Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
TERRÆ DIDATICA 8(1):51-57, 2012 Cláudio Eduardo Lana, Paulo de Tarso Amorim Castro
ABSTRACT Historical and philosophical evolution of the concept of river base level: Literature revision of the
conceptual evolution of fluvial base levels is presented herein. Specialized publications show that there is a long term
relationship between the human society and the fluvial morphological flats. For this reason different meanings of a base
level were postulated along the last centuries. Each conception is a clear evidence of the invigorating philosophical pattern
at a specific time. Moreover, the succession of different conceptions point to the improving human comprehension of nature.
This work is composed of two main sections. First a synthesis of the philosophical and historical evolution stages of the
base level concept is presented. Thereafter the different meanings of this term are discussed as well as their correct usage.
RESUMO Este trabalho apresenta uma revisão bibliográfica acerca da evolução do conceito de nível de base fluvial.
A literatura especializada mostra que, ao longo de sua existência, o Homem tem estabelecido uma relação direta com os
patamares morfológicos desenvolvidos às margens dos rios. Com isso, uma série de concepções a respeito do significado dos
mesmos se com o com o tempo, cada uma delas traduzindo o padrão filosófico de sua época e a consequente capacidade
humana de percepção dos fenômenos naturais. O trabalho é dividido em duas partes principais: a primeira sintetiza as
etapas da evolução histórica e filosófica do conceito de nível de base, enquanto a segunda se dedica aos diferentes significados
que são atribuídos ao termo e à discussão da aplicabilidade de cada um deles.
51
Evolução histórica e filosófica do conceito de nível de base fluvial TERRÆ DIDATICA 8(1):51-57, 2012
ocupar as porções marginais dos cursos d’água. algum tempo junto à comunidade científica ilumi-
Com base no que foi exposto acima, é natural nista, influenciando sua tentativa de racionalizar o
que pesquisas nos mais variados campos do conhe- mundo (Descartes 1637).
cimento humano sejam desenvolvidas sobre os Talvez por este fato as contribuições de Leonar-
níveis de base e, justamente por essa diversidade do da Vinci sobre erosão e deposição fluvial, que
de enfoques, a essência geológica dos fenômenos, culminaram na percepção da capacidade da água em
que reside em questões anteriores à própria exis- continuamente “corroer” as montanhas e “encher”
tência do Homem, seja ignorada ou interpretada os vales, não tenham conseguido despertar o inte-
de forma equivocada. Dentro deste contexto, uma resse por novas observações e idéias que viessem
revisão sobre o assunto, levando em conta vários a melhorar a compreensão do papel dos níveis de
momentos da evolução filosófica, técnica e cientí- base locais, fato destacado por Marques (2007).
fica da sociedade, pode ajudar a elucidar os diversos No que diz respeito à dinâmica fluvial, esta
sentidos atribuídos ao conceito e, desta forma, tor- influência se fez perceber nas teorias cataclismá-
nar sua adoção mais apropriada aos estudos atuais. ticas que Bigarella (2003) descreve como comuns
no início do século XVIII. Nesta fase, acreditava-
2 - Desenvolvimento Histórico e Filosófico do -se numa instalação catastrófica (divina?) de vales,
ocupados pelos rios apenas em fases posteriores da
Conceito evolução do relevo.
É atribuída a Heródoto, o pai da História, a Ao longo do século XVIII, a abordagem catas-
frase: “O Egito é uma dádiva do Nilo”. Nesta pas- trofista seria paulatinamente refutada, dando lugar
sagem, dita há mais de 400 anos antes de Cristo, ao atualismo de James Hutton que, cedendo bases
fica clara a noção das relações existentes entre os para discussões e conclusões posteriores (p. ex.
processos de agradação fluvial nos níveis de base trabalhos de Charles Lyell, Albert Penck, Jean
(deposição de sedimentos argilosos na planície de Louis Agassiz, John Wesley Powel e William Morris
inundação, no período pós-cheias) e os demais Davis), culminaria no paradigma atual, segundo o
elementos dos sistemas fluviais, incluindo aí a qual os rios esculpem seus próprios vales a partir
sociedade humana. de sua ação erosiva, governados pela variabilidade
Na Grécia antiga, fenômenos como a per- espacial e temporal dos níveis de base.
manência do fluxo d’água num rio, mesmo fora Segundo Howard et al. (1994), desde Hutton
da época de chuvas aguçavam a curiosidade dos acredita-se que as paisagens são criadas por proces-
homens e estimulavam a busca de explicações. Foi sos erosivos / deposicionais agindo sobre superfícies
a partir daí que surgiram as primeiras tentativas de tectonicamente criadas. Os estudos do século XIX
racionalizar a natureza, usando como base prin- apontaram para interações entre tectônica e erosão
cípios como o do tempo infinito, da existência da devido à isostasia.
denudação e da conservação de massa. Até recentemente, essa interação foi ampla-
A engenharia desenvolvida pelos romanos mente separada nos estudos geológicos. Os geo-
colaborou, na sequência, com a parte prática dos morfólogos consideravam a deformação tectônica
estudos da natureza. Seguindo esta época, a Idade um obstáculo imposto pelos geodinamicistas,
Média contou com a atribuição inquestionável de especificando-a como uma condição limite para a
todos os fenômenos naturais à ação de Deus, de descarga erosiva nas montanhas e carga sedimentar
forma que as obras gregas e romanas só viriam a nas bacias.
ser resgatadas com o Renascimento. Apesar disso, a visão de interação entre os proces-
A conversão dos sistemas fluviais em um sos geomórficos e tectônicos é cada vez mais apreciada.
tema científico é um provável resquício dos ideais Vários modelos de erosão regional têm sido baseados
renascentistas prevalecentes até meados dos anos nela, apesar da maioria das modelagens supersimplifi-
1650, quando a máxima era a reflexão de assuntos car os processos de erosão, transporte, deposição, além
até então investigados exclusivamente sob a ótica das influências do tectonismo, particularmente nos
eclesiástica. sistemas fluviais (Milliman e Syvitski, 1992).
Apesar de todo o esforço de ruptura com a for- Dentre os primeiros trabalhos científicos sobre
ma de construção e transferência de conhecimento sedimentologia e geomorfologia fluvial, destaca-se
adotada durante a Idade Média, era inevitável que a investigação geométrica de leitos executada pelo
parte desses mecanismos ainda se perpetuasse por geólogo britânico Sorby (1859). Neste trabalho,
52
Cláudio Eduardo Lana, Paulo de Tarso Amorim Castro
53
Evolução histórica e filosófica do conceito de nível de base fluvial TERRÆ DIDATICA 8(1):51-57, 2012
54
TERRÆ DIDATICA 8(1):51-57, 2012 Cláudio Eduardo Lana, Paulo de Tarso Amorim Castro
3 - Definições de Nível de Base Fluvial: . Allaby e Allaby (1999): superfície plana teórica
que envolve uma massa continental, denotando a
Questionamentos e Aplicabilidade profundidade abaixo da qual a erosão estaria inca-
Tendo em vista a grande importância dos sis- paz de ocorrer.
temas fluviais nos mais variados ramos das geoci- . Burbank e Anderson (2001): limite mais bai-
ências, é natural que glossários geológicos, bem xo da paisagem, abaixo do qual os rios não podem
como livros-texto sobre Geologia Geral e Geo- erodir.
morfologia, além dos artigos de áreas correlatas, . de Blij et al. (2004): nível abaixo do qual um
sempre tragam uma definição sumarizada para o rio não pode erodir seu leito.
termo nível de base. . Press et al. (2006): elevação na qual um rio
Dentre as definições encontradas na literatura, termina desembocando em um grande corpo de
podem-se listar alguns exemplos: água parada, tal como um lago ou oceano.
. Leinz e Mendes (1959): nível limite além do . Cunha (2007): entidades originadas a partir de
qual a ação erosiva das águas correntes não pode controles, na maioria estruturais, que seccionam o
mais rebaixar uma região. Assim, o nível do mar ou curso d’água em segmentos individualizados com
o nível de um lago representam os níveis de base perfis de equilíbrio próprios, modificando a visão
para os rios que neles desembocam. teórica do perfil longitudinal de rios.
. Holmes (1952): prolongamento imaginário Como se pode perceber, a maior parte
do nível do mar abaixo do continente. das definições listadas converge para “um nível no
. Lange et al. (1963):
���������������������������������
nível no sopé de um talu- qual os fenômenos fluviais de erosão e transporte
de, a partir do qual as ravinas crescem. dão lugar aos deposicionais”. Entretanto, algumas
. Thornbury (1958): limite inferior de aprofun- variações sutis podem ser percebidas. Neste caso,
damento de um vale ou da erosão fluvial. para evitar qualquer equívoco de interpretação, a
. Suguio (1992) e Suguio (2003): limite topo- terminologia mais descritiva e, portanto, adequada
gráfico, abaixo do qual uma drenagem não conse- para nível de base seria “nível de base geomórfico”
gue erodir o continente, representando o estado de (geomorphic base level) (termo adotado por Shanley e
equilíbrio num dado momento entre a deposição McCabe, 1994).
e erosão. É também conhecido como nível de base Muitos autores trabalham com a diferenciação
de erosão. entre um nível de base final ou global (ultimate base
. Shanley e McCabe (1994): nível mais baixo ao level) (figura 2) e níveis de base locais (local base
qual a erosão da superfície da Terra busca atingir. levels) (figura 3). Para Powel (1875), p.ex., existe
É especialmente o nível abaixo do qual os rios não uma diferenciação entre os níveis de base e pata-
conseguem erodir seus depósitos. mares de expressão local.
Figura 4 . Duas configurações para knickpoints (1) e suas possíveis posições futuras (2). O processo de instalação da
quebra de patamar é mais rápido na área de cascata (“a”) do que no segmento de corredeira sobre rochas in situ
(“b”). Adaptado a partir de Schumm (2005).
55
Evolução histórica e filosófica do conceito de nível de base fluvial TERRÆ DIDATICA 8(1):51-57, 2012
Em inglês, os limites desses níveis são deno- variando de acordo com a situação deposicional.
minados knickpoints (“pontos de inflexão” ou, Apesar de o senso geral apontar para um nível
conforme Bigarella (2003), “rupturas de declive” de base final coincidente com o nível do mar, é
ou “rupturas de gradiente”). Apesar de seu caráter importante destacar que várias exceções podem
descritivo, na maioria das vezes o termo é aplicado ocorrer.
a uma variação de declividade em escala espacial Burbank e Anderson (2001) chamam a atenção
pequena, no nível dos segmentos fluviais (Burbank para as depressões tectonicamente fechadas, como
e Anderson 2001; Allaby e Allaby 1999; Severiano- é o caso do Vale da Morte (EUA), que configura
-Ribeiro 2001; dentre outros). um nível de base final inferior ao nível do mar. O
Segundo Allaby e Allaby (op. cit.), o knickpoint é Mar Morto (Jordânia, Israel e Cisjordânia), dentro
também conhecido na literatura inglesa por headcut, deste contexto, também se comporta como o nível
sobretudo quando ocorre de forma abrupta. Ele separa de base final do rio Jordão.
segmentos normalmente côncavos para cima e ocor- O oposto também ocorre em casos como, por
re frequentemente associado a um rebaixamento no exemplo, o do deserto de Atacama, no Chile, ou
nível de base ou, alternativamente, a variações no tipo do Lago Titicaca (Peru), no topo da cordilheira
de rocha ou no volume da descarga, ou até mesmo a dos Andes. Este último, a quase 4 km acima do
confluência de um novo tributário (figura 4). nível do mar. Enquadram-se aí situações como a
A instalação dos knickpoints altera o estado de do rio Okawango, cuja desembocadura ocorre na
equilíbrio anterior dos sistemas fluviais e sua ocor- forma de um delta interior, ou seja, o nível de base
rência, dependendo das variáveis de controle, pode final neste caso está no deserto do Kalahari, em
levar todo o sistema a outro estado de equilíbrio Botswana, cerca de 950 m acima do nível do mar
(Huggett 2003). (Gumbricht et al. 2001).
O nível do mar, para vários autores (p.ex.: Bur-
bank e Anderson 2001; Suguio 2003; Severiano-
-Ribeiro 2001; dentre outros), equivaleria ao nível
4 – Agradecimentos
de base final, enquanto zonas pontuais de topografia Os autores agradecem à Fundação de Amparo
deprimida seriam níveis de base locais, podendo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig), à Coorde-
consistir, por exemplo, de um lago (figuras 2 e 3). nação de Pessoal de Nível Superior (Capes), ao
Além disso, alguns autores trabalham com o con- Departamento de Geologia da UFOP e ao Depar-
ceito de “nível de base de erosão”, que envolve todos os tamento de Geologia da UFES.
segmentos de um sistema fluvial. Ele consiste, segundo
Bull (1991), de um perfil longitudinal escalonado em
equilíbrio, abaixo do qual um rio não é capaz de dissecar
e no qual não podem ocorrer os processos de erosão e
deposição. Para muitos autores, o termo não passa de
um sinônimo de nível de base geomórfico.
Existem ainda outras variantes como o “nível de
base de corrosão” (Suguio, 2003), aplicado ao plano
até o qual o ciclo cárstico é capaz de se desenvolver,
ou seja, o nível freático; além do “nível de base de
deposição”, que representa o nível máximo onde
os depósitos sedimentares podem ser empilhados
numa bacia (em sedimentos marinhos, equivale ao
nível de base final) (figura 5).
Segundo Severiano-Ribeiro (2001), merece
menção o “nível de base estratigráfico”, que seria
a superfície em direção à qual os sistemas estra-
tigráficos buscam se ajustar, por intermédio de
sedimentação e preservação estratigráfica ou por
bypass sedimentar ou ainda erosão dos depósitos.
Figura 5. Ilustrações dos níveis de base de corrosão e de
Em outras palavras, trata-se de um conceito mais deposição. Modificado de de Blij et al. (2004).
dinâmico do que o “nível de base geomórfico”,
56
TERRÆ DIDATICA 8(1):51-57, 2012 Cláudio Eduardo Lana, Paulo de Tarso Amorim Castro
57