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Emídio Rosa de Oliveira

Assistente Convidado da disciplina de


Semiótica das Artes Visuais e de Semiologia I

Pesquisa em torno da FOTOGRAFIA


ou da marca fotológica que impregna a reflexão teórica

Universidade Nova de Lisboa


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

1984

Trabalho de síntese apresentado como prova de competência


científica ao Departamento de Comunicação Social da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa
Há momentos em que o pedir de emprestado palavras a outros só
comprova que os ESBOÇOS RUDIMENTOS que traçamos já foram intuídos,
embora não suficientemente elaborados. Cabe-nos pois prosseguir e à
maneira da OBJECTIVA tactear por aproximações sucessivas até perscrutar
no dissolvido o que escapa à ordem rígida dos nomes. Projecto semiótico
que já em tempos levou Sócrates a achar sob o nome dos deuses (théous) a
palavra théontas, «aqueles que correm».

«Pour étre permanente – pour n’avoir aucune raison de cesser, quoi qu’il
puisse arriver – une recherche doit satisfaire à une double condition: d’être en
prise sur un désir non susceptible de se tarir, et d’être hors d’état d’aboutir
jamais».
Clément Rosset, Le Réel

«Ce que le savoir ne peut pas connaître, ce dont il ne veut rien savoir, ce sont
ses propres déchets pour autant que ces déchets ne se présentent pas comme un
simple reste (ratio), mais ce qui entraîne la raison à sa perte. La raison ne
peut jamais être intégralement rationnelle: il y a toujours une marge de silence,
une ZONE TROUBLÉ qui demandent raison à la raison de sa raison. C’est à
partir de cette pointe d’hétérogénéité, de ce point d’ébulition, dans la
fermeture du système qu’il faut interroger le savoir».
Sylvère Lotringer, Le «complexe» de Saussure
ÍNDICE

Introdução
Ópticas Fixas
A Câmara Escura da Fotografia
O Enigma da Visibilidade Fotográfica
Fotografia – Arte de Captura
O Dispositivo de Captura da Máquina Fotográfica
A Captura ou a Captividade da Imagem
As Posturas do Corpo Fotográfico (ou a Imobilidade da Presa)
Rumo à Versão Tecnológica da Fotografia
A Fotografia – Vitima da Versão Histórica Literária Reinante da Época
O Estilo Fotográfico
O Estilo como Ficção Reflexiva
O Estilo Fotográfico
Estilos em Devir
A Arte/Nevrose = Restituição da Lógica do Sistema
Estilos em Devir
A Especificidade Estética do Acto Fotográfico
A Fotografia como Representação Mimética do Real
O Percurso da Fotografia: da Restituição a Transformação do Real
Duas Modalidades da Violência: a Violência Interiorizada no Retrato e a
Série Hiperreal
A Desconstrução do Realismo Fotográfico
O Poder da Objectiva
Os Dispositivos Pulsionais do «COGITO FOTOGRÁFICO»
Dos Dispositivos Pulsionais aos Dispositivos Simbólicos da Cultura
A Captura no Retrato, ou a Vontade de Retrato
O Retrato e o Rosto
O Efeito Mimético e Simulacral do Auto-Retrato
A Deformação do Retrato ou o Devir animal na Pintura de Francis Bacon
INTRODUÇÃO

Os pressupostos que informam o ângulo interpretativo deste trabalho


processam-se em torno do «cogito fotográfico» – e de toda uma panóplia de
posturas e artimanhas de natureza estética capazes de assinalar a «ancrage»
corporal e pulsional da prática fotográfica e da especulação que
concomitantemente lhe surge associada. Designemos pois por FOTOLOGIA o
lugar comum desta especulação estética do ver e do pensar.
Pareceu-nos de particular interesse postular uma metodologia que nos
conduzisse lá onde as coisas começam a adquirir FORMA na visão e PENSAR na
engrenagem lógica – para daí e a partir da «representação» que já é
TRANSPOSIÇÃO, remontar através de uma «teoria da interpretação» até à
diferença originária sem soçobrar na metafísica das origens identitárias e
perspécticas do logocentrismo. O nosso expediente teórico é de origem
nietzschiana. Mas expliquemo-nos para não fazer abuso ilícito da autoridade da
citação. Segundo Nietzsche, todo o esforço incessante que o homem realizou até
hoje tem consistido em querer volatizar as «metáforas intuitivas num esquema e
em dissolver a imagem no conceito»1.
Semelhante comportamento provocou perdas inevitáveis e a consequente
FORCLUSÃO DA DIFERENÇA que leva Derrida, apoiando-se em Niezsche, a
afirmar que a metafísica, ao apagar a cena fabulosa que a produziu, se tornou
contemporânea da prática da domesticação (Zucht) do corpo e dos instintos. Ora,
ser-nos-á pois necessário dar seguimento à nossa reflexão, a fim de por meio dela
acentuar os componentes que sobredeterminam a vontade de interpretar e o não
menos profundo e arraigado desejo de saber.
Nietzsche vai ao ponto de pôr em destaque o «génio arquitectural» do
homem em referência a dois modelos eminentes da «tecnologia natural» ou
instintiva: a abelha e a aranha – para com base no paralelismo sondar o que a
metafísica ocultou e sacrificou para a alegada chegada da «aedequatio rei et

1 NIETZSCHE, F. – O Livro do Filósofo, Porto, Editora Rés, 1984, pág. 95.


intellectus» da razão ocidental. «Nietzsche lui-même ne se doutera pas que l’EXPLORATION
DE L’INCONSCIENT de la raison occidentale conduit la mise en vidence de la structure magique
de la preuve par la régularité, mère de la loi ... La raison européenne est donc à double fond:
d’une part, les appareils des physiciens permettent de prendre des mesures de plus en plus exactes,
grâce auxquelles les régularités des comportements de la matiére sont trés exactement enregistrés.
Ces régularités muettes sont ensuite IDEALISÉES une première fois à l’aide de continuités
mathématiques qui permettent de les SCHEMATISER. Ces continuítés sont alors considerées
inconsciemment comme des signes de la loi, et prises en charge pas les totems légalisateurs –
causalité, necessité, etc. – chargés de leur faire tenir– en les idéalisant une seconde fois – le rôle
de lois rationnelles, donc signifiantes, de la nature... Ce sera donc la notion même de vérité, telle
que la philosophie de la RAISON CAPTURANTE l’a forgée de Platon à Hegel, qui se trouvera
bouleversée si l’intelligence philosophique de demain devait se décider à peser les motivations pas
lesquelles l’homne METAPORPHOSE sans cesse sa saisie des régularités du réel en paróle de
raison»2
A partir deste cenário de fundo abonador da equivalência epistémica que se
joga entre a «ordem», a «lei» e a «nacionalidade» fácil nos é depreender uma
ÓPTICA ou um «PUNCTUM» (sistema perspéctivo) esclarecedor das «procédures» de
defesa e de «détour» e dos deslocamentos operados pelo «instinto construtivista»
que o homem foi levado a imprimir no pensar e nas técnicas.
Parecem-nos estar lançadas as condições para a DESMONTAGEM da
argumentação cega que informa parte da lucidez dos nossos silogismos legais de
cultura. Sabemos bem, depois de Freud, que a cultura emerge a partir de um
crime cometido em sociedade, e que consequentemente toda a clareza, seja ela
discursiva ou legal, esconde uma VIOLÊNCIA GENÉTICA que parece ser condição
exigida instaurativa de uma estrutura de significação. Em ordem à detecção deste
punctum coecum, que dita a perspectiva ao nosso raciocínio e ao nosso devaneio,
admitimos como hipótese metodológica no decorrer deste trabalho a presença
biótica de um RESTO que tem ao longo da nossa história estruturado o
inconsciente da razão. O pensamento ocidental, no dizer de Baudrillard, não
suporta nem nunca suportou o vazio da significação, o não-lugar e o não-valor;

2 DIEGUEZ, M. – «Regards sur l’inconscient de la raison europeénne, in EN MARGE – L’occident et ses


sempre lhe foi necessário um LUGAR e uma ECONOMIA3.
Um lugar e uma economia, ou seja, a administração reservada de um
«resto», por mediação do qual se exercem discretamente os usos, as operações
lógicas do CÁLCULO e a forma encadeada dos enunciados silogísticos. Este
«resto», resultado de uma operação económica de retenção, desloca-se sob a
forma de real extorquido para o arquivo ou o documento onde fica condensando
a história em resumo, ou na forma abreviada de um sinal, de uma inscrição ou de
uma data, funcionando assim como MEMÓRIA RUDIMENTAR do ocorrido, ou
como RESERVA SIMBÓLICA.
A carga biótica deste «resto» violentamente reprimida deslocou-se
historicamente como máquina de guerra selectivamente programada e partiu em
cruzada devastando tudo o que não se coadunava com o «arquivo» e conservou
ao longo do trajecto tanatográfico especimens que pudessem vir a garantir que a
hecatombe teve lugar. A captura realizada forneceu a prova simbólica do
acontecido e o que a memória poupou serviu-lhe de prova. Foi assim que a regra
lógica do terceiro excluído manifestou na ordem interna dos discrusos a
transposição de uma operação de extermínio ocorrida no espaço/tempo das
culturas. Parece ser em virtude desta transacção que o real destituído do seu peso
ôntico e da sua topologia «evénementielle» procurou encontrar equivalente
homólogo desta «porção de realidade na ordem abstracta das razões do Logos.
É por esta razão que a reserva não é tanto a acumulação quantitativa, mas
antes a posição ou o LUGAR estratégico onde o «stock do real» foi obrigado a ser
reduzido a um resto miniaturizado ou a uma forma de reserva símbólica. Esta
veio pois a ocupar o «lugar do morto» ou do terceiro excluído. Foi assim que, a
título de exemplo, os monumentos, erigidos sobre as ruínas de Hiroshima ficaram
como ZONAS ESQUEMÁTICAS de uma Lembrança ou de uma Reminiscência,
através das quais esta porção de realidade miniaturizada desempenha eticamente
a função de simulacro. A reserva simbólica mover-se-á neste «esquema que será
simultaneamente fonte de figuração geométrica e de possibilidade da ficção

«autres», Paris, Aubier Montaigne, 1978, pág. 228-229.


3 BAUDRILLARD, J.– L’échange symbolique et la mort, Paris, Gallimard, 1976, p. 337.
relevante»4 e comporá os efeitos retóricos das argumentações que sob o efeito
violentado da lei ou do «NOMOS» confundirá todo o real com a representação
racional residual, impedindo-nos assim de «saisir dans ce qui a été écrit, un symptôme de
ce qui a été tué» (Nietzsche). Em ordem a querermos ver continuada a nossa
actividade de interpretação seria necessário virmos a instalar-nos no lugar «où se
met en place le corps de force par lequel le logos instaure le principe d’identité au mépris de ce
qui fait la différence»5. Ora é exactamente o que tentaremos abordar neste trabalho
através de uma fenomenologia da captura capaz de descrever os dispositivos
pulsionais da especulação estética do ver e do pensar na FOTOLOGIA. Quando
falo em DISPOSITIVOS PULSIONAIS não evoco uma ordem invisível de
significação, mas antes indico que a pulsão dificilmente poderá ser imaginada
fora da representação. Para tentar ser mais claro, direi que o acto de PREDAÇÃO
começa por ser fenomenologicamente uma «impressão que engloba os conteúdos
das sensações, assim como os momentos sensuais da esfera das impulsões»6. O
mal das fenomenologias está na passagem ultra-rápida entre um estado de
APREENSÃO primeiro (o ver) e o estado de RESTITUIÇÃO, que acaba por atribuir
ilusoriamente o lugar relevante a um sujeito, ou a uma analítica existencial
elaborada completamente à margem de uma «tópica da pulsionalidade». O
recalcamento da inscrição animal do corpo só foi possivel mediante a instauração
de um poder constrangedor, ou de uma artimanha de ordem lógica, que no
decorrer do tempo emprestou legalidade juridica e deu caução às nossas
representações segundas reformuladas a partir do sensível.
À custa de sermos claros por ofício, viemos a tropeçar constantemente na
raíz das nossas impressões corporais – acabando por ser pela PREDAÇÃO e pelas
múltiplas actividades de DESVIO que nos foi tornado possvel medir o golpe
infligido ao corpo da pulsão.

4 BENOIST, J. M.– Tyranie du Logos, Paris, Ed. de Minuit, 1975, p. 122.


5 BENOIST, J.M.-Tyranie du Logos, Paris, Ed. de Minuit,1975, p. 122.
6 Referência à tese desenvolvida por Didier Franck no livro Chair et corps, Paris, Ed. de Minuit, 1981.
ÓPTICAS FIXAS

A câmara escura da fotografia

Sob a designação deste titulo genérico, será proposta uma reflexão analítica,
no decorrer deste trabalho, sobre o «SABER FOTOGRÁFICO». A abordagem não
pretende exibir os conhecimentos sumários colhidos em qualquer enciclopédia
das técnicas ou das artes, nem acentuar mais uma vez a versão historicista, ou os
nomes prestigiosos que personificaram a profissão. Desde os seus começos que a
Fotografia tem sido considerada como o «capítulo censurado» da história de arte.
Ora, interessa-nos para tal questionar o processo das técnicas e dos saberes no
domínio reservado das artes para tentar minimamente perceber a DEMORA da
intelligentsia artística em atribuir artisticidade à prática fotográfica. O desejo
teórico que nos move radica-se em indagar por que é que a fotografia veio a ser
apelidada de «ARTE MENOR» sem que isto nos leve por contágio, ou à
semelhança de qualquer ideologia a favor dos oprimidos, a querer reabilitá-la
perante as outras artes. Parece-nos pois que, muito antes da data histórica do
aparecimento da máquina fotográfica, toda a ARQUEOLOGIA SENSORIAL

evidenciava à sociedade o lugar hegemónico do olho, ou o lugar teórico da visão


no processo do conhecimento. A preponderância do MODELO ÓPTICO na teoria
do conhecimento levou mesmo Jacques Derrida a afirmar que «toda a história da
nossa filosofia é uma FOTOLOGIA, nome dado à história ou ao tratado da luz»7.
Platão é um dos primeiros filósofos que figura neste tipo de reflexão da luz. Se
Platão se mostra tão severo para com as artes é sem dúvida porque ele reconhece
a INFLUÊNCIA IRRACIONAL e ILUSÓRIA que lhe atribuía Gorgias – e contra a
qual Platão contrapõe como medicamento («pharmakon») o idealismo moral e
matemático. O projecto pedagógico, ou a vontade política de Platão, poder-se-á
resumir na seguinte estratégia: como eliminar ou rectificar de vez o mundo
flutuante e efémero das APARÊNCIAS e dos SIMULACROS?

7DERRIDA, J. – L’écriture et la différence, Paris, Ed. du Seuil, 1967, p. 45: «encore faudrait-il ... de revenir sur cette
métaphore de l’ombre et de la lumière (du se-montrer et du se-cacher), métaphore fondatrice de la philosophie occidentale comme
métaphysique... Toute l’hístoíre de notre philosophie est une photologie, nom donné à l’histoire ou au traité de la lumière».
Talvez que o Mito da Técnica se enxerte nesta vontade totalitária em
rectificar a não coincidência entre o PLANO e o REAL – por este esforço de
«maîtrise» e de acerto da ciência não é de todo domado, porque para além das
mais sofisticadas diabruras tecnológicas haverá sempre margem para o
impensado (a indeterminação), donde surgirão os fantasmas ou os «efeitos-
surpresa» que inicialmente não figuravam no horizonte programático da
tecnologia. Com isto não pretendo dizer que a ciência não diminua o grau de
indeterminação – sabemos bem já hoje que a ciência no seu limite de previsão se
deixa acompanhar por todo um aparato técnico e um ritual de prescrições e de
medidas de segurança e nas quais o homem se enquadra adscrito a um regime de
«razão observante», como mero vigia e espia dos funcionamentos normais e
patológicos da máquina. Contudo não basta, não é por se exorcizar o real que se
consegue abalar e pôr entre parênteses o inconsciente tecnológico das máquinas,
ou quanto a nós, a câmara bem escura da fotografia, que serviu a Freud como
metáfora do inconsciente8.
No decorrer destas considerações sobre a fotografia, convém-nos, por um
lado, não desligar a idade das positividades da idade das arqueologias e, por
outro, tentar mostrar como é que os «saberes» e as «técnicas» se imbricam sem
integralmente se cobrirem – abrindo assim caminho para um IMAGINÁRIO que
não deixa de retomar e de alterar reinventivamente a descoberta da máquina
fotográfica, que não tem cessado de mudar até ao momento presente.
Evidentemente que seria mais fácil dar por terminada esta questão e dizer que a
máquina fotográfica foi inventada por Nièpce e Daguerre em 1826. Mas no
prosseguimento deste trabalho interessa-nos mais realçar a problemática das
origens e da invenção em termos de «PROCESSO» ou de «OBRA ABERTA», do que
na modalidade de saberes constituídos ou acabados. É neste sentido que a
herança dos formalistas russos para alguma coisa nos serve.
A lógica das descobertas e das invenções, mesmo se ela necessita dos
enquadramentos circunstanciais do seu aparecimento, não fica confinada

8 KOFMAN, S. – Camera.obscura: De l’idéologie, Paris, Ed. Galilée, 1973, p. 38: «Quand Freud utilise le modèle de
l’appareil photographique, c’est pour montrer que tout phénomène psychique passe d’abord necessairement par une phase
inconsciente, par l’obscurité, le négatif, avant d’accéder à la conscience, de se développer dans la clarté du positif».
exclusivamente no acto genético dos começos – circula antes do arquivo para a
nova configuração dos saberes onde por sua vez é redimensionada através dos
recortes epistemológicos das ciências e das novas aquisições tecnológicas da
modernidade. Esta parece-nos ser a via para contornar os obstáculos
reducionistas que acabam sempre por desembocar no discurso linear do
progresso, ou no neodarwinismo triunfante da tecnologia.
Por razões outras que as de índole metafóríca, o recurso sistemático a Platão
e a Nietzsche9 permitir-nos-á analisar como é que o sistema de representação que
vigora no seio da metafísica ocidental nos surge ancorado na FOTOLOGIA e, ao
mesmo tempo, como é que através da filosofia Nietzschiana é possível
TRANSMUTAR o carácter ascético da IDEALIDADE que em Platão nos surge ligada
aos objectos matemáticos.
A idealidade para Nietzsche não assenta num edifício geométrico isento de
corruptibilidade, mas na PULSÃO, ou seja, no INSTINTO: «nestas energias vitais
infusas no corpo que determinam as crenças e até mesmo os conhecimentos». De
nada nos serve isolar Platão de Nietzsche, tanto um como outro restituem-nos a
lógica ambivalente do inconsciente definido por Freud. É a fotografia que
compete elucidar-nos sobre o «inconsciente da vista» (W. Benjamin), e isto a
partir das várias técnicas que ela hoje a si incorpora. A câmara escura exilada da
cena pública da visibilidade fará corpo camufladamente com a FOTOLOGIA ao
mesmo tempo que evidenciará que o inconsciente (à imagem da câmara escura) é
antes de mais um DISPOSITIVO DE CAPTURA.
A câmara escura é pois uma máquina/vestígio de uma cena primeira, onde
o real muda de roupa e se transmuta (isto se dermos todo o alcance psicanalítico
à palavra câmara = quarto). Ela não será TABULA RASA, mas o lugar de uma
INSCRIÇÃO CAPTIVA que reflecte duplamente a estrutura do olho regido por um
esquematismo cultural interiorizado seguidamente como natural. É sabido que a
câmara escura estrutura a realidade da sua inscrição a partir de um código
perspéctico directamente herdado e construído sobre o modelo da perspectiva
científica do Quattrocento. «A câmara não é opticamente nada mais que a

9 KOFMAN, S. – Camera obscura: De l’idéologie, Paris, Ed. Galilée, 1973, p. 48.


adaptação – apenas aperfeiçoada – da câmara escura do Quattrocento. Mas essa
câmara escura era conhecida do Egipto faraónico e da ciência árabe do século
IX»10.
O que comprova mais uma vez a tese de que a reinvenção continuada da
máquina fotográfica e mais tarde do cinema se inscreve no espaço onrico e
mitológico do ho mem e da sua vontade obstinada em querer FIXAR a imagem,
resultado obtido na fotografia e prosseguido mais tarde no cinema pela projecção
das fotografias animadas. Ora, será através dos avanços e das novas
experimentações que a fotografia consegue doravante tornar visíveis ao olho os
movimentos que normalmente lhe escapam e desvendar o «inconsciente da vista»
para lá da insuficiência dos nossos sentidos.
A maquina fotográfica foi concebida estruturalmente para produzir uma
imagem que correspondesse às normas de lisibilidade saídas da tradição
figurativa.Quer isto dizer que a fotografia não deve ser apresentada como a
reprodução exacta do real, mas como a projecção planimétrica efectuada a partir
de um sistema de representação elaborado no século XV. Hoje para nós tornou-
se familiar e quase natural o sistema da perspectiva, devido a uma longa e lenta
aprendizagem e aos constrangimentos de ordem simbólica do saber e aos
«patterns» da cultura11. O que perdura como sociologicamente importante é a
resistência ao cânone da perspectiva, dos membros de outras sociedades –
constatação que leva McLuhan na Galáxia de Gutemberg a proferir que as
sociedades não alfabetizadas sem uma boa aprendizagem sentir-se-ão incapazes
de «ver» fotos ou imagens de cinema. O que nos leva a pensar como Merleau-
Ponty: «la perception déjà stylisé», o que finalmente clarifica a mecânica perceptiva
do olho: o olho elabora uma selecção, uma montagem, uma ESTRUTURAÇÃO

DAS APARÊNCIAS sob ditame das determinações socio-culturais.

10 COMOLLI, J. L. – «Técnica e Ideologia», in Revista de Cinema nº 21, Agosto/Setembro 1975, Porto, Ed. A
Regra do Jogo, 1975, p. 45.
11 PANOFSKY E., – La perspective comme forme symbolique, Paris, Ed. de Minuit, 1975.
O ENIGMA DA VISIBILIDADE FOTOGRÁFICA

De nada nos serve repensar a INVENÇÃO FOTOGRÁFICA como um corpo-à-


parte, fora do alcance epistemológico das técnicas e dos outros saberes, que de
perto ou de longe sobre ela se exerceram. Embora também não seja pelo carácter
indeterminado e universal das descobertas que tentaremos apurar a sua
singularidade e o seu interesse – a INVENÇÃO FOTOGRÁFICA materializa – na
configuração do «objecto técnico», ou da máquina, a convergência de vários
saberes e expedientes que constituem os ingredientes, ou a trama reconstituinte
do invento.
Uns aceitam o papel relevante da física, outros atribuem
sobredeterminantemente a invenção fotográfica à química, outros ainda
articulam regressivamente a um pensamento filosófico marcado pela
FOTOLOGIA, fazendo daí depender a emergência de uma nova ordem da visão,
materializada na «câmara escura» e consequentemente nos avanços da óptica
geométrica. Digamos que, para além destes três grandes campos da óptica, da
química e da física, tem havido toda uma gama de «saberes menores», que em
filigrana acompanharam a fotografia e que postos de lado, têm sido
sistematicamente considerados como não elucidativos, para fazerem parte do
corpus histórico da fotografia. A eles voltaremos, pois será através deles que, por
um lado, tentaremos curtocircuitar o historicismo monolítico da versão oficial da
fotografia e evidenciar, por outro, como é que «a cultura se tem constituído em
sistema de defesa contra as técnicas... quando o que reside nas máquinas é o
gesto humano cristalizado e fixo em estruturas que funcionam»12.
Um outro aspecto importante em ordem à compreensão já não tanto do
aspecto técnico, mas do estatuto artístico da fotografia, deriva em parte de a
terem alojado, ou melhor, entalado entre a pintura e a arte cinematográfica e por
esta razão a destituírem de toda a «especificidade»; para muitos ela continuou a
ser durante muito tempo a técnica coadjuvante e cúmplice das outras artes.

12 SIMONDON, G. – Du mode d’existence des objets techniques, Paris, Ed. Aubier Montaigne, 1969, p. 9: «La
culture se conduit envers l’objet technique comme l’homme envers l’étranger quand il se laisse emporter par la xenophobie
primitive».
Estatuto que nunca deixou de estar presente no decorrer da sua história.
Ao ser utilizada como técnica predominante da representação do visível, a
fotografia é colocada ao nível de um mero serviço público e quando muito só
chega a ser apreciada quando começa a comprovar que melhor que outra técnica
poderá vir a RESTITUIR o passado em DOCUMENTO – ou ainda, quando rivaliza
com o retrato pictural e o excede em precisão e em fidelidade. Razão de sobra
que a leva a aparecer na companhia e partilhando os mesmos espaços que a
classe dominante e a legitimar ideologicamente o social; as encomendas chovem
por parte do estado e o fotógrafo não tem mãos a medir. Entre o retrato do
monarca e o da famlia do príncipe, apetrecha para as gerações presentes e
futuras o reino em efígies de papel – alia-se ao poder religioso, civil e visualiza o
ordenamento social do território, respeitando rigorosamente o ritual dos
acontecimentos e das datas. Contudo a história da fotografia que hoje temos não
é especialmente a dos episódios da MITOLOGIA DA CONVENÇÃO SOCIAL, mas
antes aquela que anonimamente se furtou das malhas da grande indústria e que
se foi constituindo discretamente ao lado do delírio da indústria nascente e dos
cânones da praxe. A ideologia do século XIX, a das artes e do progresso, surge-
nos já bem retratada muito antes de a fotografia aparecer, na objectividade e na
fidelidade da «REPRESENTAÇÃO PICTURAL». É deveras curioso como Sartre
analisa sociologicamente a «representação pictural», vendo nela a forma acabada
da «arte-nevrose»13, que ele define, de maneira eloquente, como a expressão
ideológica da burguesia por volta de 1850.
Neste seguimento poder-se-ia perguntar que tipo de função é que a
burguesia do século XIX prescreve aos seus pintores e escritores, senão a de que
estes disponham do seu próprio poder, em ordem a OCULTAR a relatividade
histórica e social14. A fotografia não foge à facilidade deste programa de
imposição. Desde logo é apropriada pela classe dirigente, neste contexto de
justificação ideológica do social, e contribui magistralmente, ao lado das

13 SARTRE, J. P. – L’idiot de la Famille, vol. 3, Paris, Ed. Gallimard, 1972, p. 337.


14 THEVOZ, M. – L’académisme et ses fantasmes, Paris, Ed. de Minuit, 1980, p. 17: «s’il est vrai que le fétichisme naît
de l’effacement d’une genêse, on doit considerer qu’il y a dans notre culture un fétichísme de la visibilité comme il y a un
fétichisme de la monnaie... on pourrait d’ailleurs poursuivre la comparaison entre la représentation optique et la représentation
monétaire en envisageant le phénomène d’occultation de la production».
academias, corroborando de objectividade e de realismo a estética ocidental, ou
seja, a chamada TEORIA MIMÉTICA DA ARTE. Teoria que pretende legitimar as
pretensões da pintura em representar o mundo tal qual é, como se fosse da
imagem óptica que um objecto pudesse receber ontologicamente o seu estatuto de
realidade. Não é sem razão que o século XIX se volta para as filologias e para a
hermenêutica e que o MODELO ÓPTICO se vê coroado de êxito no domínio das
ciências de lntrospecção, tal foi o caso das ciências médicas, psicológicas e
neuropsiquiátricas. Não deixa de ser despropositada a referência a um livro que
ultimamente apareceu tentando mostrar o lugar relevante que a fotografia
ocupou em relação à INVENÇÃO DA HISTERIA, aparecida também no decorrer do
século XIX15. Interessante seria notar o paralelo entre a descoberta da fotografia
e a psicologia experimental e ainda examinar como é que a visibilidade chega a
desprender-se da sua modalidade privada e enigmática da «Câmara escura» para
passar a transitar no dispositivo público do PANÓPTICO.
A reviravolta que se dá é sintomática, tanto no plano das tecnologias
políticas e das ciências do social (M. Foucault), como no plano de uma moderna
teorização sobre a fotografia (R. Barthes). Quanto ao primeiro plano, já não se
trata de ir indagar a explicação do visível ou daquilo que emerge nas razões
ocultas de uma maquinaria, quase sempre personalizada, que se furta à vigilância
do controlo, mas antes de nos darmos conta de que a própria visibilidade em si é
um MEDIUM CARCERAL, ou como diz Foucault, «a visibilidade é (uma)
armadilha»16.
Quanto ao segundo plano, o Barthes fenomenólogo da imagem fotográfica
eclipsa na câmara clara o segredo ou a estrutura escondida da câmara escura da
fotografia, dizendo que o que interessa interrogar na fotografia é a EVIDÊNCIA e
não o segredo ou o enigma. Barthes prefere ligar a invenção fotográfica
descoberta da química do que à da câmara escura: «diz-se muitas vezes que
foram os pintores que inventaram a Fotografia (transmitindo-lhe o
enquadramento, a perspectiva albertiana e a optica da câmara escura. E eu digo:
não, foram os químicos. Porque o noema ‘Isto foi’ só foi possível a partir do dia

15 DIDI-HUBERMAN, G. – Invention de l’hysterie, Paris, Ed. Macula, 1982.


em que uma circunstância científica (a descoberta da sensibilidade luz dos sais de
prata) permitiu captar e imprimir directamente os raios luminosos emitidos por
um objecto diferentemente iluminado. A foto é literalmente uma emanação do
referente»17.
Contudo, Barthes não foge às armadilhas que a visibilidade de certas
fotografias lhe tece. Não é efectivamente possível falar de uma fotografia sem de
certo modo reconhecer «que se está dentro dela» – como não é possível abordar
a fotografia sem a associarmos inevitavelmente a uma procura lúdica de
significação e de surpresas e sem nos colocarmos no terreno da caça. Mesmo que
o nosso itinerário de procura surja marcado possivelmente pelo inconsciente
tecnológico da fotografia e pelo horizonte histórico que o século XIX nos deixou
(«uma ciência das profundezas, da alma e da sociedade»), nada nos impede
constatar que algo bem preso ao corpo resiste a uma explicação última: «Muita
coisa se passa, superfície da linguagem, que não adquire necessariamente a sua
consistência a partir do que está ‘no fundo’, ‘por debaixo’»18. Talvez que a
IMPRESSÃO QUÍMICA da imagem na foto nos garanta que o registado só se torna
visível para nós quando o corpo na iniagem encontrar a reminiscência.

16 FOUCAULT, M. – Surveiller et punir, Paris, Ed. Gallimard, 1975.


17 BARTHES, R. – A câmara clara, Lisboa, Ed. 70, 1981, p. 14: «de um corpo real, que estava lá, partiram
radiações que vêm tocar-me a mim, que estou aqui».
18 FLAHAUT, F. – A Fala intermediária, Lisboa, Ed. Via, 1979, p. 9. Em prefácio, Barthes corrobora a ideia

central da tese defendida por Foucault: «o século XIX legou-nos uma ciência das ‘profundezas’ (da alma e da
sociedade)».
FOTOGRAFIA – ARTE DE CAPTURA

Segundo Edgar Poe, a elaboração é uma fabricação. Ler com os olhos de


leitor é, como diz Poe, não decifrar os estratagemas que determinam o
significado da obra, é só ver aparências, reflexos, efeitos. Ora, de nada vale
deixarmo-nos intimidar pelo lado irónico do detective Poe, pois bem sabemos de
há muito que «a verdade nem sempre se encontra no fundo de um poço», (O
Duplo assassínio da Rua Morgue) e quase nunca nos surge como revelação após a
desmontagem dos mecanismos da ilusão, o que seria reduzi-la a mero mecanismo
de construção; daí que a obra não é apenas esse tecido de ilusões que bastaria
desfazer para lhe conhecer a força, mas o que, permanentemente descentrada do
seu sentido manifesto, se furta às ideologias de explicação e de interpretação que
a reciclam, dando-lhe forma acabada ou pelo menos limitada. Precavidos à
partida por este tipo de considerações de carácter metodológico, a natureza do
objecto que vamos «MITANALIZAR» é a foto enquanto objecto imaginário –
objecto que permitirá pôr em relevo através de certos indícios, marcas e actos a
POSTURA CORPORAL MIMÉTICA existente entre o CAÇADOR e o FOTÓGRAFO

que parte de máquina ao ombro evocando a cada disparo fotográfico a postura


móvel do caçador à busca de presa. Esta associação não é destituída de
fundamento pois o nome inicial dado à máquina fotográfica em 1882 por E. J.
Marey foi o de «FUSIL PHOTOGRAPHIQUE». Evidentemente que há outras razões
que nos impelem a considerar a máquina fotográfica como um dispositivo de
captura. A primeira e a mais notória é-nos sugerida pela «gemelaridade» ou pela
conivência contraída entre a estrutura da máquina e a do olho.
Enquanto o olho capta, a máquina arma(zena) fixando na imobilidade da
imagem o estado de «preensão» de uma presa: «uma presa é um corpo orgânico
impedido de se mover»19. Ora, o que nos parece estar por detrás da captura ou
da máquina fotográfica é toda uma construção imaginariamente inventiva
modelada pelo INSTINTO. A primeira máquina animal é o corpo considerado

19 LYOTARD, J. F. – Economie Libidinale, Paris, Ed. de Minuit, 1974, p. 290.


como o lugar de onde se parte. Porém, nem sempre nos é fácil constatar ou
admitir a persistência dos traços animais que bem camufladamente se alojam por
detrás, ou na própria visibilidade dos objectos técnicos inventados. A razão desta
cegueira é simples e releva quase sempre do preconceito cultural que acompanha
a tecnologia e que se poderia formular da seguinte maneira: normalmente supõe-
se que quanto mais evoluída e sofisticada for a tecnologia, menor margem haverá
para o irracional. Suposição ingénua que bem comprova que a racionalidade foi
sempre movida por um tipo de amnésia, para não falarmos de recalcamento. O
insurgimento contra este tipo de racionalidade é-nos exemplarmente descrito por
Eduardo Prado Coelho: «A teoria constrói-se por gestos de deslocação interiores
à linguagem, que nos conduzem de termos imprecisos para termos um pouco
mais precisos. Supor que os instrumentos teóricos mais rigorosos se podem
introduzir na linguagem sem o RECURSO A NOÇÕES PRIMITIVAS IMPRECISAS é
pura ingenuidade»20.

O Dispositivo de captura da máquina fotográfica

A máquina fotográfica, mesmo que hoje não se chame o «fusil photographique»


de Marey, continua a indicar-nos, embora de uma maneira mais velada, que a
podemos tomar como um «dispositivo de captura», ou o lugar ausente/presente
da presa. A função de uma tal captura tem sido, tanto na arte como na técnica,
materializada, quer em operações de modelização e de esquematização, quer em
modalidades de domínio ou de «influência sobre».
Nietzsche esclarece como é que se chegou à organização do saber e à
mestria tecnológica dos inventos. Houve concerteza, no dizer de Nietzsche, à
partida um CONSTRANGIMENTO DE ORDEM BIOLÓGICA que levou o homem a
esquematizar e a dar formas à desordem no fito de por aí vir a satisfazer as suas
NECESSIDADES PRÁTICAS (Fragmentos póstumos). Tanto o saber como a técnica têm
cada um por seu lado deslocado a animalidade fazendo-a desaparecer, ou

20 PRADO COELHO, E. – Os universos da crítica, Lisboa, Ed. 70, 1982, p. 36.


melhor, exorcizando-a através de esquemas de domesticação evidenciados quer
na teoria quer nos inventos. A operação é sintomática de que o significado de
toda a cultura consiste, ainda no dizer de Nietzsche, em reduzir o ANIMAL DE

PRESA «homem» a um animal domesticado civilizado ou, para jogarmos com os


efeitos das palavras, a um ser de «empresa».
A nossa modernidade, talvez por estar habituada a dar importância
excessiva ao aspecto racional e abstracto dos processos cognitivos, ficou velada a
entender o lado imaginário da caça que faz corpo com a fotografia. Abordar hoje
a fotografia consistirá na elaboração de uma «MITANÁLISE FENOMENOLÓGICA»
capaz de restituir o imaginário singularmente predador do ACTO FOTOGRÁFICO

e a dos vários universos da imagem fotográfica.


Seguindo o conselho de Lévi-Strauss, talvez nos seja necessário remontar
aos tempos idos para perceber a força contida e manifestamente exteriorizada
das primeiras imagens representadas e a partir daí tentar perceber por que é que
a arte nos seus começos se auto-representara fundamentalmente na sua FUNÇÃO

ESQUEMATIZANTE E CAPTURADORA.

Resta-nos reatar o percurso das arqueologias para confrontar a positividade


dos novos inventos e dos novos «tecnemas» com a INSCRIÇÃO ANIMAL que
circula nos velhos e sempre novos mitos.

A captura ou a captividade da imagem

A arte paleolítica intimamente ligada a uma civilização de caçadores


figurava quase sempre a imagem como um estado de captura ou de «preensão».
A pintura de Lascaux fixava a presa na pose, representando ANTECIPADAMENTE
a posse ou o sucesso de uma cena de caça. A imagem era à partida «armadilha»
ou operação mágica através da qual, no decorrer de uma acção ritualizada, era
encenado em esquematização um estado de captura. A própria palavra
ANTECIPAÇÃO (Ante/Capere) significa etimologicamente «captura antecipada». A
maior parte dos estudiosos que se têm debruçado sobre a arte continua a atribuir-
lhe como característica principal esta função de previsão e de antecipação.
Francastel fala de «anticipations sur le réel à informer»21. Adorno de «antecipações de
algo que não se conhece»22. Starobinsky de «antecipações de mudanças do
espírito colectivo»23. Estamos, pois, face a uma atribuição a tal ponto comum que
J. K. Galbraith chega mesmo a pretender, como bom americano, que os homens
de negócios devam doravante estudar a arte, já que o artista cria modelos de
problemas e de situações qua ainda não figuram na grande matriz social (citado
por McLuhan in Understanding media). A arte é assim considerada, no dizer de
McLuhan, como um radar, espécie de detecção à distancia – e como um meio-
radar que também possibilita ao artista a construção de «maquetes» para
afrontar a mudança que já se anuncia. Contudo a arte só nos parece susceptível
de «antecipar» se ela efectivamente já não for ela própria e se ela já tiver sido
atravessada por uma carga anónima de devires a partir da qual ela poderá
CONJECTURAR e produzir ARTEFACTOS.
Nada me parece melhor do que a caça para nos narrar esta trama acidental
de imprevistos que pontuam a cada passo o «disparo fotográfico» do artista
fotógrafo. A fotografia opera com a ajuda de um dispositivo óptico num tempo
biológico, onde o olho não é somente espelho apto a uma reflexão passiva mas
carne, no sentido em que o entende Merleau-Ponty, ou A. Breton quando diz
que o «olho existe em estado selvagem». O olho é animado de uma energia a
partir da qual ele constrói e desfaz tudo o que vê.
Ele é feito, como dirá Lyotard, para gozar e se deixar fascinar. Fascinação
que afectará a visão e a levará a arremeter-se a este ponto originário limite,
pressentindo na vertigem onde poderá ser experimentada a «conaturalidade do
homem e do mundo» no contacto mudo com as coisas.
O imaginário à solta da caça narra ao fotógrafo através da RAPIDEZ

ANIMAL, a história pre-reflexiva do olho.

21 FRANCASTEL, P, – La Figure et le Lieu, Paris, Ed. Gallimard, p. 30.


22 ADORNO, Th. – Théorie Esthétique, Paris, Ed. Klincksieck ,1974, p. 108.
23 STAROBINSKY, J. – La relation critique, Paris, Ed. Gallimard, p. 48.
AS POSTURAS DO CORPO FOTOGRÁFICO
ou A «IMOBILIDADE DA PRESA»

Depois de ter sido posta em paralelo, no capítulo anterior, a actividade do


fotógrafo com a do caçador, e de se ter analisado a captura da presa, sob o ponto
de vista da mobilidade e da rapidez animal no espaço, falta-nos agora descrever a
importância que o tempo adquire como mecanismo inerente ao funcionamento
fotográfico. Pascal dizia que, ao caçar a lebre, o caçador pretende apenas agarrar
a sua própria morte. Ao tropeçar a cada passo com a morte, a figura do caçador
evoca a do fotógrafo que, ao capturar o FORTUITO e o que lhe passa resvés,
surpreende o real e o resguarda, delimitanto-o numa FORMA-CERCO (a moldura).
O que ele pretende desta sorte é furtar o real à contingência e mediante um
gesto fatal torná-lo visivel, numa espécie de IMOBILIDADE posta à mercê e à
disposição de um olhar que sabe ler, o que Barthes chama o «studium»24. Fixar o
efémero consiste pois em operar uma passagem ou transmutação mediante a qual
se torna desvendável a olho nu a vontade fatal que habita o fotógrafo, em ter que
dominar a essência mortal do corpo pela «TECHNÊ».
Ao capturar a surpresa, o fotógrafo não pode deixar de insistir no carácter
evanescente e fugidio do instante e na opacidade mortífera do real. O instante,
uma vez fixado e revelado, porá visivelmente em destaque o carácter mortfero da
«prise de vue».
As fotos do fotógrafo nada mais são do que fragmentos ou REFLEXOS

MORTAIS de uma dada ocorrência aparecida/desaparecida no real. Contudo,


não cultivemos ilusões. Nem todos os fotógrafos são este «FOTÓGRAFO-
CAÇADOR», que parte cedo à procura de presa e que espreita ansiosamente o
justo momento do «flagrante delito». Alfred Stieglitz conta com orgulho que no
dia 22 de Fevereiro de 1893 esteve três horas debaixo de uma tempestade de
neve à espera do «momento propício» para tirar o seu célebre cliché «Fifth Avenue:
Winter». Longe estamos de vir a alinhar todos os fotógrafos sob esta conduta de
caça. O que podemos afirmar é que toda a mecânica do «acto fotográfico» torna

24 BARTHES, R. – A Câmara Clara, Lisboa, Ed. 70, 1981.


sensível uma estratégia visual de captura e que, a partir das suas posturas e actos,
o fotógrafo imaginariamente nos surge, quer ele queira quer não, associado ao
caçador no disparo instataneizado do «visar da presa, salvo seja, no retrato».
Num abrir e fechar de olhos estamos no passado e o «já está», ou o «pronto» do
fotógrafo arranca-nos ao torpor da pose. O instante roubado, uma vez revelado,
quase sempre nos interpela pelo lado nostálgico do «já ter sido». Nem tudo
parece ser possível registar, mas as coisas impressas ao serem ampliadas revelam-
se outras. É neste trabalho, ou banho de metamorfoses e das sucessivas
revelações, que o fotógrafo curiosamente fixa em POSTURA o mutável e o
efémero e que a fotografia condensa «punctualmente» o instante – instante que o
intérprete historializa e que por vezes a legenda desdobra em forma narrativa.
O Fotógrafo pode tornar-se caçador no justo momento em que revela e
amplia o «ACHADO» e não necessariamente no momento anterior, em que
APONTA COM A MÁQUINA. A magia do trabalho fotográfico está na (SUR)PRESA.

Rumo à versão tecnológica da fotografia

Nem todo o trabalho fotográfico reflecte de igual modo o imaginário da


caça. Alguns fotógrafos estão mais aptos para explorar o imprevisto – enquanto
outros preferem ser antes o «FOTÓGRAFO CENOGRÁFICO» que antecipa, e na
demora, planeia os efeitos tirando e manipulando aqui e acolá subtilmente os
vários elementos plásticos e os ingredientes constitutivos da imagem fotográfica.
Com esta distinção pretende-se desde já aclarar que a fotografia não se
confina a um só estilo, ou a uma mera reprodução mecânica do real. A natureza
da fotografia caracteriza-se pelos seus diversos usos e estilos. Wittgenstein dizia
quase o mesmo, quando afirmava que o sentido de uma palavra é dado pelo
somatório dos seus usos. A fotografia não se esgota num cliché, como ainda não
será possível definir um fotógrafo como representando o caso exemplar e único
da «espécie fotográfica». Há vários estilos, o que não quer dizer que tudo valha
em fotografia; não basta ter uma boa máquina para se ser fotógrafo, como não é
por se possuir pincel e tintas que se é pintor abstracto. Muitas das veleidades que
circulam referentes ao trabalho fotográfico desvalorizam o ALCANCE

ESTÉTICO/LABORAL DO FOTÓGRAFO, fazendo intervir constantemente


argumentos/razões de ordem mágica ou tecnológica, por intermédio das quais o
fotógrafo é reduzido a um mero accionador de processos de uma máquina que se
encarrega por ela própria de fazer o resto. (Em 1888, a publicidade Kodak
afirmava: «Carregue sobre o botão, nos faremos o resto». Garantia-se desta
forma ao comprador que a «prise de vue» seria excelente) .
É evidente que, se tal versão se difunde, é porque ela própria é comandada
e contagiada pela alta tecnologia cuja preocupação maior reside na
absorção/recuperação de determinada força inventiva e na sua RESTITUIÇÃO

HIGIÉNICA – isto se entendermos por higiene o empenho que a tecnologia tem


em banir todo e qualquer rasto de trabalho no produto uma vez este acabado. A
forma exemplar desta restituição é o «produto-fétiche». Contudo, mesmo neste
caso, a tecnologia pode, através desta ESCALADA HIGIÉNICA, provocar uma
exasperação inventiva capaz de dinamizar uma HETERODOXIA ESTÉTICA, tanto
no mundo das artes como no mundo especifico da «arte fotográfica». Há males
que vêm por bem. A fotografia desde os seus começos tem sido
consecutivamente, ora associada ao mito do natural e do realismo, ora ao mito da
precisão higiénica do design da era tecnológica. Émile Zola, o mais acérrimo
defensor do realismo em literatura, declarava em 1901, depois de ter praticado
durante quinze anos a fio a fotografia, que «ninguém pode realmente ter visto
algo antes de o ter fotografado». Por outro lado, no campo da teoria estética da
Bauhaus, a fotografia é considerada como um ramo de desenho industrial e como
tal ligada à arquitectura. Na sua obra Painting, Photography, Film (1925) Moholy-
Nagy, da Bauhaus, elogia a máquina fotográfica por esta impôr uma «HIGIENE
DA ÓPTICA» e por ter sido capaz de abolir da visão toda a carga literária e
imaginativa proveniente do estilo pictural dos grandes pintores.

A fotografia – vítima da versão histórica literária reinante da época


Como diz Barthes, se se quiser elaborar uma nova teoria da fotografia
teremos que partir da situação embaraçosa na qual esta sempre se tem
encontrado. A fotografia encontra-se presa entre dois escolhos. Por um lado é
apresentada como transcrição mecânica e exacta do real, por outro é pensada
como uma espécie de «substituto» da pintura e fala-se automaticamente em
fotografia de arte. Ora, o que acontece é que a fotografia não pode ser uma mera
transcrição do objecto, quanto mais não seja porque é plana e não tem três
dimensões e, por outro lado, também não pode ser uma arte porque copia
mediante um dispositivo mecânico. É esta a dupla infelicidade da fotografia, no
dizer de Roland Barthes. Assim, toda e qualquer teorização a ser feita da
fotografia terá de incidir sobre a conjuntura dupla na qual ela está enleada e ainda
ter em conta o percurso histórico social, bem como as suas demarcações em
relação à atmosfera reinante das outras artes.
Convém pois salientar pelo menos três momentos na «pequena história da
fotografia».
Um primeiro relaciona-se com os ideais estético-literários e militantes da
época post-romântica; é deste momento que datam as exigências morais da
profissão do jornalista independente. Pensava-se que incumbia ao fotógrafo a
tarefa de desmascarar a hipocrisia e combater a ignorância ao lado do repórter e
do romancista da época. Divulgou-se aos quatro ventos que a fotografia exprimia
a verdade em estado bruto e que ao fotógrafo, em virtude do seu medium,
competia, mais do que ao pintor, revelar e proclamar a exigência da verdade.
Num segundo momento, começa a constatar-se que a fotografia já não se limita a
esta função servil de registo mecânico do real. A máquina fotográfica, entretanto,
também muda e começa a introduzir pequenas doses de aparência, ligadas quer
à capacidade perspicaz do fotógrafo, quer ao aperfeiçoamento de uma máquina
que se deleita em captar aspectos do real que o olho até então era incapaz de ver.
Não somente a maquina amplia as nossas possibilidades de visão graças à
microfotografia e à teleobjectiva, mas ainda MODIFICA a nossa maneira de ver,
apresentando a visão como fim em si. Num terceiro momento parece-nos ser útil
pôr em evidência a reviravolta operada pela «VISÃO FOTOGRÁFICA» e o
contributo que ela prestou, nomeadamente à pintura. Assiste-se a uma mútua
influência e a uma troca de técnicas e intuições entre a pintura e a fotografia. É
notável a importância deste pormenor histórico: foi no estúdio de fotografia de
Nadar em Paris, que em Abril de 1874 foi realizada a primeira exposição que
reunia impressionistas. Fox Talbot experimentava e isolava formas obtidas com a
sua máquina das quais nunca a pintura teria sondado a natureza. O fotógrafo
inspira-se nas teorias da Bauhaus e liga-se a normas ideais da beleza formal
procurando através delas transgredir as normas que regem a visão ordinária.
Apesar mesmo do carácter vanguardista de algumas destas experiências
fotográficas realizadas no período entre as duas guerras por Strand, Minor White
e Adward Weston, acontece que muitas delas só chegam a ser reconhecidas
depois da investigação e da descoberta dos pintores e escultores modernistas.
Talvez que o TRABALHO TEÓRICO a realizar sobre a fotografia tenha que
incidir cada vez mais, ao contrário do que habitualmente se diz e se escreve, não
tanto em analisar a «FOTOGRAFIA-DOCUMENTO» e a «FOTOGRAFIA-PINTURA»,
mas em seguir atentamente o emaranhado dos «ESTILOS MENORES» que
intercalaram estes dois tipos de produção. A produção teórica que se tem feito,
incluindo mesmo a de R. Barthes, tem sido enferma desta versão dualista e não
tem ousado avançar proposições ligadas ao «ESTILO FOTOGRÁFICO», preferindo
encostar-se por comodidade «aos conceitos da filosofia ocidental que justamente
exprimem uma visão pictural (escultural) e literária das coisas»25.
Daí a oportunidade de numa próxima reflexão ter que se abordar o
«ESTILO FOTOGRÁFICO»26, entendendo desde já por estilo «UM FENÓMENO DE

ORDEM GERMINATIVA»27 que funciona à maneira de uma necessidade e que se


elabora desentranhando-se de uma «infralinguagem». O estilo será apresentado
como um SEGREDO bio-inventivo. Talvez seja através desta «VERTENTE
SILENCIOSA» que seja possivel PUBLICAR a natureza móvel do «devir-artístico-da-

25 VANLIER, H. – Philosophie de la Photographie, France, Les Cahiers de la Photographie (hors serie), 1983, p.
11.
26 BARTHES, R. – O Grau zero da escrita, Lisboa, Ed. 70, 1977, p. 19: «pela sua origem biológica, o estilo situa-

se fora da arte, ou seja, fora do pacto que liga o escritor à sociedade. Portanto, podemos imaginar autores que
prefiram a segurança da arte à solidão do estilo».
fotografia» e perceber por que é que há artistas que preferem a segurança da arte
à SOLIDÃO DO ESTILO.
Se a fotografia nos tem legado uma história de solidão – talvez seja por ela
estar doente e PRENHE DE ESTILO – talvez seja por aí que ela venha a contaminar
e a esclarecer o LAÇO ENIGMÁTICO que une a CURIOSIDADE, ou a sua
modalidade ausente (a RECORDAÇÃO), à ACTIVIDADE PREDADORA – (o tema-
ficção de Blade Runner).

27 THOM, R. – Conferência proferida em Grenoble, 10 Janeiro de 1978.


O ESTILO FOTOGRÁFICO

«Se tudo fosse irregular, ou tudo regular, não haveria


pensamento, pois este é apenas uma tentativa de passar da
desordem à ordem precisando de ocasiões desordenadas e de
modelos de ordem»
Paul Valéry, Introdução ao método de Leonardo da Vinci

Para tentar perceber intuitivamente o que constitui a natureza estética da


imagem fotográfica, começaremos por rejeitar o universo imaginação de
determinadas concepções de estilo que até hoje têm vigorado na apreciação da
produção artística. Uma delas consiste em atribuir «solipsisticamente» toda a
consistência significante da obra à pessoa do seu produtor. Uma outra, não
menos ingénua, reduz todo o alcance da obra a um poder operante de ordem
mágica cuja influência transforma o artista numa espécie de autómato, ou
«espantalho transcendental» que hipnótica ou misticamente se põe à disposição
de uma inspiração de ordem superior. Nem uma nem outra destas versões nos
servem – ambas limitam-se de modo diverso a retratar um só cenário – uma só e
mesma lógica.
A primeira acentuando uma concepção de estilo de natureza personalística
e humanista, na qual o homem figuraria como o DETENTOR CENTRAL de todo o
processo de significação – o exemplo acabado da célebre fórmula «o estilo é o
homem»; a segunda sublinharia a natureza transcendental e metafísica do estilo –
o estilo seria considerado como um DOM que actuaria (infusamente) no interior
de um ser completamente «PASSIVADO» – transmissor de uma sugestão ou de um
ditado automático de natureza telepática ou profética. Ao artista era exigida uma
RETIRADA ASCÉTICA – condição requerida para que a obra se manifestasse fora
do condicionalismo espacio-temporal e dos requisitos contaminantes de ordem
material e física. A obra acabaria por ser o que brilha na ausência e pela ausência
de estorvo – e denotaria o que não cessa de escapar à «maîtrise».
Daí a emergência de um pacto fantasmagórico entre a obra e a sua
inscrição invisível e a relação «NECESSITOSA DE DÍVIDA ou de MÉRITO»

contraída pelo artista, em relação a este deus anónimo ou a esta «black box» figura
do (o)culto.
Perante estas duas versões excessivas cabe-nos fazer prosseguir um outro
tipo de reflexão genérica sobre o estilo .

O estilo como ficção reflexiva

A história no seu conjunto surge-nos marcada por um processo arítmico de


formas variadas e avariadas em competição, confrontando-se em permanente a
um movimento uniformemente acelerado, ou à força cega de um destino regido e
ancorado ciclicamente na REPETIÇÃO. A repetição, este núcleo duro do real, ao
mesmo tempo que estagna o processo em estrutura, possibilita-nos o acesso a
uma FENOMENOLOGIA, sem a qual o visível pura e simplesmente nos escaparia.
Posto isto, só nos é possível apanhar por dentro, ou compreender o alcance
vertiginoso e translúcido da luz, bem como o carácter especulativo do cogito ou
dos pensares, se os submetermos a uma contrainte de ORDEM FÍSICA ou
GRAMATICAL, a partir da qual o processo se veja obrigado a autoreflexionar-se,
ou seja, a imaginar-se outro. Compeender-se-á assim que o processo se torna
explícito para nós desde o momento em que ele opera um «retorno sobre si
proprio». Para tal, o acidente ou obstáculo surgidos no regime do «KAIROS»
(ocasião) ou no regime «événementiel», transcrevem ontologicamente por efeito de
recorrência toda a instabilidade ambivalente que caracteriza partida a imanência
arítmica da estrutura. A representação, um pouco como a fotografia, só nos
consegue fornecer duplicatas de um Ponto estacionário do processo ou do
posicionamento geométrico de uma dada configuração. A discontinuidade
subjacente a todo este processo morfológico de figuração faz apelo a uma
dinâmica interna, visto que a descontinuidade não está «dissociada» das forças
contínuas que a geram.
O que é pois um remoinho senão o lugar geometrico instável (actuado por
forças várias) à beira de um sistema de implosão? O que é o pensar senão o
impedir que a memória venha a submergir catastroficamente os cogitanda (coisas
pensadas) na forma implosiva do esquecimento? O que é a luz senão a
combinação limite contrastada (claro/escuro) à qual mimeticamente o olho se
adapta para poder ver-se? O que é o estilo senão a conjugação perigosa oscilante
entre a repetição e a diferença, entre o visto e o não visto, o velho e o novo? Em
todos estes exemplos a mecânica é a mesma. O que nos leva a formular que a
intuição ou o estilo é uma FICÇÃO não criativa mas REFLEXIVA, uma ficção que
não parte do nada – mas que acusa já partida um DADO CONSTITUITIVO e em
CONSTITUIÇÃO. O estilo será, pois, uma elaboração.

– Será que o que caracteriza o estilo de pensar seja sempre uma perda de
velocidade resultante de uma paragem/estacionamento provocada por um
obstáculo?
– Será que a luz ser-nos-ia mais visível se ela não incluísse o obstáculo
gerador de sombra, espécie de medicamento, ou de filtro para a vista?

O que nos cega tanto ao nível do pensar como ao nível do ver é a tendência
racional constante em querer destrinçar à viva força o que por natureza é
misturado e híbrido. O nosso estilo de percepção e de conjectura em virtude desta
predisposição para a clareza é comanditado pela clarividência de um ideário de
razão através do qual é postulado ou mesmo até reivindicado o único como a
categoria da totalidade. Anseio metafísico ao qual a história responde
lamechamente que a todo o percurso corresponde um ponto de chegada. O
comboio da razão ao partir chegará ao seu destino e, para cúmulo de segurança e
de previsibilidade, Hegel espera-o no terminus – erigindo por este acto o tribunal
da razão em instância terminal (suprema) de todos os percursos e obrigando a
que todos os trajectos passem inevitavelmente pelo mesmo ponto, o que implica
que a dialéctica se encarregue de resolver a catástrofe.
O estilo fotográfico

Em vez de afirmarmos que o estilo é o homem, ou mesmo que ele é


constitutivo do humano, interessa-nos antes pôr em relevo a ideia de que o estilo
se prende com a maneira singular de combinar «vários equilíbrios em competição»28,
ou vários elementos em jogo. A componente lúdica permite articular o estilo a
um trabalho inventivo, ou a uma «ERGOLOGIA TRANSCENDENTAL»29, sem a
fenomenologia da qual a estilística depressa resvalaria para uma espécie de
metafísica do artista. Por outro lado interessa-nos circunscrever o estilo numa
área precisa e ligá-lo a uma prática artística específica, a da FOTOGRAFIA, a fim
de que se possam analisar em pormenor todos os ingredientes que de perto ou de
longe tem retardado ou contaminado a reflexão sobre o estilo fotográfico. Falar
de estilo em fotografia só tem sentido no interior dos limites impostos pela
prática. Limites que se materializam quer na natureza tecnológica do medium,
quer nas regras surgidas no decorrer desta prática artística, quer ainda nas
MODULAÇÕES ou marcas deixadas na fotografia, resultantes do cálculo inventivo
ligado ao trabalho singular do artista.
Comecemos pela primeira limitação: A NATUREZA DO MEDIUM

TECNOLÓGICO. A máquina fotográfica «opera sempre com o seu próprio


inconsciente tecnológico, uma estruturação da imagem segundo uma série de
conceitos que são característicos do homem ocidental perante o espaço, o tempo,
a representação e a memória»30. No justo momento do disparo fotográfico
precipitar-se-iam os seguintes elementos: o inconsciente tecnológico do medium – o
inconsciente social e todas as formas de inconsciente localizadas na pessoa do
fotógrafo e finalmente a motivação consciente. Isto levar-nos-á a perceber o que
W. Benjamin diz a respeito da especificidade ligada ao INCONSCIENTE ÓPTICO.

A natureza que fala à câmara é diferente daquela que fala ao olho, diferente

28 PETITOT, J. – Conferência proferida na Univ. Nova de Lisboa, 16 de Maio de 1983.


29 GRANGER, G. G. – Essai d’une philosophie du style, Paris, Libr. Armand Colin, 1968, p. 12: «rechercher les
conditions les plus générales de l’insertion des structures dans une pratique individuée, telle serait la tâche d’une stylistique, ou si
l’on admettait sans sourire un si grand mot, d’une ‘ergologie transcendantale’».
30 VACCARI, F. – La Photographie et l’inconscient technologique, Paris, Ed. Creatis, 1981, p. 21: «L’appareil photo

presente de façon exemplaire la characteristique de tout instrument de production, à savoir celle d’obéir à un code symbolique qui
sobretudo pelo facto de que, em vez de um espaço elaborado pela consciência, é
um espaço elaborado inconscientemete que intervém. É pois por intermédio da
câmara que nós chegamos a conhecer algo ligado ao inconsciente óptico. Ao
inconsciente óptico de Benjamin polarizado no humano junta-se o inconsciente
tecnológico polarizado no instrumento. Uma primeira conclusão a que chegamos
será a de que a fotografia resulta em parte de uma acção estruturante do
inconsciente tecnológico.
O segundo elemento a ponderar é que será impossível falar de estilo ou de
desvio sem tomar em consideração as normas ou as CONVENÇÕES

ESTABELECIDAS pela tradição artística e presentes tanto na consciência dos


artistas como na dos receptores. De outro modo, a obra não seria percebida
como «produção artística». Daí a importância de situar o artista num contexto de
época ou de estilo e de o colocar frente a toda uma série histórica de olhares
projectados sobre o mundo. Parece-nos indispensável pensar que é no vaivém
incessante entre a estrutura e a variação que reveste corpo a figuração (estética) e
que o estilo, no dar forma à flutuância, adquire rosto. É o estilo que estrutura
provisoriamente e corta num dado momento o real em visibilidade – é por ele
que a foto se torna linguagem.
O terceiro elemento situa-se ao lado do fotógrafo ou dos efeitos calculados
de estilo ligados ao seu trabalho: é pelo TRATAMENTO DO FOTÓGRAFO que estes
dois elementos anteriores nos surgem INDIVIDUADOS em estilo. No dizer de
Moholy Nagy, as intervenções do fotógrafo têm que ver com a «arte de
ESTRUTURAR a luz»: é a partir do conceito de MODULAÇÃO operada na luz que
convém analisar o toque ou a «dedada» artística.
A reflexão estilística em fotografia começa pela constatação de que a
fotografia se articula com um «matériau» luminoso através do qual o real deixa
rasto. Rasto ou MARCA INDICIAL que é trabalhada ou captada através de uma
série de expedientes técnicos artísticos e outros (incidências angulares, jogos e
efeitos de focagem, diafragmentacão, escala de planos). A foto é feita de MARCAS
luminosas onde o real nem sempre fica da mesma maneira, uma vezes de

n’a nullement besoin d’être institué par une convention préliminaire, dans la mesure où il obéit déjà aux conventions plus
maneira transparente, outras vezes de maneira problemática – isto porque entre
a máquina e a POLIVALÊNCIA DO REAL se intrometem ou interpõem um outro
olhar capaz de fazer oscilar a imagem e de tornar visíveis as semi-estruturações
latentes que dão consistência à visibilidade que corre efemeramente na superfície
da foto.

profondes et diffuses de la culture dans laquelle il est né».


ESTILOS EM DEVIR

A reflexão sobre o processo estético da fotografia surge ligada a uma


ARQUEOLOGIA DO OLHAR a partir da qual nos é possível constatar uma
infinidade de estilos ou maneiras diferentes de abordar o REAL que PREEXISTE ao
acto fotográfico – e que surge mediante este mesmo acto transposto em imagem.
Deparamo-nos, embora a história do olhar fotográfico seja recente, não com um
estilo mas com vários. Por vezes vários numa só pessoa – o que baralha à partida
a concepção clássica que tenta ajustar, como um colete de forças, a inteireza do
estilo à autenticidade fisico-moral de uma só pessoa. Tradicionalmente, o estilo é
um «princípio unificador que reenvia a uma instância pessoal»31. É neste
prosseguimento que a assinatura surge para dar «visageité» e garantir a marca
identitária deposta na obra. Uma concepção clássica do estilo só pode
redimensionar a obra em termos de adequação, sujeita que está aos valores da
autenticidade e da verdade, ou à origem demasiado humana do estilo. A obra,
impedida de abarcar a alteridade por imperativos de ordem social, limita-se a
transcrever, por exclusão de outra via, o mimetismo da força dos códigos que a
sobredeterminam. Estamos frente a uma arte ilustrativa da oficialidade juridica
do sistema.
Ora, parece-nos importante tentar ver como é que se chega à invenção
artística da pseudonimia. À partida (sem que esta leitura tenha a pretensão de ser
a única) a heteronimia surge como EXPEDIENTE exigido pelo carácter rígido do
sistema. A heteronimia surge como expediente da arte – expediente de natureza
transgressiva que protege a coberto de uma pseudologia, o posicionamento do
produtor, e permite que este venha a escapar por manha a um real
mimeticamente assimilado à razão. A pseudonimia «à la lomgue» perfura o sistema
roubando-lhe a voz, contudo ela não abala o sistema pois este funda-se
juridicamente na posse e na garantia do «nome próprio». O sistema persiste na
parasitagem de si próprio, protegendo-se à sombra certa da contaminação dos
elementos espúrios que possam fazer periclitar a sua lógica interna. O discurso do
poder é discreto; ao mesmo tempo que predispõe o artista a recorrer ao
pseudónimo, racionaliza tudo o que não é conforme à ideia de natureza, em
REGRA DE BOM SENSO; a sua grande preocupação é que no seu interior não haja
contaminação ou MISTURA. Fábula que nos faz pensar numa outra invenção
mais consistente que esta, que é a invenção dos GÉNEROS (literários e outros). É
neste espaço compartimentado de CLASSIFICAÇÃO VIGIADA que nasce a
solução/compromisso (a pseudonimia e uma outra forma vizinha desta, também
segregada pelo sistema, a chamada ARTE-NEVROSE.

A arte nevrose = restituição da lógica do sistema

O estilo instaurado pela pseudonomia dá voz ao não-pensado, mas isto fã-lo


através de um nome «alienus» que não gruda com o corpo. A sociedade está
predisposta para não dar ouvidos a uma obra que acusa a ausência manifesta do
sujeito. A ausência do sujeito para o poder constituído ilegitima a formulação. A
sociedade disso se defende refugiando-se na crença do Bom Senso e
desprestigiando tudo o que lhe surge sem nome; o pseudónimo é situado pelo
poder ao nível da voz do irracional, dos sem/rosto e dos sem/razão. A obra
dentro do sistema terá que espellhar a mecânica do social, terá que ser nevrótica
– estará condenada a magicar o social, sem poder dele sair, reproduzindo-o a
cada passo, quer seja na modalidade depressiva, quer no modo do ressentimento.
Uma e outra modalidade nada mais fazem do que agravar o social, e confirmá-lo
no seu estatuto de realidade. O estilo nevrótico é uma sujeição – espécie de quisto,
ou disco partido que devolve em repetição as ranhuras do sistema, que não
cessam de circular na arte, ou no ressentimento individual ou colectivo. A este
estilo de ressentimento que não chega a assumir a função social da transgressão
opõe Nietzsche um estilo afirmativo pleno de invenção e que não cessa de
maquinar novos devires. Nietzsche chega mesmo a postular um novo FILÓSOFO-
ARTISTA capaz de curar a humanidade através de uma amnésia – grau zero

31 MORA, G. – Les Cahiers de la Photographie, nº 5 (Du Style), Paris, L’Association de Critique Contemporaine
ecológico da cultura – como se fosse possível eliminar ou rasurar a inscrição, sem
contrair dívida por esse mesmo gesto com a regressão. Beco infernal da razão. Se
os estilos estão afeitos cada vez mais à OSCILAÇÃO é porque eles deslizam entre
dois pólos, o negativo e o positivo, tentando pela figura do NEUTRO devolver
INDICIALMENTE a PERTURBAÇÃO (o turvo) de uma imaginação a contas com o
RESÍDUO de uma LEMBRANÇA. Nada melhor do que a fotografia para nos
devolver na imobilidade um estilo de pensar de origem MELANCÓLICA – à
elaboração do qual voltaremos mais tarde.

Estilos em devir

A oscilação ou o equilíbrio instável remete-nos para a hora do Zaratustra:


FIGURA/FÁBULA que define a postura do estilo. Apesar do seu requinte, o estilo
tem sempre qualquer coisa de bruto; é uma forma sem destino, é o produto de
um impulso, não de uma intenção; é a dimensão vertical e solitária do
pensamento. As suas referências estão ao nível de uma biologia, de uma
LEMBRANÇA, ou recordação encerrada no corpo. O estilo é, no dizer de Barthes,
um fenómeno de ORDEM GERMINATIVA. O estilo é sempre um segredo...
funciona à maneira de uma necessidade procedente de uma INFRALINGUAGEM

que se elabora no limite de carne do mundo32.


As nossas predilecções para abordar o estilo como «DEVIR» situam-se do
lado do fotografo William Klein, ou mesmo do lado de Joyce, que ao escrever
Ulisses tentou pôr em questão, ou melhor, DISSOLVER a unidade identitária do
«eu», fragmentando-o em conformidade com a visão polifónica do real. Talvez
que a fotografia se preste mais do que qualquer outra arte a uma distribuição
efémera de estados de surpresa, e que por aí venha a revelar INDICIALMENTE a
dissonância interna de um múltiplo e nunca acabado estado de devir.

Depois destas considerações de ordem teórica sobre o estilo, tentaremos

en Photographie, 1982, p. 4.
caracterizar a ESPECIFICIDADE ESTÉTICA do acto fotográfico no decorrer do
próximo capítulo. Parece-nos ter que traçar o percurso fotográfico em torno da
questão do realismo, ou dos modos de representação do real. A pequena história
da fotografia poderá já ser hoje desdobrada em três fases caracterizadoras de
estilo.
A fotografia como espelho do real (o discurso mítico), a fotografia como
transformação do real (discurso do código) e a fotografia como vestigio ou «trace»
de um real (o discurso da indicialidade).

32 BARTHES, R. – O grau zero da escrita, Lisboa, Ed. 70, 1977, p. 19.


A ESPECIFICIDADE ESTÉTICA DO ACTO FOTOGRÁFICO

«Sentia pela Fotografia um ‘desejo ontológico’: queria a todo o


custo saber o que ela era ‘em si’, por que característica essencial
se distinguia do conjunto das imagens. Tal desejo significava que,
no fundo, para além das evidências provenientes da técnica e da
utilização, eu não estava seguro de que a Fotografia existisse, de
que ela dispusesse de um ‘génio próprio’».
Roland Barthes, A câmara Clara

A interpretação da técnica, e no caso concreto que nos ocupa, a abordagem


da imagem fotográfica, não é uma questão resolvida. Começa a ser uma arte
devidamente pensada, tanto do ponto de vista teórico, onde as achegas começam
a avultar, como do ponto de vista tecnológico. Basta ler o último número especial
da revista La Recherche (nº 144, de Maio de 1983), para nos darmos conta das
últimas inovações da tecnologia imagética, ocorridas no domínio da holografia,
do vídeo, da televisão numérica e da dita «FOTOGRAFIA ENZIMÁTICA». No artigo
de apresentação deste numero, Serge Moscovici chega mesmo a dizer que «a
universalidade contemporânea é icónica» – e que esta mutação tecnológica acaba
por fundar a tão apregoada civilização da imagem. Para além do aspecto
demasiado exuberante desta profecia finalmente em vias de se realizar, o que
reteve a nossa atenção foi o caracter neurobiológico da imagem, e os avanços
tecnológicos realizados sobre os novos SUPORTES FOTOSSENSÍVEIS da imagem
fotográfica. Avanço que nos leva a crer que a fotografia dos halogenetos de prata
(sais de prata), poderá num futuro próximo ser substituída por um novo
MATERIAL BIOLÓGICO, o enzima, que servirá para fixar as imagens: daí o falar-se
já da «Fotografia enzimática».
Pretendemos destacar a pretexto desta nova aquisição tecnológica que a
natureza química do processo fotográfico não pode ser descurada ou colocada
em segundo plano, ao lado do carácter demasiado opticista de muitas das
teorizações feitas sobre a fotografia. Os dois elementos indispensáveis para
qualquer teorização ajustada da fotografia terão que ter em conta, como diz
Rudolf Arnheim, «a acção óptica e química da luz»33; pois que «tecnicamente, a
fotografia se encontra na encruzilhada de dois processos absolutamente distintos;
um, de ordem química, a acção da luz sobre certas substâncias; o outro, de
ordem física, a formação da imagem através de um dispositivo óptico»34. Omitir
um destes elementos é falsear a parte constitutiva e dupla do dispositivo
fotográfico.
Ser-nos-á difícil tecer considerações de fundo sobre o que é constitutivo da
fotografia, sem nos demarcarmos primeiramente de algumas teorizações
segundas, que invadem o mercado teórico.
Uma delas teoriza a fotografia a partir de certos efeitos – os chamados USOS
SOCIAIS – chegando mesmo a denomíná-la «arte média» (a posição de Pierre
Bourdieu). Uma outra tenta teorizar a fotografia a partir de uma herança
evolutiva de ordem académica, fazendo-a surgir no seguimento da prática artística
do desenho e apressando-se a ver nela a invenção maléfica (a technê), que, ao
mesmo tempo que destrona a pratica artística do desenho, se apresenta como
chamariz, no dizer de Baudelaire, para todos os pintores falhados «trop mal doués,
ou trop paresseux pour achever leurs études»35.
Invenção maléfica, à qual Baudelaire alvitra um bom «modo de emprego»:
é necessário que ela se reajuste em conformidade com a sua única finalidade que
é o ser «serva das ciências e das artes», a exemplo da imprensa e da estenografia,
que nunca criaram nem substituíram a literatura. O reajustamento à sua função,
formulado por Baudelaire, faz-nos pensar na sorte reservada à filosofia no
decorrer da Idade Média, que foi também ela considerada como a «ancilla», a
serva da teologia. Esta concepção censurante exercida em relação à invenção
técnica tem sido o traço distintivo que tem caracterizado a ortodoxia das
academias, cuja condição sine qua non para a sua constituição (em corpo) tem sido

33 ARNHEIM, R. – «On the nature of photography» (texto traduzido em italiano in Rivista di storia e critica della
fotografia, II, 2, 1981).
34 BARTHES, R. – A câmara clara, Lisboa, Ed. 70, 198l, p. 24 .
a resistência nevrótíca à mudança. Ora, para podermos vir a pensar a «ontologia
da imagem fotográfica» e a pensá-la «em si» através de uma nova elaboração,
teremos que nos demarcar destas duas posições bem «medianas»: o retrato
sociológico da apropriação da foto pelos seus usos sociais, e a carga normativa da
tradição literário-pictural da estética que sempre tem rejeitado a fotografia do
lado da «technê».
É em torno do problema do realismo que é possível abordar o estatuto
específico da fotografia. Como é que a fotografia ADERE ao real? Através de que
modalidades de representação é que a fotografia acusa ou sonda o real? Ou seja –
que tipo de relação é que liga a imagem fotoquímica ao seu referente?
Toda a reflexão sobre a fotografia nos remete para uma ANTERIORIDADE

do real – ao qual temos acesso mediante um processo diferido. Uma vez que a
imagem fotográfica não é o real – ela simplesmente o representa, acusando-o
através de uma DISTÂNCIA de espaço/tempo. O real através de uma imagem
fotográfica surge-nos DEVOLVIDO, através do «taken-picture», o que nos chega
restituído ou produzido é uma das modalidades possíveis que a fotografia tem de
nos apresentar/representar: não todo o real, mas parte deste. Ora, parece-nos
importante traçar o percurso histórico das diversas modalidades que a fotografia
tem de nos presentear o real, para não dissocíarmos a estética fotográfica dos
diversos estilos de representação fotográfica, de maneira a identificarmos na
imagem fotográfica a «diferença de tratamento» a que foi sujeito o referente. É
possível pois resumir este trajecto que vai da VEROSIMILHANÇA AO INDICE em
torno de três posições teóricas – ou de três modalidades de produção fotográfica.
Uma primeira em que a fotografia nos surge como reflexo mimético do
real, uma segunda em que a fotografia atesta uma transformação do real e uma
terceira, finalmente, em que a fotografia reinscreve indicialmente o vestígio de
um real deixado.

A fotografia como representação mimética do real

35 BAUDELAIRE, Ch. – Curiosités Esthétiques, Genève, Ed. du Milieu du Monde, s.d., p. 270.
A imagem fotográfica à partida retrata o funcionamento do medium; ela é
antes de mais «index sui» através evidentemente de uma representação segunda
(tardia) do real. Enquanto medium, a fotografia surge marcada por uma
configuração que a distingue de todos os outros modos de representar. A
singularidade técnica de que dispõe leva-a a num primeiro tempo a ser
combatida e invejada, o que não vai sem implicar em relação a ela própria, por
parte das outras artes, uma certa ambivalência. As atitudes de Baudelaire e de E.
Delacroix são sintomáticas do mal-estar que se gerou nos meios académicos do
século XIX – o do olhar profundamente arcaico da época em relação à mutação
técnica – materializada no novo representar fotográfico.
É em torno do realismo, ou seja, dos modos de representação do real, que
se situa a questão fundamental a partir da qual será possível, no dizer de A.
Bazin, definir a «antologia da imagem fotográfica». Numa primeira fase, a fotografia é
abordada como «prova do real»; sublinha-se exageradamente a neutralidade da
máquina e como correlato implícito a «ausência da intervenção humana». A
fotografia é a reprodução mimética da fisionomia sensível do mundo através de
uma «génese automática». A fotografia é pensada como representação do real. O
que a caracteriza como representação do real é a sua capacidade mimética: «a
foto é espelho do real»36. As metáforas correntemente utilizadas no decorrer do
século XIX para designar a visão artística não deixam de assinalar o mesmo
aspecto. Todas elas giram em torno da óptica e mais concretamente do espelho.
Compara-se a pintura a um espelho. Na literatura, Stendhal define o romance
como «un miroir qu’on promène le long du chemin» e Flaubert não se cansa de insistir
«sejamos vidro-de-aumento da verdade externa».
Ora, no próprio momento em que os realistas apregoam a quatro ventos a
objectividade e reclamam que o artista seja o escrupuloso transcritor, ou copista
do real, a fotografia surge acabando por imprimir um forte abalo à estética do
realismo. O aparecimento da fotografia põe em causa a objectividade e a precisão
da representação mimética da pintura, afectando as modalidades da prática do
desenho e do retrato, e entretanto faz vacilar o rigor da teoria mimética das
academias, acabando finalmente por EXCEDER em objectividade e precisão a
representação realista e naturalista reinante da época. A fotografia surge assim,
no dizer de A. Bazin, como o acontecimento mais importante da história das
artes plásticas: «ela permitiu à pintura ocidental desembaraçar-se definitivamente
da Obsessão realista e encontrar a sua autonomia estética»37. Em virtude do
impacto da representação fotográfica e das técnicas da reprodução mecânicas já
aludidas por W. Benjamin, no mundo da época, nova viragem se vai perfilar
tanto no domínio teórico como no campo do exercício artístico. O realismo, que
até então era quase canonizado como o modelo artístico por excelência,
doravante é considerado como «negação da arte». Outro estilo emerge retocado
desta vez pela subjectividade e pela idealização, que irá criticar a imitação
passiva,ou o «topos do artista-macaco de imitação» (artiste-singe), a partir da
concepção do «belo ideal moderno» assente numa teoria da EXPRESSÃO; falar-se-
á, pois, de IMITAÇÃO EXPRESSIVA. A enciclopédia francesa dirá: «Toda a obra
de arte reflecte a personalidade do seu autor; A placa fotográfica não interpreta,
somente regista».
O estratagema a partir do qual é possível demarcar a fotografia e fundar a
separação entre ela e as artes é mais uma vez evocado através do argumento de
índole humanista: «A reprodução da natureza pelo homem nunca será uma
reprodução; será sempre uma interpretação», argumento que agita
implicitamente a velha querela entre a máquina e o homem, a técnica e a arte, e
o arraigado preconceito ligado ao carácter mecânico das artes, entre as quais
figura a fotografia.

36 DUBOIS, Ph. – L’Acte Photographique, Paris, F, Nathan 1983, p. 21: «la photographie, qu’on soit pour ou contre y
est massivement considrée comme une imitation on ne peut plus parfaite de la réalíté».
37 BAZIN, A. – «Ontologie de l’image photographique», in Qu’est-ce que le cinéma, Paris, Ed. du Cerf, 1958, vol.

I, pp. 16-17.
O PERCURSO DA FOTOGRAFIA: DA RESTITUIÇAO À
TRANSFORMAÇAO DO REAL

«Há uma geração, a fotografia era ainda considerada pela maior


parte das pessoas como uma especialidade esotérica, praticada
por indivíduos estreitamente relacionados com os alquimistas... A
função desses homens era em geral comparável à dos antigos
escribas: preparavam documentos encomendados por outras
pessoas... O profissional podia, claro, reformular um pouco o
problema de acordo com seus padrões técnicos ou estéticos, mas
fazia o possível para que o cliente não notasse, pois ganhava a
vida satisfazendo a crença popular de que a fotografia dizia a
verdade».
John Szarkowski, in The New York Times, 1975

Em ordem a atinar com a natureza constituinte da fotografia, fomos levados


no decorrer destes capítulos a delinear o trajecto das interpretações na referência
constante a uma arqueologia do olhar fotográfico.
Num primeiro tempo, considerámos a fotografia sob o signo da
SEMELHANÇA. A fotografia não era o real, mas este era restituído numa imagem
que se propunha ser o «analogon» perfeito deste. A essência mimética da fotografia
retratava com exactidão a MIRAGEM REALISTA que acusava toda a representação
artística do século XIX. O cenário do realismo, bem como o da representação
mimética, não é exclusivamente dezanovencentista. A abordagem da fotografia
pelo lado da representação mimética peregrinou no tempo e ainda hoje nos surge
curiosamente defendida por Roland Barthes, que caracterizava em 1961 a
imagem fotográfica, como um «analogon» perfeito do real e dezanove anos depois,
por detrás da ambiguidade da formulação da Câmara Clara, é ainda a «perfeição
analógica», que não cessa de aludir ao estatuto da imagem fotográfica, lida como
«rmensagem sem código»38.

38 BARTHES, R. – «Le Message photographique», Communications nº 2l, Paris, Ed. du Seuil, 1961, p.
Frente a esta constante interpretativa, não nos é possvel adoptar o
comportamento ou a boa vontade teórica de alguns críticos, que tentam dizer
que Barthes defende neste último livro uma concepção menos mimética do que
nos primeiros escritos. Pretensão ignara dos críticos, que pensam que a teoria
mimética é uma concepção antiquada, ou uma fase histórica completamente
arquivada na prateleira da história do século XIX. Ora, parece-nos que não é
pelo facto de termos alojado parte do século XIX no cenário emoldurado de uma
ideologia naturalista e de termos confinado a representação artística na
representação mimética do real que por este meio decretamos morte histórica à
TEORIA MIMÉTICA DA REPRESENTAÇÃO. Roland Barthes nunca teve a pretensão
de ser post-moderno ao falar da fotografia. O mimetismo estatuário da imagem
não é através dos seus escritos ilibado, mas «mimado» e retocado, atravésda
«reinvenção» inventiva do estilo. O essencial da posição de Barthes perdura,
mesmo que tenha havido mudança de estilo. Enquanto que em 1961 Barthes se
situava com a sua primeira formulação no espaço público da análise da imagem
fotográfica da publicidade, no segundo livro move-se artes no espaço PRIVADO do
álbum, ou seja, no intimismo da câmara: o enfoque conferido à imagem
fotográfica nem por isso foi modificado, mas desta vez apenas «sentido».
Por outro lado, e para além do ponto de vista de Barthes, a teoria mimética
é tão arcaica (basta ler o Sofista de Platão) como moderna. O mimetismo é de
origem «ANIMALAR», é uma armadilha à alteridade. Não é necessário estar à
espera do homem para nos inteirarmos do alcance deste estratagema; ele já era
comportamento animal, ou seja, comportamento de captura, de ataque e de
defesa no reino vegetal e animal39. O camaleão é o primeiro retratista do meio
ambiente que baralha os contornos do real com a representação e vice-versa,
problematizando através desta artimanha o alcance da velha questão filosófica: o
que é primeiro, o real ou a representação? A resposta é dada na RELAÇÃO –o
que é primeiro, o modelo ou a cópia? A resposta teve sempre tendência a ser
dada pela anterioridade do modelo. Se Platão desconsidera a imagem, é porque

39 DERRIDA, J. – Mimesis des articulations, Paris, Ed. Flammarion, 1975, p. 14: «La morale est peut-être toujours
d’imitation; Mimesis en revanche trace ou retrace des gestes d’une autre éthique, d’un autre code ou d’une prescription altérée...
(Le caméleon lui-même est une, et même plusieurs variétés de plantes grecques; Voy-Pline, H. N., 22.47)».
vê nela, antes de mais, degradação ontológica do modelo; quer isto dizer que a imagem
está sujeita à corruptibilidade que caracteriza a representação e como tal deixa
de aludir correctamente à excelência do MODELO limitando-se a ser um mero
reflexo pálido da ideia. Ora, se o século XIX se mede no confronto com a
reprodução mimética do real e se a fotografia nasce na SÓSIA, é porque toda a
representação nos surge atravessada por uma DUPLICIDADE ou por uma espécie
de MISTURA ENERGÉTICA, que não cessa de aludir à ALTERIDADE de um real
que escapa e deixa RESTO ou RASTO na representação. «A imagem é, por
natureza, deíctica, designa mas não define; nela há sempre um RESÍDUO de
contigêncía, que apenas pode ser apontada com o dedo. Semiologicamente, a
imagem vai sempre muito mais longe que o significado, em direcção à pura
materialidade do referente»40. O que fundamenta pois o real é que ele resiste ao
terrorismo ou à violência do conceito – o que não justifica evidentemente a
preguiça mental, ou que venha a resvalar-se para o nirvana turvo dos msticos. A
«mimesis» surge-nos teotizada por René Girard, como «la puissance essentielle
d’intégration culturelle», o que implica uma alta dose de violência interiorizada. É
neste sentido que a representação, toda ela «SACRIFICIAL», e que a fotografia
pratica sem cessar a perda do real, através de uma modalidade temporal ligada à
lembrança. Ela é, pois, por esta mesma razão, uma «arte melancólica» que se
refere a uma exterioridade que lhe escapa, e que ela a cada passo, pela repetição
frenética do disparo fotográfico, procura vertiginosamente captar.

Duas modalidades de violência: a violência interíorizada no retrato e a série hiperreal

O retrato e a série comprovam dois modos miméticos de representação do


modelo de funcionamento da produção industrial: são dois exercícios-tipo do
estilo industrial. Um marcado pelo estatuto identitário das regras e das poses do
corpo fotografado, apanhado no retrato, a outra denotando também na
descontinuidade a acumulação obscena da cena hiperreal produtiva. O corpo

40 BARTHES, R. – Sade, Fourier, Loiola, Lisboa, Ed. 70, pp. 65-66.


fotografado no retrato é um corpo duplamente representado, um corpo elevado
ao quadro. A imagem fotográfica na sua hiperrealidade anuncia-se bem para lá
da representação mimética, é antes uma «homoiosis» em excesso, ou um «trompe
l’oeil», ou mais justamente, um «trompe plaisir»41. A série, ao hiperrealizar (Warhol)
o economismo da representação, precipita a máquina produtiva na vertigem
numérica da designação abstracta. A sociedade não deixa, como é óbvio, de
imprimir também ela um controlo sobre o real através da máquina produtiva e da
máquina expressiva da figuração. Ambas permitem desterritorializar e ao mesmo
tempo territorializar. Estamos mais uma vez frente a uma sociedade que
administra o real, rebatendo a ordem abstracta da série no registo expressivo da
«visageité» do retrato; é pelo retrato que a série produtiva é pessoalizada e
interiorizada e que o real adquire configuração. É por esta razão que
compreender a fotografia implica sempre que se tome em consideração, não s6 o
que ela exibe, mas também o que ela oculta. A fotografia não se limita a registar
a fragmentação do real, ela é trabalhada por uma inscrição que a determina e
que a leva a tranformar o mundo em ícone. Para compreender tal mutação, ser-
nos-á necessário recorrer a uma segunda formulação que tente corrigir e alterar a
concepção ingénua de que a fotografia sempre desempenhou no seio da arte um
discurso de transparência do real. Parece-nos ser de corrigir esta versão, que se
apraz a alojar a fotografia no «estádio do espelho», e a destituí-la de corpo próprio,
limitando-se a ver nela o LUGAR AUSENTE onde o real se reflecte.
A segunda formulação doravante irá operar a desconstrução do realismo
fotográfico assente na «semelhança» e realçar o «artifício» ou o poder da
«fotografia como transformação do real»
As achegas teóricas que se inscrevem na óptica da denúncia do realismo
fotográfico têm-se até hoje apoiado nas teorias de percepção de Rudolf Arnheim,
ora nas concepções defendidas por A. Bazin referentes à génese e ao modo da
constituição da imagem e ainda nas análises de Hubert Damisch e Pierre
Bourdieu, ambos preocupados em demonstrar que o dispositivo fotográfico é um
«dispositivo culturalmente codificado». Não é que estas contribuições sejam de

41 FLEIG, A. – «Ecce homo – Sur un corps à corps rompu», Les Cahiers de la Photographie nº 24, Paris, ACCP,
menosprezar, pelo contrário, elas permitir-nos-ão fundamentar um outro tipo de
análise proveniente de um outro horizonte teórico. Salientámos várias vezes o
carácter automático e objectivo da reprodução fotográfica, induzindo por essa via
o modo como é que se processa a restituição fotoquímica do real, mas nem
sempre nos foi possível desconstruir a magia tecnológica do «ex opere operatum» da
produção fotográfica, fundado na maior parte das vezes sobre uma teoria
mimética.
A desconstrução deste realismo fotográfico que caracterizou parte da
sensibilidade estética do s6culo XIX permite-nos pôr em evidência a passagem da
imagem da realidade à REALIDADE AUTÓNOMA da imagem. A fotografia, ao
recuperar o realismo e o naturalismo concretizado no exercício da pintura,
funcionalizou em prática corrente o que até então era o resultado cuidado dos
«ademanes» lentos do estilo das academias. Não s6 recuperou, como PRECIPITOU

em ritmo acelerado a reprodução do real, expelindo através da MECANIZAÇÃO a


imagem humanista do sujeito e perturbando através de códigos diferentes e das
diversas manipulações ligadas aos avanços da técnica a concepção rígida de que o
referente fotográfico dava conta de todo o real. A fotografia mostra que o real é
plasticizado e modulado/modelado através de c6digos de cultura e de fabricação.
A foto é nesse sentido um conjunto de códigos.

A desconstrução do realismo fotográfico

Primeiramente iremos analisar os efeitos pretensamente naturais e


objectivos decretados e produzidos pelos «ideologemas» da cultura que pesam
sobre a prática fotográfica.
Ao escolher abordar a fotografia, uma das maiores preocupações tem
consistido em pôr de lado o prurido demasiadamente comunicacional que
caracteriza a maior parte dos discursos massmediáticos de comentário sobre a
fotografia. A saturação dos lugares-comuns, bem como o pendor descritivo dos

1981, p. 49.
discursos institucionais, regulam-se por uma ideologia a 100% de comunicação, à
qual corresponde como alvo, do outro lado do jornal, da televisão e da rádio, este
robusto homem-médio que ao ler, ver e ouvir engole sem mastigar a cultura
massmediática (ao alcance de todos), assente na medíocre MEDIOCRACIA dos
media. O mal-entendido subjacente a toda esta produção mimética de reflexos e de
tiques culturais, servidos na modalidade restrita de um self-service, ou de um
reader’s digest massmediático, reside na cumplicidade da escrita com o poder, como
se a escrita tivesse que seguir a risca a óptica da política dominante e ser-lhe fiel,
limitando-se apenas a ser a grande «divulgona» que massifica o real em versão, e
censura, apelidando de hermético, todo o discurso minoritário que não se
subscreve clareza institucional dos códigos dominantes de produção e de leitura.
Nesta onda, assistimos cada vez mais à proliferação de enunciados genéricos e ao
terrorismo de uma cultura mediática que nunca chega a problematizar o real
para além da estereotipia constitutiva do SENSO COMUM. Escrever, pensar, não é
problematizar o real, mas devolver em grandes tiragens toda uma gama de
reflexos e de tiques, através dos quais se venha a cimentar, a partir dos
ingredientes depositados, uma configuração de conduta colectiva, assente na
UNIFORMIZAÇÃO totalitáría dos desejos, linguagens e gostos. Este objectivo
ilustra a mecânica da política pavloviana, que remodelam liga exclusivamente a
reflexão, subordinando-a ao jogo e aos estudos apurados dos efeitos a
desencadear junto do receptor; quer isto dizer, se houve secreção, a mensagem
poderá assegurar-se de dar resposta à necessidade criada. Talvez que hoje seja a
publicidade o espaço reflexológico por excelência, que venha a ditar normas à
validade e à oportunidade dos discursos a fazer circular e a publicar.
Porquê todo este percurso crítico em oblíquo numa reflexão sobre a
fotografia? A razão é simples. Parece-nos dificilmente poder isolar a fotografia de
todo o resto, ou separá-la dos usos e dos comentários a que ela continua sujeita.
O que para nós é sintomático tem sido o papel que ela tem desempenhado como
técnica de comunicação ou de conformação social aos códigos dominantes do
sistema que chegam até nós, evocados através das denominações da
«objectividade», da «realidade» e das «representações justas». Como evidenciar a
autonomia deste objecto (a imagem fotográfica), tão afeito aos valores e às
manipulações doutrinárias do sistema, senão através de uma DESMONTAGEM

cuidada das artimanhas construídas da representação, a fim de pôr em realce,


não já o caracter necessariamente naturalista da fotografia, mas de interrogar
como é que o ideológico, o político e o social se NATURALIZAM, ou se dão como
lei no espaço mítico da representação fotográfica? É nesta linha que tentaremos
demonstrar que o que é dado como bom senso, evidente e natural, foi sempre o
resultado de uma violência ideológica. O que passou por «normal» foi sempre
algo que não o seria, se não fosse sujeito a uma «mise en scène».

O poder da objectiva

O real a que se refere a fotografia é o «Real construído», posto


tecnologicamente em cena, ao qual se chega a partir da performance da máquina e
dos códigos que trabalham por dentro a percepção. Podemos dizer, como Walter
Benjamin, que «a natureza que fala à câmara é diferente daquela que fala ao
olho»42. Contudo, a fotografia não se limita, por maior que seja o poder
coercitivo dos códigos, a devolver-nos unicamente o real numa configuração de
Gestalt. Pode ainda através da objectiva desconstruir os traços regulares que
organizam de maneira probabilista a imagem em estrutura de reconhecimento e
precipitar-nos ontologicamente num mundo larvar anterior a representação. Há
uma «imagem-pulsão» a que nos confronta a objectiva que resiste a ser
discursivamente apelidada, mas que nem por isso deixa de nos elucidar do
alcance ficcional ou imaginário do real, que nós nos aprontamos a não confundir
com o referente sob pena de bloquearmos todo o processo de significação.
O olhar fotográfico não caminha à toa, mas apoiado nas possibilidades
próximas e longínquas da objectiva que nos precipita para o movível, onde a
visão tacteia o real, por APROXIMAÇÕES SUCESSIVAS. O Real fotográfico é uma
miragem, ao mesmo tempo que uma correcção da natureza, ou um «suplemento
perigoso». A objectiva, peça móvel da maquina, aponta e amplia a ilusão que faz
dobra com o real e esquizofreniza a percepção em mil impressões de minúcia,
evidenciando o real, ora na mobilidade vária das apropriações, ora revelando o
que até então era ignorado pelo olho. A objectiva consegue transgredir e
perverter o uso moderado e reconhecível do real ligado à boa distância,
assinalada pelo dispositivo óptico da perspectiva. «Só a objectiva nos dá do
objecto uma imagem capaz de ‘défouler’ do fundo do nosso inconsciente, esta
necessidade de substituir ao objecto mais do que um decalque aproximativo, o
próprio objecto, liberto das contingências temporais»43. O «flou» e o «bougé»,
quando não são imputados à inexperiência ou ao erro, ou às proprias limitações
das máquinas, mas são provocados, tornam-se modalidades voluntárias da
instauração do sentido e desacreditam a afirmação de que a fotografia é o
«analogon» do mundo. A tensão entre o visível e a sua representação incita cada
época, cada indivíduo, a dar uma imagem diferente de uma realidade que passa
pelo visível, mas que excede o olhar.
A fotografia através das suas imagens artísticas revela índices que acabam
por pôr em questão a mais vulgar das evidências do senso comum e o realismo
dos códigos oficiais da representação. Isto é tanto mais significativo quando hoje,
por causa dos media, tudo nos parece definitivamente classificado e catalogado.
Ora, a fotografia só poderá sair dela própria à condição de se tornar lúcida deste
mesmo realismo que a contagia e de opor à estéril análise ideológica a «FORMA
ESTÉTICA». A função crítica da arte reside na forma estética: «L’art n’est pas cet
ingrédient ajouté à la réalité (qu’on imaginait au temps de Delacroix), mais c’est une
organisation autre, différente de lã ‘réalité’ et que l’artiste a poursuivie comme superieure»44.

42 BENJAMIN, W. – «Petite histoire de ia photographie», in Essais I (1922-1934), Paris, Denöel/Gonthier,


1983, p. 153.
43 KRAUSS, R. – «Notes sur l’index», Macula 5/6 (Revue publiée avec le concours du Centre Nationale des

Lettres), 1979, p. 168.


44 CHALUMEAU, J. L. – Lectures de l’art, Paris, Ed. du Chêne, 1981, p. 86.
OS DISPOSITIVOS PULSIONAIS DO «COGITO FOTOGRÁFICO»

«Assim se explica que hoje a avidez de ir é imcomparavelmente


maior do que a avidez do estar... Essa avidez de ir é hoje bem
significativa da impossibilidade de estar... O mundo tornou-se
um empecilho para nós, e nós um empecilho para o mundo.
Estamos vergonhosamente quites».
José de Almada Negreiros, «Ver», Arcádia, 1982

O olhar do fotógrafo deleita-se avidamente na certeza sensível de que o real


é susceptível de poder ser organizado em ilusão permanente através da máquina.
As vertigens e as miragens produzidas pelo fotógrafo, na conivência com o saber
tecnológico, podem pôr-nos diante de um real completamente «ARTEFACTO». O
real é um efeito de ângulo de visão e o mundo todo ele pode ser transformado em
fotografia. O olhar do fotógrafo representa o olhar moderno. Tudo o que ele toca
através da objectiva nos surge «REIFICADO»: «plutôt que de réproduire le réel, la
photographie le recycle – c’est un des processes clés des societés modernes»45; a grande
revelação que circula muda, pela fotografia; é que todo o real é RESTO e que
tudo «o que é residual é destinado a repetir-se indefinidamente no fantasma»46. A
repetição não se resume somente na mecanizaçao ou na reprodutibilidade em
série; ela terá tendência para ilustrar antes, através da produção FRAGMENTÁRIA
do recal, toda a absessão fantasmática moderna subjacente à máquina produtiva
dos bons (a máquina industrial), e a máquina pulsional dos diversos «pensares»,
entre os quais o ideológico e o estético.
O que pretendo fazer notar não é de maneira nenhuma que o olhar do
fotógrafo desapareça por detrás do olhar sociológico que a megamáquina
industrial lança sobre ele; prefiro antes, sem isolar o trabalho artístico das
influências do meio, arriscar a hipótese de que existe um especificidade no olhar
fotográfíco, ou um «COGITO» fotográfico.
O percurso desta reflexão aponta para os dispositivos pulsionais da

45 SONTAG, S. – La photographie, Paris, Ed. du Seuil, 1979, p. 191.


representação e da imagem fotográfica em especial. Quando falo em dispositivos
pulsionais, pretendo com isto não evocar uma ordem invisível de significação,
mas mostrar qua a pulsão dificilmente poderá ser imaginada fora de uma
representação. A pulsão é uma máquina produtora de fluxos que nos surgem
conectados, na película efémera do social, a um sem número de objectos e a uma
gama infinita de variações imaginárias. Separar à partida um fluxo de um objecto
corresponderia, num outro plano, a separar uma intensidade de um afecto, ou
simplesmente o real dos mil fios que o estruturam como «plano de consistência».
Ora, parece-nos ser sintomático que todas as nossas representações do real
teimem em aplicar a ideia tecnológica do enquadramento e a reproduzir o processo
ideativo e figurativo a partir do espaço delimitado de um corpus, ou a partir do
CONTORNO geometricamente delimitado de uma FORMA-SUPORTE, quer ela
seja a construção «em pupila» de muitos quadros picturais, ou o écrã do cinema,
ou a forma quadrada ou rectangular da fotografia. Em todas estas FORMAS, os
efeitos de significação são filtrados por intermédio de uma máquina óptica de
efeitos oculares, distribuídos num verdadeiro espaço de CAPTURA.
Em virtude do automatismo, o inconsciente tecnológico, como o
inconsciente da vista, já se distanciaram a tal ponto da pulsão, ou da lógica da
predação, que para eles a APROPRIAÇÃO ou a CAPTURA já não se exerce ao vivo
na modalidade da SURPRESA. O real já foi captado há muito – o que lhes permite
reproduzir eficazmente o modelo interiorizado; tudo o que não entrou no código
é pura e simplesmente decretado como não existente ou pertinente para a
avaliação do real.
Fora desta reificação de comportamentos práticos e desta vontade narcísica
em reconhecer o real ingurgitado na forma psicológica da GESTALT, o projecto
que tento teorizar incide antes de mais em deslocar a «curiosidade do saber» ou a
predação que anima a fotografia, para o domínio estético, considerado desde já este
como o «lugar do desvio da pulsão».
Para tentar ser mais claro, direi que o acto de predação começa por ser
fenomenologicamente uma impressão (noética) «que engloba os conteúdos das

46 BAUDRILLARD, J. – Simulacres et simulation, Paris, Ed. Galilée, 1981. p.


sensações, assim como os momentos sensuais da esfera das impulsões»47. O mal
das fenomenologias está na passagem ultra-rápida entre o estado de APREENSÃO

primeiro (o ver), e o estado de restituição (o descrever), que acaba por atribuir


ilusoriamente o lugar relevante a um sujeito, ou a uma ANALÍTICA EXISTENCIAL
elaborada completamente à margem de uma «tópica da pulsionalidade».
Tanto a intersubjectividade como a predação poderão ser consideradas
como termos idênticos, ou termos soltos que apontam para a direccionalidade de
uma relação capaz de pôr a nu para além da dualidade sujeito/objecto o poder
AUTOREFLEXIVO da visão. O olho, enquanto orgão da percepção, ou marca
animal do corpo, poderá caracterizar a fiscalidade orgonal da visão e ocasionar
que esta, mediante o tacto, se dê a pensar no corpo, como «idealidade palpável».
Pensamos um pouco à maneira de Didier Franck48, que será necessário lançar
sobre a leitura de Husserl um olhar mais psicanalítico e menos psicológico e
tentar através da PREDAÇÃO conceber uma intersubjectividade menos metafísica
e menos psicológica a partir da RELAÇÃO PULSIONAL não do corpo, mas da
carne. Evidentemente que este trajecto nos porá, antes de mais, frente aos índices
constituintes da razão e na presença fluída de um não constituído, que precede e
informa os actos intencionais da consciência. O recalcamento da inscrição animal
do corpo só foi possível mediante a instauração de um poder constrangedor, ou
de uma artimanha de ordem lógica, que no decorrer do tempo empres toulegalidade
jurídica e deu caução às nossas representações segundas, formuladas e
reformuladas a partir do sensível. À custa de sermos claros por ofício, viemos a
tropeçar constantemente na raíz das nossas impressões corporais – acabando por
ser pela predação e pelas múltiplas actividades de desvio que nos foi tornado
possível medir o golpe infligido ao corpo da pulsão.

Dos dispositivos pulsionais aos dispositivos simbólicos da cultura

47 GUERNANCIA, P. – «Le problème d’autrui dans la phénomenologie de Husserl», CRITIQUE nº 427,


Paris, Ed. de Minuit, 1982, p. 1041.
48 FRANCK, D. – Chair et corps (sur la phénoménologie de Husserl), Paris, Ed. de Minuit, 1982: «Un des mérites du

livre de Didier Franck, est... de chercher à ‘défaire ce que Husserl s’efforce de constituer’: il s’agit (selon P. Guernancia) de
A captura esttica nem sempre consegue escapar à força cega dos códigos e
não são raras as vezes que a vemos abandonar a predação e os dispositivos
pulsionais a ela ligados para se entregar à aplicação minuciosa das regras do
«fazer artístico», trocando assim a errância pulsional dos afectos pelos dispositivos
simbólicos da crença que caracteriza a gregaridade social. Nem mesmo com esta
troca a representação consegue escapar à modalidade obsessional que a
comanda, visto que, em última instância, o que a funda assenta na insistência de
algo que resiste a ser dito ou mostrado. Quer isto dizer que nunca haverá uma
«presa» que elimine por completo a predação, ou que transforme radicalmente o
destino do caçador, o que seria cair no milagroso. O devaneio do caçador exerce-
se fora da crença do objecto total e daí nunca haverá uma relação cansada com o
«achado». O que ocasiona a predação é o carácter contingente e provisório de
todas as pequenas surpresas com que a divindade o visita na animalidade das
sensações através das quais a idealidade abstracta da ideia reveste fígura palpável
para de novo fulgurantemente desaparecer. É através deste relâmpago fortuito
que ele (o caçador-artista) entrevê a primitividade transcendental que o suplanta e
o obriga constantemente a deslocar. Estamos frente a uma PAIXÃO CÍCLICA. A
conduta do caçador, como a do «fotografo-artista», retrata numa configuração
económica de natureza indicial, que em vez de cair em representações ascéticas
de poupança, se caracteriza por actividades excessivas, organizadas em torno de
um significante flutuante, cuja função é a de fazer circular, através de uma lógica de
lugares, uma economia de abundância regida sob o principio de equivalência. É
assim que a cada visão corresponde uma reminiscência, a cada dito um não dito,
e a cada pensamento uma imagem do corpo. A dinâmica destas
correspondências não deve ser lida por nós como o resultado tardio de um estado
avançado de sofisticação cultural, pois ela verifica-se já, na própria organização
económica do pensamento mítico, como no-lo confirma Mircea Eliade: «il ne faut
pas croire que la cohérence théorique est necessairement le résultat d’une réflexion systematique:
elle s’impose déjà au stade de l’image et du symbole, elle fait partie integrante de la pensée

pousser la phénoménologíe à sa limite en interrogeant ce qu’elle dit du temps et d’autrui et, cela étant, de mettre en question la
mythique»49. O que o pensamento mítico acusa é o FUNDO PULSIONAL do excesso
que ele quer a todo custo resolver ou evitar, dando-lhe FORMA ou capturando-o,
quer seja na fixidez repetitiva do rito, ou na sedução harmoniosa do mito. Este
esforço de «maîtrise» irá possibilitar que a linguagem se organize e que o
inconsciente considerado como RESERVA de surpresa se venha a familiarizar sob
a acção reguladora do «récit». Porém, tal procedimento societário ou socializante
do inconsciente, sob a acção constrangedora duma gramática ordeira, não irá
sem provocar, em contrapartida, a ressurgência do fantasma oculto na
estereotipia. Entre a produção simulacral de hoje e as astúcias e artimanhas da
mitologia dos tempos recuados, a diferença não é enorme; trata-se em ambos os
casos de pôr em evidência, através de condutas desviadas, o que o estereotipo
necessariamente é obrigado a eliminar a fim de poder valer eficazmente como
máquina territorial de socialização.

souveraineté de l’ego (Critique nº 427, p. 1042)».


49 ELIADE, M. – Méphistophèles et l’androgyne, Paris, Ed. Gallimard, 1962.
A CAPTURA NO RETRATO
ou A VONTADE DE RETRATO

«Uma foto é feita, e não tirada»


Ansel Adams

O retrato é a mais antiga aplicação da fotografia. Nos seus começos, o


retrato surge associado a todo um cerimonial tecnológico e cénico de ordem
sacrificial. As poses eram demoradas e enfadonhas – as posições eram
severamente vigiadas pelo fotógrafo e as prescrições, tanto técnicas como
corporais, impunham comportamentos ajustados e precisos em conformidade
com o código humanista da época. Mayer e Pierson em 1826 chegam mesmo a
evocar as sujeições a que as pessoas tinham que passar para tirar o retrato:
«posam debaixo de um sol ardente, pregadas no seu fauteuil, de cabeça mantida
fixa e imóvel... e jazem por vezes em poses esquecidas»50. Assim a fotografia à
partida, em virtude dos seus imperativos de ordem técnica, aparece ligada a todo
um conjunto de objectos/suporte (apoio para a cabeça, fauteuil, genuflexórios,
decorações várias), que constituem em parte os objectos de tortura para a
extorsão da verdade, dada a ler na pose fixa do retrato. O aparecimento das
placas metálicas e mais tarde das placas de vidro da fotografia implica, devido à
sua rapidez, uma inevitável redução das poses consecutivas do paciente e o
abandono significativo de alguns destes objectos, que constituem até então o
cortejo de tortura da cena produtiva do retrato. Contudo, o imaginário que
afecta a pratica do retrato nem por isso deixa de ser substancialmente diferente,
mesmo com a mudança trazida pela nova tecnologia. Facto este que só comprova
que o alcance de significação em torno do qual gravita a PRÁTICA FOTOGRÁFICA
é antes de mais dado por um DUELO ou por um corpo-a-corpo contraído entre o
retratista (o fotógrafo) e o retratado. Estamos, pois, perante um Pacto livremente

50 MAYER & PIERSON – La photographie considerée comme art et comme industrie, Paris, 1855, p. 17.
contraído em que o fotógrafo, mediante um exercício de poder técnico e
humanista, afronta e administra ao paciente um «SABER PRÁTICO» e que este
assume, aceitando ser iniciado pelo fotógrafo às regras requeridas, para obter
depois a fotografia.
O retrato acaba por retratar não só o «retratado», mas apontar,
fundamentalmente através dele, para toda a sujeição do corpo à armação
conveniente dos cânones estéticos que regem a prática fotográfica. O retrato é
pois calculado, organizado e tecnicamente concebido em referência, consciente
ou não, a uma ideologia estética socialmente determinada, no fito de vir a
produzir efeitos sociais bem definidos O corpo do retrato é a tal ponto investido
por toda uma gama de saberes e de expedientes constrangedores, que não nos
parece forçado considerar a PRÁTICA DO RETRATO, usando a terminologia de
M. Foucault, como uma «tecnologia política do corpo»51. O fotógrafo intervém
como um conhecedor, através do dispositivo da máquina, nos mecanismos
íntimos que comandam a leitura da POSE CORPORAL e já não se contenta com a
restituição da semelhança física. Procura antes, através da mestria dos meios
técnicos (a escolha dos enquadramentos, a organização dos acessórios, a direcção
da luz, a distribuição dos claros/escuros e do emprego dos fundos) exprimir
fotograficamente a personalidade do seu cliente. Como afirma Disderi em 1855,
«é necessário que (o fotógrafo) adivinhe o que é o modelo e que ele pressinta
espontaneamente o seu carácter, a sua vida íntima e os seus hábitos; é preciso que
ele BIOGRAFIE»52.
A prática fotográfica alia-se assim à FISIOGNOMONIA, ciência de
observação, muito em voga desde o século XVI, que pretende conhecer o
carácter humano através das exteriorizações sensíveis espalhadas no rosto.

O retrato e o rosto

Em virtude dos baixos preços das provas, por volta de 1850, a prática do

51 FOUCAULT, M. – Surveiller et punir, Paris, Ed. Gallimard, 1975, p. 31.


retrato torna-se numa indústria em expansão. A possibilidade de
reprodutibilídade em série das imagens, tornada possível pelos meios técnicos de
reprodução, assegura pela primeira vez o acesso das massas à representação e
promove deste maneira, não sem diferenciação, a igualdade perante a imagem,
mas que não implica, no entanto – longe disso – «o triunfo da democracia e da
igualdade social», como o afirma a Revista Fotográfica em 1980. Através da
produção em acelerado do retrato, que dá cobertura à satisfação e aos desejos de
projecção imediata das massas, que se vêm de um dia para o outro representadas ao
lado das – ou como as – figuras do reino, todo o imaginário que comanda, à
partida, a prática fotográfica, vai sofrer alteração. A partir de 1860, o corpo
fotografado já não é mais questionado, mas «alinhado». O retrato vai
desempenhar uma função normalizadora, indutora de condutas, e proporcionar
ilusoriamente pela imagem o acesso aos modelos de identificação. A instituição social
percebe bem depressa como tirar partido do «democratismo» do preço e,
conhecedora da pulsão que anima a multidão, prepara-se para fornecer à
colectividade, através da mediação do fotógrafo, o «pronto-a-vestir» fotográfico.
O «tirar a fotografia» equivale neste contexto a um gesto de «DRAMATURGIA
SOCIAL» e a um gesto de imitação social. Quer isto dizer que o «pequeno-
burguês» tira a fotografia a cavalo para aparentar pertencer à classe privilegiada,
e a doméstica espreita a saída da patroa para enfiar os seus vestidos, para com
eles poder tirar a fotografia. É por esta via que o efeito fotográfico, ou o
FOTOGRAFISMO, afecta o imaginário das massas – e que cada indivíduo por
procuração imaginária e por consciência interposta satisfaz a sua vontade de retrato. A
fotografia, neste vaivém produtivo de satisfação do desejo, cedo chega à
impossibilidade de tudo narrar e de colher toda acumulação proliferante dos
objectos e das impressões, e acaba como qualquer signo por nos REMETER,

através da representação FRAGMENTÁRIA da série visual, para a ideia global do


real. A fotografia aborda o real através de um «apanhado condensado visual»
que lhe é próprio, e privilegia umas tantas figuras através das quais o real se torna
decifrável. Ao registar o que foi visto na foto, refere-se sempre, pela sua própria

52 DISDERI – Renseignements photographiques indispensables à tous, Paris, 1855, p. 14.


natureza, àquilo que não é visto. A fotografia acaba sempre por evocar, através
de algo que ela ISOLA, o que finalmente ela não retém em definitivo. Por que é
que o retrato, na impossibilidade de tudo mostrar, se refugia no ROSTO?
Seguindo a explicação dada por Walter Benjamin, a produção artística
começou por imagens que inicialmente serviam ao culto. Quer isto dizer que,
originariamente, a preponderância absoluta do valor do CULTO fizera da obra de
arte em especial um «instrumento mágico». Mas à medida que as obras de arte se
emanciparam do seu contexto e dos seus usos rituais, através das técnicas da
reprodução e da fotografia, o valor cultual da imagem seculariza-se e a obra
caracterizada pela «unicidade» vê-se despojada da sua «aura». O valor de culto
que lhe era anteriormente atribuído é suplantado pelo valor de EXPOSIÇÃO a que
elas agora passam a ser afectadas. Contudo, o valor de culto não cede o seu lugar
sem resistência: é no rosto que o valor de culto da imagem encontra o seu último
refúgio.
O rosto, tanto em pintura como em fotografia, vai ser considerado pelo lado
icónico da figuração sensível como o lugar da EXPRESSÃO por onde o corpo se
projecta e se revela reflexivamente. A representação, que desde sempre foi religiosa,
na impossibilidade de estar em todo o corpo, escolhe o ROSTO como o lugar
eminente capaz de designar o RESTO. Se a fotografia começa pelo retrato, não é
por um mero acaso. Para René Huyghe, o retrato é a «manifestação pictural da
psicologia»; a sua evolução representa um progresso em direcção à CAPTURA da
alma.
É através do espaço envolvente da MOLDURA associada ao retrato e do
espaço sensível do ROSTO associado ao corpo que a fotografia ritualiza a
CAPTURA em espaço ICÓNICO – isolando e atribuindo à figuração estética do
rosto VALOR DE EXPOSIÇÃO. «O rosto é o ícone do regime significante (...) é ele
que dá a interpretar e que muda de traços (...) O significante é sempre
«visagéifié»53. É neste sentido que o rosto é um ser de fuga, ou seja, um
HORIZONTE que nos distancia com ele para bem longe do real, para o espaço do
écrã onde o cinema, através da vertigem óptica, projecta e ficciona o real. A

53 DELEUZE, G. – Mille Plateaux, Paris, Ed. de Minuit, p. 205 (chapitre: «année zéro – visagéite».
idolatria fotográfica quase sempre IMOBILIZA o processo da cinematografia da
significação para perscrutar metafisicamente a ausência espalhada do que
perpassa no rosto – e para, a partir do fantasma e do seu suplemento imaginário,
dar corpo à visão; é nesta procura de ILUSÃO e de CULTO que o homem no rosto
se revela ANIMAL RELIGIOSO ou o animal por excelência, enfermo ou captivo da
representação.
O EFEITO MIMÉTICO E SIMULACRAL DO AUTO-RETRATO

«A imagem não é senão um duplo cujas SIMULAÇÕES a


fotografia exibe»54
J.L. Daval, La photographie, Skira, 1982

O trabalho de Urs Lüthi surge ligado à mobilidade estética fotográfica a


que o hiperrealismo e a Body-Art têm recorrido para alterar a representação
mimética do real através do poder operante e corrosivo do SIMULACRO. A
fotografia surge aí como medium a partir do qual o real é experimentado e trazido
ao OLHAR, na modalidade captiva do retrato. O que nós constatamos na
representação hiperrealista é a nova configuração que o real adquire ao ser
visado na disposição da SÉRIE. A fotografia consegue pôr em cena o real para lá
da REDUPLICAÇÃO mimética ditada pela estreiteza da relação modelo/cópia. O
real a que temos acesso através do simulacro não é nem realizado, nem
idealizado, mas somente hiperrealizado – maneira violenta de o abolir, onde ele
aparecerá mais verosímil que verdadeiro. O simulacro «não é ícone, nem visão.
Ele não reenvia a um modelo original ou a um protótipo, ele implica tanto
ausência de um modelo exterior como a recusa em considerar a imagem como
um protótipo»55. O simulacro é uma construção artificial. É desta forma que são
denegados o primado do original sobre a cópia e o primado do modelo sobre a
imagem, e consequentemente afirmado o reino dos simulacros e dos reflexos.
Neste seguimento a obra de arte é um ARTEFACTO que resulta do poder
imaginativo e dos efeitos de ilusão, inventados para escapar à instância mimética
e ao regime metafísico da verdade, entendida em termos de «ADEQUAÇÃO». O
retrato cessa assim de aparecer como relevando de uma MIMESIS (Warhol), para
nos surgir, desta feita, mais ligado ao poder do artifício e construtivo da imagem.
A fotografia deixa de ter em mira a fiel reprodução da realidade e, contagiada
pela pintura, torna-se frequentemente tão abstracta como ela.
O trabalho fotográfico de Urs Lüthi põe em destaque, através de uma

54 DAVAL, J. L. – La Photographie, Genève, Ed. A. Skira, 1982, p. 242.


ENCENAÇÃO, o que à partida é eliminado pelo imaginário narcísico do auto-
retrato: o envelhecimento, ou melhor, a DEGRADAÇÃO lenta do corpo. Através
da fisionomia, da distribuição do claro/escuro e da postura do corpo no decorrer
discontinuo de três imagens, Urs Lüthi acentua a metamorfose de uma imagem,
já tocada e afectada pelo tempo, e comprova simultaneamente a impossibilidade
da CONSTRUÇÃO ideal do retrato. Fazer um auto-retrato é encenar o tempo e
tornar visível, por intermédio de uma SERIE IMAGÉTICA, as diversas aparências
que o corpo vai formando com a idade. O rosto espelha esta alteração através da
MAQUILHAGEM e da CARACTERIZAÇÃO mutante e artificiosa da representação
teatral. A cumplicidade que a fotografia tece com as artes de cena, ou com a
pintura, sublinha bem o artefacto ou o poder construido do auto-retrato.
O auto-retrato de Lüthi é de facto uma série proliferante de imagens por
onde se transita, e não a captura narcísica de uma imagem na qual se fica. Urs
Lüthi aparece-nos como um NARCISUS em deriva, um experimentador de efeitos
teatrais. A mitologia dos nomes próprios: NARCISUS, DORIAN GRAY, URS LÜTHI,
nomes da estética que (e)videnciam um percurso mimético, diferentemente
atravessado pela componente narcísica: NARCISUS (o mirar-se nas águas), Dorian
Gray (o examinar-se no «portrait-tableau»), Lüthi (a deriva fotográfica do retrato ou
a fotomorfose do auto-retrato).
O que se trama na foto de Lüthi é mais genérico e mais polivalente que a
ideologia psicologista que normalmente se lê no retrato. A fotografia e a escolha
da imagem do «clown» não expõem somente um motivo pictural, mas ocasionam
simultaneamente «um modo desviado e paródico de questionar a obra de arte56 .
Por detrás da desconstrução teatral do auto-retrato ou do retrato, o que nos
chega intempestivamente é «uso pictural da fotografia, ou a dimensão aparente
da fotografia como quadros» (os quadros de Lüthi são, aliás, fotografias em tela –
em exemplares únicos). A exposição fotográfica de Urs Lüthi, através do auto-
retrato, acusa o desdobramento duma CENA FINGIDA onde os efeitos visuais
miméticos aludem a efeitos de realidade IMAGINADA. Urs Lüthi mimetiza-se
diante da máquina fotográfica, conformando-se por antecipação a um efeito

55 PERNIOLA, M. – TRAVERSES nº 10, Paris, Ed. de Minuit, 1978, p.


óptico escolhido, a um efeito estético capaz de ILUSIONAR a sua própria imagem.
A estética de Lüthi não deixa de pôr emprimeiro plano as concepções
estéticas de Oscar Wilde e mesmo as de Nietzsche, quando este diz «ce qui doit faire
l’effet du vrai, ne doit pas être vrai» (Caso Wagner). Oscar Wilde ligará a «artisticidade»
à aptidão que o artista tem para FINGIR, o mesmo dirá Fernando Pessoa. Quer
isto dizer que não é tanto a identificação que caracteriza o temparamento
artístico, mas antes a necessidade que o artista sente em ter que passar «pela vida
de uma série de seres» (Nietzsche), não para se desembaraçar da sua personagem,
mas antes para assumir outras, tentando afirmar por aí o HISTRIONISMO da
«pulsão artística».
O uso pictural que Lüthi faz da fotografia para sublinhar o carácter
mutante do auto-retrato leva-nos a considerar o retrato ao longo da história da
pintura como o sinal por excelência do «equívoco de toda a arte figurativa ou
representativa, na medida em que se refere a um modelo preciso que tende a ser
identificado», e que para tal nos é necessário recorrer à roupagem iconológica da
época e ao imaginário que suporta a retratística oficial57.
Se a caricatura surge, é porque ela, através da EXAGERAÇÃO dos traços,
pretende fazer passar o que de maneira encoberta perpassa sob a maquilhagem
da conveniência social e histórica da representação social.
Vários foram os pintores e os fotógrafos que se demarcaram da
ambivalência triunfalista do retrato e dos cânones estéticos do humanismo. Jean
Dubuffet recusa as normas convencionais da representação plástica e tenta
atribuir valor estético ao que era considerado «Feio»; Francis Bacon procura no
rosto atribuir um lugar preponderante ao tratamento pictural da boca, tentando
assim pôr de lado o lugar privilegiado que os olhos sempre desempenharam no
retrato tradicional; na fotografia Boltanski, Urs Lüthi, Journiac elaboram uma
reflexão sobre o retrato atacando radicalmente o psicologismo e o expressionismo
estático da figuração. Lüthi vai mais longe que qualquer dos outros, porque
incorpora no espaço do retrato os dois tabus que normalmente não entram na
sua composição: o SEXO e a IDADE (ou, se acaso entram, é em modalidade

56 STAROBINSKI, J. – Portrait de l’artiste en saltimbanque, Genève, Ed. Skira, 1970, p. 9.


resolvida).
Ao incorporar no espaço do auto-retrato o sexo e a idade, Lüthi encara-os
como TEMAS NÃO RESOLVIDOS, sendo o auto-retrato considerado como o
LUGAR OSCILANTE por onde é possível tornar mental uma postura e figurar o
que normalmente escapa ao código de retrato. Por detrás da insistência manifesta
em que ele aborda o sexo e a idade, é possível descortinar a interrogação que ele
desenvolve em torno da IDENTIDADE – tema supostamente ligado ao gosto
artístico do retrato. O «carácter obsessional desta interrogação sobre a
identidade»58 vem assim a comprovar que o auto-retrato não é somente
expressão de pulsões marginais, mas um dos «géneros» especiais cultivados pela
arte académica. O auto-retrato surge como o lugar introspectivo a partir do qual
a arte se auto-engendra, desdobrando-se em reflexividade pura do pensar e do
sentir fenomenológicos. A vontade deliberada de produzir retrato encontra
necessariamente, no seu percurso de auto-presentação, a verdade secreta de todo
o retrato: «le ‘propre’ du portrait ne serait-il pas de toujours en masquer un autre»59.
Parece-nos que a reflexão artística nunca deixará de espelhar o
«conhecimento confuso» que Espinoza, como Descartes, atribui à «contemplation de
plusieurs choses à la fois». O perigo que espreita a reflexão que se tece em torno da
Figuração estética reside na vontade em querer passar para lá do corpo para dar
ordem lógica à «pulsão artística» que à partida é TURVA e EXCESSIVA, e
finalmente reivindicar, através do rigor do conceito, a ecologia de uma nova
ordem inauguradora da TABULA RASA. A «petição de uma arquia, de um começo
absoluto, de uma origem»60 nada mais é que uma petição simbólica. A úníca
certeza teórica que temos é a de que «o que é tomado no fechamento de-limitado
pode continuar indefinidamente»61, portanto a escrita não pode começar. Tal
como o livro, a figuração não pode acabar.

57 FRANÇA, J. A. – O Retrato na arte portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1981, p. 8.


58 DELACAMPAGNE, Ch. – «Regards, miroirs, rêverie», in Corps écrit 5 (L’autoportrait), Paris, PUF, 1983, p.
147.
59 LESTIE & PONTEVIA – Travaux d’après peinture, Toulouse, Ed. Trans-Europ-Repress (TER), 1981. Tese

de inspiração Klossowskiana sobre o estéreotipo e o estatuto da ilusão na figuração.


60 DERRIDA, J. – Posições, Lisboa, Ed. Plátano, 1975, p. 21.
61 DERRIDA, J. – Posições, Lisboa, Ed. Plátano, 1975, p. 21.
A DEFORMAÇÃO DO RETRATO
ou O DEVIR ANIMAL NA PINTURA DE F. BACON

Começa a ser usual a constatação de que a filosofia nestes últimos tempos


prefere refontalizar as suas teses na proximidade física da obra do que
assenhorar-se pedagogicamente dos domínios da GENERALIDADE ESTÉTICA. Os
princípios genéricos, sejam eles de raíz Kantiana ou Hegeliana, revelam-se
demasiado pesados para poderem articular os componentes da nova figuração e
limitam-se na maior parte das vezes a apresentar cenários eidéticos arquitectados à
custa de um acentuado menosprezo pela fisicalidade da obra e por um não
menos arraigado poder iconoclástico nutrido contra a imagem. Por outro lado, não é
só o poder ICONOCLÁSTICO dos sistemas filosóficos que dificulta a abordagem do
proceso estético como também o seu oposto – a cegueira idolátrica que enleia o
olhar impedindo-o de ver. Contudo, o perigo mais eminente que espreita hoje a
figuração e o conceito reside no ESTRATAGEMA DE COMPROMISSO encontrado
para dar sentido à própria representação – estratagema que tem vindo a
manifestar-se nestes últimos tempos na importância excessiva que se tem
atribuído ao DISPOSITIVO SIMBÓLICO, como se a condição para ver claro tivesse
que implicar o corte radical do homem com as suas ORIGENS ANIMAIS.

Tendência teórica polarizada na produção de Gilbert Durand e de René Girard,


os quais têm operado «sangrias» ao significante, procurando reabilitar a velha
ilusão metafsíca, ora evangelizando-a ora mitificando-a. Para nós parece-nos
preferível a velha ilusão metafísica sem a adjectivação posterior desta nova teoria
simbólica.
Gilles Deleuze não se compraz com filosofemas de índole hermenêutica,
nem mesmo com a forma modernizante por estes adquirida na chamada
fenomenologia da desconstrução. Desta vez aliado ao trabalho pictural de
Francis Bacon, procura talhar as suas passadas teóricas desprendendo-as da
estrutura artística imanente à própria ordem da figuração.
A abordagem estética que daqui resulta não é um comentário sintético, mas
um percurso que o intérprete teimou em esmiuçar seguindo não um projecto
exterior à obra, mas antes, tentanto desvendar as articulações que ligam a
LÓGICA DO SENSÍVEL à lógica encadeada dos processos que animam a visão
artística. Um e outro – Francis Bacon e Deleuze – inspeccionam a presa que
dorme no interior do retrato, não lhe chamando inconsciente, o que seria mera
figura de retórica, mas prosseguindo cada um por seu lado a marca animal excessiva
patente na visibilidade das deformações, ou no equacionamento de uma nova
estética, ou de uma nova teoria dialógica contraída entre o ver o pensar. Para
tentar ser mais claro e não me sobrepor leitura feita por Deleuze, tentarei pôr em
relevo cinco constelações temáticas em torno das quais assenta a «LÓGICA DA

SENSAÇÃO na pintura de Bacon».


A PRIMEIRA poderia ser designada pela série de truques e de artimanhas
técnicas a que Bacon recorre para dissociar o figural do figurativo, ou para
libertar a figura da pequena melodia narrativa que normalmente a acompanha.
Bacon pretende dar cabo da pintura que se arrima à historieta, e da pintura que
se confina demonstrativamente na ilustração. A primeira técnica a que recorre é
a técnica da DELIMITAÇÃO da figura. Bacon cortará a figura do seu meio
ambiente, isolando-a. A realidade figural assim isolada pretende, no dizer de
Bacon que Deleuze retoma, esconjurar o carácter figurativo e ilustrativo e
narrativo que a Figura teria necessariamente se ela não estivesse isolada. Está
bem patente que, para Bacon, a pintura não se propõe copiar nenhum modelo,
nem mesmo lhe assiste a obrigação de contar uma história.
Bacon evita que o lugar isolado se feche sobre si próprio e que a figura
decaia no ensimesmamento narclsico de si; é possível isolar sem cair na
propensão quasi-natural da IMOBILIDADE. Estes «lugares-redomas» tornam
sensível e inteligível o percurso exploratório da figura sobre si própria; os lugares
escolhidos que isolam a Figura são sítios, no dizer de Deleuze, que não
constrangem a FIGURA à imobilidade. O que ressalta deste lidar com o espaço e
que este se torna num campo operatório, umas vezes associado ao rodopio de
uma PISTA, outras vezes à força perigosa de uma ARENA, outras vezes ainda ao
poder violento de um CIRCO. Isolar é o meio necessário, embora não suficiente
para ROMPER com a representação. Um outro estratagema utilizado para se
dembaraçar do poder narrativo da figuração é o recurso à FORMA ABSTRACTA

através da qual o corpo escapa à encenação grave da perspectiva ou do ser


conforme a sua representação (Emolduração); forma abstracta que surge ligada à
DEFORMAÇÃO do corpo humano e ao tratamento informe das leis que
comandam as proporções reguladoras do equilíbrio das POSTURAS DO RETRATO.
A SEGUNDA série temática assinala a importância relevante que veio a
desempenhar a DEFORMAÇÃO como construção pictural imaginativa. A
imaginação objectaliza-se na animalidade, ligando-se por um lado à precisão
cinética dos contornos orgânicos e por outro à força cega do instinto animal
concentrado na figura. O corpo é Figura e não estrutura.
As deformações através das quais o corpo passa não correspondem a formas
animais ou a formas de rosto, mas antes a TRAÇOS ANIMAIS e a uma lenta
metamorfose de devires que acabam por arrastar a percepção para uma zona
límítrofe de indeterminação. Indeterminação porque o que constitui a «zona de
indecisão objectiva do homem e do animal» é a carne e não o corpo, uma vez
que este já é um «FORMATUM»; é assim que a carne nos surge como o «matériau»
corporal da figura. Cada quadro de F. Bacon é uma COEXISTÊNCIA física de
devires, onde o corpo tende a escapar, uma vez que este é um passador, uma
rede de buracos chegando mesmo a confundir-se com uma textura molecular. A
Figura de Bacon não é somente corpo isolado, mas corpo que escapa na
deformação. A insistência de Bacon em pintar o GRITO não é mais do que tentar
localizar a operação pela qual todo o corpo escapa pela boca.
Se os corpos se alongam, aplanam, deformam e se dilatam, se dispersam e
se distorcem é porque a deformação desempenha antes de mais na figuração uma
FUNÇÃO MOTRIZ. Talvez, como diz Bachelard a respeito de Lautréamont, seja o
«excesso do querer-viver que deforme os seres e que determine as
metamorfoses». Embora a citação não figure no texto deleuziano, se recorremos
a ela é pela simples razão que finalmente ela nos leva a perceber a fulguração
intensa do DEVIR-ANIMAL que se opera na figuração de F. Bacon. Gílles Deleuze
tem o cuidado de distinguir a deformação da transformação, dizendo que,
enquanto a transformação da forma pode ser abstracta ou dinâmica, a deformação
é sempre a do corpo e que esta é estática, realizando-se concentradamente sobre
o próprio corpo. Deleuze religa a deformação às forças que agem sobre o corpo.
A TERCEIRA constelação poderá designar-se pela série polimorfa das
sensações. Bacon, no seu trabalho pictural, evita a todo o custo que entre o
homem e o animal, nesta zona de indecisão objectiva, venham a interpor-se
imagens segundas, ou seja, representações sem lugar no quadro vindas de fora,
cujo efeito seria o de distanciar a figura desacentuando nela os traços animais. A
Identidade de fundo com a espécie animal não é corrigida na Figura. Por que é
que devia sê-lo, se o que nos chega pela sensação é esta mistura ou esta coagulação
de marcas não representativas que nos assaltam quando topamos ou somos
achados na (sur)presa?
Bacon não faz quadros analíticos mas quadros onde a Força da crueldade
perpassa a figura para lá da representação; um pouco como em Artaud, é o grito
que estilhaça no corpo o nexo organizativo da sintaxe gramatical. Bacon não dá
azo a que os seus quadros sejam considerados como o lugar de uma identificação
sentimental com o animal, à violência do representado opõe a violência da
sensação. A questão à qual Bacon se confronta consiste em saber como «pintar a
sensação» ou como tornar visível o grito sem deixar na sombra a força sensível do
grito e a força insensível daquilo que faz gritar. Para tal, Bacon concentra-se «no
carácter irredutivelmente sintéctico da sensação», pois esta, pela sua própria
natureza, inclui já o amontoado caótico do sentir. De nada vale pois tentar uma
fenomenologia da sensação para arrumar na Figura a desordem do
percepcionado – sabemos bem que a sensação só é intelígvel «après coup»: o que a
fenomenologia nos certifica é que a sensação é anterioridade corporal e que um
corpo pensado é um corpo a posteriori. É esta a resistência à conceptualização que
leva Bacon a visualizar a sensação sem a dissociar da composição contrastada e
ambivalente da Figura. A violência que percorre a FIGURA ressente-se através de
todas as variações construtivas das deformações e coexiste ligada nas
decomposições; cada DECOMPOSIÇÃO/DEFORMAÇÃO é um domínio acumulado
de sensação. O grito em Bacon é o lugar-limite de uma deformação, de um
alongamento por onde o corpo sentido e sensível escapa acusando um aquém e
um outro lado para lá da representação. Neste meio tempo, a pintura ficou com
o ocorrido e as leituras interpretativas têm dificuldade em compreender este
presente eterno da percepção que se desloca e atravessa o espaço cénico da
Figuração.
A QUARTA constelação temática processa-se em torno do devir-animal da
sensação e da visualidade histórica das deformações. O retrato é o campo
escolhido por Bacon para teatralizar como é que mediante o trabalho pictural se
consegue deformar histericamente o «acabado» do photomaton. Bacon sabe bem
que a representação quase sempre amortece a pulsão e a resolve sem grandes
custos e sem grandes riscos, sujeitando-a a uma imagem conforme, de fácil
acesso. Para Bacon, o real não é o reconhecível mas o que resiste e não se
consegue de todo figurar. Assim, o que perpassa nos quadros de Bacon não é o
resultado do tique mimético de fácil reconhecimento, mas o que trabalha
surdamente e perturba normalmente a figuração; é pois pelas distorções operadas
no retrato que Bacon consegue trazer a imagem ao de cima: «as fotografias sempre
me impressionaram muito devido à ligeira deslocação que nelas existe em relação ao real»62 –
deslocação que precipita violentamente Bacon de encontro ao real. Bacon
trabalha picturalmente o retrato deslocando-o para uma zona de oscilação
intermédia, onde o devir é analisado e pressentido mais nas proximidades físicas
da animalidade do que no espaço óptico abstracto das sensações calculadas. O
olho pictural de Bacon não é o olho expressivo do rosto mas o olho cerebral
nervosamente animal, o olho que, solto da rigidez do organismo, se perde no
emaranhado da paisagem, chegando até a confundir-se por detrás de um
contorno com A POSTURA MÓVEL DE UMA PRESA. A démarche de Bacon em
pintura poderia resumir-se no detectar de forças que estão para lá da vista
alojadas entre as linhas anatómicas e estruturantes do organismo. Todo o seu
trabalho consiste em desfazer a ordem lógica do organismo a fim de captar ao
vivo o «instinto», este TRANSCENDENTAL VIOLENTO ao qual ele dá um
tratamento físico, associando o corpo animal das figuras a uma «desfiguração»
quase clínica, ritualizada quase sempre num espaço circulante de inspecção.

62 BACON, F. – Auto-retratos, Lisboa, Ed. Quatro elementos P.


Bacon devolve-nos com a figuração um espaço que inclua, na materialidade
móvel da superfície, o que insiste dissociado no processo histérico do sentir; para
tal situa as figuras humanas num espaço limite de reclusão onde elas venham a
desencadear, pelo seu próprio estado de captura, um efeito directo sobre o
sistema nervoso criado pelo excesso de violência a que estas figuras estão
expostas. Para Deleuze, a deformação exposta do corpo na figuração de F. Bacon
deve ler-se como dominação das FORÇAS sobre as FORMAS. A pintura é-nos
assim apresentada como de todas as artes a uníca que histericamente integra a
sua própria catástrofe sem ter necessídade de recorrer a um CÓDIGO ÓPTICO

PARA NEUTRALIZAR A TENSÃO em forma geométrica, como o pratica uma certa


arte abstracta. O devir animal das figuras realiza-se «sur-place», implicando por
um lado a destruição das coordenadas do espaço/tempo fotográfico da «coisa
vista» e a emergência lenta na superfície da tela de uma «coisa sentida», de uma
MORFOLOGIA na qual o olhar se aqueda. Este momento de poiso figurativo
coincide com a presença intensa animal de uma força, de uma
PINTURA/CATÁSTROFE à qual Bacon se reserva o direito de a não confundir,
nem com a «noite animal» de Georges Bataille ou com a noite dos místicos, nem
ainda com a obscura confusão da sensação; Bacon tem o cuidado de remeter este
«equilíbrio instável» do devir para uma morfologia delimitada topologicamente
pelo CONTORNO. Bacon localiza a catástrofe no limiar e no ponto limite de uma
configuração, ou de uma morfologia na qual o transcendental ou a presença do
devir possam estar adscritos.
O contorno é o que permite que a catástrofe adquira movimento. O
objectivo de Bacon, contudo, não é o de mostrar aparências sucessivas, mas o de
SOBREPOR as aparências em formas que não se encontrem na vida. O contorno,
ao mesmo tempo que aloja, desaloja a presa.
A PINTURA/CATÁSTROFE de Bacon não se torna animalar, como diz
Deleuze, pelo simples facto de traçar mimeticamente a forma animal, mas se vier
a traçar através de uma precisão não organica um plano indescernível de formas.
Só neste caso é que a figuração estará comprometida com a TENSÃO – e esta
dinamizará por dentro, através da cor, o corpo histerizado do quadro.
O QUINTO aspecto abordado em teoria por Deleuze diz respeito à
importância atribuída ao papel do aleatório no decorrer da produção pictural.
Bacon delimita os seus domínios e circunscreve-os em conexão com o imaginário
solto do homem da caça, tentando procurar atinar com uma armadilha por meio
da qual possa prender a figuração pelo lado mais vivo. É neste seguimento que
Bacon se refere à CONSISTÊNCIA de uma REDE PICTURAL capaz não só de
apanhar as sensações ou as marcas irracionais, mas de tornar também visível a
natureza precária e mortal de que o (corre) a fim de privilegiar no campo do
ocorrido a sensação mutante do «FORTUITO» ou do «ACASO». Talvez que a rede
pictural só lá esteja para captar as «pregnâncias» e morfogeneizar o fortuito na «forma
espacial do contorno». Por outro lado, Deleuze atribui ao contorno uma outra
operação mágica de transmutação. O bordo da figuração traçado pelo contorno
pode transformar uma «pregnância» negativa (de repulsa) numa «pregnância»
atractiva positiva (Gilles Deleuze dá numerosos exemplos deste fenómeno no seu
livro Francis Bacon – Logique de la Sensation.
Com isto não se pretende afirmar que a obra de arte esteja estritamente
confinada ao seu contorno, pois até sabemos, como bem o demonstra René
Thom, que o efeito estético de uma obra pode até ser afectado por uma presença
de contágio por contacto contraído com outras obras vizinhas63. O que
comprova mais uma vez que a forma que Bacon trabalha não é a forma-estrutura
mas a forma-força, que remexe e satura todo o campo inconsciente (do olho) da
visão. Deleuze evidencia que o domínio constitutivo da sensação surge implicado
no visível pictural da pintura de Bacon, e que talvez nós nos tenhamos que
desalojar e improvisar uma outra geometria que nos permita um novo e outro
enfoque dos diferentes níveis e dos diversos estratos sedimentados constitutivos da
sensação. Para tal, não seria descabido se recorressemos aos tais «conceitos
geológicos» de Worringer, talvez estes nos facultassem acesso a um tipo de visão
distinto do óptico64.
Assim talvez fosse possível ligar o acto de pintar e o acto de interpretar a um

63 THOM, R. – Conférence donnée le 22 avril 1982 à l’Auditoire Piaget, UN II, Genève: «Local et global dans
l’oeuvre d’art»
64 WORRINGER, W. – Abstraction et Eínfühlung, Paris, Ed. Klincksieck, 1978.
gesto soberano de espera activa, que espreita sem cessar o «instante mutante» em
que o devir da sensação coincidirá com o auge da fulgurância do meio-dia
nietzchiano da (i)localização da passagem.

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