
prejudique os direitos dos investidores nos ropar, do Shopping Pátio Higienópolis, do

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Hospital da Criança, do Projeto Água Bran- Paulo a partir de 1994 concentram-se no


ca, do Reit Brasil, lastreado no edifício de chamado “vetor sudoeste”, área privilegia-
escritórios de primeira linha JK Financial da da cidade e de maior valor venal do so-
Center, entre outros. Atualmente, os prin- lo. De 46 FIIs existentes em 2004, 36 en-
cipais agentes do mercado de FIIs seriam as contram-se nesse setor do município. Dos
instituições financeiras de pequeno e mé- 40 CRIs consultados, 24 estão situados no
dio porte. Chama a atenção o fato de os “vetor sudoeste”. Ou seja, a concepção dos
grandes bancos não terem se interessado agentes imobiliários e financeiros de que
por esse mercado, já que possuem formas a localização dos empreendimentos é fun-
de aplicação de seus recursos muito mais damental para seu maior retorno faz com
atraen­tes que os FIIs, como os fundos las- que seus interesses se voltem para as áreas­
treados em títulos públicos. mais valorizadas das cidades. O Mapa 1,
Já os Certificados de Recebíveis Imo- elaborado a partir dos dados pesquisados,
biliários (CRIs) foram criados com a lei mostra a localização dos FIIs e dos CRIs
9.514 de 1997, que criou o SFI. Segundo no município de São Paulo, bem como dos
essa lei, “o Certificado de Recebíveis Imobiliá­­­ imóveis pertencentes a Fundos de Pensão
rios – CRI­­­­é um título de crédito nominativo, na capital paulista.
de livre negociação, lastreado em créditos Ao serem comparados os dados relati-
imobiliários e constitui promessa de paga- vos à localização dos empreendimentos com
mento em dinheiro”. De forma equivalente aqueles relativos aos preços do solo urbano
30 a uma debênture, o CRI pode ser colocado no município de São Paulo, pode-se perce-
no mercado através de uma emissão públi- ber que a distribuição dos FIIs e dos CRIs se
ca (títulos postos à venda junto ao merca- concentra nas áreas mais valorizadas do mu-
do, sem necessidade de destino específico) nicípio, existindo uma forte correlação en-
ou de uma emissão privada (específica pa- tre a ação dos empreendimentos ligados às
ra determinados investidores já acertados). instituições financeiras e as áreas de maior
Baseando-se em dados da Comissão de Va- valor venal, algo “natural” se for levado em
lores Mobiliários (CVM), estima-se que fo- consideração o fato de que tais instituições
ram emitidas, até 2002, cerca de R$ 340 (representadas pelos Fundos de Pensão, pe-
milhões em CRIs (Vendrossi, 2002). Desse los Fundos de Investimento Imobiliário e pe-
total, 50% corresponderia a operações re- las empresas de securitização de recebíveis
lativas ao mercado de imóveis residenciais, imobiliários) representam parte da fração
o que revela uma maior vocação desse tipo mais sofisticada do setor (tanto em termos
de instrumento financeiro para atender ao de produção dos imóveis quanto ao mercado
mercado residencial. consumidor a que se destinam) e que con-
Em levantamento realizado junto à tam com os recursos do capital financeiro,
Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e potencializando sua ação sobre o urbano.
empresas ligadas à emissão desses papéis, A partir da co-relação dos dados de lo-
pôde-se perceber que a grande maioria dos calização com o preço dos terrenos, tem-se
FIIS e dos CRIs lançados na cidade de São a seguinte distribuição de freqüências:7

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Mapa 1 – Localização dos Fundos de Investimento Imobiliários (FIIs),


Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) e imóveis pertencentes
a Fundos de Pensão no município de São Paulo

LEGENDA
u I.F. - C.R.I.’s (40)
n I.F. - F.I.I.’s (46)
l I.F. - Fundos Pensão (32)

0 3 6 9
kilometers

Fonte: CVM - Empresas de Securitização de Recebíveis e Fundos de Pensão. Base Cartográfica Digital e Geopro-
cessamento: Prof. Dr. Reinaldo P. Pérez Machado. Dados de 2002 a 2004.
31

Gráfico 1 – Distribuição de Freqüência dos Imóveis de instituições financeiras por


Intervalo de Valor Venal da Terra no município de São Paulo – 20048
Empreendimentos Imobiliários

Valor venal da terra

Fonte: Elaborado a partir de dados obtidos junto à CVM, Empresas de Securitização de Recebíveis e Fundos de
Pensão, no período entre 2002-2004. Valores em R$.

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A maior parte dos estabelecimentos de equipamentos urbanos disponíveis, e que


situa-se na faixa entre 114,22 a 1.137,82 são alvo privilegiado das atenções de investi-
R$/m² (77 imóveis, representando 65,25% mento do setor público.
da amostra). Cerca de 6,7% dos imóveis A constituição de um mercado imobiliá-
situam-se na faixa de preço entre 1.137,83 rio unido estreitamente ao capital financeiro
a 2.063,76 R$/m² e outros 6,0% situam- atua no sentido de aprofundar as distâncias
se na faixa entre 2.063,77 e 6.118,97 R$/ existentes entre as distintas classes e frações
m². Na faixa inferior de valores, 1,7% dos de classe sociais, pois são apenas pequenos
imóveis situam-se numa faixa de valor entre grupos privilegiados os que podem ter aces-
3,21 e 23,39 R$/m² (trata-se de imóveis so à produção imobiliária desse mercado
utilizados com fins industriais e de logística mais restrito. Tal distanciamento é acen-
pertencentes ao FII Europar, localizados em tuado quando se considera a atual política
áreas mais distantes do centro do municí- habitacional, que destina a população mais
pio). E 20% dos imóveis situam-se na faixa pobre às áreas menos valorizadas e mais
entre 23,4 e 114,21 R$/m². distantes nas metrópoles brasileiras e que,
Dessa forma, conclui-se que quase 80% dadas as dificuldades de toda ordem impos-
dos imóveis pertencentes às Instituições Fi- tas ao financiamento habitacional da classe
nanceiras que atuam no mercado imobiliário média, contribuiu para sua periferialização
se localizam numa faixa de valores da ter- (Botelho, 2007).
ra no município de São Paulo que pode ser Com a criação dos novos instrumen-
32 considerada como média, média-alta e alta.9 tos de captação de recursos financeiros, o
Tal constatação explica-se pelo fato de que poder de intervenção no espaço urbano das
os agentes ligados às Instituições Financeiras empresas do setor imobiliário se amplia, ga-
atuam em um setor do mercado imobiliário rantindo recursos necessários, tanto para a
cuja demanda possui maior nível de renda superação da barreira colocada pelos altos
e cuja lógica é a valorização máxima dos preços da terra urbana nas áreas mais valo-
empreendimentos como forma de prover o rizadas quanto para a aceleração do tempo
pagamento de dividendos (nos quais se con- de rotação do capital no setor da constru-
fundem renda fundiária, juros e lucros) aos ção. Além disso, complexifica-se a questão
seus acionistas ou cotistas. da segregação socioespacial, pois os empre-
Pode-se dizer que os grandes empreen- endimentos em questão (principalmente os
dimentos, voltados para as camadas de ren- grandes condomínios residenciais e centros
dimentos mais altos da população, acentuam empresariais), muitas vezes, encontram-se
o caráter de fragmentação e hierarquização isolados de seu entorno, formado por áreas
do espaço urbano, ao concentrarem seus pobres ou de favelas, tornando-se verdadei-
investimentos em áreas já valorizadas da ras fortalezas muradas e dependentes de um
metrópole, aumentado a distância socioeco- forte aparato de segurança para garantir a
nômica que separa essas áreas do restante tranqüilidade de seus moradores, fenômeno
da cidade. Geralmente, são áreas que con- que se torna cada vez mais comum no muni-
tam com o melhor nível de infra-estrutura e cípio de São Paulo (Caldeira, 2000).

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a cidade como negócio: produção do espaço e acumulação do capital no município de são paulo

Considerações finais tem por conseqüência um aprofundamento


da separação espacial das distintas classes
sociais, na medida em que, tendencialmente,
À evolução socioeconômica da capital pau- homogeneizam-se socialmente as áreas da
lista correspondeu uma transformação na cidade através dos mecanismos de hierarqui-
forma de inserção do espaço urbano nas zação dos preços de acesso à terra urbana e
estratégias de acumulação capitalista. Trata- à moradia. Além disso, tal homogeneização
se de um claro exemplo de como o urbano é acompanhada por uma crescente fragmen-
se insere progressivamente nos circuitos de tação do espaço, que se materializa na dimi-
valorização do capital, processo que se inicia nuição das áreas de transição e de convívio
com a mercantilização da terra, passa pe- entre distintas camadas socioeconômicas da
lo seu parcelamento, pela verticalização, e, população. Ao mesmo tempo em que a dis-
mais recentemente, pela financeirização dos tância em quilômetros entre os ricos e po-
ativos imobiliários, em consonância com a bres diminui, a distância socioeconômica au-
própria financeirização da economia capita- menta e as barreiras que impedem o conví-
lista contemporânea. vio entre as distintas classes sociais tornam-
Os novos instrumentos de captação de se onipresentes nos shoppings­ centers, con-
recursos ainda estão em uma fase inicial no domínios fechados e fortificados, nas áreas
Brasil, com uma atuação ainda tímida, mas de lazer exclusivas para um determinado
que possui importantes potencialidades de grupo social, etc. Tais empreendimentos,
se transformar numa importante forma de cada vez, possuem menos relação com seu 33
obtenção de recursos para o setor imobiliá­ entorno imediato, constituindo verdadeiras
rio. Trata-se, porém, de uma “solução de ilhas no urbano, que, com uma arquitetura
mercado”, que não pode ser considerada pe- bem característica e com uma padronização
lo poder público e nem pelos agentes imobi- socioeconômica, exclui como usuários as ca-
liários urbanos como a única solução para o madas da população de rendimentos médios
financiamento imobiliário habitacional, ten- e baixos.
do em vista a realidade socioeconômica da Através dos dados analisados, consta-
grande maioria da população brasileira, que ta-se que a ação dos agentes imobiliários li-
não possui condições de participar das re- gados às Instituições Financeiras concentra-
gras de mercado. É necessário que soluções se nas áreas mais valorizadas do urbano e
alternativas coexistam, sob o risco de que a concretiza-se através de empreendimentos
maior parte da população não tenha acesso de alto padrão, ligados tanto ao comér-
à moradia e que os processos de segregação cio (shopping­ centers), à gestão do capital
socioespacial já tão marcantes nas grandes (centros empresariais e grandes edifícios
cidades brasileiras, se acentuem até limites de escritórios) e à moradia. Dado o grande
inimagináveis. volume de capital empregado nesses empre-
O que ocorre é, na verdade, a trans- endimentos e às suas proporções, pode-se
ferência para o “mercado” de grande parte considerar que correspondem a legítimos re-
da responsabilidade da provisão e do finan- presentantes do grande capital, cuja ação se
ciamento da provisão habitacional. Tal fato materializa em uma maior homogeneização

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e hierarquização de determinadas parcelas cionais e construídos por empreiteiras, sem


do espaço urbano. oferecer outras opções de localização à po-
A partir de década de 1990, com as pulação atendida pelo poder público, o que
transformações propostas com a criação do gera um confinamento dessa população em
SFI, a antiga centralização dos recursos pa- áreas distantes e precárias em termos de in-
ra o financiamento imobiliário levada a cabo fra-estrutura, equipamento urbanos, opor-
pelo binômio Banco Nacional da Habitação tunidades de trabalho, estudo, consumo e
(BNH)/Sistema de Financiamento Habitacio- lazer. Assim, segundo apurou Huchzermeyer
nal (SFH) é substituída por uma maior des- (2004), a experiência de diferentes países
regulamentação do mercado imobiliário. O mostra que a segregação social e a polari-
novo modelo, ainda em constituição, pode zação da ocupação territorial parecem ser
significar um movimento mais intenso em menores em países que possuem uma maior
direção à formação de cidades mais frag- variedade de formas pelas quais os subsídios
mentadas e segregadas. Pois, quanto maior habitacionais são distribuídos e naqueles em
o controle na produção imobiliária (e par- que o grau de envolvimento do governo é
ticularmente a habitacional) pela lógica do maior. Não se trata do caso brasileiro em
mercado, maior será o nível de fragmenta- geral, e paulistano, em particular.
ção do espaço e de segregação socioespacial No caso da população mais rica, o pú-
na cidade, já que só os que podem pagar po- blico consumidor dos grandes empreendi-
derão ter acesso irrestrito ao que Henri Le- mentos imobiliários ligados ao capital fi-
34 febvre (1999) chamou de “as positividades nanceiro, o que parece ser fruição é antes
do urbano”, sem que isso signifique, para consumismo gerado pelo lado dos agentes
esses privilegiados, uma verdadeira fruição imobiliários urbanos, que buscam vender
dessas positividades – dado o clima de ten- novos produtos e, através de estratégias de
são, medo e insegurança reinante nas gran- obsolescência programada, encurtar o ciclo
des metrópoles. de vida de seus produtos. Novas necessida-
A divisão do mercado imobiliário entre des são apresentadas como fundamentais
instrumentos de financiamento e provisão para a vida dos mais privilegiados: seguran-
habitacional privados e estatais também ça, isolamento, fuga da poluição, contato
contribui para a segregação socioespacial com a “natureza”. Esses elementos são uma
urbana, ao concentrar-se esta última no constante nos novos empreendimentos gera-
atendimento das camadas mais pobres da dos pela associação entre o setor imobiliário
população. Isso ocorre porque o modelo de e o financeiro, intensificando os processos
financiamento estatal para a população mais de segregação socioespacial, em prejuízo da
pobre ainda está vinculado ao financiamento idéia reconhecidamente utópica de Lefebvre
à oferta de moradias construídas em terre- (1999) de que o urbano seria, antes de tu-
nos comprados pelas Companhias Habita- do, marcado pelo encontro e pela troca.

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a cidade como negócio: produção do espaço e acumulação do capital no município de são paulo

Adriano Botelho
Formado em Economia pela Universidade de São Paulo e em Geografia pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo. Mestre e doutor em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Hu manas da Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil). Aluno do Instituto
Rio Branco – Curso de Formação em Diplomacia - Ministério das Relações Exteriores.
abot@usp.br

Notas
(1) Pode-se caracterizar uma “bolha imobiliária” como o fenômeno de rápido aumento dos
preços dos imóveis em decorrência do excesso de investimentos realizados no setor imobi-
liário.

(2) Lefebvre, ao discutir o consumo produtivo do espaço, parte do conceito de Marx, de con-
sumo produtivo, atualizando, porém, esse conceito. Para Marx (1989, p. 666), o consumo
produtivo ocorre quando o trabalhador, aplicando sua força de trabalho sobre os meios de
produção, transforma-os em produtos de valor maior que o desembolsado pelo capital. Ocor-
re, portanto, consumo tanto da força de trabalho quanto dos meios de produção no processo
produtivo. O consumo produtivo se opõe ao consumo individual. Esse último ocorre quando
o capitalista ou o trabalhador emprega o dinheiro para a satisfação de suas necessidades
pessoais, não ocorrendo a geração de um novo bem com valor de mercado.

(3) A Hospedaria de Imigrantes, cuja construção se iniciou em 1886, no bairro do Brás, foi con-
35
cebida para abrigar os recém-chegados nos seus primeiros dias em São Paulo. Os imigrantes
ficavam na Hospedaria por até oito dias. Em geral, esse prazo era suficiente para que acer-
tassem os seus contratos de trabalho, geralmente com fazendas de café.

(4) O Encilhamento ocorreu durante o governo provisório de Deodoro da Fonseca (1889-1891).


O Ministro da Fazenda Rui Barbosa, na tentativa de estimular a industrialização do Brasil,
adotou uma política emissionista baseada em créditos livres aos investimentos industriais
garantidos pelas emissões monetárias. Tais medidas geraram um movimento de especulação
com papéis, a criação de empresas-fantasma e aumento da inflação. Apesar do fracasso da
política de Rui Barbosa, sua política monetária mais frouxa possibilitou a formação de im-
portantes grupos empresariais com atuação no mercado imobiliário.

(5) Criada em 1907, a Sociedade Mútua Economizadora Paulista contratou o empreiteiro Antô-
nio Bocchinni para construir esta vila, com 117 casas e 17 armazéns voltados para a Rua São
Caetano, área central do Município de São Paulo.

(6) Fonte: http://www.cvm.gov.br/, acessado em 15/03/2005.

(7) O dados de preço dos terrenos foram obtidos a partir do trabalho de Machado, 2004.

(8) Elaborado a partir de dados obtidos junto à CVM, Empresas de Securitização de Recebíveis
e Fundos de Pensão, no período entre 2002-2004. Valores em R$.

(9) Considera-se como o intervalo entre zero e 114,21 R$/m² como correspondente à faixa de
valores baixos. Entre 114,22 e 475,31 R$/m² como valores médios, entre 475,32 e 1.137,82
R$/m² como médios-altos e, finalmente, acima de 1.137,83 R$/m² como altos valores dos
terrenos.

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adriano botelho

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Recebido em ago/2007
Aprovado em out/2007

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