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Leituras sobre
exercício do poder
para além
da política
[...] como a desigualdade existe de início, há duas orientações possíveis:
a que tende a apagar a desigualdade pelo esforço social; e a outra que, pelo
contrário, tende a recompensar todos na base de suas qualidades desiguais.
Weber afirmava [...] que entre essas duas tendências antitéticas [...] não há
escolha governada pela ciência, todo homem escolhe seu Deus ou seu
demônio por si mesmo (Raymon Aron).
forma recorrente para explicar certos males nacionais que seriam prove-
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ARTIGO
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LEITURAS SOBRE EXERCÍCIO DO PODER PARA ALÉM DA POLÍTICA
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pluralista cada vez mais poliárquico, que incre- poder, presentes no seio da troca política.
menta a competição entre lideranças e associa- As outras formas de troca serão autorizadas
ções de perfil popular. por uma hierarquia de poder legitimada por
Se esse diagnóstico é correto, permite- leis, consensos, costumes.
nos inferir que a democratização, o aumento da O entendimento central dessas consi-
competição política, a modernização, a univer- derações para a análise seguinte sobre o fenô-
salização do voto, o aumento da participação meno do clientelismo é de que o que se troca
e a organização da sociedade civil não contra- em política não são favores pessoais, como acon-
ditam ou excluem formas de clientelismo polí- tece entre indivíduos comuns. São favores de
tico, mas criam novas possibilidades de arran- autoridade. Em política, são os benefícios do
jos clientelistas, como apontam diversos autores, exercício da autoridade que entram na troca.
entre eles, Eli Diniz (1982); Luiz Henrique N. Os favores de autoridade não se restrin-
Bahia (1997); José Murilo de Carvalho (1998); gem, é verdade, à autoridade pública, no sen-
Robert Gay (1999) e Paulo d’Avila Filho (2000). tido da burocracia nomeada ou concursada, ou
Tais fatores permitem a configuração de dos legisladores ou executivos eleitos. Têm a ver,
um cenário onde, dentro de contextos demo- também, com as trocas que envolvem o jogo
cráticos competitivos, a alteração na correla- de poder dos diferentes grupos econômicos.
ção de forças promovida pela necessidade de As trocas patrimoniais hierárquicas ou
atendimento à reivindicação de seus “clientes” assimétricas não são prerrogativas apenas do
por parte dos patronus leva à possibilidade poder público, tampouco estão circunscritas
de pensarmos esses arranjos a partir de uma contemporaneamente ao formato do mando-
perspectiva ex parte populis. Ou seja, como nismo local. Elas não se limitam ao patrimonia-
instrumento estratégico de política por parte lismo de Estado, tão caro à tradição patrimo-
desses clientes, e não apenas ex parte principis. nialista, e assumem formas mais modernas do
Altera-se, dessa forma, o tradicional ângulo de que aquelas denunciadas pela literatura que
análise do fenômeno. opera no eixo do mandonismo.
A questão central em debate é se, ao
falarmos de clientelismo, estamos diante de uma
Raiz da questão
herança, resíduo de uma sociedade hierarqui-
zada embutida dentro da sociedade moderna. A partir das considerações feitas, é possível
Se assim for, estaremos vivendo em uma soci- analisar que o clientelismo se enraiza intrinse-
edade que ainda não se modernizou completa- camente na hierarquia inerente a toda organi-
mente e, ao fazê-lo, destruiria esses resíduos. zação. Não constitui, por isso só, um resíduo
Ou, de outra forma, estamos diante de um tipo da sociedade tradicional, um corpo estranho
de relação política que, ao contrário de defi- na sociedade do capitalismo.
nhar, tenderia a assumir formas de expressão O clientelismo se manifesta em todos
que disfarçam o seu conteúdo original e frus- os modos de poder, concorrendo para sua
tram as expectativas de superação de traços conservação e distribuição nos espaços não
considerados residuais e passageiros. regidos pela lei. Pode ser, até mesmo, uma
Na gênese de toda a ordem social, con- forma de costume. No passado, essencial-
tudo, está presente uma macrotroca política. mente, e em nossa época, o clientelismo apa-
Da gênese grega aos clássicos modernos até o rece como fator endógeno às sociedades estru-
debate contemporâneo, estão presentes dife- turadas. Não podem elas – organização e
rentes teorias acerca dos fundamentos da “boa hierarquia – prescindir dele, como nos suge-
ordem”, da justiça e dos governos. Todas elas, riu Luiz Henrique Bahia (2003), em seu livro
no entanto, estão se referindo a processos de O poder do clientelismo.
macrotroca política – nos quais os sujeitos Alguns trabalhos de análise empírica
sociais trocam a obediência por alguma noção feitos em contextos de alegada expansão dos
de ordem pública, bem coletivo, regras ou direitos de cidadania, como nos Estados Unidos
garantias. Esse processo permitirá o funciona- da América, reforçam o argumento de que o
mento das sociedades. clientelismo será uma forma de intermedia-
A troca econômica não será possível, ção de interesses onde quer que tenhamos
no sentido macro, sem um mínimo de ga- assimetrias políticas sobre os benefícios patri-
rantia fornecido pela troca política. A caracte- moniais. Ou seja, tanto em contextos ditos
rística fundamental a toda organização será menos desenvolvidos como em países consi-
a produção de hierarquias e assimetrias de derados de democracia avançada.
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Outra perspectiva
É possível, com base na perspectiva aqui Os mecanismos que fazem parte da tro-
adotada, reconsiderar o conceito de cliente- ca política assimétrica/clientelista ocupam
lismo sustentando dois pontos fundamentais: espaços vazios, onde não há garantias legais,
a) chamar a atenção para alguns problemas não constituem direitos, mas também não
provenientes da percepção do clientelismo constituem, necessariamente, ilegalidades.
como um resíduo – marca do atraso que ten- Fazem parte do universo possível das trocas
deria a ser superado por um processo de políticas entre atores políticos socialmente
modernização democrático –, o que tem di- interessados. Assim, o clientelismo conde-
ficultado a compreensão do fenômeno como nável será freqüentemente o clientelismo
endógeno à organização do poder político e bem-sucedido do outro, não a minha troca
como fórmula moderna de intermediação de política legítima.
interesses; b) sugerir a possibilidade de se pen- A única possibilidade de eliminação das
sar o clientelismo como estratégia popular de trocas políticas assimétrico-clientelistas de um
obtenção de benefícios – particularmente, em contexto social qualquer é na imaginação de
contextos de baixa institucionalização de ca- uma ordem social que elevasse ao limite a
nais de acesso aos centros de decisão política, máxima próxima da fabulação rousseauniana
canais que organizam a distribuição patrimo- – na qual a vontade geral ou a vontade do
nial de bens e serviços e que se constituem em demos e a autoridade política são uma e
poderoso instrumento de aquisição de apoio mesma coisa. Imaginação política na qual está
político por parte do patronus. eliminado o caráter discricionário do controle
É possível sustentar, ainda, que o cliente- dos recursos materiais ou simbólicos da au-
lismo é um fenômeno relacionado ao acesso toridade política inerente à ordem social que
e à exclusão de bens e serviços não regulados conhecemos, visto que todos, como autori-
diretamente pela ordem jurídica e pelos va- dade política, controlam todos os recursos
lores de mercado. em nome do todo e do bem comum.
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