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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
BACHARELADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS – SOCIOLOGIA

Yuri Santos de Brito

“HÁ UMA TENSÃO QUE NÃO SE RESOLVE”:


docentes de Direito da UFBA num contexto de inclusão e ações afirmativas

Salvador
2017
YURI SANTOS DE BRITO

“HÁ UMA TENSÃO QUE NÃO SE RESOLVE”:


docentes de Direito da UFBA num contexto de inclusão e ações afirmativas.

Monografia apresentada ao Departamento de


Sociologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
e Universidade Federal da Bahia, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel
em Ciências Sociais com habilitação em Sociologia.
Orientadora: Prof. Drª. Paula Cristina da Silva Barreto

Salvador
2017
Ficha Catalográfica:

B586m
Brito, Yuri Santos de.
“Há uma tensão que não se resolve”: docentes de Direito da UFBA num
contexto de inclusão e ações afirmativas / Yuri Santos de Brito. -- Salvador,
2017.
191f.

Orientadora Paula Cristina da Silva Barreto.


Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado) - Universidade Federal da
Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de
Sociologia.

1. Ensino superior – Brasil. 2. Reforma universitária - Brasil. 3. Programa


de ação afirmativa. 4. Inclusão social. 5. Faculdade de Direito. I. Barreto,
Paula Cristina da Silva. II. Universidade Federal da Bahia. III. Título.

CDD: 378.81
CDU: 378

Elaborada pela bibliotecária Isabel Ângela dos Santos Matos – CRB 5/995
YURI SANTOS DE BRITO

“HÁ UMA TENSÃO QUE NÃO SE RESOLVE”:


docentes de Direito da UFBA num contexto de inclusão e ações afirmativas.

Monografia apresentada ao Departamento de


Sociologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
e Universidade Federal da Bahia, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel
em Ciências Sociais com habilitação em Sociologia.

Aprovada em __ de _________ de 2017

BANCA EXAMINADORA:

_________________________________________________
Paula Cristina da Silva Barreto (Orientadora)
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Brasil
Prof ª da Universidade Federal da Bahia

__________________________________________________
Ruthy Nadia Laniado (Membro)
Doutora em Ciência Política pela University of Essex, Reino Unido
Profª da Universidade Federal da Bahia

__________________________________________________
Edilza Correia Sotero (Membro)
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Brasil
Profª da Faculdade Regional da Bahia - UNIRB, Brasil
A todas as mãos negras, que ergueram os
pilares do mundo sem por isso receber quase
nada em troca.
AGRADECIMENTOS

Este trabalho foi construído a mil mãos e por isso seria mais adequado colocar aqui
uma lista de autores e coautores, em lugar de uma lista de agradecimentos. A dificuldade de
expressar sentimentos, ainda que de gratidão, é uma constante que precisa ser enfrentada,
portanto, com muito afinco neste caso, e desde já peço perdão por não poder nomear e dedicar
com justeza as palavras necessárias a todas as pessoas que fizeram parte desta trajetória.
Agradeço, sem prejuízo de expressar outros sentimentos:
Em primeiro lugar, a minha família que é enorme não só no número de pessoas. A
meus avós, pais, irmãos, tios, primas, sobrinhos e aos nossos “agregados”. Todos vocês foram
fundamentais não só na formação, mas no apoio real, cotidiano e muitas vezes intuitivo,
mesmo nos meus momentos, quase sempre silenciosos, de dificuldade. No nome do meu pai
Otacílio e da minha mãe Joelma, e do meu afilhado que está por nascer, o guerreiro pataxó
Inácio, sintam-se todos, em especial meus muitos irmãos, abraçados.
Aos meus amigos de infância e adolescência, que, mesmo distantes fisicamente, nunca
deixaram de fazer parte dessa história. Alguns colaborando diretamente com o trabalho,
inclusive, enquanto outros eram sempre um porto seguro de alegria, memórias e perspectivas
de vida, dividindo, também quase sempre silenciosamente, nossos momentos de dúvida,
tristeza, angústia, sorriso e comemoração. No nome de Diego (Jeguinho), Luan, Guilherme e
Rafael, que ficaram mais perto, sintam-se todos abraçados.
Aos meus professores e colegas de escola e colégio, em especial da Escola Curumim,
que foram absolutamente cruciais para eu ser quem eu sou. Me ensinaram e aprenderam junto
ser “crítico, criativo e capaz”, a assumir uma responsabilidade crítica sobre a minha própria
vida. No nome das professoras Rita, Raquel, Jorge e Radamés, sintam-se todos abraçados.
Aos meus professores e professoras da Universidade Federal da Bahia, que vivem a
luta cotidiana por garantir que a universidade pública seja e continue sendo uma referência na
construção do conhecimento, em especial, aqueles dedicados a tocar na realidade concreta do
nosso povo, que tanto precisa desta instituição para desatar o seu potencial.
Muito especialmente, à minha orientadora, professora Paula Cristina da Silva Barreto,
que me deu uma chance quando eu menos parecia merecer e viabilizou minha real entrada no
mundo da pesquisa. Sem sua disponibilidade, sua compreensão, sua sabedoria e
conhecimento, tenho absoluta certeza que não teria cruzado metade do caminho necessário
para a construção deste trabalho e mais, da minha vida acadêmica inteira. A fagulha criadora
que guiou este trabalho tem uma marca muito forte desta mulher cuja história aprendi a
admirar cada dia mais.
Ao CNPq e ao Programa A Cor da Bahia, que viabilizaram, com bolsa, em projeto
coordenado pela professora Paula Cristina, a minha iniciação científica e o real pontapé inicial
da trajetória da qual resulta este trabalho. Também aos colegas, estudantes e professores, da
Cor da Bahia que, no nome da memória de Itamar Ferreira, sintam-se abraçadas.
Ao Coletivo Quilombo e a todos os meus demais companheiros e companheiras da
luta social, para a qual escolhi dedicar minha vida. Cada um de vocês, dos mais velhos aos
mais novos, me ensinam e me dão a energia necessária para seguir adiante. Sem a certeza que
vocês me deram, de que é “nós por nós” para transformar a sociedade e fazê-la mais justa, não
tenho como permanecer neste mundo. No nome de Danielle Ferreira e Thiago Freire, com
quem dividi os tempos mais felizes desta trajetória, de Lorena Pacheco e de Júlia Teixeira,
que ficaram em meu lugar e fizeram melhor que eu, e de Taíres Santos e Johari Provezani,
com quem divido a vida hoje, sintam-se abraçadas.
Aos meus colegas informantes, interlocutores e outros que tanto contribuíram no
andamento desta pesquisa, inclusive os docentes entrevistados. Em especial aos que me
receberam em casa, com todo o simbolismo que o gesto de abrir a porta de casa significa. No
nome das pessoas que contribuíram no processo mais trabalhoso, o de transcrição, Kaick,
Natália, Fernanda, Rafaella, Jackeline, bem como das colegas com quem troquei mais idéias
nas disciplinas de TCC, Marina Fernandes e Alana Lins, sintam-se todas abraçadas.
Aos meus amigos que fiz e refiz agora, no fim do curso, por me ensinarem de novo
algo que tinha esquecido: que só vale a pena caminhar se for caminhar junto. A amizade foi
inestimável ao longo da construção deste trabalho de uma forma que eu nunca esperei, e sem
ela não é possível levantar de manhã para enfrentar o mundo - literalmente. No nome de Figuê
e Natália, sem as quais não seria amigo de nenhuma de vocês, sintam-se todas abraçadas.
A Rafa, e que nunca nos faltem abraços.
"Branco,
Se você soubesse o valor que o preto tem,
Tu tomava um banho de piche, branco
E ficava preto também.

E não te ensino a minha malandragem,


Nem tampouco minha filosofia.
Porquê?
Quem dá luz a cego
É bengala branca e Santa Luzia!"

(Paulinho Camafeu/Ilê Aiyê)


RESUMO

A adoção de ações afirmativas no Brasil em geral, e na Universidade Federal da Bahia em


particular, ensejou uma acalorada discussão acerca de seus possíveis resultados e da sua
pertinência, num contexto de marcadas desigualdades sociais e raciais. Após a sua adoção, um
conjunto de estudos tem sido feito para explorar empiricamente tais questões. Esta pesquisa
teve como objetivos explorar, entre a comunidade docente de uma unidade acadêmica de
prestígio, a Faculdade de Direito da Bahia, percepções e comportamentos acerca das ações
afirmativas e dos seus beneficiários, comparadas com percepções acerca de suas próprias
trajetórias e da questão da desigualdade racial e de gênero. Utilizou-se metodologia
qualitativa, com entrevista semiestruturada e análise de conteúdo, apoiada por observação
direta e interlocução com informantes. Entre os principais resultados do estudo, encontram-se:
a análise sobre diferentes trajetórias dos docentes, a partir de sua origem social, cor/raça e
gênero, ensejando distintas explicações acerca delas; a construção de um perfil do docente de
Direito da UFBA, em geral com menor titulação e carga horária que os de outras unidades
acadêmicas, e dedicação a carreiras jurídicas; a análise sobre diferentes percepções acerca das
identidades e desigualdades de raça e gênero, tendo como principal padrão a presença de
obstáculos específicos e estratégias para superá-los, no caso das mulheres e dos negros, e do
silêncio e do constrangimento em admitir privilégios, no caso de homens e brancos; as suas
opiniões acerca das ações afirmativas, de tipo de positivo, positivo crítico até de concessivo e
negativo; se e como distinguem cotistas e não-cotistas, utilizando marcadores de classe,
raciais, atitudinais ou acadêmicos, bem como através de divisões entre os próprios
estudantes; as diferentes formas de lidar com as questões que emergem depois das cotas,
polarizadas entre comportamentos indiferentes e ativos. Conclui-se que é preciso fazer uma
reflexão aprofundada, de ordem qualitativa e com trabalho empírico, acerca dos processos de
inclusão e ascensão social, no caso, via educação superior, com vistas a qualificar a discussão
sobre os resultados dessas políticas e o debate sobre inclusão social, bem como oferecer
material para o desenho de outras políticas futuras.

Palavras-chave: Política de ação afirmativa. Raça. Gênero. Atitudes. Comportamentos.


Universidade.
ABSTRACT

The adoption of affirmative actions in Brazil and, specifically, in the Federal University of
Bahia, brought a heated debate about its possible results and its pertinence in a context of
harsh social and racial inequalities. After their adoption, a set of studies have been made to
explore these questions empirically. This research had the objectives of exploring, within the
teachers’ community an academic unit that has great prestige, the Law School of Bahia, the
perceptions and behaviors about affirmative actions and their users, compared with
perceptions about their own trajectories and the issue of racial and gender inequalities. A
qualitative methodology was used, with semiestructured interviews and content analysis,
supported by direct observation and interlocution with informers. Amongst the studies’ main
results, are: the analysis about the teachers’ different trajectories, out of their social origin,
color/race and gender, offering distinct explanations about them; the profiling of the UFBA’s
Law professors, whom detain lesser academic titles and work hours than those from other
academic units, and dedication to law carreers; the analisys about diferent perceptions about
gender and race indentities and inequalities, with the main pattern being the presence of
specific obstacles and strategies to overcome them, in the case of women and black teachers,
and silence and embarrassment in admitting privileges, in the case of men and white teachers;
a range of opinions about affirmative actions, from positive and critically positive to
concessive and negative; if and how the distinguish quotist and non-quotists, using as criteria
the class, race, attitude and academic markers, as well as divisions among the students
themselves; the different ways to deal with the new problems that emerge after the quotas,
polarized between indifferent and active behaviours. The conclusion is that it is necessary a
deep research, of qualitative nature and with empirical work, about the social inclusion and
ascension processes, in this caso, via superior education, as to qualify the discussion about the
results of this policies and the debate about social inclusion, as well as offer material to design
future policies.

Keywords: Affirmative Action. Race. Gender. Attitudes. Behaviours. University.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Tabela 1.1 – Carreiras dos Docentes da FDUFBA 56


QUADRO 2.1 – Tipos de carreiras dos docentes da FDUFBA 67
Quadro 2.2 - Síntese dos discursos sobre as trajetórias 76
Quadro 2.3 – Referências dos entrevistados 78
Quadro 4.1 - Síntese das posições sobre as AA 126
Quadro 4.2 - Síntese de diferenças percebidas sobre cotistas e não-cotistas 141
Figura 4.1 - Estágio para estudante homem 154
Figura 4.2 - Estágio para estudante com carro 154
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11

2 UM PANORAMA SOBRE A QUESTÃO RACIAL E AS AÇÕES 16


AFIRMATIVAS NO BRASIL
2.1 A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL: FORMULAÇÕES CLÁSSICAS E 17
CONTEMPORÂNEAS
2.2 A DISPUTA POLÍTICO-ACADÊMICA ACERCA DA IMPLANTAÇÃO 24
DAS AÇÕES AFIRMATIVAS
2.3 A QUESTÃO RACIAL NO PÓS-COTAS: VELHAS E NOVAS 34
PERGUNTAS
3 “RECONHECER O PRIVILÉGIO É PRESSUPOSTO PRA ESSA 51
DISCUSSÃO”: A TRAJETÓRIA PESSOAL E PROFISSIONAL DOS
DOCENTES
3.1 UM ESTRANGEIRO NATIVO: UM ESTUDANTE NEGRO 51
ENTREVISTA DOUTORES DO DIREITO
3.2 A FACULDADE DE DIREITO: CARACTERÍSTICAS E HISTÓRIA DE 54
UM CAMPO PECULIAR
3.3 “UMA FORMAÇÃO EDUCACIONAL PRIVILEGIADA”: 58
TRAJETÓRIA PESSOAL E ACADÊMICA DOS DOCENTES
3.4 "ADVOGADOS E PROFESSORES": O PERFIL PROFISSIONAL DO 64
DOCENTE DE DIREITO NA UFBA
3.5 “COMPETÊNCIA”, “ACESSO À EDUCAÇÃO” OU “MILITÂNCIA”: 67
COMO OS DOCENTES EXPLICAM SUAS TRAJETÓRIAS
4 “O AMBIENTE, SEM QUE NINGUÉM DIGA UMA PALAVRA 79
PODE LHE... REJEITAR”: PERCEPÇÃO E AUTOPERCEPÇÃO
SOBRE RAÇA, GÊNERO E DESIGUALDADES
4.1 “O AMBIENTE PODE LHE SER HOSTIL”: NEGRITUDES NO 80
MUNDO JURÍDICO-ACADÊMICO
4.2 “PRA MIM É INDIFERENTE” VERSUS “A ESTRUTURA DA 86
SOCIEDADE ME FAVORECE”: BRANQUITUDES NO MUNDO
JURÍDICO-ACADÊMICO
4.3 “VOCÊ NÃO É NINGUÉM[...], VOCÊ NÃO É JUÍZA, VOCÊ NÃO É 91
PROMOTORA, VOCÊ NÃO É DELEGADA, QUEM É VOCÊ?”: AS
MULHERES NO MUNDO JURÍDICO-ACADÊMICO
4.4 “OS REIS DO PEDAÇO”: MASCULINIDADES NO MUNDO 97
ACADÊMICO-JURÍDICO
4.5 "A COR DA PELE PRA MIM AINDA É UM FATOR DISCRIMINANTE 100
FORTE”: VISÕES SOBRE DESIGUALDADE, PRECONCEITO E
DISCRIMINAÇÃO DE RAÇA OU COR
4.6 “VOCÊ TEM UMA CULTURA DE MACHISTA QUE REDUZ A 107
MULHER”: VISÕES SOBRE DESIGUALDADE, PRECONCEITO E
DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO
5 “A PRIMEIRA TURMA DE COTISTAS QUE ELE PEGOU, ELE 116
REPROVOU”: PERCEPÇÕES E COMPORTAMENTOS ACERCA
DAS AÇÕES AFIRMATIVAS E SEUS BENEFICIÁRIOS
5.1 “ESSA FACULDADE ERA TODA BRANCA E PARECIA UM 117
UNIVERSO PARALELO”: AS OPINIÕES DOS DOCENTES SOBRE
AS AÇÕES AFIRMATIVAS E SEUS EFEITOS.
5.2 ENTRE O “ÓBVIO” E O “IMPOSSÍVEL”: IDENTIFICANDO 126
CARACTERÍSTICAS DE COTISTAS E NÃO-COTISTAS
5.2.1 Identificação por marcadores de raça e classe 129

5.2.2 Identificação por critérios atitudinais ou acadêmicos 132

5.2.3 Identificação de “divisões perigosas” 136

5.3 COLABORAÇÃO E RESISTÊNCIA: COMPORTAMENTOS E 141


PRÁTICAS NUM CONTEXTO DE INCLUSÃO
5.3.1 "A gente precisa se preparar pra fazer isso direito": responsabilidade 142
pessoal e o silêncio como armadilha
5.3.2 "Professor, tô sem dinheiro pra pegar um ônibus, pra ir lhe ver na 148
Justiça": lidando com dificuldades materiais no percurso acadêmico
5.3.3 Abrindo ou fechando os caminhos do debate 157

5.3.4 "Professora, que bom que você 'tá aqui": reconhecimento, empatia e 160
modelos
5.3.5 "Houve a mobilização dos estudantes[...] que identificavam prática 165
racista": negociação e enfrentamento frente às expectativas negativas e
cobranças exageradas
5.4 O PAPEL DO PROFESSOR NO CONTEXTO DE INCLUSÃO 170

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 176

REFERÊNCIAS 181

APÊNDICE – Roteiro de Entrevista 187


11

1 INTRODUÇÃO

Desde a virada dos anos 2000, a sociedade brasileira em geral e a comunidade


universitária em particular assistiram a um intenso debate acerca da validade do uso de ações
afirmativas como políticas que efetivem a desconstrução de uma desigualdade racial cuja
existência era razoavelmente consensuada. Acalorada, esta discussão polarizou o mundo
acadêmico e político, e acabou por ser parcialmente superada a partir da adoção gradual de
políticas de cotas sociais e raciais nas universidades, culminando nas leis 12.770/2012 e
12.990/2014, que disciplinam uma política de cotas para a rede federal de ensino e para os
concursos públicos (CAMPOS, 2008; SANTOS, 2012a; DAFLON; FERES JÚNIOR;
MORATELLI, 2014).
Do ponto de vista empírico, a questão das ações afirmativas é fundamental para
qualquer análise sobre o ensino superior público brasileiro no novo milênio. Com a
implementação da Lei de Cotas no Ensino Superior, um marco na institucionalização da
principal política de ações afirmativas, a rede federal de ensino em 2014 já reservava 77 mil
das suas 191 mil vagas (DAFLON; FERES JÚNIOR; MORATELLI, 2014). Somadas essas às
cotas na rede estadual de educação, garantidas por leis estaduais ou resoluções internas nas
universidades, e levando em conta a vigorosa expansão da oferta de vagas na rede federal, o
impacto do ponto de vista do ingresso é absolutamente significativo (SANTOS, 2013; FERES
JÚNIOR; DAFLON, 2014).
Uma consequência disso foi o aumento da produção acadêmica sobre o assunto, com
a consolidação de um novo campo de estudos acerca das ações afirmativas implementadas no
contexto nacional. Análises sobre os processos decisórios, os desenhos das políticas, os
debates nas suas implementações, bem como leituras quantitativas acerca de seus impactos,
proliferaram neste período. Para Santos, essa produção "demonstra uma demanda regular de
pesquisadores em publicarem resultados de pesquisas realizadas tanto quanto se posicionarem
em um campo bastante polarizado nas universidades e na sociedade brasileira" (SANTOS,
2012b, p. 10-11).
Há importantes pesquisas, desde o cenário pré-ações afirmativas, que exploram as
opiniões e percepções de estudantes e docentes acerca destas políticas e da desigualdade
racial, bem como pesquisas específicas sobre a trajetória de estudantes cotistas. Estas, ao se
somarem às análises quantitativas acerca do ingresso de discentes e a composição do corpo
docente das universidades, permitem já perceber um aspecto mais qualitativo acerca deste
processo de inclusão, percebendo nuances que muitas vezes passaram ao largo do debate
12

sobre a implementação das políticas afirmativas. (PINHEIRO, 2010; NERY; COSTA, 2009a;
2009b; RIBEIRO et al, 2014; CICALÓ, 2012; PASSOS, 2015; SANTOS, 2013; BARRETO,
2008; 2015; QUEIROZ; SANTOS, 2006; GUIMARÃES et al, 2010).
No entanto, há uma questão importante que, a partir deste levantamento, se coloca
como relevante. Na literatura havia uma documentação acerca das resistências ao processo de
adoção das políticas afirmativas, tendo como núcleo fundamental um grupo que compraz os
setores médios e superiores em termos de renda, pessoas com ensino superior e brancas, na
sociedade em geral (QUEIROZ E SANTOS, 2006), que se reflete numa documentação da
resistência específica na categoria docente nos processos de decisão sobre as cotas (SANTOS,
2012a; ALMEIDA FILHO et al, 2005; CAMPOS, 2008). Essa resistência, porém, deixa de
ser um fator de análise central quando se examina os efeitos das políticas afirmativas. Há uma
proeminência de análises acerca dos seus efeitos num aspecto quantitativo, justamente
buscando contrapor a passionalidade argumentativa e opinativa com dados consistentes acerca
do sucesso dessas políticas em termo de ingresso, desempenho, frequência e formatura dos
beneficiários e outros dados dos quais se infere que a tarefa da inclusão foi cumprida sem
maiores danos, sobretudo nos cursos de maior prestígio (SANTOS, 2012b).
Explorando o campo, essa mesma questão se tornou evidente. Se a instituição
universitária tem um perfil docente que se aproxima muito do núcleo mais resistente às ações
afirmativas, a Faculdade de Direito em específico o tem ainda mais, inclusive com uma
importante presença de docentes que seguem carreiras de Estado também marcadas por essas
características socioeconômicas, raciais e de status (BARRETO, 2015; SILVA; SILVA,
2014).
Ao fazer uma incursão nesse curso, um dos mais concorridos, notou-se a olhos vistos
que os docentes interagiam de maneira decisiva com os diferentes perfis de estudantes,
beneficiários ou não do sistema de cotas, e inclusive, com a aplicação das próprias políticas
afirmativas. Assistir a um debate na Congregação da Faculdade de Direito acerca de como
aplicar a Lei 12.990/2014, que reserva 20% das vagas em concursos públicos federais, com
posições contrárias que visavam possibilitar ou impossibilitar a aplicação da lei num contexto
que, na sua concepção, já se debatia como sui generis por conta do modelo das seleções
(SILVA; SILVA, 2014), foi fundamental para perceber que havia um embate em curso sobre
como lidar com as ações afirmativas, inclusive envolvendo o próprio objeto de reflexão - o
mundo das leis - daqueles docentes e daquela instituição.
Deste modo, cumpriu-se necessário direcionar os esforços dessa pesquisa para a
compreensão sobre como os docentes universitários interagem com as políticas afirmativas e
13

com seus beneficiários. Levando em conta um certo perfil mais geral e histórico do mundo
acadêmico brasileiro, que tende ao confinamento racial (CARVALHO, 2005), bem como os
impactos localizados das políticas de cotas em cursos de maior concorrência na UFBA
(QUEIROZ; SANTOS, 2013), optou-se por explorar a Faculdade de Direito, a mais
tradicional do campo das humanidades desta Universidade e, mais que isso, compor a análise
valorizando aspectos da trajetória dos docentes entrevistados.
O que se pretendeu no caminho percorrido ao longo da pesquisa foi dar uma dupla
contribuição. Por um lado, somar ao balanço dos efeitos das políticas afirmativas a questão
dos docentes, um sentido ainda pouco trabalhado; e, por outro, oferecer um vislumbre de
perspectivas e possibilidades, a partir da narrativa dos docentes, para o futuro deste campo de
políticas. Para tanto, se levantou aspectos específicos acerca das ações afirmativas,
explorando como os docentes se posicionam acerca delas, como interagem com seus
beneficiários e, também, como articulam o discurso sobre si mesmos e o discurso sobre os
estudantes da era das cotas.
Para tanto, se fez a opção pelo método qualitativo, após uma exploração inicial do
campo, construída ao longo da parte final do curso de graduação. Esta compôs um quadro
mais geral do perfil do docente da Faculdade de Direito e investigou opiniões de estudantes
acerca da questão do racismo e das ações afirmativas, que utilizaram métodos quantitativos -
o survey e a coleta de dados em fontes oficiais da UFBA e CNPq (Currículo Lattes) e
plataformas profissionais (JusPodium, LinkedIn, entre outros) -, aí incluída uma valiosa
experiência na Iniciação Científica em projeto conduzido e orientado pela professora Paula
Barreto, do Departamento de Sociologia da UFBA, no Programa A Cor da Bahia e os
trabalhos das disciplinas de Metodologia ministradas pelos Professores Clóvis Zimmerman e
Fernando Firmo, dos departamentos de Sociologia e Antropologia da UFBA,
respectivamente.
O trabalho também é amparado em observação direta, a partir de visitas interessadas
e do curso de uma disciplina obrigatória do currículo do curso de Direito noturno (Sociologia
Jurídica), ministrada pelo professor Homero Chiaraba. Também no contato frequente,
informal e sem uso de gravação, com estudantes do curso de Direito, tanto diurno quanto
noturno, que cumpriram papel de informantes, fornecendo informações valiosas que
permitiram compor quadros analíticos mais ricos e leituras mais bem-informadas do corpo de
dados principal do trabalho.
Este é composto por 11 (onze) entrevistas semiestruturadas, realizadas com docentes
do curso de Direito, tanto noturno quanto diurno. Buscou-se fazer as entrevistas abarcando as
14

diferentes gerações de docentes, bem como ter uma participação no mínimo proporcional ao
encontrado no conjunto do corpo docente de professoras mulheres e negros e negras, e,
também, membros de diferentes carreiras no mundo jurídico e atuantes nas mais variadas
áreas jurídicas (Civil, Penal, Administrativo, etc).
As entrevistas foram feitas em sessão única, gravadas com consentimento do
entrevistado - à exceção de um, que solicitou não ser gravado e foi atendido, sendo a gravação
substituída por anotações durante e notas gravadas após a entrevista. A mais curta durou 46
minutos, e a mais longa mais de 2h30, e foram realizadas, em sua maioria, em salas de aula ou
sala dos professores da própria Faculdade de Direito, sendo as exceções feitas no escritório ou
gabinete no seu ambiente de trabalho fora da Faculdade, em dois casos, e na própria casa do
entrevistado, em outros dois.
O roteiro da entrevista segue como anexo, contendo três blocos. Os dois primeiros
não abordam diretamente as questões de raça, gênero ou ações afirmativas, buscando
construir uma cumplicidade para tratar de questões sensíveis, e, mais que isso, estabelecer um
espaço no qual o entrevistado dimensiona a importância delas sem ser especificamente
provocado em tal sentido. O último bloco enfrenta ativamente as questões relativas às ações
afirmativas, cotas, questão racial e de gênero, com inclusive uma subseção que dependia do
perfil racial e de gênero do entrevistado, prevendo diferentes perguntas para diferentes perfis.
O primeiro bloco enfoca a trajetória pessoal do docente, enquanto o segundo fala sobre sua
vida profissional dentro e fora da universidade, e o terceiro explora diretamente suas opiniões
acerca das ações afirmativas, seus beneficiários e a forma como lidam com estas questões.
Uma vez realizadas, elas foram transcritas e lidas exaustivamente, comparando com
as notas tomadas ao longo das entrevistas. Procedeu-se a elaboração de um quadro
comparativo, elencando as principais questões de pesquisa na fala dos docentes, que guiou a
reflexão aprofundada. Utilizando os dados de apoio e o quadro, se procedeu a construção da
análise apresentada neste trabalho, utilizando como parâmetro e referência alguns trabalhos
que compartilham, com o presente, características metodológicas e temáticas (BARRETO,
2008; SANTANA, 2009; PINHEIRO, 2010; CICALÓ, 2012; LABORNE, 2014).
Este esforço analítico resultou numa monografia dividida em quatro capítulos. O
primeiro deles visa fazer uma exploração, a partir da literatura, do quadro histórico e atual de
questões relacionadas à desigualdade racial e às ações afirmativas, cuidando de tocar em
outras questões que também surgiram nas entrevistas. Um esforço de revisão de literatura se
fez necessário para referenciar as análises construídas a partir do que foi achado em campo.
15

O segundo capítulo já mergulha no campo. Mesclando o material de apoio e o corpo


de dados qualitativos obtidos a partir das entrevistas, ele cumpre o papel de explanar desde o
que significou um pesquisador negro entrevistando docentes da Faculdade de Direito da
UFBA, em sua maioria brancos, passando pelo histórico desta instituição e chegando na
análise sobre a trajetória pessoal e profissional dos docentes entrevistados. Já se compõe um
quadro analítico neste ponto, que referencia as origens sociais, bem como vivências de
discriminação na trajetória profissional, com as opiniões e valores defendidos pelos docentes
como razões para a realização desses percursos.
O terceiro capítulo explora, com centralidade na análise das entrevistas, a percepção
dos docentes sobre suas próprias identidades raciais e, foi inescapável a partir das entrevistas
das mulheres, de gênero. Também explora suas opiniões acerca da desigualdade racial e de
gênero, comparando-as com os discursos que estes docentes têm sobre suas próprias
trajetórias.
O quarto capítulo busca, a partir dessas análises, compor um quadro analítico acerca
dos posicionamentos dos docentes em relação às ações afirmativas. Cumprida esta tarefa,
identifica-se possíveis marcadores que os permitem distinguir ou não os beneficiários das
cotas, bem como percepções diferenciadas acerca de estudantes negros, pobres, indígenas e
mulheres. E, por fim, discute as atitudes dos docentes frente a esse intenso processo de
transformação no perfil dos estudantes a partir das cotas, identificando padrões de
colaboração ou resistência, ativas ou passivas, frente a esse processo, oferecendo como fecho
uma reflexão, mais descolada do discurso captado nas entrevistas, acerca da importância de
discutir a influência qualitativa que os docentes têm na inclusão operada com as políticas
afirmativas.
Feito isso, busca-se nas Considerações Finais construir uma síntese das questões
levantadas e dos achados feitos a partir do trabalho empírico. Mais que isso, se identifica
quais as lacunas apontadas por este texto e questões que poderiam ser melhor exploradas,
propondo afinal uma agenda de pesquisa com possíveis novos problemas, métodos e campos
a serem explorados a partir deste ponto.
16

2 UM PANORAMA SOBRE A QUESTÃO RACIAL E AS AÇÕES


AFIRMATIVAS NO BRASIL

A construção dos referencial teórico para este trabalho levou em conta uma dupla
dimensão que seria abordada na parte empírica. Por um lado, a questão racial de maneira mais
ampla no Brasil. Recuperando o espaço de destaque que essas formulações têm tido,
sobretudo no âmbito acadêmico, ao longo da história republicana do país (que, não por acaso,
se inicia um ano após a abolição formal da escravatura). Essa discussão tem relevância visto
que muitas dessas concepções transbordaram o mundo acadêmico e acabaram toldando parte
das opiniões corriqueiras que se tem sobre o Brasil, o povo brasileiro e as suas questões mais
relevantes. Daí, buscou-se referenciar tanto o que se considera como clássicos do pensamento
social e racial brasileiro, bem como trabalhos recentes que tem levantado novas questões
sobre o tema.
Porém, essas ideias se associaram a arranjos concretos do poder e tiveram efeitos
significativos na implementação de políticas pelo Estado brasileiro. Este último fator concorre
para o que, por outro lado, é também referenciado neste trabalho: as formulações mais
recentes, notavelmente a partir da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, conhecida como Conferência de
Durban, constituíram a base teórica para que, com determinados arranjos políticos, se
produzisse uma importante gama de ações afirmativas. Compreender os marcos teóricos, as
avaliações empíricas e mesmo os embates em torno dessas políticas é relevante, pois a sua
implementação desvela, pelo debate, concepções e posições que normalmente não vem à tona;
e, mais do que isso, ajuda a situar o lócus onde esse trabalho viria a ser feito, que tem sido
objeto de sucessivas políticas afirmativas.
Ademais, buscou-se colocar questões importantes, persistentes ou recém-postas na
discussão sobre racismo, inclusão, justiça e igualdade, ações afirmativas, reflexões sobre o
lugar da raça nas trajetórias de vida dos sujeitos da universidade e a expressão do racismo e
antirracismo na educação, notadamente na educação superior. Com isso, buscou-se criar um
panorama teórico-metodológico razoável orientar as incursões empíricas pretendidas desde o
início do projeto, bem como suporte para análises dos resultados obtidos na pesquisa de
campo.
17

2.1 A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL: FORMULAÇÕES CLÁSSICAS E


CONTEMPORÂNEAS

Há, dentre diversos matizes explicativos, um certo entendimento comum importante


entre uma ampla gama de pensadores considerados clássicos das mais diversas correntes de
que o regime da escravidão foi um fato histórico que toldou de maneira única, a formação
nacional do Brasil. É um importante consenso em torno do que Osório (2008), chama de
"condição inicial", por si só insuficiente como explicação para a desigualdade racial, mas
fundamental para a análise histórica da sua constituição.
No campo da economia política, por exemplo, como um fenômeno que implica em
peculiaridades na formação econômico-social brasileira. Jacob Gorender, por exemplo,
posicionando-se no campo teórico marxista, apresenta a escravidão colonial como um modo
de produção específico, diferente das formações pré-capitalistas europeias, como o
feudalismo e o escravismo clássico. Uma diferença fundamental que vale a pena registrar, na
visão de Gorender (1978), é o uso intensivo de mão-de-obra a partir de uma prática comercial
de escravização, com controle hierárquico da produção, recorrendo inclusive a repressão à
rebeldia e à fuga. Essas características se poriam como fundamentais à configuração histórica
do Brasil tanto naquele momento quanto na posteridade, sendo imprescindível observar as
heranças deste processo na sociedade brasileira.
Construindo uma análise mais ampla, Florestan Fernandes (1978), estabelece duas
perspectivas importantes. Uma delas, desenvolvida e apresentada no seu A Revolução
Burguesa no Brasil, apresenta uma perspectiva da formação das classes sociais no Brasil,
notavelmente da burguesia. Ali, ele coloca como a escravidão, embora tenha servido no
século XIX como acumulação pré-capitalista, incutiu na nascente burguesia brasileira
características importantes como a dependência à burguesia estrangeira, a debilidade, o
mandonismo, o conservadorismo e uma tendência ao poder autocrático, ao recurso à violência
estatal como meio de garantir seus ganhos mais imediatos e a preservação de seu poder.
Assim, a escravidão seria, ao mesmo tempo, um fenômeno econômico-social relevante na
formação das classes brasileiras tanto do ponto de vista estrutural quanto cultural.
A concepção apresentada por Fernandes (2008) no seu A Integração do Negro na
Sociedade de Classes é, sem dúvida alguma, muito relevante para compreender o argumento
que coloca a "condição inicial" da escravidão como fator central para as desigualdades raciais.
Para ele, o preconceito e a discriminação são fatos socialmente relevantes, mas que
caracterizariam arcaísmos da escravidão, utilizados por uma elite ainda predominantemente
18

branca para viabilizar a reprodução de seus privilégios, em contraponto ao crescente processo


de integração que a sociedade de classes promove, independentemente de cor ou raça (2008).
Isso implica, por exemplo, como Guimarães (1995a), viria a recuperar posteriormente a ideia
de que categorias racializadas, como "negro", passariam a constituir, segundo ele, a
denominação da elite para determinadas subclasses.
Gilberto Freyre (2003), por outro lado, apresenta a escravidão como parte da formação
cultural de um tipo específico de família e de sociedade. Influenciado pelo culturalismo
americano, Freyre apresenta metodologicamente a família como um fator estruturante da
sociedade e apresenta o engenho de açúcar como o espaço onde, ao mesmo tempo, há uma
estrutura econômica altamente hierarquizada e um tipo de sociabilidade marcada pela
inevitável convivência entre as raças.
Apesar de em outras obras ele apresentar desenvolvimentos relevantes desses aspectos
na sociedade brasileira, é em Casa-Grande & Senzala (2003) que ele coloca centralmente o
papel da escravidão na formação da cultura brasileira, sobretudo a partir da escassez de
mulheres brancas num contexto de uma colonização que utilizava intensivamente a mão-de-
obra de homens e mulheres negras e era dirigida por homens brancos. Esse aspecto ajuda a
evidenciar também o papel que as desigualdades e violências de gênero cumpriram papel
relevante na formatação da sociedade brasileira.
Além disso, ao reconhecer importantes contribuições relevantes dos escravizados na
produção da vida social brasileira, ele nos introduz a ideia de uma espécie de mestiçagem
cultural, que seria um grande valor para a formação da nação brasileira. Essa concepção seria
desdobrada - por outros autores, note-se - na ideia de democracia racial, abordada mais
adiante e fundamental para a compreensão do pensamento racial brasileiro desde então.
Há, assim, um amplo escopo de literatura consagrada colocando este fato no centro da
história pré-republicana brasileira, sob as mais diversas óticas, mas com um ponto de
concordância fundamental: a de que se constituiu num fato social decisivo na construção de
uma sociedade com duras hierarquias.
É curioso, mas importante lembrar, que a utilização de uma gramática racial só se
torna relevante com o racismo científico moldou boa parte das reflexões do final do século
XIX e início do XX, há, portanto. um processo longo de escravidão que pouco recorreu a
conceituações raciais para justificar-se ou legitimar-se (JACCOUD, 2008a). Assim, cabe
recordar as produções relevantes na passagem da chamada "condição inicial", o escravismo,
para um estado republicano, uma economia que se pretende de trabalho e mercado livre e uma
sociedade de classes, mas com uma gramática racializada em todos esses aspectos e que se
19

reinventa ao longo do tempo. O lugar da questão racial na reprodução das desigualdades


sociais entre a população branca e negra no período republicano é objeto de intensa disputa
política e intelectual desde o início desta época.
Ao longo do século XIX, uma longa construção ideológica é gestada e seria
desenvolvida até o primeiro terço do século XX. E é no início da história republicana, o
racismo científico e a política do branqueamento tornam-se hegemônicos no pensamento
social das elites políticas e acadêmicas brasileiras, sucedendo à abolição uma forte política de
imigração europeia como solução para o problema brasileiro tão bem definido como o
problema de ter um povo ruim e mestiço, que condenava fatalmente a nação à decadência
enquanto ele assim fosse, pensamento exemplificado por Nina Rodrigues e Silvio Romero
(OSÓRIO, 2008).
Tais paradigmas, expressos por arranjos políticos concretos, produziram uma efetiva
política de branqueamento, combinada com a repressão a expressões culturais e religiosas da
população negra, a sua remoção do centro das grandes cidades e a decadência econômica dos
ciclos produtivos onde esta era empregada, significou na prática uma remoldagem
demográfica e social do país (JACCOUD, 2008a; SOARES, 2008) vitoriosa para o projeto
branqueador. Ainda assim, é importante destacar um contraponto feito por Manuel Bonfim,
que travou uma grande polêmica com Sílvio Romero ao apontar a miscigenação como uma
vantagem e atribuir os males da nação a uma elite mais preocupada com a rapinagem e os
ganhos de curto prazo do que com um projeto de nação (SANTOS, 2010), antecipando um
tipo de crítica que seria feita mais adiante por outros autores, a exemplo de Fernandes.
Em seguida, o paradigma proposto por Freyre (2003) em sua obra maior é permeado
por um elogio à miscigenação. As desigualdades oriundas da escravidão seriam passíveis de
superação através do mérito individual, uma vez que a permeabilidade social produzida pela
forma de organização da família brasileira seria uma oposição ao racismo de outros países,
que teriam critérios típicos do apartheid. Essa concepção viria a tornar-se útil diante dos
novos arranjos políticos oriundos da revolução de 30 e, embora o autor não tenha expressado
esse termo, é daí a origem da doutrina da democracia racial, um caminho que, por pretender
circundar o problema racial, é viciado em sua origem.
De meados do século XX em diante, a discussão sobre a questão racial, no Brasil e no
mundo, ganha contornos relevantes para este trabalho. Do ponto de vista conceitual, a missão
da UNESCO cumpriu importante papel visto que, apesar de buscar no Brasil um contraponto
ao horror racista do holocausto e desenvolver a tese da democracia racial, ainda assim
reconhece, com trabalhos empíricos relevantes que evidenciam o racismo na sua dimensão de
20

ideia e de prática, desenvolvendo as chaves conceituais do preconceito e da discriminação,


com contribuições fundamentais de nomes como Oracy Nogueira, Thales de Azevedo, Costa
Pinto e Arthur Ramos, para citar alguns exemplos.
Do ponto de vista político, como relata o próprio Nogueira (apud Maio, 2000), "pela
primeira vez, o depoimento dos cientistas sociais vem, francamente, de encontro e em reforço
ao que, com base em sua própria experiência, já proclamavam, de um modo geral, os
brasileiros de cor" ou seja, as reflexões da sociologia brasileira nesse período começam a
articular-se com arranjos políticos mais amplos, incluindo aí movimentos sociais da
população negra. O tipo de estudo também é peculiar, com estudos sobre a situação racial de
locais específicos resultando numa reflexão amparada em amplas coletas de dados
quantitativos e qualitativos sobre a questão racial em vários locais do Brasil, estilo
exemplarmente observado no Elites de Cor numa Cidade Brasileira e seguido de perto pela
maioria dos autores da época (GUIMARÃES, 1995b)
Mais adiante, esse modo de pensar a questão racial no Brasil fica bem consolidado
com a obra de Florestan Fernandes, que desenha com precisão a ideia de que o preconceito
racial seria uma "sobrevivência" da escravidão e que servia a determinado segmento da
sociedade capitalista como método de manter privilégios, mas que tenderia a desaparecer com
o desenvolvimento da sociedade competitiva (FERNANDES, 2008). A questão racial, assim,
ficaria subsumida a questão de classe, ficando o racismo colocado apenas como um acessório
da desigualdade social.
É importante destacar a reflexão empreendida por Guerreiro Ramos, abrigado no
Instituto Superior de Estudos Brasileiros até 1964, quando este é fechado pelo regime militar.
Referenciando-se como sujeito negro, Guerreiro Ramos propõe intersecções da sociologia
com a psicologia social e, desafiando a missão da UNESCO (MAIO, 2015), forçou-a a
ampliar seu escopo, abarcando as manifestações do racismo brasileiro. Para ele, é importante
notar que, assim como no mundo, a questão racial não é uniforme no Brasil, tendo expressões
diferenciadas nos diversos territórios.
Mais do que isso, é o primeiro pensador de peso a, no Brasil, propor a ideia de que o
racismo é um problema dos brancos, propondo o paradigma do racismo como uma "patologia
social do branco brasileiro" (1995). Propositor de uma "sociologia em mangas de camisa",
engajada e enraizada mais nos problemas brasileiros que nos cânones acadêmicos
estrangeiros, Guerreiro Ramos não se torna referência acadêmica no processo de
institucionalização das ciências sociais brasileiras (BARIANI, 2006), mas suas formulações
dialogam muito com o movimento negro, que passaria a ter papel importante na academia no
21

final do século XX, e também antecipam parte das questões relevantes que emergem com a
implementação dos sistemas de cotas raciais.
As compreensões induzidas pelo projeto UNESCO, ainda que preliminares, de que
havia diferenças sociais relevantes entre negros e brancos e que o racismo era um fenômeno
que operava em favor da manutenção dessa desigualdade, no formato de um arcaísmo
discriminatório, haveria de encontrar guarida nas reivindicações do movimento negro e nos
arranjos políticos subsequentes. Ainda que elas tenham tido mais impacto no mundo
acadêmico que na esfera pública (MAIO, 2000), há alguns arranjos importantes que precisam
ser levados em conta.
Registre-se, por exemplo, a Lei Afonso Arinos, de 1951, que estabelecia de maneira
genérica a prática do preconceito e do racismo como contravenção penal, produzida num
contexto em que já havia um conjunto de demandas - inclusive a criminalização do racismo -
formuladas pelo movimento negro. Ela foi recebida com reações mistas tanto pelo movimento
negro quanto por vários intelectuais que discutiam o assunto, inclusive com destaque para o
posicionamento de Guerreiro Ramos, que afirmava ser necessária, mais que a criminalização
da prática, o estabelecimento de medidas políticas e sociais mais concretas para alterar a
condição social da população negra, e de Gilberto Freyre, então deputado federal, que
acreditava ser necessário um enfoque de campanha cultural contra o racismo (GRIN E MAIO,
2013).
A lei, aprovada, nunca condenou ninguém, mas jogou importante papel no
solapamento do mito da democracia racial, e constituiria a primeira norma jurídica brasileira a
tratar da questão do racismo. Ela viria a ser substituída por um texto mais duro que realizou
um feito tentado na Constituinte de 1946, pelo senador Hamilton Nogueira, da UDN, em
articulação com importantes setores do movimento negro, mas só realizado em 1988: com
atuação de uma pequena, mas vigorosa bancada negra, ancorada nos movimentos que
reascendem com a decadência da ditadura militar, incluiu-se como crime inafiançável e
imprescritível o racismo no texto constitucional. E, com a consagrada Lei Caó,
homenageando o deputado Carlos Alberto Oliveira (PDT-RJ), detalha num grau maior a
prática do racismo. Embora não tenha se tornado corriqueira a condenação pelos crimes
tipificados na lei, sobretudo com a criação da qualificadora de raça para o crime de injúria, ela
constitui um marco ainda mais forte, sobretudo por estar amparada na Constituição, de
reconhecimento da existência do racismo e de recurso discursivo corrente na sociedade
brasileira, fenômeno muito bem detalhado no estudo de caso empreendido por Santos (2015).
22

Uma mudança de paradigma teórico, porém, se opera a partir da década de 70, quando
se começa a buscar a mensuração específica da desigualdade racial na hierarquia social
brasileira. Com Nelson do Valle Silva e Carlos Hasenbalg, abandona-se completamente as
perspectivas até então dominantes, que ou naturalizavam desigualdades entre pretos e brancos
ou negavam, diminuíam ou suavizavam a importância do fator “raça” nas desigualdades
sociais. Ao mesmo tempo, passa-se a considerar importante o estabelecimento de métodos de
pesquisa e diagnóstico das desigualdades raciais, num processo que desembocaria no desenho
de políticas públicas específicas (OSÓRIO, 2008). Num cenário de convergência com o
movimento negro que se reorganizava no fim da ditadura militar, tais estudos vislumbraram o
aspecto estrutural do racismo, investigando a persistência da desigualdade como um
fenômeno produzido por mecanismos do presente, e não como reminiscência da escravidão.
É uma tese que, amparada em estatísticas sólidas e técnicas modernas, ataca
duramente o mito da democracia racial ao evidenciar como a articulação entre
desigualdades sociais e raciais se reconstitui na sociedade capitalista, privando o acesso da
população negra a bens materiais e simbólicos, bem como atuando concretamente como
obstáculos à sua ascensão social. Ela demonstra como as desvantagens se acumulam para as
pessoas negras, fazendo a desigualdade tender ao crescimento com o tempo se não houver
ação em sentido contrário, o que tem suporte empírico importante e recente em áreas como
educação e segurança pública (IPEA, 2011).
Contribuições importantes vieram de outros países também com o debate sobre
interseccionalidade. Essa discussão ensejou novas formas de articular categorias de raça,
gênero, classe, sexualidade, nacionalidade, entre outras, aproveitando de maneira significativa
as possibilidades de combinar análises de diferentes vieses sem tratar este processo como uma
simples somatória de vivências. Ao contrário, trata-se de compreender como, na concretude,
essas posições estruturais produzem vivências individuais e coletivas, visto que ninguém tem
apenas identidade racial, também tendo identidade de gênero e sexual, por exemplo, como
elementos determinantes até para sua experiência identitária ligada a raça/cor (CRENSHAW,
2002). Outras reflexões também merecem destaque, como a proposta por Patricia Hill Collins
que, a partir do feminismo negro, coloca a importância de valorizar o potencial criativo de
identidades marginais na produção sociológica, o que se põe como relevante para este
trabalho levando em conta como a identidade do pesquisador em questão pode impactar na
coleta e na análise dos dados. (COLLINS, 2016).
Algumas questões foram levantadas e permanecem em aberto contemporaneamente.
No seu artigo "Racismo e Antirracismo no Brasil", Antônio Sérgio Guimarães apresenta uma
23

ampla reflexão sobre a formação e as implicações do racismo à brasileira e suas interações


com a ideia de classe, o que ele viria a aprofundar posteriormente no livro homônimo. Com a
categoria de racismo heterofóbico, ele apresenta sucessivas gramáticas de exclusão com base
em critérios raciais, formuladas sempre por uma elite que se via europeizada para descrever
uma "ralé": os "africanos" no período pré-republicano, depois "negros" e "crioulos", "pretos"
e finalmente "baianos", "paraíbas", "nordestinos", recuperando Florestan Fernandes para
mostrar como tais categorias racializadas passaram a designar também uma subclasse depois
da abolição.
Ainda assim, uma suposta suavidade do racismo brasileiro funda o mito da democracia
racial, tendo a comparação com o "racismo do vizinho" (os Estados Unidos), na ausência de
uma legislação segregacionista, como justificativa para tal. Há uma rejeição, mesmo no
núcleo do pensamento racista, a essa separação das raças - ainda que não haja pudor algum
em negar humanidade e cidadania, mesmo que para isso se ignore uma avançada Constituição
Federal. E há, para ele, uma continuidade até mesmo no pensamento marxista, que encontra
na democracia racial uma promessa a ser cumprida pelo desenrolar da luta de classes.
A dificuldade, daí derivada, do antirracismo enfrentar essa mitologia é dupla: por um
lado, demonstrar que as desigualdades de raça não são casuais, ou derivadas das
desigualdades de classe, e precisam ser enfocadas como uma dimensão própria para serem
corretamente mitigadas ou eliminadas. Por outro, enfrentar até mesmo a denúncia de "racismo
inverso" quando ousa se reapropriar da herança cultural legada pela diáspora negra como
forma de "admitir" sua raça e, com isso, demonstrar o racismo. Ambas as questões tem sido
os dilemas do antirracismo brasileiro frente ao tipo peculiar de ideologia racista que vigora no
país (GUIMARÃES, 1995a).
Assim, num panorama geral, recupera-se algumas das principais considerações sobre
raça e racismo no Brasil. Compreendendo as bases históricas do uso da ideia de raça no Brasil
a partir do fim do século XIX, nas suas acepções biológica ou cultural, é possível perceber
como diferentes pensadores apresentaram o racismo como uma tese científica.
Mas também, sobretudo a partir da década de 30, observar o fenômeno do racismo
como pertencente ao mundo das ideias ou das ações, no que serve o paradigma do preconceito
e da discriminação, fortemente desenvolvidos na década de 50. E, mais adiante, a percepção
deste como um fenômeno estrutural ou institucional, que se articula fundamentalmente com as
categorias de classe e gênero e suas desigualdades características.
Essas concepções são levadas pelos brasileiros, no início do século XXI, para a
Conferência de Durban. Esse período, considerado por Gomes (2011) o marco de uma
24

inflexão política e teórica para o movimento negro e para as pesquisas sobre o tema,
significou a combinação das formulações da época com arranjos políticos do Estado e do
movimento social na defesa da implementação de ações afirmativas, sobretudo na educação,
como preconizado inclusive na Declaração de Durban (2001). Daí, abre-se um novo período
onde as questões, acadêmicas ou políticas, relacionadas a questão racial, passam a ter mais um
eixo fundamental na sua formulação - justamente as conquistas, efeitos, limites e desafios das
políticas afirmativas.

2.2 A DISPUTA POLÍTICO-ACADÊMICA ACERCA DA IMPLANTAÇÃO DAS


AÇÕES AFIRMATIVAS

O desafio de enfrentar as desigualdades raciais na população brasileira é uma questão


ainda em aberto, e que se agudizou com a introdução do mecanismo das ações afirmativas no
rol de possibilidades para sua superação. Há dois momentos marcadamente distintos no
debate político e acadêmico sobre as ações afirmativas no Brasil do século XXI. O primeiro,
do qual se trata esta seção, de 2001 a 2012, detonado a partir da Conferência de Durban,
compreende um período em que há a paulatina adoção de ações afirmativas nas universidades
brasileiras, com intensa disputa político-acadêmica em torno do tema. E o que será chamado
de "pós-cotas" compreende o período posterior à consolidação institucional representada no
julgamento da constitucionalidade do sistema de cotas raciais da UnB, a partir de uma Ação
de Descumprimento de Preceito Fundamental impetrada pelo partido Democratas, e na sanção
da Lei n. 12.711/2012, que estabelece um regime de cotas sociais, econômicas e raciais em
todas as instituições públicas federais de ensino superior.
Porém, cabe ressaltar que desde a década de 80, a luz das reflexões acadêmicas e
políticas engendradas na época, há ações relevantes, com impactos tanto na realidade desta
população quanto na própria base fundamental das reflexões políticas e acadêmicas sobre a
questão racial no Brasil. Essa agenda começa a se formar, pontualmente, em governos
municipais e estaduais, progressivamente tomando dimensão nacional, mas é nos anos 2000
que ganha relevo e passa a constar no debate público nacional, se desdobrando em políticas
públicas que passam então a ocupar o centro do debate político-acadêmico sobre o assunto
(JACCOUD, 2008b).
Até então, as demandas reivindicatórias eram atendidas sobretudo com a inscrição de
dispositivos ou capítulos nas constituições Estaduais e na Constituição Federal, embora caiba
25

registrar que políticas de ação afirmativa voltadas à questão do gênero e das pessoas com
deficiência tenham sido implementadas desde a Constituição de 1988, inclusive com sistemas
de cotas para pessoas com deficiências, e até antes, com a obrigatoriedade de contratação de
⅔ de trabalhadores brasileiros nas empresas em 1943. Apenas no século XXI, porém, há a
uma mudança significativa com políticas e leis substanciais voltadas às ações afirmativas
vinculadas a questão racial, produzidas em intensa interação com a sociedade civil, sobretudo
no campo da educação e com maior impacto no debate político-acadêmico sobre o tema,
notavelmente a questão das cotas raciais e sociais. (SANTOS, 2012a).
Para um melhor entendimento do que se apresenta como ação afirmativa, recorre-se a
uma definição de

[...] medidas redistributivas que visam a alocar bens para grupos específicos, isto é,
discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica e/ou cultural passada ou presente
(FERES JÚNIOR; ZONINSEIN, 2006). Agrupados sob essa denominação encontram-se
procedimentos distintos que visam a mitigar desigualdades e que, não raro, atendem a
reivindicações coletivas, como distribuição de terras, de moradias, medidas de proteção a
estilos de vida ameaçados e políticas de identidade.

A ação afirmativa se diferencia das políticas antidiscriminatórias puramente punitivas por


atuar em favor de coletividades discriminadas e indivíduos que potencialmente são
discriminados, podendo ser entendida tanto como uma prevenção à discriminação quanto
como uma reparação de seus efeitos. Políticas antidiscriminatórias puramente punitivas só
se preocupam em coibir comportamentos e práticas que promovam discriminação, sem
contudo cuidar da elevação das condições de vida de grupos e indivíduos discriminados."
(DAFLON; FERES JÚNIOR; CAMPOS, 2013)

Assim, do ponto de vista conceitual, o florescimento do debate e a implementação


destas políticas no âmbito da questão racial representa o produto de uma confluência entre o
ressurgimento do movimento negro com o enfraquecimento da ditadura militar, a elaboração
de contribuições teóricas e empíricas, destacadamente de Nelson do Valle Silva e Carlos
Hasenbalg, como discutido anteriormente, e um contexto internacional de defesa de políticas
identitárias. Isso se soma ao reconhecimento do racismo do Estado brasileiro, no início do
governo Fernando Henrique, e o posicionamento do governo federal em favor das ações
afirmativas e, sobretudo, ao foco dado a estes temas ao longo do governo Lula, com
resultados concretos na implementação destas políticas. (FERES JÚNIOR; DAFLON, 2014;
GOMES, 2011; JACCOUD, 2008b).
Um importante precedente e ponto de partida deste processo é a Declaração de Durban
(2001), que faz uma profunda reflexão sobre as origens históricas e causas atuais do racismo e
aponta um programa amplo de combate ao racismo e outras formas de discriminação,
provocando os Estados a adotarem políticas que significassem intervenções nas condições de
26

vida das populações afetadas por este fenômeno. Destaco, especificamente, o momento em
que a declaração:

100. Insta os Estados a estabelecerem, com base em informações estatísticas, programas


nacionais, inclusive programas de ações afirmativas ou medidas de ação positivas, para
promoverem o acesso de grupos de indivíduos que são ou podem vir a ser vítimas de
discriminação racial nos serviços sociais básicos, incluindo, educação fundamental, atenção
primária à saúde e moradia adequada; [...] 124. Insta os Estados a adotarem, onde seja
aplicável, medidas apropriadas para assegurar que pessoas pertencentes às minorias
nacionais, étnicas, religiosas e lingüísticas tenham acesso à educação sem discriminação de
qualquer tipo e, quando possível, tenham oportunidade de aprender sua própria língua a fim
de protegê-las de qualquer forma de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância
correlata a que possam estar sujeitas. (DECLARAÇÃO..., 2001)

Bem como, em diversos outros pontos, chama a atenção para a necessidade de ações
que enfoquem ou levem em conta as minorias étnico-raciais no desenho de políticas públicas
que possam, através da intervenção pública e da ação da sociedade civil, minorar e eliminar a
desigualdade e a discriminação, sobretudo na educação, que seria o tipo de debate dominante
na agenda brasileira a partir daí.
Como aponta Gomes (2001), o movimento negro brasileiro teve uma atuação histórica
pautando caminhos para a superação da desigualdade racial. Porém, é no mesmo contexto
histórico e com importante contribuição da Conferência de Durban, que há a assunção de um
novo lugar para a questão racial nas políticas públicas, em especial, no campo da educação.
No caso brasileiro, pré-conferências estaduais ocorreram e culminaram em uma Conferência
Nacional contra o Racismo e a Intolerância na Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
congregando movimentos sociais e acadêmicos em um grande consenso em torno do foco na
questão da educação, básica e superior, e do mercado de trabalho, apresentando as ações
afirmativas como um método de resolução destes problemas.
Há uma série de políticas que merecem destaque, como demonstra de maneira mais
extensiva Jaccoud (2008b), tanto do ponto de vista de ações específicas voltadas ao combate à
desigualdade racial, quanto políticas universalistas que tem lugar no rol de intervenções com
resultados significativos na mitigação destas desigualdades. Porém, como destaca Gomes
(2001), é na educação que o Estado brasileiro tem ofertado as respostas mais significativas as
reivindicações do movimento negro e, ao mesmo tempo, é neste campo que o debate público
se torna mais acalorado e traz para o seu centro questões que pareciam secundárias na opinião
pública através de intensas discussões entre cientistas sociais. (CAMPOS, 2008).
A provocação inicial se deu no âmbito das universidades estaduais, que adotam
regimes de cotas para estudantes de escolas públicas, negros, indígenas e outros segmentos -
27

de maneira combinada ou não - a partir de decisões internas dos seus Conselhos Superiores ou
leis estaduais. Mas, cada vez mais se acelera a implementação destas políticas em
universidades federais, sobretudo a partir do Plano de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais, que tinha como diretriz o estabelecimento de mecanismos de inclusão
social no ensino superior. A autonomia com que as universidades conduziram este processo é
também um dos fatores que concorre para a sua fragmentação, produzindo modelos e
formatos diferentes de políticas inclusivas, com resultados também dos mais variados
(FERES JÚNIOR; DAFLON, 2014).
No livro organizado por Jocélio Teles dos Santos (2012), há um panorama que, através
da análise dos processos de decisão que culminaram na implementação destas políticas em
onze universidades, reafirma o caráter fragmentário desta fase, destacando, porém, como
diferentes processos de mobilização e decisão políticas acabaram por contemplar diferentes
populações através de critérios variados. Mas, além disso e tão importante quanto, os artigos
no livro desvelam as tensões de fundo racial que emergem no debate público a partir das
propostas de ações afirmativas: de um lado, a tensão provocada pelos movimentos sociais,
internos ou não à universidade, com o fim de colocar na agenda de discussão a aprovação das
políticas afirmativas, e do outro, fortes reações dentro da comunidade acadêmica,
direcionadas sobretudo aos critérios raciais das propostas. É comum a apresentação de cotas
puramente sociais, ou a melhora universal da educação pública, como uma contraposição ao
avanço da posição em favor das cotas com recorte étnico-raciais, evidenciando um dos graves
problemas para a aplicação de políticas de igualdade racial no Brasil - a subsunção desta
questão à desigualdade de classe (Theodoro, 2008).
Urge destacar o capítulo específico que demonstra a enorme tensão imbricada no
processo de aprovação das cotas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), local onde se
empreende esta pesquisa. Nele, é destacada duas provocações, a primeira feita pelo Diretório
Central dos Estudantes (DCE) ao Conselho de Ensino e Pesquisa (CONSEPE), em 2001, e a
segunda por um grupo mais amplo, o Comitê Pró-Cotas, em 2002, através de documento
entregue ao reitor.
Há um longo percurso, marcado pelo exame de modelos de cotas de outras
universidades, tensões dentro do movimento social e entre este e as instâncias institucionais
da UFBA, análise de dados sobre os ingressantes na universidade e pareceres jurídicos sobre o
assunto. A disputa central nas instâncias institucionais foi travada em torno dos percentuais a
serem reservados para estudantes de escola pública, negros e indígenas e a amplitude do
programa de ações afirmativas. Este debate redundou na formatação de um Programa de
28

Ações Afirmativas da UFBA com 10 anos de duração, prevendo políticas de pré-acesso,


acesso, permanência e pós-permanência, com cotas mesclando critérios social e racial,
perfazendo um total de 45% das vagas.
A votação, vencida por 41 votos favoráveis e 2 contrários, passa uma falsa impressão
de tranquilidade. Nisto, é muito valioso o registro feito no texto sobre os duros debates
travados na lista de e-mail docente da universidade, que revela enfáticas posições contrárias
às políticas afirmativas, congregando acusações de "racismo às avessas" (p. 70), "teses
eugênicas" (p. 70) e "privilégios" (p. 71) com temores relativos à desqualificação da
universidade e dos profissionais por ela formados. Este grau de resistência demonstra um
nexo argumentativo, sediado sobretudo entre os docentes da universidade, que falhou em
atingir o plano institucional quando do debate sobre as ações afirmativas, no âmbito das
deliberações nos conselhos superiores.
O caráter relevante da intensidade da reação dos docentes às políticas de ações
afirmativas também é registrado no processo da Universidade Federal de Santa Catarina, onde
registra-se que a partir de 2001 a Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior
(ANDES-SN) indicava o debate sobre as cotas como uma discussão local, mas viria a tomar
posição contrária às políticas de cotas em 2006, posição que só seria revertida em 2011.
Também na discussão da Universidade Federal de Santa Maria registra-se posição majoritária
no movimento docente contra a política de cotas (SANTOS, 2012a).
Naomar de Almeida, reitor da universidade à época, produziu em 2005 com com
Jocélio Teles, diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais, e dois de seus pró-reitores uma
publicação, intitulada "Ações Afirmativas na Universidade Pública: o caso da UFBA". Nele,
há uma descrição do contexto histórico que produziu e reproduz as atuais desigualdades
raciais, imbricadas com outras de cunho socioeconômico, e faz uma apresentação dos
resultados do vestibular, encampando uma defesa de que o processo de inclusão social não
havia eliminado o mérito acadêmico na instituição, significando um sucesso do ponto de vista
da democratização sem haver déficit na qualidade.
Porém, ainda assim, ainda assim os autores consideraram que seria

[...] prudente fazer uma avaliação das reações e resistências, que já aparecem de todo lado,
na instituição e na sociedade, e que produzem obstáculos, barreiras, dificuldades e
armadilhas frente ao avanço das propostas de ação. Para melhor superá-las ou preveni-las,
precisamos identificar e reconhecer a natureza dessas modalidades de reação e suas
derivações. (ALMEIDA-FILHO et al, 2005)

E, prosseguindo, elaboram os tipos de reações, destrinchando-as em quatro:


29

Crítica programática. O criticismo programático defende uma suposta inviabilidade das


ações afirmativas, declaradas meritórias em intenção, porém questionáveis em seus critérios
operacionais. Alegam razões de custo-benefício (programas caros, elevados investimentos
que poderiam ser destinados a ações de retorno imediato etc.). Também referem problemas
na operação da proposta (impossível definir raça cientificamente; somos todos afro-
descendentes; a classe média certamente vai fraudar o sistema; etc.) ou no seu impacto
(haverá queda na qualidade do ensino; evasão elevada; formação deficiente de
profissionais; etc.). Os defensores dessa modalidade de resistência produzem uma retórica
de base técnica e aparentemente racional que, pelo menos, pode ser vencida pela
demonstração dos resultados de uma praxis perseverante e competente, tal como
pretendemos neste documento, contribuindo para melhoria nas propostas e avanço nas
estratégias.
Resistência. Frantz Fanon escreveu uma obra-prima chamada Pele Negra, Máscara Branca,
onde argumenta que o racismo ocidental entranha-se de tal forma nas estruturas psíquicas
do homem moderno que opressor e oprimido termi- nam regidos por um mesmo registro de
recalque e repressão. Fora de qualquer plano lógico-racional, emergem formas
inconscientes de resistência, individual ou social, a propostas de superação de iniqüidades
pela via da reparação. Reconhece-se esta modalidade de reação pelos seus efeitos e não por
intenção manifesta dos que reagem. Se alguém diz: “sou totalmente a favor de reparar o
genocídio indígena, a tragédia da escravatura e a indigna exclusão social”, mas dos seus
atos resulta o contrário (ou nada resulta), temos um exemplo dessa forma de resistência. A
cruel história da escravatura e sucessivas gerações de preconceito e estigma deixaram
marcas indeléveis no inconsciente (no sentido freudiano) pós-colonial que somente
processos radicais de conscientização (no sentido freiriano) poderão superar e remover.
Além disso, muito precisamos aprender até podermos atuar, pelo menos com a mesma
eficiência das estratégias da publicidade mercadológica, de modo emancipatório no
inconsciente coletivo (no sentido junguiano) e no imaginário social.
Boicote. Muitos resistentes a programas de promoção da igualdade pela reparação têm
coragem de assumir publicamente, de modo aberto e claro, suas posições mesmo quando
essas parecem “politicamente incorretas”. Esse tipo de conservadorismo por princípio pode
ser de direita ou de esquerda, tanto faz. Alguns acham que o mundo sempre foi e é
naturalmente desigual e injusto e que não há qualquer problema em continuar assim,
mantendo-se os privilégios de alguns grupos sustentados justamente pela carência de
outros. Alguns – às vezes auto-proclamados de esquerda – defendem que qualquer política
de reparação social ou política pública de compensação poderá atenuar a luta de classes e
isso atrasaria o processo revolucionário. De todo modo, o boicote que fazem é, num certo
sentido, franco e leal, viabilizando disputa e enfrentamento nos planos político e
institucional.
Sabotagem. Chamamos de sabotagem a todas as formas de produção de obstáculos e
dificuldades que, mesmo indiretas, camufladas, disfarçadas ou denegadas, resultam em
prejuízos aos programas de ação afirmativa. Muitas vezes, a sabotagem consiste na
proposição ou realização de atos e iniciativas que, aparentemente, nada têm a ver com
preconceito ou racismo, mas que objetivamente resultam em enfraquecimento ou fracasso
de programas de reparação. Os conservadores dessa modalidade se disfarçam de
apoiadores, fazendo discursos pró-ações afirmativas e até mesmo se posicionando a favor
de propostas nessa direção. Trata-se da forma mais traiçoeira e covarde de reação, de difícil
reconhecimento e superação. Infelizmente, com freqüência, somente se consegue identificar
a sabotagem nos seus efeitos concretos, depois que corroeu ou implodiu estruturas e
instituições em processo de transformação, quando já é muito tarde para um enfrentamento
eficaz no plano ético e político. Por isso, em termos mais que metafóricos, é preciso
organizar uma vigilância constante, a fim de denunciar e desativar a tempo as armadilhas e
bombas de efeito retardado plantadas pelos sabotadores. (ALMEIDA-FILHO et al, 2005)

Esta barafunda de reações e resistências, com maior ou menor objetividade e


enfrentamento, guardam certa relação com a polêmica levantada por José Jorge de Carvalho
30

(2005) em artigo sobre o confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. Embora o


levantamento acerca da composição racial que ele empreende não seja suficientemente
criterioso para tirar conclusões numéricas precisas, não há quem afirme o oposto à
predominância de docentes brancos num país com forte presença negra em sua população.
Mas, muito mais importante que isso, a partir dele, Carvalho (2005) afirma que o processo de
discussão sobre as cotas raciais implicou num momento de revisão epistemológica radical que
coloca em xeque boa parte da produção acadêmica e do pensamento, sobretudo nas ciências
humanas, sobre o Brasil, a partir da constatação dessa racialização a partir do confinamento
racial e do silêncio sobre esta questão no mundo acadêmico brasileiro..
Esses fatores, para ele, produzem um incômodo persistente quando a questão racial é
trazida à tona, sendo surpreendente as sucessivas levas de cientistas sociais que celebravam a
democracia racial do carnaval ou dos bondes e eram incapazes de perceber uma espécie de
apartheid acadêmico nas suas universidades. Afirma Carvalho que essa desigualdade foi
produzida propositalmente pelas elites brancas ao longo do século XX, no qual as instituições
de ensino superior se ampliaram significativamente, mas não tiveram nenhum esforço de
inclusão, inclusive barrando importantes intelectuais negros de acessar as cátedras, como
Guerreiro Ramos, Edison Carneiro e Clóvis Moura.
Assim, o que ele propõe é um reconhecimento sistemático da marca racial branca na
academia brasileira. Tal posição remonta a uma formulação, recuperada pelo autor,
apresentada por Guerreiro Ramos (1995) da brancura brasileira como patologia social. Seria
ela uma tentativa de protesto contra a própria identidade étnico-racial, e como uma ideologia
que afeta profundamente a produção acadêmica - sobretudo aquela sobre a população negra,
chegando ao ponto de criticar como os títulos das obras brasileiras sobre a população negra
assemelhavam-se aos títulos das obras, na Alemanha nazista, sobre os judeus. Para Carvalho,
a única saída honesta para isso era, aproveitando o calor e as consequências do debate sobre
as cotas raciais, fazer com que os docentes brancos convivessem com a reflexão sobre sua
condição racial, como os docentes negros já se viam obrigados a fazer por conta das
particularidades de suas vivências.
Tais posicionamentos não passaram despercebidos. No intenso debate que correu
acerca da implementação das ações afirmativas, não foram poucas as vezes em que
intelectuais passaram descomposturas públicas uns nos outros, como demonstra Campos
(2008). As acusações mútuas de má-fé ou irresponsabilidade intelectual, indiferença política e
falta de rigor acadêmico foram recorrentes em artigos na imprensa. Cabe destacar, como
aponta Santos (2012), que esta polêmica atinge um grau de acirramento a ponto de provocar o
31

sistema jurídico para barrar o processo de implementação das cotas, coisa que não aconteceu
quando da implementação de ações afirmativas para outras populações, como o das pessoas
com deficiências e mulheres, o que certamente é uma pista para os caracteres dessa turbulenta
relação com a questão racial.
Porém, em última instância, no plano institucional vigorou um processo acelerado de
implementação das ações afirmativas, atingindo seu pico no ano no período 2007-2009,
quando, estimuladas pelo REUNI, as universidades federais aderem em massa a programas de
ações afirmativas (DAFLON; FERES JUNIOR; CAMPOS, 2013). As modificações pelas
quais as universidades brasileiras passaram a partir desse processo são relevantes para
compreender os germes do momento seguinte, cujo marco se define no ano de 2012, quando
há a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade das cotas raciais no
mês de Abril e a implementação da Lei No 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, em
Agosto do mesmo ano.
Já antes da Lei, há um aumento relevante na produção acadêmica sobre as ações
afirmativas, como demonstra Santos em balanço produzido em 2012: entre teses de
doutorado, dissertações de mestrado e artigos, enquanto de 2001-2003, no início do período,
há menos de 10 itens por ano, no auge do processo de implementação das cotas, em 2007-
2009 há produção superior a 30 itens por ano. Essa produção "demonstra uma demanda
regular de pesquisadores em publicarem resultados de pesquisas realizadas tanto quanto se
posicionarem em um campo bastante polarizado nas universidades e na sociedade brasileira"
(SANTOS, 2012b).
Nessa produção, destaca Santos, há a paulatina substituição da passionalidade
opinativa pela lógica argumentativa através de análise de dados. Esta produção, para ele e
para outros autores, demonstra o sucesso das políticas de cotas e desmistifica questões como o
baixo rendimento, abandono ou fracasso de estudantes cotistas.
Estudos, dentre os publicados, demonstram que não há, no geral, diferenças negativas
relevantes no desempenho de estudantes cotistas em relação aos não-cotistas. Embora os
melhores colocados no vestibular sejam os não-cotistas e estes tendam a manter seu alto
desempenho ao longo do curso, os cotistas, com menor pontuação no vestibular, tendem a
obter uma evolução no seu desempenho acadêmico e diminuir significativamente a diferença.
Inclusive, nos semestres finais, não raro em alguns cursos o percentual de cotistas com média
superior a 7 cresce em relação aos primeiros e chega a ser superior ao de não-cotistas, que por
vezes decrescem com o tempo.
32

Também, os estudos não apontam consistentemente maior reprovação por falta ou


abandono e jubilamento entre estes, pelo contrário. Aqueles estudantes que foram
efetivamente beneficiados pelas cotas, ou seja, os que sem elas não seriam aprovados, tendem
a ter um índice menor de desistência e de jubilamento. Ainda assim, colocam que há
importante segmentação por curso nesses dados, afetando desempenho, formatura e abandono
nos cursos mais concorridos e prestigiados. (SANTOS, 2012a; GUIMARÃES, COSTA;
ALMEIDA-FILHO, 2011; GUIMARÃES et al, 2010)
Assim, essa fase se apresenta com um intenso debate político-acadêmico sobre o
processo de implantação das cotas e trouxe uma importante literatura acerca do caráter e da
efetividade destas no processo de democratização do acesso a partir de ações afirmativas,
numa crescente relevância desse tema na produção acadêmica nacional.
Esta disputa travada em torno da implementação das cotas nitidamente teve um lado
vencedor. É possível demonstrar isso em alguns aspectos, que são valiosos para compreender
o que é será chamado de "pós-cotas", o cenário onde está consolidada a política como uma
conquista fundamental e eficaz na democratização do acesso.
Em primeiro lugar, pela sua aprovação pela população em geral. Analisando duas
pesquisas empreendidas pelo instituto Datafolha, realizadas em 1995 e 2006, Queiroz e
Santos (2006) demonstram o salto da aprovação a proposta de cotas raciais de 48% para 65%
no intervalo de 11 anos. Percebe-se em ambas as pesquisas uma resistência maior entre
pessoas brancas, com ensino superior e com alta renda familiar - o que talvez explique a
intensidade da "batalha das cotas" ao longo de sua implementação nas universidades. Embora
a clivagem de renda e escolaridade tenha sido mais significativa que a de raça/cor, há outras
evidências que suportam a tese de que este fator continua sendo relevante, como na análise
qualitativa das percepções dos brancos sobre as ações afirmativas, como aponta Barreto
(2008). É mais evidente ainda o dado obtido através de pesquisa própria, feita para a
disciplina de Metodologia Quantitativa, sob orientação do Prof. Dr. Clóvis Zimmerman, entre
estudantes do curso diurno de Direito da Universidade Federal da Bahia: 90,6% dos
entrevistados afirmaram concordar parcial ou completamente com a Lei de Cotas.
A eficácia da política, apresentada do ponto de vista do desempenho dos beneficiados
a partir de uma série de estudos como os já discutidos foram, sem dúvida, um fator relevante
para a superação daquele período de confrontação. Mas, além do já exposto, a abrangência da
política também precisa ser levada em conta: em 2012, já eram 30 mil vagas reservadas por
cotas na rede federal, perfazendo 20% do total de vagas da rede, acrescidas as vagas
reservadas por instituições estaduais.
33

Na Universidade Federal da Bahia, um balanço empreendido no último ano em que


vigorou a política de cotas da universidade, antes da Lei de Cotas,, indica impactos e
mudanças profundas. Sobretudo nos cursos de maior concorrência e prestígio - como é o caso
do de Direito. As cotas significaram, no geral, o aumento da participação de pretos e pardos
entre os selecionados pelo vestibular, de 61%, em 2004, para 72% em 2012, com notável
aumento dos autodeclarados pretos, que atingem quase 22% no último ano, bem como o
aumento da entrada de membros dos estratos mais pobres da população: nas três faixas até 5
salários mínimos de renda familiar mensal, o salto é de 16,6% em 2004 para 46,2% em 2012,
enquanto as quatro faixas superiores, acima de cinco salários mínimos, reduziu sua
participação de 83,4% para 53,8% em 2012.
Nos cursos de alto prestígio, a diferença foi ainda maior. No curso de Direito, por
exemplo o balanço indica que o segmento de até três salários mínimos entre os ingressos salta
de 1,7% para 28,1%, com alguns outros exemplos significativos, como Odontologia (de 4,3%
para 38,5%), Medicina (3,4% para 18,1%), Psicologia (7,8% para 37,1%), Arquitetura (4,9%
para 33,5%) e outros. Cabe ressaltar que neste período também houve uma paulatina inversão
do número de ingressos por gênero: em 2005, 50,6% de homens e 49,4% de mulheres,
proporção que se mantém até 2008, quando as mulheres passam a responder por 51,8% dos
ingressos, até 2012, quando correspondem por 55,9%.
Do ponto de vista do desempenho, na UFBA e em outras universidades, os números
indicam um cenário bem menos assustador do que os opositores das cotas pressupunham. Os
indicadores de desempenho, seja nas notas médias do vestibular, seja o Coeficiente de
Rendimento, não tiveram uma redução expressiva, até aumentando em alguns casos. A
expansão de vagas no REUNI, a partir de 2008, é sentida em quase todos os índices do
balanço. (SANTOS, 2013)
A institucionalização da política também representou uma consolidação fundamental -
inclusive provendo uma legitimação que certamente eleva a aprovação popular à política
afirmativa em questão. O julgamento, por unanimidade, da constitucionalidade da medida
pode ser considerado a pavimentação do caminho para a aprovação da Lei de Cotas, mais
tarde naquele ano, que viria a compor um aumento expressivo do total e da proporção de
vagas reservadas por cotas: em 2014, já totalizavam 77 mil vagas, representando 40% do total
de vagas na rede federal, das quais metade eram destinadas a pretos, pardos e indígenas
(DAFLON; FERES JÚNIOR; MORATELLI, 2014).
A lei cumpriu, portanto, um duplo papel, visto que, por um lado, padronizou a política
de cotas, desfazendo a sua fragmentação original, e a institucionalizou no ordenamento
34

jurídico brasileiro, com a robustez que uma lei tem frente a uma resolução de um conselho
universitário. Por outro, ampliou de maneira significativa o alcance destas políticas, ao se
aplicar a todas as instituições federais de ensino superior.
A articulação das ações afirmativas no ensino superior com um conjunto de outras
medidas foi também fundamental para o seu sucesso. A expansão do ensino superior federal
num patamar inédito neste período é digna de nota, passando de 531 mil matrículas em 2002
para 1 milhão e 130 mil em 2013. Efetivamente, por conta disso, há mais vagas de ampla
concorrência disponíveis nos concursos vestibulares depois das cotas do que antes delas.
Também é relevante notar que, em 2013, já eram metade das vagas das universidades federais
disputadas através do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), o que possibilita
concorrência mais ampla, por reduzir custos e unificar a seleção.
O processo de expansão do ensino privado também precisa ser notado, ainda que não
se aprofunde na questão, com a evolução de 2 milhões e 400 mil matrículas em 2002 para 5
milhões e 300 mil matrículas em 2013. Destas, 73% se concentram no turno noturno no final
da série histórica, contra apenas 30% das matriculas na rede pública federal. Em conjunto
com políticas de financiamento e bolsas, como FIES e ProUni, isso significou também um
amplo processo de inclusão de negros, pobres e trabalhadores nesta modalidade de ensino.
(INEP, 2015)
Este processo, que impressionante e inédito, que está articulado a um conjunto maior
de políticas sociais e de distribuição de renda, é bastante pontual e precário frente ao quadro
de desigualdades raciais historicamente construído no Brasil. Como aponta Theodoro (2008),
o caráter residual das políticas, a fragilidade da base conceitual na sua formulação - derivando
daí a confusão ou mescla de racismo e pobreza no desenho destas - e até mesmo a própria
existência do racismo institucional significam problemas ainda a serem resolvidos no âmbito
da realização de políticas que combatam efetivamente as desigualdades raciais. É preciso,
ainda, uma estratégia múltipla e integrada, que articule políticas universais e afirmativas num
projeto de desconstrução definitiva destas desigualdades.
Todos esses fatores concorrem para que algumas questões permaneçam em aberto,
ainda que atualizadas, e se coloquem junto às novas questões produzidas a partir da reflexão
sobre as mudanças produzidas por este processo. E são estas questões que estão no centro
do presente trabalho.
35

2.3 A QUESTÃO RACIAL NO PÓS-COTAS: VELHAS E NOVAS PERGUNTAS

A desigualdade racial no Brasil não desapareceu. Essa afirmativa pode parecer óbvia,
mas diante de um país onde prevaleceu por meio século, inclusive no meio acadêmico, o
paradigma da democracia racial ou a crença de que o caminho natural da sociedade de classes
seria eliminar a questão de raça, é preciso sempre recolocar os dados que endossam a ideia de
que o racismo, se não for endereçado diretamente com ações concretas, dificilmente deixará
de reproduzir a desigualdade.
Cabe lembrar o fecho do argumento de Osório neste sentido, quando coloca que

A discriminação racial funciona para os brancos como calçados que usam para correr contra
negros descalços. Torna a corrida tranqüila para os primeiros e extenuante para os últimos.
Para que a equalização racial ocorra no Brasil, em um horizonte de tempo aceitável, é
preciso, primeiro, tirar os calçados dos brancos. Depois, deixá-los correrem descalços por
algum tempo e calçar os negros para que os alcancem. No Brasil, faltam ainda políticas
mais eficientes de combate à desigualdade racial, baseadas em evidências, que aproveitem
os conhecimentos existentes sobre a reprodução da desigualdade racial, dotadas de
orçamento adequado e com ampla cobertura. Essas políticas são os calçados que os negros
brasileiros merecem receber. (OSÓRIO, 2008)

Indo além, certas desigualdades, se não enfrentadas, podem inclusive aumentar. Por
isso é relevante recuperar, como a primeira delas e sem a qual nenhuma outra faz sentido, o
persistente recorte racial na distribuição da mortalidade, sobretudo entre jovens, que tem
ocupado relevante espaço na agenda política dos movimentos e na academia dos últimos
tempos. Para não ser exaustivo, é possível apontar o Mapa da Violência (WAISELFIZ, 2016)
como um indicador deste fato.
Nele, aponta-se que, embora haja crescimento do número absoluto de homicídios por
armas de fogo, as taxas por cem mil habitantes no século XXI crescem num ritmo muito
inferior às últimas décadas do século XX. Considerando, porém, a cor das vítimas, percebe-se
que o taxa de homicídios por cem mil habitantes negros aumentou 9,9% enquanto entre a
população branca ela diminuiu 27%, até 2014. Isso sugere que as políticas implementadas
nesse período foram eficazes apenas para a população branca, alargando a diferença da
mortalidade por homicídio entre esta e a população negra (SOARES FILHO, 2011), o que
tem incidido de maneira relevante na pauta do movimento negro e já tem sido objeto de
reflexões na academia.
A persistência e a ampliação deste fato, na verdade, tem feito com que as outras
questões por vezes pareçam pálidas diante dele, haja vista não só o fato da morte em si, como
também o forte impacto que um homicídio traz do ponto de vista da saúde física e mental, da
36

vida financeira e das relações pessoais dentro de uma família, especialmente das famílias
pobres (COSTA, 2015). Certamente, neste contexto maior de inclusão social, este fator tem
um efeito ainda pouco conhecido na limitação dos efeitos das políticas vigentes. A
necessidade de compreender as razões, os efeitos e mecanismos de reprodução desta violência
segmentada é uma questão que não apenas permaneceu como se aprofundou com a urgência
de uma resposta do Estado.
Outra questão que permanece tem a ver com a representação política e a ascensão a
postos de prestígio no Estado. Como aponta Campos (2015), mesmo um observador leigo
percebe a quase completa exclusão da população negra nas arenas decisórias. Nas eleições de
2014, enquanto pretos e pardos perfaziam 50,6% da população, contra 47,9% de brancos,
eram 39,8% dos candidatos e apenas 20,1% dos eleitos (apenas 4,1% de pretos), contra 59,4%
de brancos candidatos e 79,9% de eleitos.
É importante correlacionar estes dados, aponta ele, com os de classe social, sexo e
escolaridade, outros fatores cruciais na composição da elite política brasileira. Embora seja
uma tendência mundial a sobre-representação das classes mais altas, esse fato se amplia
significativamente no Brasil, se associando a outros fatores, o que é relevante haja vista a
relação fartamente documentada entre raça e classe. Relevante também perceber que, segundo
Campos, o sexo é um fator independente mais relevante que a raça na seleção dos eleitos, o
que mais uma vez traz a importância de correlacionar os dois fatores.
Outras duas questões relevantes é o acesso a recursos de campanha e o acesso às listas
partidárias dos partidos mais competitivos, haja vista que o modelo de votação de lista aberta,
no qual o candidato depende tanto da sua votação nominal quanto da votação da coligação
para eleger-se. Tudo indica que os não-brancos, que são candidatos frequentemente em
proporção a população do estado, o são frequentemente com bem menos recursos de
campanha e por partidos menos competitivos, o que ajuda a explicar a distorção entre
população e eleitos.
Do ponto de vista das carreiras não-eletivas, alguns dados tem demonstrado uma
desigualdade tão ou mais perceptível quanto na política. De fato, a aprovação da Lei
12.990/2014 mostra que esta questão, embora não seja nova, ganha novos contornos a partir
do sucesso da política de cotas na universidade, tendo sido aprovada sem o mesmo alarde e
polêmica que estas.
No serviço público em geral, a Nota Técnica n. 17 do IPEA (SILVA; SILVA, 2014),
feita para subsidiar a lei, indica que, não obstante a elevação dos padrões de vida da
população negra a partir da diminuição da pobreza e do desemprego, somadas as ações
37

afirmativas específicas, ainda persistem desigualdades relevantes no campo educacional e do


trabalho, por exemplo. Neste, há uma sobrerrepresentação da população negra entre
desempregados e empregos precários, ainda que se ajuste a desigualdade de oportunidades
educacionais na análise dos dados.
Entre trabalhadores com mais de 12 anos de estudo, o rendimento médio de homens
negros é 66% inferior ao de brancos com a mesma escolaridade. No caso das mulheres, o
rendimento dos estratos superiores no nível educacional é de 40% em relação aos homens
brancos, novamente revelando uma intersecção importante de gênero e raça, apresentado no
estudo como a segmentação entre posições de ocupação, setor de atividade e nível
hierárquico.
Isto que parece se confirmar no caso específico da UFBA, onde percebe-se forte
segmentação de gênero entre os docentes das diferentes unidades acadêmicas, tendo maioria
de homens na maioria daquelas consideradas de maior prestígio, como Direito e Medicina
(BARRETO, 2015). Este fato reforça a tese que sustentou as ações afirmativas, de que a
inclusão nestes cursos, mais segmentados e concorridos, era o objetivo principal desta
política. Ainda assim, de maneira mais refinada, a nota técnica indica que, mesmo
controlando estes e outros fatores, pessoas com mesma condição de participação no mundo do
trabalho possuem diferenças relevantes na sua renda, que, ainda que sejam influenciadas por
outros fatos, podem ser creditadas ao papel estruturante do racismo na desigualdade.
No serviço público em específico, nota-se que ainda que haja limites mais bem
definidos nos redimentos do setor público, ainda há uma desigualdade de gênero e raça
importante, que é maior dentre aqueles com mais escolaridade. Isso é relevante, haja vista que
o Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça (IPEA, 2011) aponta que no decênio 1999-
2009, a média de anos de estudo cresceu na população em geral, mas com intensidades
diferentes: crescimento de 1,7 anos entre homens brancos (de 7,1 para 8,8) e mulheres brancas
(8,0 para 9,7), de 2,1 anos para homens negros (de 4,7 para 6,8) e de 2,2 para mulheres negras
(5,6 para 7,8). Isto significa possibilidades maiores de acesso a população negra a postos de
trabalho que exigem maior escolaridade, mas, ao mesmo tempo, não implica em reproduzir a
diferença de rendimentos no mesmo extrato de escolaridade, gerando uma contradição
fundamental.
Como já exposto anteriormente, a educação tem sido considerada um recurso
fundamental para reduzir as desigualdades, e certamente que as políticas afirmativas no
ensino superior tem contribuído para a melhoria das oportunidades educacionais e de renda da
população negra, mesmo levando em conta estas desigualdades dentro dos grupos de mesma
38

escolaridade. Isso dispensaria a política de cotas no serviço público? Como aponta a Nota
Técnica n. 17,

[...] pode-se constatar que o impacto das cotas no ensino superior deve ser paulatino, não
representando uma mudança em curto prazo no perfil do mercado de trabalho, muito menos
das ocupações públicas. Para estes campos, as ações afirmativas não são, de nenhuma
forma, dispensáveis. Pelo contrário, são cada vez mais necessárias para alavancar o esforço
afirmativo na formação destes indivíduos, que, ao terem acesso ao ensino superior não têm,
de imediato, todos os fatores de vulnerabilização e desvantagem acumulados em sua
trajetória, imediatamente sanados. (SILVA; SILVA, 2014).

É relevante notar que a própria nota técnica já previa um problema na aplicação da lei
nos concursos públicos no do magistério superior. Em um ponto específico, em seu final, ela
aponta que

Outro ponto de destaque são os concursos com baixo número de vagas, entre os quais o
exemplo mais contundente talvez seja o magistério superior. Geralmente, há menos de três
vagas para cada cargo, tendo em vista a especialização requerida. Assim, no espaço
universitário, embora seja o “nascedouro” das ações afirmativas para negros, a lei não
surtirá muito efeito. Desse modo, convêm avaliar este tipo de concurso e outros que
congreguem as mesmas características e propor medidas alternativas para ampliação da
representação racial em cargos específicos, conjugando, além da reserva de vagas, ações
como estratégias de recrutamento voltadas para a população negra habilitada, alteração no
formato dos concursos (ampliando o espectro de atuação do cargo, de modo a permitir
aglutinação de vagas, quando possível), entre outras táticas inovadoras e mais oportunas
que as próprias instituições poderão formular, a exemplo do que ocorreu na criação dos
diferentes sistemas de ação afirmativa para discentes. (SILVA; SILVA, 2014).

Uma vez que o presente estudo focaliza a Faculdade de Direito da UFBA é importante
ressaltar que, entre os docentes da casa, boa parte é membro de carreiras de Estado
(BARRETO, 2015), como a magistratura e o ministério público, o que torna relevante notar
também as características da desigualdade racial no serviço público. Há certa disponibilidade
de dados acerca de algumas das carreiras jurídicas e da composição racial de seus membros
que vale a pena ser explorada; como aponta Barreto,

Alguns estudos têm documentado a situação das mulheres em carreiras de prestígio, como
medicina, direito, engenharia e arquitetura (cf. Bruschini e Lombardi, 1999), ou em
determinadas instituições de ensino superior (Velho e Léon, 1998), e os resultados
confirmam que a participação feminina diminui nas carreiras de maior status e nas posições
mais elevadas da hierarquia ocupacional, enquanto a participação masculina cresce nas
ocupações de maior prestígio e mais bem remuneradas. [...] As evidências de que as
mulheres estão menos presentes nas áreas de maior prestígio, que remuneram melhor,
ocupando em menor proporção os cargos de direção, e sendo menos contempladas com
bolsas de produtividade, indicam que as chances de sucesso e ascensão na carreira
acadêmica e científica são menores para as mulheres (cf. Leta, 2003). O caso da Faculdade
de Medicina da UFBa mostra que é imprescindível considerar as características específicas
das várias carreiras que integram as grandes áreas do conhecimento. Algo semelhante pode
39

ser notado na área de ciências humanas, onde, na Faculdade de Direito da UFBa, por
exemplo, os homens são maioria. No Brasil, as profissões de médico e de advogado têm
alto prestígio, são tradicionais, e a imagem dos chamados "doutores" que atuam nessas
áreas, até recentemente, era associada a homens, de classes médias e altas, e brancos.

No caso das carreiras jurídicas, a própria Nota Técnica n.17 já traz alguns dados
interessantes acerca dos ingressantes em algumas carreiras no período 2007-2012. Na
Advocacia-Geral da União, apenas 15% dos ingressantes eram negros e 19% na Defensoria
Pública, ambas não dispondo de censo mais amplo que este, índices muito inferiores ao
conjunto da população economicamente ativa (52%) e à média do serviço público federal
(51,4%).
O Censo do Poder Judiciário (2014) traz uma riqueza de detalhes e algumas
confirmações acerca da magistratura brasileira em relação ao que se sabe sobre o emprego
público em geral, ou seja, menor proporção de negros e mulheres nos postos de maior
prestígio e poder. Cabe ressaltar que o Conselho Nacional de Justiça é o única órgão nacional
de uma Carreira de Estado na área jurídica a disponibilizar um censo completo com recorte de
raça e gênero. Publicação similar do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP,
2015), por exemplo, não faz esse recorte, atendo-se a quantitativos gerais de membros da
carreira e servidores, questões relativas aos processos e a atuação do órgão.
Em 2013, 64% dos juízes eram homens, sendo que apenas na Justiça do Trabalho há
mais mulheres que a média (47% contra 53% de homens). Também há maior proporção de
mulheres entre os Juízes substitutos (42%), ao passo que há uma redução significativa na
proporção de mulheres entre desembargadores e ministros de tribunais superiores (21,5% e
18,4%). Entre negros e brancos, observa-se ainda maior desproporção: 84% de juízes brancos,
contra 15% de juízes negros, proporção que diminui nos tribuinais superiores (91,1% x 8,9%),
e aumenta levemente na justiça do Trabalho (82,8% x 17%) e na Justiça Eleitoral (77,5% e
22,5%). Já entre os servidores, há maioria de mulheres: 56,2%, contra 43,8% de homens.
Cabe ressaltar que quase 80% do corpo de servidores com curso superior. Do ponto de vista
racial, são 70,9% autodeclarados brancos, contra 29,1% de negros.
Quanto ao Ministério Público, embora não haja nenhuma publicação oficial do
Conselho Nacional que traga este tipo de informação, para interesse deste estudo nota-se que
em 2013 este foi provocado, pela EDUCAFRO e pelo Procurador do Trabalho Wilian
Bedone, acerca da possibilidade de implantação de cotas para negros nos concursos para os
cargos efetivos daquele Conselho. Neste processo, por solicitação do relator, que
recomendaria adoção de 20% de cotas para negros, o Ministério Público da Bahia informou
40

ao Conselho possuir em seus quadros 159 servidores e 9 dos membros eram afrodescendentes
(CNMP, 2014). Cruzados os dados com o Retrato do Ministério Público referente àquele ano
(CNMP, 2015), que coloca que o total de membros do Ministério Público é de 506, e de
servidores 959, ainda que haja imprecisões nos dados, detecta-se ainda assim uma prevalência
significativa de brancos sobre negros nesta carreira de Estado na referida unidade da
federação.
Isso permite relacionar os possíveis impactos da Lei de Cotas no Serviço Público com
a Lei de Cotas no Ensino Superior, haja vista que tendem a ser mais significativos nas
carreiras de maior prestígio, em especial as jurídicas, assim como nas universidades houve
impacto mais significativo em cursos de prestígio como é o caso do Direito. Por um ângulo
diferente, é relevante que destas desigualdades - e das políticas que as enfrentam - emergem
questões mais amplas que a simples inclusão numérica de negros nestas carreiras. E daí
surgem problemas que são bastante afeitos a esta pesquisa. Levantou-se uma série de estudos
que abordaram um determinado contexto social - a ascensão social de negros e negras -
através do acesso a educação superior e ao serviço público, em especial, a docência
universitária.
O intuito desta última questão é inserir, no contexto mais geral apresentado até aqui,
reflexões sobre o sujeto docente, servidor público, especificamente na área do Direito, um dos
protagonistas do cenário de intensa inclusão social a partir de políticas afirmativas na
universidade. Afinal, contrastando os números impressionantes de inclusão de pobres e
negros no ensino superior, é razoável esperar que comece a se montar alguma tensão no
processo de absorção destes no mercado de trabalho e, sobretudo, na docência superior,
desembocando em confrontos entre atitudes de colaboração e de reação ao processo inclusivo,
como visto em relatos sobre o caso da UFBA.
Além disso, a ausência da população negra nas arenas decisórias e na burocracia
estatal configura uma hipótese razoável para a reprodução do racismo institucional, no sentido
da falha sistemática no provimento de serviços públicos para a população negra. Explorar este
contexto, onde um setor racialmente confinado, como a Universidade, como coloca Carvalho,
reage a um processo de inclusão social, é fundamental para os objetivos desta pesquisa.
Antes de entrar neste tópico, é relevante colocar que, devido a importância de
reconhecer na identidade dos sujeitos a multiplicidade de suas vivências, as categorias de
raça/cor estarão sempre articuladas interseccionalmente com outras, marcadamente gênero e
classe. Seguindo o exposto por Crenshaw (2002), não é possível compreender a experiência
de um sujeito a partir de apenas uma de suas dimensões.
41

Duarte (2014) expõe um mote frequente na questão da mobilidade e desigualdade


racial: o "lugar". Analisando notícias referentes a casos de violência com motivação racial, ela
expõe duas notícias onde o lugar é um fator relevante para a agressão, em um, um lugar
geográfico e em outro, um lugar simbólico. Ambas evidenciam, e para isso ela recorre a
Florestan Fernandes e Roger Bastide, uma resistência branca que se agudiza quando o negro
sai de seu lugar de subordinação. Mais que isso, colocam também que há lugares que não tem
segregação formal, mas onde uma série de elementos na prática excluem ou vetam a presença
de certos indivíduos, cabendo até sanções a quem quebre este ciclo, como é o caso analisado
por ela, onde uma jovem negra é agredida fisicamente por estar "num lugar onde não
deveria".
Os outros dois casos não tem referência explícita ao lugar, mas ele ainda assim se faz
presente. Um caso de agressão numa escola particular, por exemplo, evidencia como a
formação desde a primeira infância numa bolha racial ensina as crianças, sobretudo brancas e
de classe média, o lugar dos negros na sociedade. A mera presença de uma criança negra é
suficiente para despertar tensões raciais que dizem nitidamente que ali não é seu lugar. Este
trabalho nos traz questões importantes sobre os processos de resistência aos negros que "saem
do lugar", uma questão de suma relevância para o tema que interessa a este estudo.
O estudo de Santana (2009) na sua tese de doutorado investiga os negros do alto
escalão do serviço público, em Salvador, buscando, em suas trajetórias de vida, as
microdinâmicas dessa ascensão e a sua relação com a construção de suas identidades. Olha,
portanto, justamente a trajetória destes negros que saíram do lugar. Ele próprio se identifica
como tal, reservando parte de seu texto para explicar sua condição e trajetória, afirmando-se
incapaz de perseguir a neutralidade axiológica weberiana, por mais vigilância epistemológica
que tivesse. Esta conduta se identifica com a problemática apresentada por Hill Collins (2016)
acerca do outsider within, e a necessidade dos pesquisadores que tem identidade marginal - no
caso específico para ela, as mulheres negras - tem de abraçar a sua identidade e seu legado
cultural como um modo de enriquecer a sua abordagem e sua pesquisa. Ivo de Santana era um
outsider estudando outsiders como ele, num tipo bastante peculiar de pesquisa de campo; seu
desafio era recontar a sua própria trajetória.
Graduado em economia e funcionário de carreira no Banco Central, ele entrevistou
pessoas negras, homens e mulheres, geralmente de origem humilde e pais e mães com pouca
instrução que trabalhavam em funções de pouca remuneração e prestígio, como motoristas,
domésticas, ambulantes e pedreiros. Através do estudo, graduaram-se em cursos superiores
como Direito, Medicina e Engenharia, alguns seguindo carreira militar ou com pós-
42

graduação. Muitos ocupavam posições estratégicas nas suas organizações, de prestígio e


decisão. Com eles, buscou identificar elementos da vida pessoal, profissional e da sua visão
de mundo a partir de sua ascensão social.
A tomada de consciência sobre a condição racial geralmente se dava na passagem para
vida adulta, concomitantemente ao início do processo de ascensão social, marcado pela
entrada em cursos técnicos ou superiores, já com a convivência com uma maioria de classe
superior à sua própria e numa condição racial diferente. Não é raro ver a omissão da condição
racial, ou o silêncio sobre a vida pessoal, como uma estratégia de defesa nesta fase e depois
dela, num contexto de relações sociais muitas vezes abertamente caracterizada pela
subalternidade.
O aspecto mais relevante de seu trabalho, porém, é a perspectiva peculiar que estes
sujeitos têm sobre o racismo. Constatando a sua existência, identificam no conflito a maneira
mais comum de externalização do preconceito racial, o que talvez ajude a explicar por que há
tão pouco recurso aos meios jurídicos ou exposição pública dos casos ocorridos, expressando
reações racionalizadas, evitando prejuízos profissionais, pessoais e de imagem, por mais que a
discriminação racial seja objeto de forte intolerância nos seus discursos. A vivência entre
piadas, recusas de reconhecer sua posição social, sobretudo quando estão em posição superior,
cobrança exacerbada de seus comportamentos, mais do que de seus colegas brancos, são
algumas das percepções agravadas por uma vivência solitária e silenciosa, sem dúvida
associada à fragmentação da vivência racial no meio profissional, majoritariamente branco.
Ele nos apresenta, então a ótica daqueles que, no espaço de uma geração, ascenderam
socialmente. Seus relatos sobre as resistências e as formas, retomando o exposto por Duarte
(2014) e dito pelo próprio autor, de dizer que "este não é seu lugar". Tema pouco pesquisado,
diz ele, a mobilidade social representava um caso estatisticamente pequeno, mas
sociologicamente relevante num processo que ele chama de mobilidade isolada, geradora de
tristezas, culpas e vergonhas na comparação com a situação de seus amigos e familiares de
origem, mas que é produto de uma estratégia individual combinada com uma coletiva, de suas
famílias, mas ainda anterior a um contexto onde a mobilidade se dá através de iniciativas
públicas, que atingem uma massa de pessoas negras, como é o caso das ações afirmativas.
Neste contexto, alguns estudos já expõem algumas situações semelhantes às narradas
na tese de Santana. O livro de Barreto (2008) traz o relato de estratégias antirracistas
utilizadas pelos estudantes negros e indígena, em contraste com a ausência delas entre os
estudantes brancos. Esta seria uma evidência relevante de como a construção das identidades
raciais subalternas, em particular a do negro, é oriunda de um processo de enfrentamento
43

cotidiano às dificuldades que o racismo impõe, enquanto a branquitude segue ausente nas
falas dos brancos.
Estes, por sua vez, se posicionam mais frequentemente contra políticas afirmativas,
inclusive acusando-as de racismo. A branquitude mostra-se, em contraste com a negritude,
uma guardiã silenciosa de privilégios, inclusive na medida em que estudantes brancos
reconhecem o racismo enquanto fenômeno e, ao mesmo tempo, sonegam apoio a propostas de
enfrentamento, buscando sempre apresentar propostas universalistas como a solução destes
problemas.
Percebe-se que a resistência aos beneficiários das ações afirmativas, sujeitos de um
processo de mobilidade social que não é isolado, envolve sobretudo o embate discursivo entre
o mérito e a justiça social, e o confronto deste debate a partir da história e o presente de
exclusão da população negra é um desafio na consolidação das políticas afirmativas (MENIN
et al, 2008). Isto indica que a vitória na batalha travada em torno das cotas na graduação não
significou o fim de uma disputa político-acadêmica que se trava agora no dia-a-dia das
universidades.
A resistência mais extremada entre os estudantes se expressa, na literatura consultada,
pela percepção das cotas como uma política que corrói o mérito, visando cooptar
politicamente minorias sociais. Neste pólo extremo, elas são injustas, pois tiram a vaga de
quem merecia tê-la, para dar a alguém que, além de não ter competência para tal, está tirando
uma vantagem indevida sobre outras pessoas. A despeito dos argumentos utilizados, os
estudos apontam uma clivagem social e racial entre cotistas e não-cotistas, com pouca
interação ou integração entre os dois grupos, sobretudo nos semestres iniciais.
Entre os cotistas, o relato mais vivo dessa separação se conjunciona com a percepção
de que há uma cobrança excessiva (inclusive da parte dos próprios) de demonstrar o mérito,
provar ser merecedor de estar ali e de ter sucesso. Há também uma ideia comum, ainda que
não se possa afirmar majoritária, de que negar ou escamotear sua identidade pode minorar os
preconceitos sofridos, e participar de grupos de afirmação identitária não traria vantagens.
Entre não-cotistas, chama a atenção do fato de que, mesmo as cotas no Brasil tendo sido
implantadas, hegemonicamente, com a preponderância do critério social apenas com recorte
racial interno, é a raça, e não a classe, o marcador definitivo dos cotistas na percepção destes,
bem como o elemento conceitual a que mais se recorre para se opor às políticas de cotas,
relevando a segundo plano as características mesmas da política implementada (NERY;
COSTA, 2009a; 2009b; RIBEIRO et al, 2014).
44

É importante notar que o mundo acadêmico pré-cotas abrigava o núcleo da resistência


às políticas afirmativas na sociedade brasileira, por ser majoritariamente branca, de classe
média ou alta e ambiente de escolaridade superior, como demonstram as pesquisas de opinião.
Ainda assim, não deixa de ter relevo o fato de haver uma clivagem tal que chegue inclusive ao
lugar onde sentam cotistas e não-cotistas, aos choques e dificuldades de socialização que, se
por um lado esperados, representam uma vivência difícil sobretudo para os beneficiários das
políticas afirmativas. A dissolução destas contradições, que pode ocorrer conforme os
semestres passam, não raro significa uma integração ou assimilação dos cotistas numa cultura
universitária consolidada. Aliás, nota-se inclusive que embora a inclusão dos cotistas não
tenham significado queda bruta na média do desempenho dos estudantes das universidades,
aponta-se que os resultados positivos de estudantes cotistas e não-cotistas são obtidos através
de estratégias radicalmente diferentes, implicando inclusive em comportamentos peculiares
em cada um dos grupos, e a sensibilidade individual de alguns docentes em utilizar dinamicas
pedagógicas de grupos misturando estes estudantes foi significativa no processo de integração
(CICALÓ, 2012).
Um dos estudos, realizado na Universidade Federal da Bahia (RIBEIRO et al, 2014)
que utiliza grupos focais com estudantes cotistas, não-cotistas e um misto, consegue detectar
algumas diferenças significativas nas respostas de acordo com os diferentes grupos. Percebe-
se uma homofilia significativa, o que faz com que certas respostas só sejam obtidas através de
questionamentos entre iguais, sugerindo certo constrangimento mútuo em relação a um tema
delicado, certamente com impactos na vivência destes grupos em seus cursos. Endereçando-se
a uma questão relevante, apontam que a política afirmativa exige complementos pedagógicos,
como monitoria ou tutoria e cursos de idiomas, assistenciais, para minorar os efeitos da
pobreza material no desempenho acadêmico, e, principalmente, no plano relacional, no qual

A demonstração da convivência em subgrupos fechados junto à abertura do debate sobre a


influência deste padrão de interação para a formação pode ser o principio de um processo
de elaboração e mudança rumo à integração destes. A construção conjunta de um plano de
intervenção para melhoria da integração pode garantir a adesão à implementação destas
intervenções. Além disso, é preciso dar visibilidade ao tema e abrir espaços para expressão
das diferentes opiniões nos micro espaços institucionais (salas de aula, colegiados,
diretórios acadêmicos, etc.). A promoção deste debate com a adequada mediação pode
favorecer a escuta e mudanças de atitude em relação ao tema. (RIBEIRO et al, 2014).

Essa reflexão mostra que há a percepção de que a forma como a comunidade


universitária lida com as políticas afirmativas tem impactos significativos nos resultados
delas, ainda que não sejam expressos de maneira quantitativa. A cobrança exacerbada por
45

desempenho reproduz certamente um padrão que se relaciona com a experiência contada por
Santana (2009), e que remete a uma ascensão social eivada de angústias, tristezas e culpas.
Porém, se naquele contexto a "mobilidade isolada", que muitas vezes colocava um único
negro num contexto de branquitude, era a justificativa para isso, qual a razão de um processo
massivo de inclusão reproduzir estas sensações ou, no mínimo, falhar em combatê-las? O
próprio trabalho toca, ainda que tangencialmente, na necessidade de uma inclusão mais
profunda, que signifique mudanças na cultura acadêmica e nos currículos visando maior
diversidade e inclusão.
Daí, é necessário reportar-se ao artigo de Passos (2015), situado na Universidade
Federal de Santa Catarina, que faz a impactante percepção de que "para muitos, já não é mais
possível se ver somente como acadêmico, mas como um acadêmico pertencente a um
determinado grupo étnico-racial". A persistência da sensação de que os cotistas são pessoas
"fora do lugar" só pode ser combatida com um arranjo de políticas que visem alterar
substancialmente a universidade não só no âmbito do seu público, mas também do seu corpo
docente, da sua cultura institucional e dos seus currículos. Até lá, se reproduzirão os relatos
sistemáticos de práticas exclusivistas que efetivamente constrangem ou sabotam o usuário das
políticas afirmativas.
A questão docente surge, então, como um patamar superior de reflexão acerca da
diversidade no contexto universitário brasileiro. Como protagonistas da direção institucional
da universidade e como mediadores do aprendizado nas salas de aula, projetos de pesquisa e
extensão, são apontados na literatura consultada, ainda que lateralmente, como potenciais
colaboradores de grande importância neste processo.
Como já discutido, a política de cotas não significou, como já discutido, uma mudança
automática no serviço público, quantitativa ou qualitativamente, do ponto de vista da questão
racial, e há carência de políticas de ação afirmativa na pós-graduação. A recente
implementação das cotas no serviço público, como já aponta a Nota Técnica n.17, encontra
dificuldades no âmbito das instituições de ensino superior. e próprio tempo das políticas de
ação afirmativa indicam que, mesmo cumprindo o tempo mínimo para obter doutorado,
exigência para o magistério superior federal desde 2013 com a Medida Provisória n. 614 - o
que contraria as estatísticas na literatura de avaliação de desempenho de cotistas e não-cotistas
no tempo de formatura - os primeiros oriundos do sistema de cotas a doutorar-se tem se
formado apenas nos últimos anos cinco anos.
Então, qual a situação e o papel que tem cumprido os docentes neste contexto? Há
pouca literatura sobre o assunto. Talvez pelo grau de delicadeza que significa explorar um
46

tema tão delicado entre pares. Ainda assim, toda a literatura só leva a conclusão de que é
preciso, e urgente, sensibilizar e mobilizar a comunidade universitária como um todo, mas,
mais que isso, como aponta Carvalho (2009), alterar significativamente a pós-graduação e a
docência universitária no que diz respeito à diversidade racial, quase inexistente num contexto
em que ela foi propositalmente eliminada pela mesma política de branqueamento através da
imigração que vigorou no país no final do século XIX. Para ele, a situação atual implica num
isolamento dos poucos docentes negros que chega a impossibilitar uma agenda de discussão
que integre suas vivências racializadas à reflexão sobre o fazer acadêmico.
Pelas razões expostas, não é possível falar da docência brasileira sem falar da
branquitude, chamada por Bento (2002) de "guardiã silenciosa de privilégios". Criticando, ao
mesmo tempo, a posição da democracia racial e a do racismo como derivação da herança
negra da escravidão, ela explana o tema de maneira extensiva, do qual é relevante destacar
três características da branquitude: o silêncio, o padrão e a assimilação.
Sobre o silêncio, ela observa que

[...] o primeiro e mais importante aspecto que chama a atenção nos debates, nas pesquisas,
na implementação de programas institucionais de combate às desigualdades é o silêncio, a
omissão ou a distorção que há em torno do lugar que o branco ocupou e ocupa, de fato, nas
relações raciais brasileiras. A falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades
raciais é uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais no Brasil
constituem um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado,
problematizado. (BENTO, 2002).

A branquitudes silenciosa é, assim, a reprodução da ideia de que o racismo é um


problema dos negros. É a negação sistemática da ação institucional e do privilégio individual
que reproduz, ativa ou passivamente, as desigualdades raciais, bem como o não-
reconhecimento de que, se há uma perversa consequência da escravidão sobre os negros, há
uma valiosa herança desta para os brancos que, sem se abrir a uma reflexão crítica, continuam
atuando interessadamente em defesa de seus privilégios.
Este elemento está fortemente imbricado com o padrão branco. Ao assumir o pólo
neutro das relações raciais, o branco ao mesmo tempo se transforma em modelo a ser seguido,
"padrão universal de humanidade" (pp. 6) e tipo que não pode ser analisado. O racismo e os
privilégios dele decorrente são sempre do outro, de um "racista" exógeno que não se aparenta
em nada "comigo".
Estabelecido a inquestionabilidade da brancura, padronizada, o projeto a que ela serve
é o da Estabelecido a inquestionabilidade da brancura, padronizada, o projeto a que ela serve é
47

o da assimilação, primeiro, no início do século, pretendida a partir de um branqueamento


biológico e demográfico a partir da imigração europeia. Depois, um branqueamento
ideológico construído a partir da projeção de elementos negativos na identidade negra,
alçando a brancura a um objetivo. Neste sentido, é justo por em questão até onde o paradigma
da inclusão social, sem uma sólida base conceitual antirracista, pode servir a um projeto
assimilacionista e embranquecedor, não tão distante de ideologias predominantes no final do
século XIX.
No âmbito da academia e da intelectualidade, Barreto (2008), Pinheiro (2010) e
Laborne (2014) apresentam reflexões que, à luz de toda a discussão feita até aqui, trazem as
questões gerais para um terreno bastante próximo ao pretendido por este estudo. Barreto, em
seu livro, coteja nos discursos de estudantes negros, brancos, indígenas e japoneses da
Universidade de São Paulo (USP) um conjunto de percepções sobre racismo e anti-racismo
num modelo próximo ao que o presente trabalho pretende empreender entre os docentes.
Pinheiro, por outro lado, busca pesquisar entre estudantes e professores da universidade para
compreender suas percepções sobre racismo, cotas e cotistas e grupos raciais num contexto de
implementação de ações afirmativas. Já Laborne empreende um conjunto de entrevistas com
docentes brancos que tem atuação destacada na área de relações raciais visando compreender
como a relação de poder da branquitude se expressa na produção do conhecimento, em
especial na área das relações raciais.
Do trabalho de Barreto (2008), se coteja percepções sobre racismo e antirracismo entre
estudantes da USP, demonstrando importante “complexidade, heterogeneidade e
ambiguidade” (p. 15) nos discursos sobre branquitude e negritude. Isto já apresenta uma
importante característica, na medida em que apresenta um quadro complexo que não se
caracteriza apenas pela polarização de opiniões entre negros e brancos, e sim uma variedade
interna relevante de percepções sobre o racismo entre esses dois conjuntos de entrevistados.
No livro, Barreto reafirma alguns parâmetros básicos que parecem compor uma certa
delimitação do campo discursivo acerca do racismo e antirracismo no Brasil, no conjunto das
entrevistas feitas: o repúdio à segregação e à desigualdade racial e o reconhecimento unânime
da existência do racismo. Ainda assim houve uma profusão de recursos indiretos de negação
do racismo, como a sua subsunção à questão de classe, minimizando a sua importância,
sobretudo na fala dos entrevistados brancos, reafirmando assim alguns aspectos discursivos já
explorados na literatura, sobretudo quando utilizados no meio acadêmico (GUIMARÃES,
1995a; THEODORO, 2008; NERY; COSTA, 2009; 2009a; RIBEIRO et al, 2014). Assim,
48

este trabalho abriu um importante caminho no estudo de perspectivas racistas e antirracistas


no discurso de brancos e negros no contexto acadêmico.
Essas chaves explicativas contribuem muito num diálogo possível com a tese de
Pinheiro. Ela, por sua vez, vai direto ao ponto das ações afirmativas e das identidades raciais
e, assim, consegue captar expressões mais diretas e peculiares do racismo na universidade. É
central destacar as estratégias de enfrentamento à percepção de existência do racismo, como a
reversão, acusando de racistas as políticas antirracistas, bem como a confirmação da
branquitude como norma, blindando o lugar de fala das pessoas brancas.
Num contexto em que a universidade torna-se social e racialmente diversa, apesar de
não imperar o ódio racial previsto pelos críticos das cotas, há diferenças significativas na
percepção sobre negros e brancos, cotistas e não-cotistas que implicam inclusive em vivência
homofílicas, como discutido anteriormente. Também se destacam estratégias de colaboração
de alguns docentes, com posturas ativas visando contribuir com o processo de inclusão
iniciados pelas cotas, especialmente no processo de escolha de estudantes para seus projetos
de pesquisa.
No pólo da resistência, porém, é uma atitude passiva que predomina. Entre os
docentes, inclusive, Pinheiro capta uma menor percepção sobre o racismo entre os docentes.
E, se não detecta uma fronteira rígida entre brancos e negros ou cotistas e não-cotistas na
vivência universitária, é relevante perceber há sim uma percepção por parte dos docentes
sobre a diferença entre estes, reconhecendo inclusive as dificuldades maiores na realização
das suas obrigações acadêmicas. O que leva a uma relação importante: ela relata que há uma
preocupante cultura de silêncio em relação aos casos de discriminação racial verbal dentro da
universidade; mas também a leitura do trabalho evidencia que a comunidade acadêmica
também se põe passiva às dificuldades dos cotistas, como se essas fossem responsabilidade
exclusiva da instituição, e não de seus componentes também - mais uma vez, a lógica do
"problema racial do outro".
Ademais, o reconhecimento de que a presença maciça desses novos sujeitos dentro da
universidade já configura uma insurgência epistêmica, ainda assim a mudança institucional da
universidade e do seu referencial político-pedagógico no sentido de incluir estes sujeitos na
agenda acadêmica ainda é um porvir. Esta limitação, tanto da instituição quanto da
comunidade acadêmica, é um fator limitante relevante nas políticas afirmativas neste contexto
mais geral, e merece ser observada com mais cuidado.
Por fim, de Laborne (2014) é importantíssimo destacar que, mesmo em se tratando de
pesquisadores da questão racial, inclusive de postura e discurso antirracista, trazer à tona o
49

elemento da branquitude ainda é um elemento de tensão. Dois dos quatro entrevistados


recusaram esta heteroclassificação. Para um, o lugar incômodo de alguém que veio de classe
subalterna e vive o não-lugar entre o pardo e o branco se traduz num desconforto permanente
acerca da sua identidade, que choca o que ele pensa de si com a forma como o vêem. Ele
reflete uma atitude de reafirmar seus laços com a negritude e a pobreza, ainda que
socialmente ele não seja assim reconhecido, ainda assim reconhecendo parte de seus
privilégios e pensando qual seu lugar numa coalizão na construção da igualdade étnico-racial.
Outra, alegando-se "brasileira" no quesito raça/cor, transporta esse lugar de fala para o
embate político-acadêmico enfrentando a discussão sobre as cotas, atacando a possibilidade
de um critério racial nestas. O fundamento para as duas afirmativas é o mesmo: a
impossibilidade de definir identidades raciais no Brasil, e qualquer tentativa de fazê-lo é uma
divisão perigosa. Usando a classe como chave explicativa para a desigualdade brasileira, ela
recorre a concepções clássicas sobre o tema e, ao mesmo tema, exclui a questão racial como
fundante destas desigualdades.
Ora, argumenta a autora, essas divisões perigosas, para quem é negro, não já são uma
realidade cotidiana? Essa divisão, do ponto de vista intelectual, é bem mais ameaçadora a
branquitude. Nem todos os brancos, porém, assim enxergam; seja por uma naturalização de
seu privilégio branco, seja por, como mostram os entrevistados que aceitaram a
heteroclassificação da pesquisadora, uma compreensão das razões estruturais destes
privilégios, aliada a um posicionamento contrário à sua reprodução.
A autora traz a ideia de racial literacy como uma categoria valiosa para compreender
estas posições. Seria ela uma compreensão, produto de uma socialização racialmente mista e
reflexão crítica sobre esta, que fundamenta uma vivência de uma branquitude reconstruída e
capaz de posicionar-se criticamente em relação as desigualdades raciais. Ainda assim, isso
não exclui os brancos racialmente letrados dos privilégios típicos do seu grupo. Essa tensão é
muito evidenciada na relação dos intelectuais pesquisados com o movimento negro, por
exemplo, com embates e alianças tanto no mundo político quanto acadêmico.
Após o esforço de revisão desta literatura, é possível indicar algumas lacunas que são
academicamente relevantes e justificam uma incursão empírica, por motivos de ordem
variada. É mister apontar aqui ao menos três das mais relevantes.
Do ponto de vista do estudo das relações raciais, o desafio proposto por José Jorge de
Carvalho, de estimular a (auto)reflexão crítica da condição racial da academia brasileira - que
pode ser estendida às principais funções do setor público em geral - permanece em aberto.
Um estudo que pretenda analisar como docentes percebem a si mesmos e ao seu entorno, à luz
50

de um contexto de inclusão sociorracial que desvela tensões ora ocultas, teria uma
contribuição relevante a dar. Este esforço é, também, capaz de dar maior subsídio a uma
análise do papel estratégico que a academia cumpriu e pode cumprir na reprodução ou na
desconstrução de desigualdades historicamente persistentes, um debate que já perdura há
tempos e não tem perspectiva de se esgotar.
Por outro lado, no campo do estudo das ações afirmativas, carece ainda de um
diagnóstico mais preciso sobre dinâmicas de resistência ou colaboração da comunidade
universitária em relação ao processo de inclusão sociorracial. Mais do que isso, é preciso
apreender estes mecanismos sub-institucionais do racismo e antirracismo para, por um lado,
compreender como se sustenta o racismo quando até ele dispõe de uma retórica antirracista e,
por outro, colocar em relevo a importância das políticas de igualdade racial terem capacidade
de mobilizar e sensibilizar o conjunto da comunidade afetada em torno de sua execução plena.
Por fim, e não menos importante, a opção pela Faculdade de Direito dialoga
diretamente com uma série de fatores que, por afinidade eletiva, tornam ainda mais
destacados os dois motivos anteriores. Destes, destaca-se o fato de ser esta uma instituição de
muita tradição e prestígio e, por isso, ser uma das mais afetadas pela política de cotas,
inclusive no debate público sobre sua constitucionalidade; o fato dela formar os profissionais
que disputarão boa parte das carreiras de maior prestígio - e mais confinadas racialmente - no
serviço público; e o fato dos bacharéis em Direito terem presença expressiva na política e na
burocracia do Estado, sendo, em grande parte, responsáveis por conduzir a intervenção
pública em áreas que tem gerado problemas críticos para a população negra, como a justiça
criminal e o poder policial.
Com este conjunto de reflexões, pode-se estabelecer as bases para avançar na análise
pretendida nesse trabalho. Estabelecendo um foco diferente do que é majoritário nas pesquisas
acerca das ações afirmativas, é possível delinear as principais características da Faculdade de
Direito e dos seus docentes, analisando trajetórias à luz das questões já exploradas na
literatura, cotejando quais a quais valores eles atribuem o caminho que trilharam, o que é
objeto do capítulo seguinte. Mais que isso, abre-se caminho para algumas importantes
questões originais, como a autopercepção racial e de gênero dos docentes, bem como suas
visões acerca da desigualdade, e as suas interações com as ações afirmativas e seus
beneficiários, como discutido mais adiante.
51

3 “RECONHECER O PRIVILÉGIO É PRESSUPOSTO PRA ESSA


DISCUSSÃO”: A TRAJETÓRIA PESSOAL E PROFISSIONAL DOS
DOCENTES.

Neste capítulo, se busca constituir os marcos mínimos descritivos e analíticos sobre o


pesquisador, o campo e os entrevistados. Através disso, se pretende, por um lado, apresentar
os desafios teórico-metodológicos que as condições da pesquisa estabeleceram, a partir da
percepção dos entrevistados sobre a identidade do pesquisador e das características
específicas da Faculdade de Direito, o que abrange as seções 1.1 (Um estrangeiro nativo) e
1.2 (A Faculdade de Direito), mais breves.
Por outro lado, e mais extensamente, se desdobra um esforço analítico acerca da
trajetória pessoal e profissional dos docentes. Utilizando sobretudo as informações obtidas
nos primeiros dois blocos da entrevista, já se empreende a construção de alguns quadros de
referência comparativos entre a origem social dos docentes e a maneira como expõem os
valores que acreditam relevantes para a sua trajetória. Isso permite, ainda que
superficialmente, antecipar percepções sobre classe, raça, gênero e mobilidade social, a partir
da análise que fazem sobre sua própria trajetória, enriquecendo as possibilidades
interpretativas das demais informações coletadas na pesquisa.

3.1 UM ESTRANGEIRO NATIVO: UM ESTUDANTE NEGRO ENTREVISTA


DOUTORES DO DIREITO.

Antes de analisar de fato as questões levantadas ao longo do trabalho, é preciso


explorar duas questões preliminares. A primeira delas é acerca de como a prática da pesquisa
de campo deste trabalho exige uma reflexão sobre o pesquisador; e a segunda, de como o
campo - a Faculdade de Direito da UFBA - colocou desafios específicos na elaboração do
trabalho. São questões que antecipam parte das análises a serem feitas mais adiante, mas ao
mesmo tempo situam melhor a compreensão sobre o material coletado e analisado.
Enfrentar a questão do pesquisador e sua identidade no contexto de desenvolvimento
do trabalho reflete uma opção teórica, orientada centralmente pela reflexão proposta por
Patricia Hill Collins (2016) que, a partir do pensamento feminista negro, coloca a importância
de valorizar o potencial criativo de identidades marginais - no caso, a de mulher negra - na
produção sociológica. Mas, também, reflete uma necessidade prática oriunda da expressão
52

direta, pelos sujeitos entrevistados, de percepção dos marcadores sobretudo raciais e de


gênero do pesquisador.
Portanto, é preciso fazer um conjunto de reflexões que, antecipando algumas questões
que serão analisadas com mais esmero em outras seções, demonstrem como as percepções
sobre raça e gênero permitem desvelar os choques e reconhecimentos de identidade entre o
pesquisador e os sujeitos de pesquisa.
Alguns marcadores foram explicitados pelos próprios entrevistados, como quando
Ives, um docente branco, ao comentar as mudanças trazidas pelas cotas, disse que “Pessoas
como você, de… tez morena, hoje são muito mais frequentes do que eram nessa faculdade
quando eu estudei, certo?”. Ao mencionar a cor da pele do entrevistador, o Ives deixa
evidente o quanto seus olhos são treinados a perceber as nuances da linha de cor. E, embora
nem todos tenham tocado diretamente no assunto, foi possível sentir como a identidade racial
do entrevistador serviu explícita ou implicitamente como critério de identificação entre o
entrevistador e os estudantes cotistas em diversos momentos.
Isso não quer dizer que esta identidade racial tenha sido percebida de maneira
uniforme. Pelo contrário, à exemplo de Eduardo, também docente branco, que ao discutir o
critério de autodeclaração nas ações afirmativas, perguntou como o pesquisador se declarava
e, ao ouvir a resposta, disse “Então, se você chegar na Nigéria você não é preto”, as falas
sobre mestiçagem e sobre as fronteiras borradas da identidade racial no Brasil se exprimiam,
em determinados momentos, na própria avaliação sobre os marcadores raciais do pesquisador.
Não obstante, uma certa auto-evidência da identidade do entrevistador era percebida
pelos entrevistados, notadamente pelos que se autodeclaravam pretos. Cândido declarou em
dado momento que “tinha o cabelo mais ou menos como o seu, cabelo black power, com um
volume considerável…”, indicando um reconhecimento entre sujeito de pesquisa e
pesquisador. Levando isso em conta, não parece ser um acaso que o docente preto e a docente
preta entrevistadas tenham oferecido as maiores entrevistas, recebendo o entrevistador em
casa, em contraposição aos docentes brancos que geralmente davam entrevistas no seu lugar
de trabalho.
O projeto de pesquisa não se fez de inocente frente a estas questões. Ao contrário de
perseguir uma suposta posição universalizante, desde o levantamento da literatura se buscou
enfrentar de perto esta questão, a partir de um método interseccional que, como aponta
Crenshaw (2002), permite compreender que os marcadores de identidade não são
simplesmente somados. Ou seja, a vivência de uma mulher negra ou de um homem branco
não podem ser analiticamente compreendidas apenas somando os atributos de uma
53

mulher/homem universal com uma negritude/branquitude universal. A isto se soma também


uma percepção de que a branquitude como identidade que assume o pólo neutro das relações
raciais. E que, ao mesmo tempo, se transforma em modelo a ser seguido, "padrão universal de
humanidade" (BENTO, 2002, p. 6) e tipo que não pode ser analisado.
Do ponto de vista prático, enfrentar estas questões exigiu um preparo bem-cuidado,
que se funda sobretudo na reflexão teórica permanente de que os entrevistados não só
enxergam, como levam em conta com quem estão falando na entrevista. Da escolha das
roupas à ordem do questionário, tudo foi pensado para fazer com que os choques e
reconhecimentos de identidade entre pesquisador e entrevistado pudessem ser convertidos em
vantagens analíticas, possibilitando, ao mesmo tempo, um estranhamento e aproximação entre
estes sujeitos. Buscando, portanto, afirmativamente posicionar o pesquisador na categoria de
outsider within (COLLINS, 2016), ou, numa adaptação livre, um "estrangeiro nativo".
Seria pouco frutífero imaginar que os docentes não fariam este tipo de análise junto
aos estudantes e, por consequência, sobre o pesquisador em questão. E a informação colhida,
tanto no discurso quanto nas hesitações, nas pausas e mesmo nos olhares dos entrevistados
antes de abordar o tema racial ou de gênero, restou nítido o quanto esta avaliação era feita, a
todo momento, na entrevista. O professor Ives, em exemplo diverso, determinado momento
da entrevista demonstrou como o reconhecimento lhe permitiu emitir uma opinião sobre
diferenças entre estudantes homens e mulheres que talvez não emitisse fosse uma mulher
entrevistadora à sua frente, por conta de algum possível “patrulhamento”:

Isso, desde de Simone de Beauvoir dizem que isso é porque elas são criadas assim, então eu
vejo isso, mas digo que é porque a criação delas é isso, não digo que é porque é homem ou
mulher. Então, vejo essas coisas aí. [...] Eu falei Simone de Beauvoir, pra dizer, desde
quando, quem é a referência, não é que eu concorde não. Cê tá entendendo? Antes que haja
algum patrulhamento[…] Não seu, mas eu me /fiz comigo mesmo/ ‘Não, tá certo, não tem
mais homem nem mulher não’, antes que alguém venha me dizer ‘Não, não pode’... Não é
uma coisa… Não acho que você tá fazendo qualquer constrangimento não, mas como é que
eu… ‘Não, não tem mais não’ [...] OIha, não pode, como é que eu vou diferenciar?

Em outro ponto, Felipa, uma docente negra, ao ser perguntada sobre o que significa
ser uma mulher negra no mundo acadêmico, diz “Com relação a isso eu tenho pensado, mas
não tenho uma reflexão mais elaborada não, de tipo... Eu acho que tem algumas cobranças
que vem até, né, dos nossos”, estabelecendo a partir da palavra “nossos” uma relação de
reconhecimento entre a identidade racial própria e a do pesquisador. Esta demarcação denota
inclusive como, em determinados momentos, marcadores de raça e, no caso, de gênero,
54

podem também ser neutralizados no processo comunicativo, a partir do estabelecimento de


uma certa cumplicidade na entrevista.
Esta cumplicidade se realiza com certos compromissos, muito recorrentes não apenas
no contato com os professores, como também na própria entrevista. O sigilo da identidade do
entrevistado foi demarcado por Quitéria, que declarou que “eu só tô dizendo isso[...] por que
o meu nome não vai ser divulgado <risada>, acho que isso é importante até pra sua pesquisa,
saber.”, e ainda mais ainda pelo professor Miguel, que, para além do sigilo, pediu para não ser
gravado e assim poder se expressar mais livremente. Outro tipo de compromisso comum foi o
de poder ler o resultado do trabalho, como no caso dos professores Miguel, Ives e Cândido.
A cumplicidade também era atingida através de uma opção metodológica na
elaboração do roteiro de entrevistas. Este consistia em três blocos, dois dos quais eram
universalistas, não abordando questões de raça e gênero explicitamente, nem com perguntas
direcionadas a sujeitos específicos. Este elemento foi fundamental para perceber como alguns
sujeitos apresentaram estes temas antes deles serem perguntados, e também para possibilitar
que ao tratar desse assunto já houvesse uma cumplicidade estabelecida, ajudando assim a
superar barreiras que poderiam existir, fruto de choques da percepção do entrevistado sobre si
e sobre o pesquisador.

3.2 A FACULDADE DE DIREITO: CARACTERÍSTICAS E HISTÓRIA DE UM


CAMPO PECULIAR

Para além dessa relação individual, entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa, há um


fator ambiental relevante que precisa ser discutido. A Faculdade de Direito é chamada por
muitos de seus frequentadores de “Egrégia” e isso já traz em si a insígnia de prestígio que ela
representa. Centenária, aos 125 anos, ela é mais antiga que a própria Universidade Federal e,
nas palavras de Luís, “Virou status para a sociedade então, para a burguesia ser integrante da
Universidade Federal[...], Pra você ter ideia, quando eu era aluno, praticamente os professores
eram todos ligados ao poder, aqui tinha secretário de estado, Deputado, etc…”, denotando
uma relação histórica entre o curso de Direito e as posições de prestígio e poder na sociedade.
O curso de Direito é, além de muito tradicional, o maior curso da Universidade Federal da
Bahia, abrigando, dentre as modalidades noturna e diurna, mais de 2500 estudantes (UFBA,
2014), tendo sido um dos mais profundamente afetados pelas cotas e pela expansão de vagas,
55

também se integrando bastante com os Bacharelados Interdisciplinares, que são a mais recente
inovação em termos de arquitetura acadêmica na UFBA.
Estes três aspectos merecem, portanto, um breve destaque. Em primeiro lugar, a
trajetória da Faculdade centenária e onde ela se localiza no contexto da institucionalização do
ensino universitário no país e da própria Universidade Federal da Bahia; em segundo, a sua
tradição histórica de relacionar-se com o poder estatal e suas carreiras derivadas; e, em
terceiro, os seus caracteres específicos enquanto unidade acadêmica, do ponto de vista da
estrutura física e acadêmica. Se buscará levantar quais aspectos foram relevantes para o
desenho da pesquisa e para a ida a campo; as visões específicas dos docentes sobre sua
comunidade serão abordadas em momento próprio.
A Faculdade Livre de Direito da Bahia, fundada em 1891 no contexto das reformas de
Benjamin Constant, é uma das seis faculdades criadas antes da Universidade Federal da Bahia
(Rocha, 2015). A área de saúde, com Medicina, Farmácia e Odontologia, foi a primeira a
desenvolver-se, ao longo do século XIX, a partir da fundação da Escola de Cirurgia em 1808
e cedeu dos seus quadros 8 dos 16 reitores da Universidade Federal da Bahia (um deles de
Odontologia, os demais oriundos da Faculdade de Medicina), em contraponto a apenas 3
oriundos da Faculdade de Direito (dos quais dois foram vice-reitores de professores da
Faculdade de Medicina), 2 da Escola Politécnica e da Faculdade de Educação e 1 da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. (TOUTAIN; ABREU; VARELA, 2011)
No contexto do ensino jurídico brasileiro, a Faculdade de Direito da Bahia também
encontra relevância, mas não protagonismo, ao longo da história. Como aponta Rocha (2016),
a tradição brasileira estabeleceu-se com as Faculdades de Olinda/Recife e do Largo de São
Francisco, em São Paulo, que ocuparam-se em formar a elite jurídica e política nacional.
Embora a Bahia tenha importante tradição, são as Faculdades da época imperial que
dominam, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal brasileiro, com 86 indicações somadas
destas duas, contra apenas 4 da Faculdade da Bahia. Enquanto o direito pernambucano cedia
os principais quadros das carreiras jurídicas de Estado - que ainda não eram ocupadas via
concurso -, os paulistas dominavam no cenário político nacional, denominando-se “República
de Bacharéis”, tendo formando inclusive grandes juristas baianos como Ruy Barbosa, que
frequentou a ambas, e Teixeira de Freitas, o “jurisconsulto do Império”.
Estes fatores são importantes para compreender o segundo aspecto, da sua relação com
o poder. A Faculdade de Direito da Bahia serviu como grande formadora da elite política e
estatal baiana, e boa parte de seus professores ocupam ou ocuparam postos relevantes não
apenas no Judiciário e nas associações acadêmicas da área de Direito, como também, a nível
56

estadual sobretudo, no Executivo e no Legislativo. Reafirmando o que demonstra Barreto


(2015), e com a devida atualização para o presente trabalho, há, dentre os quadros docentes da
referida unidade acadêmica, grande proporção de docentes que ocupam cargos nas carreiras
de Estado, nos governos e nos legislativos, direção em instituições acadêmicas e associações
de classe ou científicas (81 dos 109 docentes efetivos). Limitando às carreiras de Estado,
entendidas como aquelas ocupadas por concurso público - e é importante perceber que além
delas, a advocacia é uma carreira jurídica importante e também de status -, são 52 docentes,
acrescidos de outros 13 que ocuparam ou ocupam funções de direção ou assessoria no
primeiro ou segundo escalão do Poder Executivo ou Legislativo, conforme a tabela abaixo.

Tabela 1.1 – Carreiras dos Docentes da FDUFBA


Carreiras de Estado e Cargos Públicos Qte.
Magistratura 18
Ministério Público 16
Advogado Público 13
Cargos 1o e 2o Escalão do Executivo 13
Analista Judiciário 2
Defensoria Pública 2
Auditoria Fiscal 1
Total 65

Como coloca o professor Luís, “são procuradores, são advogados, e são professores.
Não é o contrário. [...] Aqui ninguém é professor e advogado. Aqui o cara é advogado e
professor. Sempre prevalece a profissão”. Isso causa um estranhamento ambiental importante;
o pesquisador, acostumado com o ambiente mais acadêmico, descontraído e informal da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, precisou adequar-se, do ponto de vista do
vestuário, do linguajar e até mesmo das estratégias de abordagem para conseguir penetrar
mais suavemente daquele lugar, de modo a conseguir realizar as entrevistas. Uma delas,
inclusive, realizada no gabinete de um juiz federal. Do ponto de vista da preparação e da
vivência no campo, este foi um elemento crucial em todas as referidas fases. Não era raro que
a entrevista se encaminhasse, em dados momentos, para uma reversão da dinâmica entre
pesquisador e entrevistado, com, por exemplo, o docente-juiz inquirindo o pesquisador acerca
de seus motivos.
Isso implica, inclusive, numa outra consequência: a titulação mais baixa dos docentes
da Faculdade de Direito. Como aponta Barreto (2015), no período 2012-2013, detectou-se que
nas unidades que abrigam cursos da Área III, seguindo a divisão feita pela própria
57

universidade, a média era de 68% de doutores ou pós-doutores, contra 23% de mestres e


apenas 2,4% de graduados e especialistas, com uma tendência de aumento da proporção de
doutores. Atualizando os dados para este trabalho, no ano de 2017, detectou-se que na
Faculdade de Direito mais da metade dos docentes detém a titulação de mestre apenas. A
valorização da trajetória profissional em detrimento da vivência acadêmica produziu, aos
olhos do pesquisador ainda explorando o campo, uma unidade diferenciada na instituição de
ensino superior, com códigos de status mais ligados àquele aspecto que aos mais próprios do
ambiente acadêmico.
Assim, essa característica de ter se constituído, como afirma o professor Ives, numa
“escola profissional” e mais voltada ao poder que à própria universidade, implica em certas
consequências que modularam a realização do trabalho. A Faculdade de Direito é uma das
unidades isoladas da Universidade Federal da Bahia, a única unidade no bairro da Graça. De
costas para o Vale do Canela, onde ficam as escolas de Administração, Educação, Ciências da
Saúde e Medicina, pesquisá-la significa imergir num mundo próprio, que não o é apenas pelo
isolamento geográfico, mas também por certo distanciamento desta área de conhecimento em
relação às demais no mundo acadêmico.
Em muitos sentidos, é uma unidade acadêmica atípica na área de humanidades: é a
única que tem minoria absoluta de docentes em Dedicação Exclusiva por conta de, como já se
discutiu, a maioria dos docentes ter como atividade principal uma outra carreira no Estado por
isso optarem pelo regime de 20 horas ou 40 horas semanais. Também, apesar de ser uma das
áreas mais tradicionais, é também uma das que mais integrou-se ao regime de ciclos proposto
pelos Bacharelados Interdisciplinares, contando com a mais importante Área de Concentração
nas Humanidades, a de Estudos Jurídicos, fato muito mencionado pelos docentes ao longo das
entrevistas como um rompimento com a tradição isolacionista da Faculdade de Direito.
Foi, por fim, uma das mais afetadas pelas políticas afirmativas e de expansão e
reestruturação da universidade, haja vista que o curso noturno, criado em 2009, abriga quase
metade dos quase 2500 estudantes. Também se destaca uma mudança forte no perfil dos
estudantes, na medida em que, por exemplo, o segmento de até três salários mínimos entre os
ingressos salta de 1,7% para 28,7%, de antes das cotas (SANTOS, 2013) até a transição da
Lei de Cotas em 2012, que supõe ter aumentado ainda mais esta mudança. Ter se tornado uma
faculdade mais feminina e "mais colorida", ou seja, com maior diversidade étnico-racial,
também é um fator muito citado ao longo das entrevistas, seguindo uma tendência que a
literatura aponta para um processo crescente de enegrecimento e feminização dos corpos
estudantis a partir das políticas afirmativas e de expansão.
58

Essa é a razão, portanto, para o uso de expedientes metodológicos auxiliares que


foram importantes para captar as nuances deste espaço tão parecido, de resto, com as demais
unidades acadêmicas, mas tão diferente em aspectos fundamentais. Além da técnica principal
- a entrevista semi-estruturada com docentes da Faculdade de Direito - foram utilizadas a
observação participante, que se deu durante um semestre, onde o pesquisador cursou uma
disciplina; a observação direta, em visitas interessadas à unidade, ao longo de um ano; e a
interação com o corpo estudantil, a partir, por um lado, de uma pesquisa quantitativa por
survey e, por outro, pelo uso de informantes, numa rede de relações com estudantes, que
permitiram acessar dimensões que não são tão óbvias a primeira vista.
As percepções sobre quem era o pesquisador e sobre qual espaço ele estava
adentrando, a maioria obtida antes ou logo no início do trabalho de campo, foram
fundamentais tanto na preparação dos instrumentos de pesquisa, quanto no próprio exercício
do trabalho de campo. As entrevistas foram conduzidas levando em conta não apenas
questões presentes na literatura sobre as ações afirmativas e a questão racial, mas também a
partir das percepções obtidas por esses métodos exploratórios auxiliares. Por isto, justifica-se
a necessidade de expor brevemente este conjunto de questões, que configuram verdadeiros
achados do trabalho de campo e permitiram o alargamento das questões analisadas ao longo
da pesquisa.

3.3 “UMA FORMAÇÃO EDUCACIONAL PRIVILEGIADA”: TRAJETÓRIA


PESSOAL E ACADÊMICA DOS DOCENTES.

A origem social e familiar dos docentes já permite fazer um conjunto de distinções


importantes entre os entrevistados. A origem urbana é um ponto em comum na trajetória de
todos os sujeitos, embora alguns de Salvador, outros do interior e pelo menos um deles
oriundo da Grande São Paulo. Mesmo entre aqueles do interior, a vivência rural é colocada
inexistente ou, no máximo, como acessória, à exemplo do professor Eduardo, que explica:

Não morei na fazenda, né, mas tive minha vida inteira contato com a área rural, inclusive
hoje eu tenho um sítio por isso. Eu gosto muito. Meu avô tinha uma fazenda em Tanquinho
onde eu ia sempre. Fazenda simples. Contato com a natureza.

E a Thereza, que diz: “Morei quando muito pequena na praia do Inema. Meu pai era
administrador das fazendas da marinha do Brasil. Depois nos fomos morar em Mata de São
59

João” e, ao ser perguntada mais diretamente sobre se chegou a morar na área rural, respondeu
que “Não, a gente morava na cidade de interior, mas na área urbana.”
Essa origem geográfica comum apresenta, porém, clivagens de classe afeitas ao
mundo urbano. Essas características foram expressas mais objetivamente em alguns casos,
como quando o Ives disse ser de “família burguesa”, ou quando o Cândido identificou que
havia, na Faculdade de Direito, poucos estudantes pobres como ele. Ainda assim, em geral,
essas diferentes origens de classe ficaram muito expressas em três aspectos fundamentais: a
ocupação e escolaridade dos pais e familiares, a constituição da família de origem, e a
vivência escolar e universitária. A partir destes caracteres é possível criar alguns
agrupamentos analíticos que contribuem na interpretação dos dados coletados.
A ocupação e escolaridade dos pais era, sem dúvida alguma, um marcador de origem
de classe importante dos docentes, e daí já se projeta uma interação fundamental,
documentada na literatura, entre raça e classe. No contexto brasileiro, as designações de cor e
raça tem sido sistematicamente utilizadas para classificar subclasses (GUIMARÃES, 1995a).
Na argumentação de Fernandes (2008), a questão racial seria um resquício da escravidão,
subsumido e acessório à desigualdade de classe; ou, mais modernamente, tem sido entendida
como um fator concorrente para a perpetuação da desigualdade social, precisando, portanto,
ser entendida como um fenômeno com dimensões próprias (OSÓRIO, 2008).
Analiticamente, a partir deste fato narrado pelos entrevistados, percebe-se um estrato
superior bem marcado, que relata ter um ou ambos os pais com ocupações que exigem alta
escolaridade, especialização e/ou são reconhecidas como profissões com bons rendimentos,
como “médico” (Francisca), “economista” (Francisca), “professor universitário” (Ives,
Eduardo), “empresário” (Paulo, Miguel), “fazendeiro” (Thereza), “oficial da Polícia”
(Eduardo), que pode facilmente ser encaixado, seguindo as reflexões de Pochmann (2014),
nas classes médias proprietárias, assalariadas ou da própria burguesia.
Há, por outro lado, um estrato perceptivelmente inferior, mas ainda bastante
embaralhado, que compraz tanto relatos de pais com pouca instrução e em trabalhos braçais,
como “foguista” e “vigilante” (Cândido), quanto uma série de profissões pelas quais não é
possível identificar nitidamente uma origem de classe bem definida, como “comerciantes”
(Luís), “petroleiro” (Felipa, Orlando), “enfermeira” (Orlando), “professor de ensino básico”
(Felipa, Quitéria, Paulo). Estas profissões podem significar até posições inferiores na classe
média, a depender de questões como o tamanho do comércio; a formação educacional técnica
ou superior do petroleiro ou da enfermeira; a patente do policial; e o local de trabalho do
professor de ensino básico.
60

Levando em conta, porém, os relatos acerca das constituições familiares e da vivência


escolar, os estratos ficam mais bem demarcados. O primeiro aspecto a ser considerado é a
monoparentalidade, que parece estar bastante relacionada a relatos de dificuldades financeiras
familiares na juventude. A professora Felipa, por exemplo, relata que

Só que assim, eu não convivi com meu pai... Eu não cresci com ele. [...] E isso de alguma
forma impactou, né... [...] mas isso de alguma forma não impactou o acesso a educação, por
exemplo, né, porque ele se comprometeu com garantir minimamente condições para que a
gente frequentasse escolas particulares. Eu acho que isso é um diferencial, assim. Foi um
elemento fundamental para que eu pudesse... é... concorrer digamos, disputar, as vagas no
mundo do trabalho, assim, esse foi um elemento diferencial. Se não fosse isso, se... Muito
por insistência da minha mãe, ela brigou muito com meu pai para que ele pudesse pagar a
escola, né?! [...] Eu talvez faça parte de uma classe média que hoje é classe média, mas que
na minha infância não era classe média. Porque a gente tinha uma série de restrições,
materiais mesmo, assim. Que apesar de frequentar escola particular, mas eu não estava no
mesmo nível socioeconômico dos meus colegas de escola, por exemplo.

É importante salientar que a monoparentalidade, expressa por Felipa, Quitéria e


Paulo, é sempre assumida pelas mães, que em nenhum caso tinha uma profissão nitidamente
superior à do pai. Elas implicam, em vários momentos, em necessidade de “ajuda” por parte
de parentes que não se situam no núcleo doméstico do sujeito para garantir oportunidades
educacionais, a exemplo do professor Paulo, que explica que

Aí eu estudei dois meses, só, também, numa escola pública. No Luís Tarquínio. Foi a pior
experiência da minha vida… Eu tomei uma surra lá, cara <risadas>. E aí foi a minha sorte,
porque aí minha madrinha... ela... pagou. Minha mãe tava sem grana… <risada> Minha
sorte foi tomar uma surra. E aí eu fui... Aí minha madrinha sempre teve muito dinheiro
assim […]

Ou ainda a necessidade de trabalhar para custear seus estudos, como no caso da


Quitéria, que relata que

Na graduação, quando eu fiz vestibular, eu tinha que pagar minha faculdade, montei uma
loja de cosmético, lá no IAPI, onde minha mãe tinha uns imóveis, só que eu não tava feliz,
queria ir pra área, como eu não tinha ninguém na família, eu fui bater de porta em porta.

Somando-se isto à questão da vivência escolar, pode-se estabelecer fielmente dois


subgrupos entre aqueles que não estão incluídos no estrato que relatou uma origem de classe
mais superior. De todos os sujeitos entrevistados, apenas quatro (Luís, Eduardo, Thereza e
Cândido) estudaram consistentemente em escola pública. A professora Thereza, já próxima
dos 70 anos, porém, relata que “A escola pública não nasceu pra ser ruim, ficou ruim [...]
antigamente ninguém queria estudar em escola particular. Gente que podia, gente da elite,
61

estudava em escola pública. Era uma briga pra estudar no Central, que era de qualidade”, o
que subentende-se que era o seu caso, que estudou em escola pública e concluiu os estudos
num colégio religioso, confirmando a sua classificação inicial pela ocupação dos pais.
O professor Cândido também confirma a sua classificação inicial num estrato inferior,
ao relatar as condições ruins da escola estadual onde ensinou, e ainda vai adiante no caso da
vivência na universidade, onde relata que

Os primeiros semestres, em especial, nós tivemos, eu tive uma... eh... oferta de disciplinas e
de... eh... curso muito extravagante, tinha aula pela manhã, pela tarde e pela noite em vários
dias, o que dificultava a possibilidade de inserção no mundo do trabalho, então houve um
momento que eu tive de parar o curso também, pra trabalhar durante um semestre e fazer
algum caixa pra me manter nos semestres seguintes, enfim. Foi um processo bastante, eh...
Turbulento, né, e... penoso e muitas vezes quase conduzindo a expulsão da universidade.

Dentre os demais, há dois casos de estudos em colégios militares (Luís e Eduardo),


que são frequentemente mencionados nas entrevistas por conta de uma polêmica acerca da
justiça de haver oriundos destes entre os cotistas, por serem colégios que recrutam parte de
seus estudantes de estratos de camadas médias, filhos da oficialidade militar, e oferecem
ensino de melhor qualidade. Eles, aliás, dão um relato complementar; o professor Eduardo
afirma que “O Colégio Militar tem muito isso, esporte, muitas atividades sociais… Tive
contato com colegas mais humildes que estudavam em colégios públicos”, numa narrativa
sobre convivência com “pessoas mais simples” que seria reforçada ao longo de toda a
entrevista, enquanto o professor Luís, falando do início da sua vida profissional, como
policial militar, relata que:

O policial militar na Bahia… sempre teve uma condição inferior. Ele era oriundo das
classes mais humildes… é um histórico… Os oficiais que tentavam melhorar um pouco,
eles moravam… a gente dizia que… os policiais militares moravam nos Alagados, e os
oficiais na redondeza. E era exatamente esse o quadro. Vários dos meus colegas moravam
próximo aos alagados, eu morava não muito próximo, mas relativamente na mesma cidade
baixa, né […]

Nesse ponto, uma constante já se revela: o quanto o silêncio fala. O professor


Orlando, por exemplo descreveu brevemente sua experiência escolar sem mencionar
quaisquer dificuldades, listando as instituições particulares onde estudou, e também a sua rica
experiência universitária, que lhe proporcionou participação política, cursar matérias em
outras unidades e ir direto para a pós-graduação e para o mercado de trabalho numa posição
bastante confortável, um trajeto que se identifica muito, por exemplo, com a professora
Francisca, que relata bastante nitidamente que:
62

O que é importante pra minha trajetória profissional, eu digo que eu vim de uma família de
classe média, né, então tive uma formação educacional privilegiada, né, pro contexto do
nosso país, meu pai é médico, minha mãe é economista, né, então assim, sempre tive acesso
a colégios particulares né, tive oportunidade de fazer curso de língua enquanto tava na fase
de formação básica, é, acho que, creio que isso e não qualquer outro fator de qualificação
pessoal me proporcionou a acessar uma universidade pública, né, e também desenvolver
minha carreira com a tranquilidade que eu desenvolvi né, me graduei, passei num concurso
público, [...] e a partir dessa estabilidade digamos assim, profissional, eu pude me dedicar a
uma vida acadêmica né, que é o que eu venho fazendo desde 2011 e... e aí, a partir daí eu
decidi, né, que na verdade eu tenho muito mais afeição, né, pela vida acadêmica do que
pela minha outra atividade profissional, né, então... Fui me envolvendo em mestrado,
doutorado e recentemente o concurso aqui da UFBA.

Assim sendo, é possível identificar com bastante nitidez relatos sobre origem de classe
marcadamente superior, que engloba Francisca, Ives, Miguel, Orlando, Eduardo e
Thereza, demarcando um campo entre a classe média tradicional e a burguesia, valendo-se da
definição de Pochmann (2014), identificada a partir de uma família geralmente biparental e
nuclear, na maior parte dos casos com ambos os pais trabalhando e pelo menos um deles com
uma profissão tradicional e de boa remuneração, ainda que haja uma interessante variedade
interna este grupo. No outro extremo, famílias extensas ou monoparentais em alguns casos,
trabalho braçal e/ou mal-remunerado noutros e, em todos, relatos sobre dificuldades na
infância, na vida escolar, universitária ou no início da vida profissional, abarcando um campo
de uma classe média um pouco mais vulnerável, como no caso de Paulo, Luís e Quitéria, até
a pobreza mais ou menos explícita, como no caso de Cândido e Felipa.
É relevante destacar uma forte interação entre raça, gênero e classe desde a
identificação da origem social e familiar dos entrevistados. Do ponto de vista do gênero, urge
perceber como a monoparentalidade, feminina em todos os casos, mesmo quando
declaradamente transitória, como no caso do professor Paulo, e em especial no caso de
núcleos domésticos exclusivamente feminino (mãe e filhas, no caso de Felipa e Quitéria),
enseja dificuldades, financeiras ou não, que constam nos relatos dos sujeitos. São relatos em
que:

A mãe que se vê sozinha é confrontada, na maioria dos casos, com uma queda em seu nível
de vida. Então acabam aparecendo os problemas financeiros, obrigando-a a investir mais na
atividade profissional. Mas diminuir o tempo dedicado aos filhos acentua as dificuldades de
administrar a vida doméstica. (GARBAR; THEODORE, 2000, p. 139 apud SOUSA, 2008).

É relevante perceber que a monoparentalidade feminina e a chefia feminina de


famílias tem sido uma tendência crescente na sociedade brasileira, em todas as classes sociais.
63

Mas, ainda assim, é nas classes populares em que este tipo de lar é mais destacado, o que vem
ao caso nos sujeitos analisados (SOUSA, 2008).
Do ponto de vista racial, é mister apontar que o estrato mais inferior do ponto de vista
dos relatos sobre origem social e familiar é constituído pelos dois entrevistados negros da
pesquisa. No caso da professora Felipa, a experiência da monoparentalidade feminina, das
dificuldades financeiras na infância e do racismo implicaram no mais completo, longo e
intenso relato sobre origem familiar dentre todas as entrevistas realizadas. Ela afirma que

Eu... <Pausa> Eu sempre tive muita dificuldade, assim, de... De fala inclusive, eu falo sobre
isso abertamente inclusive. 'Tou falando com você porque eu fiz terapia. Então... A terapia
me ajudou a... <Pausa> Refletir politicamente sobre isso. Porque antigamente eu só pensava
sobre isso como elemento de constrangimento, assim.

Assim como em outros momentos em que havia relatos de experiências com o racismo
e o machismo, Felipa tinha uma voz que por vezes tremia, compondo um contraste imagético
com a decisão corajosa de expor e enfrentar tais questões na entrevista. Trazer essas marcas
como tão relevantes e definitivas, salientando um bloco que normalmente era respondido
quase que à frio pelos demais, é significativo do ponto de vista de perceber como uma
interação entre classe, raça e gênero produziu uma experiência única dentre os relatos
colhidos nesta pesquisa e comparável apenas à do Cândido, o outro sujeito preto entrevistado.
A partir daí, já se pode perceber solidamente a justificativa da opção categórica de
agrupar o docente e a docente que autodeclararam-se preto e preta, ao longo do trabalho,
como “negros”, em contraposição aos demais que, tendo declarado-se “branco”, “pardo” e
“outro”, expressaram ao longo do seus discursos, como se vê no desdobramento das análises,
não apenas marcadores de branquitude como também de origem social superior, o que é
relevante num país que passou por políticas de mediação da mobilidade social através do
embranquecimento de sua população (OSÓRIO, 2008). A autopercepção dos sujeitos é objeto
de reflexão específica, mas a categorização analítica já se coloca evidenciada a partir de uma
opção teórico-metodológica pela abordagem interseccional das identidades, através da leitura
sobre a origem social e familiar destes docentes, sensibilizada pelas interações estruturais
históricas entre raça, classe e gênero no Brasil.
Como aponta Crenshaw (2002), os sujeitos não são a soma de identidades universais
de classe, raça, gênero, nacionalidade e assim por diante. Conquanto em alguns momentos
este tipo de síntese pela soma possa ser empreendido, do ponto de vista da compreensão dos
fenômenos é mais útil perceber como estas categorias interagem produzindo sujeitos e
64

coletivos peculiares. Isto é relevante para construir a percepção de que essa análise, centrada
na classe e interseccionada a partir de gênero e raça, permite mais que separar estratos de
origem social; viabiliza, isso sim, a construção dos primeiros passos de uma percepção
analítica mais ampla, útil na categorização de posicionamentos dados em outros blocos da
entrevista.
Ademais, é muito importante perceber como a raça, a classe e o gênero tendem a
emergir mais frequentemente neste ponto, quando o sujeito que fala se identifica com a
subalternidade. Enquanto ambos os sujeitos negros e quase todas as mulheres entrevistadas
trouxeram à baila as suas vivências enquanto tais como decisivos na sua trajetória pessoal,
pouquíssimos docentes brancos ou homens falavam abertamente sobre a sua condição racial
ou de gênero sem a provocação feita, mais perto do fim da entrevista.

3.4 "ADVOGADOS E PROFESSORES": O PERFIL PROFISSIONAL DO DOCENTE


DE DIREITO NA UFBA.

Outra categorização importante dos sujeitos é acerca de seu perfil e trajetória,


acadêmica e profissionalmente. Novamente, alguns pontos destacam-se como uniformes entre
o conjunto de docentes entrevistados, a começar pelo fato de todos terem concluído sua
graduação em universidades baianas: 8 na própria UFBA, 2 na Universidade Católica de
Salvador (UCSal) e 1 na Universidade Estadual de Feira de Santana. E também novamente
por categorização, se poderá realizar o potencial analítico deste aspecto dos sujeitos,
notadamente em duas questões: a titulação e a área de ensino do docente e a carreira jurídica e
área de atuação.
Acerca da questão profissional, de acordo com o levantamento próprio feito e já
discutido anteriormente, mais da metade dos docentes dedicam-se a uma carreira de Estado ou
tiveram atuação na administração pública, sem fazer menção aos que dedicam-se à advocacia
privada. Dentre os entrevistados, encontram-se 6 membros de carreiras jurídicas de Estado,
além de dois advogados liberais e dois que dedicam-se a advocacia e assessoria popular, além
de um que dedica-se somente à docência. Do ponto de vista da titulação há 2 doutores, 8
mestres (dos quais 4 são doutorandos) e 1 graduado (que é mestrando), a maioria destes
títulos obtidos na UFBA (7), seguindo a tendência geral da Faculdade de Direito, que tem
poucos professores doutores em comparação com outras unidades da área de Humanidades
(BARRETO, 2015). No que tange às áreas de atuação, houve uma busca ativa pela
65

diversidade, que resultou na entrevista com docentes da área de Teoria do Direito (2), Direito
Civil (2), Trabalho, Ambiental, Tributário, Empresarial, Administrativo, Internacional e
Processo Penal (1).
Além disso, nota-se que houve casos de docentes que perseguiram carreiras fora do
Direito antes de consolidar-se nele. Em dois casos (Ives e Eduardo), na área de exatas, um dos
quais chegando a exercer a profissão (Ives), e em dois casos, na área militar (Luís e Eduardo),
também com um destes exercendo a profissão (Luís). Isto sem prejuízo aos vários casos
relatados de trabalhos de outra natureza, mas sem a característica de carreira.
Isto é relevante, haja vista que todos os docentes que exercem carreira de Estado se
reportam à ela quando falam sobre suas opiniões, mesmo quando elas, à primeira vista, tem
pouco que ver com o assunto. É possível estabelecer categorias a partir desse aspecto, que, a
partir da gramática apresentada pelo professor Luís, pode-se chamar de "Juízes Professores",
percebendo discursos como o de Eduardo, que ao falar da importância da reputação para um
professor, diz que

Se você diz uma coisa na sala de aula e como profissional pratica outra, né, imagine eu ser
um professor que chega na aula e falo como é que um juiz deve se portar em termos de
parcialidade, em termos de probidade, honestidade... E na minha vida prática eu fizesse
tudo contrário, então que moral eu teria? Isso acaba refletindo no próprio conhecimento,
porque aquela informação não vai chegar pro aluno com a mesma força simbólica como
quando você tem alguém que mostra que quando deve ser, é.

Esta tendência de falar sobre suas próprias carreiras se transmuta um pouco em outros
pontos. Ao longo da análise das percepções sobre a comunidade, por exemplo, este tipo de
discussão correlacionando as carreiras de Estado e a docência vem a ser muito importante. Ao
passo que falando de si há sempre essa correlação positiva, na visão sobre a comunidade isso
vem a ser colocado de maneira negativa, inclusive por alguns docentes que estão inseridos em
carreiras de Estado, como se verá mais adiante.
No outro lado do espectro, exceções que confirmam a regra. Seja no caso do docente
que exerce apenas a carreira docente, por ser também jovem e substituto, é a exceção que
confirma a regra, referenciando suas falas sempre na prática docente, de ensino, pesquisa e
extensão, por um lado; e, por outro, docentes que explicitam sua outra carreira mais como
uma busca por estabilidade ou conforto material do que por vocação, e acaba também
referenciando suas falas quase que exclusivamente na vivência acadêmica. Esses, ainda
referenciando-se nos termos êmicos do campo, são os "Professores professores". Percebe-se, a
66

partir dos relatos, que a prática destes é mediada pela categoria hegemônica de docentes que
dedicam-se a profissões jurídicas, como expresso pelo professor Paulo ao colocar que

Eh... Tem o habitus do professor de direito, né? Eu acho que ao mesmo tempo que você...
se conforma, e é conformado por esse habitus, você não pode se deixar levar por ele. Por
que é um habitus que ele foi construído, assim, sabe, eh... historicamente, pra fazer o
professor de direito não ser um professor acadêmico, universitário, um pesquisador, mas
pra ser um cara que... que... um conformador. E isso, eh... esses simbolos de poder, eles
estão presentes, também, no que você chama de aparência. Então, por um lado, se você
não... Não entra nesse habitus, você não... Não consegue dar aula. Por que os próprios
alunos, que já estão ali, implicados nas relações de dominação[...] É a mulher de César.
Tem de parecer a mulher de César. Entende?

Num patamar intermediário, docentes que exercem a advocacia liberal, popular e


pública, bem como um docente que aposentou-se da sua carreira de Estado, que não deixaram
de mencionar sua carreira como um medidor importante da sua atuação acadêmica, mas sem a
centralidade dada pelo grupo dos "Juízes Professores". Em dados momentos, suas falas
aproximam-se do grupamento mais focado na sua carreira de Estado, enquanto em outros,
aproximam-se mais do ideal de "professor professor". É um grupo que pode ser caracterizado,
na gramática dos entrevistados, de "Advogados e professores".
É importante fazer uma distinção do ponto de vista do gênero e da raça, novamente,
aqui neste ponto. Nenhum dos docentes negros entrevistados ocupam carreira de Estado,
embora tenha-se levantado, ao longo do trabalho, que há pelo menos dois outros docentes
negros na Faculdade que o façam, um deles no Ministério Público, uma carreira tradicional.
E, dentre as quatro mulheres, duas ocupam funções públicas, embora uma delas não esteja nas
carreiras mais tradicionais, como a magistratura, o ministério público e a advocacia pública,
enquanto dos sete homens entrevistados, quatro ocupam carreiras de Estado, seguindo a
tendência observada no conjunto da Faculdade de Direito.
Conforme os relatórios e censos consultados, o ingresso de mulheres e negros nas
carreiras de Estado, sobretudo nas mais tradicionais, mesmo se percebendo um crescimento
ao longo do tempo, ainda está muito distante das médias da população (CNJ, 2014; SILVA;
SILVA, 2014; CNMP, 2014). Também é significativo perceber que a área de atuação de
docentes negros entrevistados é a assessoria popular junto a movimentos sociais, deixando
implícita uma opção política muito evidente, que se conforma explicitamente, em um dos
casos, em paralelo com a construção da identidade negra.
Outro fator relevante é a área de ensino, dentro do direito, dos entrevistados. Apesar
de ser mais difícil de categorizar, por conta da maior variedade e de não existir uma tendência
mais hegemônica, como no caso da profissão, é relevante registrar que a área de atuação dos
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docentes, tanto no campo jurídico quanto no campo acadêmico, é citada em todas as


entrevistas e, em alguns casos, como justificativa ou balizador para posições tomadas. É o
caso do Miguel, por exemplo, que destaca que nunca percebeu ou estimulou diferenças entre
cotistas e não-cotistas por ser essa a tradição do direito civil, área onde ele leciona e atua,
ainda destacando que essa talvez fosse uma tradição maior da área de direito constitucional ou
filosofia do direito.
A atuação no campo jurídico também trouxe importantes falas. Não foram poucos os
casos relatados que ocorriam em audiências, júris e delegacias, inclusive na experiência com o
racismo, ou na comparação com a atuação na universidade. É relevante, portanto, destacar
isso como um elemento muito importante na constituição destes sujeitos quando se observar
seus posicionamentos e os exemplos que trazem para ilustrá-los.

QUADRO 2.1 – Tipos de carreiras dos docentes da FDUFBA


Tipo de carreira Características
Dedicação prioritária à carreira jurídica; carreira docente como complementar;
Juiz Professor menor carga horária de trabalho (geralmente 20h); pouca ou nenhuma atividade de
pesquisa ou extensão. Tipo frequente.
Coexistência entre as duas carreiras, mas com prioridade para a carreira jurídica;
Advogado e Professor carga horária de trabalho de 20h ou 40h; alguma atividade de pesquisa ou extensão,
às vezes com bolsistas. Tipo muito frequente.
Dedicação prioritária à carreira docente; carga horária de 40h ou Dedicação
Professor Professor Exclusiva; bastante atividade de pesquisa ou extensão, às vezes com muitos
bolsistas. Tipo raro.

3.5 “COMPETÊNCIA”, “ACESSO À EDUCAÇÃO” OU “MILITÂNCIA”: COMO OS


DOCENTES EXPLICAM SUAS TRAJETÓRIAS.

O relato da trajetória pessoal e profissional dos entrevistados desemboca em um


conjunto de posicionamentos acerca do que é ser um profissional e professor do Direito, de
maneira ampla, explicitando quais valores avaliam como relevantes para esta trajetória. Para o
interesse deste trabalho, algumas questões emergem como centrais: o que avaliaram ser os
elementos que mais contribuíram e dificultaram o processo de alcançar nas posições que
ocupam, bem como suas visões sobre aparência e reputação no mundo jurídico e acadêmico.
Questionar alguém que ocupa uma (ou duas) posições de grande prestígio social, como
o é ser docente de uma universidade federal ou membro de uma carreira jurídica tradicional,
sobre os fatos que contribuíram e dificultaram seu percurso de vida ajuda a compreender duas
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dimensões distintas. Por um lado, a sua trajetória, já analisada anteriormente, e, por outro,
quais valores cultiva a partir dela. Perceber como estas se influenciam é, sem dúvida alguma,
extremamente relevante nesta análise.
Ao falar sobre o que contribuiu na trajetória, já se apresenta o primeiro corte analítico
neste tópico. Há, um conjunto de opiniões, majoritária entre os entrevistados, que confere uma
centralidade em valores individuais como decisivos na sua vida. Palavras e expressões como
“competência” (Miguel), “esforço” (Miguel, Eduardo), “senso de responsabilidade
individual” (Miguel), “responsabilidade individual” (Miguel), “dedicação” (Orlando, Luís),
“foco” (Paulo), “disciplina” (Eduardo), “só trabalho” (Orlando) e outras, compõem uma
verdadeira constelação de valores individual-meritocráticos, atenuada ou acentuada ao longo
das entrevistas. Este tipo de resposta foi o recurso de cinco dos onze entrevistados, através da
combinação entre um aspecto individualista, atribuindo o sucesso às suas qualidades pessoais,
e um aspecto meritocrático, no sentido de valorizar qualidades que gerem um certo
merecimento ao que foi alcançado. Também vale ressaltar que configuravam, na maioria das
vezes, respostas tópicas e objetivas, nas quais se algo a mais foi dito, era sempre no sentido de
reafirmar essas qualidades meritórias, sem jamais explicar de onde elas surgiram ou como
constituíram um diferencial. Uma exceção relevante fica por conta do professor Eduardo,
que expressa que a

Formação militar, minha mãe professora... Sabe, eu nunca tive moleza não, sabe, é...
Estudei num Colégio Público, mas um colégio rigoroso, né, enfim, e é isso... disciplina e
correr atrás, não esperar que me facilitem as coisas. Isso é uma coisa que realmente a
disciplina militar me conduziu, então eu era o cara que acordava de madrugada pra estudar
sem ninguém chamar, enfim, ninguém precisava ficar no meu pé, eu mesmo ia fazer... isso
foi fundamental pra mim, isso foi o que me levou a vida toda. Sempre me acostumei a
trabalhar na pressão.

Outro importante tipo de relato é o que atribui ao “acesso à educação formal” a sua
trajetória profissional de sucesso, ensejando valores sociais. No entanto, este grupo divide-se
nitidamente entre aqueles que simplesmente citam este fato como socialmente “neutro”, como
um dado objetivo de suas trajetórias (Ives, Thereza, Quitéria), como ao afirmar que:

Eu acho que foi o estudo. Pelo menos na minha vida foi o estudo, eu sempre como eu disse
desde pequena... por exemplo minha irmã tinha uns brinquedos como eu também tinha e ela
brincava de casinha e três professoras aposentadas veraneavam na minha cidade que era
Mata de São João, e elas me deram de presente um livro. Como fazer brinquedos? Ai eu
descobri nesse livro por exemplo que o papel era feito de madeira, ai eu viaja naquele livro,
levava o dia inteiro fazendo coisas daquele livro, então pra mim estudo é fundamental. Eu
costumo a dizer que quem faz direito tem que gostar de letrinha nem que seja na sopa, você
já aproveita <ininteligível> não tem acento… <risos>. (Thereza)
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Denotando, assim, o acesso à educação formal como um fato dado, sem maiores
reflexões sobre. Havia, por outro lado, aquelas que, expressando um valor social politizado,
expressaram o acesso a educação formal com algum grau mais sofisticado de problematização
(Francisca, Felipa). Em um caso, há a afirmativa de que isto consignava um privilégio que
moldou toda a sua trajetória; como coloca a docente em questão,

[...] Reconhecer o privilégio é pressuposto pra essa discussão, acho que eu tive acesso a
uma formação educacional que a maioria das pessoas não tem acesso, e eu agarrei essa
oportunidade, então tive uma formação escolar privilegiada, tive acesso a estudo de línguas,
tive, assim... Até essa parte de vestibular eu acho que isso aí não tem mérito nenhum
<risos>, isso aí é só o fato de você ter sido preparado da forma adequada né, a forma que
esse sistema meritocrático valoriza. Em relação a parte de doutorado, mestrado <pausa>...
Eu já vejo que há um afunilamento pelo interesse mesmo né, porque eu vejo pessoas que
não se interessam por essa área acadêmica, mas acho que ter tido uma formação boa tanto
escolar como ter tido uma graduação que me permitiu ter acesso as leituras, na vida
acadêmica eu acho que fui favorecida por essas experiências que eu tive aqui na
universidade, então como a minha formação não foi só a sala de aula e prova né, então eu
fiz pesquisa dentro da universidade, fiz extensão, eu participei de discussões que só quem
teve acesso ao movimento estudantil participou, a gente leu muita coisa né, que não se
circulava no espaço formal da sala de aula, eu acho que isso no espaço acadêmico me deu
um diferencial também né. (Francisca)

Este posicionamento coloca diretamente em xeque os argumentos calcados no valor


individual-meritocrático. Ao colocar a origem social como uma espécie de contraponto ao
mérito, por proporcionar condições desiguais de competição em seleções universalistas, ele
ataca o núcleo da argumentação hegemônica entre os entrevistados.
Em outro aspecto desta posição, a professora Felipa aponta, sobre seu acesso à
educação, que

Foi só também acesso à escola particular, educação formal digamos assim. Porque eu não
fiz curso de inglês, não fiz nada disso. Né, não fiz natação, não fiz ballet quando era
criança. Foi só ir pra escola basicamente, né. E aí, eu acho que isso foi um diferencial até
certo ponto, né?

Ela relata a sua vivência em escola particular como uma experiência de estar “fora do
lugar”: ela, jovem negra e numa condição econômica inferior à de seus colegas, também se
agarra àquela chance obtida pela condição econômica de seu pai, que sequer conviveu no seu
núcleo doméstico, engendrando uma análise mais sutil sobre o que significa conquistar a
escolaridade. Não trata-se, portanto, de mero acesso à escola, mas ao que Jessé de Souza
chama de “herança imaterial da classe média” (SOUZA, 2012, pp. 24), nas quais o filho ou
filha “se acostuma, desde tenra idade, a ver o pai lendo jornal, a mãe lendo um romance, o tio
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falando inglês fluente, o irmão mais velho ensinando os segredos do computador brincando
com jogos” (idem), da qual a educação formal é um elemento constitutivo, mas não único.
A argumentação da Felipa se aprofunda, na medida em que ela relata que, na escola,
se sentia

Totalmente [fora do lugar]. Eu lembro do período de escola ter sido péssimo. É, a, as


lembranças que eu tenho do período de escola[…] Só [tinha amizade com] pessoas que
estavam nas mesmas condições que eu, assim. Pessoas que, aqueles que também estavam
fora do lugar, né. Então... Essas pessoas <fala mais devagar> eu encontro ainda. <volta a
falar normal> E também eu me afastei muito das pessoas eu considerava, <faz um estalo de
irritação> é... Vazias, assim, que tinha uma vida muito... Sei lá, preocupadas só consigo
mesmo. (Felipa)

Este nexo argumentativo entre em conflito com os argumentos individual-


meritocráticos e mesmo com os sociais de tipo neutro. Na medida em que a vivência escolar,
mesmo no âmbito da escola privada, torna-se difícil e incompleta pela ausência de um
conjunto de experiências que possibilitam o desenvolvimento de certo “capital cultural”
(SOUZA, 2012), nem os méritos individuais nem valores sociais universais são capazes de,
por si, explicar a trajetória de um indivíduo.
Este fato abre, também, brecha para um outro conjunto de argumentos, expressos mais
consistentemente pelo docente e pela docente negras entrevistadas (Cândido, Felipa), mas
presente marginalmente em outros casos. Estes explicam o sucesso da trajetória a partir de
valores eminentemente políticos, seja através do conhecimento adquirido na militância
política, seja pelas experiências que esta proporciona. Para o professor Cândido, a principal
contribuição para sua trajetória foi

Militância nos movimentos sociais. A minha grande formação acadêmica, intelectual, ética,
se deu fora da universidade. Se deu a partir da militância nos movimentos de bairro, no
movimento negro, e de alguma forma indireta no movimento sindical, movimento
estudantil, porque nunca tive maior organicidade nessas experiências. Em menor escala,
movimento de trabalhadores rurais ou sem-terra, com os quais também mantive contato
embora nunca tenha integrado organicamente esses movimentos. Mas a minha formação
fundamental se dá paralela e em tensão com a formação universitária, a partir da
experiência de militância política. Com certeza absoluta. O que me qualificou
academicamente não foi a universidade. Não foi a experiência dentro da Faculdade de
Direito.

Ou ainda, no caso da professora Felipa, que de maneira mais tópica afirma, citando
seu histórico de militância junto a movimentos e sindicatos de trabalhadores rurais, que, além
da educação formal,
71

[...] foi o fato também de eu me articular em algumas redes de apoio assim. Então, né... Eu
sei que eu obtive é... a aprovação em primeiro lugar nesses concursos que eu fui fazendo
porque eu me especializei e tive acesso a determinados conhecimentos porque eu tava
militando cotidianamente com isso. Os meus concorrentes, nenhum deles tava trabalhando
com o que eu tava trabalhando, eram mais aventureiros assim, entendeu?

Alguns outros docentes também citam, embora muito lateralmente ou sob provocação,
a vivência política como algo que contribuiu no desenvolvimento de capacidades para evoluir
na sua trajetória acadêmica ou profissional, sobretudo experiências de representação
estudantil. Este tipo de argumentação, quando posta como central, choca também, e de
maneira dura, com argumentos de tipo individual-meritocrático ou sociais neutros, na medida
em que explica não apenas quais qualidades e méritos foram desenvolvidos, mas também por
quais caminhos e superando dificuldades concretas expressas ao longo do relato.
Isto não significa, de maneira alguma, que haja uma autopercepção inferiorizada sobre
o mérito por parte daqueles que recorreram à categoria política para explicar sua trajetória.
Pelo contrário, eles defendem justamente o quanto a vivência militante lhes conferiu os
méritos necessários para o seu percurso.
Mais uma vez, também, a identidade subalterna explicita a necessidade de uma
afirmação política no processo de constituição dos sujeitos, embora neste caso não
necessariamente explicitando sua identidade negra. Ainda assim, começa a se verificar, a este
ponto, uma constante demarcação diferencial sobre como emergem as questões de classe e
raça no caso do docente e da docente negras. Em face disso, o fato de terem os docentes
homens e brancos, de origem social superior, priorizado uma linha de argumentação
individual-meritocrática merece maior destaque a atenção.
Porém, antes de aprofundar na síntese sobre estes fatos, se faz fundamental a
necessidade de tocar, ainda que não se exija a mesma profundidade, no pólo oposto, o das
dificuldades encontradas na trajetória narrada de cada um. Isto fornece um importante
anteparo para a análise do já exposto.
A começar por aqueles que, ao serem pedidos para relatar quais maiores dificuldades e
desafios encontrou na sua trajetória, ofereceram uma resposta ambígua, que mais reforçava
suas qualidades individuais que expunha dificuldades mais concretas. É o caso do professor
Ives, que relata "Maior dificuldade? <pausa> Bom... esforço pessoal, a necessidade do
esforço pessoal. Isso me custou muito esforço e... eu tinha os meios pra isso". O professor
Luís, por sua vez, discorre sobre as desvantagens de ser honesto e dedicado ao serviço
público, sobretudo no caso dele, que tende a exigir isso das pessoas com quem se relaciona.
72

Outra categoria é aquela relacionada a questões de ordem pessoal, seja sobre si ou


sobre outros. "Nervosismo", no caso do professor Paulo, é a maior dificuldade; já para a
docente Thereza, o caso é outro:

Pessoas! Todos os lugares aonde você vai tem gente mal resolvida, né? E às vezes essas
pessoas mal resolvidas perde tempo, porque deixa de viver a própria vida pra criar
dificuldade pras outros, muitas vezes, né? [...] Cada um tem sua história, seu caminho e
uma competição você só pode chegar em algum lugar se você superar os obstáculos. Então
obstáculos pra mim nunca foi dificuldade. Alguns obstáculos seriam desnecessários
compreende? Mas às vezes aparece, então você tem que superar isso aí. Então às vezes
seria mais fácil, aí se torna um pouco difícil. Você chega lá, eu cheguei lá, mas foi um
pouco difícil.

No âmbito das dificuldades externas, ainda se exprimem argumentos que podem ser
considerados universais ou institucionais, no sentido de serem dificuldades que ou atingem a
todos, ou resultam de vícios em processos supostamente universais. Deste argumento decorre,
para a professora Francisca, o processo "emburrecedor" que é o de estudar para o concurso
público, enquanto para a docente Quitéria é a corrupção nos concursos, as "cartas marcadas"
que vigoram nas bancas e seleções - fato esse, aliás, recorrente em algumas entrevistas.

Porém, para alguns sujeitos, as maiores dificuldades se localizaram, justamente, em


conviver com seus marcadores de classe, raça e gênero, ensejando graves problemas
fundamentais no desígnio de suas trajetórias. O case representativo deste tipo de argumento é
o da professora Felipa, que relata uma sequência de fatos que vão da contestação da sua
aprovação em concurso docente anterior ao da UFBA até a perseguição explícita durante duas
experiências anteriores, inclusive com componentes étnico-raciais e de gênero.

No caso [da universidade anterior], foi mais grave, porque, assim, a minha colocação não
mudou, eu fiquei aprovada em primeiro lugar. Só que o cara era juíz, né… E aí, era juiz, é
juiz federal em tal lugar. Depois de um tempo ele conseguiu uma decisão judicial que... é...
re...é <pausa> reavaliou, né, o concurso. Ou seja, foi o juiz que fez a avaliação lá, dos
elementos do concurso. Um juiz incompetente inclusive, porque é de um município que não
tem nada a ver [...] Mas tudo numa rede lá de tráfico de influências pesada que tem. E esse
cara foi convocado e colocaram ele em segundo lugar no concurso. Só que quando ele
entrou [...] esse homem infernizou a minha vida, né? [...] Me assediou moralmente por
quase dois anos. [...] resolvi pedir exoneração, né. Então ele me tirou, né? <risos>
Conseguiu me tirar, né? [...] Eles se articularam, né, numa organização criminosa <risos>
para assediar pessoas, né? Assediaram o diretor do departamento, conseguiram afastar o
diretor do departamento, né... [...] E no meu caso, eles fizeram várias campanhas
difamatórias, né... E nessas campanhas difamatórias, eles se referiram ao meu cabelo, à
minha roupa. [...] Essa coisa foi muito pesada assim... A ponto d'eu desistir, né?
73

É importante avaliar que este tipo de relato encontrou guarida em marcadores de


classe, como quando o docente Eduardo explicita que sua maior dificuldade foi conciliar
trabalho e estudos ao longo de toda a sua vida acadêmica, em oposição a colegas que viviam
apenas de estudar para concursos. No entanto, é nas dimensões de gênero e raça que eles se
expressam de maneira mais evidente.

Do ponto de vista racial, o professor Cândido cita a necessidade de, muitas vezes,
negociar caminhos entre a sua identidade e os espaço que você almeja entrar. Para ele, isso
significou cortar os cabelos, crespos e volumosos, para prestar concurso e adequar-se a um
tipo de vestimenta, coisas que hoje, docente efetivo, não precisa mais negociar. Mais do que
isso, essa identidade racializada é apontada por ele como um dos elementos fundamentais
para sustentar sua trajetória, o que só reforça o quão difícil é a negociação desta. E, nos
relatos de muitos entrevistados, situações de racismo, tanto no cotidiano das profissões de
direito quanto na universidade com os próprios docentes, se multiplicam em uma profusão de
relatos que serão, oportunamente, detalhados.

Mas isso se destacou, sobretudo, no caso do gênero. Todas as mulheres entrevistadas,


sem exceção, falaram sobre este assunto - neste ponto da entrevista ou em outro qualquer. A
fala em público, sobretudo nos órgãos colegiados, é um fato muito citado; dizem, algumas,
que suas falas são sistematicamente desconsideradas (Quitéria), infantilizadas (Francisca),
ou simplesmente é muito difícil, para elas, falar num ambiente que, sendo hegemonicamente
masculino, lhe parece hostil (Francisca, Felipa, Quitéria). No caso da professora Thereza,
ela cita de maneira ter sido recusada para um emprego com a justificativa textual sendo o
simples fato de ser uma mulher. E também algo como a negociação de sua identidade e
aparência surge como um elemento importante para as mulheres, no caso da Quitéria, por
exemplo, que relata que

Quando eu fiz seleção pra pós-graduação, [...] ela [uma professora] me orientou a ir
desarrumada, porque se eu fosse um determinado membro da banca ia me avaliar pela
minha compleição física, e que eu não teria cara de mestranda. [...] Eu tinha que ir com cara
de mestranda. Então eu tinha que ir… eu fiz isso. Esse era um valor que eu negociei, não ia
dormir com alguém, mas esse eu fui. Então eu fui toda de preto, corcunda, assim, de
carregar livro, eu fiz uma personagem. [...] E cara de estudante… <pausa> feia. Que era um
ponto, beleza, importante assim. E me recomendaram, você não pode se pintar… não faça
unha, não faça sobrancelha, sapato baixo… Por que tem um membro da banca que vai olhar
isso. E já fez isso com outras pessoas.
74

O confronto entre tais argumentos remonta, de certa forma, o quadro analítico feito
sobre a origem social dos docentes, com o diferencial de que masculinidade e a branquitude
imprimem nitidamente certas vantagens que a classe social não explica. Isso não significa que
mulheres e negros tenham uma trajetória de menor sucesso que a deles, mas implica num
aspecto qualitativo dessa trajetória, que carrega em si marcas mais fortes do racismo e do
machismo.

A visão individual-meritocrata sobre a própria trajetória, não por acaso, usualmente se


articulou, na entrevista, com discursos universalistas puros. Ora, é de se imaginar que um
docente que diz que conquistou tudo o que conquistou por merecimento pessoal diga, por
exemplo, que "as aulas são as mesmas para todos" numa espécie de elogio ao igualitarismo,
como fez o professor Miguel.

Porém, sem sequer entrar no assunto das ações afirmativas, o cruzamento entre estas
trajetórias já aponta para uma separação muito nítida entre dois vieses, que se dividem
basicamente entre reconhecer ou não o impacto que as desigualdades sociais, raciais e de
gênero tem no processo educativo. Por um lado, enquanto alguns repetem o argumento
freyreano de que as desigualdades advindas da escravidão, por exemplo, podem ser
facilmente superadas através do mérito individual. Para ele, como para muitos dos docentes
que recorrem ao argumento individual-meritocrata, a estrutura social brasileira é bastante
permeável, em oposição ao apartheid de outros países ou a segmentação de gênero do
passado. Bastaria, portanto, a competência para superar eventuais dificuldades
socioeconômicas, estas as únicas reconhecidas como válidas. (FREYRE, 2003).

No caso específico do discurso sobre si mesmos, trata-se de desconsiderar a


importância do seu próprio processo de socialização, que, em se tratando de estratos
superiores da classe média, desde a primeira infância, implica na educação de um “vencedor”,
como aponta Souza (2012). Para ele,

Apesar de invisível, esse processo de identificação emocional e afetiva já envolve uma


extraordinária vantagem na competição social, seja na escola, seja no mercado de trabalho,
em relação às classes desfavorecidas. Afinal, tanto a escola quanto o mercado de trabalho
irão pressupor a “in-corporação” (literalmente tornar “corpo”, ou seja, natural e automático)
das mesmas disposições para o aprendizado e para a concentração e disciplina que são
‘aprendidos’, pelos filhos dessas classes privilegiadas, ainda que com grande esforço, por
identificação afetiva com os pais e seu círculo social. (SOUZA, 2012, p.25)
75

Essa "cegueira", de origem economicista, pode até reconhecer que o acesso a bens
materiais pode configurar um diferencial importante, o que alguns poucos fizeram ao longo da
entrevista, ainda assim ressaltando que o esforço individual pode superar a tudo. Mas
fundamentalmente, significa que a atribuição de valores individual-meritocráticos sobre o sua
trajetória implica numa opção por desconsiderar o contexto onde se encontraram,
eminentemente vantajoso e oriundo do mero acaso de ter nascido naquela família e não em
outra, implicando numa desconsideração sistemática, como se verá mais adianta, do contexto
social de seus estudantes. E significa, mesmo em momentos em que se reconhece a
desigualdade, fazê-lo pelo reconhecimento da inferioridade social do negro (ou da mulher, do
pobre), mas jamais percebendo quais elementos fizeram pessoas brancas e de classe média ou
alta terem as oportunidades que tem.

Guerreiro Ramos (1995) já fazia uma crítica deste tipo ao pensamento dominante na
academia brasileira, que parece ser repetido quase que ipsi literis por alguns dos docentes
entrevistados. Conquanto o "negro-tema" é objeto de reflexão científica a partir de seus
problemas ou exotismos, a identidade dos próprios pesquisadores fica às sombras, o que, em
última instância, serve apenas à reprodução das desigualdades. Como aponta Bento (2002), a
branquitude (e, aparentemente, o raciocínio se aplica no caso da masculinidade) se
apresenta como uma "guardiã silenciosa de privilégios", e conflui num fulcro articulador
de raça, classe e gênero num processo de socialização estabelecida como um padrão
assimilador, impassível de ser estudado ou criticado. Ele simplesmente é, e simplesmente
assim deve ser. Sem se atentar para isso,

"Como todas as precondições sociais, emocionais, morais e econômicas que permitem criar
o indivíduo produtivo e competitivo em todas as esferas da vida simplesmente não são
percebidas, o fracasso dos indivíduos das classes não privilegiadas pode ser percebido
como “culpa” individual." (SOUZA, 2012, p.25)

Por outro lado, no caso dos docentes negros, a prática militante parece cumprir um
papel importante como uma espécie de caminho alternativo para a aquisição de um capital
cultural que não se encontrava disponível de maneira tão automática em suas famílias e na sua
vivência escolar. É na militância nos movimentos sociais que eles relatam ter adquirido tanto
a expertise acadêmica que lhe rendeu aprovação no concurso, quanto ter adquirido uma certa
predisposição para o sucesso, emulando a socialização das famílias privilegiadas que Souza
aponta. Não é raro que eles tenham se sentido "fora do lugar" ao longo de sua trajetória
acadêmica e profissional, inclusive beirando a auto-exclusão em determinados casos.
76

Isto confirma o achado de Barreto (2008), que estudando percepções sobre racismo e
antirracismo entre estudantes da Universidade de São Paulo, notou como a ausência de relatos
de estratégias antirracistas na trajetória de estudantes brancos, enquanto estes eram múltiplos
nos relatos dos estudantes negros revela como a desigualdade implica na construção de
identidades fortemente influenciada por tensões raciais no caso destes, enquanto a
branquitude seguia intocada sem maiores problematizações no caso daqueles. Mais que isso,
ela aponta, como também se encontrou nos relatos apresentados neste trabalho, a centralidade
da política como forma de produzir saídas para as contradições e desigualdades da sociedade,
inclusive na percepção de muitos sujeitos negros, que cultivam uma negritude que tem uma
dimensão inclusiva, com propostas que signifiquem a mitigação das desigualdades sociais no
Brasil.

Mais uma vez, esse quadro analítico acerca dos discursos sobre a trajetória
profissional e acadêmica permite, combinado com os já desenhados, explicitar as bases
mínimas para avançar na discussão desta pesquisa. Amalgamando sua origem social e a sua
trajetória acadêmico-profissional, se faz necessário observar, para concluir a composição do
cenário estudado, como estes docentes enxergam a sua comunidade. Ao absorver tais padrões
de silêncio e narração acerca de classe, raça e gênero, já se começa a perceber os padrões que
vão se estabelecer na sua autopercepção e na sua interação com as ações afirmativas.

Quadro 2.2 - Síntese dos discursos sobre as trajetórias


Valor Exemplo
Individual- “Competência”, “esforço”, “senso de responsabilidade individual”, “responsabilidade
meritocrático individual”, “dedicação”, “foco”, “disciplina”
Social neutro "acesso à educação formal", "estudo"

Social politizado "formação escolar privilegiada", "estudo de línguas", “ballet”

Político "Militância nos movimentos sociais", "redes de apoio", "militando cotidianamente"

* * *

Neste capítulo, buscou-se discutir a aproximação inicial com o trabalho empírico,


apresentando as características e contrastes entre o pesquisador e o seu campo e entrevistados.
Indo mais além, construiu-se um quadro analítico das narrativas dos docentes acerca de suas
trajetórias pessoais e profissionais, situando-as no quadro mais geral das características do
77

corpo docente da Faculdade de Direito da UFBA, bem como analisando os aspectos pelos
quais eles explicavam essa trajetória.

Assim, em primeiro lugar, buscou-se declarar as qualidades e dificuldades do papel de


“estrangeiro nativo” do pesquisador, na medida em que era um jovem negro, estudante de
Ciências Sociais, entrevistando professores universitários, a maioria mestres ou doutores, com
carreiras jurídicas de prestígio, sobre temas delicados como a questão racial. O processo de
construção da confiança e, em alguns casos, da cumplicidade, necessárias para a obtenção dos
dados fundamentais para o trabalho, é realçado neste contexto, valorizando principalmente as
percepções esperadas e declaradas dos docentes acerca do pesquisador e as estratégias
utilizadas para tal.

Em seguida, constrói-se um panorama histórico da Faculdade de Direito da UFBA,


situando-a no contexto nacional e também dentro da própria Universidade, como uma ilustre
coadjuvante. Se aprofunda um pouco nas características do corpo docente, mais masculino,
vinculado a outras carreiras fora da universidade e com menor titulação e regime de trabalho
que a média das demais unidades acadêmicas da UFBA. Desde já se coteja exemplos e
nomenclaturas oferecidas pelos próprios entrevistados, e se realça o arsenal metodológico
utilizado como apoio às entrevistas, que constituem o núcleo central dos dados empíricos, e
fundamental na exploração de um campo bastante peculiar.

Já dando centralidade às entrevistas, discute-se a trajetória pessoal e profissional dos


docentes. Forma-se uma categorização a partir de seus relatos, percebendo um estrato
nitidamente superior, a partir do relato sobre pais com profissões da classe média ou alta
tradicional como médicos e empresários, e outro nitidamente superior, variando de uma classe
média mais fragilizada à pobreza explícita.

Do ponto de vista profissional, percebe-se a proeminência das carreiras jurídicas frente


à docência universitária. A partir das categorias utilizadas pelos próprios entrevistados,
percebeu-se a existência de três categorias fundamentais em relação às questões funcionais.

A uma chamou-se de “Juízes professores”, com a palavra “professor” funcionando


como um adjetivo que qualificava a carreira jurídica, ou seja, configurando operadores do
direito que dão aula. Outra é a de “Advogados e professores”, em que o termo “professor”
concorre com “advogado” como substantivo, caracterizando pessoas que se vêem seguindo
duas carreiras, ainda que privilegiando a carreira jurídica. E, por fim, “Professores
78

professores”, que, ao utilizar a palavra simultaneamente como substantivo e adjetivo, denota a


dedicação exclusiva, ou quase isso, à carreira docente.

Afinal, de posse dessas informações, construiu-se um quadro analítico dos valores aos
quais os docentes recorrem para explicar suas trajetórias. Percebeu-se, portanto, uma
hegemonia do argumento individual-meritocrático, que atribui o sucesso à capacidade
individual de alcançá-lo, sobretudo entre os docentes homens e brancos. Em outro aspecto,
alguns docentes realçaram aspectos mais impessoais, como acesso à educação, como fatores
cruciais para a sua trajetória; dentre estes, alguns preferiram tratar esse fato a partir de um
argumento socialmente neutro, enquanto outros, embora recorrendo ao mesmo tipo de
argumento, politizaram-no a partir da perspectiva da desigualdade de classe, ensejando um
argumento social politizado. Outros, ainda, sobretudo no caso dos docentes negros, afirmaram
abertamente que foi a participação política que lhes permitiu galgar o caminho, superando
obstáculos, da ascensão social e da obtenção dos espaços que ocupam. Assim, utilizando o
argumento da politização, explicitam a importância de estratégias de formação política como
um meio de ter sucesso profissional.

Como fecho, apresenta-se um quadro de referência descritiva dos entrevistados. Com


estas informações, é possível proceder para um outro aspecto da análise. Na autopercepção
dos docentes, do ponto de vista de raça e gênero, bem como nos seus entendimentos sobre as
desigualdades, percebe-se importantes vínculos com as questões discutidas neste capítulo.

Quadro 2.3 – Referências dos entrevistados


Nome Genero Raça/Cor Faixa Etária Titulação CH Carreira
Paulo Homem Branca 30-39 Mestre 20h Academia
Francisca Mulher Branca 30-39 Mestre 40h Analista Judiciária
Ives Homem Branca 60+ Doutor 40h Advocacia Pública
Felipa Mulher Negra 30-39 Mestre 40h Assessoria Jurídica Popular
Miguel Homem Branca 40-59 Mestre 40h Advocacia Pública
Luís Homem Branca 60+ Mestre 40h Fazenda Pública
Orlando Homem Branca 30-39 Doutor 40h Advocacia Privada
Eduardo Homem Branca 40-59 Mestre 20h Magistratura
Thereza Mulher Branca 60+ Mestre 20h Magistratura
Quitéria Mulher Branca 30-39 Mestre 40h Advocacia Privada
Cândido Homem Negra 40-59 Graduado 40h Assessoria Jurídica Popular
79

4 “O AMBIENTE, SEM QUE NINGUÉM DIGA UMA PALAVRA PODE LHE...


REJEITAR”: PERCEPÇÃO E AUTOPERCEPÇÃO SOBRE RAÇA, GÊNERO E
DESIGUALDADES

Este capítulo cobre a percepção e autopercepção dos docentes acerca da questão


racial e de gênero, tanto do ponto de vista mais amplo, acerca das desigualdades raciais e de
gênero, quanto, mais especificamente, o que significa para eles ser homem, mulher, branco e
negro. Tais opiniões foram cotejadas ao longo das entrevistas, tanto pela discussão direta
quanto indireta do tema.
Aqui se pretende observar, prioritariamente, o processo de construção das identidades
dos docentes, traçando um caminho, a partir desta análise, para perceber como balizam as
suas definições sobre as desigualdades de maneira mais ampla. Assim, há não apenas a
análise do discurso direto sobre si mesmo, mas também uma percepção mais refinada sobre
como a posição do “eu” demarca o lugar do “outro”.
Ainda que lateralmente, é relevante perceber como alguns outros marcadores, como
os de geração, nacionalidade e sexualidade, interagiram de maneira interessante com as
categorias principais utilizadas neste estudo.
Optou-se por dividir este capítulo em duas grandes partes. Na primeira, se discutirá a
autopercepção dos docentes sobre sua identidade de gênero e raça, bem como a forma como
eles demarcam suas fronteiras com o “outro” no caso específico, em cada uma das quatro
subseções que discutem o que é ser branco, negro, homem e mulher. Na segunda parte, se
explora elementos que dão suporte a essas percepções, num escopo mais amplo da
desigualdade na sociedade em geral, bem como outros marcadores que também se conectam
com os discutidos anteriormente.
Tal análise tem relevância sociológica por si só. Mas, ao mesmo tempo, oferece
finalmente o último conjunto de elementos necessários para penetrar com mais propriedade na
questão da prática docente. Ou seja, finda a análise sobre as trajetórias e as identidades, ficará
a questão: diante disto, como os docentes lidam com os estudantes na sua prática docente,
num contexto em que a universidade definitivamente incluiu um elemento de alteridade nos
seus corpos discente e funcional?
80

4.1 “O AMBIENTE PODE LHE SER HOSTIL”: NEGRITUDES NO MUNDO


JURÍDICO-ACADÊMICO.

Os entrevistados se declararam pretos tem pontos de forte convergência na sua


narrativa, mas também guardam disparidades muito relevantes. A primeira característica que
salta aos olhos, do ponto de vista da autopercepção dos docentes negros, é uma profunda
consciência de quem são do ponto de vista racial. Ambos relatam, de maneira bastante vívida,
o quanto a reflexão sobre sua condição racial é um tema frequente nas suas vidas, colocando
experiências de discriminação, origem de classe e estratégias antirracistas como elementos
definidores da sua identidade. No relato sobre elas, porém, diferenças começam a se
evidenciar.
A professora Felipa, por exemplo, afirma que este elemento faz parte de seus
pensamentos “desde a infância”, embora “não tinha o instrumental pra entender o… do que se
tratava”. Foi com a vivência da universidade que ela adquiriu este “instrumental”, colocando
seus dilemas e questões numa perspectiva coletiva; o que não significa, em absoluto, que os
fatos de sua vida tenham passado sem impacto.
A discriminação racial, a origem de classe e as estratégias antirracistas são elementos
definitivos da construção da identidade negra dos docentes. Os relatos de vivência tanto do
racismo manifesto quanto das desigualdades sociais associadas ao fator raça - por exemplo, na
resistência passiva à mobilidade social expressa no fato de ambos os docentes terem
enfrentado obstáculos que tinham relação com a questão racial, quando de seus concursos
públicos - explicitam como a consciência sobre as razões das dificuldades que tiveram na vida
se associa à auto-percepção do ponto de vista da raça.
Assim, uma marcação fundamental no relato dos docentes negros é a presença de
estratégias antirracistas para vencer tanto a discriminação explícita quanto os obstáculos
passivos que o racismo deixou em suas trajetórias. Essas dificuldades e estratégias parecem
definidoras de sua percepção acerca da sua condição racial, inclusive conferindo um sentido
de vitória pessoal superior ao relato sobre sua trajetória. Isso é consistente com outros estudos
que entrevistam pessoas negras, sobretudo quando as comparam com as pessoas brancas,
trazendo reflexões mais apuradas sobre sua condição racial, relatos de discriminação e de
estratégias antirracistas como marcadores importantes na trajetória de pessoas negras
(BARRETO, 2008; PINHEIRO, 2010; SANTANA, 2009; JAIME, 2016).
No caso do professor Cândido, o relato acerca de uma dualidade entre "radicalizar na
identidade" e "transigência, recuo, reposicionamento, conquista parcial", como uma tensão
81

permanente e necessária para um negro que ascende no campo jurídico, explicita uma posição
de politizar sua identidade como uma forma de suportar e superar o peso do racismo. Raspar
seus cabelos, crespos e longos, para prestar concurso da UFBA, é um momento paradigmático
de uma estratégia que envolve concessão. Ainda assim, refletida e, segundo o próprio
entrevistado, "não dá pra você se anular", ou seja, há coisas que não se negocia.
Nisto se reflete uma espécie de politização permanente da vida. É bastante
consistente com o relato de trajetória dos docentes negros, que colocam, como já discutido,
valores políticos como fundamentais para chegar onde chegaram. Inclusive na vivência atual,
marcada por invisibilização, desvalorização de seu trabalho e cobranças exageradas. Tendo
atingido um status importante, que é o de professora de uma universidade federal de tradição,
a professora Felipa relata vários momentos em que essa posição, por vezes, lhe é
simbolicamente renegada, um dos quais bastante significativo:

Um dia, isso deve ter umas três semanas, eu tava na sala dos professores também
corrigindo as avaliações, aí entrou um professor e perguntou... só tinha eu na sala e ele
perguntou como se estivesse perguntando para as paredes: 'Tem algum professor na sala?'.
<risos> Aí eu falei 'Eu sou professora', aí ele veio todo escabriado assim 'Ah, professora,
desculpe', aí ele ficou conversando comigo, puxando conversa, mas eu senti que... é, que
ele poderia ter feito essa pergunta de diferentes formas do que perguntas pras paredes.
Porque ele não falou perguntando pra mim, olhando pra mim.

A cobrança exagerada - inclusive partido de si próprios - é também um elemento


corrente nos relatos. Tanto no sentido de outros examinarem minuciosamente questões que
não o são em outros docentes - contando faltas, discutindo o método de aulas e até mesmo
enfrentamentos abertos por parte de estudantes sobretudo brancos -, quanto numa exigência
permanente de não errar, como coloca esta mesma docente: “Já tive muito, de não poder ter
falhas, não poder errar, né, me cobrar muito pelos erros, me culpar muito, hoje em dia eu
venho relativizando mais…” (Felipa).
Ainda assim, a negritude não é percebida de maneira uniforme entre o docente negro
e a docente negra entrevistadas. Isso fica nítido em alguns momentos de maneira mais direta,
mas também se evidencia nas entrelinhas durante toda a entrevista. Uma pergunta crucial que
coloca isso em evidência e abre a possibilidade de análise sobre este fato, é sobre o que
significa ser um negro/uma negra no mundo acadêmico e jurídico.
Ser um homem negro no mundo jurídico e acadêmico é ser, “na melhor das hipóteses,
cliente”. Consistente com as narrativas de outros docentes, como a da professora Quitéria,
que relata ter um estagiário no tribunal sido confundido com o réu, e um promotor, dentro do
Ministério Público, confundido com um ascensorista no elevador; e como a docente Thereza,
82

que relata que um juiz colega seu, negro, foi confundido com lavador de carros na garagem de
seu prédio. O professor Cândido relata isso de maneira mais impessoal, apontando
experiências que mesmo hoje, já na meia-idade, ainda lhe afetam ou impactam, como a
decisão de não atuar na área penal por conta das desvantagens que isso implica para o cliente,
mas recorrendo sempre às suas estratégias para a superação destes obstáculos. Ainda assim,
segundo ele, "há uma tensão que não se resolve" com uma situação que ele categoriza como

Racismo ambiental. Que dentre várias das suas dimensões, tem uma que é como o ambiente
pode lhe ser hostil. Como o ambiente, sem que ninguém diga uma palavra pode lhe...
rejeitar, não é? Pode lhe causar desconforto, pode lhe provocar... a pior das formas de
exclusão que é a auto-exclusão.

Enquanto ele faz uma explanação longa sobre como um corpo negro no sistema
jurídico é visto sempre como um cliente daquele sistema, o que implica em várias vezes sua
condição de advogado, por exemplo, ser posta em questão, utilizando inclusive um discurso
afeito ao movimento negro, a professora Felipa, mesmo depois de relatar uma série de casos
de violências simbólicas e perseguições, dá como resposta mais imediata a cobrança que a sua
condição de docente negra na universidade gera, por parte do que ela chama “dos nossos” -
outras pessoas, negras ou não, militantes ou não, que reconhecem na sua recente entrada na
universidade um elemento importante de transformação.
A sensação de estar "fora do lugar", no caso dela, é amplificada. Essa terminologia,
da negritude como uma identidade deslocada, sem lugar, que parece sonegar a humanidade
dos sujeitos negros, é bastante discutida, sobretudo quando se relaciona a negritude a um
contexto de mobilidade social ou da universidade (PASSOS, 2015; DUARTE, 2014;
FERNANDES, 2008). Porém, aqui, se faz importante perceber como a docente diz que se
sente fora do lugar inclusive no movimento negro. Relata ela que

Com frequência, com frequência [se sentia fora do lugar no movimento negro]. [...] Mas
assim, como eu morei, né, muito tempo no interior, e como no interior a gente não tinha,
como a gente tem em Salvador, um movimento negro tão... solidificado, é... tão, digamos,
orgulho, tão, é... da f... com essa gramática de movimento negro. Não tinha, entendeu? Eu
tenho mais agora, né, mas... mas nunca porque era menos ou mais importante, mas talvez a
gramática, entendeu? Que aqui eu tenho conseguido... elaborar mais.

Essa ausência da “gramática do movimento negro” demonstra como, de certa


maneira, em alguns casos o peso do antirracismo é também difícil de carregar. Ao ser
aprovada no concurso docente, se exigiu dela, por ser mulher negra, assumir uma posição de
modelo para a qual ela não se sentiu confortável. Relata ela que
83

E eu não sei se eu estou muito preparada pra lidar também com essas cobranças, é... Porque
eu sinto às vezes que você tem que tá numa posição de força, de, né... E eu não sou essa
pessoa, eu sou a pessoa que chora em audiência, eu sou a pessoa que, é... enfim, de...
<pausa> às vezes eu me sinto como se eu tivesse um... uma tarefa que está para além das
minhas forças, entendeu. <pausa> E as vezes eu fico um pouco... tímida de levantar isso
como uma bandeira por exemplo.

Muito diferente do professor Cândido, envolvido centralmente no debate racial e que


afirma a radicalização da identidade como uma ferramenta ideal para o enfrentamento do
racismo, a docente Felipa relata uma opção por uma certa discrição como um meio de se
ambientar, galgar posições e construir alianças sem se expor à agressividade de colegas e
estudantes, como sofreu antes. O sucesso profissional, para ela, teve um peso que ela conhece
bem e sabe ser necessário diminuir ao máximo.
Enquanto ele afirma, sobre acusações que sofre de que seria racista com pessoas
brancas nas avaliações em sala de aula, que “Eu prefiro ser acusado formalmente e
consequentemente ter uma oportunidade pública de um debate esclarecedor”, ela relata uma
série de estratégias para evitar o conflito e não dar margem a questionamentos, inclusive do
ponto de vista do método em sala de aula. Já tendo sido acusada, faz o possível para não sê-lo
novamente, inclusive adaptando suas práticas em sala de aula.
Não é possível ler essas diferenças sem um olhar que abarque a intersecção com
gênero e geração. Enquanto o docente negro, homem mais velho, relata vivências no início da
sua carreira que em geral são muito similares ao relato presente da professora Felipa, mais
jovem - negociando mais sua identidade, recuando, fazendo concessões -, do ponto de vistas
de gênero há uma marcação fundamental e estruturante nos discursos. Não surgem
explicitamente; mas é fácil se questionar como os relatos de violência e discriminação diferem
radicalmente, com uma centralidade, no caso da docente, a casos mais diretos e concretos do
questionamento de seu lugar enquanto professora, com embates em sala de aula, enquanto o
docente negro relata muita conversa de corredor, burburinho. Ele almeja ter uma oportunidade
de ser acusado para debater; ela relata tantas acusações e abusos que prefere resguardar-se. O
quanto disso é influenciado pelas suas condições de homem e mulher? Discutir mais à frente e
com profundidade a questão do gênero será fundamental na demarcação deste tópico, aliás,
uma discussão - sobre a preponderância masculina na área jurídica em geral e na Faculdade de
Direito em específico - que é reconhecida amplamente pelos docentes entrevistados.
84

Ademais, enquanto o professor Cândido faz uma exposição ampla e refletida sobre a
dimensão psíquica de ser minoria na Faculdade, no seu relato sobre racismo ambiental, a
docente Felipa é duramente direta e lacônica:

Às vezes eu me sinto sozinha, assim, né, é... Nas reuniões mesmo de departamento, de
colegiado, às vezes eu <"puf"> fico com a sensação de, de, de impotência pra... [...] Isso
tem me feito me sentir isolada, sozinha, às vezes é uma sensação ruim de, de… [não
conclui a resposta]

Essa sensação de solidão e isolamento, bem como outros sentimentos negativos, são
uma marca encontrada na literatura para as pessoas "fora de lugar" que são negros que
ascendem socialmente. Por vezes, a falta de coletividade no seu processo de ascensão, ou até
mesmo o tratamento dispensado por colegas e superiores, acabam incutindo estes sentimentos
num processo que supostamente é de melhoria de vida, estimulando estratégias que envolvem
retrair-se e fugir da sua própria condição racial. (SANTANA, 2009)
Aliás, sobre o isolamento na ascensão cabe cotejar também o relato do Cândido
acerca da sua entrada na universidade, o que oferta justamente a possibilidade desta análise:

Quando eu fiz vestibular... na turma de 200 alunos que ingressaram naquele ano, eh...
induvidosamente negros, éramos dois. Ah... Pobres mais alguns. E vivíamos uma
dificuldade muito grande de integração no curso porque era um curso frequentado pela...
fina flor da elite soteropolitana, baiana, portanto por pessoas que vinham com relações
prévias de... intimidade, de convivência. Primeiro dia de aula, e isso chamou muita atenção,
o fato de que a maioria esmagadora da turma já se conhecia, já se frequentava, já se referia
a um passado compartilhado. E nós tínhamos muita dificuldade de acompanhar, seja pela
localização da faculdade, a Faculdade de Direito, eh... escolheu uma localização do campus
curiosíssima, ela fica de costas para o Vale do Canela, de frente pra o bairro da elite de
Salvador, um dos bairros da elite de Salvador, que é a Graça. [...] Pra quem vivia em Pau da
Lima, pelo Centro Histórico de Salvador, me deparei com uma cidade desconhecida e super
sofisticada, né, bem mantida, bem estruturada em termos de serviços, isso também criava
constrangimentos e dificuldades mesmo de localização.

Cabe ressaltar, porém, que não há apenas aspectos negativos nesta vivência. A
presença desses docentes na universidade significa, em seus relatos, algo importante e
positivo, individual e coletivamente.
Do ponto de vista de suas trajetórias, é inegável a situação de ascensão em que se
encontram. Economicamente, sua trajetória ascende de uma situação da dificuldade financeira
a um bem-estar e conforto econômico que, inclusive, no caso do professor Cândido - o
primeiro de sua família a entrar na Universidade - acabou por se estender a outros familiares.
85

Mas, mais que isso, a sua presença na universidade significa uma diferença
qualitativa importante, da qual ambos se encontram conscientes. Relata a docente Felipa, por
exemplo, que

No meu contato que eu tenho tido [com estudantes negros], geralmente olham pra mim,
sobretudo as meninas, sorrindo, assim, sorrindo do ponto de vista de estarem satisfeitas,
entendeu? Então eu sinto uma, uma conexão assim a priori com as meninas, sobretudo, e...
são muito amistosas, são muito simpáticas, vem falar comigo no final da aula ‘professora,
que bom que você tá aqui’, não sei o que, não sei o que, é... Dos meninos também, dos
meninos também... Então essa, essa, eu acho que tem uma simpatia muitas vezes
automática, entendeu, com esse público e... é. <pausa> De um modo geral esses estudantes
concordam bastante com a perspectiva que eu tou trabalhando, né, então, falam, é... não se
colocam por exemplo naquela coisa de questionamento em uma determinada perspectiva
política, então tem um certo é... eu encontro uma certa ambiência favorável para discutir
determinados assuntos, determinadas questões, tão sensibilizados pra uma série de coisas
que eu venho falando, então, é... Com os estudantes negros eu tenho um vínculo bom, eu
sinto, né[…]

Há uma certa política de reconhecimento neste relato, que torna a vivência docente
mais suave. Se, por um lado, há questionamentos e cobranças, há também um certo apoio e
suporte, sobretudo entre os docentes negros e da parte dos estudantes negros - sobretudo as
mulheres negras, no caso da professora Felipa. Mais que isso, eles se percebem como um
esteio para estudantes negros e cotistas, algo que tiveram pouco na sua própria formação.
As pessoas, aparentemente, tem uma aguda consciência da “situação racial” da
Faculdade de Direito - para o bem e para o mal. Enquanto isso põe obstáculos, também gera
laços de solidariedade que ajudam as pessoas a enfrentarem estes. Não é por acaso que os dois
docentes encontram-se no mesmo grupo de pesquisa sobre questões raciais e falam um do
outro nas entrevistas, apesar de terem uma trajetória, histórico e um relacionamento com o
movimento negro muito distintos.
A leitura dos relatos indicam que a cada pessoa negra consciente de sua condição
dentro do espaço da universidade, mais o peso da vivência do racismo é dividido. E, também,
mais força se reúne para enfrentá-lo. Isso está presente num relato crucial do professor
Cândido, no qual ele cumpre um papel central no enfrentamento a um docente que reprovou
em massa nas primeiras turmas de cotas, alegando não serem eles competentes para estarem
na universidade. Esse episódio será explorado em mais detalhes na discussão sobre o papel
que os docentes avaliam cumprir diante das mudanças trazidas pelas cotas, mas cabe
demarcar aqui o quanto ser negro, no contexto da docência universitária, implica numa
solidariedade mais ou menos explícita e consciente para com um conjunto de pessoas que
partilha dessas experiências.
86

4.2 “PRA MIM É INDIFERENTE” VERSUS “A ESTRUTURA DA SOCIEDADE ME


FAVORECE”: BRANQUITUDES NO MUNDO JURÍDICO-ACADÊMICO.

A discussão sobre a branquitude revelou-se muito mais delicada que a da negritude.


E, também, muito mais cheia de filigranas e particularidades, até pela maior quantidade de
docentes brancos na Faculdade, em geral, e entre os entrevistados, em específico.
A primeira delas acerca do próprio reconhecimento da branquitude. No formulário de
identificação utilizado antes da entrevista, parte dos docentes categorizados como brancos a
partir de seus relatos optou por não se identificar assim. Foi o caso de Paulo (Outro), Miguel
(Outro), Orlando (Pardo) e Thereza (Parda), em contraposição aos autodeclarados brancos
Francisca, Ives, Luís, Eduardo e Quitéria.
Ao longo das entrevistas, também são expostas visões diferentes acerca da
possibilidade de declarar-se branco no contexto racial brasileiro. Enquanto o professor Paulo
declara que “Seria criminoso não dizer, não [que a branquitude traz privilégios]. Rapaz...
tudo. Tudo. Tudo. Eh... a estrutura da sociedade me favorece. Eu querendo ou não”, a docente
Thereza, num pólo oposto, diz que

Por que eu não tenho como, por exemplo, meu pai ele era muito branco e tinha os olhos
claros a minha mãe era bem morena <ininteligível>, então meu pai me dava algumas
direções, entendeu. Então por exemplo a minha avó, a mãe de meu pai, era neta de
português, a minha mãe dizem que é neta de uma índia ou bisneta de uma índia. É, eu acho
que ia procurar uma sarna pra me coçar. Porque é difícil demais, não é uma prioridade
minha, entendeu? Pra mim é indiferente isso aí, compreende?

Como se percebe neste relato, assumir a branquitude foi opcional para os


entrevistados, tanto objetivamente quanto ao longo dos relatos; ser indiferente a ela era uma
possibilidade viável. Muitos, aliás, recorriam a sua constituição familiar como meio de
contornar, questionar ou negar a possibilidade de serem brancos.
O que faz, então, esses docentes serem categorizados como brancos? Ora, além da
discussão acerca de suas trajetórias, já feita anteriormente, há um critério preciso: a absoluta
inexistência das três características marcantes nas entrevistas dos docentes negros, quais
sejam, a experiência com discriminação racial, as estratégias antirracistas e, em menor grau, a
narrativa diferenciada sobre a origem de classe.
Ao serem perguntados se já sofreram discriminação racial, as duas respostas comuns
eram a negativa (Francisca, Ives, Luís, Orlando, Quitéria) ou o relato de experiências de
87

discriminação associadas à questão de nacionalidade ou regionalidade (Paulo, Miguel,


Eduardo, Thereza).
Neste ponto, é interessante perceber a fluidez da linha de cor. O racismo tem um
componente geográfico importante; não é possível minorar o elemento étnico-racial da
discriminação sofrida pelos docentes no exterior ou em outros Estados. No entanto, é
importante perceber como o referencial geográfico é importante no estabelecimento de um
determinado padrão de branquitude, fato discutido por aqueles que problematizam sua
identificação como brancos.
Há casos como o do professor Eduardo, que referencia seus estudos no Sudeste do
país:

Me considero uma pessoa, como lhe falei, branca. Nunca me senti fora do... assim... Talvez
eu... me senti um pouco quando eu fui pra São Paulo, eu morei em São Paulo... né, em
Campinas, que é uma cidade, né, na época... em Brasília. Assim, a coisa do nordestino, né?
Senti um pouco isso. <fala em tom alto> Eu não fui uma pessoa que sofreu por isso. Como
eu sei que tem gente que já sofreu muito mais, né? Então... Agora, assim... eh... eu vejo por
exemplo hoje na TV falando do Estado Islâmico, a Síria, meus pais... né, meu pai, é filho de
imigrantes sírios. Meus avós saíram desse lugar. Fugindo da guerra, vieram pra cá, né,
enfim, então assim... e começaram do zero aqui... e construíram. Entendeu? Então assim,
também não me acho o... o descendente do imperador, isso que eu quero dizer, entendeu?
Eh... O aspecto racial não é uma coisa que impactou na minha vida por que... eu não tenho
estereótipo clássico do preconceito que existe na Bahia.

E casos no estrangeiro, como relatado pela professora Thereza ao ser perguntada se


já viveu discriminação racial:

Já, mas não no Brasil. Nos Estados Unidos, Los Angeles. Los Angeles é uma cidade muito
racista, né, você de vez em quando vê notícias nos jornais, problemas de negros com
policiais, tem ruas de negros, tem lojas para negros, brinquedos para negros, tudo, enfim.
Isso é oitenta, e inauguraram um hotel tem até um filme que se passa dentro dele, se chama
Bonaventure, e aí eu fui almoçar no restaurante, né, e você tinha o controle de acesso para o
restaurante e eu estava super bem vestida, de casaco, chapéu e tudo. Quando eu fui
entrando uma pessoa me segurou, pegou o casaco e me mostrou o preço. Na cabeça dela eu
não tinha dinheiro pra pagar, aí entrei, comi e paguei e saí, mas isso aconteceu.

Essa demarcação de viver um racismo xenófobo é importante. No caso brasileiro,


como denota Guimarães (1995a), as categorias relacionadas aos nordestinos são uma
expressão da gramática da exclusão de base racial, entrelaçada com categorias de
regionalidade e classe social. O professor Eduardo, ao “virar baiano” e perder o nome, como
narra, assumia aos olhos de seus colegas sudestinos uma coletividade imaginária que é
majoritariamente negra e pobre, referenciada no seu estado de origem, mesmo que
fenotipicamente não apresentasse a pele retinta e os traços associados com a negritude. Algo
88

que guarda similaridades com isso, embora bastante diferente, ocorre no caso internacional,
citado por alguns docentes; é uma experiência diferente do racismo doméstico, mas pelo
menos um deles aponta que

Foi... realizador, né? Por que eu percebi o que eu fazia com os outros, e isso foi
desconstruindo em mim, isso. Uma situação marcante foi quando eu fui pra Alemanha e as
pessoas me tratavam mal <tom mais alto> pensando que eu era turco! <indignação> E
quando eu falava que eu era brasileiro, as pessoas me tratavam bem. Eu acho que isso foi a
situação que mais machucou na vida... eh... a situação de... de racismo que mais me
machucou na vida foi isso, foi saber... ‘Não, então se eu sou brasileiro tudo bem, se eu sou
turco eu não presto?’, eu acho que isso foi a coisa que mais me machucou na vida.” (Paulo)

Assim, a relação do racismo com a xenofobia serve, por vezes, como elemento de
relação e conhecimento em relação ao racismo brasileiro ou baiano, não sofrido pelos
entrevistados, mas solidariamente melhor compreendidos a partir de um arrimo constituído
pela sua própria experiência.
Não é o caso, porém, do professor Miguel. Ele utiliza, trazendo um outro viés, a ideia
de ter sofrido discriminação como uma evidência de que a melhor opção é “não potencializar
estas questões”. Para ele, o fato de ter ido à trabalho para um país africano e lá ter sido tratado
diferentemente, com exotismo, por parte da população negra local, é uma demonstração de
que esse tipo de coisa é comum. Afirma ele que nunca permitiu que essas questões afetassem
sua auto-estima.
Sua percepção acerca do significado de ser uma pessoa branca no mundo acadêmico
repete o tipo de argumento pelo silêncio visto acima. Alguns afirmam não significar nada, por
vezes demarcando que os negros sofrem racismo, mas os brancos não tem grandes privilégios,
como aponta o professor Eduardo ao dizer que

Sinceramente… Eu não percebo nenhum tipo de facilidade ou dificuldade pelo fato de eu


ser branco. Pode ser que aconteça. Pode ser que eu vá dar aula numa pós e que o cara só me
botou, não me botaria se eu fosse negro. Eu jamais vou saber disso. Num sei. Tá
entendendo? Eh... Então... nesse ponto, como vantagem pra mim eu não vejo nada. <ênfase
no 'nada'> Agora, por outro lado... A pergunta que ce tem que fazer também é a seguinte,
eh... Como é que eu sou encarado por quem não é branco? Entendeu?

Há uma recusa sistemática, explícita ou não, por parte da maioria dos entrevistados,
em falar sobre privilégios da branquitude. Porém, dada a intensidade do relato dos docentes
negros, a própria ausência de relatos mais sistemáticos sobre discriminação racial já configura
um relevante privilégio que só pode estar associado a este fator.
89

Nos casos em que há uma maior reflexão acerca disso, é através do contato com
grupos do movimento negro ou ligados ao debate racial que ela emerge. Aliás, é precisamente
o argumento da professora Francisca, que aponta que foi uma ocupação negra na
universidade em que fez pós-graduação que fez ela “pirar na discussão” e mudar
substancialmente sua visão sobre sua própria condição racial:

Sei lá, quando eu era mais nova eu me declarava por alguma razão parda em algumas
entrevistas sabe, e hoje eu... Eu acho que eu posso ter uma característica ou outra, mas eu
venho de família branca né e tudo que eu vivi na minha vida são experiências que me
demarcam assim, então eu tive oportunidade de refletir sobre isso participando, tendo
contato com essas pessoas e participando desses espaços. [...] Ah, eu acho que eu tenho
privilégio sim, de... Raça, gênero e eu não consigo fazer esse debate sem classe, mas acho
que sim, acho que na minha formação educacional né, que não é só o fato de eu ter tido
acesso a uma escola particular, mas é o fato de como eu fui tratada dentro dessa escola
particular, como eu fui tratada dentro da universidade, como eu fui tratada nos lugares onde
eu trabalhei, como eu fui recebida nos espaços em que eu postulei, então eu acho que isso
decorre de privilégio sim.

Essa postura, adotada por alguns docentes, rompe o silenciamento que caracteriza a
branquitude (BENTO, 2002). É uma postura de autopercepção que afirma, com todas as
letras, a sua identidade racial como uma condição sem a qual não é possível compreender
privilégios e discriminações. Ela enfrenta uma postura, também presente em algumas
entrevistas, de fugir do assunto ou negá-lo abertamente, como se a pele branca ocupasse um
certo “pólo neutro”, ainda que se reconheça a negritude como um pólo negativo, objeto de
discriminação e racismo.
A professora Francisca, inclusive, exemplifica como a discussão aprofundada sobre
o racismo permite reposicionar as identidades, embora nem sempre o resultado seja o mesmo.
É, como aponta Laborne (2014), o caso onde a racial literacy, produto de socializações
racialmente mistas e reflexões críticas sobre a questão racial, pode produzir identidades
raciais reconstruídas e capazes de se posicionar de maneira crítica sobre a desigualdade racial.
Isso não exclui os brancos de certos privilégios, mas coloca sua identidade em tensão, fazendo
com que, como Carvalho (2005), os docentes brancos vivam a mesma reflexão permanente
sobre sua identidade racial que os negros já vivem.
O professor Eduardo aponta, em dado momento, para a dimensão psíquica do
preconceito, que, para ele, em certos casos só se resolve com psicólogo. Ora, talvez seja
importante colocar a dimensão psíquica deste problema mal-resolvido do “branco brasileiro”
ou “branco baiano” com a sua condição racial. Seguindo numa linha espelhada à de Guerreiro
Ramos (1995), que coloca a identidade branca brasileira como um protesto patológico contra
as características não-brancas do fenótipo ou da família dos brancos, parece que
90

contemporaneamente a patologia social do branco brasileiro é justamente a recusa em


perceber e assumir a sua identidade branca e os privilégios que dela advém, no sentido de se
posicionar perante às relações raciais como participante destas, e não como um observador
distanciado.
Esta tensão permanente se percebe nas entrevistas e é ela, justamente, a marca
distintiva de parte dos brancos entrevistados: um desejo, expresso ou não, de não ter a sua
identidade racial posta em questão. Ao invés disso, como diz o professor Ives, reconhecer que

Um homem branco é apenas um homem que tem que lutar pela vida. Reconheço as
possibilidades e vantagens, considero que não tive nenhuma, a não ser, acho que a minha
própria família veio a construir, entendeu? Mas, pra mim significa apenas um cara que tem
que lutar pra trabalhar, lutar pra… lutar pra levar comida pra casa. Matar um leão todo dia.

Discutir a identidade racial branca, aliás, põe em xeque o discurso hegemônico destes
docentes acerca de sua trajetória. A maioria deles, como discutido anteriormente, buscou
categorias individual-meritocráticas para justificar seus sucessos na trajetória. Discutir
privilégios advindos da branquitude - ainda que seja apenas a ausência da discriminação
manifesta - é colocar em xeque este critério de meritocracia.
É o que fazem, por exemplo, os professores Paulo e Francisca, ao discutir suas
trajetórias e como a branquitude influenciou nela. Ele, por exemplo, chega a ponderar:

Rapaz, ser “hômi” branco no mundo acadêmico significa que você chega num lugar e as
portas se abrem pra você. Tudo é mais fácil, entende? [...] Em todas as seleções que eu fiz,
na UFBA. De grupo de pesquisa, de... substituto, de pós-graduação [...] Em todas essas
seleções tinha uma mulher, um negro... ou uma mulher negra... Competindo comigo, e eu
sempre passei em primeiro. Não vou tirar meu mérito. Mas, por outro lado... <pausa, fala
baixo> ... né?

Este, aliás, é mais um caso onde a entonação e o gestual do entrevistado foram


bastante significativas. A segunda parte do argumento veio interrompendo a formulação de
outra pergunta, como se tivesse ficado faltando algo na resposta anterior. O final deixa no ar o
questionamento sem fazê-lo diretamente, com a voz baixando gradativamente, numa espécie
de tom de reconhecimento de culpa. Talvez seja a fuga dessa culpa que leve alguns docentes a
não mancharem seu mérito individual com a sombra de um privilégio, algo que o professor
Paulo teve coragem de fazer.
Outros, ainda, como a docente Quitéria, não conseguem elaborar ou descrever como
suas vantagens se expressaram. Mas ela afirma que, na trajetória profissional, sua condição
racial “Influenciou positivamente. Não, nunca percebi, mas eu tenho essa… sensação. De que
91

positivamente. Eh… Mas eu não sei te dar… motivação concreta”. Essa postura está
associada a uma disposição e abertura em saber mais sobre o assunto da desigualdade racial,
expressa em algumas entrevistas.
Porém, ainda é hegemônico o pensamento de que a branquitude não influencia em
nada, mesmo havendo um reconhecimento quase generalizado de que os negros tem
desvantagens. Neste nexo argumentativo, forte entre os brancos entrevistados, os negros
perdem espaço, posições, status, poder, renda e esta perda não se reflete em ganhos objetivos
para ninguém. Ou, pelo menos, se reflete, eles não se declaram beneficiários desta
desigualdade. É uma repetição, com importantes exceções, do que Carvalho (2004), chama
provocativamente, de brancura sem cor.

4.3 “VOCÊ NÃO É NINGUÉM[...], VOCÊ NÃO É JUÍZA, VOCÊ NÃO É


PROMOTORA, VOCÊ NÃO É DELEGADA, QUEM É VOCÊ?”: AS MULHERES
NO MUNDO JURÍDICO-ACADÊMICO.

A questão de gênero foi menos abordada ao longo da entrevista. Foi, ainda assim, um
tema emergente ao longo do desenvolvimento da pesquisa; é marcante como a questão de
gênero, mesmo nos momentos em que não era abordada diretamente pelo pesquisador, surgia
com força sobretudo entre as mulheres.
Se repete, no caso, um padrão encontrado entre o docente e a docente negras acerca
da questão racial. Suas vivências como mulheres são elementos importantes que emergem e
se impõem ao longo de suas narrativas, configurando um importante achado no trabalho de
campo.
Ainda assim, isso ocorre de maneira um pouco menos intensa e articulada. As
mulheres entrevistadas, Francisca, Felipa, Thereza e Quitéria, recorrem a outros
marcadores como mais relevantes nas suas trajetórias, como classe e, no caso de Felipa,
classe e raça.
Não obstante, na primeira brecha, criada seja por provocação da entrevista ou pela
própria narrativa das docentes, o fator "ser mulher" surge com relatos de intensidade bastante
relevante. Aliando exemplos práticos com ponderações que interseccionam suas
autopercepções de raça, classe e sexualidade, as entrevistadas compuseram um mosaico
interessante, com elementos de aproximação importantes e também com marcas pessoais.
92

Alguns fatores comuns são relevantes. O preterimento, a invisibilidade, sobretudo na


forma do silenciamento, e a cobrança exagerada são um conjunto básico que surgiu, com mais
ou menos força neste ou naquele aspecto, nas entrevistas com as mulheres docentes.
Acerca do preterimento, o relato da professora Thereza é bastante explícito. Ela
apresenta um caso, do início da sua trajetória profissional, quando

Apareceu uma vaga para procurador do trabalho que era por indicação, então eu fui falar
com o deputado ele falou pra mim “É muito pra você, mulher”, ele falou pra mim, eu
agradeço ele até hoje. Por que eu nunca entrei em lugar nenhum por indicação, tudo por
concurso público, entendeu?

Essa narrativa explicita bem um traço importante das narrativas acerca do


preterimento ou de dificuldades impostas na trajetória por conta de marcadores de gênero (e
que se aplica nas de raça também): o orgulho da superação destes obstáculos. Ao dizer que
agradece ao deputado por tê-la preterido, ela demonstra como é relevante para ela ter
conseguido "provar" seu mérito através do concurso público.
Outros casos similares são narrados neste sentido, embora nenhum tão contundente e
explícito. Aliás, talvez por conta da questão geracional, a professora Thereza, a mais velha
dentre as quatro entrevistadas, apresenta uma série de relatos bastante diretos acerca de várias
destas questões. Isso corrobora com uma fala que foi comum nas entrevistas, sobre um
processo de mudança na forma como o Direito tem absorvido as mulheres, ensejando um
ambiente mais inclusivo para estas no presente que no passado.
Ainda assim, as docentes mais jovens também contam com um arsenal de narrativas
importantes que mostram que, se pode ser verdadeira essa hipótese, ainda é real que a
desigualdade de gênero tem se imposto de maneira dura na vida das mulheres que atuam na
área. É o caso da professora Quitéria, que narra um episódio de invisibilidade pelo
silenciamento que é icônico e representa bem os outros casos trazidos à tona.

Em reuniões do departamento eu tenho que marcar meu lugar de fala. Tanto [na outra
universidade em que leciona] quanto na Federal. Então, grit… Falar mais alto, impor, 'Vou
falar', 'A palavra é minha', 'Tem que levar em consideração o que eu to dizendo', eh… Aí eu
não… Talvez seja em relação a gênero, mas também em relação a grupos. Quando eu
cheguei, por exemplo [na outra universidade], tinha um grupo de muito tempo e a gente
mexeu muito nisso. Alterou as coisas diante dessa leva nova. [...] Eu sinto... sinto uma
resistência. 'Não tá me olhando, e eu to falando com você'… [...] Resistência de não dar a
voz, de não dar… De não… Aquilo não ser colocado em votação. Por exemplo, a gente
tava falando, 'Vamos sair, vamos fazer uma plenária departamental', 'Não, não é assim
aqui', 'Mas a gente quer que seja, bota pra votar, vamos ouvir os alunos', então… e isso, no
começo, até eu entender que eu não vou desistir, demora um pouquinho.
93

Esse conflito político-acadêmico de corte geracional narrado pela docente explicita


algo que ela menciona na sua entrevista: a necessidade de se impor. Ser uma mulher fazendo
um enfrentamento significa, naquele momento, ter a palavra sonegada ou cortada, bem como
ter seus encaminhamentos desconsiderados. Por silenciamento, portanto, a partir dos fatos
narrados, se entende a necessidade de lutar pelo direito à fala.
Isso, porém, significa mais do que poder falar. Significa também ser levado
seriamente, ter suas falas levadas em conta em pé de igualdade com os homens; há, portanto,
mais facetas possíveis de silenciamento. É o caso do relato da professora Francisca, que diz
que

Às vezes eu me incomodo muito com a postura, e aí isso junta as duas coisas, minha
condição de mulher e minha idade, que é uma infantilização do meu papel dentro da
academia, né? Que, assim, 'olha que bonitinho, ela pensa, que opinião legal' e as pessoas
ficam super surpresas de você ter falado aqui, 'olha, fofinha, você falou isso'... Às vezes eu
vejo um pouco essa reação, e uma reação [de] surpresa quando você fala uma coisa
inteligente, isso é, assim, não porque você não fale uma coisa inteligente sempre, mas
porque talvez aquele seja um espaço em que você nunca falou e a pessoa fica assim
chocada porque 'uau, você falou isso...' Então essa é uma postura que 'olha que lindinha,
muito sorriso, muita gracinha' como se essa infantilização, que eu acho que junta as duas
coisas, porque eu vejo homens jovens também como professores que não vivenciam esse
processo da mesma forma que nós mulheres vivemos.

O silenciamento se dá de variadas formas, portanto, algumas menos ostensivas que


outras. E não deixa de ser uma forma específica do fenômeno mais amplo da invisibilidade -
inclusive sendo citado quando se pergunta sobre esse fato.
Outro tipo de invisibilidade é relatado, porém, pela docente negra. No caso, já
mencionado anteriormente, da professora Felipa, em que o seu status de professora lhe é
subtraído por um colega que a trata com desdém, numa forma, intencional ou não, de criar um
ambiente de não-reconhecimento de sua cidadania acadêmica plena. Ela diz evitar a sala de
professores, e fala sobre como é fácil para seus colegas ignorarem-na, e assume um tom
incisivo em certo momento, ao afirmar que "Sou confundida o tempo inteiro com estudante",
fato que atribui ao "fato de eu parecer uma estudante cotista também, né... Porque eu não me
enquadro... Assim, inclusive vestimento, eu não vou de terninho dar aula, eu vou de sapato
baixo". Aqui, se amalgama questões de raça, gênero, o tema da aparência e comportamental -
já que a docente também atribui isso a sua introspecção -, num relato similar ao do docente
negro, porém com nuances extremamente importantes sobre a vestimenta e sobretudo pelo
não-reconhecimento partir de colegas professores.
A cobrança exagerada e seus efeitos, positivos e negativos, é em parte derivada
desses fenômenos. Ela é dotada de uma significância muito bem expressa pela professora
94

Thereza, que diz que "a mulher pra viver no mundo jurídico ela tem que ter muita coragem" e
ser competente por dois homens, por que "Homem poderia errar a mulher não pode".
É relevante a percepção de que, como inclusive a entrevistada coloca, essa cobrança
parte de si mesma e dos outros. Assim, a exigência, também relatada anteriormente numa
dimensão mais detalhada pela professora Felipa, de resultados superiores e pouco tolerância
ao erro é um fato que se incute na própria atitude das docentes mulheres.
Não se pode deixar de notar o quanto estes fatores impactam no bem-estar das
entrevistadas. Parte delas, como é o caso da docente Thereza, afirma que nunca se deixou
abalar por essas questões; para ela, "você não pode ser uma mulher covarde" ou ser
"coitadinha". Ou ainda a professora Quitéria, que afirma até gostar desses desafios,
processando bem essas exigências, por gostar inclusive de fazer da sua presença, enquanto
mulher, um incômodo.
Essa postura está associada fortemente a uma característica que é a reconstrução da
sua condição de gênero, buscando ocupar um espaço menos desvantajoso.

Eu nunca usei da minha condição de mulher pra nada. Entendeu? Eu acho que isso ajuda
muito. Então pra mim eu sou assexuada, não sou homem nem mulher, na hora da atividade
não importa. (Thereza)

É minha característica, né, desde sempre, de fazer parte de um gênero muito mais
masculino que feminino, eu sou meio… me autodeclaro assim, 'Eu sou mulher,
heterossexual, do gênero masculino'. Por que eu sou prática, /agora agora eu tava falando
sobre isso/, a imposição cultural sobre o meu sexo é muito mais, eu me aproximo muito
mais das questões masculinas, sempre foi. Eu sou meio menino, né. 'Hominho'. (Quitéria)

A construção da masculinidade como pólo positivo e neutro, e a feminilidade como


um pólo negativo, desvantajoso, faz com que seja uma opção, para as docentes, buscar
circundar ou diluir as desvantagens da percepção sobre feminilidade. Essa identificação, por
si só, já evidencia um campo de discussão amplíssimo que não há a possibilidade de
aprofundar a contento nesse trabalho; mas, ao mesmo tempo, deixa marcada uma tensão
identitária permanente em algumas das docentes mulheres. Essa tensão, por outro lado, lhes
permite discutir certos assuntos com mais desenvoltura; a professora Thereza, por exemplo,
afirma que na década de 90, um professor recusou-se a discutir a questão da
homossexualidade no Direito da Família num seminário, tarefa que ela relata ter assumido
sem maiores dificuldades.
As docentes falam, em outros aspectos, sobre distintos impactos negativos relevantes
e explícitos, como no caso da professora Francisca, que faz essa discussão já embutindo nela
um corte racial e de classe.
95

Eu acho até que pra mim que acumula uma condição de privilégio e algumas restrições, eu
acho que isso vem muito na dimensão do sofrimento mesmo, de se sentir constrangido em
alguns espaços, de você engolir muita coisa, de você, eh... Acho que é muito no impacto da
subjetividade, né? Acho que pra quem está em outras, por exemplo, pra uma mulher
negra... Quando eu converso com minhas colegas, e eu vejo, principalmente minhas colegas
da pós graduação, eu vejo outras dimensões de sofrimento muito mais profundas que se
acumulam com outras questões que eu não estou exposta, mas eu acho que isso influencia
sobretudo na saúde mental das pessoas, sabe? De você não se sentir isolado, não se sentir
solitário, não ter problema de autoestima, não desconfiar de sua própria competência,
porque isso às vezes acontece 'ninguém presta atenção no que eu falo, será que eu sou
competente, porque será que eu passei nesse concurso', né, que é o que eu tava lendo esses
dias, tem até um nome pra isso, a síndrome do impostor que é muito comum entre pós
graduandos, né, e professores de uma forma geral, de você achar que deu alguma grande
zebra no seu concurso, que você passou por isso. Porque assim, pra essas pessoas todas
desconsiderarem sua opinião você deve ser um grande idiota, né? Então acho que isso afeta
bastante a saúde mental dessas pessoas.

Este relato de forte impacto estabelece as bases de um ponto que muito interessa ao
conjunto desta reflexão. A docente fala sobre si, mas também traz sua visão sobre colegas que
explicitam a dualidade entre a cobrança excessiva e a sensação de incompetência.
Ele permite estabelecer paradigmaticamente um roteiro que passa pelas formas
discriminatórias já discutidas, percorre um caminho de dúvida sobre si próprio, desgaste
emocional e, por fim, auto-exclusão, como no caso da professora Felipa, que narra dois
episódios de perseguição, discriminação e desgaste que a levaram a pedir demissão de
instituições onde lecionava anteriormente. Além do já discutido, tem-se outro exemplo num
intenso relato:

Eu trabalhei um ano numa faculdade privada, que foi um ano ruim também… Foi um ano
ruim. Porque assim, é... [...] Eu tive uma experiência muito ruim, assim, porque eu me
sentia o tempo inteiro testada, assim, de descredibilidade total, diferentemnte com o que eu
sinto hoje na UFBA e na outra instituição. Na outra, o problema ficou, apareceu, é,
digamos, a partir da presença desse grupo de professores, né? Mas na, aqui nessa faculdade
privada eu senti muita resistência dos estudantes, e aí eles foram fazer queixas na
coordenação, a coordenação, é... de alguma forma, porque a lógica é um pouco, é...
mercadológica. O cliente… Tem sempre a razão, então... Num determinado episódio, uma
estudante, eu entreguei a prova, né, a turma tirou, em geral, tinha tirado notas baixas, né,
eh... e uma das meninas que era uma menina que divergia um pouco desse perfil, né, do
estudante trabalhador, era uma menina meio patricinha assim, é... ela me disse inclusive em
uma aula anterior que ela ia sair e viajar com o motorista do pai dela, enfim, sei lá o que,
é... que ela tinha que sair da aula porque o motorista do pai dela tava esperando ela, enfim,
coisa assim. E essa menina, no dia que eu entreguei a prova pra ela, ela tirou uma nota bem
baixa, ela jogou as coisas dela em cima de mim, derrubou uma cadeira e começou a me
xingar, disse assim: 'Você não é ninguém, porque você está me dando essa nota, você não é
juíza, você não é promotora, você não é delegada, quem é você?', não sei o que, não sei
que, não sei que. Eu levantei da sala, não dei atenção ao que ela tava dizendo, saí, fui até a
coordenação e pedi demissão, né, disse, 'Ó, não tem condições de eu tá aqui', o coordenador
disse 'Repense...', não sei que, não sei que lá. Aí, eu voltei pra sala falei pros estudantes:
'Vocês estão liberados, vão pra casa', não sei o que. Aí a noite tinha aula em outra turma, aí
eu cheguei lá, aí a turma tinha organizado uma festinha me pedindo pra ficar. Aí eu falei
'Olhe, vou ficar', resolvi ficar e fiquei mais um semestre, chegou no final do semestre eu
96

pedi pra sair e fiquei só um ano. Mas foi uma experiência também bem ruim, bem pesada, e
esse episódio com essa menina, pra mim foi... assim, é... foi talvez o símbolo, né, do que foi
essa relação, porque foi alguém dizendo pra mim 'Olha, você com essa sua... com esse seu
perfil pra mim não é ninguém', entendeu? E pra mim foi muito simbólico justamente por vir
de uma faculdade que tem uma, um corpo discente, né, que depois eu fiquei pensando
muito sobre isso, né, que é basicamente aqueles que vem dos bairros periféricos de
Salvador e que estão procurando alternativas de salvação individual.

A história acima é um forte depoimento sobre um enfrentamentos que impactam no


percurso profissional da entrevistada. É quase um roteiro com reviravoltas e um anticlímax
que redunda na sua auto-exclusão, na medida em que sua demissão não foi solicitada por
conta do conflito, mas este tornou sua situação insustentável aos seus próprios olhos. Também
o corte de raça e classe se faz presente nessa experiência, tanto na medida em que ela é
particular desta docente, quanto na sua própria leitura sobre o processo, denotando um
posicionamento crítico acerca dessas questões.
Ainda assim, o relato permite também perceber um certo lado positivo que se segue à
essa tensão. Ao narrar a festinha que os estudantes fizeram pedindo a sua permanência, a
docente toca novamente num tema que é recorrente na sua entrevista, que é a expressão de
solidariedade por parte de alguns estudantes que parecem intuir uma certa necessidade de
reafirmar a importância de tê-la como professora.
Essa relação de proximidade é relatada também pela professora Francisca, que
afirma que seu tema de pesquisa, que se relaciona com a temática de gênero, é bastante
atrativa para as mulheres estudantes, o que explica o fator de trabalhar com muitas mulheres
bolsistas. Falar abertamente sobre a questão, ou posicionar-se, dá também uma dose extra de
construção de laços solidários para enfrentar esse tipo de discriminação.
Outra questão de destaque é um forte senso de realização pessoal e profissional que
segue o relato das docentes. A professora Thereza, por exemplo, relata ter sido uma das
primeiras magistradas da Bahia, e explicita como a presença de mulheres tem aumentado ao
longo do tempo e, ao mesmo tempo, que para chegar onde chegou teve de demonstrar o dobro
de competência de seus colegas homens - contrariando, assim, a angústia que a professora
Francisca relata como "síndrome do impostor".
Essa sensação, aliás, de ser uma espécie de modelo para as jovens meninas que fazem
universidade é também um sentimento, de certa forma, presente nas entrevistas e dado como
gratificante. A professora Francisca relata sentir uma "necessidade de fomentar mais as
mulheres" a participar, pedindo ativamente suas opiniões na sala de aula e dando importância
a elas. Esses laços de solidariedade formam, junto com o sentimento de superação e
97

realização pessoal, uma vivência bastante positiva entre as mulheres entrevistadas, com
diferentes graus de envolvimento.

4.4 “OS REIS DO PEDAÇO”: MASCULINIDADES NO MUNDO ACADÊMICO-


JURÍDICO.

Neste ponto, novamente, a primeira marca é o silêncio e a segunda o desconcerto,


repetindo, de alguma forma, o padrão da branquitude. Porém, aqui se manifesta com um
pouco mais de detalhe - talvez por haver uma certa identificação cúmplice entre entrevistador
e entrevistado, ambos homens.
A exceção é no caso do docente negro, que relata fenômenos similares por conta de
sua condição racial, embora ele também só toque no tema do gênero quando especificamente
provocado.
Isso reforça um pouco a imagem que as mulheres trouxeram sobre os colegas homens
no mundo jurídico: "reis do pedaço" e maioria, eles tem o direito de errar sem trazer a tona
questionamentos acerca de seu sexo, que as mulheres acabam por sofrer.
Provocados, alguns docentes reconhecem isso abertamente, por vezes de maneira
mais tranquila do que quando se fala sobre a questão racial. o professor Paulo repete a mesma
linha de argumentação, de que seria "criminoso" não reconhecer os privilégios de sua
masculinidade. O professor Cândido também fala sobre a questão da masculinidade, ou do
"androcentrismo", como constitutivo de importantes privilégios e vantagens no contexto
acadêmico ou jurídico. Mais que isso, ele chega a argumentar que entre cotistas, por exemplo,
ser homem constitui uma vantagem mais nítida do que entre os não-cotistas, evidenciando um
corte racial importante na sua percepção sobre a masculinidade.
Há um pólo oposto, caracterizado pela negativa sumária da possibilidade de haver
vantagens individuais ou coletivas acerca do tema da masculinidade. O professor Miguel, por
exemplo, afirma que ser homem nunca fez diferença alguma na sua vida; Ives vai além,
percebendo desvantagem em ser homem:

E eu diria que em determinadas circunstâncias, eu diria que essa é uma posição [de ser
homem] que seria prejudicial. Rapaz, ce tá me fazendo uma pergunta… tanto é que uma
moça bonita infuencia melhor alguém que esteja avaliando… do que um… um…
homem…"
98

No geral, porém, a atitude é mais branda. Muitos recorrem a uma posição de afirmar
que não percebe isso, principalmente afirmando como a área jurídica tem se tornado bastante
feminina ao longo do tempo. É o caso do professor Orlando, que chega a afirmar que
provavelmente já há mais mulheres que homens lecionando na Faculdade de Direito da
UFBA, o que não se confirma, embora ele reconheça que sobretudo no início da sua trajetória,
ser homem deve ter lhe facilitado bastante as coisas.
Perguntados acerca da questão de gênero, este é o argumento mais recorrente. Alguns
recorriam ao exemplo de suas mães como mulheres que viveram tempos mais fechados às
mulheres, como o docente Ives, enquanto outros fazem uma análise do tempo presente,
indicando como as mudanças mais recentes tem significado diminuição das desigualdades.
Ainda assim, cabe ressaltar como essa percepção contrasta com os dados disponíveis
acerca das desigualdades de gênero. Enquanto seja verdade o aumento do nível de
escolaridade das mulheres superando, inclusive, a escolaridade dos homens, é verdade
também que os salários de homens e mulheres na mesma faixa de escolaridade permanecem
brutalmente desiguais, sobretudo se incluído o fator raça (IPEA, 2011; SILVA; SILVA,
2014).
A escolha, portanto, de focalizar nos espaços conquistados pelas mulheres, e não da
sua condição masculina e dos benefícios que ela significa, é, sem dúvida, a expressão de uma
normatividade que fica evidente quando suas falas são comparadas com as das mulheres.
Mais uma vez, se percebe que o grupo subalternizado tende a falar muito mais sobre suas
identidades e sua posição do que o considerado privilegiado.
Novamente, surge a questão do discurso individual-meritocrático acerca das
trajetórias profissionais. Elemento central no arsenal argumentativo dos docentes homens e
brancos, novamente a recusa em discutir possíveis privilégios significa uma posição coerente
com esta linha discursiva. Não por acaso, são justamente os docentes que menos usam este
tipo de argumento que fazem uma exposição mais desinibida sobre a masculinidade como um
elemento de vantagem.
Cabe registrar, novamente, uma conexão importante entre gênero e sexualidade. O
professor Eduardo, ao ser questionado sobre o significado de ser homem na sua trajetória
profissional, conferiu uma interessante polissemia ao termo "ser homem":

Em relação a que, a não ser mulher? Ou não ser homossexual, é o que? Qual é o… Homem
hétero ou homem fenótipo? Não. Sinceramente, pelo menos nos ambientes em que eu
andei... e me refiro à infância, a vizinhos, ao prédio onde eu morava, onde tinha meninas...
A faculdade... Eu sinceramente nunca vi nenhuma diferença entre mim e minhas amigas.
99

Em termos de chances, eu não... não posso dizer que eu participei de uma geração em que a
mulher não tinha chance. Já não alcancei essa época. Talvez minha mãe. Entendeu?

Instado a falar sobre a questão da sexualidade que ele trouxe a tona, ele mudou o
rumo da conversa:

Ah, não, aí é outra questão… O machismo, você se refere? Sim, aí... inevitável. Existe.
Muito forte. Muito forte, isso aí... até a forma como a gente é criado, pra aceitar que o
homem possa certas coisas, a mulher não possa, é machismo, é cultural. Isso aí tá dentro da
gente, não muda, só muita terapia ou... <risada> sabe-se lá o que pra você, mais velho, vai
mudando[...]

Esse corte de sexualidade faz com que seja necessário ponderar que não é uma
masculinidade abstrata que está posta como acima de maiores questionamentos. É uma
masculinidade marcada por outras características, tais como as da sexualidade, ainda que não
expressas de maneira direta. Um relato indireto sobre isso advém da professora Quitéria, que
conta o caso de uma banca que ela usa para orientar estudantes que vão prestar concursos:

Por que quando eu vou falar sobre os alunos sobre essas outras questões, que precisam… E
aí dou exemplos, um curso para o Ministério Público Militar. O cara, /candidato/, foi de
terno rosa. O cara sabe que a banca é sexista, homofóbica… [...] Então é uma banca militar.
Todo mundo com sessenta anos. Aí um candidato, na última fase, vai de terno rosa. Pra
chocar. Não é hora de chocar. Eu tenho que falar aos meus alunos isso. Foi reprovado.
Fizeram uma pergunta impossível, e foi reprovado.

Este tipo de relato não se apresentou diretamente pelos docentes homens. A exceção
é o docente negro que, como discutido anteriormente, por conta de sua condição racial teve de
negociar sua aparência quando disputava vaga em concurso com banca. Essa também é uma
experiência relatada pela docente Quitéria, de haver critérios duros sobre sua aparência em
bancas. E, mais uma vez, encontra-se ausente nos relatos masculinos, pelo contrário, o Ives
aponta isso como uma possível vantagem das mulheres.
Essa tensão permanente dos grupos hegemônicos, entre reconhecer a desvantagem
dos subalternos e não se posicionarem criticamente perante a sua própria posição, expressa
também visões mais amplas. Elas discorrem sobre a desigualdade racial e de gênero de
maneira geral, e estão intrinsecamente ligadas a suas autopercepções.
100

4.5 "A COR DA PELE PRA MIM AINDA É UM FATOR DISCRIMINANTE FORTE”:
VISÕES SOBRE DESIGUALDADE, PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO DE
RAÇA OU COR.

Discutidas as percepções dos docentes sobre si mesmos, do ponto de vista racial,


pode-se compreender melhor suas posições sobre a desigualdade de maneira mais ampla.
Fazer isso é importante, inclusive, para balizar como lidam com o processo das ações
afirmativas, embora, caiba ressaltar, nem sempre haja ligação automática entre reconhecer
desigualdades e apoiar ou dar suporte as ações afirmativas (BARRETO, 2008; NERY;
COSTA, 2009a; 2009b; RIBEIRO et al, 2014).
Busca-se, a partir do quadro de autopercepções já construído, perceber as nuances de
como os docentes conferem à dimensão de raça e gênero contornos próprios e dignos de
atenção. E como estes, associados à questão da desigualdade social, podem ser enfrentados.
Começa-se explorando a questão racial, por esta ser mais central na elaboração do trabalho.
Por isso mesmo, aqui se opta em ir além da polarização entre os que valorizam e os
que negam a questão racial como fundante da desigualdade social brasileira - relação já
amplamente discutida na literatura disponível, sobre a amálgama entre raça e classe e sobre o
racismo como fator estruturante das classe sociais brasileiras (FERNANDES, 1987; 2008;
GUIMARÃES, 1995a; 1995b; RAMOS, 1995; OSÓRIO, 2008; IPEA, 2011; SILVA; SILVA,
2014).
Não é possível ignorar a posição, minoritária mas contundente, que busca atribuir um
valor irrelevante à questão racial. O professor Miguel é o exemplo radical deste caso. Não só
não vê as diferenças, como afirma não ter relatos de discriminação. Sobre casos de racismo ou
machismo na faculdade, por exemplo, ele diz que "Nunca ouvi falar, e nunca me contaram".
Sua linha de argumentação é absolutamente coerente internamente, na medida em
que defende a sua posição de civilista - de tratar a todos como iguais - e também um
posicionamento político em favor da meritocracia, do esforço, responsabilidade e empenho
individual como o caminho para o sucesso. Também é coerente com a sua autopercepção;
fazendo questão de ressaltar sua avó índia, ele tem uma retórica quase freyreana sobre a sua
própria identidade racial, e a ausência de relatos de vivência com a discriminação ou
estratégias antirracistas amplificam a percepção visual que o pesquisador teve sobre sua
branquitude. Discutir estes temas no âmbito da intelectualidade brasileira é uma tarefa que
tem detectado este tipo de posição, ainda que não hegemônica, mas muito influente inclusive
naqueles que não se alinham totalmente a ela, constituindo verdadeiras ideias-força, com o
101

uso de estratégias como a reversão, acusando os negros de racistas por proporem divisões
perigosas, como faz o Miguel e também se verá mais adiante em outros casos (LABORNE,
2014; PINHEIRO, 2010; MENIN et al, 2008).
Porém, o reconhecimento das desigualdades é majoritário, como o tem sido em um
conjunto de pesquisas elaboradas nesta área (BARRETO, 2008; QUEIROZ; SANTOS, 2006;
PINHEIRO, 2010). Isso pode significar, inclusive, que se respondeu, em alguma pequena
medida, o desafio feito por Carvalho (2005), acerca da necessidade de colocar esse tema,
minimamente, no radar das preocupações da intelectualidade brasileira - incluindo a ela
mesma no problema, em contraposição ao mito da democracia racial.
Isso não quer dizer que isso se dá de maneira uniforme. Aqui, se optará por construir
uma gradação, dos mais relativistas aos que dão mais centralidade a essa dimensão.
Levando em conta a discussão sobre a autopercepção, confirma-se uma expectativa
construída ao longo do trabalho de campo, de que um grupo composto por homens brancos,
que atribuem suas trajetórias a valores individual-meritocráticos, represente o núcleo principal
daqueles que, mesmo reconhecendo as desigualdades, as coloca em segundo plano. Em
diferentes graus, as suas argumentações giram em torno de sempre minorar a importância
destas dimensões da desigualdade tanto do ponto de vista racial quanto de gênero e são
bastante coerentes internamente.
A primeira estratégia a ser utilizada é a subsunção da questão racial a outras relações
sociais. O entrevistado Ives, ao fazê-lo, naturaliza o estranhamento com o diferente,
colocando a alteridade como uma qualidade naturalmente tensa.

Rapaz… olhe… isso é uma visão muito pessoal. Considero que racismo como a gente
conhece é apenas um derivativo de algo muito maior, e muito mais terrível, chama
etnicismo, entendeu? Ou seja, uma das pes… uma das maneiras de você identificar o outro
como alguém de sua pátria é ele ser parecido com você, por que seu sentido mais forte é a
visão. Então você… o racismo… é bem o que se viveu no Ocidente e que se construiu com
a supremacia do branco na… na… a partir da idade média. Mas nosso problema não se
resume a isso. Racismo… branco contra negro, que é o principal, e contra raças outras não-
coloridas. Tem um filme que fala… Um livro, do Orwell, “Dias na Birmânia”, e justamente
aquela… racismo contra o pessoal, que não são negros, são asiáticos, digamos assim, eh…
Morenos. E aí você observe… Essa questão de você discriminar o outro existe como…
instinto. É por isso que você vê aquele negócio que aconteceu em Ruanda. Era negro contra
negro, certo? E… Na Coréia, com o Japão, você conhece, era oriental… É que quando isso
acontece lá na África, o sujeito pensa que é coisa de bárbaros, entendeu? E de oriental,
coisa de… não civilizados. Mas aí veio o Hitler e mostrou que aquilo acontece entre
brancos. [...] Então isso é um etnicismo que existe na… sociedade. Então, em qualquer
mente existe isso. Então há sempre essa reação. Agora, existe duas maneiras de se… Você
pode fazer como Hitler, eu não creio que ele queria destruir o mundo, ele queria purificar.
Não deu certo. Existe… a única maneira que tem é você tentar justamente fazer
movimentos de aproximação, de integração, para que as pessoas vivam melhor, não é isso?
102

Situando o racismo brasileiro num contexto mundial, o professor Ives provoca um


efeito duplo interessante. Ao tempo em que naturaliza o estranhamento com o outro,
relativizando o racismo brasileiro frente aos horrores de outros lugares, ele também discute
como se posicionar perante a este fato, defendendo uma política de integração. A
desigualdade racial, em última instância, é um fato contra o qual ele não consegue reunir
argumentos de igual estatura moral, por exemplo, no caso de se opor às cotas. Ancora-se,
portanto, no "racismo do vizinho", um argumento clássico que reduz a importância da
desigualdade racial na realidade brasileira (GUIMARÃES, 1995a).
Em outro aspecto, o docente Eduardo, por exemplo, empreende uma subalternização
da questão racial à questão de classe. Um argumento clássico, considerado por Theodoro
(2008) um dos principais entraves à formulação de políticas públicas que efetivamente
diminuam a desigualdade racial, ele se expressa não apenas no discurso deste docente. Há,
porém, uma diferença fundamental entre correlacionar raça e classe, coisa que outros também
fazem, e colocar uma como derivada da outra. Com isso, ele não quer dizer que não haja
discriminação; pelo contrário, ele a experimentou ao se deslocar para outros lugares do país, e
reconhece que mesmo na Bahia há um "estereótipo clássico do preconceito", referindo-se a
pessoas de fenótipo negro mais marcado.
Ainda assim, é o acesso a bens culturais e à educação, para ele, que mais contam. Isso
é coerente inclusive com a estratégia do movimento negro, que pautou a educação como um
caminho fundamental para a superação da desigualdade racial (GOMES, 2001). Portanto, tal
argumento não polariza abertamente com a pauta do reconhecimento e enfrentamento da
desigualdade racial.
Porém, isso não implica na crença de que, dadas as condições ideais de educação, a
desigualdade racial cessa de existir. Pelo contrário, há evidências de que quanto maior a
escolaridade, maior a desigualdade de renda entre brancos e negros, no Brasil (SILVA;
SILVA, 2014). Para o professor Eduardo, ainda assim, a partir da sua autopercepção
("branco", mas não "filho do imperador"), é esse sim o caso:

Eu estudei muito fora, estudei em campinas, 'baiano, baiano, baiano... baiano' pra cá... Mas
assim... Eu soube lidar com isso, não me vitimei, eu... acabei sendo aceito. Existia
preconceito? Existia, mas eu soube superar isso e acabou... superando isso. É como eu falo.
Lá na faculdade eu percebo alunos... que talvez tenham sofrido no início um certo
preconceito. Mostraram pra que vieram. E são respeitados pelos colegas. 'Poxa, fulano é...
rapaz, pergunte a ele.' Quantas vezes já vi? 'Professor, ali sabe, ó, ali sabe tudo, por que o
cara é...' Então esse respeito se adquire também. Claro que existe os casos perdidos de...
de... preconceito... que o cara não tem jeito, né, que é preconceituoso mesmo, mas no
geral... no geral, o preconceito... no geral, ele é superado pela própria convivência. <falando
baixo> Pela própria convivência.
103

Com isso, faz uma defesa refinada da meritocracia. Mais adiante, explicitamente, ele
a defende, argumentando que "temos que melhorar o jogo e não mudar a regra", criando as
condições básicas de igualdade para que prevaleça o mérito. O acesso a educação, aliado ao
esforço e competência pessoal, são os fatores chave da superação do preconceito, que ficaria
assim confinado a uma dimensão psicopatológica.
Outro argumento interessante é o que busca ressaltar a diminuição do preconceito ao
longo do tempo como uma evidência de que a desigualdade está deixando de ser um
problema. Quando a competência passa a valer mais do que o preconceito, o cenário mudou,
de maneira "Gradual, talvez não na velocidade esperada, mas aconteceu", como diria o
Orlando Em si, esse argumento não relativiza a desigualdade racial. Mas ele geralmente vem
acompanhado por uma dificuldade em perceber expressões do racismo no seu ambiente mais
imediato. É como quando afirmam:

Então é uma relação que, não vejo discriminação, nunca observei nenhum ato concreto de
discriminação, nem... Aqui a faculdade, se você observa entre os alunos, né, as pessoas
aqui, inclusive talvez pela participação dos cotistas, eles são muito atentos, isso até acho
muito bom. (Luís)

Não tenho como... precisar... é... eu tenho uma aproximação muito boa com todos os
estudantes, mas eu não tenho como precisar assim um tratamento diferente [com estudantes
negros]... Acho que ele pode ter, sofrer muita coisa, mas... Da minha... Do meu ponto de
vista, não vejo. Ele vê, com certeza, mais do que eu, mas eu não tenho percebido tratamento
diferente. (Orlando)

Essa postura é bastante comum, e se aproxima com o dito pelo professor Miguel,
mesmo entre os que dão maior centralidade à desigualdade racial. É curioso perceber que o
docente Orlando coloca, ao falar sobre seu trato em sala de aula, que buscar ver os alunos,
prestar atenção neles; mas na questão do preconceito, essa visão se torna mais turva. Isso com
certeza tem a ver com a forma, também sorrateira - como adiante se discutirá - que o racismo
assume em tal ambiente; analisa o entrevistado Luís que "O meio intelectual, ele é muito
rigoroso, mas ele trabalha através de modelos. Primeiro, ele não é explícito, ele é velado, ele é
silencioso". Mas além de sorrateiro, há episódios, como a colocação recente de cartazes
racistas, que impressionam “passar em branco” para esses docentes.
Ela é minorada, porém, por uma atitude que segue em outra direção: a demonstração,
ainda que apenas ali na entrevista, de vontade de saber mais sobre o assunto. O próprio Luís
chega a dizer que, à luz da entrevista, pode passar a prestar mais atenção em alguns pontos
levantados.
104

Essa foi uma fala recorrente, aliás. É uma posição que valoriza a importância das
dimensões raciais da desigualdade, na medida em que julga ser valioso conhecê-la melhor. As
professoras Francisca e Quitéria também se posicionam dessa forma. A última, inclusive,
respondendo à mesma questão que ensejou a resposta do docente Orlando transcrita acima,
sobre tratamento diferenciado para estudantes negros, diz que

Pelas experiências que eu te narrei fora de sala de aula, no, no… na Justiça, na Justiça, que
essas duas grandes foram na Justiça, eu acho que ainda tem em relação ao negro essa
expectativa de que ele não vai conseguir. E aí é pela aparência mesmo, eh… Aí pela…
Independente de se ele é ou não cotista, a cor da pele pra mim ainda é um fator
discriminante forte.

Essa postura é a de não presumir que a Faculdade de Direito seja especial em relação
aos outros lugares, no que tange à existência de discriminação racial. Assim, ela não relativiza
no geral, nem na sua realidade mais imediata. E, mesmo com isso, ela afirma não ter “nenhum
dado empírico” sobre a vivência de negros e cotistas na UFBA e as diferenças que podem ter
nelas, porque "nunca foi preocupação. Agora que você tá me perguntando, talvez seja. Passe a
ser”.
Aliás, o uso de exemplos práticos é uma forma bastante eficaz de detectar uma maior
sensibilidade para as nuances e afirmação do problema do racismo. As professoras Thereza,
Felipa, Quitéria, Francisca e Cândido, que compõem um grupo que nitidamente confere
mais centralidade ao problema do racismo, dão ricos relatos de discriminação racial no mundo
acadêmico e jurídico, em alguns casos relatos pessoais. É possível aproveitar alguns exemplos
mais explícitos neste ponto, reservando alguns mais complexos para discussão mais adiante.

Eu acredito que sim, eu tenho amigos meus, negros, contam histórias. Como eu lhe falei,
tem uma juíza que eu já trabalhei com ela, desembargadora, ela tinha ido falar com Lula
quando ele era o presidente, ela foi barrada no Planalto, lá, o pessoal pensou que era a
empregada. Então é comum isso, a pessoa achar que a pessoa negra… Tinha um juiz negro
aqui na Bahia, no Trabalho, ele morava num lugar cheio de casas, ele descia ia lavar o carro
dele, um dia ele tava lavando o carro dele o vizinho chegou... 'Você que é o lavagista, lava
o meu também...' Ele disse 'Tá bom, vou lavar', porque ele era negro achou que era
empregado... flanelinha, nem sei...então eles contam muito, eu sei que é verdade. (Thereza)

E aconteceu na Federal, recentemente, uma outra amiga, da UNEB, foi se inscrever pro
doutorado, ela rasta, a menina que tava recebendo a documentação, tinha ela, rasta, com a
documentação pro doutorado, mais umas três pessoas. Essa moça recebeu a de todo mundo,
quando foi receber dela, falou 'Não pode ser terceiros. Quem tem que trazer documentação
é o candidato'. E ela percebeu que só tinha ela… Por que que só ela foi recepcionada com
aquilo? Ela disse 'Mas eu sou a candidata', aí ela falou 'Ah, é pro mestrado?' e ela falou
'Não, pro doutorado'. (Quitéria)
105

Não parece estranho que esta tenha sido a postura das mulheres, mesmo brancas,
neste tema. Como discutido, no processo de autopercepção, há vivências compartilhadas
importantes, ainda que de maneiras diferentes, entre mulheres e pessoas negras entrevistadas.
Então, ainda que algumas não façam uma discussão mais aprofundada sobre o racismo, elas
demonstram bastante empatia com esse fenômeno na medida em que tem exemplos pessoais,
todas elas, de vivência das desigualdades de gênero. Mesmo quando, como no caso da
docente Thereza, isso vinha acompanhado de ressalvas ou contrapesos mais típicos dos casos
discutidos anteriormente.
Por outro lado, é importante ressaltar um último grupo de argumentos, que articula a
discussão sobre o racismo num nível mais complexo, discutindo-o como fenômeno estrutural
e articulado com outras formas de desigualdade. É o caso da argumentação persistente do
professor Paulo sobre como sua vivência como "homi branco" lhe abriu portas
sistematicamente, quisesse ele ou não. Ou ainda o relato da professora Francisca, que busca
argumentar como uma desigualdade media a outra:

Raça, gênero e eu não consigo fazer esse debate sem classe, mas acho que sim, acho que na
minha formação educacional né, que não é só o fato de eu ter tido acesso a uma escola
particular, mas é o fato de como eu fui tratada dentro dessa escola particular, como eu fui
tratada dentro da universidade, como eu fui tratada nos lugares onde eu trabalhei, como eu
fui recebida nos espaços em que eu postulei, então eu acho que isso decorre de privilégio
sim.

Esse argumento espelha o fragmento recortado, anteriormente, do docente Eduardo,


na medida em que fala sobre o mesmo processo, mas apresenta como uma desvantagem
competitiva séria ser recebido da forma como o docente relata ter sido recebido, ainda que por
um marcador diferente. Para vencê-la, exigir que alguém "mostre a que veio", a partir da
visão de Francisca, talvez seja injusto, pois implicaria numa cobrança exagerada que não
recai sobre quem - como ela - não tem essa caraterística.
Também se destaca os argumentos, que são definitivos para este grupo, do professor
Cândido, que alia exemplos pessoais a uma reflexão mais complexa sobre o fenômeno do
racismo, apontando-o como fundamental na realidade brasileira, baiana e da sua universidade.
Assim como no caso de Miguel, seus argumentos são de um tipo que parece polarizar outros
docentes - mesmo os que não se alinham diretamente ao seu pensamento, constituindo,
também, uma espécie de ideia-força. Uma demonstração dessa percepção se encontra na sua
análise sobre como os negros que entram na universidade tem sua identidade posta em xeque:
106

Então na universidade, o ambiente dela é um ambiente que já reflete nos sujeitos distintos
uma imagem diferenciada. E eu, desde 84, não me enxergava naquelas manifestações. Elas
pareciam implicitamente me dizer: 'Você não é daqui. Este mundo não é o seu'. O meu
mundo era o mundo de outras referências icônicas, sígnicas, eh... estéticas, né, discursivas.
Então no plano desse simbolismo... no plano dos... arranjos epistemológicos e curriculares,
por que há toda uma valorização de referências que dialogam com o tipo de experiência que
a maioria negra não teve. Então, por exemplo, você tem na formação jurídica um peso
muito grande no alemão. Ainda que você não leia o texto em alemão, você lê textos que se
remetem o tempo todo à Alemanha, a expressões como volksgeist, geisteswissenschaften,
né, várias referências que remontam a uma memória da filosofia moderna alemã, em todas
as suas matizes, até nos vieses mais à esquerda, com por exemplo Marx muitas vezes, ou
Engels, são citados. E isso óbvio que, né, se reflete. Assim como eu imagino que esses
estudantes brancos se deparassem com trechos em iorubá, ainda que de expressões pontuais
e não totalmente articuladas em termos textuais, iam achar estranho e se desidentificar.

Essa interpretação é produto, sem sombra de dúvida, de uma vivência pessoal,


acadêmica e política narrada pelo docente em sua entrevista, sendo tão internamente coerente
quanto a do professor Miguel, na medida em que há uma continuidade cristalina entre a
narrativa da trajetória, a sua autopercepção e a sua opinião sobre a desigualdade. Nos demais
entrevistados, não há uma ideia-força que organiza toda a entrevista de maneira tão límpida.
Pelo contrário, essas ideias aparentemente opostas constam, por vezes misturadas, em suas
avaliações.
Compreendido esse amplo arranjo de percepções, valorizando as suas peculiaridades
sem perder vigor analítico, é possível perceber como a desigualdade racial está longe de
configurar um ponto pacífico na percepção dos docentes. Ela é vista de maneira
multifacetada, articulada com outros marcadores e desigualdades, e sobretudo, mediada pelo
lugar onde o docente se enxerga neste processo.
O uso de exemplos por uns, enquanto outros apresentam contrafactuais, é uma
demonstração de como, mais do que um fenômeno objetivo, o racismo, embora percebido por
quase todos, dificilmente é reconhecido uniformemente, do ponto de vista de seu formato.
Não é um contorno definido contra a luz, e sim uma sombra bruxuleante. Mais que isso:
percebe-se que essas visões são mediadas por tanto por vivências ou vieses inconscientes,
quanto por opções políticas manifestas.
107

4.6 “VOCÊ TEM UMA CULTURA DE MACHISTA QUE REDUZ A MULHER”:


VISÕES SOBRE DESIGUALDADE, PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO DE
GÊNERO

Do ponto de vista do gênero, a discussão produziu um leque diferente de posições.


Embora o reconhecimento da desiguadade de gênero também seja majoritário, o pólo que
percebe ela como menor é bem mais numeroso e diverso. Não é para menos: bem marcado no
discurso das mulheres, o assunto assumiu outra dimensão no discurso dos homens. Talvez,
vale recordar, a identidade do pesquisador, um homem negro, tenha lhes tensionado menos do
que no tema da raça; também, o fato de ser um assunto lateral na entrevista, frente a questão
racial, pode ter feito esse ser um escape para a discussão sobre branquitude e negritude.
Objetivamente, isso significou uma atitude mais demarcada de apontar a
desigualdade de gênero como de uma relevância menor, uma percepção compartilhada, em
grande parte, pelo mesmo núcleo que o fez com a desigualdade racial, composto por homens
brancos com discurso individual-meritocrata sobre suas carreiras.
Ainda assim, um elemento importante surge aqui e que precisa, desde já, ser
elucidado: um tom elogioso quase generalizado em relação às mulheres. Perguntados sobre a
diferença entre estudantes homens e mulheres, a maioria dos docentes - sobretudo os que
percebem a desigualdade de gênero como um fato menor - recorreram a fórmulas elogiosas.

São mais atentas, mais dedicadas, mais cuidadosas. (Miguel)

Muita diferença. As mulheres são mais... Dedicadas. Tem melhores notas, tem melhores
resultados. É... Os alunos normalmente são... Tem menores notas. É... O aluno é mais
disperso, as alunas são mais focadas. É... Mesmo corrigindo a prova sem sequer ver o nome
você percebe que os resultados são melhores. Elas normalmente são mais dedicadas e
focam mais no objetivo, né, tem uma possibilidade... uma capacidade de foco maior do que
os homens. Eu acho. (Orlando)

Acho que o amadurecimento das <ênfase> alunas é maior do que dos <ênfase> alunos. As
alunas amadurecem... Mas acho que isso é questão de homem e mulher, a mulher consegue
amadurecer mais do que os homens. Aqui você tem ex-alunos que até hoje brincam comigo
e tal, e alunas que já estão com ar de seriedade. (Luís)

O professor Miguel, além disso, novamente repete sua argumentação sobre divisões
perigosas, colocando que potencializar esse tipo de diferenciação só prejudica as pessoas,
produzindo um importante diálogo com Thereza. Esta, por sua vez, apresenta uma estratégia
para superar obstáculos relacionados ao preconceito de gênero em questões de trabalho: se
108

portar como "assexuada", buscando não valorizar as distinções identitárias entre ela e os
homens como uma forma de minorar desvantagens.
Novamente, e com mais força, uma estratégia discursiva foi a de ressaltar os avanços
que tem havido no sentido de mais mulheres ocuparem espaços no Direito. Isso vem a
contrastar muito com a opinião das mulheres entrevistadas que, não obstante também
reconheçam isso, na maior parte das vezes optam por ressaltar as dificuldades presentes.
Porém, no caso desse nexo argumentativo, o que vem no bojo em alguns casos é a
afirmação de que as mulheres se preocupam demais com isso. E mais, que essa preocupação
seria infundada.

Hoje nós temos um grupo de professores, no Telegram, né, que tem homens e mulheres, e a
maneira como elas se manifestam, e tal, são tratadas... Pelo menos até onde eu vi, de
maneira igual. Até a forma de carinho, de relação de afetivo e tal, não senti nenhuma
discriminação. Normalmente a mulher intelectual, ela fica as vezes até mais preocupada.
Outro dia uma professora vai fazer um congresso aí sobre mulheres no processo. Eu lhes
confesso que, embora... Ela vai convidar alguns homens pra falar nesse processo. <risada>
Eu acho que... Eu nunca observei que haja, o fato de ser mulher, estar num ambiente
essencialmente masculino, né, houvesse alguma discriminação, algum... Nunca observei.
Talvez também, por a convivência não ser tão grande no dia a dia, e tal... (Luís)

Então essas coisas existem, eu tenho a impressão que elas tem um trauma nisso aí, mas…
vamos convencê-las que não há nada disso, que elas podem se felizes. Eu mesmo já… Hoje
em dia eu quando faço alguma brincadeira dessa discriminação contra mulher, que eu já, eu
digo aos rapazes “Olhe, você não faça isso na sala não que vocês vão apanhar, eu ainda
posso por que sou um professorsauro, sou coisa velha, mas você não faça não. (Ives)

Não soa mera coincidência esse argumento ser avocado por docentes mais velhos -
inclusive a docente mulher (Thereza). A percepção sobre como a sociedade em geral, e o
Direito em particular, passou por um processo de abertura para o protagonismo feminino
enseja uma afirmativa de que a preocupação presente com alguma forma de desigualdade ou
discriminação de gênero, ainda que ela existe, é muito mais uma preocupação exagerada das
mulheres que um fato. Cabe ressaltar que, como já salientado antes, a professora Thereza, ao
usar esse argumento, faz questão de demarcar algo que a diferencia dos seus contemporâneos
homens:

Então, você não pode facilitar, mas isso existe, não é uma coisa declarada. Por que você
tem uma cultura de machista que reduz a mulher. Então tipo assim, bateu o carro, é mulher
entendeu? Entrou errado porque é mulher <ininteligível> então, ele pode porque é homem,
então tem isso ainda aí. É difícil você desfazer isso, vai demorar muito ainda.

Outro tipo de argumento relevante é o que aponta a própria vontade das mulheres
como um fator de exclusão. Para esse nexo argumentativo, diante das possibilidades postas
109

pela sociedade contemporânea, se as mulheres estão fora de algum espaço, parte tem a ver
com suas decisões. O professor Eduardo faz um comentário denso sobre o fator da auto-
exclusão:

Em relação às mulheres, uma cultura ainda que a mulher não tinha espaço para certas
profissões... Né, talvez policial, juiz, que vai pro interior, vai pra um bucado de bocada,
lugar longe, a menina talvez não... 'Ah, minha filha, vai ser médica'. Por que também seria
interessante fazer essas pesquisas em outras profissões, que também tem status, como
médico, por exemplo. Por que o que eu observo é que tem muitas médicas. Na Justiça do
Trabalho, por exemplo, tinha <tom mais alto, agudo> muitas juízas, salvo engano tinha
mais… Mas por que? Por que elas se identificam mais... os tribunais do trabalho na época
tinham varas em lugares maiores, não era interiorizado como era a justiça estadual. Então a
juíza do trabalho não ia lá pra Chorrochó, ela vai pra Senhor do Bonfim, ela vai pra
Juazeiro, por que são centros melhores, entendeu? Enfim, isso seria interessante, também,
uma pesquisa séria teria que levar em conta o móvel de todas essas pessoas, entendeu, que
não necessariamente tenha sido falta de chance. Talvez identificação com a profissão, né...
Ce dizer assim, Policial, por exemplo, é óbvio que você vai ter muito mais homem que
mulher, numa profissão que envolve força, envolve virilidade, enfim... Então, isso tudo tem
que ser analisado, e as vezes eu acho que o discurso fica muito simplório, como o discurso
de preconceito. Entendeu? Eu acho assim, nós já estamos há 40 anos da Constituição e as
pessoas ainda continuam pensando como se a gente estivesse na época da ditadura... Ou
tem gente que pensa como se a gente tivesse na época da Inquisição... Tem gente que pensa
como se a gente estivesse nos anos 30 em relação a mulher...

Assim, a sociedade teria tido avanços que não se concretizam por conta das decisões
das próprias mulheres. O docente percebe, também, como essas decisões são mediadas, por
exemplo, pela família ("minha filha vai ser médica"), por fatores biológicos ("profissão que
envolve força, envolve virilidade"), culturais ("cultura ainda que a mulher não tinha espaço
para certas profissões"). Porém, para ele, é impensável desconsiderar como centrais os móveis
dos próprios indivíduos na tomada de decisão sobre suas carreiras. Para ele, "as cartas estão
na mesa" e a desigualdade se encontra denunciada e de certa maneira consensualmente
reconhecida na sociedade. O momento em que se encontra, por isso mesmo, é o de estimular
que as pessoas sigam seus rumos conscientes disso.
O uso de exemplos também é importante e marca uma transição entre esse
pensamento articulado sobre a diminuição das desigualdades, ou, em alguns casos, da
reversão da tendência masculina do campo do Direito, pelo menos, para um reconhecimento
mais material da desigualdade de gênero. O professor Eduardo, inclusive, dá um exemplo, ao
falar sobre outro tema, de sua atuação num caso de violência doméstica, exemplificando uma
violência de gênero no tempo presente, mesmo com "as cartas na mesa".
No caso de relevar os aspectos da desigualdade de gênero, há pelo menos um
interessante exemplo contrafactual, do docente Ives, acerca das vantagens de uma “moça
bonita” nas bancas, já referenciado anteriormente. Ele contrasta de maneira intensa com outro
110

relato, da professora Quitéria, também referenciado em outro trecho, sobre como foi
recomendada explicitamente a se "desarrumar" para ir para uma banca, pois, se estivesse
muito arrumada, teria avaliação negativa. Esse conflito de percepções demonstra como,
também, o mesmo tema é apreendido de maneiras quase que opostas pelos docentes, a partir
de vivências diferenciadas que tiveram.
As mulheres oferecem uma quantidade relevante de relatos acerca de suas próprias
vidas. Eles demonstram como o gênero ainda é um vetor de seleção importante no presente, e
também interage decisivamente com outras desigualdades. A professora Francisca dá um
exemplo do mundo acadêmico:

É, eu lembro de um episódio em que a gente se sentiu muito afetada assim, as estudantes lá.
Não na minha vida como docente, um episódio da minha vida como pós graduanda, que foi
um grande seminário internacional que foi feito na universidade e tinha uma grande
coincidência no seminário internacional, que era o fato de que todos os palestrantes eram
homens, inclusive os internacionais, e os professores da casa. Todas as mulheres, nossas
professoras, eram mediadoras da mesa, nenhuma delas era palestrante, embora todas
tivessem a mesma qualificação acadêmica que os homens colegas delas que iriam palestrar
ao lado dos palestrantes internacionais. E nós, estudantes mulheres, coincidentemente,
fomos sugestionadas a ajudar nas atividades de logística do evento né, buscar palestrante no
aeroporto, fazer coisa e tal... Então aquilo gerou pra gente uma discussão muito grande
enquanto grupo de mulheres, a gente se recusou a participar do seminário, a gente tentou
tematizar isso como um momento que ficou muito claro assim né, qual era o papel das
mulheres naquele espaço onde a gente foi colocada.

Não é estranho imaginar que os docentes, no caso, tenham atribuído tais tarefas às
meninas por considerarem-nas mais maduras, mais dedicadas, mais focadas… e justifiquem
sua presença na mesa por critérios individuais-meritocráticos! Esse exercício especulativo,
ainda que não possa estabelecer vínculos factuais, permite perceber uma continuidade e
coerência interna na argumentação dos docentes analisados anteriormente.
Este relato, também, abre as portas para uma discussão importante sobre a
segmentação de gênero dentro do próprio campo do Direito, assunto já tocado por Eduardo
ao apontar, corretamente, que a Justiça do Trabalho tem mais mulheres juízas que as demais,
embora não sejam maioria (CNJ, 2014). Quitéria fala sobre isso:

Por que a minha matéria só tem homem [...] Por que tem essa característica de… mundo
prático, mundo público, processo é muito mais prático que o direito material, que envolve
emoção, sentimento, e eu venho enfrentando essa situação, eh… desde a época da capoeira,
né, que minha mãe não queria que eu fizesse, que era coisa de menino, só tinha eu de
mulher. [...] Isso, por que ele é muito mais prático, não é tão emocional quanto o direito
material. Então isso é uma concepção, eu me lembro que eu escrevi isso bastante no
memorial do meu concurso, né, então como ele é uma disciplina mais pragmática, a maioria
das cadeiras é composta por homem.
111

Ela já enseja uma explicação cultural para esse fato, no que é seguida pela professora
Thereza, que elabora mais ainda, ao ser perguntada sobre diferenças entre estudantes homens
e mulheres:

Eu acho que sim, eu acho que a mulher, com raríssimas exceções, foi acostumada a
responder coisa que não exige muito raciocínio, com algumas exceções, né? Então por
exemplo se eu perguntar o conceito disso ela vai tirar dez, se eu perguntar 'porque isso é
isso?', ela vai ter dificuldade. Entendeu? Isso é uma formatação antiga, eu acho que isso
tem haver não sei com algumas coisas que a mulher tem mais exacerbado pela criação, pela
cultura… Então a mulher é criada como se não tivesse nada a ver com o homem né, até
hoje tem muitas situações, a mãe não deixa <ininteligível> porque vai virar homossexual
né, mulher tem que brincar de boneca. Tem que casar, ter filhos etc. É uma questão cultural,
mas tá mudando também, tem muita gente… hoje mesmo entreguei uma prova com uma
questão muito difícil que exige muito o raciocínio e umas duas meninas acertaram a
questão. Tô falando que a maioria errou. Dos alunos.

Instada a avaliar se a educação doméstica oferecida pela família impacta na educação


das mulheres, ela é assertiva:

Mas não tenha dúvida! Do estudo e de como compreende as coisas. Como compreende as
coisas, então compromete até muitas vezes o tipo de raciocínio da pessoa. Então há pessoas
que tem a capacidade de visualizar e fazer várias coisas ao mesmo tempo, há outras que não
tem. Então isso tem muito a ver com a maneira de educar, né?

Essa explicação quase culturalista para a segmentação de gênero no mundo


acadêmico articula de maneira mais complexa a mesma ideia de Eduardo, o de que os sujeitos
de gênero são guiados a preferir determinadas posições. Porém, na visão das mulheres citadas,
não se resume a uma preferência; esta se articula com uma distribuição desigual entre homens
e mulheres daquele "capital cultural" que Souza (2014) distingue como distribuído
desigualmente entre as classes. Desde a primeira infância até o mundo acadêmico, as
mulheres seriam, para elas, tangidas para funções subalternas e superar estes fatores exige
delas sacrifícios e esforços que não são exigidos dos homens.
Essa visão é partilhada, também, pelos homens. Alguns recorrem, com centralidade
ou não, a essa linha argumentativa. O caso já dado do professor Paulo se soma ao de
Cândido que, embora não tenha dado a centralidade à questão de gênero como deu à questão
racial ao longo da entrevista, foi provocado a falar sobre sua condição de homem negro no
mundo acadêmico, levando em conta a condição de homem, e posicionou-se com firmeza:

Sem dúvida. Há uma situação objetiva na sociedade brasileira, no que tange a


oportunidades e a performance, que beneficia, no âmbito da exclusão, os homens negros em
detrimento das mulheres negras para algumas atividades, dentre elas a docência. A
docência na Faculdade de Direito é uma docência preponderantemente masculina. Nós
112

chegamos a ter momentos em que tínhamos duas professoras apenas, no corpo docente.
Hoje, há um número bem maior, mas minoritário, amplamente minoritário, é uma
universidade, é uma faculdade ainda marcada pelo androcentrismo no processo de seleção.
[...] Então há sem dúvida uma espécie de, aspas, benefício, no contexto específico do
processo da Faculdade de Direito, por ser homem. Eu não sei se eu fosse uma mulher
negra... eu não sei se eu teria, mesmo tendo o mesmo desempenho, sido aprovado no
concurso. É difícil fazer essa avaliação, mas é plausível imaginar que eventualmente não.
Então sem dúvida há uma... eh... interferência favorável pela lógica da incidência do
machismo que não pode ser ignorada.

Os relatos da professora Felipa, já amplamente discutidos, exploram a vivência dessa


segmentação na vida adulta. É relevante notar que seus embates com colegas docentes e com
alunos, em experiências anteriores, trazem no centro do relato o fato dela não pertencer a uma
carreira de Estado tradicional - seguindo as estatísticas disponíveis, que apontam baixíssima
participação de mulheres negras nelas (CNJ, 2014; SILVA; SILVA, 2014).
No caso do embate com os colegas, o fato de seu oponente ser juiz foi central para
lhe conferir uma vantagem, do ponto de vista da interlocução com aquela comunidade jurídica
e acadêmica, que permitiu ser aprovado no concurso por decisão judicial e operar uma
perseguição que, em última instância, a levou a se demitir. No caso do embate com
estudantes, sua posição como docente foi posta a prova com uma frase emblemática: "Você
não é ninguém, porque você está me dando essa nota, você não é juíza, você não é promotora,
você não é delegada, quem é você?"
Assim, essa segmentação está implicada num fenômeno mais amplo de desvantagens
simbólicas e materiais das mulheres no mundo jurídico. Ela corrói o status conferido por fazer
parte desta seleta comunidade, se o membro em questão for uma mulher. Mesmo dentro de
um mesmo estrato de escolaridade e renda, dentro de uma mesma comunidade, o fato de ser
mulher, mediado pela negritude, implica num conjunto de desvantagens que não pode ser
desconsiderado.
A inclusão de mulheres no mundo do Direito não tem se dado sem fricções, produção
de novas desigualdades e segmentações, criando outros atritos e tensões que parecem centrais
para parte dos docentes entrevistados, enquanto para outros simplesmente não são dignas de
nota. Essas visões mais articuladas, em comparação com argumentações mais simplistas,
revelam a desigualdade de gênero também como um fenômeno multifacetado, percebido
amplamente mas de maneiras diferentes, tanto comparando homens com mulheres, como
também comparando dentro destes grupos. Há uma aguda percepção de que este é um embate
em curso, e as posições variam da assertiva de que as transformações que houveram já
bastam, ao argumento de que elas precisam ser apenas um primeiro passo na superação de um
113

quadro histórico que mudou, é verdade, mas ainda causa intenso sofrimento às mulheres que
conquistaram algum espaço.

* * *

Neste capítulo, abordou-se a autopercepção de raça e gênero dos docentes,


construindo a partir daí um quadro analítico sobre como enxergam as desigualdades de
maneira mais ampla.
Sobre os dois docentes negros, percebeu-se importantes aproximações, como a
vivência da discriminação racial, obstáculos oriundos desta e a necessidade de travar
estratégias antirracistas, inclusive com tomada de consciência sobre sua identidade racial, para
enfrentá-las. A cobrança exagerada, a solidão, o isolamento, a impotência são sentimentos
vividos e compartilhados. Mas também percebeu-se significativas diferenças, marcadas pelo
gênero, pela geração e pela regionalidade. Essas diferenças implicaram em estratégias
distintas de maior concessão, no caso de Felipa, e de enfrentamento, no caso de Cândido,
embora este defenda a importância de saber o momento de negociar e conceder. A ausência
da gramática do movimento negro na vivência da professora Felipa enquanto morava no
interior é uma chave fundamental, também, para compreender seus relatos, bem como a ideia
de que o Cândido já negociou o suficiente para adquirir uma posição que lhe garante conforto
pessoal e profissional para comprar embates. Sem dúvida nenhuma, porém, os relatos de
invisibilidade e violência verbal e simbólica são diferenciados crucialmente sobre a
perspectiva de gênero. Também há uma percepção positiva sobre a força necessária para
superar tais obstáculos, bem como uma sensação de, alguma forma, servir como um
referencial e um apoio para outros estudantes negros e negras, coisa que eles próprios não
tiveram.
No campo da branquitude, encontrou-se uma gama ampla de autopercepções,
variando da admissão crua de privilégios, até a negação veemente deles. Chamou a atenção a
maior sensibilidade das mulheres à questão racial, possivelmente por estar conectada com
suas próprias vivências de discriminação de gênero. Também é importante ressaltar a
presença de argumentos densos e críticos acerca da questão racial e das suas origens de classe,
compondo um mosaico variado de identidades brancas, como "não sou filho do imperador", o
"hômi branco", o "apenas um homem que tem que lutar pela vida" e a branquitude como
"sarna pra se coçar", dentre outros.
114

Sobre a questão de gênero, as mulheres oferecem um quadro amplo de referenciais


práticos e analíticos sobre suas vivências. Novamente, a vivência da discriminação e o uso de
estratégias para superá-las é uma marca. O preterimento, as diversas formas de silenciamento
e a cobrança exagerada são vivências comuns, embora as docentes se posicionem de maneira
diferente sobre isso. A necessidade de se impor se contrapõe com o medo e a dificuldade de
falar em público, e a necessidade de diluir a percepção dos outros sobre sua feminilidade
contrasta com a profunda consciência sobre o que significa sua identidade de gênero numa
sociedade machista. Ainda assim, a sensação de realização por ter conseguido, mesmo com
exigências superiores, alcançar posições de status é um lado positivo, bem como a sua
possibilidade de transmitir às estudantes elementos que contribuam na sua própria trajetória.
Na percepção das desigualdades, a autopercepção foi fundamental na construção das
posições. Embora seja verdade que um certo padrão tenha sido encontrado, de docentes
homens e brancos, adeptos do discurso individual-meritocrático, buscarem em geral minorar
na sua análise a questão da desigualdade racial e de gênero, enquanto mulheres e pessoas
negras tenham optado por valorizar essas desigualdades, há muito mais nuances do que essa
divisão pode insinuar.
Há contradições internas importantes no discurso de um conjunto de entrevistados, na
medida em que reconhecem a desigualdade como importante, por vezes reconhecendo seus
privilégios, mas valorizando mais a sua diminuição recente do que os problemas efetivos
encontrados. Há pouco discurso sobre a desigualdade racial e de gênero sem um "porém". Os
filigranas ficaram evidentes na medida em que há docentes brancos que praticamente
denunciam como seus privilégios põem em xeque seu próprio mérito, enquanto outros
preferem, ao invés disso, valorizar o mérito dos estudantes cotistas que superam adversidades.
O tratamento da desigualdade como se só tivesse um pólo de desvantagem - o dos negros ou
das mulheres - é uma constante, sugerindo que apesar disso, ninguém tira vantagem das
desigualdades.
Esse discurso fica posto em xeque pelos exemplos dados pelos sujeitos que vivem a
desigualdade. Embora também haja importantíssimas nuances entre estes, a sua narrativa traz
uma perspectiva de opções políticas e vieses pessoais no processo de reconhecer ou não as
desigualdades. Afinal, com tantos exemplos do cotidianos, espanta que alguém as ignore tão
completamente. O que justifica essa posição, se não dificuldade ou falta de disposição para
perceber as desigualdades e discriminações?
Esse contraste entre os grupos traz uma riqueza importante, mas o contraste interno
também chama a atenção. Os brancos, sobretudo homens, ao reconhecer as desigualdades
115

como centrais, demonstram dificuldade em articular ideias mais complexas e analíticas,


muitas vezes se colocando numa posição de pessoas que ainda precisam aprender - com uma
exceção que avança bastante nestas questões, uma mulher branca. Entre as mulheres há um
discurso mais articulado, principalmente na questão de gênero, apontando leituras que trazem
elementos como educação doméstica e cultura como fatores - no que são parcialmente
acompanhadas inclusive por um dos homens brancos que tenta com esse argumento minorar a
importância da desigualdade de gênero. O docente negro consegue fazer uma exposição muito
detalhada e articulada sobre a desigualdade racial, enquanto a docente negra se vale muito dos
exemplos de suas vivências para falar sobre o assunto.
Este conjunto de informações permite avançar para o tema do próximo capítulo.
Levanta-se a questão, a partir da autopercepção dos docentes e das suas visões sobre a
desigualdade, de como lidam com a inclusão promovida a partir das cotas. Afinal, este
processo trouxe para dentro da sua comunidade acadêmica, em termos muito práticos, as
questões e os atritos mencionados na discussão feita neste capítulo.
116

5 “A PRIMEIRA TURMA DE COTISTAS QUE ELE PEGOU, ELE


REPROVOU”: PERCEPÇÕES E COMPORTAMENTOS ACERCA DAS
AÇÕES AFIRMATIVAS E SEUS BENEFICIÁRIOS.

Este capítulo visa tratar sobre as interações que os docentes estabelecem com o
conjunto de ações afirmativas implementadas no âmbito da educação, focado no caso das
cotas na graduação, mas tratando também, ainda que lateralmente, a discussão sobre cotas na
pós-graduação e nos concursos públicos federais, bem como com os seus beneficiários.
Sobretudo, perceber os padrões de colaboração ou resistência ao processo inclusivo
empreendido a partir das cotas, bem como posicionamentos sobre o papel do docente neste
contexto.
Esta análise interage ativamente com as perspectivas construídas a partir dos discursos
dos docentes acerca da sua própria trajetória, sua autopercepção racial e de gênero e suas
visões sobre as desigualdades. Levando estes temas em conta, será possível enriquecer a
análise de seus discursos acerca das ações afirmativas, seus beneficiários e a sua prática frente
a estas questões.
Deve-se oferecer um mínimo quadro de referências acerca do marco normativo
estabelecido para as ações afirmativas na época das entrevistas, para que se compreenda a
discussão deste capítulo.
No âmbito da graduação, a normativa vigente à época era a Lei 12.711/2012, chamada
de Lei de Cotas no Ensino Superior, que, em 2014, já oferecia cerca de 40% do total de vagas
na rede federal de ensino para cotistas, com cerca metade destas para pobres, negros e/ou
indígenas (Daflon, Feres Júnior e Moratelli, 2014). Ela foi precedida, no caso da UFBA, que,
em 2004, instituiu um regime de cotas para escola pública, com recorte de raça1, num modelo
similar ao que seria incorporado na Lei 12.711, que acrescentaria a isto um critério
econômico.2

1
A resolução 01/2004, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão estabelece reserva de 45% das vagas de
cada curso. Destas, 43% são reservadas para estudantes que tenham cursado o ensino médio e uma série do
ensino fundamental na escola pública, com um recorte de 85% destas vagas para pretos e pardos, podendo,
caso não sejam preenchidas, ser ocupadas por estudantes de escolas particulares autodeclarados
pretos/pardos; e 2% reservadas para autodeclarados indiodescendentes, que cursaram o Ensino Fundamental
e Médio em escola pública. Além disso, são criadas 2 vagas extra para índios aldeados ou quilombolas.
2
A Lei 12.711 estabelece cotas de 50% para candidatos que cursaram o ensino médio na escola pública. Dentro
deste percentual, estabelece-se 50% de reserva para estudantes com renda familiar abaixo de 1,5 salário
mínimo e um recorte para pretos, pardos, indígenas e deficientes, na proporção da unidade da Federação da
universidade conforme o censo do IBGE.
117

Do ponto de vista da pós-graduação, quando das entrevistas ainda não vigorava


resolução do Conselho Acadêmico de Ensino, que disciplina a reserva de 20% das vagas na
pós-graduação para negros e a criação de vagas extras para pessoas com deficiência,
indígenas e transexuais. Havia, na FDUFBA, uma experiência de cotas para negros e
indígenas na pós-graduação, como indicado pelo edital do processo seletivo de 2016, que no
Artigo 1o, parágrafo 3o, estabelecia que "Sempre que o orientador possuir 3 ou mais vagas no
total de vagas para o mestrado do programa, uma delas deverá ser disputada apenas entre os
candidatos que se declararem como negros ou indígenas".
Já no âmbito dos concursos públicos, a política referenciada é estabelecida na Lei
12.990/2014, que estabelece a reserva de 20% das vagas nos concursos federais para
candidatos autodeclarados negros. Esta política atinge tanto os concursos docentes quanto os
concursos para carreiras jurídicas de Estado, que muito interessam a este trabalho.
É nestes marcos que se estabelece a análise dos dados coletados, permitindo melhor
entendimento dos argumentos construídos ao longo deste capítulo.

5.1 “ESSA FACULDADE ERA TODA BRANCA E PARECIA UM UNIVERSO


PARALELO”: AS OPINIÕES DOS DOCENTES SOBRE AS AÇÕES
AFIRMATIVAS E SEUS EFEITOS.

Acerca das percepções sobre as ações afirmativas na universidade, a primeira questão


a ser apresentada é que muitos docentes entraram neste assunto por conta própria, sem terem
sido especificamente provocados para tal, o que ocorria apenas no bloco final das entrevistas.
Ou seja, falaram sobre as ações afirmativas ainda nas perguntas que tratavam sobre sua
trajetória pessoal e profissional, notadamente nas questões acerca da comunidade
universitária.
Como coloca Carvalho (2005), a discussão sobre as cotas na graduação colocou em
xeque boa parte dos pressupostos epistemológicos e do pensamento acadêmico sobre o Brasil
e a própria universidade. Ela abre a possibilidade de tirar da marginalidade a questão do
confinamento racial da academia brasileira e de provocar uma reflexão dos docentes brancos
sobre a sua condição racial, bem como a da comunidade acadêmica, como ademais os negros
já são muitas vezes obrigados a fazer cotidianamente.
118

É nesses marcos que um conjunto de docentes levanta de maneira direta ou indireta a


questão das ações afirmativas e seus resultados antes de serem especificamente perguntados
sobre isso, sobretudo em dois momentos: quando questionados sobre a maior virtude e o
maior defeito da universidade (B.2, P.1), sobre a diferença entre estudantes do diurno e do
noturno (B.2, P.16) sobre as diferenças entre os estudantes de sua época e os atuais (B.2,
P.18).
Essas menções preliminares são, em geral, positivas. É o caso da professora
Francisca, que diz

Eu acho que a principal virtude da universidade hoje é essa diversidade que a gente
encontra, né, entre, eh, os estudantes que hoje tem acesso a universidade, a pluralidade que
isso traz pra universidade, né, eu costumo dizer que eu me formei aqui e que eu voltei pra
ser professora, mas que eu voltei pra um lugar completamente diferente, né, então embora
eu tenha vivenciado a abertura do processo de cotas na universidade né, que durante a
minha graduação, eh, ver os frutos desse processo é uma coisa muito transformadora pra
universidade, né, então eh, ver como diversificou, né, os estudantes e como isso tem sido
um espaço rico, né, de pessoas diferentes, ideias diferentes, demandas diferentes né, então
acho que isso hoje tem um potencial muito grande né, de construção de conhecimento, de
diálogo com a juventude, né, de pensar muita coisa. Mas tem muito a ser feito ainda, né,
então a gente tem ainda muitos questionamentos, né, acho que a partir da faculdade de
direito mesmo, a gente tem especificamente muitos problemas em relação as nossas
perspectivas curriculares, né, ao tipo de metodologia que a gente emprega, algumas visões
ainda muito conservadoras, do que seja direito, do que seja educação, né, e do ponto de
vista material né, a nossa condição orçamentária, né, que tem muito a fazer e muita
restrição em relação a condições materiais de fazer, né. (Francisca)

Assim, a docente coloca não apenas a diversidade como um valor que representa a
maior virtude da Faculdade de Direito e da Universidade, como também afirma que isso
implica no maior defeito ser, justamente, a dificuldade da universidade se ajustar,
epistemológica e estruturalmente, a essa nova realidade. Esta crítica encontra-se localizada
num campo político e acadêmico bem demarcado, que se pode exemplificar com Carvalho
(2009) e Passos (2015) e sua proposta de um programa que exija consequências à política de
cotas, incluindo aí reformas curriculares, políticas para a pós-graduação e para a docência; ou
ainda com a interpretação de Pinheiro (2010), para a qual a entrada de novos sujeitos na
universidade constitui uma insurgência epistêmica à qual as instituições universitárias não
acompanham.
O professor Luís, também, ao falar sobre a principal virtude e defeito da FD, faz um
longo preâmbulo acerca do histórico de isolamento da Faculdade em relação à sociedade e ao
resto da universidade, por ter um relacionamento muito estreito com o restrito círculo de
poder da cidade de Salvador. E na sequência apresenta não só as cotas, como também a
integração aos Bacharelados Interdisciplinares, como passos para a superação desta tradição
119

isolacionista e fechada, que ainda perdura com práticas antiquadas e autoritárias de exercício
de poder no âmbito acadêmico e pedagógico, corroborando de maneira moderada o
argumento da docente Francisca, num de seus pontos.
O professor Cândido, por outro lado, empreende uma crítica mais radical à
universidade, apresentando incisivamente, inclusive, limites da política de cotas. O principal
problema, para ele se constitui no "elitismo que se traduz tanto numa concepção
epistemológica, monocultural, eurocêntrica, liberal, quanto numa atitude organizacional que
dá vazão a essa mentalidade". Isso implica que nem mesmos as cotas, por serem "mal
gerenciadas, controladas, contidas" foram capazes de se realizar na sua potencialidade.
Por outro lado, para ele, a maior virtude

[...] é a existência, dentro da universidade, de bolsões de resistência. [...] a persistência de


indivíduos, de grupos, de movimentos, que insistem em pensar uma universidade
democrática, [...] que eventualmente consegue impor à universidade pautas progressistas e
promover deslocamentos. Nem sempre deslocamentos que se consolidem na plenitude,
como é o caso das cotas, mas significativos porque mostra que... ah... desde algum tempo
conseguiu-se furar o bloqueio do controle total da universidade e por essas manifestações
refratárias a esse modelo hegemônico, se respira um pouco, se oxigena um pouco a
universidade. (Cândido)

Essa interpretação, incluindo as políticas de cotas na crítica conduzida à universidade,


diferencia-se substancialmente das demais posições, ao demarcar mais nitidamente os atritos e
conflitos subjacentes ao processo de implantação das ações afirmativas. A opção por
descrever "bolsões de resistência" implica necessariamente em deslocar o centro da avaliação,
mais do que a ampliação e diversificação da base de recrutamento da universidade pública
desde os anos 2000, amplamente documentada na literatura (SANTOS, 2013; DAFLON;
FERES JÚNIOR; MORATELLI, 2014; IPEA, 2011), para as disputas epistemológicas que
daí resultam e que, em sua visão, não tem sido tão transformadoras.
Quando provocados, de uma maneira geral, as percepções positivas foram majoritárias
entre os entrevistados, repetindo tanto pesquisas de opinião (QUEIROZ; SANTOS, 2006)
quanto os dados exploratórios obtidos na preparação para o campo, que indicaram apoio de
mais de 90% dos estudantes do curso diurno de Direito às políticas de cotas no ensino
superior. As posições já elencadas permitem categorizar dois nexos argumentativos diferentes
neste campo de percepções positivas, sem prejuízo de analisar, o que será feito, possíveis
ligações entre certas opiniões positivas e atitudes negativas em relação às políticas
afirmativas.
120

O primeiro ângulo é uma avaliação positiva de tipo elogiosa. Ela é majoritária e


implica numa aprovação da política de cotas, com pouca ou nenhuma ressalva, sobretudo
pelos seus impactos na diversidade da composição do corpo discente. Ela está associada à
descrição das políticas afirmativas com o uso de expressões e frases como “mudar o perfil do
estudante é você mudar tudo na universidade” (Francisca), “grande mudança” (Luís), “mudar
a cara da universidade” (Orlando), “ingressos de pessoas que em tese jamais teriam acesso a
universidade” (Thereza), “débito histórico que precisa mesmo ser corrigido [...] A faculdade
tá bem mais colorida” (Quitéria), que compõem uma ampla gama de avaliações positivas,
centradas sobretudo na democratização do acesso à universidade.
Este tipo de elogio se associava, em alguns poucos casos, a uma avaliação sobre a
menor efetividade da política afirmativa no curso de Direito, por conta da alta
competitividade dos estudantes de colégios militares. Como aponta o professor Orlando,

As cotas aqui não tem a mesma, mesma efetividade que em outras unidades. Por que em dir... é...
Os alunos das escolas oficiais militares ingressam pelas cotas. Só que são alunos que tiveram
acesso a um ensino de qualidade, ensino... Normalmente são alunos de classe média, de classe
média alta, salvo raríssimas exceções, então o aluno das escolas oficiais tem um perfil muito
parecido com o aluno das escolas particulares. [...] essa mudança da realidade não foi tão sentida
quanto em outras unidades da universidade. Penso eu. É... Quando eu fiz vestibular, o Colégio
Militar de Salvador aprovava um aluno. De cem. Hoje o Militar de Salvador aprova 35, 38.
(Orlando)

Não há dados disponíveis sobre a origem escolar específica dos ingressantes, mas esta
ressalva, embora possa ser verdadeira, não elimina uma mudança importante no perfil dos
estudantes. Como reconhecem, aliás, os que tecem esta própria fala, e também a literatura
sobre o tema, que apontam um crescimento do número de estudantes negros e/ou oriundos
dos estratos econômicos inferiores na sociedade, no curso de direito, mesmo antes da inserção
das cotas com critério econômico em 2012 (QUEIROZ; SANTOS, 2006; SANTOS, 2013).
Há, em outro aspecto, um posicionamento favorável, mas com uma carga crítica, à
conformação das políticas afirmativas. Esse posicionamento de crítica positiva advém,
sobretudo, do docente e da docente negras. O centro desse argumento reside na necessidade
fundamental da articulação das políticas de cotas com um conjunto de estratégias que
signifiquem uma revisão epistemológica radical da universidade e uma mudança significativa
nas instituições públicas, bem como pontuações acerca do funcionamento das ações
afirmativas. Os professores Cândido e Felipa, por exemplo, dizem que

A universidade, se quer ser consequente com a política de diversificação, não pode manter-
se epistemologicamente eurocentrica, androcentrica, racista, monocultural. Parece que há
121

um desafio fundamental, e esse é o pólo que aglutina a nossa mobilização hoje discutindo a
adoção de ações afirmativas na pós-graduação, né? Se você não dá o passo de oxigenar
pesquisa, formação de docentes, etc., pra uma outra perspectiva de universidade, você vai
aprofundar essa lógica, você bota corpos negros, mas deixa do lado de fora o legado
epistemológico, civilizatório, que esse sujeito tem, e os converte, no mais das vezes, às
expectativas liberais e tradicionais que a universidade sempre acolheu. Ou seja, você
convida um excluído a se incluir num modelo que é, em si, perverso e equivocado, eh?
Então parece que esse é um desafio crucial que hoje as ações afirmativas nos apresentam.
(Cândido)

Agora com relação aos indígenas e aos quilombolas, eu acho que é bem restrito aí, viu.
Precisa ter mais, digamos, precisa repensar esses critérios, porque inclusive era o que eu
tava discutindo na reunião dessa semana, tentando discutir lá com o povo, é que a UFBA
por exemplo adota o critério de autoidentificação para indígenas e quilombolas numa
perspectiva que pra mim contraria o que determina a Constituição e a Convenção 69. Quer
dizer, a auto-atribuição é definida pelo critério do pertencimento e da consciência
individual, né, e a UFBA parece que tem solicitado, eh... trabalha ainda com as categorias,
por exemplo, com relação aos povo indígenas, as categorias do Estatuto do Índio, né: o
índio integrado, o índio aldeado, enfim. Essas categorias não existem mais, ou melhor não
deveriam mais ser manejadas num contexto de Convenção 69, da Constituição de 88.
(Felipa)

Este tipo de argumento exige (ou, em alguns casos, reconhece) a necessidade tanto de
ajustes na atual política de cotas, ou ainda políticas complementares, para ensejar uma
mudança mais profunda na educação superior e na própria sociedade brasileira. É diferente,
portanto, do tipo de argumento que é crítico das cotas, bem como daquele que não se opõe às
cotas, mas tem uma postura concessiva, aprovando-as apesar de uma série de críticas
negativas.
Esses posicionamentos, o concessivo e o crítico, vem de maneira mais lateral e
açodada. Eles estão relacionados a respostas mais curtas às perguntas mais diretas sobre as
cotas e à repetição de argumentos-chave ao longo da entrevista. É o caso do professor Miguel,
o único a confrontar abertamente e sem concessões a política de ações afirmativas. Ele, já
tendo recorrido a argumentos individual-meritocráticos ao falar sobre sua própria trajetória,
ainda aponta diversas vezes ao longo da entrevista um apreço pela alta qualidade do ensino da
Faculdade de Direito que, para ele, tem se perdido com um crescente processo de politização
do ambiente acadêmico.
Ele relaciona, como outros também fazem positiva ou negativamente, as cotas com
esta politização. Diz ele preocupar-se muito com um certo “Senso de redenção política ou
gratidão política dos alunos cotistas” (Miguel), que implicaria num declínio do nível técnico
dos alunos, que passariam a se preocupar mais com posições políticas, “inclusive eleitorais”,
com a defesa de determinados partidos ou governos por conta de benefícios dados através de
políticas deste tipo. Seriam, assim, menos competitivos e menos focados.
122

Por outro lado, esse tipo de argumento também se manifesta na relativização ou


negação dos resultados da política de cotas. Este mesmo entrevistado apresenta não ter
percebido mudança alguma do ponto de vista da composição do corpo estudantil da
universidade, nem do ponto de vista racial nem de nenhum outro. Foca sua análise na questão
da politização e afirma que fazer diferenciações de raça, gênero ou classe é “venenoso” e
serve apenas para criar divisões perigosas.
Aqui, cabe ressaltar, que ressurge um elemento importante, que é o uso da área de
atuação como justificativa para posições políticas. Afirma o professor Miguel que, ao
exprimir essa opinião, está apenas fazendo jus à melhor tradição do Direito Civil, área de
atuação e a qual leciona na universidade, sendo mais provável e justificada este tipo de
diferenciação, de raça, classe ou cor, é mais afeita aos docentes da área de Teoria do Direito
ou Direito Constitucional. Embora caiba registrar que, de fato, os docentes destas áreas
entrevistados tenham expressado opiniões tal qual ele afirmou (o que talvez signifique ele
estivesse direcionando sua fala a algum docente específico), a outra entrevistada da área de
Direito Civil expressa posicionamentos divergentes do dele.
Também é importante uma breve digressão, a este ponto, acerca da questão do curso
noturno. Apenas Miguel dá uma consequência negativa a uma impressão generalizada de que
há maiores dificuldades para os estudantes do curso noturno. Na sua avaliação, isso está
ligado diretamente ao fato de serem estudantes que trabalham durante o dia, e tem, em sala de
aula, uma postura mais “cansada” e menos “atenta” e isso enseja a sua contrariedade com a
criação do curso noturno, dizendo explicitamente “Se fosse por mim, não teríamos criado o
curso noturno”, haja visto que o curso de direito exige uma carga de dedicação que ele relatou
ter tido em sua trajetória e não vê nos estudantes do noturno. Cabe recordar que o curso
noturno abarca quase metade dos estudantes da Faculdade de Direito, média superior à da
universidade, na qual os estudantes do turno noturno somam pouco mais de um terço dos
estudantes (UFBA, 2014), tendo sido importante vetor de inclusão e expansão desde o
REUNI.
Entre estes pólos antagônicos, há o tipo de argumento que pode-se chamar de
concessivo. Ele se configura pela aprovação às cotas, mas com ressalvas ou críticas que
denotam uma mudança de atitude frente às políticas afirmativas. O exemplo mais expressivo é
dado pelo professor Ives, que apresentou avaliação positiva das cotas, porém, ao falar da
relação entre mérito e justiça social, explicita que
123

Eu mesmo quando veio esse negócio de cotas, até mesmo o pessoal que é da área
corporativa eu dizia isso. É preciso… agora é tão grande que é preciso fazer um esforço. As
vezes num determinado momento é preciso… eu diria como, os que foram formados e
ascenderam por esse processo, tem que passar a ter novas gerações fazendo entender isso. É
por esse caminho que deveria vir a meritocracia, entendeu? [...] É preciso compreender que
isso foi um primeiro momento. Em seguida, a meritocracia que vai ter que vir, entendeu?
Agora isso é um… isso é um programa… de… décadas. De gerações. Entendeu? Que os
países que se desenvolveram todos usaram. (Ives)

Mais adiante, ele também diz que “Ce faria a cota só pra o pessoal da escola pública,
que era minha opinião, eh… que seria o melhor” e, ao ser questionado sobre se isso queria
dizer que havia uma mudança de posição, explicou bem pausadamente:

Rapaz… não sei. É que eu não consigo… Encontrar um argumento que enfrente a estatura
moral do argumento deles. Eu não posso deixar de reconhecer que isso existe. Entendeu? Ou
seja… Eu acho que devia ser só escola pública, mas os negros são historicamente
inferiorizados, sempre foram… de fato, é isso. Como corrigir isso? Não tem jeito. Não tem
não. Não tem jeito.

É desta forma que se portam alguns sujeitos, aprovando o resultado das políticas
afirmativas, demarcando, porém, a sua posição original de contrariedade ao critério racial, às
cotas em geral ou a algum ponto específico. Assim como a posição positiva crítica, algumas
dessas opiniões são sugestões de mudanças nas políticas, mas sempre no sentido de
transformá-las cada vez mais em políticas universalistas, descaracterizando, portanto, um
apoio à política afirmativa como meio fundamental de superação da desigualdade social e
racial e de transformação do meio universitário ou jurídico.
Mais diretamente, o docente Eduardo apresenta uma preocupação explícita com as
repercussões no “nível de aprendizado”. Avalia como positivo o multiculturalismo e a
interdisciplinaridade, ofertados pelas cotas e pelo BI, afirma que “a faculdade ficou mais
democrática fruto disso” e que “as cartas agora estão na mesa”, o que seria um passo positivo
na superação da discriminação racial, e reafirma que não se trata de um estudante “menos
capacitado” ou sem inteligência, mas com menos bagagem. Ele fala explicitamente sobre
como essa é, também, uma preocupação de outros docentes, fazendo uma análise detalhada:

Então eu tenho alunos que muitas vezes eu pego, isso aí você pode perguntar a outros
professores que vão lhe dizer, que mal sabem escrever, que tem deficiências graves em
língua portuguesa, né, como é que eu vou tratar esse aluno? Bom, ele chegou até ali... Eu
não posso chegar pra ele e tratá-lo de uma forma que desempolgue ele a continuar, isso é...
e aí é um dilema, porque eu tenho que ao mesmo tempo dizer ‘olha, isso aqui você precisa
melhorar, você tá com problema de pontuação, de concordância, né, de concatenação de
ideias, seu texto ta muito prolixo, muito misturado, você não é objetivo…’ e ao mesmo
tempo dizer, olha garoto, vá em frente, corra atrás.. você tá no caminho, não desista.
‘Tendeu? Então, naturalmente, quando você aumentou a base, né, diversificou... E no
ensino superior aconteceu muito isso nas federais, ce criou uma série de... Foi bom, você
124

trouxe gente que não teria essa oportunidade, mas outros problemas vieram. E eu não
percebo a faculdade querer lidar com isso, é esse que é o problema. Então, esse aluno que
tem essa deficiência ai, o que que a faculdade ta fazendo pra resolver o problema dele? Se
ele tá ali no quinto ano de.. no quinto semestre de direito com problema de redação, será
que não teria que ter também uma disciplina pra corrigir isso? Aquela deficiência que ele
trouxe... né, isso não é novo, isso sempre existiu, repito, na minha época de faculdade eu
tinha colegas que iam mal... antes de ter cota, de ter BI... sempre teve. Não é uma questão
porque agora é assim, né, só que é... hoje é mais, hoje é mais... muitos professores que eu
converso percebem isso. (Eduardo)

Estas três posições são importantes, pois é a partir dessa percepção que o docente
começa a construir a sua interação com cotistas, sobretudo no caso daqueles que lecionam
desde antes as cotas. Como se percebe no caso do professor Eduardo, ele já indica
expressamente como essa percepção lhe inspira preocupações sérias com a sua posição
enquanto docente.
Acerca das posições negativas, há importantes nexos com a tipologia apresentada por
Almeida Filho et al. (2005), com os registros de debate público sobre o tema das cotas tanto
na UFBA como no geral (SANTOS, 2012a; CAMPOS, 2008). A posição negativa se encaixa
mais abertamente num misto do que Almeida Filho chama de crítica programática e boicote,
com a apresentação franca e direta da discordância acerca dos efeitos da política, colocando-a
em segundo plano, atacando o seu mérito ou sua eficácia. Um argumento que aponta o
declínio do nível técnico dos estudantes, menos competitivos e focados, e ao mesmo tempo
nega que tenha havido mudanças na composição do corpo estudantil, não há dúvida de que
isso implica numa negativa explícita a qualquer mérito advindo das cotas, demarcando com
aqueles que apontam deficiências acadêmicas nos cotistas como um preço a se pagar por uma
justa política de reparação que de fato democratizou a universidade, num argumento
concessivo.
Esse tipo de postura negativa é fartamente documentada na literatura, e na UFBA em
específico, são argumentos que circularam entre os docentes, como demonstrado por Queiroz
e Santos (2012) no próprio processo de aprovação das cotas, embora não se expresse
abertamente nos espaços institucionais de decisão; neles, a passividade, chamada por Almeida
Filho de sabotagem ou resistência, é mais frequente, como aponta Pinheiro (2010), para a qual
a indisposição a assumir as responsabilidades funcionais pela política afirmativa faz os
docentes não se proporem a colaborar ativamente com o processo de inclusão, no caso, no que
tange ao enfrentamento da discriminação explícita dentro da universidade, como ademais se
discutirá neste trabalho. Levanta-se uma interessante questão, portanto, de como os
posicionamentos negativos convertem-se em resistência passiva e não-declarada.
125

Por isso, destacam-se os argumentos positivos de tipo crítico põem, de maneira mais
evidente, um conjunto de balanços e críticas acerca deste processo, inclusive com respostas
mais longas e elaboradas, que nitidamente não tem relação com essas mudanças de opinião.
Eles buscam, em outro sentido, viabilizar uma ampliação do escopo dessas políticas, e estão
correlacionados à declaração direta de ações e posturas ativas para realizar as medidas
exigidas na crítica. É um posicionamento diametralmente oposto ao que Almeida Filho chama
de “crítica programática” ou “boicote”, configurando não um apoio simples, mas uma prática
política de forçar os limites da política afirmativa em direção expansiva.
Já no caso das concessivas e das positivas de tipo elogioso percebe-se a necessidade
de tratar com mais vagar a possibilidade de haver posições mais específicas. Se no trabalho de
Barreto (2008) ela aponta, por exemplo, uma tendência de maior resistência às políticas
afirmativas entre os estudantes brancos entrevistados, usando recursos como a defesa do
universalismo, Pinheiro (2010) já aponta uma postura de resistência passiva no caso da
UFBA. Aí que se faz útil a tipologia proposta por Almeida Filho: resistência, quando mesmo
o discurso antirracista e crítico da desigualdade não se manifesta em práticas que efetivamente
mitiguem os efeitos destas, ou até as piorem; e sabotagem, quando há atitudes subreptícias e
de difícil percepção de produção de obstáculos camuflados até por discursos favoráveis a
políticas reparatórias ou redistributivas, e que só se evidenciam ao lograr êxito em corroê-las.
Assim, embora a aprovação às políticas seja coerente com as pesquisas quantitativas
consultadas, ela é incoerente com o histórico de resistências dos docentes universitários
apontado na literatura acerca do processo de implementação das ações afirmativas
(QUEIROZ; SANTOS, 2006; SANTOS, 2012a; CAMPOS, 2008; ALMEIDA FILHO et al,
2005). A questão que surge, daí, é pra onde foram as pessoas que resistiram? Por que tão
poucos admitem ter mudado de posição?
Como aponta Guimarães (1995a), o racismo brasileiro tem como peculiaridade a
busca incessante pela diluição do percurso que o conceito de raça construiu na história
brasileira, amparando-se em discursos anti-racialistas, altamente adaptáveis até mesmo ao
discurso antirracista, para reproduzir a mesma estrutura racista existente. Barreto (2008)
encontrou, em suas entrevistas, a expressão deste fenômeno através de uma tensão
permanente, no discurso dos estudantes brancos entrevistados, entre a necessidade de
reafirmar o reconhecimento da desigualdade racial e a de negar as políticas afirmativas,
gerando uma profusão de argumentos buscando não infringir as normas sociais que condenam
posições racistas e de superioridade racial para não serem disso acusados.
126

Neste trabalho, por outro lado, o que se verificou foi uma tensão entre o discurso pró-
cotas e a prática docente. Assim, para além de uma mera opinião declarativa sobre as políticas
afirmativas, era preciso verificar como esses elementos se articulam com o discurso do
docente sobre a sua prática.
Percebe-se, nesta seção, nitidamente uma polarização entre dois argumentos
minoritários no universo entrevistado - o positivo crítico e o negativo - e uma vasta planície
de argumentos de tipo elogioso e concessivo, nos quais se misturam apoiadores de primeira
hora e convertidos, declarados ou não. Mais uma vez, esse agrupamento interage
decisivamente com as categorias estabelecidas a partir da trajetória dos docentes. Uma análise
cuidada de como percebem os beneficiários e como interagem com os efeitos da política
afirmativa permitirá, portanto, fazer uma discussão mais apropriada sobre estas posições.

Quadro 4.1 - Síntese das posições sobre as AA


Posição Exemplo
“Mudar o perfil do estudante é você mudar tudo na universidade”, “Grande mudança”,
Positiva “Mudar a cara da universidade”, “ingressos de pessoas que em tese jamais teriam acesso a
elogiosa universidade”, “débito histórico que precisa mesmo ser corrigido [...] A faculdade tá bem mais
colorida”
"Você bota corpos negros, mas deixa do lado de fora o legado epistemológico, civilizatório,
Positiva
que esse sujeito tem", "com relação aos indígenas e aos quilombolas, eu acho que é bem
crítica
restrito"

"Não consigo… Encontrar um argumento que enfrente a estatura moral do argumento [pró-
Concessiva cotas]", "Foi bom, você trouxe gente que não teria essa oportunidade, mas outros problemas
vieram."

Negativa "Senso de redenção política ou gratidão política dos alunos cotistas" que "atrapalha a técnica"

5.2 ENTRE O “ÓBVIO” E O “IMPOSSÍVEL”: IDENTIFICANDO


CARACTERÍSTICAS DE COTISTAS E NÃO-COTISTAS

A percepção acerca dos beneficiários das políticas afirmativas reproduz parcialmente


o modelo anterior, mas permite avançar em algumas demarcações. Diferencia-se, nesse caso,
a declaração mais direta da possibilidade e do hábito de perceber diferenças entre cotistas e
não-cotistas e o processo, direto ou indireto, de atribuição de características a esses dois
grupos. Também, percebe-se que a atribuição de características aos cotistas e, em menor grau,
127

aos não-cotistas, é um fato quase universal dentre os entrevistados - mesmo entre os que
afirmam não perceber diferenças. De posse dessas informações, será possível vislumbrar que
há, nesse caso, a mesma polarização da seção anterior, mas já mais robusta, com pólos mais
explícitos e contornos internos mais nítidos.
Do ponto de vista declarativo a maioria está entre aqueles que negam, relativa ou
absolutamente, a possibilidade de reconhecer quem é cotista na Faculdade de Direito.
Novamente é o professor Miguel que coloca este argumento de maneira mais explícita, não
apenas negando a possibilidade de identificar cotistas e não-cotistas, como, mais adiante,
dizendo que avalia que estimular divisões de raça, classe ou gênero é perigoso e serve para
“dividir e envenenar as pessoas” de um determinado ambiente. Ao ser perguntado diretamente
sobre se identifica quem é cotista ou não-cotista, responde peremptoriamente: “É impossível”.
Neste ponto, o professor Miguel não se encontra tão isolado como no quadro anterior,
onde, embora os argumentos negativos compusessem o arsenal discursivo de alguns docentes,
apenas no caso dele eles ocupavam lugar central. No âmbito declarativo, é mais comum, aliás,
posições próximas da sua; Felipa, por exemplo, que no quadro anterior encontra-se num
ponto diametralmente oposto ao de Miguel, afirma que “Alguns [consigo identificar] porque
eu conheço, mas se me passar gente que eu não conheço e dizer quem é cotista e quem não é
cotista, não, né?”
Aliás, a discussão acerca dos colégios militares e da rede federal de educação básica
permeia boa parte das discussões acerca da identificação de características peculiares dos
cotistas e não-cotistas. É o caso, também, do professor Orlando, já citado anteriormente;
aliás, ele busca sempre dizer que não percebe e não pergunta, inclusive na seleção de seus
bolsistas, dizendo com bastante ênfase que identificar cotistas é “muito difícil”.
No ponto oposto, no que diz respeito à declaração, está o argumento apresentado pelo
docente Cândido, que, perguntado sobre a percepção acerca de cotistas ou não-cotistas,
responde

Claro! <com ênfase> Quase sempre. O principal elemento distintivo é o fenotípico, né?
Óbvio que você nunca pode ter certeza absoluta, mas é evidente: pra quem foi professor da
faculdade de direito num momento em que a cada 200 ingressantes você tinha 1 ou 2
negros, você se depara numa sala de 40 alunos com vinte negros, a probabilidade, a quase
certeza de que eles são integrantes desse universo cotista salta aos olhos. Então, acho que
esse é um primeiro elemento muito forte para o Direito. Fenotipicamente, a maioria dos
professores, sobretudo aqueles que estão há muito tempo na universidade, tem sim
condição de discernir, quase sempre com acerto, quem é cotista e quem não é cotista.
128

Apesar de apontar outras características que permitem diferenciar, o elemento


fundamental da declaração de que esta é uma percepção óbvia é o fenótipo, ainda que este não
seja um elemento definitivo e exija ainda outros critérios que o próprio docente explora mais
adiante. Isso pode explicar a opção majoritária por declarar-se impedido de precisar quem é
ou não beneficiário da política de cotas, ou ao menos ponderar mais dificuldades do que
qualquer outra coisa. A professora Thereza, por exemplo, avalia que “quem identifica vai
pelo preconceito, né?”.
Há uma dificuldade de posicionar-se criticamente perante as alterações fenotípicas na
composição do corpo discente, mesmo ela sendo amplamente reconhecida por esses mesmos
docentes ao descrever as mudanças trazidas pelas cotas. Embora no plano impessoal ou
abstrato, haja uma gramática racializada capaz de fazer avaliações sobre uma dada
comunidade para a maioria dos professores, no plano da concretude e na individualidade
parece que a cor e a raça passam a ser dados que não são válidos.
Como aponta Guimarães (1995a), o histórico de racismo heterofóbico, que atribuiu
sucessivas gramáticas de exclusão com base em raça, fazendo com que termos como
“africanos”, “negros”, “crioulos”, “pretos” e “nordestinos” produzissem a imagem de uma
subclasse marginalizada e eivada de significações negativas. Esse pensamento, que amalgama
e naturaliza a combinação da desigualdade de classe e de raça ainda influencia fortemente o
pensamento racial contemporâneo, inclusive no caso dos entrevistados, em determinados
fragmentos como o do professor Ives, que fala que “com a questão das cotas, e com o acesso
do pessoal de escola pública, você tem uma… miscigenação maior de pessoas de menor…
condição econômica”, utilizando uma categoria racial (“miscigenação”) como chave
explicativa de uma alteração, do ponto de vista da classe social (“menor condição
econômica”), no acesso à universidade no pós-cotas.
Porém, contemporaneamente, há uma rejeição à esse discurso mesmo no núcleo do
pensamento racista. A separação de raças no plano discursivo - mesmo que efetivada na
prática de negação de humanidade e cidadania - torna-se inaceitável, ensejando discursos
universalistas, mesmo que estes acabem por reproduzir os mecanismos de segregação racial
existentes na sociedade brasileira. Assim, essa recusa a posicionar-se criticamente sobre a
questão acaba por ser tão prejudicial quanto o discurso explícito de superioridade racial, na
medida em que sonega a possibilidade do debate aberto acerca das percepções sociais sobre
os negros e negras. Ela tem sido uma questão encontrada em estudos que fazem
questionamentos semelhantes no âmbito acadêmico e profissional, em especial com
entrevistados brancos, mas também como uma estratégia de negros para evitar confronto e
129

discriminação racial, reforçando o silêncio como estratégia dominante da reprodução do


pensamento racial hegemônico (BARRETO, 2008; PINHEIRO, 2010; LABORNE, 2014;
SANTANA, 2009; NERY; COSTA, 2009a; 2009b; RIBEIRO et al, 2014).
Porém, como aponta Passos acerca da Universidade Federal de Santa Catarina, as
ações afirmativas trouxeram “um debate tenso, até então não desejoso no Brasil e, portanto,
na própria universidade” (PASSOS, 2015, p. 176), e a presença desses estudantes não passa
despercebida. Assim, em que pese o desconforto - ou as dificuldades - de declarar-se ciente
das diferenças entre cotistas e não-cotistas, os docentes foram bastante sensíveis às diferenças
entre estes.
Assim, o aspecto declarativo mostra-se bem menos rico que as questões de ordem
descritivas apresentadas pelos entrevistados. Elas permitem aprofundar de maneira mais
precisa um conjunto de falas a partir das quais os docentes localizam marcadores e explicitam
suas percepções acerca dos estudantes. É a partir dessas percepções que cabe analisar como
eles se posicionam perante os sujeitos.
É evidente e esperado que, tendo feito a opção declarativa de afirmar não ver as
diferenças - uma das primeiras perguntas do primeiro bloco que enfrenta a questão das cotas
ativamente -, os sujeitos tenham sempre buscado ressalvar suas avaliações conforme a
entrevista evoluía para um aspecto mais descritivo. Ainda assim, foi possível cotejar
avaliações individuais ou coletivas sobre cotistas, e as ressalvas serão apresentadas ao longo
da análise.
As principais características apontadas encontram-se agrupadas em avaliações
fenotípicas, de marcadores de classe, de perfil acadêmico, e de personalidade e sociabilidade.
Elas são apresentadas sempre em contraste direto ou indireto entre cotistas e não-cotistas, e
em alguns casos implicam numa avaliação mais marcadamente negativa ou positiva, o que
será demarcado quando necessário.

5.2.1 Identificação por marcadores de raça e classe

Do ponto de vista fenotípico, ocorre o fenômeno interessante e já discutido de que há


uma percepção muito frequente de que as políticas afirmativas modificaram substancialmente
a composição racial do corpo discente da universidade, o que encontra amparo nos dados
disponíveis (ALMEIDA FILHO et al, 2005; QUEIROZ; SANTOS, 2006; QUEIROZ;
SANTOS, 2013; INEP, 2015; DAFLON; FERES JÚNIOR; MORATELLI, 2014). Porém,
130

como critério de identificação de cotistas e não-cotistas, há uma negativa sistemática em se


posicionar levando em conta esta questão, mesmo quando exposta anteriormente pelo
entrevistado.
Ainda assim, direta ou indiretamente, alguns docentes utilizaram essa percepção,
sempre conjugada com outras, para a identificação dos cotistas. O melhor exemplo desta
contradição é a professora Thereza, que diz explicitamente que identificar cotistas é um
exercício do preconceito, o que ela não faz; porém, perguntada especificamente sobre os
estudantes negros na Faculdade, afirma: “Aumentou por exemplo a quantidade. Muitíssimo.
Isso ai é uma coisa visível, antes pra você encontrar uma pessoa negra aqui na faculdade era a
coisa mais difícil do mundo”. É inevitável a questão lógica que surge: se era difícil e não mais
o é, qual a dificuldade de reconhecer negros e cotistas?
Na pesquisa exploratória realizada entre estudantes, encontrou-se fortíssima correlação
entre a autodeclaração como “preto” e a origem de escola pública. Ainda assim, há uma
resistência em discutir este critério abertamente.
Talvez isso tenha um pouco a ver com o que a professora Francisca chamou de “zona
gris”. Ela admite identificar cotistas e não-cotistas, mas como extremos de uma escala na qual
a maior parte das pessoas é de difícil identificação. Ela, ao ser perguntada se reconhece
cotistas e não cotistas, exemplifica um outro tipo de classificação, essa muito frequente e
relevante, que é a feita por marcadores de classe, e já evidencia seu receio de assumir que
consegue identificar os cotistas automaticamente:

Consigo. Não, assim, desculpa, consigo, não posso dizer absolutamente que eu consigo
dizer que é e não é, mas que isso vem mostrado dentro da sala de aula, assim, pela trajetória
do estudante, principalmente pelo fato de ter o critério social né, então eu vejo uma aluna
levantar na sala e falar ‘Tô fazendo Administração de Empresas porque meu pai tem uma
empresa e quando eu me formar eu vou ser a administradora dessa empresa’, e eu vejo
outra aluna levantar a mão e falar ‘Minha mãe é empregada doméstica e eu sou a primeira
pessoa a entrar na universidade’. [...] É, eu nem falo pela questão racial né, pela forma
como a pessoa vai se apresentar pra mim fenotipicamente, mas mais por essas trajetórias
né, você vê que pela trajetória até das condições materiais de vida, né? Eu posso dizer que
eu fiquei preocupada quando você perguntou cê sabe quem é cotista e quem não é e assim
eu respondi sim impulsivamente, mas assim, tem perfil que é muito ostensivo, que eu sei
que aquele estudante não veio de cotas, eu sei que aquele grupinho ali é de elite né, pelo
que fala, pela forma como se veste, pela forma como se porta e alguns estudantes você vê
também pelo perfil que são pessoas que tem dificuldade de chegar na universidade, que tem
dificuldade de tirar xerox, tem dificuldade... Então esse perfil você percebe também, mas
tem uma zona gris aí no meio que eu não fico buscando enquadrar, então eu acho que eu
percebo, assim, pelo jeito de se portar, pelo jeito de se vestir os grupos extremos digamos
assim.

Este longo trecho consegue concatenar todo o centro da identificação por marcadores
de classe. Ela geralmente é uma forma de rechaçar o enquadramento fenotípico, mas ainda
131

assim reconhecer, através do critério socioeconômico, a existência diferenciada daquelas


pessoas no espaço universitário, e também permitir uma identificação de demandas das
pessoas negras a partir de sua origem social.
É, pode-se dizer, uma tentativa de tratar a questão com sutileza, mas endereçando a
percepção de maneira razoavelmente precisa. Os docentes que utilizam esse recurso falam,
por exemplo, sobre “roupas” (Thereza, Luís), “Sapatos” (Thereza), e por declararem sua
origem de escola pública ou privada, sendo esta última bastante frequente, inclusive por
provocação dos próprios professores em sala de aula.
Por outro lado, marcadores como transporte, trabalho e uso de material didático
diferenciado eram também evidências frequentes; explica o professor Luís que, antes das
cotas, tentou marcar uma visita de campo a um órgão municipal e, ao sugerir que fossem de
ônibus, surpreendeu-se de que mais da metade dos estudantes jamais haviam andado de
ônibus, em contraste com a realidade atual. A docente Quitéria demonstra, também, que sabe
que ainda é minoria os estudantes que só podem se deslocar de ônibus, mas que é uma
realidade que as cotas trouxeram.
Este fato é muito curioso, pois, em alguns estudos, estudantes contrários às cotas
tendem a valorizar, como elemento conceitual definidor de sua posição e, inclusive, como
marcador definitivo dos cotistas, a questão racial, polemizando-a de maneira central e
desconsiderando o fato de que esta surge, na maioria das propostas, como um recorte interno
ao critério social (NERY; COSTA, 2009a; 2009b; RIBEIRO et al, 2014; QUEIROZ;
SANTOS, 2012). Enquanto isso, os docentes entrevistados fogem da classificação fenotípica
e abordam consistentemente questões de classe, mesmo reconhecendo a mudança na
composição racial dos estudantes como um dos principais resultados da política de cotas.
Ora, como se explica essa confusão? Pois bem, se Crenshaw (2002) já permite
compreender, na teoria, como a raça interage decisivamente com outras categorias, criando
identidades distintas dentro do mesmo campo racial, que podem facilmente ser identificadas
sem recorrer ao fenótipo, o histórico da formação social brasileira indica uma forte correlação
entre pobreza e negritude, estabelecida a partir de um modo de produção escravista, mas
reconstruída e reproduzida em outras bases na sociedade capitalista (GORENDER, 1978;
FERNANDES, 1987; JACCOUD, 2008a). As correlações concretas existentes entre raça e
classe permitem, assim, intercambiar marcadores de maneira bastante flexível, prática adotada
tanto no discurso racista quanto no discurso antirracista (GUIMARÃES, 1995a).
Por outro lado, a reflexão de Hill Collins (2016) sobre a ideia de outsider within
dialoga com a experiência prática não apenas deste estudo, mas também com outros
132

realizados na UFBA e que mostram que certo tipo de respostas são mais frequentes entre
grupos de "iguais", reproduzindo uma certa tendência à homofilia nas relações sociais
(RIBEIRO et al, 2014). Ou seja, é perfeitamente compreensível que um pesquisador
marcadamente negro, ao questionar um docente branco sobre identificação fenotípica,
encontre certos constrangimentos e resistências. Um tema já recorrentemente desconfortável
torna-se de ainda mais difícil abordagem; é possível imaginar alguns docentes se perguntando,
“Será que esse rapaz é cotista?”. Aliás, não faltou quem entrasse diretamente nesse assunto
(Ives). E dessa tensão, mais uma vez, a classe é uma possível saída construída para tanto.
Mas não a única. Outros elementos são levantados e são igualmente importantes,
extrapolando o mundo das aparências e interagindo com a personalidade e o percurso ou
perfil acadêmico dos cotistas e não-cotistas.

5.2.2 Identificação por critérios atitudinais ou acadêmicos

Do ponto de vista das características pessoais ou acadêmicas, há avaliações das mais


diversas, inclusive conflitantes. A docente Francisca relata os não-cotistas como
“voluntaristas” que usam dos mais variados recursos para “se virar”, os cotistas teriam mais
“jogo de cintura”, embora um pouco “inseguros”, sendo corroborada, por exemplo, por
Orlando, que afirma serem os não-cotistas “Mais calados, talvez... Menor interação, copiam
mais, são mais CDF, essas coisas”. Já o professor Ives afirma o contrário; seriam os cotistas
que pareceriam “mais tímidos. [...] Mais quietos, mais concentrados em levar o curso
adiante”.
O que explicaria tal discrepância? É importante se reportar ao quadro analítico sobre a
Faculdade e seu corpo docente. Poucos são prioritariamente pesquisadores e extensionistas, e
a maioria ocupa uma outra carreira em paralelo, muitas vezes com a carreira jurídica
preponderando sobre a carreira docente.
Aqueles poucos que desenvolvem tais atividades tendem a ter uma convivência mais
próxima com os estudantes que orientam e, a partir deles, terem acesso a uma ampla gama de
informações sobre o meio estudantil que, sendo só docente, é difícil perceber. É este o relato
de alguns docentes mais jovens que se graduaram na UFBA já no período das cotas (Paulo,
Francisca), ao perceberem que muito do que sabem sobre cotistas é mais fruto de sua
convivência como estudantes do que como docentes, bem como os detalhes são dados
fazendo referências a seus orientandos de pesquisa ou monografia. Portanto, a percepção
133

sobre um estudante cotista em sala de aula pode ser radicalmente diferente se o docente tem
um convívio direto e aberto com a realidade desses estudantes, seja a partir de atividades
extraclasse ou de uma postura receptiva às mudanças trazidas pelas cotas.
Porém, há uma percepção que tem sido razoavelmente comum a todos que recorrem a
esse tipo de descrição atitudinal: a ideia do senso de oportunidade. Para muitos dos
entrevistados, os cotistas enxergam a sua estadia na universidade como uma grande conquista,
à qual se agarram com todas as forças, enquanto os não-cotistas tratam aquilo como apenas
mais uma fase de suas vidas, já esperada desde sempre. É o que o professor Cândido chama
de “diferencial qualitativo”, o pensamento de “Essa é a minha chance. Eu tenho que
aproveitar. Eu não posso desperdiçar isso aqui” que guia um envolvimento e empenho maior
com a vida universitária, o que implicaria inclusive num melhor desempenho acadêmico.
Na avaliação do percurso acadêmico há também importantes nuances na percepção
acerca de cotistas e não-cotistas. Ela divide-se em duas partes não-antagônicas, embora alguns
docentes optem por afirmar apenas uma delas e não a outra.
Por um lado, se alguns apontam uma maior “politização” (Miguel, Orlando,
Thereza) e “criticidade” (Orlando, Felipa, Cândido), identificados a partir de uma crescente
participação política e também pela emergência de novas demandas do ponto de vista das
questões acadêmicas prioritárias. O público cotista, em oposição, seria mais “individualista”,
“concurseiro” e “preocupado com o seu” (Felipa), ou, como para Miguel, antes das cotas os
estudantes eram menos preocupados com política, “inclusive eleitoral”. Embora haja
controvérsia e alguns apresentem este fato como positivo e outros como negativo, a descrição
dada por alguns docentes é bastante apurada no sentido de captar o fenômeno:

O segundo dado [para identificar cotistas e não-cotistas] pode ser extraído do tipo de pauta
de interessa que bu... eh... eh... capaz de despertar inter... mobilização, capaz de agenciar
expectativas. Novamente, eu repito, os estudantes dos estratos mais elitistas, se puderem,
fazem um curso de direito todo concentrado naquela faculdade, da forma mais asséptica,
sem contato com os outros, de outras formações, e sem discutir temas inconvenientes.
Esses outros sujeitos que ingressam por cotas costumam demonstrar maior abertura.
Eventualmente, inclusive, a se mobilizar pelos outros temas, então, outro diferencial.
(Cândido)

Mudanças substanciais... Inclusive no perfil do aluno do curso de direito especificamente,


que eu tenho maior aproximação. Muitas mudanças na formação do aluno, acho que essa
atuação mais crítica e politizada decorre um pouco da forma de ingresso. Quando você
tinha alunos de classe média, classe média alta, você tinha alunos mais tecnicistas, aquilo
que eu falei anteriormente. E as cotas promoveram alunos mais críticos, né, mais... é... mais
críticos da realidade social. (Orlando)
134

Há uma importante diferença aqui. Enquanto alguns tratam como positivo esse maior
interesse, outros o correlacionam com desempenhos acadêmicos inferiores. Alguns, como o
docente Miguel, numa relação de causa e efeito, outros, como Orlando e Thereza, numa
relação de contemporaneidade entre o aumento da politização e a redução do desempenho,
dizendo ser muito difícil afirmar relação direta entre as duas coisas. Já argumentos mais
parecidos com o dos professores Cândido, Francisca e até mesmo Orlando (por mais
contraditório que possa parecer), dentre outros, associam esses interesses mais amplos,
críticos e politizados a uma transformação qualitativa positiva na universidade.
E, por outro ângulo, há um relato de vivências e percursos acadêmicos diferenciados
na universidade por conta de dificuldades financeiras ou acadêmicas, percebidas a partir do
uso, por exemplo, do restaurante universitário e das bibliotecas (Luís), ou no uso do ônibus,
frequente entre cotistas, como um fator limitante da atividade acadêmica em relação aos não-
cotistas, onde a posse de veículo é mais comum (Francisca, Quitéria). Mais diretamente,
alguns entrevistados falam sobre características peculiares na escrita, seja na linguagem e
dificuldade com palavras mais complexas (Thereza), seja mais objetivamente apontando
dificuldades no português (Eduardo).
Este tipo de argumento sempre está correlacionado a outros, como os dos marcadores
de classe, e se dividem, novamente, em dois. Aqueles que o fazem num tom mais crítico às
cotas, recorrem à ideia de menor rendimento ou desempenho acadêmico para categorizar este
fenômeno. É o caso, por exemplo, do professor Eduardo, que tem uma posição concessiva
sobre as cotas e afirma que

O que eu diria dos alunos de cota, de BI e dess... assim... não todos, mas boa parte deles,
que talvez tenha mais dificuldades até porque muitos trabalham, muitos tem uma vida dura
pra tá ali. Diferente do garoto que tem tempo pra estudar em casa, né, por exemplo, um
colega meu até brinca ‘fica tomando um Nescau e estudando’, né?, é diferente. Ele vai ter
que se desdobrar mais, ele vai ter que se desdobrar mais... o mérito dele vai ser maior. [...]
E se sua dificuldade é maior, você tem que se esforçar mais, infelizmente é assim que
acontece. E eu percebo muito... Eu tenho excelentes alunos cotistas, excelentes... Até
melhores do que não cotistas, ‘tendeu? Hoje mesmo eu recebi um aqui [no gabinete de juiz]
que ta fazendo o tema de conclusão de curso... Passou a tarde toda aqui. Ele fica aqui na
biblioteca, ele vem, pega o livro. Então assim, é... O que eu passo pra essa turma é essa
ideia, se você tem dificuldade e tá percebendo que tem, você vai ter que se desdobrar um
pouco mais pra corrigir essa deficiência, porque senão você vai ter dificuldades maiores
depois. ‘Tendeu? Agora a gente não pode dizer que não tem deficiência, essa que é a
questão, como é que eu vou tratar uma pessoa que tem deficiência fingindo que ele não
tem, convencendo ele que ele não tem, né?

Essa percepção acerca das dificuldades dos estudantes, sobretudo no uso da língua
portuguesa na sua norma culta, é objeto de polêmica no conjunto das entrevistas. O professor
135

Orlando pondera, por exemplo, que não é possível atribuir isso diretamente às cotas, embora
ele tenha percebido um aumento nessa dificuldade; chega a ponderar que

As médias em geral da turma tenham diminuído, em relação a quando eu comecei a ensinar


e agora. Não sei se é uma questão geracional, não sei se é influência das cotas, ou não sei se
talvez não seja uma... exigência maior minha, por que fiz mestrado, doutorado, etc., nessa
época. Então pode ter sido uma influência da minha formação, talvez eu tenha me tornado
mais rigoroso, mas isso em geral, não com um aluno ou com outro, específico. Talvez uma
questão geracional, essa geração tem whatsapp, facebook, orkut, quando eu comecei a
ensinar não tinha. Então a dispersão é maior nessa geração, e talvez... Uma influência de
alguma deficiência de base, pra quem estudou numa escola pública, talvez tenha
influenciado, mas é difícil você identificar que essa seja a origem, entendeu? É muito
difícil. Tem tantos fatores que influenciam que é difícil identificar que essa seja a origem.

Essa aparente indecisão acerca dos motivos da sua percepção de queda nas médias da
turma pode, claro, ser atribuída ao já discutido temor em parecer preconceituoso. Mas parece
evidente também que a escolha de outras hipóteses (questão geracional, acesso à tecnologia,
mudança na sua qualificação acadêmica) é uma tentativa honesta de mostrar como a
associação entre desempenho e origem escolar pode ser apenas uma falácia causal.
Outros docentes, por outro lado, repudiam mais diretamente a relação entre as cotas e
mau desempenho acadêmico. É o caso de Luís, que diz “Nunca tive capacidade de identificar,
através das provas, né, das avaliações, se o cara é cotista ou não”. Mais incisivo, Cândido
reconhece que há este tipo de argumentação e as critica:

É a conversa recorrente em sala de professores que o nível está caindo, que é preciso ver o
que é que faz, por que o desempenho, eh... tá muito ruim, os textos tão muito mal escritos...
Geralmente são generalidades, quando você tenta se aproximar mais, eu já fiz isso com
alguns colegas... ‘Sim, mas, quantos alunos ce tem?’, ‘Quarenta’, ‘Tá, quantos são esses
textos?’, ‘O cara escreveu não sei o que de tal forma’, ‘sim, tá, mas quantos foram?’, ‘ah,
dois’, então, assim, ‘Peraê! Entre um aluno…’ Aí eu sempre uso o contraponto. Eu
coleciono provas de alunos brancos, desde a época que não existia cotas, alguns formados
nas melhores escolas de Salvador, que produzem aberrações ortográficas e estilísticas. [...]
O caso isolado, alguns casos isolados, nunca podem servir, a não ser pela lógica ideológica
que tá por detrás disso, para desqualificar todo um processo.

Algumas posições menos críticas recorrem menos à ideia de “queda do nível”. Elas se
perfilam mais a uma ideia central de inadequação da universidade para receber um público
diferente. O professor Paulo, por exemplo, argumenta que os exames de admissão na
universidade projetam um saber oficial, mas que os estudantes trazem outros saberes que não
só o saber oficial medido pelo exame. E que, muitas vezes, o estudante traz uma carga de
saberes que não é medida no vestibular, o que enriquece muito a universidade, mas também a
desafia a aproveitar da melhor forma esse saber; e mais, afirma serem as dificuldades com a
136

língua portuguesa e com a matemática um problema generalizado da educação básica


brasileira, inclusive particular, distanciando-se do argumento corrente da “queda do nível”.
Essa sensibilidade à mudança das demandas acadêmicas, expressa ao longo de
algumas entrevistas, se manifesta muitas vezes numa atitude proativa de minorar essas
dificuldades. Isso será discutido oportunamente, mas cabe registrar desde já que atitudes
como observar horários e locais de atividades extraclasse, preparar material de estudo
específico ou disponibilizar a bibliografia de maneira mais acessível desde já se associam a
essa percepção de que as instituições - e os docentes - é que precisam se responsabilizar
solidariamente com as diferentes vivências proporcionadas pelas ações afirmativas.

5.2.3 Identificação de “divisões perigosas”

Por fim, há um tipo específico de questão que surgiu centralmente poucas vezes no
conjunto das entrevistas, embora negada ou tratada com lateralidade em outras, por motivos
que serão discutidos. Embora pouco mencionada, ela encontra guarida na literatura (RIBEIRO
et al, 2014; CICALÓ, 2012; SANTANA, 2009; NERY; COSTA, 2009a, 2009b) e é
sociologicamente relevante.
A professora Francisca menciona perceber divisões na sala de aula, uma polarização
de opiniões e até no lugar de sentar, sobretudo pautada em marcadores de classe; ela diz:

Divisões de opiniões principalmente entre pessoas que vem de uma condição social inferior e
pessoas que tem uma condição social superior, então eu percebo as vezes haver divisões no
sentido de que ‘ó, essa opinião que você tá dando é uma opinião pautada no seu privilégio, na
sua origem’, pra mim é diferente, mas eu nunca vi uma polarização que fosse pautada no
critério racial, ‘você tá falando isso porque você é branca’... Minto, já vi. Uma discussão,
pronto, pra não dizer que eu nunca vi uma discussão uma aluna negra questionar alunas
brancas sobre feminismo, mas não era uma discussão sobre cotas. [...] Eu lembro
visivelmente na sala de aula né, das minhas cinco orientandas né, que são todas cotistas, e o
grupo de umas meninas que tinha um perfil bem patricinha assim, que sentavam exatamente
no pólo oposto da sala. E isso eu conseguia visualizar bem, e assim, nunca vi ninguém
destratar ninguém, mas ‘cê via que aquilo ali era uma interação que não conseguia quebrar a
barreira do formal, sabe?

Este tipo de situação não é relatada por muitos outros docentes. É importante, por um
lado, ressaltar que a professora Francisca ministra aula de Direito na Escola de
Administração, sendo portanto turmas que, teoricamente, não tem nenhuma semelhança
automática com as de Direito. Muitos docentes, porém, alegam não ver, sem afirmar
137

categoricamente que não há divisões, e alguns chegam a dizer que se sentiriam surpresos ou
decepcionados se vissem esse tipo de segregação espacial na sala de aula ou na Faculdade.
Para alguns, essa negativa é uma consequência lógica da sua linha argumentativa de
não enxergar diferenças entre os cotistas e os não-cotistas; ora, se não vêem diferenças,
logicamente não podem ver divisões, como a docente Thereza expressa de maneira bastante
nítida, sendo seguida por outros, na já discutida recusa a enfrentar as questões da
desigualdade ou do racismo.
Já para um conjunto distinto de docentes, uma razão importante é o fato de lecionarem
disciplinas no fim do curso, quando este tipo de divisão é quase impossível, segundo eles,
com pequenos grupos de dois ou três no máximo. É o caso da professora Felipa, cujos
estudantes aos quais ministra suas aulas normalmente estão “cada um no seu mundo”. Cabe
registrar que boa parte das disciplinas dos primeiros semestres do curso de Direito são
ofertadas por outras unidades acadêmicas, sendo as disciplinas ofertadas pela faculdade mais
presentes depois do primeiro ano, com as de Teoria do Direito à frente.
Este tipo de fator é crucial conforme visto na literatura, onde percebe-se a existência
de grupos homofílicos entre cotistas e não-cotistas, recorrendo a estratégias acadêmicas
diferentes, identificados por marcadores raciais e de classe, compartilhando linguagens e
expressividades distintas. Porém, alguns estudos demonstram que essas divisões tendem a se
diluir conforme passam os semestres do curso. (CICALÓ, 2012; PINHEIRO, 2010; RIBEIRO
et al, 2014)
Isso faz com que esse momento mais chocante seja vivido, teoricamente, pelos
docentes de outras unidades e das matérias iniciais do direito, os primeiros ausentes e os
segundos minoritários na amostra entrevistada. E, ainda assim, também compõem um número
reduzido de docentes no conjunto do curso de Direito.
O professor Cândido, por outro lado, contraria a opinião majoritária e generaliza o
relato de Francisca de maneira até mais ampla. Perguntado acerca das divisões entre
estudantes com base do critério cotista e não-cotista, sua resposta é bastante detalhada:

Sim. Sim. É recorrente isso, absolutamente recorrente em Direito. Desde um primeiro


momento, quando nós lutávamos pelas cotas e um grupo de estudantes organizado na forma
de... de um núcleo político que lançava e lança até o hoje chapas para concorrer às
representações estudantis, e que anunciou que faria um trote desonroso aos primeiros
cotistas que ingressassem na 'Egrégia' Faculdade de Direito, e nós mandamos recado
dizendo que se isso se desenvolvesse... ia ter porrada. Por que a gente ia reagir em defesa
desses estudantes, além deles próprios, evidentemente, se auto-defendendo, inclusive com a
disposição para o confronto físico, porque... seria intolerável. Uma coisa é emitir uma
opinião desfavorável às cotas. [...mas] Admitir que um grupo, qualquer que seja ele,
impusesse uma humilhação aos primeiros estudantes negros que ingressassem por cotas
138

seria um fim do mundo. Isso... Nesse caso houve recuo, não se manteve. A pessoa que
articulava isso era um estudante que se reivindicava inclusive nazista, e fazia questão de
declarar-se defensor, com reparos, das teses do nacional-socialismo, que não está mais na
faculdade, pelo tempo, mas que deixou, digamos assim, herdeiros, ahn? Então existe um
núcleo articulado que toda oportunidade que tem debocha e tenta produzir uma
desqualificação à política e aos beneficiários da política [...] Então desde ações deste tipo,
até posturas práticas de, digamos assim, aspas, segregação no interior da sala. Na hora de
definir trabalhos em equipe, ou no processo de socialização, a formação de grupos que se...
eh, digamos assim, isolam ou que preferem as relações mais afins”

A docente Francisca, ao final da entrevista, pediu para fazer um registro, e contou


uma história impressionante:

Foi um relato que uma aluna daqui de direito, essa é do meu grupo, e ela é de direito, e ela
tava contando que no primeiro dia de aula, aqui em direito tem essa tradição de trote, e uma
das brincadeiras do trote era pedir pra os calouros virem com a farda da escola pra
faculdade né, tipo assim, pra sacanear os calouros, todo mundo de roupa e eles de farda de
escola. E ela disse que ficou muito puta porque ela não consegue imaginar como as pessoas
que propuseram aquela brincadeira não imaginaram o efeito que aquilo ia gerar na sala de
aula, e aí ela disse que no outro dia, que assim, quem não tivesse com farda da escola ia ser
pintado, e todo mundo não queria passar por isso, no outro dia tinha 70% da sala com a
farda do Anchieta, do Colégio São Paulo, do colégio sei lá qual que é, popzinho aí da classe
média soteropolitana, e 30% da sala escondidinha no fundo, né, meio constrangida com a
farda de colégio público, e assim... Como que aquilo foi uma brincadeira que demarcava
muito bem de onde você vem, né, e porque vocês não vão se misturar, e aí minha aluna
contou isso pra mim assim eu fiquei tão pensando assim... Puta merda, né? Que coisa forte,
e essa vivência ser marcada no primeiro dia de aula, então a brincadeira era uma forma de
marcar, quem é quem aqui desde o primeiro dia de aula, e isso foi uma coisa que me tocou
bastante como que talvez essa experiência das cotas estejam sendo vivenciadas entre os
estudantes.

Não deixou de ser notável que, sem perder a cortesia e elegância que demonstrou
durante toda a entrevista, neste trecho registra-se os únicos palavrões proferidos por essa
entrevistada, acompanhados de um tom nitidamente mais incisivo, denotando o impacto que
este relato tem para ela. A docente Felipa também faz relatos afins de hostilidades mais
abertas:

O pessoal postou hoje no facebook que botaram no mural do CARB, lá do Centro


Acadêmico, eh, um cartazinho assim com, com, só a sombra de um estudante com um
black, [escrito] ‘Quer dizer que você entrou por cotas, hein?

Esse cartaz, aliás, o pesquisador teve oportunidade de ver em primeira mão. É


relevante notar que o grosso dos relatos oferecidos pelos entrevistados são de situações que
decorrem do choque causado pela entrada de sujeitos tão diferentes no curso, a partir das
políticas afirmativas. Novamente, a distribuição dos docentes e das matérias na grade
obrigatória do curso de certa forma isola os docentes do momento mais crítico dessa tensão.
139

Há relatos mais laterais, como o do professor Paulo de quando era estudante do


noturno e era destratado por seus colegas do diurno (“entrou pela porta dos fundos”), ou o de
Eduardo, que ao ser perguntando sobre essas divisões, diz:

Não, existe não. Olha, existe preconceitos? Existe. Hoje mais... O que eu percebo hoje é
que a galera pisa mais em ovos, porque a coisa chegou num nível que qualquer coisa pode
gerar um problema... Então, eh.. eu interpreto como uma questão até de educação, muito
mais do que, né, você olhar o outro, porque é muito fácil você se dar bem com um igual. O
cara que.. que tem seus valores, que tem seu nível social, sua cor... enfim. Lidar com outro
requer civilidade, educação. Entendeu? Então muitas coisas que acontecem não é
propriamente só preconceito... é falta de educação mesmo, entendeu? E isso tem mudado
porque eles tão sendo forçados a se educarem. Né, no trato com o outro em condição de
igualdade.

É um relato que traz um outro elemento importante, que é como estas divisões não só
decaem com o tempo do ponto de vista longitudinal, ou seja, conforme uma mesma turma vai
progredindo ao longo do curso, mas também tem se tornado menos intensas conforme novas
turmas entram num cenário cada vez mais consolidado de política de cotas e a presença desses
sujeitos novos, os cotistas, tornam-se cotidianas, reivindicando espaço e constrangendo
atitudes discriminatórias, ainda que não completamente. Esse é um elemento presente em
quase todas as argumentações, referindo-se ao passado recente com muito mais
tensionamentos do que o presente.
Ainda assim, somando esses relatos laterais aos dados pelos demais docentes, bem
como toda a observação direta empreendida pelo pesquisador, parece muito impressionante
que tantos entrevistados tenham rechaçado com tanta veemência a possibilidade de haver
tensões entre os estudantes com este critério. Que não tenham presenciado, é razoável, mas
que esse tenha sido um fato que lhes escapou completamente, chama a atenção.
Este fato acaba por ser o mais valioso, revelando mais sobre os entrevistados do que
sobre o próprio fenômeno da discriminação racial dentro da universidade. Ele implica em
posicionamentos bastante demarcados acerca desta, mas fortemente marcados pela própria
autopercepção sobre raça e origem de classe dos docentes. Novamente, os docentes homens e
brancos que vêem sua trajetória como fruto do mérito são aqueles mais tendentes à negar a
existência de divisões, ou a condenar a possibilidade de analisá-las, ao passo que os docentes
negros, acompanhados pelos docentes brancos que fazem uma reflexão crítica acerca da sua
identidade racial e origem de classe, se mostram mais sensíveis a esses fenômenos.
Ainda assim, a discussão sobre as divisões é a que evidencia de maneira mais
explícita uma possibilidade analítica de desdobrar duas categorias até aqui utilizadas de
maneira simples - cotista e não-cotista. Os docentes que renegam a possibilidade de diferir e
140

os que são capazes de perceber diferenças trazem um importante ponto de convergência: a


existência de uma "zona gris" mais ou menos ampla.
É difícil diferenciar os cotistas e não-cotistas a nível individual. Porém, o
reconhecimento quase unânime de uma mudança qualitativa relevante no corpo discente
permite perceber não apenas pólos, como também, no caso de alguns docentes, identificar as
tensões entre eles. Essas "divisões perigosas", como chama o professor Miguel, são
percebidas por alguns docentes, o que gera uma interessante troca de acusações: enquanto
alguns afirmar que a posição de não perceber é uma atitude ideologizada e que se cega às
diferenças entre os discentes, outros alegam que valorizar essas diferenças é uma atitude
ideológica que é a razão da criação destas divisões.
De qualquer maneira, a discussão sobre as percepções dos docentes, apoiadas na
literatura corrente (SANTOS, 2013; GUIMARÃES et al, 2010; BARRETO, 2008;
SANTANA, 2009; MENIN et al, 2008; CICALÓ, 2012; PASSOS. 2015) permite afirmar que
há, sim, uma importante polarização de vivências, opiniões e atitudes entre os estudantes
universitários. Essa polarização não se dá através de categorias amplas, como cotista e não-
cotista, que abarcam pessoas com trajetórias que significam importantes grupos internos que
não podem ser esquecidos, como os oriundos de colégios militares e da rede federal de
educação, no caso dos cotistas, ou os oriundos de outros países ou do interior, no caso dos
não-cotistas, num achado que corrobora a ideia de que não há fronteiras rígidas entre estes
grupos, ainda que seja auto-evidente as mudanças trazidas pelas políticas de cotas
(PINHEIRO, 2010).
Porém, essas categorias acabam por transpor e representar a mudança fundamental
que as políticas afirmativas produziram. Assim, cotista-não-cotista é uma dualidade que pode
esconder ou evidenciar - e neste trabalho opta-se por evidenciar - importantes tensões raciais e
de origem de classe na universidade. Não obstante essa relação não ser automática, é dessas
"divisões perigosas" que se trata na realidade empírica, goste-se ou não de admiti-las. A
questão que paira no ar é: qual comportamento os docentes assumem frente a elas? Mais do
que do ponto de vista opinativo, como descrevem suas práticas, enquanto professores de
Direito, num contexto em que as políticas afirmativas quebraram o confinamento racial
(CARVALHO, 2005) e trouxeram para dentro da universidade as "divisões perigosas" e as
tensões que se encontram marcadas na sociedade brasileira? E quais motivações os levam a
assumirem tais posturas?
141

Quadro 4.2 - Síntese de diferenças percebidas sobre cotistas e não-cotistas


Tipo de percepção Exemplo

Marcadores de "Roupas", "Sapatos", "cara de burguês", "ônibus" x "carro", "antes pra você encontrar
raça e classe uma pessoa negra aqui na faculdade era a coisa mais difícil do mundo",

Cotistas "mais queitos, mais concentrados", "inseguros", com "jogo de cintura",


pensando "essa é minha chance", "politização", "criticidade", "maior abertura", "se
mobilizam pelos outros temas", ou, do ponto de vista negativo, "médias em geral [...]
Atitudinal ou tem diminuído", "dificuldade maior" sobretudo no português;
Acadêmica
Não-cotistas "individualistas", "concurseiros", "preocupado com o seu", "voluntarista",
"se vira", "fazem o curso [...] de forma mais asséptica, sem contato com os outros",
"tecnicistas".
"Eu lembro visivelmente na sala de aula né, das minhas cinco orientandas né, que são
todas cotistas, e o grupo de umas meninas que tinha um perfil bem patricinha assim,
Divisões perigosas que sentavam exatamente no pólo oposto da sala."; "um grupo de estudantes [...]
anunciou que faria um trote desonroso aos primeiros cotistas que ingressassem";
"posturas práticas de, digamos assim, aspas, segregação no interior da sala".

5.3 COLABORAÇÃO E RESISTÊNCIA: COMPORTAMENTOS E PRÁTICAS NUM


CONTEXTO DE INCLUSÃO

Nesta seção, se busca fazer uma discussão acerca de comportamentos narrados pelos
docentes, seus ou de seus colegas, que colaboram ou resistem ao processo de inclusão. Para
isso, além das categorias cotista e não-cotista, se usará também aspectos trazidos pelos
docentes acerca das mudanças recentes no contexto jurídico-acadêmico, como as relacionadas
a raça, classe, gênero, percursos acadêmicos, atitudes e divisões, já discutidas nos pontos
anteriores.
De posse das discussões empreendidas até o momento, é possível desdobrá-las num
arranjo que, considerando as atitudes descritas pelos docentes, contribui no entendimento
acerca de como os sujeitos que lidam, no dia-a-dia, com os efeitos da política afirmativa
potencializam ou prejudicam seus efeitos. Leva-se em conta, para isso, a posição construída,
na literatura, acerca da necessidade de dar consequência às políticas iniciadas com as cotas,
sob pena de acabar por reproduzir ciclos de desigualdades em outro nível, mesmo após a
inclusão de jovens pobres e negros na universidade (CARVALHO, 2003; SILVA; SILVA,
2014; PINHEIRO, 2010; BARRETO, 2015; GOMES, 2011; DAFLON; FERES JÚNIOR;
CAMPOS, 2013).
142

Não resta dúvida alguma que há responsabilidades institucionais neste caso. Porém,
cabe ressaltar que há uma distância entre as normas e a sua prática. É visando contribuir no
entendimento das práticas que se empreende esta análise e, aliás, esta é a primeira discussão
em pauta, destacando a responsabilidade pessoal dos docentes frente ao quadro normativo
institucional e apontando o silêncio como uma perigosa armadilha nesse caso.
Na sequência, busca-se discutir padrões de resistência e colaboração à inclusão social
no ensino superior, no caso específico da Faculdade de Direito, entendido como o aumento,
na última década e meia, de mulheres, negros, pobres e indígenas na universidade e o
surgimento de novas demandas a partir disto. Ponto a ponto, se elenca estes padrões nas mais
diversas ordens: como os docentes lidam com as dificuldades materiais trazidas por estes
sujeitos; como percebem um quadro de cobrança exagerada ou expectativa negativa, e o que
oferecem em contraponto; como lidam com as demandas acadêmicas que percebem como
diferentes; em que medida eles se posicionam como um possível esteio de reconhecimento e
empatia, ou até mesmo de modelo para os estudantes; e como se posicionam nos processos
que exigem, mais abertamente, confrontos ou negociações.
Desta forma, pode-se formar um quadro razoavelmente robusto para refletir acerca do
papel dos docentes no processo de inclusão. Esta última parte configura uma reflexão mais
ampla levando em conta os relatos mais práticos que se analisa nesta seção como um todo.

5.3.1 "A gente precisa se preparar pra fazer isso direito": responsabilidade pessoal e o
silêncio como armadilha.

Muitos dos docentes chamam a atenção para a questão da responsabilidade


institucional. Esta posição se desenha em discursos dos mais variados, mas tem em comum a
valorização de aspectos da política de cotas que não se realizaram plenamente. Ao buscar esse
caminho, porém, os docentes não pretendem chegar no mesmo lugar.
O professor Cândido, por exemplo, chama atenção para o que ele chama de mau
gerenciamento das políticas de cotas. Para ele, elas configuram um movimento que não se
realiza na plenitude na medida em que não há medidas que efetivamente mudem a orientação
mais geral do ensino universitário, na sua dimensão epistemológica, e ofereçam oportunidades
iguais dentro do próprio contexto acadêmico. A consequência disso, para ele, é que

Há todo um processo de seleção de excelência para as carreiras mais significativas que


começa na universidade. Não se encerra na universidade, portanto a gente tem de pensar
outras estratégias para além da universidade, cursos preparatórios, etc. Mas a universidade,
143

sobretudo a universidade pública, é um momento fundamental disso. Então hoje o que tá


acontecendo é que a maioria dos estudantes negros de direito vai se constituindo num
exército de reserva para a advocacia liberal. São jovens bacharéis, ou já com a OAB
conquistada, que vão trabalhar como terceirizados, fazendo audiências a quarenta,
cinquenta reais, para os grandes escritórios. Ou empregados nesses escritórios ganhando
salários de 1500, 1600 reais mensais. Então, há um problema, né? A falta de professores
negros, a falta de intervenções mais voltadas para essa questão das especificidades das
ações afirmativas vai gerando, ainda que por uma via de inclusão, a manutenção da
hierarquia e da subalternidade.

Para outros, porém, a falta de responsabilidade institucional é o que origina as cotas,


vez que, sem uma educação pública de qualidade, há a necessidade de medidas emergenciais
para inclusão. E isso, como coloca o docente Ives, é um "esforço" que precisa ter um
"retorno". Sem isso, as cotas só servem ao proselitismo político e à auto-promoção de
determinados grupos. Para ele,

Um determinado momento, você tem que fazer isso que eu to dizendo, é preciso que as
pessoas de cotas de fato entendam que é preciso que eles correspondam a um esforço que se
está fazendo, em todos os sentidos. Pessoas vem pra cá e acham que receberam essa dádiva
e… isso não significou muito, a justiça social simplesmente se frustra, entendeu? Atende
apenas a… vai atender apenas a… o que eu diria… aos movimentos políticos. Ou seja, você
tem um movimento político que as lideranças passam a viver dessa divulgação, entendeu, e
aí, por mais que a coisa não funcione, mas o pessoal tá vendendo é isso. [...] O
assistencialismo num primeiro momento ele é necessário. [...] É por esse caminho que
deveria vir a meritocracia, entendeu? Reconhecer o esforço que foi feito, reconhecer o
benefício que eles receberam, e o que fazer para os que vem depois? É preciso compreender
que isso foi um primeiro momento. Em seguida, a meritocracia que vai ter que vir,
entendeu? [...] Aqui no Brasil, quando você vê… eh… você inaugurar governos com
“Pátria Educadora”, e botar um sujeito sem a menor qualificação para ser, como foi
aquele… Ministro da Educação, aquele que acabou saindo por que brigou com Eduardo
Cunha. [...] Isso faz com que qualquer apreciação nesse sentido seja supérflua. Entendeu?
<rindo> Faz com que você sabe que, de um jeito ou de outro, vai dar em nada.
Considerando que as lideranças são desse tipo. [...] bota Pátria Educadora e bota aquele
cara que é um picareta, <fala com ênfase> é muita cara de pau. É muita cara de pau.

Porém, além da responsabilidade das instituições por dar seguimento às políticas


afirmativas - signifique isso o seu aprofundamento ou a desconstrução das condições que
ensejaram sua adoção - é preciso trazer à baila uma discussão sobre a responsabilidade dos
agentes que lidam diretamente com os beneficiários da política. Aliás, diante da profusão de
argumentos trazidos pelos docentes acerca do mérito, capacidade, competência e esforço
pessoal, chega a ser impossível discutir as políticas de cotas sem discutir se os docentes tem
sido competentes no trato com as mudanças trazidas por elas. Não se pretende, com isso,
afirmar que a prática dos docentes, mais ou menos sensível às necessidades de adaptação, é
definitiva no andamento e no resultado dessas políticas, ou mais importante que a dimensão
institucional. Ainda assim, pretende-se chamar atenção para um fato pouco explorado, de
como os docentes tem tratado, na realidade cotidiana, com as mudanças efetivadas com as
144

políticas afirmativas - o que, decerto, influencia seus resultados ao menos de um ponto de


vista qualitativo.
Essa discussão é relevante, ainda que lateral, no conjunto das entrevistas. Porém, em
alguns pontos, os docentes tratam sobre sua responsabilidade pessoal acerca dessas mudanças.
Novamente, esse discurso toma diferentes dimensões e não se limita a uma das categorias
analíticas a partir das quais se caracterizou os docentes entrevistados, embora sejam
influenciados por estes nas suas conclusões, como se vê abaixo:

Olha, eu acho que o professor, pelo menos essa é minha postura, ele tem que se integrar no
momento que eles estão vivendo. Então, perceber e... contactar-se com essa realidade, de
que hoje você não tem aqui só meia dúzia de burgueses, ou pessoas que tem condições
materiais de exercer a sua... a sua atividade, acho que o professor precisa estar atento à esse
detalhe. (Luís)

Eu penso que o professor deve ter um papel de intermediação. Até um certo ponto, não
acho que pode ser uma coisa do tipo... Uma regra formal, que defina que... uma equipe tem
que ter x cotistas e x não-cotistas... Isso é uma estupidez, é uma camisa de força
desnecessária, inclusive parte de um princípio que pode ser equivocado, que é de
subestimar a capacidade dos próprios cotistas de se colocarem, em movimento, disputar,
fazer alianças, enfrentar, desarticular, outras estratégias. Segundo, por que eu acho que... há
outros modos dessa interferência, estabelecendo exatamente mecanismos que, digamos
assim, forcejem, forcejem... eh, a... A identificação do quanto se ganha com a diversidade.
[...] Então, eh... Você tem de adotar estratégias que estimulem o máximo de interação.
(Cândido)

Eu até conversando aqui isso com você, a entrevista tem essa função pedagógica também,
né? Você me permitiu refletir sobre essa prática, então eu vejo que eu tenho uma boa
intenção de tentar fazer isso <risos>, mas não é só ter uma boa intenção, né? Então a gente
tinha que ter discutido isso mais abertamente aqui, se a gente tivesse um planejamento
pedagógico e a gente não tem, né... E isso fazer parte das nossas preocupações, a gente
compartilhar metodologia, compartilhar experiência, porque a discussão racial é uma
discussão que ela não é uma discussão que circula em todos os espaços, e muitas vezes
você vacila por falta de conhecimento, por falta de acúmulo nesse debate, então mesmo
vendo com uma... Acho que é mais do que sensibilidade, a gente precisa de capacitar
mesmo, se preparar pra fazer isso direito. (Francisca)

Este tipo de opinião, ainda que com uma diversidade interessante, acaba por ser
majoritário nas entrevistas. Os docentes afirmam ser importante levar em conta as mudanças
trazidas pelas políticas afirmativas, embora alguns não saibam exatamente como lidar com
isso. Há, claro, exceções; dois tipos são importantes.
Um deles é a negativa em ser sensível às diferenças, como é o caso do professor
Miguel, que diz que "O papel do professor é dar aula e pronto" e que "a aula é igual para
todos". A outra, expressa pela docente Thereza, é a negativa em levar em conta diferenças
especificamente trazidas pelas cotas, ainda que o professor deva ser sensível às diferenças
individuais entre os estudantes.
145

Essas posturas trazem uma discussão interessante sobre a responsabilidade pessoal do


docente no processo educativo. É impossível - ou por demais ingênuo - debater mudanças
institucionais sem implicar em como os agentes que a executarão na ponta vão lidar com ela.
Sobretudo num contexto, tanto nacional quanto específico da UFBA, de forte resistência,
declarada ou não, às cotas no corpo docente (SANTOS, 2012a; ALMEIDA FILHO et al,
2005). Os docentes parecem ter uma consciência disso, de uma maneira geral.
Mas, novamente, o aspecto declarativo é o menos rico para a análise. Não se busca,
aqui, estabelecer nenhum tipo de oposição entre a responsabilidade institucional e a
responsabilidade pessoal; no entanto, se é compreendido pelos docentes que há ambas, é mais
que possível - é desejável - que se observe como se cumpre essa responsabilidade, ao menos
do ponto de vista de suas entrevistas. A descrição sobre a prática docente, tanto nos blocos
neutros quanto nos blocos de perguntas racializadas, permite engendrar essa análise.
Cabe ressaltar que a falta de discussão, sobretudo sobre a questão racial, foi apontada
por alguns docentes como um entrave importante para se posicionar diante das mudanças.
Como já relatado pela professora Francisca, a absoluta ausência de iniciativas institucionais
para que os docentes relatem e troquem experiências num processo de planejamento
pedagógico leva a uma prática docente, na maior parte das vezes, individualizada e às cegas.
Ainda assim, alguns docentes demonstraram abertura para discutir o tema, o que se
pode considerar importante levando em conta a percepção generalizada de que não apenas há
vivências diferentes, como também demandas acadêmicas diferentes. Considerando a
autopercepção, é preciso relembrar que o silenciamento e a invisibilidade foram relatadas
como uma prática com a qual mulheres e negros tiveram de lidar, e que, portanto, a atitude
oposta àquela, ou seja, fechar-se para a discussão, configura nitidamente uma resistência, na
medida em que significa continuar tratando, de maneira acrítica, o corpo estudantil com um
universalismo artificial, como se ele não houvesse mudado.
Aliás, a construção de um ser humano universal - que, não por acaso, seria branco -
reduz a discussão sobre estas identidades a um problema do outro, enquanto a identidade
hegemônica segue sem ser questionada. Assim, o silêncio é uma armadilha, que funciona
apenas para identidades subalternas, sendo bastante confortável para os dominantes (Bento,
2002).
Portanto, a abertura ao debate sobre a realidade e as demandas desse novo perfil do
estudante de direito, apontado pela maioria dos docentes, é fundamental como uma estratégia
de reposicionamento das relações acadêmicas a partir da mudança da clientela da
universidade. Não é o que se verifica, porém, em muitas entrevistas.
146

O docente Miguel novamente se coloca como contraexemplo radical. Não vê


diferenças na composição racial de sua sala de aula depois das cotas, alega que a aula é a
mesma para todos e mais: que suscitar discussões como a deste trabalho é "perigoso" e
"venenoso". É seguido, de maneira moderada, por outros; de uma maneira geral, aliás, afora
os que expressamente dizem estar dispostos ao debate, há uma tendência a preferir não entrar
nesta questão.
A identificação com posturas universalistas, mesmo frente a dificuldades específicas,
geralmente está identificada com um fraco padrão de colaboração e um padrão de resistências
mais intenso. Uma ideia difusa, presente em muitas entrevistas, de "não valorizar demais
essas questões", implicando que ignorá-las vai, de alguma forma, contribuir para a sua
solução - inclusive, com coerência com algumas das estratégias relatadas para superar suas
próprias dificuldades. Há exceções que serão destacadas nos demais pontos.
Diante de um quadro de percepção de poucas iniciativas institucionais para lidar com
a mudança no perfil dos estudantes, o silêncio constitui uma armadilha importante. Sem
orientação institucional ou acolhimento sistemático, essas novas demandas, quando passam
despercebidas pelos docentes, acabam por configurar obstáculos no percurso acadêmico. É o
que argumenta o professor Cândido:

Não existem estudantes médios, abstratos, existem estudantes concretos. E esses estudantes
concretos tem demandas diferenciadas, tem potencialidades diferenciadas, e você tem de
saber, na condição de um provocador, de um facilitador, como deve ser a função de um
professor, a capacidade de mexer com o máximo disso. Claro que nunca é possível uma
visão ideal, que vá dar conta de todas as demandas. Mas também fingir que elas não existe
e pensar um estudante abstrato é fatalmente cair na armadilha de reproduzir um modelo
pedagógico orientado para o estudante médio, estudante clássico, que não é esse que entra
agora. Então é preciso sim considerar isso na sua formação.

Mais do que uma atitude pessoal, o modo como se posicionam os docentes - que,
enquanto categoria, são responsáveis pela administração da Universidade - acaba também por
influenciar no formato das próprias políticas. Assim, por exemplo, a Lei de Cotas no Serviço
Público, que estabelece 20% de reserva de vagas nos concursos públicos federais, tem sofrido
importantes resistências na sua implementação na UFBA por conta de posições deste tipo. É o
que relata a professora Felipa:

Já tem produzido uma resistência, uma série de tentativas de desvirtuar o conteúdo da lei,
de fragmentar, de fragmentar a, o percentual, de dizer: 'ah, é... eu só vou atribuir a cota de
20% quando eu tiver condições de atribuir a cota', então, pra atribuir cota de 20% você
precisa ter vagas, ter três vagas do concurso, porque aí eu separo os 20%, né? Só que isso
inviabiliza, porque a gente sabe que concurso pra professor nunca tem três vagas, é sempre
uma vaga.
147

Essa é uma dificuldade prevista quando da elaboração da lei, tendo havido alguma
discussão mínima sobre a necessidade de universidades adotarem medidas complementares
para efetivar a lei (SILVA; SILVA, 2014). Alguns docentes entrevistados posicionaram-se
favoráveis a implementação de algum tipo de medida complementar para evitar que a lei se
tornasse inócua, mas outros adotaram resistência ativa, à exemplo de Ives:

Não. Porque eu acho que a lei tem que ser cumprida como ela foi feita. Se são uma ou duas
vagas, e isso vai ser um problema sério, pelo seguinte… eh… essa questão de grande
contratação de professores que vem nos últimos anos ela vai acabar agora[...] Outra coisa
eu faço restrição… na discussão sobre isso no Programa de Pós-Graduação em Direito, [o
coordenador] acha que deve ser obedecido ao pé da letra, mas mestrado e pós-graduação
não é pra aplicar essa lei. Não está na lei, Heron acha que tá, não tá não, tá entendendo?
(Ives)

Esta postura, que é seguida por outros docentes, implica em virtualmente inviabilizar
a lei. Esta disputa, à época do trabalho, estava em curso, com docentes como Felipa e
Cândido, inclusive, fazendo parte de um grupo de pressão mais amplo para o cumprimento
do percentual da lei na sua integralidade, com outros docentes entrevistados também
alinhados à sua posição.3
Assim, a institucionalização das políticas acaba despertando um debate que, em geral,
fica latente no corpo docente - e neste tipo de debate, como visto no conjunto de artigos do
livro de Santos (2012), posições mais exclusivistas acabam isoladas e o debate passa a ser
sobre como realizar a inclusão pretendida. No dia a dia, porém, o silêncio acaba sendo uma
armadilha presente.
Dessa forma, até na percepção dos próprios entrevistados, é papel sim do docente ter
abertura para perceber e discutir essas mudanças, bem como encaminhar seus métodos de
maneira a atender às novas demandas que surgem. É quase consensual entre os docentes que
elas surgem, aliás; o que fica em discussão é o quanto eles se adaptam a elas.
De maneira ampla, o que se pretende colocar aqui é que, a partir do exposto pelos
docentes, bem como a partir da literatura que discute a ascensão social, e em específico, a
inclusão social na universidade a partir das cotas (SANTANA, 2009; SILVA; SILVA, 2014;
PINHEIRO, 2010; CICALÓ, 2012; PASSOS, 2015; IPEA, 2014), o silêncio e a recusa em
discutir já configuram um importante padrão de resistência, na medida em que julga ser

3
Ainda não havia sido aprovada a Resolução 01/2017 do Conselho Acadêmico de Ensino da UFBA, que criou
cotas na pós-graduação, com reserva de 30% das vagas para pretos e pardos e criação de até quatro vagas
extras, sendo uma para cada uma das categorias: indígena, quilombola, pessoa com deficiência ou pessoa
trans. Este é um debate que encontrava-se em franca disputa quando das entrevistas.
148

desnecessário ajustar a instituição e a prática docente às novas demandas que os próprios


entrevistados reconhecem que surgem, por vezes inclusive sugerindo a supressão dessas
demandas, o que será discutido ponto a ponto nas subseções a seguir.

5.3.2 "Professor, tô sem dinheiro pra pegar um ônibus, pra ir lhe ver na Justiça":
lidando com dificuldades materiais no percurso acadêmico

De uma maneira geral, há entre os docentes uma acertada percepção acerca de uma
maior entrada de estudantes pobres a partir da política de cotas, como já discutido. Na lei de
2012 já se estabelece um percentual de 25% para cotistas de baixa renda, abaixo de 1,5 salário
mínimo familiar; no entanto, desde a resolução de 2004 que já se verifica um aumento da
entrada de estudantes dos estratos inferiores de renda, no caso da Faculdade de Direito,
aumentando a participação do segmento de renda familiar de até 3 salários mínimos de 1,7%,
em 2004 no pré-cotas, para 28,1%, em 2012, antes da lei (SANTOS, 2013). É importante
perceber que, diferente da questão racial, há dados que normalmente são menos questionados,
pelos entrevistados, acerca deste contingente, visto que nele está suspensa a polêmica sempre
presente acerca das identidades raciais.
Assim, reconhecer as limitações materiais deste novo contingente de estudantes é
fundamental, portanto. Alguns docentes apontam as possibilidades e insuficiências do ponto
de vista institucional: Ives, por exemplo, ao ser questionado sobre se avalia que há diferenças,
nos cotistas, do ponto de vista de trabalho, transporte e material didático, aponta que

Rapaz, isso tem, mas a Faculdade já se esforçou muito para ajudar essas pessoas nisso.
Ajudou muito, por que botaram esse ônibus, que foi uma ajuda. Eles procuram dar, eh…
assistência estudantil, colocaram residências, e… o que eles chamam de inclusão, né? Tem
sido feito um esforço importante nisso aí.

Importante notar o uso da palavra "já", que acaba por denotar a questão como
resolvida, e não como um objeto de preocupação na sua prática docente. Além disso,
posiciona no âmbito da institucionalidade a resposta a tais questões. É uma opinião que difere
em parte da do professor Cândido, por exemplo, que faz uma crítica à política de assistência
estudantil da universidade:

Acho que há uma mudança para a qual a universidade não se qualificou, que é um
aprofundamento do perfil de... de... digamos assim, de direitos estudantis, sobretudo, que a
149

universidade continua não reconhecendo. Quando eu falo em direitos estudantis, eu já me


antecipo fazendo uma demarcação conceitual e política da tradição universitária de falar em
assistência estudantil. Eu discordo dessa concepção, acho que ela é originariamente
equivocada e fruto de uma universidade que se via fazendo uma espécie de filantropia para
alguns estudantes pobres [...] A meu ver essa é uma agenda que tem que ser enfrentada por
uma posição estruturante da universidade, para fazer valer os direitos desses sujeitos que
ingressam na universidade. [...] E mais: praticamente não tendo alterado essa política em
face dessa demanda nova, né, incorporada. Isso eu penso que é um problema que embora
gere dramas e muitas vezes prejuízos irreversíveis para parte dos estudantes cotistas.

Assim, o professor Cândido identifica que a universidade modificou sua forma de


acesso, trazendo como estruturante a inclusão nessa fase de pessoas pobres e negras, mas não
teve uma mudança de igual vulto na sua concepção acerca da permanência desses sujeitos.
Novamente, esta é uma posição que evidencia o quanto a possibilidade de enfrentar estas
questões escapa do âmbito da prática docente e se configura numa questão institucional
relevante.
Isso não quer dizer, porém, que os comportamentos dos professores não façam a
diferença. Aqui, novamente, é possível localizar nos relatos um conjunto de práticas que,
levando em conta ou ignorando esta mudança de ordem material, contribuem ou dificultam a
presença desses novos sujeitos na universidade.
A professora Quitéria faz um relato, por exemplo, sobre um comportamento muito
pontual, mas que explicita a falta de sensibilidade em alguns casos. Ela relata que há docentes
que não cancelam suas aulas quando há greve de ônibus, com a justificativa de que os
estudantes podem ir de carro. No caso dela,

Quando tem greve de ônibus eu não dou aula. Por que eu sei que é minoria, por que a
maioria na Federal tem carro, mas eu não dou aula. E digo exatamente o porquê. Por isso,
que a minoria, eh… A democracia é a prevalência da opinião, da vontade da maioria,
observado os direitos das minorias.

Essa postura identifica uma prática que, ainda que não seja definitiva na permanência
de um estudante que anda de ônibus, certamente manda um recado sobre quem é o público
prioritário da universidade. Isso reflete o que o professor Cândido sentiu, enquanto estudante
pobre e negro, na graduação: "Você não é daqui. Este mundo não é o seu", num relato sobre
referências simbólicas que certamente também serve para seus relatos sobre dificuldades
materiais, que o fizeram se sentir em "um processo bastante, eh... Turbulento, né, e... penoso e
muitas vezes quase conduzindo a expulsão da universidade."
Outros questões mais específicas também são colocadas. A questão do material
didático é um deles; no Direito, há necessidade de estudar tanto os códigos vigentes, que tem
150

atualizações muitas vezes anuais por conta das novas leis aprovadas, quanto o que chamam de
"Manuais" ou "Cursos" - livros que guiam o estudo de determinada disciplina e que também
tem atualizações frequentes. Esses livros variam de preço; enquanto alguns custam 15 ou 20
reais, outros chegam a casa das centenas de reais.
É fantasioso imaginar que a maioria dos estudantes comprem todos estes livros,
mesmo os estudantes de maior renda familiar. Não obstante, alguns docentes alertam que
percebem a diferença entre estudantes que tem biblioteca em casa e os que fazem uso da
biblioteca da universidade.
Conforme a exploração do campo e contato com os informantes, a maioria dos
estudantes lança mão de métodos alternativos para o estudo, sendo o principal deles o uso de
"cadernos digitados", que são a versão digitalizada das anotações de estudantes de semestres
anteriores. Ainda assim, a desigualdade no acesso ao material didático, ainda que não haja
evidências de que isso implique numa diferença quantificável no desempenho dos discentes, é
sim uma questão tratada com diferenças importantes, inclusive no que tange à percepção
sobre a condição econômica dos estudantes.4
Voltando para os relatos dos docentes sobre suas práticas, enquanto Miguel faz
questão de ressaltar que suas aulas são feitas com "esquemas baseados nos melhores livros",
sem detalhar como esses esquemas são apreendidos pelos estudantes, Eduardo relata que
prepara material específico para suas turmas desde que começou a dar aula, utilizando de
substrato o que produziu para estudar para os concursos:

Um material que eu dou pros alunos, né? Desde o começo é assim... entao esse material
eles gostam, facilita... Porque nem todos tem acesso a livro. [...] Minha relação com os
alunos é muito sincera, né? Assim eu converso muito, eu acho que inclusive eu dou um
material teórico pra eles, esse material escrito, justamente pra eu não dar uma aula
expositiva exclusivamente conceitual. Entao, eu digo, 'olha...' até brinco, digo, 'Sala de aula
não é lugar pra estudar, estudo é um ato solitário seu e que você vai buscar o conhecimento
a partir de uma reflexão'. [...] Tem gente que não tem dinheiro pra um livro, nada... Já tive
aluno 'professor, to sem dinheiro pra pegar um ônibus, pra ir lhe ver na justiça... porque o
vale que eu tenho é pra vim pra faculdade', entendeu? E aí eu pego e dou a ele o material,
mando por email, agora, bicho, é difícil porque... A UFBA não tem estrutura pra dá
também suporte pro aluno, né? Por exemplo, meu material, ele imprime, eles imprimem...
Cada apostila tem 50 paginas, entendeu? Bota a Xerox, bota num sei que, tem que da os
pulos dele...

4
Aliás, a questão do material didático no curso de Direito, e do seu mercado editorial, valeria uma monografia
à parte: há relato do uso prioritário de livros dos docentes da casa, inclusive com casos pitorescos relatados por
informantes, como o do docente que oferece um ponto extra para quem fichar o livro que ele mesmo
escreveu, ou do que cobrou em prova uma nota de rodapé de livro de sua autoria. E há uma intensa agitação
econômica em torno de “cursos”, “manuais”, “apostilas” e “videoaulas” para concursos, elaborados inclusive
por docentes da casa e editorados por cursos preparatórios ou faculdades particulares, que tem, em alguns
casos, docentes da UFBA como sócios. Tudo isso acaba por configurar verdadeiras grifes jurídicas, atualizadas
anualmente com o anúncio de que o manual dos anos anteriores tornou-se obsoleto.
151

Em outro caso específico, ele cita o fato de receber um orientando seu, que não tem
acesso ao material didático em primeira mão, no seu gabinete, na Justiça, para que ele faça
uso de sua biblioteca particular. É uma atitude, novamente, que embora não faça um efeito
sistêmico, denota uma disposição em contribuir no processo inclusivo.
Aliás, o professor Eduardo é um dos que usa o discurso meritocrático do "correr
atrás", nas suas palavras; no entanto, diferente da maioria dos que o fazem, ele adota um
conjunto de medidas, das quais essa é uma das principais, que configuram importantes
práticas de colaboração. Elas estão sempre mediadas pela percepção do docente no interesse e
no esforço do estudante, mas estão presentes, como quando, num caso icônico deste tipo, ele
afirma que o estudante, caso se disponha a estudar e aprender, pode refazer as avaliações para
buscar a aprovação em sua disciplina.
O professor Paulo segue numa linha parecida. Relatando ter vivido a situação de
estudar e trabalhar ao mesmo tempo (como também é o caso de Eduardo), ele diz ter uma
maior flexibilidade com o estudante do noturno, uma vez que ele utiliza avaliação processual.
Para ele,

Quem trabalha é muito prejudicado... Aliás, a própria avaliação processual já é uma


tentativa de mitigar, sabe, o prejuízo que a pessoa que trabalha durante o dia... E eu ainda
sou flexível em relação à prazo, em relação a faltas, eu sou muito flexível... Porque eu sei
que a galera, a pessoa que estuda e trabalha... Porque eu também já passei por isso, não na
mesma intensidade, quando eu estudava eu era servidor da UFBA, mas eu senti na pele
isso, quando eu estudei em São Paulo eu também trabalhava e estudava, eu sei que as vezes
você quer, mas você não... consegue. Por fatores externos ao seu querer. E... mas... nas
avaliações, nos processos eu sempre tento mensurar esse querer, de alguma maneira, sabe?
Por que... eu considero, eu tento considerar, tanto quanto o aproveitamento, o querer do
estudante, sabe?

Em que pese a questão dos processos avaliativos terem uma dimensão diferente, na
medida em que esta é uma opção mediada prioritariamente, na maior parte das vezes, por
outras questões, como se discutirá mais adiante, esse ponto específico de levar em
consideração a questão do trabalho no processo de elaboração do método avaliativo é um
importante sinal de um padrão colaborativo. É uma atitude diametralmente oposta àquela, já
discutida, de não enxergar mérito suficiente no estudante do noturno, por conta dos
impeditivos de trabalho.
Já a docente Felipa traz um exemplo de adaptação de sua orientação de TCC para a
realidade de uma estudante mãe, trabalhadora e periférica que, com esse tratamento
específico, acaba rendendo mais que outra orientanda de classe média-alta, indisciplinada e
152

pouco produtiva, rebatendo portanto esse argumento da impossibilidade de conciliar com


qualidade esses elementos:

Eu tou orientando também monografias, né, tenho cinco orientandos. E aí, tem cotista, cota
tanto pra estudantes negros associado ao critério renda, sociais, quanto indígena, né? [...] A
pior é a classe média altíssima, assim, que não cumpriu prazo nenhum, que vai entregar
qualquer coisa, entendeu? Então, eu sinto que esses outros, é... A que é não cotista, mas é
classe média baixa, a família mora no interior, enfim, e tal... Esses outros são muito
empenhados, vão entregar trabalhos de peso[...] Uma das meninas que eu tou orientando,
é... ela trabalha oito horas por dia, tem filho, tem já... e mora num bairro distante[...], vir pro
centro ela mesmo fala 'ah, professora, moro em tal bairro, não sei o que, não sei o que', aí a
gente, eu me adaptei totalmente aos horários dela, assim, então a hora que ela pode, eu
posso, de tipo, é... Só que ela é muito perspicaz, assim, ela correu atrás de muita coisa,
entendeu, coisa que eu nem tinha pensado, ela pensou, então... que eu não sugeri e ela tá
fazendo e tá bem feito, entendeu?

A questão mais central neste ponto, porém, é levantada pelo professor Luís. O acesso
a universidade tem sido um ponto fundamental na ascensão socioeconômica, mas isso não
significa um processo automático. Como discutido até na própria trajetória dos docentes, a
sobrevivência econômica durante o curso é uma questão que delimita muitas possibilidades
dentro da academia. Ele percebe isso ao visitar uma Casa de Estudante, onde a prefeitura de
um município do interior custeia uma casa para estudantes que vão para a capital fazer uma
universidade:

Um aluno aqui me procurou, pedindo pra eu assinar uma lista, um livro de ouro pra uma...
uma... residência estudantil de uma cidade aqui do interior, aí chegou aqui e eu 'Tudo bem,
mas eu gostaria de conhecer essa residência'. [...] Aí eu cheguei lá, e eu lhe confesso,
rapaz... Dizer que eu fiquei traumatizado, é conversa fiada, por que a essa altura não dá pra
você se traumatizar. Mas eu fiquei muito preocupado. <ênfase> Muito preocupado. E aí
comecei a conversar com esse aluno [...] Pra a gente verificar como poderíamos ajudar, do
ponto de vista até legislativo.

Frente a essa questão, o professor Luís levanta um exemplo, pouco citado pelos
professores mas bastante percebido na observação do campo: a questão das bolsas e estágios.
Como ele aponta, resumindo também a discussão feita anteriormente,

Normalmente o cotista, [...] às vezes, de origem mais humilde, e tem uma relação mais
próximas, mais próxima com as atividades da Universidade. Às vezes eles frequentam o
Restaurante Universitário, alguns tão na residência, alguns precisam, não tem uma
biblioteca em casa, precisam estar aqui na faculdade para relacionar-se, eu acho que esses
alunos cotistas, talvez por essas deficiências materiais, né, ou insuficiências materiais, eles
terminam se integrando mais à universidade do que aqueles que tem biblioteca em casa, ou
o pai... as vezes é vinculado, e aqui nem aparece. Também, né, por que alguns começam a
fazer estágio, né, e essa passa a ser também uma necessidade. Às vezes até se integrar a
uma bolsa do PIBIC ou alguma coisa passa ser uma necessidade de complementação pra
pagar um pensionato, alguma coisa...
153

Assim, percebe ele, conquanto um estágio ou iniciação científica seja uma


oportunidade de qualificação profissional e acadêmica para qualquer estudante, para o de
baixa renda, identificado como cotista, é uma questão de sobrevivência. Além disso, as
dificuldades já elencadas em conciliar um trabalho formal e o estudo fazem com que, além da
necessidade de buscar a assistência estudantil, disputar as bolsas de iniciação e os estágios
acabe sendo uma forma de levantar a renda suficiente para manter-se na universidade.
Desta forma, a escassa oferta de pesquisa e extensão relatada pelos professores
assume um contorno mais dramático frente a essa questão. Ela é contraposta pela oferta de
estágios na área profissional, reproduzindo desde já a lógica percebida na trajetória dos
docentes, de menor prioridade aos aspectos acadêmicos da formação e maior prioridade para
os aspectos profissionais. Diga-se, porém, que a concorrência para os estágios é altíssima,
uma vez que Direito, juntamente com o curso de Administração, é o que tem o maior número
de matrículas no ensino superior brasileiro (INEP, 2015).
Na exploração do campo, o que se verificou é que há uma disputa intensa por vagas
de estágio que remuneram melhor, chegando a haver vagas que pagam 1.300 reais. Há dois
tipos principais de estágios: os que são por concurso, que pagam bem e há uma percepção de
que tem menos vagas disponíveis, carga de trabalho menor, que geralmente são para órgãos
do Judiciário, Ministério Público, Defensoria e outros órgãos públicos; e os que funcionam
por regime de seleção, preferência ou indicação, que funcionam principalmente em escritórios
privados, que tem desde estágios não-remunerados até estágios com bolsa na casa dos 1.000
reais. A docente Felipa comenta, também, esse assunto:

Alguns estágios pagam muito bem, sobretudo se for comparar ao advogado recém formado,
o advogado recem formado vai ganhar mil e duzentos reais pra trabalhar 60 horas semanais,
o estagiário trabalha 20 horas e ganha mil e cem... <risos>

Não há a possibilidade de explorar a contento o assunto, que renderia bastante, mas é


importante destacar que a maioria das oportunidades de qualificação remunerada encontram-
se fora da universidade e sujeitas a procedimentos pouco afeitos ao mundo acadêmico. Porém,
assim como no mundo acadêmico, muito dependentes de um trabalho de construção de redes
de contatos, apadrinhamento e disputa em regimes de preferência que, em geral, é mais difícil
para pessoas negras e/ou pobres (CARVALHO, 2003).
Aliás, numa perspectiva de gênero, uma das discentes informantes, uma jovem
mulher branca, revelou angústia por estar há meses disputando vaga de estágio. No caso de
um escritório que paga 1.000 reais, explorando o histórico da seleção, descobriu que o
154

escritório só contratou, anteriormente, homens, o que ela julgou constituir uma espécie de pré-
requisito tácito, algo corroborado por seus colegas.
Isso não é sempre assim: há casos em que há chamada exclusiva para estagiários
homens, embora não seja tão comum e normalmente sofra críticas públicas quando ocorre.
Um caso inverso foi constatado, de uma ONG que fez uma chamada para mulheres,
prioritariamente mulheres negras, para um estágio na área de apoio jurídico a mulheres
vítimas de violência. O estágio, no caso, era voluntário e não-remunerado.
Outro caso relatado é o de um escritório que paga muito bem e contratou o filho de
um professor da casa quando este ainda estava no primeiro semestre. Em outro aspecto, este
muitíssimo comum segundo os informantes, é a exigência de carro para participar da seleção
do estágio, um fator que diretamente exclui, como relatam até os docentes, uma parte
significativa dos estudantes oriundos das políticas afirmativas, muitos deles pobres e usuários
do transporte público.
Figura 4.1 - Estágio para estudante homem

Figura 4.2 - Estágio para estudante com carro

No âmbito dos docentes entrevistados, porém, há exemplos de atitudes


afirmativamente inclusivas que buscam viabilizar, dentro desta competição que, na maior
parte dos casos, está longe de priorizar o mérito pessoal, a inclusão destes novos sujeitos. É
importante ressaltar que apenas o fato de existir, dentro do ambiente acadêmico, tais
oportunidades, já enseja a possibilidade de discutir o mérito da inclusão, na medida em que
esta é uma instituição que assumiu a equidade como uma bandeira ao aprovar as cotas.
E também, como argumenta Carvalho (2009), uma vez que se trata de seleções onde
já se exercita o regime de preferência e não de mérito pura e simplesmente, o uso de critérios
inclusivos não é, de maneira alguma, uma mudança que prejudique a qualidade técnica do
155

ambiente. Como diz uma das pessoas entrevistadas, atestando que não se trata simplesmente
de seleções meritocráticas, pedindo especialmente a não-identificação neste ponto: "Todas as
seleções que eu fiz na UFBA, todas, não só em relação a professor, a pós-graduação,
mestrado, doutorado, eu sempre ouvi isso. Tem carta marcada, fulaninho vai botar pra dentro
quem ela gosta, quem ele gosta".
Dos entrevistados, alguns casos se destacam. Ainda no âmbito externo da Faculdade,
a docente Felipa afirma utilizar critérios inclusivos na seleção de estagiários, transformando o
regime de preferência a partir destes:

Eu participo de algumas seleções de estágio também, né, e aí a gente sempre procura adotar
uma, um critério de igualdade racial, étnico e, é... de gênero. Então, tem muita, já teve
época de ter estagiário indígena, já teve época de ter estagiário cotista do, é, do PRONERA,
né, cotista do PRONERA, né, atualmente inclusive, a, os dois estagiários que estão hoje é
uma menina que é cotista, é, e o outro que é do PRONERA, a anterior é indígena. Antes
disso, a, os estagiários não entravam nesse critério, em nenhum critério desses.

Ela relata que a adoção desse procedimento modificou substancialmente o quadro de


estagiários de seu local de trabalho, anteriormente ocupado principalmente por pessoas
brancas, de classe média e com muito tempo livre. Essa busca ativa é uma prática que Santana
(2009) já aponta como relevante quando uma pessoa negra assume um posto de comando, e
que merece bastante atenção. Os outros exemplos, porém, são internos à universidade e já
trazem outras marcas distintivas.
A professoras Felipa, Francisca e Orlando, por exemplo, relataram ter bolsistas do
Projeto Permanecer, programa de bolsas de pesquisa e extensão voltado para pessoas com
renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo, mantido pela Pró-Reitoria de Ações Afirmativas
e Assistência Estudantil. Isso reforça o quanto a responsabilidade institucional precisa,
necessariamente, de cumplicidade dos agentes, pois, a execução do programa depende de
iniciativa de docentes. Mas, por outro lado, também incentiva isso; o docente Orlando, por
exemplo, apresenta uma visão universalista nos seus processos seletivos, mas faz a ressalva
sobre o Permanecer, que o estimula a abrir espaço que é preferencialmente ocupado por
cotistas. Nenhum deles relata qualquer dificuldade ou perda da qualidade acadêmica com a
inclusão de estudantes cotistas na sua equipe de pesquisa. Pelo contrário, Orlando diz que na
única vez que soube que um estagiário seu era cotista, percebeu que ele era "Um cara que
tinha uma interação social muito boa. Super bem articulado, e tal".
O caso de Francisca, porém, chama muito a atenção. Conduzindo uma pesquisa que
discute gênero e trabalho, ela tem, além de duas monitoras nas disciplinas que leciona, cinco
156

orientandas de pesquisa - todas mulheres, a maioria cotistas. Seu longo relato acerca do caso,
inclusive do ganho acadêmico que isso representou para a pesquisa, bem como as diferenças
entre as estudantes e os cuidados que ela busca ter no trato com essas diferenças, é bastante
significativo:

É, eu tenho uma orientanda de tcc, tenho uma monitoria, tenho duas monitoras, né, uma pra
cada disciplina, uma delas é cotista, outra não, e tenho as meninas da pesquisa [...] Todas
meninas. Engraçado, né? Mas minha pesquisa trabalha gênero também, então é uma atração
meio que... né? Uma inclinação aí que eu tenho, mas eu procuro também preservar esse
espaço, acho importante. É... Como é que eu posso dizer, eu tenho mais preocupação, não
diria metodológica, mas eu diria, é... Que, talvez, preocupações que você não pode ter, eu
vejo muito nas estudantes que não são cotistas um certo voluntarismo, né? Então 'eu vou,
eu faço, eu aconteço, eu me viro, eu dou um jeito', e eu tenho muito mais preocupação,
porque eu sei que eu preciso pensar na bolsa, eu preciso garantir que aquela estudante tenha
uma condição de transporte, né? Que eu vou marcar um compromisso com ela, vou marcar
uma atividade, eu preciso garantir que seja num local de fácil acesso pra pegar ônibus, que
seja no horário que não seja perigoso, que é diferente de ter uma estudante que usa carro
particular, então essa sensibilidade de ter essa preocupação com as questões materiais [...]
Eu pedi duas [bolsas] e o PIBIC só me deu uma, aí essa era uma estudante que concorreu
pelo PIBIC de concorrência ampla, e as duas que concorreram pro PIBIC de Ações
Afirmativas, o PIBIC também só me deu uma bolsa, e eu fiquei com a mão na cabeça, eu
falei: 'se ela não conseguir a bolsa, ela não vai ter condições de continuar na pesquisa',
porque isso é condição de permanência, né? Não é interesse [...] então aí me desdobrei pra
conseguir financiamento externo, pra viabilizar que ela ficasse na pesquisa, né? Então, eu
não sei se tenho sido sensível o suficiente, né? Acho que o esforço talvez pudesse ser
sempre maior, mas pelo menos no plano, no ponto de vista de garantir a permanência, de
não permitir que a diferença de condição econômica seja um obstáculo pra que elas
participem das atividades, sim, e as vezes eu percebo, é... Eu não vejo, sério mesmo, muita
dificuldade, muita diferença em relação a capacidade de ler os textos, discutir, realizar as
pesquisas, na minha pesquisa que elas tão trabalhando junto comigo inclusive, a gente faz
campo, faz entrevista, como vocês tão fazendo, eu acho até que as meninas, as cotistas, tem
mais jogo de cintura, né? Pra se virar nas situações do que as outras, mas eu não percebo
diferença assim, dificuldade de leitura, de compreensão, isso pra mim é igual... Assim, o
que às vezes, talvez... mais uma insegurança, não é nem uma questão do resultado, às vezes
sinto um acanhamento maior em falar, se colocar, de ter medo de se expor a certas
situações, eu procuro encorajar, né? Porque pra mim de fato é indiferente o resultado,
enquanto pesquisadoras, que elas tão me apresentando.

Com esse relato, pode-se encerrar este ponto apresentando como é cristalina a
percepção de que uma postura afirmativa frente as desigualdades pode consubstanciar uma
prática concreta de colaboração com a inclusão. A docente, sem precisar instituir nenhuma
regra, simplesmente por ter uma postura aberta e um tema de pesquisa bastante ligado à
realidade destes sujeitos, ao estudar gênero e trabalho, consegue viabilizar oportunidades
acadêmicas e de sobrevivência, inclusive adotando estratégias importantes, como a busca de
financiamento externo.
Isto sem contar a parte mais acadêmica, que inclui um círculo ainda maior de pessoas
que dedicam-se à pesquisa, sem necessariamente ter a bolsa. Tanto ela, quanto Cândido e
Felipa, participam de ou lideram grupos de pesquisa ou extensão que tem forte participação
157

de mulheres, negros e negras e do público cotista, constituíndo, como ele o chamou, "bolsões
de resistência" que conseguem enfrentar a dinâmica em geral excludente da vida acadêmica,
sem prejuízo algum à qualidade do trabalho empreendido, num fenômeno similar ao captado
por Pinheiro (2010). E, com isso, coloca na pauta um outro tema, que será tratado logo a
seguir: a abertura dos docentes para novas demandas acadêmicas.

5.3.3 Abrindo ou fechando os caminhos do debate

Os docentes relatam de maneira bastante frequente uma mudança no perfil acadêmico


dos estudantes a partir do processo das cotas. Alguns, especificamente, relatam como os
cotistas apresentam maior criticidade e/ou politização, correlacionando essa mudança de perfil
com as ações afirmativas. Há apontamentos, na literatura, sobre como a política afirmativa
significou um xeque epistemológico na universidade brasileira, seja pondo em questão a
posição até então hegemônica de neutralidade racial, seja num processo de "insurgência
epistêmica" (PINHEIRO, 2010) por parte dos sujeitos que, até então, eram ativa ou
passivamente excluídos da universidade (PASSOS, 2015; CARVALHO, 2003).
Assim, levando em conta este tipo de relato, bem como a literatura consultada, fica
em aberto a questão sobre como os docentes lidam com essa nova cadeia de demandas
acadêmicas. Se, como já discutido, há exemplos bastante afirmativos através da organização
de projetos de pesquisa e discussão acadêmica sobre temas que conseguem polarizar esse
novo público, por outro lado, como é o trato dispensado a essa questão no cotidiano?
Na sala de aula, há um conjunto de relatos que apontam que há, sim, docentes que se
sintonizaram a esses fatores e buscam fugir de um modelo tradicional e tecnicista que, para
eles, não atendem às necessidades mais atuais. Há exemplos mais singelos, como o caso do
docente Luís, que relata que sempre procura fazer métodos alternativos, como "Trabalhos
lúdicos, que devem ser apresentados durante o semestre, teatro, música, esse semestre nós
tivemos fantoches, tivemos brincadeiras, todos alunos que tiveram comigo fizeram". À
primeira vista, esse fato pode parecer irrelevante; porém, ao observar o tipo de trabalho que
surge, no relato do próprio docente, percebe-se como isso possibilita a expressão de demandas
acadêmicas fora do escopo tradicional:

Peraí que eu vou lhe mostrar, eles produziram uma cartilha, do movimento negro, né, sobre
a questão dos terreiros de candomblé e a tributação. [...] Eles são do movimento negro,
negócio de terreiro de candomblé, e fizeram uma cartilha. E eles apresentaram, o pessoal...
158

Uma reação tranquila. Eles apresentaram na sala, né, falando sobre os equívocos da
prefeitura, sobre como tributar os terreiros de candomblé, por que o prefeito deu uma
remissão, não era pra ter dado, e tal...

Desta forma, percebe-se como o método avaliativo diferenciado acaba por facultar ao
estudante a possibilidade de abordar outros temas e demandas que, talvez, uma visão mais
tecnicista ou tradicional não permitisse. Estas implicariam, como relatam alguns docentes, em
"aulas expositivas" com provas discursivas ou, em muitos casos, de múltipla escolha ou
verdadeiro e falso.
Há, porém, posturas mais ativas de promoção do debate com outras perspectivas -
que são evidentemente mediadas pelas possibilidades do conteúdo de cada disciplina. Essas
posturas implicam, sobretudo, em diferenças no método de aula e de avaliação, como
demonstram os exemplos a seguir.

É, eu percebo que alguns temas vão interessar e são importantes de serem tematizados mais
extensamente pra alguns grupos do que pra outros, e eu acho que esses temas devem ser
tematizados ainda que os outros ignorem, né? Então eu sei que tem algumas discussões que
vão render mais, né, por serem discussões sensíveis, né, pra determinados grupos, e eu
procuro dar visibilidade a essas discussões, né? Então eu reservo isso, passar pela questão
racial, pela questão de cotas, mas também por outras preocupações né, então eu faço uma
aula específica sobre trabalho das mulheres, assédio sexual e moral contra mulheres
especificamente, eu tento discutir bastante a questão do trabalho doméstico, que é um tema
que polariza, que você imagina na sala de aula levantar a mão a menininha branca que fala
“Ai, isso aí tornou mais cara a minha empregada doméstica” e a outra que vai levantar a
mão e dizer pra mim “A minha mãe é empregada doméstica”, né? (Francisca)

De um modo geral esses estudantes concordam bastante com a perspectiva que eu tou
trabalhando, né, então, falam, é... não se colocam por exemplo naquela coisa de
questionamento em uma determinada perspectiva política, então tem um certo é... eu
encontro uma certa ambiência favorável para discutir determinados assuntos, determinadas
questões, tão sensibilizados pra uma série de coisas que eu venho falando, então, é... Com
os estudantes negros eu tenho um vínculo bom[...] (Felipa)

Eu trabalho basicamente com dois modelos [de avaliação]. Um facultativo[...] que é o


modelo qualitativo de avaliação, baseado em três pilares: assiduidade qualificada[...]; a
produção das tarefas combinadas[...]; aquilo que eu chamei de debate [...] A outra opção,
para os que não aceitam essa experiência ou não querem se aventurar ou que fracassam no
cumprimento das metas mínimas nessa experiência é a prova formal[...] Em geral, o índice
de adesão a esse modelo [qualitativo] é de pelo menos metade da turma, muitas vezes
atingindo toda a turma. [...] Eu penso que há uma mudança progressiva no perfil dos
estudantes, sobretudo com as políticas de democratização da universidade, trazendo cada
vez mais um público que tem interesse no debate e que quer vivenciar essa experiência de
reflexão, de aprendizado, de troca. [...] Nós elencamos dez temas cruciais da sociedade
brasileira para debater ao longo do semestre. Invariavelmente, alguns temas estão presentes,
como relações raciais, relações homoafetivas, relações de gênero, reforma agrária, eh...
guerra às drogas ou a questão das drogas, né, a situação... envolvendo as drogas. Sistema
prisional, ehm... Hoje, cada vez mais frequentemente direito à cidade, enfim. Esses temas
provocam polêmicas das mais variadas. (Cândido)
159

Deste modo, se exemplifica desde uma maior abertura à discussão de questões que
mobilizam mais, na visão dos docentes ao menos, o público das cotas, até a construção de um
método de avaliativo que força o debate, de maneira a levar mesmo o estudante
desinteressado em tais questões "ter o mínimo de contato com o que tá sendo discutido"
(Cândido), como também já discutido pelo professor Paulo em trecho destacado
anteriormente. Esta postura configura, também num aspecto qualitativo, uma prioridade em
identificar e encaminhar demandas acadêmicas, em sala de aula, que esses mesmos docentes
identificam como amplificadas pela implementação das cotas.
Há, não obstante, a postura contrária, mais refratária ao debate sobre questões que os
próprios docentes apontam como centrais para o público das cotas. É o caso do professor
Miguel, que aponta um crescente processo de politização do corpo estudantil. Porém, diz ele
também: "Não alimento agitação política", por que "sala de aula não é lugar". Ele relata atuar
ativamente para reduzir a intensidade do debate na sala de aula, preservando suas aulas
expositivas. Ele o faz motivado por uma avaliação de que esta politização tem sido prejudicial
à qualidade acadêmica e de que, além disso, o conteúdo de sua matéria é por demais técnico e
não suscita tanto debate.
O fechamento que Miguel expressa se repete em poucos casos e de maneira bem
mais branda, como quando o docente Eduardo afirma:

Como eu disse, sempre evitando bandeiras partidárias. Claro que a universidade, ela já tem
uma tradição de ter movimentos políticos lá dentro, né, ativismo político em alguns casos.
Que eu particularmente sou contra... mas é inevitável. Inevitável porque você vai tá num
ambiente intelectual, fatalmente você vai ter que unir a ciência política à prática política,
né, porque sem a prática nada se realiza, e o direito hoje é um direito de transformação. Os
alunos são ensinados assim... 'o carater emancipador do direito, o carater transformador'...
Então.. Isso cabada descambando... Claro que eu evito o maximo discussões dessa natureza,
porque acho que a gente perde energia com isso e poderia tá ali discutindo racionalmente a
política.

Ao falar sobre polêmicas em sala de aula, o docente acaba por fazer uma interessante
discussão sobre a questão da politização, oferecendo um outro argumento para explicá-la: a
mudança no próprio ambiente intelectual do Direito a partir da Constituição de 88 como uma
carta carregada de "valores político-culturais". E posiciona-se, afirmando que, embora natural,
é algo que evita na sala de aula, nos choques entre visões, por exemplo, sobre se "o Estado
tem que ser mínimo, se o Estado tem ser máximo". E mais além, ele confere à esses conflitos
ideológicos, num tom bastante crítico, um menor grau de racionalidade. Cabe ressaltar que ele
se filia ao conjunto de docentes que avaliam que cotas trouxeram um certo
160

"multiculturalismo" que politiza universidade, com vivências das mais distintas coexistindo
ineditamente em sala de aula.
De resto, porém, a indiferença é a maior característica neste ponto. Muitos,
reconhecendo ou não o surgimento de novos temas candentes, optam por não trazê-los à tona,
muitas vezes argumentando que a disciplina não proporciona essa abertura. Em outros casos,
é o método expositivo que limita, em certo aspecto, a produção de dinâmicas que valorizem
mais essa diversidade de vivências no corpo estudantil. A professora Quitéria, por outro lado,
pondera que há

[...] Colegas que catequizam. Então eles acreditam aquilo, o aluno tem que responder
exatamente aquilo, não oportunizando o debate, o que é pra mim o mais importante da
academia. [...] Então, eu apresento uma doutrina que eu concordo e eu nem falo da outra. E
eu acredito que isso é um problema.

Não pensar nessas especificidades nem abrir o debate, na avaliação de alguns


docentes, significa "pensar um estudante abstrato é fatalmente cair na armadilha de reproduzir
um modelo pedagógico orientado para o estudante médio, estudante clássico, que não é esse
que entra agora" (Cândido). Novamente, aqui, cabe ressaltar como os docentes do curso de
direito em geral são mais ligados ao ensino das disciplinas técnicas de meio e fim de curso,
restando aos docentes da área de Teoria do Direito e de outras unidades a tarefa de receber os
estudantes, no início do curso, com temas mais abrangentes.

5.3.4 "Professora, que bom que você 'tá aqui": reconhecimento, empatia e modelos

A política de cotas traz um dilema descrito por Fraser (2006) como dilema da
redistribuição-reconhecimento. Este dilema implica, no caso em tela, em uma contradição
entre a demanda necessária de inclusão de determinados grupos da sociedade - de maneira
mais massiva, pessoas negras e pobres - em oportunidades educativas igualitárias com vistas a
produzir maior igualdade material para contrabalancear o ciclo de desigualdades existente, e a
necessidade de criar um reconhecimento positivo da identidade coletiva desse grupo
subalterno, normalmente identificado como um grupo "fora do lugar" em espaços como a
universidade ou o serviço público, o que enseja uma série de discriminações e experiências
negativas, por vezes danosas aos indíviduos ao gerar solidão, tristeza e auto-exclusão
(PASSOS, 2015; SANTANA, 2009; DUARTE, 2014).
161

Neste ponto, lança-se mão deste dilema para discutir um pouco como a presença de
docentes negros e mulheres cria um ambiente de maior reconhecimento nessas categorias, a
partir do próprio relato destes. Daí, busca-se perceber dinâmicas de empatia e estabelecimento
de paradigmas como uma forma de oferecer aos estudantes um exemplo de vida. Essa é uma
preocupação presente em alguns entrevistas. Como a professora Quitéria relata, não é só o
conteúdo das matérias que os professores ensinam; para ela, as atitudes e as vivências dos
docentes compõem um quadro que também é passado adiante:

Esses mesmos professores ocupam, tem uma personalidade, e ocupam alguns determinados
cargos públicos e eles… De maneira muito vaidosa, de maneira… eh… muito pessoal, não
institucional como deveria ser. E aí isso acaba refletindo na sala de aula, então eles… eh…
fazem o que querem como juízes, então também fazem o que querem sem cumprir
regimento, sem cumprir direitos dos alunos, isso reflete nos alunos. Mas o pior do reflexo
não é simplesmente o descuprimento do regimento e fazer cada um o que quer. É que os
alunos recebem essa mensagem, e eles acham que eles podem futuramente fazer isso
também como profissionais, então isso eu acho que é bem negativo. E aí o perfil do aluno
da Federal, pra mim, ainda não… de maneira concreta, mas a impressão, que tem pouco
tempo que eu to lá, né[...], a sensação que me dá é essa, assim. Que eles recebem aquilo e
levam aquilo pra vida profissional… eles podem replicar esse comportamento de… 'Não
existe regra, é como eu quero do jeito que eu quero', e isso é bem prejudicial.

Essa discussão é relevante por que, para o chamado "estudante clássico" (Cândido)
já há, segundo a percepção de muitos docentes, um ambiente favorável na universidade.
Geralmente oriundos de famílias com alta renda e brancos, tendo estudado em colégios
particulares, eles possuem marcas distintivas desde a sua entrada que lhe conferem vantagens
simbólicas sobre esse novo perfil de estudante oriundo das políticas afirmativas. Esse tipo de
vantagem já foi discutido anteriormente, como no caso das fardas ou quando o estudante
negro entra isolado, ao passo que os de escola particular já se conhecem ou se frequentam.
Mais que isso, eles encontram modelos a serem seguidos entre os docentes. Com uma
trajetória de vida similar a sua, a maioria dos entrevistados oferece um discurso sobre si e um
caminho a se seguir que lhes confere orgulho. Os professores Miguel, Orlando e Ives
oferecem, do ponto de vista da referência sobre a trajetória, um esteio firme para os estudantes
com perfil clássico, mais masculino, branco e de maior renda que a média. No seu caso, não
relatam homofilia com estes grupos, mas não há nenhum prejuízo em estabelecê-los como um
modelo a ser seguido, pois unem a origem social superior com o sucesso profissional,
mediados por um discurso que privilegia o mérito e o esforço pessoal, em detrimento das
vantagens familiares ou fenotípicas.
Já com maior presença deste elemento nas entrevistas, há um outro modelo
interessante a ser investigado, que é a ideia de que é possível superar as adversidades e vir a
162

se integrar plenamente no mundo jurídico. É o caso de docentes que, tendo uma origem de
classe menos privilegiada que os anteriores, ou, em alguns casos, enfrentando algumas
barreiras importantes em termos de discriminação, se apresentam como verdadeiros
vencedores, seguindo ainda o perfil meritocrata. Os professores Luís e Eduardo, inclusive,
com uma trajetória que apresenta importantes conexões com um grupo de cotistas bastante
ressaltado por alguns docentes, os oriundos de colégios militares. As docentes Thereza e
Quitéria, mulheres que apresentam a coragem e força para ignorar ou suplantar obstáculos
discriminatórios e ocupar lugares tradicionalmente masculinos - a magistratura e a advocacia
criminal -, certamente significam um tipo de referência.
No caso destes, esse elemento surge substancialmente nos relatos, alguns destes já
discutidos na forma inclusive de sensibilidade para estudantes que tem problemas afeitos aos
que estes viveram, seja conciliando trabalho e estudo ou enfrentando o preterimento e
silenciamento com viés de gênero. As professoras Thereza e Quitéria, por exemplo, falam
muito sobre a necessidade de ter consciência da condição de mulher na medida em que isso
exigirá mais coragem, força, conhecimento e determinação para enfrentar a discriminação -
inclusive, Quitéria relata como também ensina na sala de aula sobre ter o tato necessário de
escolher as brigas que se compra, como no caso do terno rosa, analisado anteriormente. O
docente Eduardo oferece um importante exemplo de como ser um modelo para alguém lhe
dá o espaço necessário para contribuir na trajetória acadêmica dessa pessoa:

Eu tenho excelentes alunos cotistas, excelentes... Até melhores do que não-cotistas, tendeu?
Hoje mesmo eu recebi um aqui que tá fazendo o tema de conclusão de curso... passou a
tarde toda aqui. Ele fica aqui na biblioteca, ele vem, pega o livro. [...] eu costumo perguntar
ao aluno, 'o que você quer'? Porque também assim não tem fórmula do sucesso não, a
fórmula do sucesso depende do que você quer, né? Então o aluno chega pra mim 'Poxa,
professor, eu me inspiro no senhor, quero ser juiz federal' né? 'Você não é obrigado a ser
juiz federal, você não é obrigado a ter esse sonho, isso não precisa lhe gerar expectativa,
mas uma vez que lhe gera, uma vez que você tem esse sonho, então eu vou ter que te dizer
que pra você chegar lá você vai ter que corrigir isso, isso, isso e isso.' Tá entendendo? 'Com
essa escrita você não vai conseguir'. 'Ah, professor, o que que eu faço então pra melhorar?',
'Eu dou o que eu posso ajudar. Vá ler. Va ampliar seu vocabulário...' Tá entendendo? Eu
dou coisa p.. então é por aí. Se o cara falar assim to fazendo o curso aqui, só quero me
formar, não quero nem trabalhar na área, aí pronto. Vai embora assim.

Três exemplos, porém, permitem compreender uma dimensão mais profunda de


relação de empatia ou criação de um processo de reconhecimento daquele grupo específico.
Ela se relaciona com um discurso mais direto sobre como os docentes percebem a sua
presença como um diferencial para aqueles que, entrando numa condição similar à sua, ou de
outro grupo subalterno, encontra uma guarida maior do que eles próprios.
163

A professora Francisca representa isso de maneira significativa em relação às


mulheres. Como já discutido, a sua linha de pesquisa não só acaba por contribuir na
viabilização de oportunidades acadêmicas remuneradas que qualificam a sobrevivência de
algumas mulheres na universidade, mas também acaba por criar um pólo de pensamento que
acolhe as preocupações de pessoas que, por vezes, trazem na sua trajetória as marcas que ela
valoriza na sua pesquisa acerca da questão de gênero e trabalho.
Mais que isso, ela, enquanto uma pessoa que se reconhece como uma "mulher branca
e de uma classe social privilegiada", fatos que de certa forma "amenizam muito o tipo de
discriminação a que outras mulheres estão sujeitas", demonstra uma disposição importante de
ouvir que estende essa certa política de reconhecimento às mulheres que tem outras
trajetórias, quando perguntada sobre o que significa, na opinião dela, ser uma pessoa negra
num ambiente majoritariamente branco:

Eu confesso que eu passei a ficar mais atenta a isso depois de ter acesso a esse debate, e
recentemente eu passei por uma discussão, uma discussão não, na verdade foi uma conversa
né, eu com as meninas do meu grupo de pesquisa, a gente conversando e elas trouxeram
esse relato né, de principalmente... Um relato que me... Assim, elas dizendo como elas se
sentem fora nesse espaço, e assim, aquilo me tocou, porque a gente percebe que há uma
divisão, que há uma polarização, mas não que aquilo afetasse tanto as pessoas a ponto de
gerar um sentimento de mal estar dessa forma né, eu acho que isso é uma experiência muito
intensa que eu posso ter empatia, mas que eu não posso imaginar como é, sabe?

Esta posição é também compartilhada pelo professor Cândido, que, na sua trajetória
universitária, optou por tentar construir um pólo que aglutinasse as vivências e perspectivas
das pessoas negras da Faculdade, num processo ativo de insurgência epistêmica. Fazendo
muitas referências ao programa de pesquisa e extensão que faz parte, que abarca pessoas de
outras instituições e conta com seis professores e trinta estudantes, ele afirma que

Nós temos debatido e já começamos a produzir alguns textos sobre a dimensão do


androcentrismo da universidade, tanto que nós denunciamos a universidade como
monocultural, epistemicida, racista e <ênfase> androcêntrica. Não só machista, mas
androcêntrica. Então, sim, entendo que há um desafio aí a ser respondido, né?

Este trecho se destaca, em relação a outros, por que ele oferece uma dimensão
espelhada do relato da professora Francisca. Ele, homem negro, ao entrar na Universidade
como docente, se valeu da característica da Faculdade de Direito de ter baixa densidade em
termos de titulação acadêmica como um fator que lhe permitiu adiar a sua qualificação formal
para investir no que chama de "formação de demanda" e "disputa na base", de modo a não se
tornar um "professor isolado" e "sem ter com quem falar", do ponto de vista da questão racial.
164

A consequência disto acaba por ser a formação de um pólo que leva em conta ativamente a
questão de gênero, consubstanciando uma certa afinidade tácita entre o pensamento do grupo
à qual Francisca se afilia e o do que o docente Cândido se afilia.
Essa tarefa construção consciente da demanda significa, na prática, oferecer o que o
próprio chama de "bolsões de resistência" para aqueles sujeitos que, assim como ele, não se
enquadram na perspectiva epistemológica que eles percebem na universidade. Isso,
definitivamente, implica num processo de construção de outro quadro de referências de
trajetória para os estudantes da faculdade.
A professora Felipa, por outro lado - também participante deste grupo -, oferece uma
perspectiva mais singela deste fator de empatia e reconhecimento. Ela relata ter um pouco de
receio de assumir abertamente esse papel de referência para outras mulheres negras, mas
colocou com bastante firmeza no seu relato o quanto estudantes negros e principalmente
jovens mulheres negras agradecem a ela por simplesmente estar ali. Ela sabe, e seus
interlocutores demonstram, o quanto essa presença faz diferença na projeção que as pessoas,
negras e/ou mulheres, fazem de seu futuro ao observá-la. É isso que ela traz no seu relato:

No meu contato que eu tenho tido, geralmente olham pra mim, sobretudo as meninas,
sorrindo, assim, sorrindo do ponto de vista de estarem satisfeitas, entendeu? Então eu sinto
uma... uma conexão assim a priori com as meninas, sobretudo, e... são muito amistosas, são
muito simpáticas, vem falar comigo no final da aula 'professora, que bom que você 'tá
aqui'[...]

Essa frase, muito significativa, demonstra como a transformação da universidade a


partir das cotas careceu de referenciais para esse novo público de estudantes. A docente
Felipa é, de certa maneira - mesmo que ela relute em aceitar este fato, ao longo da entrevista -
parte desse referencial que começou a se constituir na leva mais recente de concursos. Há uma
percepção generalizada dos docentes entrevistados que, em sua maioria, apontam que tem
havido diferenças qualitativas importantes na última geração de docentes. A maior
diversidade de vivências, fora do escopo tradicional dos estudantes de direito, é uma delas. A
julgar pelo relato da docente, este tem sido um fato importante para os estudantes com quem
ela tem contato.
165

5.3.5 "Houve a mobilização dos estudantes[...] que identificavam prática racista":


negociação e enfrentamento frente às expectativas negativas e cobranças exageradas

Um dos relatos comuns entre os docentes entrevistados diz respeito à questão da


discriminação em geral, e da cobrança exagerada e das expectativas negativas em específico,
tanto na suas próprias trajetórias, como já discutido, quanto sobre os beneficiários das ações
afirmativas. Nenhum caso chega a ser explícito, no sentido de admitir que praticam atitudes
discriminatórias, mas não raro se aponta algum colega que tenha feito isso. Ainda assim, os
relatos são generalizados e bastante coerentes com o que a literatura aponta, no sentido de
uma resistência nucleada no argumento de que a presença dos cotistas diminuiria a qualidade
acadêmica da instituição ao ocupar injustamente vagas de pessoas tidas como mais
competentes (SANTOS, 2012a; ALMEIDA FILHO et al, 2005; RIBEIRO et al, 2014;
MENIN et al, 2008; PASSOS, 2015; PINHEIRO, 2010), o que efetivamente acabou
provando-se falso levando em conta os desempenhos acadêmicos aferidos no pós-cotas
(GUIMARÃES et al, 2010; GUIMARÃES; COSTA; ALMEIDA FILHO, 2011; QUEIROZ;
SANTOS, 2013).
Este ponto acaba por entrelaçar-se com uma outra questão levantada pelos docentes,
sobretudo mulheres e negros, sobre os processos de negociação e enfrentamento a partir da
percepção de tratamentos desiguais. Este tema, o das estratégias de enfrentamento à
discriminação racial ou de gênero, ajuda a posicionar os docentes frente a esse processos.
Cabe, portanto, fazer uma breve discussão acerca destes temas, orientada pela
seguinte questão: se há expectativa negativa ou cobrança exagerada, o que os docentes fazem
em relação a isso?
Há docentes que afirmam não ter percebido, da parte de seus colegas, e nem
praticarem qualquer tipo de discriminação neste sentido de cobrar mais ou esperar menos,
como Luís, Miguel e Orlando. Outros, ainda, afirmam haver algo, mas dentro do esperado e
que já tem encontrado resistência o suficiente para ser diluído, como Ives e Eduardo. Há um
sentimento generalizado de que o atrito no início do processo das cotas foi muito grande, mas
que reduziu-se com o tempo e agora já há um quadro de normalidade. É o que relata
exemplarmente o professor Ives, que não apenas relata essa diminuição, como diz que ficaria
surpreso se houvesse esse tipo de discriminação:

<frases pausadas> Rapaz, olhe… Eu diria que já houve. Hoje em dia mais não. Hoje em dia
mais não. Hoje em dia mais não. [...] <fala embolado> Alguns aqui são… são célebres
como carrascos, né? [...cobrar diferenciadamente] De que? Dos cotistas? Ah, de cotista?
166

Duvido. Ficaria surpreso com isso. Duvido. <pausa> Duvido. <falando em tom alto> Olhe,
olhe, olhe, veja só. Só encontraria razão para isso se fosse para auxiliá-los. Para incentivá-
los a uma busca de que tá se fazendo um esforço ao qual você tem que responder. Nesse
sentido, eu entenderia. Mas nunca vi tendência disso aí não. Certo? Ou seja, como
orientação geral, 'Vamos cobrar mais dos cotistas por que eles estão sendo… o país está
fazendo um esforço para admiti-los e que vamos exigi-los mais, por que eles tem que saber
que eles que corresponder'. Meritocracia! Entendeu? Isso é bem o pensamento americano,
Estados Unidos, entendeu? O cara como Obama não chega a Harvard se não mostrar a que
veio, entendeu? Aqui, não, nunca vi orientação nesse sentido, talvez seja feito… Como
atitude individual, nunca assisti, nunca soube disso. Ficaria surpreso que fosse no sentido
de… de… demonstrar que aquela pessoa não é capaz. Ficaria surpreso. <ininteligível>

Este icônico relato é absolutamente interessante. A começar pelos aspectos não-


verbais, o nervosismo nas mudanças do tom de voz, o uso exagerado de repetições, que deu
para o pesquisador a pista de ter tocado num ponto sensível. A seguir, por, num mesmo relato,
um docente afirmar que ficaria surpreso em haver cobrança exagerada dos cotistas, mas
sugere uma política institucional de cobrança voltada aos cotistas para que esses respondam
ao esforço que significa a política de cotas. Fica pairando no ar a questão: estudantes não-
cotistas, de origem social superior, estudando numa universidade pública bancada pela
sociedade, não precisam corresponder a um esforço que "o país" está fazendo, haja vista que
se não houvesse investimento na universidade pública, não haveria mérito algum que
colocasse esse estudante nela?
Mas ora, para a "surpresa" do professor Ives - e outros -, há docentes que relatam
sistematicamente este fenômeno que ele, ao mesmo tempo, ataca e defende. É fato que os
relatos apontam que o impacto era bem mais evidente no início do período das cotas, como
relata a professora Francisca, que era estudante na época:

Eu vi reações horríveis de professores em relação ao primeiro momento da política de cotas


assim né, aqui na faculdade com declarações públicas sem nenhum constrangimento de
dizer professores que ainda estão na casa, que manifestaram né, essa expectativa negativa
publicamente. Hoje em dia eu não sei se a coisa já se... Como é que eu posso dizer... Já se
mostrou falso mesmo pela prática né, de dez anos de um sistema de cotas implementado,
mais de dez anos, ou se o constrangimento esse tipo de declaração aumentou sabe, mas eu,
felizmente, não me deparei com uma situação como essa não.

Porém, ainda, a própria Francisca narra o episódio do trote das fardas como um
momento evidente de diferenciação entre os próprios estudantes no presente, o que sem
dúvida, para ela, traz consequências para todo o percurso acadêmico. O docente Cândido,
também, revela conversas "de sala de professores" no presente, com opiniões que foram,
também, captadas nestas entrevistas, sobre a percepção de uma queda no nível atribuídas às
cotas, ou até mesmo rumores de que os professores "que estariam vigilantes" em relação ao
desempenho dos oriundos de cotas. Mais que isso, no relato já trazido anteriormente, ele narra
167

um conflito aberto entre grupos estudantis que visavam humilhar estudantes cotistas. Ele
relata:

Eu já ouvi rumores na Faculdade de que não só professores já perguntaram [quem é cotista],


como alguns já teriam anunciado que os cotistas se preparassem em dobro, por que na
primeira oportunidade seriam reprovados, por que estariam, digamos assim, sob a vigilância
de quem os considera ilegítimos. Mas essas informações, tenho cuidado em manejá-las, são
sempre ditas de uma forma um tanto imprecisa.

As docentes Quitéria e Felipa relatam processo parecido de cobrança exagerada,


mas em relação ao estudantes do Bacharelado Interdisciplinar que estavam cursando a área de
Estudos Jurídicos e defrontavam-se com professores que abertamente questionavam suas
capacidades exageradamente. Elas identificam o perfil do estudante do BI como algo próximo
do que julgam serem os cotistas típicos - mais negros, mais pobres, com interesses
acadêmicos distintos.
A professora Thereza faz um comentário, também, sobre a questão da sexualidade;
comparando com o tipo de fala que via sobre cotas e cotistas, ela afirma que tem diminuído
com o tempo esse tipo de cobrança diferenciada. Ainda assim, ela sabe ainda hoje de "muitos
comentários menores em relação a homossexualidade". Para ela, há uma tendência
conservadora que faz com que as soluções para esse tipo de discriminação e desigualdade,
sobretudo racial, tem de vir "garganta abaixo[...] E você tem uma história, né, escravocrata, de
servidão de uso do outro. E isso não vai sumir por causa de um decreto". E argumenta, por
fim, que muitas vezes a cobrança exagerada sobre cotistas não se realiza pela dificuldade em
discernir com precisão quem é ou não cotista.
De uma maneira geral, parece haver certo consenso de que a discriminação e
cobranças exageradas parecem ter diminuído com o tempo, embora a expectativa negativa
acerca do mérito acadêmico de cotistas nem tanto. Cabe destacar, porém, a forma de
enfrentamento que cada uma dessas questões recebeu: enquanto a expectativa negativa se
frustra através da apresentação de evidências em seu contrário, as cobranças exageradas
diminuíram - ou se disfarçaram - a partir do enfrentamento mais duro e direto.
É justamente sobre isso que se trata o caso mais evidente deste tópico, que ajuda a
descortinar boa parte do subtexto de tensão racial que cercou o conjunto das entrevistas. Ao
lado dos casos relatados pelas docentes Francisca (o trote das fardas dos colégios), Felipa (o
cartaz constrangendo cotistas) e Cândido (o trote que visava humilhar cotistas), acerca de
embates e conflitos por parte de grupos estudantis contra os estudantes cotistas, ele permite
168

explorar com maior profundidade como os professores entram neste quadro de conflitos
abertos.
A sua narrativa é complexa, por envolver duas entrevistas - e ter sido mencionado por
informantes - e nitidamente ser um episódio que marcou o processo de implementação das
cotas na Faculdade de Direito da UFBA. O caso ocorreu no primeiro ano do pós-cotas na
UFBA, e a docente Francisca relata o caso sob a ótica de uma pessoa que era, na época,
estudante, enquanto o professor Cândido já lecionava e teve participação ativa, conforme os
relatos a seguir:

É um dos primeiros episódios aqui da faculdade, vou falar como estudante mais uma vez,
foi um professor que reprovou uma turma inteira, a primeira turma de cotistas que ele
pegou, ele reprovou praticamente toda a turma, como uma manifestação de que vocês não
têm competência pra estar aqui, né. <pausa> Isso é um episódio bem singular né, na história
dessa faculdade. (Francisca)

Houve no início, nas primeiras turmas, alguns casos de reprovação em massa. Noventa por
cento... de alunos alunos reprovados. Em um caso particular houve a mobilização dos
estudantes, que coincidentemente eram meus alunos, quase todos eram meus alunos,
alegando que identificavam prática racista. Me procuraram, pedindo inclusive apoio, e eu
pedi que eles sistematizassem de forma mais precisa o que... o que eles estavam
vivenciando, né? Ah... e propus, antes de qualquer coisa mais... pública, de denúncia, a
tentativa de um debate com o próprio professor e com o próprio departamento, o que
acabou acontecendo e parcialmente resolvendo. (Cândido)

Esse caso é uma demonstração extrema e atípica de perseguição sistemática contra os


estudantes cotistas, por parte de professores. Embora haja uma série de relatos acerca de
pequenas práticas cotidianas, nenhuma se sustenta tão fortemente quanto esta, nem configura
um atentado mais nítido.
O que mais trouxe espanto ao pesquisador, porém, foi verificar que o docente
mencionado no caso tinha sido entrevistado para essa pesquisa. Um docente de perfil clássico,
homem, branco e seguidor de uma carreira de Estado, suas posições giravam sempre em torno
da defesa do mérito e de um universalismo igualitário no trato com as pessoas como uma
forma de não estimular processos de diferenciação e desigualdade. Elas não se coadunam, de
maneira alguma, com o relato confirmado por dois dos entrevistados e por outros informantes;
também, o próprio docente não mencionou este caso quando perguntado sobre cobranças
exageradas sobre os cotistas - o que pode ser por julgar ele não ter sido o caso, ou por não
querer evidenciá-lo.
A consequência dada ao fato talvez explique o desaparecimento deste fenômeno de
perseguição aberta, que, ao invés de se tornar constante, virtualmente desapareceu, na
169

percepção dos docentes. Mais que isso, ajuda a explicar como os docentes posicionam-se
perante o fenômeno da desigualdade em termos mais práticos.
Neste ponto há uma nítida polarização entre um docente negro, que assume uma
tarefa de modular o confronto, propondo inclusive uma negociação direta, com vistas a
reparar o dano da discriminação; e um docente branco que, por motivações que não foram
manifestas por ele próprio, perpetrou um ato considerado como discriminatório. E que, em
última instância, revisou sua posição, evitando o embate público.
Elas ajudam a perceber duas posições majoritárias entre os entrevistados. Enquanto
alguns docentes se mostram mais abertos e solidários, mesmo que a discriminação não lhe
afete diretamente, outros preferem minorar a discriminação e tratá-la como se não fosse
relevante, ou como se esta vivesse somente na imaginação dos grupos subalternos.
Além do professor Cândido, outros demonstram abertura para lidar com a questão da
discriminação, trazendo exemplos e inclusive momentos marcantes na sua trajetória em que
tiveram de lidar com esse fenômeno, ainda que de maneiras radicalmente diferentes.
Enquanto alguns docentes, como Paulo, Francisca e Quitéria, explicitam ter disposição de
conhecer melhor a questão das discriminações de raça ou gênero, sobretudo a partir do
diálogo com os sujeitos negros e mulheres e, inclusive, do ponto de vista racial, percebendo a
entrevista feita nesta pesquisa como um momento crucial de reflexão sobre o tema, outros,
como Thereza e Luís apresentam uma abertura para outros assuntos, como a questão da
sexualidade, enquanto reconhecem, mas julgam ser improdutivo valorizar ou exacerbar, a
questão da desigualdade de gênero ou raça, inclusive se valendo de uma estratégia clássica de
inversão para minorar a importância delas.
Cândido e Felipa, professores negros, acabam por, mais do que prestar
solidariedade, se perfilar mais sistematicamente no questionamento a certos estereótipos e
práticas que consideram racistas. Essa postura não passa despercebida; Cândido, por
exemplo, relata que "há uma espécie de discurso difuso em parte dos estudantes brancos da
UFBA que alegam que eu sou rigoroso... com eles. Por ser negro", o que ele não apenas
rejeita como lamenta não ter enfrentado uma denúncia que lhe permitisse debater isso
abertamente. Mais do que seu método de aula, a sua postura afirmativa em relação a sua
identidade negra enseja um componente racial "difuso" no protesto acerca das suas
avaliações.
O uso de exemplos é fundamental no processo de estabelecimento de uma posição.
Em geral, os que forneceram mais exemplos são justamente os mais sensibilizados e abertos a
um diálogo, por exemplo, com um estudante que sofre algo do tipo. É diametralmente oposto
170

a um núcleo argumentativo que visa a todo momento dar menos peso à questão racial, ou de
gênero, na sua leitura sobre as desigualdades.
Essas posições universalistas, apresentadas inclusive pelo docente que cometeu o ato
de reprovação em massa narrado pelo docente Cândido, acabam por escamotear uma tensão
que os sujeitos negros percebem nitidamente, sendo acompanhados solidariamente por outros
entre os entrevistados. E, novamente, o silêncio acaba configurando uma armadilha, que serve
sobretudo como cobertura para ações questionáveis do ponto de vista discriminatório. E, mais
do que isso, para uma estrutura acadêmica que perpetua, a partir de seus pressupostos
organizativos e epistemológicos, boa parte da exclusão que as políticas afirmativas se
comprometem a combater.

5.4 O PAPEL DO PROFESSOR NO CONTEXTO DE INCLUSÃO.

Como seção final deste capítulo, mostra-se importante fazer uma discussão mais
geral acerca do papel dos docentes num contexto de inclusão e mudanças no perfil do
estudante da universidade brasileira. Essa reflexão, claro, se reporta às entrevistas mas,
principalmente, à discussão presente na literatura sobre o assunto.
Tampouco aqui se busca um viés excessivamente normativo, embora não haja
nenhuma restrição a expor posicionamentos acerca das questões debatidas. O que se busca é
levantar, após o extenso esforço descritivo e analítico anterior, algumas questões que
qualifiquem o debate sobre a inclusão feita a partir das cotas, em geral, e a relevância da
postura dos docentes em relação a ela, em específico.
A primeira delas, desde já, é uma reflexão acerca da qualidade da inclusão e ascensão
social, das quais o acesso à educação superior e a aquisição de capital cultural tem sido
considerada uma estratégia fundamental sobretudo para pessoas pobres e negras, como
inclusive a própria trajetória dos entrevistados revela (SOUZA, 2012; SANTANA, 2009;
QUEIROZ; SANTOS, 2006; GOMES, 2011). Porém, apenas a análise quantitativa não
consegue dar conta do que essa ascensão significa para esses sujeitos; subir a escada da classe
social, para um jovem negro, pode não significar apenas a aquisição de bem-estar, felicidade
ou realização.
Pelo contrário. Como aponta Santana ao estudar a mobilidade isolada no cenário
anterior às ações afirmativas,
171

A mobilidade social confere aos negros maior prestígio, segurança, aumento da autoestima
e, principalmente, condições de oferecer melhor qualidade de vida aos seus familiares.
Porém, mesmo com as possibilidades abertas, o peso da cor da pele e das marcas raciais
ainda se faz sentir intensamente pelos que as carregam. Prova disso são as diferenças
gritantes consolidadas nas estatísticas relativas ao mercado de trabalho, mas também o
sentimento de mal estar decorrente de certas atitudes e formas como os negros são tratados
na sociedade.
Mesmo que este peso tenha reduzido, se comparado ao carregado por gerações anteriores,
ele continua a ser um fardo doloroso para os negros que desafiam 'sair do seu lugar'. Assim,
se a ascensão trouxe dividendos positivos, não restam dúvidas, trouxe também dissabores
nem sempre compartilhados. (SANTANA, 2009, p. 315)

É fundamental demarcar que há um forte contraste entre os sujeitos sobre os quais


Santana se debruça: a ideia de mobilidade isolada. Cabe, para estudos futuros, o
questionamento sobre se a ascensão em massa ocorrida nos anos 2000 configuram o que ele
chama de mobilidade isolada ou se já tem aspectos de uma mobilidade mais articulada e como
eles a experimentam.
Ainda assim, é importante ressaltar que os elementos para os quais ele chama atenção
como uma espécie de preço da ascensão estão presentes tanto diretamente no discurso dos
docentes negros, quanto também nas práticas relatadas pelos docentes para com os estudantes.
Este tipo de vivência dura é justamente o que provoca o isolamento e solidão presentes, por
exemplo, no caso de Felipa, e talvez seja por ver nela a sua realidade que tantos estudantes
expressem a ela uma solidariedade sutil.
A questão que fica é qual papel a universidade tem, ou pode ter, na construção de
uma melhoria de vida que não custe tanto aos sujeitos que ela pretende incluir. Neste aspecto,
a postura aberta ao debate e sensível às demandas destes é fundamental nos docentes, sendo
um pouco preocupante a opção por negligenciar ou abertamente diminuir essas possibilidades.
Não é possível imaginar, diante dos relatos e de toda a literatura, que um jovem negro e pobre
possa se integrar ao mundo jurídico fingindo não ser negro ou buscando simplesmente ignorar
este fato.
Certamente, como aponta Carvalho (2005), não é para isso que ela foi feita. Por isso,
aproveitando também as categorias construídas por Fraser, cabe discutir o objetivo da política
de cotas: se elas pretendem "corrigir efeitos desiguais de arranjos sociais sem abalar a
estrutura subjacente que os engendra", configurando um "remédio afirmativo" ou "corrigir
172

efeitos desiguais precisamente por meio da remodelação da estrutura gerativa subjacente",


portanto, um "remédio transformativo" (FRASER, 2006, p. 237).
A partir do momento em que mescla critérios sociais e raciais, as cotas acabam por
ter relação tanto com a dimensão da redistribuição, no sentido de luta contra a desigualdade
material, inclusive entre brancos e negros, quanto do reconhecimento, no sentido de combater
a injustiça ou dominação cultural, no caso, a inferiorização da população negra. Assim,
discutir seu caráter afirmativo ou transformativo acaba por ser uma tarefa complexa. Esse
desafio não deixa de ser uma opção de política acadêmica, aliás, com preferências expressas
pelos docentes entrevistados.
Por um lado, julgar a tarefa das cotas conclusa na medida em que há a inclusão
numérica de pessoas pobres, negras e indígenas, significa optar por uma solução afirmativa,
oferecendo a esses sujeitos novas perspectivas de vida que, se oferecidas em massa, acabam
por minorar a desigualdade. É a posição expressa de maneira icônica pelos professores Ives e
Eduardo, de ver as cotas como uma correção que visa, em última instância, estabelecer para
que um regime meritocrático tradicional que inclua esses sujeitos, que deverão assim provar
seu valor como os estudantes "clássicos" já fazem. E, de certa forma, este tipo de argumento
acaba sendo adotado também no processo de defesa das cotas, inclusive na constatação
triunfante de que o desempenho dos cotistas é igual ou superior (GUIMARÃES et al, 2010;
GUIMARÃES, COSTA E ALMEIDA FILHO, 2011), nos casos em que esta afirmação
encerra o debate como uma prova de que a missão está concluída.
Por outro, preferir uma solução transformativa implica em fazer um esforço para que
a inclusão desses novos sujeitos implique numa mudança estrutural na sociedade em geral e,
para isso, na universidade em particular. Como aponta Carvalho (2009), para isso é preciso
um programa mais amplo que as cotas na graduação, envolvendo políticas para acesso à pós-
graduação e docência, bem como operando uma maior abertura da academia para outros
temas e epistemologias às quais ela não tem sido afeita. É o que aponta o professor Cândido,
ao afirmar que se a universidade quer ser coerente com a opção de implantar cotas, "não pode
manter-se epistemologicamente eurocêntrica, androcêntrica, racista, monocultural" e precisa
dar "o passo de oxigenar pesquisa, formação de docentes, etc., pra uma outra perspectiva de
universidade", sob pena de fazer "um excluído a se incluir num modelo que é, em si, perverso
e equivocado".
Estas opções acabam por provocar o último ponto desta reflexão, que é sobre o papel
que os docentes podem ter neste processo. É certo que a conquista dos marcos normativos das
ações afirmativas é fundamental; porém, muitos de seus resultados, sobretudo os mais
173

qualitativos, dependem deste aspecto, o que parece ter sido um pouco negligenciado na
implementação dessas iniciativas.
É possível perceber um traço de resistência ativa, sobretudo no início do processo das
cotas, inclusive não só por parte dos professores. É natural que o seja, dado o grau elevado de
tensão que a decisão pela adoção das políticas afirmativas suscitou no corpo docente da
UFBA, como bem documentado por Queiroz e Santos (2012) através das listas de debate
virtual dos docentes. Também é bastante compreensível que essa resistência ativa tenha se
diluído, dada a aprovação majoritária das políticas de cotas (QUEIROZ; SANTOS, 2006) e
também ao fato de que boa parte dos argumentos que mobilizavam o pólo anticotas serem
melindrosos, difíceis de tratar publicamente ou simplesmente baseados em uma verdadeira
mitologia acerca da hecatombe acadêmica que as cotas deveriam provocar e que,
simplesmente, não se confirmou (ALMEIDA FILHO et al, 2005; QUEIROZ; SANTOS,
2013).
A real polarização, neste caso, se dá entre os indiferentes, parte dos quais por opção
de resistir passivamente, enquanto outros simplesmente não encontram o arsenal teórico e
prático para lidar com o assunto; e os ativos, que intencionalmente ou não buscam oferecer
esforços para que as políticas afirmativas tenham consequências mais profundas quanto
possível. A tensão, em que pese ter se tornado menos aparente, não se resolve, a partir do
momento em que a passividade cumpre papel análogo ao da resistência ativa quando da
discussão sobre as políticas afirmativas. Daí decorre a necessidade de promover, junto à
comunidade acadêmica como um todo, inclusive os docentes, sem ilusões quanto à
possibilidade de deslocamentos ideais, uma decisão política sobre se há a disposição de abrir a
universidade à ideia de abraçar um outro legado epistemológico que, em que pese já se fazer
presente nela, o faz com todas as dificuldades imagináveis.
Levantadas estas três questões, torna-se lícito reexaminar o conjunto das entrevistas,
bem como das análises empreendidas nesse trabalho, com um olhar diferente e mirado no
futuro. Tanto do ponto de vista acadêmico, ensejando novas análises críticas acerca do que a
universidade brasileira tem vivido e legado à sociedade com o advento da inclusão como um
paradigma, quanto do ponto de vista mais prático, propondo programaticamente os rumos que
esta pode, ou deve, tomar nos próximos anos e décadas.
174

* * *

Neste capítulo, buscou-se construir um quadro analítico acerca das interações dos
docentes com as ações afirmativas. Para isso, a partir das informações já coletadas acerca de
sua trajetória, autopercepção racial e de gênero e as suas visões acerca da desigualdade,
construiu-se um conjunto de interpretações acerca de seus posicionamentos sobre as ações
afirmativas.
Em primeiro lugar, buscando compreender o que pensam sobre as ações afirmativas
em si. Aqui, se viu uma opinião majoritariamente positiva, com alguns posicionamentos de
crítica programática no sentido de exigir mais políticas desse tipo; minoritariamente,
argumentos concessivos, que criticam as cotas mas acabam por aceitá-las com ressalvas; e
argumentos negativos, percebidos apenas em traços das entrevistas, sem nenhuma oposição
presente e manifesta a elas.
Na sequência, discute-se se e como os docentes identificam os beneficiários das ações
afirmativas. Conclui-se que, embora haja fronteiras muito fluidas entre os grupos cotista e
não-cotista, bem como uma variedade interna importante de subgrupos, ainda assim há uma
percepção bastante presente sobre diferenças. Elas organizam uma visão mais nítida sobre
pólos, entremeados por uma zona cinzenta de difícil identificação. Marcadores fenotípicos e
raciais, de classe, de atitudes e de percurso acadêmico são utilizados em diferentes
combinações para descrever os cotistas e não cotistas - mesmo entre os docentes que dizem
não ver diferenças. Entre estes, poucos recusam-se sistematicamente a descrever estes grupos,
e nenhum consegue concluir a entrevista sem dar, ao menos indiretamente, opiniões sobre
eles. E, por último, a percepção que os docentes tem acerca de "divisões perigosas", formas
que os próprios docentes encontram de demarcar suas diferenças sobretudo de classe e raça.
De posse dessas análises, busca-se interpretar padrões de resistência ou colaboração,
da parte dos docentes, ao processo de inclusão trazido pelas cotas. Pressupõe-se desde já que a
incapacidade ou indisposição a perceber as demandas e necessidades das turmas já
configuram um empecilho importante, na medida em que certas decisões são tomadas
desconsiderando fatores importantes como transporte, trabalho e material escolar, percebidos
amplamente como experiências distintas entre os estudantes.
Isso é feito analisando como os docentes percebem e lidam, e se há coerência entre
estes aspectos, com uma série de aspectos que eles mesmos levantam como relevantes. A
desigualdade material, as demandas acadêmicas diferenciadas, o oferecimento de modelos e
empatia sobre as trajetórias dos estudantes, e o conjunto de discriminações, cobranças
175

exageradas e expectativas negativas são temas analisados com esse viés, identificando
importantes diferenças na forma como os docentes percebem e lidam com eles. Neste ponto,
relatos impactantes de discriminação na Faculdade de Direito tornam-se importantes para dar
uma posição mais bem acabada sobre a questão.
Por fim, empreende-se uma reflexão que visa levantar questões acerca de quais
objetivos que as ações afirmativas podem alcançar, bem como sobre qual papel os docentes
podem desempenhar neles. Três problemas fundamentais são desenhados, quais sejam: quais
as qualidades da inclusão que se pretende operar a partir das cotas; o caráter afirmativo ou
transformativo dessas políticas; e qual tipo de engajamento é necessário por parte da
comunidade acadêmica.
176

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As ações afirmativas têm sido objeto de bastante reflexão, tanto no ambiente


acadêmico quanto no debate público na sociedade brasileira. A sua adoção elevou a outro
patamar tanto a produção científica acerca da questão racial, no que diz respeito a políticas
específicas para a superação das desigualdades, quanto a própria organização e formulação,
no seio da sociedade civil, de reivindicações sobre o tema.
Porém, um levantamento da literatura combinado com a exploração do campo
permitiu perceber uma importante lacuna que se buscou contribuir na superação ao longo
deste trabalho. Há importantes registros sobre a resistência da classe média bem-educada em
geral, e da categoria docente em específico, quando da adoção das políticas afirmativas a
partir dos anos 2000, inclusive no caso da UFBA (QUEIROZ; SANTOS, 2006; SANTOS,
2013; ALMEIDA FILHO et al, 2005); porém, há pouco registro ou reflexão sobre os
significados dessa resistência, uma vez aprovadas essas políticas.
Assim, das suas premissas iniciais o trabalho acabou por priorizar a questão do papel
dos docentes no contexto de inclusão social estabelecido, entre outros elementos, pela adoção
das ações afirmativas. A partir disso, se faz uma reflexão mais ampla, e sobretudo de ordem
qualitativa, acerca dessa inclusão, utilizando como parâmetro as próprias trajetórias dos
docentes e seus relatos que são simbólicos do ponto de vista das mudanças que a universidade
brasileira passou desde os anos 2000.
O trabalho de campo, evidentemente, fez emergir outras questões. Na tessitura do
texto, ao se captar dados que se apresentavam com frequência, como a questão de gênero, não
se furtou de discuti-los, embora não sejam especificamente circunscritas no tema principal da
pesquisa. Pelo contrário, buscou-se utilizar desses elementos, que por si só tem valor
sociológico, como uma forma de compor e enriquecer o trabalho, a partir de uma abordagem
interseccional.
Em primeiro lugar, as características dos docentes da Faculdade de Direito. Elas
ajudam a compreender o processo de formação de suas argumentações, na medida em que o
que dizem de si em algum momento rebate no que dizem sobre os que são estudantes hoje
como eles já foram um dia. Com titulação abaixo da média da universidade, costumam dividir
suas atividades docentes com outra carreira, muitas vezes priorizando-a, numa área de muito
status social como é a área jurídica.
E, mais marcante, suas trajetórias pessoais - e como ele as veem - acabam por serem
uma referência em seus discursos. A maioria dos entrevistados é oriunda de estratos médios
177

ou superiores, em termos de renda; nestes, sobretudo entre os entrevistados homens e brancos,


predomina um discurso individual-meritocrata sobre os motivos de seu sucesso. Uma minoria
de estrato social inferior e, marcadamente, o caso das mulheres e dos negros entrevistados,
dão ênfase, maior ou menor, a outros elementos, como estratégias contra a discriminação, o
preterimento, silenciamento, ou ainda mesmo a ativa politização como uma postura que
permitiu enfrentar as dificuldades que encontraram.
Embora haja uma relevante e marcada variedade interna a essas categorias analíticas,
chamou bastante atenção a posição dominante entre docentes mulheres e negros entrevistados
de associar suas trajetórias a desigualdades estruturais com base em raça e gênero. Sobretudo
no que toca a como lidam com essas desigualdades no próprio contexto da universidade;
embora no campo da prática isso ainda seja bastante difuso, ao menos na opinião há, sim, uma
abertura maior a essa discussão, inclusive com os estudantes.
Encontrou-se nas trajetórias dos docentes negros, em específico, as marcas duras que a
ascensão social cobra a quem "sai do lugar". Como os profissionais entrevistados por Santana
(2009), eles tiveram de enfrentar situações muito extremas, se comparadas a descrição
oferecida pelos docentes brancos.
Ainda assim, uma importante variedade interna se apresenta, com cortes de gênero e
classe muito bem definidos, entre os dois grupos raciais. Em especial no caso dos docentes
brancos, onde as mulheres ofereceram um quadro muito mais complexo de avaliações sobre
as desigualdade vividas por elas e pelos seus colegas negros. Alguns brancos, sobretudo
mulheres e mais jovens, apresentaram uma grande capacidade de compreensão e empatia com
as dificuldades enfrentadas a partir da desigualdade racial.
Percebe-se, também, que o foco na trajetória profissional e pessoal, com pouca
discussão acerca da situação atual dos entrevistados, favoreceu, no caso das docentes
mulheres e especialmente do docente e da docente negras, uma supervalorização dos aspectos
negativos ligados ao sofrimento e à discriminação, principalmente. Não há dúvida de que ser
um professor da Universidade Federal da Bahia constituiu uma importante conquista na vida
dos entrevistados, em especial daqueles que fazem parte de grupos historicamente
subalternizados, inclusive significando, mais do que a ascensão socioeconômica e o conforto
material, uma posição de prestígio em outros ambientes, como na vida familiar, no
movimento social ou perante seus amigos. Isto não ficou muito evidente no trabalho,
justamente por ter sido pouco mencionado nas entrevistas e deixa um importante aspecto a ser
explorado futuramente.
178

Por outro lado, as percepções acerca das cotas e dos cotistas são também um achado
central. Acerca das políticas, é possível penetrar, de um aparente quase-consenso positivo,
numa variedade grande de posições, com críticas positivas e elogios condescendentes que
permitem construir uma complexidade que vá além do dilema a favor-contra as cotas. Mais
que isso, as opiniões sobre os cotistas permitem explorar as fronteiras discutidas por Pinheiro
(2010), na medida em que ao mesmo tempo que se identifica dois pólos bastante distintos, no
binômio cotista-não-cotista, há também uma variedade interna relevante, com diferentes
trajetórias sociais e origens escolares - marcadamente a militar e a federal, no caso dos
cotistas, e do interior, no caso dos não-cotistas - que ensejam uma "zona gris" (Francisca) de
mais difícil identificação.
Ainda assim, uma série de características foram apontadas, tanto negativas quanto
positivas, acerca de cotistas e não-cotistas, do ponto de vista de marcadores de raça e classe,
características atitudinais ou acadêmicas específicas, bem como divisões entre os próprios
estudantes, inclusive com conflitos racializados. É a partir delas, aliás, que é possível discutir
o papel que os docentes assumem - ou dizem assumir - perante as suas próprias percepções
acerca do processo de inclusão.
Utilizando suas percepções sobre cotistas e não-cotistas, somadas à literatura sobre o
tema, se analisa os comportamentos que os docentes tem diante das transformações recentes
da Faculdade. Se a existência desta inclusão é inegável, a partir dos dados presentes em outros
estudos sobre o perfil dos estudantes (SANTOS, 2013), as percepções dos docentes são
variadas e nem sempre há coerência entre o que se percebe sobre os cotistas e o que se narra
do ponto de vista das práticas.
Assim, o comportamento que os docentes acabam por ter diante do processo de
inclusão denota certas características qualitativas deste. À luz de suas próprias trajetórias, é
possível perceber como eles têm posturas que criam ou mitigam os obstáculos no percurso
acadêmico dos estudantes. Isso parte de compreensões mais ou menos afinadas sobre quanta
responsabilidade os docentes devem ter com o trato das demandas diferenciadas a partir das
cotas.
Isso se expressa em diferentes posições sobre como creem que devem tratar a
desigualdade material entre os estudantes e maior ou menor abertura para o debate sobre
demandas acadêmicas novas que surgem a partir das cotas. Também se expressam em relatos
diretos ou indiretos sobre como a empatia, o reconhecimento ou estabelecimento de modelos
oferece uma perspectiva para os diferentes perfis de estudantes, bem como as posições sobre
os casos de expectativas negativas e cobranças exageradas sobre cotistas, que explicitam a
179

posição dos docentes nos processos de enfrentamento e negociação frente à discriminação


negativa.
Tais fatores são relevantes para permitir discutir questões pouco exploradas na
literatura consultada. Por exemplo, permite refletir sobre os obstáculos que os sujeitos
encontram no processo de ascensão social por uma política antirracista por um outro ângulo,
na medida em que observa um agente que tem possibilidade de ampliar ou reduzir essas
dificuldades.
Também é interessante, do ponto de vista analítico, o processo de correlacionar as
trajetórias relatadas com as opiniões emitidas. Percebe-se casos em que há uma coerência
interna no discurso de alguns docentes sobre a identidade e os valores prioritários na análise
de sua própria trajetória e a forma como percebe e se comporta perante os beneficiários das
ações afirmativas, como quando há um docente branco, homem e de origem social superior
que exalta valores individuais-meritocratas e busca sempre diminuir a importância das cotas e
da questão racial, recusando-se a se posicionar sobre ela.
Por outro lado, em outros casos há discrepâncias, variações e idiossincrasias
peculiares. Assim, levando em conta o debate público sobre o assunto (Campos, 2008)
embora seja compreensível que discursos sobre meritocracia ensejem maior resistência às
ações afirmativas, é importante perceber como há docentes que, mesmo com valores
individual-meritocratas, tem um comportamento de colaboração proativa em relação aos
cotistas. Da mesma forma, é importante perceber aqueles que, embora relatem certa
sensibilidade aos problemas trazidos pelos seus alunos cotistas, inclusive por compartilhar
trajetórias com estes, não saibam bem como lidar com os problemas apresentados pela sua
inclusão.
Também o estudo pode fornecer, ainda que muito modestamente, uma base empírica
que pode servir para o planejamento de políticas antirracistas e de inclusão social. À luz dos
achados, parece importante dar relevo ao fato de que a atitude dos agentes que já se
encontram no espaço que se pretende democratizar tem um efeito, se não quantitativo, muito
significativo do ponto de vista da qualidade dessa inclusão social. A postura institucional de
uma universidade que adote ações afirmativas não pode ser de ignorar as consequências
dessas políticas, inclusive no que tange as ações de seus docentes.
Por fim, é importante perceber que o estudo deixa novas lacunas a serem preenchidas
por pesquisas futuras. Comparar o caso da UFBA ao caso de outras instituições de ensino
jurídico, inclusive privadas - que concentram a maior parte das matrículas do ensino superior
brasileiro (INEP, 2015) é uma possibilidade de avançar nesta reflexão. Por outro lado, discutir
180

o processo de inclusão das cotas e demais ações afirmativas do ponto de vista dos docentes de
outras áreas de ensino pode ser relevante, na medida em que permite depurar as
particularidades da área do Direito para perceber isso de maneira mais ampla no contexto
universitário.
Em outra direção, é possível avançar, visto que os docentes de Direito em sua maioria
seguem carreiras de Estado, para outras instituições que não a universidade. Visualizar como
a Magistratura, o Ministério Público, a Advocacia Pública e outras carreiras lidam com a
questão racial tanto do ponto de vista de seu público, quanto da sua composição a partir das
cotas no serviço público é um passo que pode se beneficiar desta pesquisa, depurando as
particularidades do contexto educacional e avançando para outras áreas do Estado.
E, não menos interessante, é possível discutir o ponto de vista de uma geração mais
recente de formandos e recém-formados em Direito, já sob o paradigma das ações afirmativas.
No discurso dos docentes mais jovens já foi possível perceber como a vivência na graduação
com a política de cotas já implantada é um diferencial qualitativo importante, tanto no que
toca as suas próprias trajetórias e da formação de suas opiniões quanto no trato que eles
mesmos tem com estudantes beneficiários de ações afirmativas.
Com esse conjunto de reflexões, percebe-se que a batalha intelectual das ações
afirmativas está longe de ser concluída. É preciso avançar ainda muito mais na compreensão
dos impactos e das características desse processo de inclusão, levando em conta as questões
das instituições, dos que foram incluídos nela e dos que lá já estavam, com o interesse ativo
de contribuir para a construção de políticas inclusivas, sem prejuízo ao rigor intelectual e
crítico na condução dessas pesquisas.
181

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187

APÊNDICE
188

APÊNDICE A – Roteiro de Entrevistas

ENTREVISTA:

Número: Data: Local: Início: Final:

PRELIMINAR: IDENTIFICAÇÃO E INFORMAÇÕES DO LATTES

1. Nome:
2. Data de Nascimento:
3. Local de Nascimento:
4. Estado Civil:
5. Sexo/Gênero - ( ) Masculino ( ) Feminino ( ) Outro:_____________
6. Raça/Cor (Autoclassificação) - ( ) Branco ( ) Pardo ( )
Preto ( ) Indígena ( ) Amarelo ( ) Outro:___________
7. Raça/Cor (Heteroclassificação) - ( ) Branco ( ) Pardo ( )
Preto ( ) Indígena ( ) Amarelo ( ) Outro:___________
8. Religião:_______________ Praticante?_____
9. Departamento:
10. Jornada de Trabalho: ( ) 20h ( ) 40h ( ) DE
11. Classe: ( ) Substituto ( ) Temporário ( ) Auxiliar ( ) Assistente ( )
Adjunto ( ) Associado ( ) Titular ( ) Aposentado
12. Há quanto tempo dá aula?_____ Na UFBA?_____
13. Leciona em outras instituições?
14. Ocupa algum cargo de direção ou função gratificada dentro da universidade
(colegiado, departamento, etc)?
15. Segue alguma carreira, além da de professor?
16. Ocupa algum cargo em associações acadêmicas ou de classe (OAB,
etc)?_______________
17. Ocupa algum outro cargo ou função?
18. Atividades de pesquisa?
19. Atividades de extensão?
20. Graduação (local/ano):
21. Mestrado (título/orientador/local/ano):
22. Doutorado (título/orientador/local/ano):
23. Já estudou, lecionou ou atuou no exterior? Como?:
24. Área de atuação jurídica:
25. Área de ensino:
26. Dá aula no Noturno ( ) ou no Diurno ( )?

BLOCO 1 - Trajetória Pessoal (color-blind)


*Origem social, família e trajetória escolar:
1. Vamos falar um pouco sobre sua trajetória. Como era sua família de origem?
(Formação e ocupação dos pais; origem urbana/rural; número de irmãos; religiosidade;
onde vivem e o que fazem hoje)
2. Fale um pouco sobre sua trajetória escolar. (pública/privada, notas, relacionamentos,
lideranças, participação política)
189

3. Por que você escolheu o curso de Direito? Teve experiências em outros cursos?
4. Fale um pouco sobre a sua vivência na universidade. (envolvimento com pesquisa e
extensão; política; graduação e pós-graduação, etc)
5. Como é a sua constituição familiar atual? Tem filhos, cônjuge? O que fazem?

BLOCO 2 - Trajetória profissional e relações do docente com a instituição, colegas e alunos


(color-blind):
*Relação com a instituição e com outros docentes:

1. O que você descreveria como principal problema da UFBA hoje? E virtude? E na FD?
2. Quando você começou a atuar profissionalmente na sua carreira atual? Teve outras
antes?
3. Em que momento começou a lecionar?
4. Você mantém relação com colegas de trabalho da universidade? Pessoal, acadêmica?
Como?
5. Você costuma permanecer na universidade fora dos seus horários de aula? Fazendo
que tipos de atividade?
6. Você percebe diferenças geracionais entre os docentes?
7. O que você acredita que a instituição deve buscar nos próximos docentes a serem
contratados?
8. Tem havido uma quantidade relevante de concursos docentes recentemente. Você
percebe mudanças na FD a partir desse processo?
9. O que você acredita que mais contribuiu para você alcançar as posições que você
ocupa profissional e academicamente, hoje?
10. E qual as maiores dificuldades que teve neste sentido?
11. Você avalia que manter certa reputação é importante para um profissional do direito?
E para um docente? E para você?
12. Você avalia que a aparência conta nesse sentido? E as posturas e atitudes? Como? E
para você?

*Relação com os estudantes:


13. Fale um pouco sobre seu método de ensino. (método de aula, avaliações, presença,
discussão em sala de aula)
14. Suas aulas costumam ter discussões? Há polêmicas? Sabe citar alguma?
15. Você dá aulas em outras instituições? Qual a diferença para a UFBA?
16. Você dá aula em turnos diferentes? Percebe diferença nos estudantes dos diferentes
turnos?
17. Você costuma dar aulas a turmas de outros cursos? Percebe diferenças?
18. Que diferenças você vê entre os estudantes da sua época e hoje?

BLOCO 3 - Docência univeristária num contexto de inclusão


Estas questões em amarelo devem ser observadas ao longo da entrevista. Caso algum assunto
destes não seja tocado e seja relevante retomar, fazer a pergunta no final.

*Estudantes cotistas ou negros:


QUADRO DE REFERÊNCIA: Desde 2004, a UFBA adota cotas sociais com recorte racial, a
partir de resolução própria do seu Conselho Universitário. Em 2012, foi sancionada a Lei
12.711 (você conhece?), que estabelece uma política de cotas padronizada para todas as
universidades brasileiras, com critério social (escola pública), racial (negros, indígenas e
quilombolas) e econômicos (menos de 1,5 salário mínimo como renda).
190

11. Você avalia que as cotas, implementadas a partir de 2004 na UFBA e aprovadas em lei
em 2012, significaram mudanças na universidade? Quais?
12. Você consegue identificar estudantes cotistas e não-cotistas? Como?
13. Você já perguntou em sala de aula quem é cotista? Sabe de outros professores que
perguntam?
14. Você identifica características peculiares nos cotistas? Quais?
15. E nos não-cotistas?
16. Você avalia que há diferenças entre estudantes mulheres e homens?
17. Você já orientou, em pesquisa, extensão, monitoria ou TCC, estudantes cotistas?
Percebeu diferenças ou precisou ajustar seu método?
18. Já trabalhou com estagiários cotistas? Percebeu diferenças?
19. Você percebe divisões na sala da aula entre cotistas e não-cotistas? Na relação entre
eles?
20. Você leva em conta essas diferenças/divisões na sua prática docente? Como?
21. Você avalia que cotistas e não cotistas vivenciam a universidade de maneira diferente?
[SE NÃO SURGIR, MENCIONAR: Trabalho, Transporte, material]
22. Você acha que os docentes devem atuar levando em conta essas mudanças que as
cotas trouxeram? Você atua?
23. Você percebe que há entre os professores expectativas negativas em relação ao mérito
acadêmico dos cotistas?
24. Você percebe que entre os professores há cobranças exageradas em relação ao
desempenho dos cotistas?
25. Como você avalia a relação entre justiça social e mérito acadêmico ou competência
profissional nestas políticas afirmativas?
26. Neste bloco, conversamos de maneira mais geral sobre os cotistas. Mas você diria algo
em específico dos estudantes negros? E dos indígenas?

*Cotas na docência:
QUADRO DE REFERÊNCIA: Em 2014 foi aprovada a lei 12.990 que reserva 20% das vagas
nos concursos públicos para candidatos negros.

27. Você avalia que essa Lei impactará na universidade? De que forma?
28. Caso haja problemas na implementação da Lei por conta da pequena quantidade de
vagas em disputa nos concursos docentes, você avalia que a UFBA deve tomar medidas
complementares para garantir a execução da Lei?
29. Na sua opinião, essa lei impactará no mundo jurídico? Como?
30. Na sua opinião, a aplicação dessa lei vai terá impactos na qualidade do ensino,
pesquisa e extensão na Faculdade?

*Auto-percepção (possui perguntas variáveis):


33. Antes da realização dessa entrevista, você já havia feito alguma reflexão sobre a sua
condição racial? Se sim, quando? Por quê?
34. Na sua opinião, de que maneiras a sua condição racial influenciou a sua trajetória
profissional até aqui? E sobre a sua condição de gênero?
35. Você avalia já ter vivenciado algum privilégio com base em raça/gênero?
36. Você avalia já ter vivenciado alguma discriminação com base em raça/gênero?
37. Para você, o que significa sua condição racial, e de gênero, [ser branco/negro; ser
homem/mulher] no mundo acadêmico? E no mundo jurídico?
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38. NEGROS/AS: Que conselhos você daria a um jovem negro que aspirasse carreira
similar a sua para não repetir seus erros e potencializar acertos?
39. NEGROS/AS: Você já passou por situações de cobrança excessiva sobre seu
desempenho e associa isso ao fato de ser negro? Vê isso se repetir entre os estudantes?
40. MULHERES/NEGROS: O fato das mulheres/negros serem minoria na Faculdade de
Direito e nas carreiras de Estado impacta de alguma forma na sua atuação e no seu bem-estar?
41. MULHERES/NEGROS: Você enfrenta questões relacionadas a invisibilidade ou
não-valorização da sua atividade acadêmica e profissional?
42. HOMENS/MULHERES BRANCAS: Você já refletiu sobre os efeitos de um
ambiente de maioria branca e/ou masculina em mulheres e/ou negros?

Por fim, tem algo a acrescentar ou que gostaria de registrar nesta pesquisa?

OBSERVAÇÕES:

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