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TRABALHO, PRECARIZAÇÃO E RESISTÊNCIAS:


novos e velhos desafios?1

Graça Druck*

O artigo discute por que a precarização social do trabalho é um novo e velho fenômeno, é
diferente e igual, é passado e presente, um fenômeno de caráter macro e microssocial. Apresen-
ta alguns fetiches presentes nas análises sobre o trabalho no contexto de mundialização do
capital, marcado pela hegemonia do capital financeiro, pela reestruturação da produção e do
trabalho e por um “novo espírito do capitalismo”. São cinco seções: introdução; discussão
sobre aspectos metodológicos a partir de reflexões de projetos de pesquisa em andamento;
considerações teóricas sobre a caracterização do capitalismo flexível e a centralidade da
precarização social do trabalho; contextualização do trabalho na América Latina e no Brasil à
luz dos estudos da OIT, indicadores de precarização e de resistências; e debate os velhos e novos
desafios trazidos pelas transformações sob a égide da precarização social do trabalho e de um
“espírito do capitalismo” reformulado, que, ao mesmo tempo em que reafirma o velho espírito,
constitui um novo espírito.
PALAVRAS-CHAVE: trabalho, precarização, resistências, indicadores sociais.

O artigo tem por objetivo apresentar três conceituais e de investigação de realidades con-
conjuntos de questões de naturezas diversas, que cretas, mas expliquem a formulação de categori-
estão presentes em pesquisas cujas temáticas es- as mediadoras para a compreensão das transfor-
tão inseridas no debate sobre as transformações mações, tendências e continuidades ou
do trabalho nas últimas quatro décadas. Mais reconfigurações trazidas sob a égide da precari-
especificamente, busca-se tratar da precarização zação social do trabalho.
social do trabalho e das formas atuais de resis- É com essa perspectiva que se pretende
tência numa perspectiva que contemple desafi- defender que o mundo do trabalho contemporâ-
os de caráter metodológico, de conteúdo teórico neo, na transição do século XX para o século XXI,
e de análise de realidades empíricas. vivencia uma rede de transformações cuja com-

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Grande parte das pesquisas produzidas de- plexidade só pode ser desvendada a partir de uma
para-se com essas questões. Portanto, não há no- perspectiva histórico-dialética. As contradições
vidade alguma ao se destacar esses desafios. En- histórico-sociais do trabalho não permitem con-
tretanto, pretende-se abordá-los de forma articu- clusões apressadas ou definitivas sobre rupturas
lada, de tal modo que as escolhas metodológicas e novas formas de trabalho ou de relações sociais,
não apenas sejam coerentes com os elementos pois, ao lado de novas condições e situações soci-
* Doutora em Ciências Sociais, com pós-doutorado na ais de trabalho, velhas formas e modalidades se
Universidade de Paris XIII. Professora associada I do De-
partamento de Sociologia e da Pós-Graduação em Ciênci- reproduzem e se reconfiguram, num claro pro-
as Sociais da Universidade Federal da Bahia – PPGCS/
FFCH/UFBA. Pesquisadora do Centro de Recursos Hu- cesso de metamorfose social.
manos/FFCH/UFBA e do CNPq.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Estrada de Portanto, pretende-se explicitar por que a
São Lázaro, 197. Federação, Cep: 40.210-730. Salvador, precarização social do trabalho é um novo e um
Bahia – Brasil. druckg@gmail.com
1
Este artigo contou com a colaboração de Selma Silva, velho fenômeno, por que é diferente e igual, por
Bolsista de Pós-doutorado do PNPD/Capes, a quem agra-
deço a elaboração e atualização dos dados da PNAD. Agra- que é passado e presente e por que é um fenô-
deço também a sua leitura, os comentários e sugestões
que foram, em sua maioria, incorporados ao texto. meno de caráter macro e microssocial. Para tal

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empreitada, discutem-se alguns dos mitos e feti- ALGUMAS REFLEXÕES METODOLÓGICAS


ches2 estatísticos que têm influenciado as análi-
ses sobre o trabalho e os trabalhadores no atual Este artigo recupera alguns referenciais
contexto de mundialização do capital, marcado metodológicos que foram se explicitando no de-
pela hegemonia do capital financeiro, de uma senrolar de uma pesquisa que venho desenvol-
nova reestruturação da produção e do trabalho vendo sobre a construção de indicadores sociais
e de um “novo espírito do capitalismo”,3 como da precarização social4 no Brasil. Nela, toma-se
formulado por Luc Boltanski e Ève Chiapello por referência a definição de “indicador social”
(2009). de Januzzi (2003):
Para atingir esses objetivos, dividiu-se o
texto em quatro seções, além desta introdução. Um indicador social é uma medida em geral
quantitativa dotada de significado social subs-
A primeira enuncia alguns aspectos e preocupa- tantivo, usado para substituir, quantificar ou
ções metodológicas, a partir de reflexões sobre operacionalizar um conceito social abstrato, de
interesse teórico (para pesquisa acadêmica) ou
projetos de pesquisa em andamento. A segunda
programático (para formulação de políticas). É
apresenta algumas considerações de caráter teó- um recurso metodológico, empiricamente refe-
rico, a fim de avançar na precisão do momento rido, que informa algo sobre um aspecto da rea-
lidade social ou sobre mudanças que estão se
histórico, da caracterização do capitalismo flexí- processando na mesma.
vel e da centralidade da precarização social do Para a pesquisa acadêmica, o Indicador Social é,
pois, o elo de ligação entre os modelos explicativos
trabalho. A terceira contextualiza, à luz dos es-
da Teoria Social e a evidência empírica dos fenô-
tudos da OIT, o quadro do trabalho e do empre- menos sociais observados (p.15).
go na América Latina e no Brasil, apresentando
alguns indicadores de precarização social e de Observa-se que os indicadores sociais são
resistência dos trabalhadores. E a quarta seção classificados como: quantitativos (ou objetivos),
pretende enunciar algumas reflexões na tentati- construídos a partir de estatísticas e fontes se-
va de explicitar quais são os velhos e os novos cundárias ou de informações quantitativas de
desafios trazidos pelas transformações sob a égide estudos de casos e (ou) surveys; e qualitativos
da precarização social do trabalho e de um “es- (ou subjetivos), constituídos por pesquisas de
pírito do capitalismo” reformulado, redefinido, cunho qualitativo, que utilizam estudos de casos
que reafirma o velho espírito ao tempo que re- de vários tipos (locais, setoriais, regionais, longi-
nova e constitui um novo espírito. tudinais etc.) através de pesquisa direta e fontes
primárias e que também formam uma base de
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A noção de fetiche aplicada neste artigo, conforme expli- dados significativa nos estudos das ciências so-
cado na seção “algumas reflexões metodológicas“, refere- ciais no Brasil.
se aos processos de análise que absolutizam e autonomizam
as informações quantitativas ou qualitativas, naturalizan- Após dois anos de pesquisa, algumas ob-
do o dado e os considerando como a própria realidade (cf.
Bresson, 1995). servações merecem ser acrescentadas a essas con-
3
Trata-se do título do livro desses autores, que analisa as siderações. Em primeiro lugar, um esclarecimen-
transformações do capitalismo nos tempos atuais e as
mudanças ideológicas, à luz dos fundadores da Sociolo- to no que se refere aos indicadores quantitativos,
gia, especialmente Max Weber, tendo por objetivo princi-
pal revelar as relações que se estabelecem entre o capita- ou com base em estatísticas. É fundamental não
lismo e seus críticos. Consideram como “espírito”, “... a
ideologia que justifica o engajamento no capitalismo” (p. se deixar levar pelo fetiche dos números. Isso por-
39), buscam compreender como esse novo espírito conse- que, quando se compreende o quantitativo como
guiu neutralizar a crítica social e apresentam uma propos-
ta que desnaturalize o social, historicizando-o numa pers- só objetividade, a tendência é autonomizar o nú-
pectiva de contraposição à perplexidade ideológica e de
reforço à resistência ao fatalismo intelectual que tomou 4
Trata-se do projeto de pesquisa A Precarização Social do
conta da esquerda e de grande parte da intelectualidade Trabalho no Brasil: uma proposta de construção de indi-
francesa. Título original do livro: Le Nouvel Esprit du cadores, apresentado em 2007 e iniciado em 2008. Projeto
Capitalisme. Paris: Gallimard, 1999. Traduzido e publica- apresentado ao CNPq para obtenção de Bolsa produtivi-
do no Brasil como O Novo Espírito do Capitalismo, São dade, aprovado, realizado com apoio também da Capes/
Paulo:Martins Fontes, 2009. p.700 PNPD, desde 2008, e do PIBIC/UFBa/CNPq.

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mero da sua própria origem, da sua construção e tetizam. Mais uma vez, vale retomar Besson (1995):
representatividade. É essa autonomização que leva
à absolutização do quantitativismo, reconhecen- O fetichismo estatístico nasce da confusão do
índice com a realidade. Ele infecta constantemen-
do-se as estatísticas como única fonte legítima te não só os ‘quantitativistas’, mas também nu-
de conhecimento da realidade e de sua veracida- merosos ‘qualitativistas’. Os primeiros acreditam;
os segundos, não; os dois desconhecem as con-
de, impondo-as a outras formas de conhecimen-
dições da produção da estatística, o caráter nor-
to, de dados e informações de pesquisas que não mal e inevitável das convenções, das contingên-
são “objetivas” e, portanto, “científicas”. cias, dos fluxos que a acompanham. Os primei-
ros não querem vê-las; os segundos, quando as
De acordo com Besson (1995), as estatísti- percebem, fazem de tudo para rejeitar as estatís-
cas são resultados de observação de fatos e não ticas; os dois dividem a mesma concepção abso-
lutista do conhecimento (p.49).
uma simples operação de medida. Os “fatos” são
construídos, e a observação é um processo de de-
É nessa perspectiva que se propôs a cons-
finição do objeto. Assim, “As estatísticas não re-
trução de um conjunto de Indicadores de
fletem a realidade, refletem o olhar da sociedade
Precarização do Trabalho e de Resistências que
sobre si mesma” (p.19). Toda informação estatís-
procurasse combinar informações de naturezas
tica é resultado de um trabalho de conceituação,
diversas e complementares: (a) as estatísticas –
organização e observação e de exploração (p.19).
cujas bases de dados são elaboradas por institui-
Trata-se, portanto, de relativizar essa objetivida-
ções oficiais do estado e, por isso, são credenciadas
de das informações quantitativas, pois:
e sancionadas socialmente, como o IBGE, além
de outras bases específicas da área de Trabalho e
Por detrás das informações estatísticas se encon-
tra um modelo conceitual, por meio do qual a Emprego, que estão sob a responsabilidade do
realidade é filtrada. As categorias são definidas e Ministério do trabalho e do Emprego (MTe), do
os casos, resolvidos. Todo quadro de cifras tem
assim uma dupla natureza: qualitativa e quanti- Ministério Público do Trabalho (MPT), da Justi-
tativa. Sua estrutura, os títulos das linhas e das ça do Trabalho (JT) e do Instituto Nacional de
colunas traduzem a modelização preliminar do
Seguro Social (INSS), inclusive em parceria com
fenômeno (p.47).
instituições já amplamente reconhecidas, como
é o caso do DIEESE5 – e (b) as bases de dados
No que se refere às informações de cará-
que reúnem resultados de pesquisas qualitati-
ter qualitativo, também a fetichização se mani-
vas, individuais e coletivas, cujos estudos são
festa quando, ao desqualificar as estatísticas pelo
locais, setoriais, de casos específicos, e conse-
seu caráter globalizante e massificante, que re-
guem traduzir situações variadas de trabalho, de
duz os homens a números, a uma contagem, re- CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011
emprego e de desemprego, que as estatísticas,
afirma-se a qualidade do subjetivo, do individu-
por serem classificações padronizadas e codifi-
al, do singular, como único caminho para o co-
cadas, não podem revelar. É o caso de publica-
nhecimento “real” da realidade social. Trata-se
ções individuais de resultados de projetos, de
do mesmo tipo de equívoco, já que, mais uma
teses e dissertações, que apresentam a diversi-
vez, absolutiza-se o método de produção da in-
dade regional, setorial e de diferentes segmentos
formação como se ele fosse o preciso e exato
de trabalhadores, bem como das suas diferentes
conhecimento do real. Não se leva em conta que
inserções e condições de trabalho.
as informações obtidas, interpretadas e analisa-
Nessa medida, a intenção é de fugir aos
das, são todas dotadas de representações
fetiches e às armadilhas que as informações quan-
conceituais e ideológicas e, portanto, estão sen-
titativas e qualitativas podem levar, mesmo que as
do construídas pelos homens que pesquisam e
pelos pesquisados, como sujeitos e atores do pro- 5
DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Es-
cesso de sua produção e dos resultados que sin- tudos Socioeconômicos.

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dificuldades para tal sejam grandes. Isso porque indicadores sociais. No caso das estatísticas de tra-
se observa, tanto no campo da grande imprensa balho, emprego e renda, há que se pensar na estabi-
como nos estudos acadêmicos, uma tendência ao lidade ou instabilidade das categorias conceituais,
uso de “cifras fetiches”, como exemplifica Besson ainda mais quando se consideram as rápidas trans-
(1995), ou de casos paradigmáticos, que são trata- formações no mundo do trabalho. Essa é uma pre-
dos de forma retórica, acentuando-se e dramati- ocupação permanente dos profissionais que cons-
zando-se a sua representatividade, nos quais se troem as estatísticas. No caso do seu uso, a combi-
substitui o todo pela parte e se confunde o real nação de dados e a construção de indicadores é
com a síntese que as informações – qualitativas e uma alternativa para acompanhar as transformações.
quantitativas – representam desse real.6 Isso porque há uma relativa liberdade na formula-
Assim, as estatísticas não são medidas ou ção de indicadores, pois se podem combinar, de
fotografias quantitativas, mas resultados de ob- forma diferente, diversos indicadores, assim como
servações e, portanto, não são nem verdadeiras construir novos, mesmo tendo por base as “velhas”
nem falsas. Quando se pergunta se os números estatísticas. De toda forma, a produção de estatísti-
são precisos, é necessário reconhecer que “... toda cas assim como de indicadores é acionada pelas
observação estatística tem um grau de inexati- transformações da realidade socioeconômica. No-
dão. Isso porque “... as estatísticas são imagens vas categorias conceituais e novas séries históricas
de síntese, que representam não as situações in- são implementadas porque os fatos novos exigem
dividuais, mas a média dessas situações.” observação, codificação, classificação e explicação.
(Besson, 1995, p.32, grifo meu). Por fim, considera-se que toda produção de
Por sua vez, os estudos qualitativos não estatísticas, de informações e dados, assim como o
podem substituir as observações estatísticas. Eles seu uso por estudiosos, é fruto de escolhas. E essas
também são resultados de observações, cuja escolhas revelam uma postura científica e ideológi-
codificação e classificação são de outra nature- ca que influencia decisivamente as modalidades
za, pois não precisam ser validados oficialmen- qualitativas e quantitativas de pesquisas. Por isso, a
te, mas, necessariamente, tem de ter aceitação e, subjetividade e a objetividade são indissociáveis
portanto, um tipo de validação e reconhecimen- tanto numa modalidade como na outra. Nem os
to entre seus pares, isto é, entre os pesquisado- números, nem os fatos, nem o “campo empírico”
res da área temática da qual fazem parte. Dessa da pesquisa falam por si mesmos. Por isso, a pro-
forma, também são portadores de uma síntese posta de um projeto de pesquisa para a constru-
e, por isso, se constituem numa linguagem co- ção de Indicadores de Precarização Social do Tra-
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mum que dá inteligibilidade às situações de tra- balho já revela, em sua denominação, uma esco-
balho, emprego e desemprego, por exemplo. lha a partir de um posicionamento crítico frente à
Ainda cabem duas considerações essenci- atual realidade do trabalho e que, por sua vez, di-
ais no que se refere ao uso das estatísticas. Se fere da denominação dos Indicadores de Trabalho
consideradas em sua produção como “monopó- Decente, formulada pela OIT. Entretanto, o objeti-
lio” das instituições do Estado, elas têm servido vo não é contrapor uma denominação a outra. Ao
para diagnosticar e sustentar propostas de políti- contrário, busca-se demonstrar que a apropriação
cas públicas, especialmente quando se trata de das estatísticas e pesquisas sobre o trabalho, nas
últimas décadas no mundo, na América Latina e
6
O autor se refere ao uso de números fetiches, a exemplo no Brasil, indica o mesmo processo: um “déficit
de número de mortos nas estradas, número de desempre-
gados, etc., que vêm acompanhados da afirmação “...há x de trabalho decente” ou um quadro de precarização
anos não acontecia, esta é a 1ª vez depois de x anos”, cujo
objetivo é dramatizar, diferenciar, escandalizar, a fim de social do trabalho.
deixar a marca da informação nos que a ouvem e, em ge- E, para deixar explícita essa escolha, resga-
ral, desconhecem a sua origem ou como são construídas,
escolhidas e o que representam. ta-se aqui o que está afirmado no projeto de pes-

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quisa (Druck, 2007, p.19-20), quando introduz o tensa e longa da produção e do trabalho.
conceito temático a partir do qual se pretende cons- Parte-se, portanto, da caracterização de uma
truir os indicadores: nova fase do capitalismo contemporâneo, também
denominado de flexível (Sennett, 1999) ou de acu-
No caso do estudo proposto, o conceito temático
mulação flexível (Harvey, 1995). E, nessa denomi-
do qual se parte para a construção de indicado-
res é a Precarização Social do Trabalho, com- nação, já está subjacente a compreensão de que o
preendida como um processo em que se instala sistema capitalista, em seu desenvolvimento his-
– econômica, social e politicamente – uma
institucionalização da flexibilização e da tórico, sofreu transformações significativas – espe-
precarização moderna do trabalho, que renova e cialmente no campo do trabalho e das lutas dos
reconfigura a precarização histórica e estrutural
trabalhadores – que redefiniram a sua configura-
do trabalho no Brasil, agora justificada pela ne-
cessidade de adaptação aos novos tempos glo- ção, mesmo que mantivessem sua essência como
bais [...] um sistema cujas relações sociais se assentam so-
O conteúdo dessa (nova) precarização está dado
pela condição de instabilidade, de insegurança, bre o trabalho assalariado, ou seja, pela apropria-
de adaptabilidade e de fragmentação dos coleti- ção do trabalho pelo capital, através da compra e
vos de trabalhadores e da destituição do conteú-
venda da força de trabalho no mercado, indepen-
do social do trabalho. Essa condição se torna cen-
tral e hegemônica, contrapondo-se a outras for- dentemente das formas de contrato existentes ou
mas de trabalho e de direitos sociais duramente predominantes.
conquistados em nosso país, que ainda perma-
necem e resistem. Assim, é o processo de acumulação ilimita-
O trabalho precário em suas diversas dimensões da de capital que comanda a sociedade, numa busca
(nas formas de inserção e de contrato, na
insaciável pelo lucro, pela produção do exceden-
informalidade, na terceirização, na desregulação
e flexibilização da legislação trabalhista, no de- te, cada vez mais estimulada pela concorrência
semprego, no adoecimento, nos acidentes de tra- intercapitalista no plano mundial. Um processo
balho, na perda salarial, na fragilidade dos sin-
dicatos) é um processo que dá unidade à classe- que dissocia o capital e as formas materiais de ri-
que-vive-do-trabalho e que dá unidade também queza (valores de uso), conferindo-lhes um caráter
aos distintos lugares em que essa precarização
abstrato, cuja valorização através do trabalho exce-
se manifesta. Há um fio condutor, há uma arti-
culação e uma indissociabilidade entre: as for- dente garante perpetuar-se a acumulação.
mas precárias de trabalho e de emprego, expres- Entretanto, na história do capitalismo, esta-
sas na (des)estruturação do mercado de trabalho
e no papel do Estado e sua (des) proteção social, beleceram-se diferentes padrões de acumulação,
nas práticas de gestão e organização do trabalho frutos de um conjunto de fatores econômicos, so-
e nos sindicatos, todos contaminados por uma
ciais e políticos, destacadamente as lutas de resis-
altíssima vulnerabilidade social e política.
tência dos trabalhadores, que colocaram limites à
acumulação, redefinindo e implementando direi- CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011
O ATUAL MOMENTO DA ACUMULAÇÃO tos sociais e trabalhistas, assim como a aceitação e
FLEXÍVEL: a precarização como estratégia legitimação, pela sociedade e pelo Estado, da pro-
de dominação teção social como um direito a ser garantido.
São conjunturas históricas que atuam so-
Primeiramente, pretende-se apresentar bre as condições estruturais do sistema e o modi-
uma reflexão acerca do atual momento históri- ficam, interferindo sobre as suas formas e configu-
co, em que o trabalho assume uma determinada rações. São, portanto, momentos que sintetizam
configuração que se tornou hegemônica em ter- determinadas relações de forças das ações das clas-
mos mundiais há, pelo menos, quatro décadas. É ses sociais, cujas experiências também variam his-
a era identificada como de uma mundialização iné- toricamente. O que se quer dizer, em síntese, é que
dita do capital, apoiada num projeto político e eco- o capitalismo do século XIX não é o mesmo do
nômico de cunho neoliberal e que se concretizou século XX, e muito menos o do século XXI.
essencialmente através de uma reestruturação in- Entretanto, as diferentes conjunturas histó-

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ricas e as transições de uma era a outra evidenci- contexto dos anos 1960, além de um padrão de vida
am processos de transformação em que velhas e que permitia planejar o progresso social, havia um
novas formas de trabalho e emprego coexistem, são ambiente político de grande mobilização e crítica
combinadas e, ao mesmo tempo, se redefinem, aos padrões capitalistas, o que desembocou no maio
indicando um típico movimento de metamorfose, de 68. As lutas sociais contra as diferentes formas
que, no atual momento, se dá sob a égide de uma de desigualdade no trabalho, na escola, na família,
dinâmica que passa a predominar sobre outras: é de gênero, raça e geração tiveram uma forte expres-
a dinâmica da precarização social do trabalho. são e levaram a protestos no mundo inteiro.
A acumulação flexível, que tão bem caracteri- Na era da acumulação flexível, as transfor-
za o capitalismo contemporâneo, tem sua origem na mações trazidas pela ruptura com o padrão fordista
busca por superar uma conjuntura de crise de outro geraram outro modo de trabalho e de vida pautado
padrão de desenvolvimento capitalista, marcado pelo na flexibilização e na precarização do trabalho,
fordismo e por um regime de regulação cuja experi- como exigências do processo de financeirização da
ência mais completa se deu nos países que consegui- economia, que viabilizaram a mundialização do
ram implementar um estado de bem-estar, experiên- capital num grau nunca antes alcançado. Houve
cia que nem mesmo na Europa se generalizou. uma evolução da esfera financeira, que passou a
Não se trata de retomar aqui o debate sobre determinar todos os demais empreendimentos do
a crise do fordismo. Entretanto, vale comparar al- capital, subordinando a esfera produtiva e conta-
gumas características daquela crise e o atual con- minando todas as práticas produtivas e os modos
texto após 40 anos de alternativas ao velho padrão de gestão do trabalho, apoiada centralmente numa
fordista de desenvolvimento. Como foi muito bem nova configuração do Estado, que passa a desem-
observado por Boltanski e Chiapello (2009), con- penhar um papel cada vez mais de “gestor dos
trariamente à crise dos anos 1970, o quadro hoje é negócios da burguesia”, já que ele age agora em
de “... coexistência entre a degradação da situação defesa da desregulamentação dos mercados, espe-
econômica e social de um número crescente de cialmente o financeiro e o de trabalho.
pessoas e um capitalismo em plena expansão e Conforme já foi afirmado em outros escritos
profundamente transformado” (p.19). (Druck, 2007, 2010), essa hegemonia do setor finan-
Nas análises da crise do fordismo, havia um ceiro ultrapassa o terreno estritamente econômico do
consenso que apontava uma situação de saturação mercado e impregna todos os âmbitos da vida social,
da produção em massa, com queda no ritmo da dando conteúdo a um novo modo de trabalho e de
produtividade nos principais países do mundo e vida. Trata-se de uma rapidez inédita do tempo soci-
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queda da lucratividade. No capitalismo flexível, al, sustentado na volatilidade, efemeridade e


embora o crescimento econômico tenha se descartabilidade sem limites de tudo o que se pro-
desacelerado, a lucratividade aumentou, e os gan- duz e, principalmente, dos que produzem – os ho-
hos do capital nunca foram tão altos e tão rápidos. mens e mulheres que vivem do trabalho. É isso que
No ambiente socioeconômico dos países que fize- dá novo conteúdo à flexibilização e à precarização do
ram a experiência dos Estados de Bem-estar ou de trabalho, que se metamorfoseiam, assumindo novas
políticas públicas de pleno emprego, em resposta dimensões e configurações. O curto prazo – como
à crise de 1929, o fordismo representou uma soci- elemento central dos investimentos financeiros –
edade em que o progresso econômico e social atin- impõe processos ágeis de produção e de trabalho, e,
giu amplos segmentos e onde era possível plane- para tal, é indispensável contar com trabalhadores
jar o futuro das novas gerações, pois as condições que se submetam a quaisquer condições para aten-
de trabalho e emprego permitiam algum tipo de der ao novo ritmo e às rápidas mudanças.
vínculo de longo prazo. Assim, a mesma lógica que incentiva a per-
Conforme Boltanski e Chiapello (2009), no manente inovação no campo da tecnologia e dos

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novos produtos financeiros, atinge a força de tra- vel significa também entendê-la como uma estraté-
balho de forma impiedosa, transformando rapida- gia de dominação. Isto é, força e consentimento são
mente os homens que trabalham em obsoletos e os recursos que o capital se utiliza para viabilizar
descartáveis, que devem ser “superados” e substi- esse grau de acumulação sem limites materiais e
tuídos por outros “novos” e “modernos”, isto é, morais. A força se materializa principalmente na
flexíveis. É o tempo de novos (des)empregados, imposição de condições de trabalho e de emprego
de homens empregáveis no curto prazo, através precárias frente à permanente ameaça de desempre-
das (novas) e precárias formas de contrato. go estrutural criado pelo capitalismo. Afinal, ter
Nesta era, de um “novo espírito do capitalis- qualquer emprego é melhor do que não ter nenhum.
mo” (Boltanski; Chiapello, 2009), o capital leva até Aplica-se aqui, de forma generalizada, o que Marx e
as últimas consequências o fim único de fazer mais Engels elaboraram acerca da função política princi-
dinheiro do dinheiro, não mais tendo como meio pal do “exército industrial de reserva”,7 qual seja: a
principal a produção em massa de mercadorias, mas de criar uma profunda concorrência e divisão entre
sim a especulação financeira, pautada na os próprios trabalhadores e, com isso, garantir uma
volatilidade, na efemeridade, no curtíssimo prazo, quase absoluta submissão e subordinação do traba-
sem estabelecer laços ou vínculos com lugar ne- lho ao capital, como única via de sobrevivência para
nhum, sem compromissos de nenhum tipo a não os trabalhadores. O consenso se produz a partir do
ser com o jogo do mercado (financeiro em primeiro momento em que os próprios trabalhadores, influ-
lugar), pautado numa desmedida concorrência in- enciados por seus dirigentes políticos e sindicais,
ternacional que não aceita qualquer tipo de regulação. passam a acreditar que as transformações no traba-
Assim, não é mais o padrão da sociedade lho são inexoráveis e, como tal, passam a ser
do pleno emprego, mas o de uma sociedade de justificadas como resultados de uma nova época ou
desempregados e de formas precárias de trabalho, de um “novo espírito do capitalismo”.
de emprego e de vida que passa a predominar tam- Esse “novo espírito” insiste em desqualificar
bém onde se tinha atingido um alto grau de desen- os valores construídos na era anterior, fazendo
volvimento econômico e social, a exemplo dos desmoronar a crença no progresso, nas possibili-
países que tiveram as experiências dos Estados de dades de emprego e de direitos sociais de longo
Bem-Estar Social. prazo e num Estado protetor. Em nome da “via
Trata-se, segundo Castel (1998), da precari- única” e do “pensamento único”, impõe um con-
zação do trabalho como elemento central da nova junto de mudanças que passam a ser justificadas
dinâmica do desenvolvimento do capitalismo, cri- no plano material e intelectual como uma força da
ando uma nova condição de vulnerabilidade soci- natureza e, portanto, sem possibilidades de uma CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011
al: um processo social que modifica as condições intervenção humana. Para Boltanski e Chiapello
do assalariamento (estável) anteriormente (2009), nesse processo, identifica-se uma “perple-
hegemônico no período da chamada sociedade xidade ideológica” que atinge todos os segmentos
salarial ou fordista. A perda do emprego ou a per- críticos da sociedade (intelectuais, sindicatos, par-
da da condição de uma inserção estável no empre- tidos) que, em nome de um “fatalismo dominan-
go cria uma condição de insegurança e de um modo te”, não dão vazão à sua indignação e acabam por
de vida e de trabalho precários, nos planos objeti- se resignar diante dessa “força avassaladora” do
vo e subjetivo, fazendo desenvolver a ruptura dos capitalismo flexível.8
laços e dos vínculos, tornando-os vulneráveis e 7
Ver, particularmente, em K. Marx, O Capital, Capítulo
XXIII Livro I.
sob uma condição social fragilizada, ou de 8
Os autores definem que seu principal objetivo é compre-
“desfiliação” social (Druck, 2011a). ender o enfraquecimento da “crítica” numa perspectiva
histórica, que resultou num fatalismo dominante, isto
Afirmar que a precarização social do traba- é, numa “desnaturalização do social”, a fim de reforçar a
resistência ao fatalismo, sem, no entanto, cair num sau-
lho está no centro da dinâmica do capitalismo flexí- dosismo em relação ao passado.

43
TRABALHO, PRECARIZAÇÃO E RESISTÊNCIAS ...

Nas palavras de Bourdieu (1998), essa tran- O QUADRO MAIS GERAL DO TRABALHO E
sição apoia-se na flexibilidade como “estratégia de DO EMPREGO NA AMÉRICA LATINA E NO
precarização”, inspirada por razões econômicas e BRASIL NOS ANOS 2000: alguns indicadores
políticas, produto de uma “vontade política” e não
de uma “fatalidade econômica”, que seria dada, A Organização Internacional do Trabalho
supostamente, pela mundialização. Nela, considera- (OIT) criou, em 1999, a Agenda do Trabalho De-
se a precarização como um cente, cuja definição expressa as lacunas e defici-
ências ou o grau de precarização do trabalho, ob-
... regime político [...] inscrita num modo de do- servados a partir de um diagnóstico sobre a déca-
minação de tipo novo, fundado na instituição de
uma situação generalizada e permanente de in- da de 1990, especialmente na América Latina, além
segurança, visando a obrigar os trabalhadores à de indicar que as transformações do trabalho tam-
submissão, à aceitação da exploração (Bourdieu,
bém fizeram regredir conquistas significativas,
1998, p.124-125).
redefinindo o patamar dos direitos sociais e traba-
Esse regime é constituído por vontades (ati- lhistas em todo o mundo, inclusive nos países mais
vas ou passivas) de poderes políticos e, portanto, desenvolvidos.
não pode ser explicada por “leis inflexíveis” de um Segundo a OIT, nos anos 1990, o quadro
regime econômico, mas sim por escolhas orienta- social e do trabalho, na América Latina e Caribe,
das para preservar a dominação cada vez mais com- revelou graves problemas em decorrência das re-
pleta do trabalho e dos trabalhadores (Druck, 2007). formas e políticas aplicadas pelos governos: uma
Mais uma vez, o que as formulações acima baixa produtividade do trabalho e um aumento do
estão a tratar é de um fenômeno novo e velho: o desemprego e da informalidade, com destaque para
fetiche do mercado que se desdobra em diferentes os países que flexibilizaram suas respectivas legis-
expressões, a exemplo do fetiche da flexibilização, lações, liberalizando as formas de contratos e de-
isto é, de sua autonomização frente aos homens missões, diminuindo ou sustando mecanismos de
em suas relações sociais e de trabalho, como uma proteção social (aposentadorias, pensões, saúde,
inversão entre sujeito e objeto. E a flexibilização acidentes e doenças ocupacionais). Tais ações eram
passa a determinar o comportamento dos sujeitos justificadas por uma necessidade de romper com
como uma força exterior e natural, sem que eles – a rigidez desses sistemas de proteção e de rela-
os sujeitos – sejam capazes de reagir e reassumir o ções de emprego, a fim de possibilitar o aumento
controle sobre os processos sociais. do emprego formal, com a redução dos custos do
Nessa conjuntura histórica – da acumula- trabalho para o empresariado. Essa mesma justifi-
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011

ção flexível, de um regime político sustentado na cativa se encontrou em nosso país, através da dis-
estratégia da precarização, de um capitalismo fle- cussão sobre o “Custo Brasil”. Entretanto, os re-
xível ou de um novo espírito do capitalismo – é sultados dessas reformas não confirmaram as jus-
que se busca compreender, no plano de realida- tificativas, como diagnostica a OIT (2006):
des concretas, onde e como a precarização social
... depois de uma década, a experiência de vários
do trabalho pode ser demonstrada. Para tal, recor- países mostra que, apesar dessas reformas, em
re-se a um conjunto de indicadores quantitativos, lugar do aumento do emprego formal, o que se
produziu foi um incremento do desemprego e da
com base em estatísticas, e qualitativos, a partir de
informalidade, acentuando-se ainda a
estudos locais, setoriais ou de casos, que serão precarização dos empregos, associada à insegu-
apresentados na próxima seção. rança das remunerações, à menor proteção soci-
al, à maior rotatividade da força de trabalho etc.
Argumentou-se que os maus resultados se devi-
am ao fato de as reformas não terem sido com-
pletadas, ficando na metade do caminho. No en-
tanto, não dispomos de qualquer evidência de

44
Graça Druck

que uma dose maior de reformas desse tipo tra- semprego e a redução de níveis de pobreza para
ria melhorias a essa situação. Pelo contrário, a
experiência recente faz pensar que mais refor- certos países na América Latina, inclusive o Bra-
mas talvez a piorasse ainda mais (p.3). sil, eles não chegaram a se firmar como tendências
consolidadas, pois a crise mundial que se abriu
No documento Emprego, Desenvolvimento em 2008, em meses, colocou por terra alguns avan-
Humano e Trabalho Decente: a experiência brasi- ços localizados, evidenciando a permanência de
leira recente (OIT, CEPAL, PNUD, 2008), destaca- uma profunda vulnerabilidade social (Druck; Oli-
se que as características mais gerais do mercado de veira; Silva, 2010).
trabalho, na América Latina e no Brasil, nos anos Observa-se, portanto, que as análises da OIT
2000, mantêm a tendência e os principais proble- expressam as influências de diferentes conjuntu-
mas que caracterizam a precarização social do tra- ras, e, se não houver clareza sobre a natureza des-
balho na região, mas apresentam queda na taxa de ses movimentos e mudanças, podem-se confun-
desemprego, que cai de 11,4% em 1999 para 8% dir transformações de caráter conjuntural com aque-
em 2007. Entretanto, o documento reconhece que: las de caráter estrutural. É o que se pode depreender
houve criação insuficiente de postos de trabalho, dos relatórios que analisaram a repercussão da
com um crescimento da produtividade limitado a crise mundial aberta em 2008, quando a OIT
alguns setores produtivos; parte do crescimento alertava sobre a gravidade da situação no campo
das ocupações foi no trabalho informal; o trabalho do trabalho e do emprego, com previsões que fo-
nas atividades terciárias (comércio e serviços) ga- ram manchetes em vários meios de comunicação,
nhou peso; os empregos criados são ainda de bai- a exemplo da previsão de se atingir o quantitativo
xa qualidade (informais, temporários e sem con- de 230 milhões de desempregados no mundo em
tratos); aumentou a população ocupada sem direi- 2009, com um acréscimo de 40 milhões em rela-
to à seguridade social; os rendimentos do trabalho ção a 2008.
se deterioraram num significativo número de paí- No World of Work Report 2009 - The Global
ses (OIT, CEPAL, PNUD, 2008, p.11). Jobs crisis and Beyond (2009a), a OIT reconhece
Os recentes documentos da OIT apresen- que havia sinais de recuperação da economia mun-
tam uma sistematização das informações sobre o dial e que a queda do emprego fora inferior às pre-
quadro mundial e latino-americano do trabalho nas visões, devido à intervenção do Estado e dos go-
últimas duas décadas, cujas conclusões demons- vernos. Entretanto, entre outubro de 2008, quan-
tram não ter ocorrido uma ruptura das tendências do se iniciou a crise, e o final de 2009, em 51
e dos indicadores de precarização social do traba- países com dados disponíveis, foram perdidos 20
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011
lho no período, em que pesem alguns movimen- milhões de postos de trabalho e 5 milhões de tra-
tos conjunturais, a exemplo da retomada do cres- balhadores se encontravam numa situação extre-
cimento econômico a partir de 2000, que atingiu a mamente vulnerável, ameaçados de perder o em-
maior parte dos países em todo o mundo, com prego, já que estavam com jornada de trabalho re-
ritmos diferenciados em cada país ou região. duzida, desemprego parcial ou trabalho
Essas sistematizações e análises da OIT per- involuntário em tempo parcial. Além disso, esti-
mitem afirmar que a década de 1990 – marcada mava que 45 milhões de trabalhadores poderiam
pela mundialização das políticas neoliberais, pela ficar fora do mercado de trabalho, especialmente
hegemonia do capital financeiro e pela flexibilização no caso dos pouco qualificados, imigrantes, mais
e precarização do trabalho como estratégias cen- velhos e os jovens. Também fazia novas previsões
trais – teve a sua continuidade nos anos 2000, sem para os países emergentes e em desenvolvimento:
sofrer inflexão ou ruptura no quadro mais geral do haveria uma recuperação dos níveis de emprego já
trabalho no mundo. Mesmo considerando alguns em 2010, mas eles não atingiriam os mesmos ní-
resultados, como a diminuição das taxas de de- veis no período anterior a crise antes de 2011. No

45
TRABALHO, PRECARIZAÇÃO E RESISTÊNCIAS ...

caso dos países mais ricos, a previsão era de que o rios que afirmam sobre as más consequências da
emprego não recuperaria o mesmo patamar anteri- financeirização da economia, da desregulamentação
or à crise, antes de 2013. dos mercados e da flexibilização do trabalho,
Para além dos diagnósticos e balanços dos adotadas pelos governos dos principais países do
estragos da crise mundial, a 98ª Conferência Inter- mundo em todos os continentes, mesmo que de
nacional do Trabalho da OIT, realizada em junho forma diferenciada. De acordo com o texto Sumá-
de 2009, adotou o Um Pacto Mundial para o Em- rio Executivo da OIT (2008, p.2):
prego da OIT, que se constitui num amplo progra-
A globalização financeira intensificou a instabi-
ma de propostas de ações, o qual pede
lidade econômica. Nos anos 90, as crises do siste-
ma bancário foram dez vezes mais frequentes
... a governos e organizações de trabalhadores e que as do final dos turbulentos anos 70. O custo
empregadores que trabalhem unidos para en- deste aumento de instabilidade, em geral, foi pago
frentar a crise mundial de emprego com políti- muito mais pelos grupos de baixa renda. Experi-
cas que estejam alinhadas com o Programa de ências anteriores sugerem que a perda de em-
Trabalho Decente da OIT (OIT, 2009b, p. 2). pregos ocasionada pelas crises do sistema finan-
ceiro foram muito graves, com efeitos mais per-
manentes nos grupos mais vulneráveis. Também
Nesse documento (“Para superar a crise: um se pode prever que o desemprego aumente como
pacto mundial para o emprego”), são elencados 28 resultado da queda dos investimentos e isto pode
intensificar ainda mais as desigualdades de ren-
pontos que estão divididos em quatro diretrizes prin-
dimentos. E mais: existem evidências de que a
cipais: criação de empregos, aumento da proteção globalização financeira reforçou a tendência des-
social, respeito aos direitos e às normas internacio- cendente na distribuição dos salários registrada
na maioria dos países. Por outro lado, a globalização
nais do trabalho e o diálogo social. Todas elas sinte- financeira teve um efeito disciplinador sobre as
tizam a definição de Trabalho Decente da OIT: políticas macroeconômicas, tanto nos países de-
senvolvidos como nos países emergentes.
O Trabalho Decente é um trabalho produtivo e
adequadamente remunerado, exercido em con- Assim, compreende-se que a crise mundial
dições de liberdade, equidade, e segurança, sem atual é produto exatamente desse processo, da ação
quaisquer formas de discriminação, e capaz de
garantir uma vida digna a todas as pessoas que dos grandes investidores, apoiados nas políticas
vivem de seu trabalho […] Os quatro eixos cen- adotadas pela grande maioria dos seus respecti-
trais da Agenda do Trabalho Decente são a cria-
vos governos, que tiveram como central a
ção de emprego de qualidade para homens e mu-
lheres, a extensão da proteção social, a promoção desregulamentação dos mercados, isto é, a
e fortalecimento do diálogo social e o respeito aos liberalização sem limites para a mobilidade do ca-
princípios e direitos fundamentais no trabalho,
expressos na Declaração dos Direitos, adotada em pital, cujos custos recaíram sobre os trabalhado-
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011

1998 (MTE, 2006, p.5 grifo do texto original). res, conforme alertado pela OIT, em relatórios so-
bre o trabalho e o emprego no mundo, nas duas
Embora a iniciativa da OIT seja muito positi- últimas décadas, cujos indicadores expressam um
va e represente uma tentativa de reafirmar a Agenda déficit de trabalho decente, ou, dito de outra for-
do Trabalho Decente em plena crise mundial, trans- ma, sinalizam a precarização social do trabalho ainda
formando-a numa plataforma de lutas, as propostas como predominante.
contidas no documento partem de uma concepção
da conjuntura de crise que omite as condições e as
responsabilidades pelo seu desencadeamento. É O caso brasileiro, nesse contexto
como se a crise fosse obra das forças incontroláveis
da natureza ou do mercado, como um campo que Franco e Druck (2009) elaboraram uma
se autonomiza dos sujeitos ou das classes sociais e tipologia da precarização, aqui retomada para agru-
é exterior a eles. E, dessa forma, a OIT desconsidera par alguns indicadores selecionados para a reali-
as suas próprias análises apresentadas em relató- dade brasileira.

46
Graça Druck

· O primeiro tipo da precarização do trabalho: dessa forma, que o país expressa uma realidade
vulnerabilidade das formas de inserção e desi- de trabalho ainda distante dos indicadores de tra-
gualdades sociais balho decente definidos pela OIT.
Esses dados confirmam tendências apresen-
As formas de mercantilização da força de tadas pela OIT, CEPAL e PNUD (2008),11 quando
trabalho produziram um mercado de trabalho he- examinam o desempenho do mercado de trabalho
terogêneo, segmentado, marcado por uma brasileiro no período 1990 a 2006. Embora se evi-
vulnerabilidade estrutural e com formas de inser- dencie uma situação de recuperação nos anos 2000
ção (contratos) precários, sem proteção social, cujas em relação à década de 1990, por conta da retoma-
formas de ocupação e o desemprego ainda reve- da do crescimento econômico, principalmente a
lam, em 2009, um alto grau de precarização social. partir de 2004, ainda se mantém um quadro em
De acordo com dados da Pesquisa Nacional que é constatado:
de Amostra por Domicílios – PNAD 2009, havia
101,1 milhões de pessoas economicamente ativas a) Elevadas taxas de desemprego e de
informalidade, que resultam em baixo grau de
no Brasil, com 8,4 milhões de desempregados e proteção social e inserção inadequada dos traba-
mais 8,2 milhões de pessoas com ocupações sem lhadores; b) expressiva parcela da mão de obra
9 sujeita a baixos níveis de rendimento e produti-
remuneração. Ou seja, são 16,6 milhões de pes-
vidade; c) alta rotatividade no emprego; d) alto
soas (16,4%) economicamente ativas que estavam grau de desigualdade entre diferentes grupos,
fora do mercado de trabalho. refletindo um nível significativo de discrimina-
ção, sobretudo em relação às mulheres e à popu-
Quando se analisa a distribuição das pes- lação negra. (OIT, CEPAL, PNUD, 2008, p.17 )
soas ocupadas com remuneração monetária, elas
eram em 2009, no Brasil, 84,5 milhões, dos quais Ao se examinar a evolução desse quadro no
43,5 milhões sem carteira assinada10 e, portanto, Brasil, tomando como um ponto de referência o iní-
sem os direitos trabalhistas garantidos pelo em- cio dos anos 2000, observa-se que, segundo dados
prego formal, representando 51% dos ocupados da PNAD, em 2001 havia uma população economi-
com remuneração. Desse conjunto de trabalhado- camente ativa de 83,2 milhões, 16,4 milhões de pes-
res sem carteira assinada, 80% não contribuem para soas desempregadas e sem remuneração e 38,2 mi-
a previdência social. Isso significa que estão sem lhões sem carteira assinada, ou seja, 54,4 milhões
nenhuma proteção social e trabalhista. sem proteção social e trabalhista, representando 66%
Ao se agruparem os 16,6 milhões de desem- das pessoas economicamente ativas. Embora
pregados e sem remuneração com os 43,5 milhões percentualmente a situação fosse pior em 2001, em
sem carteira assinada, teremos 60,1 milhões de pes- termos absolutos o número de pessoas sem remune- CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011
soas em condições precárias no que se refere aos ração e sem carteira assinada era menor.
direitos básicos do trabalho assalariado, segundo a Nesse período (2001-2009), o crescimento
regulamentação das leis brasileiras, o que represen- do número de pessoas ocupadas com remunera-
ta 59% das pessoas economicamente ativas. ção foi de 26% para uma população economica-
Tais números revelam um cenário de alta mente ativa que cresceu 22%. Entretanto, o traba-
precarização, em termos das formas de ocupação e lho sem carteira aumentou 43%, enquanto que o
de direitos sociais e trabalhistas, que o mercado trabalho protegido (militares, funcionários públi-
de trabalho brasileiro ainda apresenta, indicando, cos e com carteira assinada) cresceu na proporção
9
São dados da PNAD 2009, e, nas ocupações sem remu- de 44%, o que se refletiu num aumento dos que
neração, estão agrupados os trabalhadores para consu- contribuem para a previdência social em 44%.
mo próprio, os trabalhadores na construção para uso
próprio e o trabalho não-remunerado.
11
10
Estão agrupados, na categoria dos “sem carteira”, os Documento Emprego, Desenvolvimento Humano e Tra-
empregados sem carteira, o trabalhador doméstico sem balho Decente: a experiência brasileira recente, disponí-
carteira, o trabalhador por conta própria e o empregador. vel na HP da OIT, publicado em setembro de 2008.

47
TRABALHO, PRECARIZAÇÃO E RESISTÊNCIAS ...

Em termos de rendimento mensal, houve meses, o que evidencia a vulnerabilidade dos em-
um crescimento de 44% no número de pessoas pregos no Brasil, indicando as dificuldades de
que recebem menos do que 1 salário mínimo, no superação dos altos níveis de desemprego, decor-
período 2001-2009, sendo que esse número cres- rentes da forma de inserção do país na globalização,
ceu mais entre os empregados sem carteira (43%), embora, a partir de agosto de 2009, um novo mo-
trabalhadores domésticos sem carteira (54%) e tra- vimento de recuperação do emprego tivesse sido
balhadores por conta própria (47%). iniciado, inclusive com o aumento dos “emprega-
Em 2001, eram 12,6 milhões de trabalhado- dos com carteira assinada”.
res que recebiam menos do que 1 salário mínimo, Entretanto, em 2009, permanece um alto
que passaram a ser 18,2 milhões em 2009. Em 2001, nível de desigualdade e de discriminação no mer-
representavam 19% dos ocupados com remunera- cado de trabalho, especialmente em relação às
ção e, em 2009, passaram a ser 22%. mulheres, aos negros e aos jovens, que continuam
O salário mínimo foi objeto de valorização e os segmentos mais precários de todos os trabalha-
de recuperação desde meados dos anos 1990, mas dores. A taxa de desemprego das mulheres era de
com correções mais altas nos anos 2000, sofrendo 11,1% contra 8,3% da dos homens; o desemprego
uma valorização de 171% entre 2003 e 2009,12 o dos jovens negros era de 18,8% e dos jovens bran-
que teve impactos positivos no conjunto da eco- cos de 16,5%. Além dessa desigualdade étnica e
nomia, em especial para os trabalhadores que so- de gênero, há também uma brutal diferença
brevivem desse salário. Em 2009, eram 9,7 milhões geracional, pois a situação de desemprego dos jo-
que ganhavam 1 salário mínimo, ou 7,8% do total vens é a mais grave de todas. Em 2009, quando a
dos ocupados; já em 2001, eram 5,9 milhões ou taxa total de desemprego era de 8,3%, os jovens
7,8% dos ocupados. Entretanto, é importante re- desempregados entre 15 e 24 anos correspondiam
gistrar que o valor nominal do Salário Mínimo a 18%. Entre as mulheres jovens, a situação é ain-
Necessário, calculado pelo DIEESE, deveria ser de da pior: 22,4% de desempregadas. E havia 15,9%,
R$ 2.227,53 em dezembro de 2009, quando era de ou 2,1 milhões de jovens entre 15 e 24 anos que
R$ 510,00, ou seja, 4,4 vezes menor do que o esti- não estudavam nem trabalhavam.
mado como necessário.
Os principais indicadores do mercado de
trabalho para os anos 2000 demonstram uma ten- · Segundo tipo de precarização: intensificação do
dência à recuperação do emprego, com a redução trabalho e terceirização
das taxas de desemprego e o aumento do número
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011

de empregados com carteira. Essa tendência foi Um segundo tipo de precarização social é
interrompida com a crise mundial de 2008. As- encontrado nos padrões de gestão e organização
sim, quando se analisam as taxas de desemprego do trabalho – o que tem levado a condições extre-
urbano no Brasil, após a crise mundial, no perío- mamente precárias, através da intensificação do tra-
do de outubro de 2008 e março de 2009 (IBGE/ balho (imposição de metas inalcançáveis, exten-
PNAD), em apenas 6 meses, os desocupados cres- são da jornada de trabalho, polivalência, etc.) sus-
ceram 19%, passando de 1.743.000 para tentada na gestão pelo medo, na discriminação cri-
2.082.000. Esse é o mesmo percentual de recupe- ada pela terceirização, que tem se propagado de
ração do desemprego em 5 anos, no período 2003- forma epidêmica, e nas formas de abuso de poder,
2007, quando saiu de um total 2.608.000 desocu- através do assédio moral, que tem sido amplamen-
pados em 2003 para 2.100.000 em 2007. Ou seja, te denunciado e objeto de processos na Justiça do
o que o país recuperou em 5 anos, perdeu em 6 Trabalho e no Ministério Público do Trabalho.
12
Variação do salário mínimo real com base ou aos preços
No que diz respeito à terceirização, no iní-
de setembro de 2010. cio dos anos 1990, numa conjuntura econômica

48
Graça Druck

de instabilidade e de crise, poder-se-ia afirmar que · Terceiro tipo de precarização social: insegurança
as empresas justificavam a adoção da terceirização e saúde no trabalho
como “ferramenta” ou “estratégia” para sobreviver
diante da reestruturação e redefinição das bases O terceiro tipo de precarização social refere-
de competitividade no plano internacional e naci- se às condições de (in) segurança e saúde no traba-
onal (Borges; Druck, 1993; DIEESE, 2007). Entre- lho – resultado dos padrões de gestão, que desres-
tanto, nos anos 2000, numa conjuntura econômi- peitam o necessário treinamento, as informações
ca internacional favorável e de retomada do cresci- sobre riscos, as medidas preventivas coletivas, etc.,
mento para todos os setores, especialmente aque- na busca de maior produtividade a qualquer custo,
les estudados nos anos 1990 (automotivo, inclusive de vidas humanas. Um importante indi-
petroquímica e bancário), não se altera o movimen- cador dessa precarização é a evolução do número
to da terceirização, que continua a crescer em to- de acidentes de trabalho no país, mesmo que reco-
das as atividades, atingindo agora também o setor nhecidamente sejam estatísticas sub-registradas .13
público de forma intensa. Em 2001, foram registrados 340,3 mil acidentes
Essa “epidemia” da terceirização, como uma no país e, em 2009, eles atingiram o número de
modalidade de gestão e organização do trabalho, 723,5, ou seja, um aumento de 126% em 9 anos. É
explica-se pelo ambiente comandado pela lógica interessante observar que, a partir de 2007, o INSS
da acumulação financeira que, no âmbito do pro- passou a contabilizar os acidentes sem registro no
cesso de trabalho, das condições de trabalho e do Cadastro de Acidentes do Trabalho (CAT), que re-
mercado de trabalho, exige total flexibilidade em presentaram para cada um dos últimos 3 anos (2007,
todos os níveis, instituindo um novo tipo de 2008 e 2009) 27% do número total de acidentes.
precarização que passa a dirigir a relação entre ca- Além desse quadro, os estudos microssociais em
pital e trabalho em todas as suas dimensões. E, empresas e organizações, no campo da Saúde Men-
num quadro em que a economia está toda conta- tal Relacionada ao Trabalho, definem uma
minada pela lógica financeira, sustentada no “psicopatologia da precarização”, produto da vio-
curtíssimo prazo, mesmo as empresas do setor lência no ambiente de trabalho, gerada pela imposi-
industrial buscam garantir os rendimentos, exigin- ção da busca de excelência como ideologia da per-
do e transferindo aos trabalhadores a pressão pela feição humana, que pressiona os trabalhadores ig-
maximização do tempo, pelas altas taxas de pro- norando seus limites e dificuldades, junto a uma
dutividade, pela redução dos custos com o traba- radical defesa e implementação da flexibilidade como
lho e pela “volatilidade” nas formas de inserção e “norma” do presente. Isso exige uma adaptação con-
de contratos. E a terceirização corresponde, como tínua a mudanças e novas exigências de polivalência, CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011
nenhuma outra modalidade de gestão, a essas exi- de um indivíduo “volátil”, sem laços, sem vínculos
gências (Druck, 2011b). e sem caráter, isto é, flexível. Essa condição, agrava-
Os diversos setores pesquisados nos anos da por outros imperativos típicos dos chamados
2000, bancários, call centers, petroquímico, petro- padrões modernos de organização empresarial
leiro, além das empresas estatais ou privatizadas (competitividade exacerbada, rapidez ou velocida-
de energia elétrica, comunicações e dos serviços de ilimitada), tem gerado um cenário de adoecimento
públicos de saúde, para além das estatísticas que mental com expressões diversas, inclusive os sui-
indicam o crescimento da terceirização, revelam as cídios (Seligmann-Silva, 2001; Franco; Druck;
múltiplas formas de precarização dos trabalhado- Seligmann-Silva, 2010).
res terceirizados nessas atividades: nos tipos de
13
Conforme é alertado pelos estudiosos da saúde do tra-
contrato, na remuneração, nas condições de traba- balhador, as estatísticas sobre doenças ocupacionais e
lho e de saúde e na representação sindical. acidentes de trabalho, sob a responsabilidade do INSS,
são subestimadas, pois dependem das CATs (Cadastro
de Acidentes de Trabalho) emitidas pelas empresas.

49
TRABALHO, PRECARIZAÇÃO E RESISTÊNCIAS ...

• Quarto tipo de precarização social: perda das ou mesmo queda das taxas de sindicalização, como
identidades individual e coletiva ocorreu em 2009 em relação a 2008 (16,5 milhões
de sindicalizados contra 17,5 milhões, cf. dados
O quarto tipo de precarização social tem suas IBGE/PNAD, 2009), o tipo de estratégia de ação da
raízes na condição de desempregado e na ameaça maioria das direções sindicais, tudo isso só pode
permanente da perda do emprego, que tem se cons- ser compreendido no contexto da “perplexidade
tituído numa eficiente estratégia de dominação no ideológica”, conforme já foi referido anteriormente
âmbito do trabalho. O isolamento e a perda de e que será mais explicitado a seguir.
enraizamento, de vínculos, de inserção, de uma Há indicadores de resistência? Sim, uma
perspectiva de identidade coletiva, resultantes da resistência de tipo dispersa, fragmentada ou adap-
descartabilidade, da desvalorização e da exclusão, tada. A literatura sobre os sindicatos e o movi-
são condições que afetam decisivamente a solida- mento dos trabalhadores dos últimos anos tem
riedade de classe, solapando-a pela brutal concor- problematizado sobre a crise dos sindicatos na era
rência que se desencadeia entre os próprios traba- da globalização e da reestruturação sob a direção
lhadores (Druck; Oliveira; Silva, 2010). Essa con- do neoliberalismo em âmbito mundial. Uma das
dição de “desfiliação” ou de “inúteis para o mun- principais justificativas apontadas por Hayek15 na
do”, a que se refere Castel (1998), explica esse se- defesa da doutrina neoliberal foi a responsabilização
gundo tipo de precarização do trabalho: a perda dos sindicatos pela crise dos anos 1970, devido a
das identidades individual e coletiva, fruto da des- seu excessivo e nefasto poder, influenciando o
valorização simbólica e real, que condena cada tra- movimento dos trabalhadores em suas lutas por
balhador a ser o único responsável por sua aumentos salariais e por políticas de bem-estar, que
empregabilidade, deixando-o subjugado à “ditadu- culminaram na deterioração das bases de acumu-
ra do sucesso” em condições extremamente adver- lação do capital e da insustentabilidade de um es-
sas criadas pelo capitalismo flexível (Appay, 2005). tado de altos gastos sociais (Anderson, 1995).
Essa justificativa foi, aos poucos, conquis-
· Quinto tipo de precarização do trabalho: tando adesões de governos, lideranças políticas e
fragilização da organização dos trabalhadores dirigentes sindicais, naqueles países em que a ex-
periência social-democrata foi mais marcante. É
O quinto tipo de precarização pode ser iden- como se houvesse uma mea culpa por parte dos
tificado nas dificuldades da organização sindical e sindicatos, que passaram a reconhecer os limites
das formas de luta e representação dos trabalha- ou mesmo o fim daquela “era dos 30 anos glorio-
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011

dores, decorrentes da violenta concorrência entre sos” e que, perplexos diante da ofensiva do capital
eles próprios, da sua heterogeneidade e divisão, – nos planos material e ideológico –, não conse-
implicando uma pulverização dos sindicatos, cri- guem reagir e oferecer alternativas ao novo padrão
ada, principalmente, pela terceirização. Dados so- de desenvolvimento capitalista que se globaliza.
bre número de greves, sindicatos, sindicalização, No caso do Brasil, que não viveu tal experi-
acordos, etc. são importantes, mas não explicam ência, pois não se construiu aqui um pacto social-
tudo. Indicam tendências, mudanças e redefinições democrata nem um Estado de Bem-estar social, a
que também precisam ser explicadas. O menor tragédia neoliberal talvez tenha sido mais forte ain-
número de greves nos anos 2000 em relação às da, pois, antes mesmo de buscar realizar essa ex-
duas décadas anteriores, o crescimento do núme- periência, a maioria das direções sindicais, especi-
ro de centrais sindicais – são hoje 11 centrais, 8
15
Friedrich Hayek, autor de O Caminho da Servidão [1944],
delas formadas nos anos 200014 –, a permanência considerado o texto que deu origem aos princípios teóri-
cos e políticos do neoliberalismo, que tinha como foco o
14
Conforme Sistema Integrado de Relações de Trabalho ataque ao Estado de Bem-estar social na Europa, especi-
(SIRT) Ministério do Trabalho e do Emprego. almente, o da Inglaterra.

50
Graça Druck

almente a partir dos anos 1990, passaram a 1621 de 2007, de autoria do então deputado
considerá-la inviável diante da “inexorável Vicentinho (ex-presidente da CUT), que contou
globalização”, ou da referida “modernidade empre- com a contribuição da Central Única dos Traba-
sarial”, cuja reestruturação produtiva passou a ser lhadores (CUT) para a sua elaboração. Seus ter-
assimilada como um processo “natural” e sem vol- mos, embora o diferenciem em aspectos importan-
ta. Tratava-se, portanto, de ações que limitassem ou tes do Projeto do deputado Mabel – a exemplo da
minorassem os seus efeitos, num explícito compor- proibição de terceirização de atividades fins, a exi-
tamento de adaptação aos “novos tempos globais”. gência de a empresa informar e justificar aos sin-
A violência da ofensiva liberal no contexto dicatos a implementação da terceirização, o con-
da globalização foi de natureza material e simbóli- trole da contratante sobre as obrigações trabalhis-
ca. A reestruturação produtiva e do trabalho – via tas da contratada, a exigência de que não haverá
demissões, enxugamentos, terceirização, distinção de salário, jornada, benefícios, ritmo de
polivalência –, inspirada no modelo japonês, le- trabalho e condições de saúde e de segurança, den-
vou, no plano objetivo, a condições de fragilização tre outros – tem causado muita polêmica no pró-
dos trabalhadores e de sua capacidade de luta, que prio meio sindical e na CUT.
foram reforçadas, no plano subjetivo, pela defesa Para a Confederação Nacional dos Quími-
de uma política e uma atuação sindical dentro dos cos (CNQ), que defende a “primeirização”16 dos
limites dessa nova ordem (neoliberal) do capital, postos de trabalho e uma campanha nacional de
neutralizando a vontade política coletiva no senti- sindicalização, incluindo os trabalhadores da em-
do de não apenas resistir, mas de buscar rupturas presa terceirizada, e para o Sindicato dos Quími-
com essa nova ordem. Talvez, nessa perspectiva, cos e Petroleiros da Bahia, é muito discutível a
torne-se mais claro compreender as especulações proposta de regulamentação da CUT, pois
em torno do “fim da história”, ou seja, de uma
A gente não vai ser a favor de um projeto de lei
vitória final do capitalismo diante das possibilida- que regulamente aquilo que a gente quer acabar,
des históricas – que agora estariam esgotadas – de embora a gente diga que é difícil acabar. As pes-
soas dizem que ficar como está não pode. Sim, e
sua superação, a exemplo das transformações ca-
aí faz um projeto de lei e o projeto de lei piora em
pitalistas nos países que tinham realizado experi- alguns setores em que a terceirização se deu com
ências socialistas. mais intensidade... (Santana, 2007).
Para exemplificar esse tipo de adaptação
Ainda segundo o depoimento desse diri-
política aos novos tempos liberais e de uma inevi-
gente sindical, exatamente nos setores em que a
tável flexibilização do trabalho, escolheu-se o caso
terceirização mais cresceu – industrial e bancário
do debate acerca da regulamentação da terceirização
–, houve uma redução muito grande do efetivo de CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011
no Brasil, a partir dos dois projetos de lei que tra-
trabalhadores que perderam direitos e se
mitam no Congresso Nacional. O primeiro deles é
precarizaram (Druck, 2011b).
de autoria do deputado Sandro Mabel, apresenta-
Esse debate exemplifica certo estado de re-
do em 1998 e reformulado em 2004, que tem por
signação da maior parte dos dirigentes sindicais
objetivo adaptar a legislação ao processo de “revo-
brasileiros diante da ofensiva neoliberal, o que leva
lução” na organização do trabalho, em que a
a justificar uma atuação nos limites e no interior
terceirização é a “técnica de administração” que
do próprio jogo político controlado pelas forças
mais cresce no país. Trata-se, na realidade, de le-
dominantes dessa era. Se a terceirização é mais
galizar todas as formas de terceirização que vêm se
uma “fatalidade” dos tempos modernos, contra a
desenvolvendo, inclusive com a liberação para
qual não se pode lutar, então a única alternativa é
pessoas físicas como contratantes de serviços de
16
terceiros, o que dificultaria ainda mais qualquer A primeirização dos postos de trabalho, defendida pela
CNQ, é desfazer as contratações através da terceirização e
tipo de fiscalização. O outro é o Projeto de Lei Nº contratar diretamente os trabalhadores pelas empresas.

51
TRABALHO, PRECARIZAÇÃO E RESISTÊNCIAS ...

colocar alguns limites a essa prática, a fim de mi- Petrobras e contou com a adesão desses trabalha-
norar os seus efeitos sobre os trabalhadores. Trata- dores na maioria dos estados (Druck, 2011b).
se de uma atuação que contribui fortemente para
legitimar e legalizar a terceirização, com o aval · Um sexto tipo de precarização social do trabalho:
propositivo dos representantes dos trabalhadores, a condenação e o descarte do Direito do Traba-
a exemplo do referido Projeto de Lei da Central lho17
Única dos Trabalhadores.
Mas, ao lado dessa postura, chama a aten- Por fim, e não menos importante, a
ção uma tendência relativa ao número de greves fetichização do mercado18 tem orquestrado e de-
de trabalhadores terceirizados que ocorre no país. cretado uma “crise do Direito do Trabalho”, ques-
Embora não se disponha de estatísticas oficiais e tionando a sua tradição e existência, o que se ex-
sistematizadas por outras instituições acerca des- pressa no ataque às formas de regulamentação do
se processo, em consultas a alguns jornais da gran- Estado, cujas leis trabalhistas e sociais têm sido
de imprensa e a sites de busca, é possível perceber violentamente condenadas pelos “princípios” li-
que diariamente há notícias sobre movimentos gre- berais de defesa da flexibilização, como processo
vistas de terceirizados que, na sua maior parte, inexorável trazido pela modernidade dos tempos
reivindicam pagamento de salários atrasados, de de globalização.
décimo terceiro, de férias e depósitos do FGTS, O debate entre os profissionais e especialistas
ou seja, os direitos básicos garantidos aos traba- do setor reflete opiniões que se dividem: há os que
lhadores com carteira assinada que não estão sen- sustentam a defesa do Direito do Trabalho e seu prin-
do cumpridos por essas empresas. cípio protetor, reconhecendo a desigualdade e a infe-
Além disso, há também um esforço de sin- rioridade econômica dos trabalhadores na sociedade
dicatos na luta contra a terceirização, a exemplo da capitalista, mais forte na era atual, o que exige, por-
criação de departamentos ou secretarias de tanto, mais direitos e proteção social; e há aqueles
terceirizados nos grandes sindicatos, incorporação que, em nome dos princípios liberais, afirmam o res-
da representação sindical dos terceirizados junto peito à individualidade do trabalhador, que, ao “de-
aos trabalhadores contratados diretamente, grupos pender” do Estado (pela estrutura dos direitos soci-
de discussão sobre os projetos de lei e ações con- ais), estaria supostamente impedido de desenvolver
tra a terceirização, organização e criação de sindi- as suas qualidades e atributos livremente no traba-
catos de trabalhadores terceirizados e, mais recen- lho, dificultando, dessa forma, o próprio desenvol-
temente, a inclusão, nas pautas de reivindicações vimento do mercado capitalista na atual conjuntura
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011

das campanhas salariais e dissídios dos grandes de desregulamentação mundial.


sindicatos, das pautas específicas dos terceirizados No Brasil, as alterações já realizadas na Con-
(em relação a salários, jornadas de trabalho, parti- solidação das Leis do Trabalho (CLT), nos anos
cipação nos lucros, horas extras, prevenção de 1990, e a defesa atual de uma reforma trabalhista
acidentes, cobertura de planos de saúde, transpor- “moderna”, que corresponda “às mudanças no
tes, alimentação, dentre outras). Dentre os exem- mundo do trabalho”, enquadram-se nessa segun-
plos mais fortes dessas iniciativas, estão o da Con- da defesa, isto é, que, para o livre funcionamento
federação Nacional dos Bancários, que passou a
17
Esse último tipo de precarização está sendo acrescenta-
lutar para representar os trabalhadores terceirizados do aos demais cinco tipos que foram formulados por
dos bancos e instituições financeiras, o caso mais Franco e Druck (2009), conforme foi referido no texto.
18
Aqui, a fetichização é usada no sentido marxista, quan-
ilustrativo dos trabalhadores em telemarketing, e do o mercado e as mercadorias”assumem vida própria”,
autonomizando-se em relação aos sujeitos sociais, e des-
o da Federação Única dos Petroleiros, que na últi- sa forma, querem prescindir de qualquer limite à sua
ma greve geral realizada em 2009, incorporou em autonomia e liberdade, especialmente a liberdade de ex-
ploração do trabalho que, em tempos neoliberais, impõe
sua pauta as reivindicações dos terceirizados da a desregulamentação do estado e a retirada dos direitos.

52
Graça Druck

do mercado, seria preciso retirar os limites, ou seja, de outras formas que pareciam estar superadas, a
retirar os encargos sociais elevados (direitos soci- exemplo do trabalho infantil e do trabalho análogo
ais e trabalhistas), considerados como entulhos da ao escravo.
velha e ultrapassada CLT, que já teria cumprido a Nesse sentido, a atuação conjunta do Mi-
sua função num momento histórico já superado. nistério do Trabalho e Emprego e do Ministério
Num outro campo – o da ação do poder Público do Trabalho, com o apoio da Polícia Fede-
público –, a disputa em torno do fim do Direito do ral, no combate ao trabalho análogo ao escravo,20
Trabalho ou da sua manutenção se intensifica atra- tem sido efetiva, com resultados muito expressi-
vés do papel que jogam ou podem jogar alguns vos, seja em número de trabalhadores resgatados,
órgãos ou instituições públicas, que têm como fun- como na repercussão política dessa atuação, que
ção primordial assegurar a aplicação e o respeito à tem revelado o grau de exploração de modernas
legislação em vigor. No caso do Ministério do Tra- empresas nacionais e multinacionais no Brasil, e
balho e Emprego (MTe), a ação dos auditores fis- que deu origem ao “Cadastro de Empregadores
cais – com a liberdade e independência hierárqui- flagrados explorando mão de obra escrava”, co-
ca que lhes é de direito, ao fiscalizar, autuar e multar nhecido como “Lista Suja” e disponível no site do
as empresas e instituições, respaldados na lei – MTe. No período de 2000 a 2010, foram realizadas
tem sido motivo de questionamento e já foi objeto 959 operações nas diversas regiões do país, onde
de projeto de lei voltado para lhes retirar esse po- foram resgatados 37.092 trabalhadores e um total
der,19 o que gerou ampla mobilização dos agentes de 35.790 trabalhadores tiveram seus contratos
de fiscalização e dos sindicatos, que fizeram retro- formalizados a partir da ação dos fiscais. O valor
ceder tal proposta. do pagamento de indenizações relativas a dívidas
O Ministério Público do Trabalho (MPT), salariais (saldo de salários, férias, décimo terceiro,
por sua vez, tem sido objeto de fortes críticas vei- gratificação natalina etc) atingiu a cifra de R$ 61,2
culadas pela grande imprensa, na voz de empresá- milhões, nesses dez anos, sem incluir as multas e
rios e até mesmo de sindicalistas, que acusam os indenizações por danos morais.
promotores de atuarem como empecilhos para a Essas ações mostram, de um lado, um alto
abertura de novos empregos, ao exigirem respeito crescimento do recurso ao trabalho escravo no con-
à legislação, já que estariam dificultando a ação texto dos tempos modernos do trabalho, que se
empresarial. torna visível, a partir de denúncias e da realização
Na realidade, são instituições que têm um dessas operações coordenadas pelo MTE; de ou-
papel fundamental como agentes dotados de pode- tro, indicam a capacidade que o Estado tem, quan-
res para colocar limites à ação do capital – através do assim o quer e decide, de pôr limites à voraci- CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011
da regulamentação – na relação de mercantilização dade do capital.
do trabalho, a qual, nos últimos tempos, tem ido Esse exemplo, dentre outros, é representa-
mais além da compra e venda da força de trabalho tivo, por si só, da ausência de limites morais do
através do assalariamento, pois vem se utilizando capital e explicita por que o Direito do Trabalho é
colocado em questão, ao tempo que indica a im-
19
Foi o caso da Emenda 3 ao Projeto de Lei que criou a
Super Receita, em 2007, que proibia os auditores fiscais portância da ação regulatória do poder público,
de autuarem ou fecharem as empresas prestadoras de
serviço constituídas por uma única pessoa, se verificas- como agente do Direito do Trabalho brasileiro, que
sem que a relação de prestação de serviços com uma tanto incomoda os radicais defensores da ordem
outra empresa, na verdade, configura uma relação traba-
lhista. E transferia para o Poder Judiciário a definição de neoliberal.
vínculo empregatício, beneficiando profissionais liberais
20
que atuam como pessoas jurídicas e as empresas que Trabalhadores resgatados por trabalho análogo ao escra-
utilizam seus serviços, em substituição ao contrato de vo, conforme art.149 do Código Penal, são aqueles que
trabalho pela CLT. Aprovada no Congresso, a Emenda atuam nas seguintes condições: trabalho forçado, servi-
foi vetada pelo presidente Lula, após ampla mobilização dão por dívida, jornada exaustiva e (ou) trabalho degra-
dos sindicatos, inclusive do Sindicato Nacional dos dante (Mte, www.mte.gov.br) Para uma análise sobre
Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT). essa condição, ver Filgueiras (2010).

53
TRABALHO, PRECARIZAÇÃO E RESISTÊNCIAS ...

Vale ainda destacar a experiência singular recuperação do emprego, cabe refletir, como afir-
no estado da Bahia, com a formação do FORUMAT mou Juan Somavia, diretor geral do OIT, que:
– Fórum de Proteção ao Meio Ambiente do Traba-
lho no Estado da Bahia, que reúne um conjunto de ... além da taxa de desemprego, temos o desafio
de melhorar a produtividade e os salários, redu-
instituições, como: Ministério Público do Trabalho, zir a informalidade, melhorar a cobertura da
Delegacias Regionais do Trabalho, Fundacentro, proteção social e enfrentar as desigualdades [...].
Não é só importante gerar mais empregos, mas
Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador –
que estes empregos sejam de qualidade”.21
CESAT/SESAB e sindicatos de trabalhadores. Com
destaque para a atuação do Ministério Público do É preciso ainda ir mais além, para definir o
Trabalho, proponente e coordenador do Fórum, cuja que são empregos de qualidade, num momento em
independência e autonomia têm garantido uma prá- que essa mercantilização atingiu níveis extremos,
tica que vem impondo o cumprimento da legisla- encoberta pelo fetichismo do mercado, banalizando
ção, fazendo recuar a terceirização e a precarização os riscos, os acidentes e a saúde dos trabalhadores,
do trabalho em várias empresas públicas e priva- conforme indica o crescimento do número de aci-
das. A existência desse Fórum representa a defesa dentes de trabalho, e desrespeitando normas ele-
do papel do Direito do Trabalho, cuja origem se mentares de segurança do trabalho, conforme é re-
justifica pelo grau de desigualdade e assimetria das velado pelas fiscalizações do MTE. Tal quadro é
relações entre empregados e empregadores que, em agravado por uma política de monetarização da saúde
tempos neoliberais, se agrava ainda mais, resultan- e dos riscos, que passa a pautar as negociações e
do numa relação de forças extremamente despro- julgamentos da Justiça do Trabalho, em
porcional e desfavorável aos trabalhadores (Druck; contraposição às determinações de políticas de
Franco, 2007). prevenção e proteção, principalmente, o controle
do seu exercício.
Na perspectiva do capital, a monetarização
COMENTÁRIOS FINAIS: novos ou velhos e a mercantilização das relações de trabalho trans-
desafios? formam os direitos dos trabalhadores em “custos”
(o “custo Brasil”, o “custo China”) e invadem tam-
A conjuntura atual do trabalho no Brasil, bém o ideário dos trabalhadores e de suas lideran-
embora venha motivando declarações ufanistas em ças sindicais, que passam a interiorizar a lógica do
torno do crescimento do emprego com carteira as- mercado, tomando-a como sua. Isso é estimulado
sinada, não pode ser analisada a partir do “fetiche ainda pela concorrência entre os próprios traba-
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011

dos números”. É o que se procurou indicar neste lhadores, expressa em disputas regionais, a exem-
artigo, ao se analisar o momento histórico plo da guerra fiscal no país, que faz competir não
caraterizado pelo capitalismo flexível, cuja confi- somente os estados, através da ação de seus gover-
guração contemporânea –e estrutural –, definida nos, mas também os trabalhadores de uma região
pela mundialização do capital hegemonizada pela com os de outra região.
esfera financeira, tem, na precarização social do Tais transformações, ao tempo que reafir-
trabalho, o centro da sua dinâmica. mam a essência do capitalismo, que transformou
Nessa medida, considera-se que o aspecto o trabalho em mercadoria, dão outra amplitude a
central que explica a estrutura capitalista hoje é o essa relação social, ao enfraquecerem a capacidade
grau ilimitado da mercantilização do trabalho e da de resistir e de questionar as novas condições im-
vida, conforme explicitam as dimensões do proces- postas pelo capital, numa clara demonstração de
so de precarização como indicadores qualitativos
21
aqui apresentados. Se, na conjuntura mais recente, Discurso de abertura da 17ª Reunião Regional da OIT
realizada no Chile em 14 de dezembro de 2009, confor-
os números indicam a queda do desemprego e a me www.oit.org.pe/americas2010/ESP/.

54
Graça Druck

uma atitude de resignação que, aos poucos, conta- balho não é uma mercadoria!” O que leva a questi-
mina até mesmo a capacidade de indignação dian- onar o centro da dinâmica capitalista ontem e hoje.
te das injustiças sociais, da negação dos direitos e Que consequências – teóricas e práticas – se po-
da proteção social, encaradas como uma “fatalida- dem inferir dessa afirmação? São possíveis refor-
de econômica”. mas que implementem o “trabalho decente” sem
Talvez a maior dificuldade, tanto no âmbito rupturas com o atual padrão de capitalismo,
da ação política como no campo dos estudos aca- construído na era da globalização financeira? Esse
dêmicos, seja a pressa em identificar, nomear e é o grande desafio. Nem “novo”, nem “velho”: o
classificar o que há de novo no mundo do traba- de sempre.
lho, a fim de caracterizar as rupturas que anunci-
am um novo tipo de sociedade – pós-capitalista,
pós-moderna, pós-emprego, pós-fordista ou pós- (Recebido para publicação em 30 de outubro de 2010)
(Aceito em 03 de fevereiro de 2011)
neoliberal –, como se esse processo de mudanças
tivesse uma evolução linear.
Por isso, as análises apoiadas numa pers- REFERÊNCIAS
pectiva histórico-dialética podem ajudar em muito
a desvendar as contradições contemporâneas do ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo, In: SADER,
E; GENTILI, P. (Org.) Pós-neoliberalismo – as políticas
capitalismo. Assim, o esforço analítico aqui adota- sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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do foi o de buscar demonstrar as principais meta-
APPAY, B. La dictadure du succès: le paradoxe de
morfoses do trabalho, explicitadas nas diversas l´autonomie contrôlée et de la précarisation. Paris:
dimensões do processo de precarização social do L´Hartattan, 2005. 262 p.

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torial UNESP, 1995. 289p.
tradicionalmente marcado pelo trabalho precário _______. As estatísticas: verdadeiras ou falsas? In: _______
em todas as suas dimensões, cuja origem maior (Org.) A ilusão das estatísticas. São Paulo: Ed. UNESP, 1995.
289p.
está no trabalho escravo e nas formas assumidas
BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. O novo espírito do capi-
pela sua transição ao trabalho assalariado –, se talismo. São Paulo: Ed.WMF Martins Fontes, 2009. 701p.
reconfiguraram ou se redefiniram, apresentando, BORGES, A.; DRUCK, G. Crise global, terceirização e a
exclusão no mundo do trabalho. Caderno CRH: Centro
hoje, uma precarização antiga e moderna, de Recursos Humanos da UFBA, Salvador, n.19, 1993
metamorfoseada. BOURDIEU, P. A precariedade está hoje por toda parte. In:
______. Contrafogos, Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998,
Considera-se, portanto, que, ao lado do p.119-127.
“novo espírito do capitalismo”, caracterizado por CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crôni-
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011
Boltanski e Chiapello (2009) como um fatalismo ca do salário. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1998. 611p.

dominante, e da impotência da crítica social, há DIEESE. Departamento Intersindical de Estudos Econômi-


cos. O processo de terceirização e seus efeitos sobre os traba-
um “velho espírito do capitalismo” que ressalta lhadores. Convênio SE/MTE N°. 04/2003-DIEESE, 2007.
suas contradições, suas incoerências e seus limi- DRUCK, G. A precarização social do trabalho no Brasil: uma
proposta de construção de indicadores. Salvador: CRH/
tes. Mesmo assim, ainda se encontra a defesa da UFBA/CNPq. Projeto de Pesquisa Bolsa Produtividade do
CNPq, 2007/2010 (mimeo).
utopia da sua superação através de uma crítica ra-
_______. O avanço da terceirização do trabalho: principais
dical, mesmo que de forma pontual e minoritária. tendências nos últimos 20 anos no Brasil e na Bahia. Revis-
Por fim, compreende-se que há velhos e ta Bahia Análise e Dados, Salvador, n.especial, 2011b.
(no prelo)
novos desafios. Saber combiná-los e tirar as con- _______. Precarização e informalidade: algumas
clusões e consequências exige muita sabedoria e especificidades do caso brasileiro, In: VERAS, Roberto (Org.)
sem título., 2011a. (No prelo)
reflexão. Talvez um começo para essas reflexões se
______; OLIVEIRA, L.P.; SILVA. S. A precarização social
encontre na convenção definida na Conferência de do trabalho no Brasil: o caso da vulnerabilidade dos jo-
vens e dos sindicatos. In: BRAGA, T.; VIDAL, F. NEVES,
Filadélfia, em 1944, que consolida a construção L. (Org.) Trabalho em questão. Salvador: SEI, 2010. p.103-
129. (Série estudos e pesquisas, 86)
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TRABALHO, PRECARIZAÇÃO E RESISTÊNCIAS ...

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56
Graça Druck

LABOR, PRECARIZATION AND TRAVAIL, PRÉCARISATION ET


RESISTANCES: old and new challenges RÉSISTANCES: anciens et nouveaux défis

Graça Druck Graça Druck

This paper discusses why the precarization L’article explique en quoi la précarité du
of labor is an old and young phenomenon, different travail est à la fois ancienne et nouvelle,
and equal, past and present, a phenomenon of a semblable et différente, passée et présente, en
macro- and microssocial character. It presents some quoi elle est un phénomène de nature macro et
fetishes present in the analysis of labor in the micro sociale. On y présente quelques fétiches
context of globalization of capital, marked by the qui se trouvent dans les analyses sur le travail
hegemony of finance capital, the restructuring of pris dans le contexte de la mondialisation du
production and labor and a “new spirit of capital, marqué par l’hégémonie du capital
capitalism.” There are five sections: introduction, financier, la restructuration de la production et
discussion of methodological issues based on du travail et un “nouvel esprit du capitalisme”.
reflections of research projects in progress, Il se divise en cinq parties: l’introduction;
theoretical considerations on the characterization l’analyse des questions méthodologiques fondées
of flexible capitalism and the centrality of social sur les réflexions des projets de recherche en
precarization of labor, a contextualization of labor cours ; les considérations théoriques concernant
in Latin America and Brazil in the light of ILO la caractérisation du capitalisme flexible et la
studies, indicators of precarization and resistances, centralité de la fragilisation sociale du travail ;
and a debate on the new and old challenges brought la contextualité du travail en Amérique Latine
about by the changes under the aegis of the social et au Brésil, à la lumière des études de l’OIT, des
precarization of labor and a “spirit of capitalism” indicateurs de précarité et de résistances ; et un
reformulated, which, while reaffirming the old débat concernant les anciens et les nouveaux
spirit, constitutes a new spirit. défis issus des transformations sous l’égide de la
fragilisation sociale du travail et d’un “esprit du
capitalisme” reformulé qui, tout en réaffirmant
l’ancien esprit, en constitue un nouveau.

KEYWORDS: labor, precarization, resistances, so- M OTS-C LÉS : Le travail, la précarisation, les
cial indicators. résistances, les indicateurs sociaux.

CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 37-57, 2011

Graça Druck - Doutora em Ciências Sociais, com pós-doutorado na Universidade de Paris XIII. Professora
associada I do Departamento de Sociologia e da Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal
da Bahia – PPGCS/FFCH/UFBA. Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos/FFCH/UFBA e do CNPq.
Realiza pesquisas na área de Sociologia do Trabalho. Autora do livro Terceirização: (Des)Fordizando a
Fábrica – um estudo do complexo petroquímico da Bahia (Ed. Boitempo/Edufba, 1999 e 2001) e co-
organizadora do livro A perda da razão social do trabalho: precarização e terceirização. (Ed. Boitempo,
2007). Tem artigos publicados em diversos periódicos, Revista Latinoamericana de Estudios del Trabajo –;
Pistes; Laboreal; Revista Brasileira de Saúde Ocupacional; Caderno CRH).

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