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Visto o Direito enquanto ciência, o que resta importante é sua validez e não a justiça;
assim, circunscrito às condições essenciais para torná-lo válido, desconsidera-se o valor do
justo, visto que presente o primeiro aspecto, o segundo nele estava inserido. Direito é norma;
mais ainda, norma posta, isto é, mandamento circunscrito a um comando estatal, portanto
ligado a um poder soberano, de onde emana a sua força coercitiva. Essa visão “ascética” do
direito entroniza a norma como objeto de estudo e, mais ainda, faz do ordenamento jurídico
ponto de convergência de investigação. O jurista não mais trabalha com a realidade social (o
ser), mas com normas (dever ser).
As posições antes colocadas devem ser relativizadas por uma concepção que vê na
experiência jurídica a junção de três elementos: fato, valor e norma. Nesta versão teórica, o
Direito não é estruturado a partir apenas de fatos como querem os sociólogos, de valores como
pensam os idealistas ou das normas como afirmam os normativistas, mas pela síntese
integradora desses elementos. REALE (1995, p.65), figura expoente da teoria tridimensional do
Direito, assim a explicita:
a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há sempre e necessariamente um fato subjacente
(fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere
determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido
de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma que
representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor;
b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros mas
coexistem numa unidade concreta;
c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só exigem reciprocidade, mas atuam como elo de
um processo de tal modo que a vida do Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três
elementos que a integram.
O Direito, sob o ponto de vista da teoria tridimensional, pressupõe a análise de um fato,
de um valor e de uma norma, unidos, indissociáveis, integrados dialeticamente. Essa forma de
pensar o Direito está circunscrito a uma realidade histórico-cultural, portanto, sempre em
movimento, dinâmico. Dinamismo esse que implica modificações dos fatos, por conseguinte,
novos valores emergem e a norma que lhes serve de liame não pode ser imutável, está
também em constante movimento.
Nesta ordem de raciocínio, inexiste determinismo absoluto de um desses elementos
sobre os outros. Apesar da importância que as condições históricas da sociedade assumem
para a explicação do fenômeno jurídico, é errôneo imaginar como mero reflexo. Existe uma
dialeticidade que impõe limites à sociedade, regrando-a em concordância com os valores
estabelecidos. É evidente que, em sendo o Direito inserido na sociedade, dela não se
afastando, mas nela pulsando, está sempre necessitando de uma adequação à realidade
social. Pensar diferente é enclausurar o Direito, apartá-lo da sociedade, deixando que as
relações entre os homens se estabeleçam mediante regras próprias indiferentes às prescrições
jurídicas. Não é o absolutismo da lei que se pretende e, muito menos, o determinismo
sociológico, mas a unidade dialética dos fatos, valores e normas.
O pensar o Direito no âmbito desse trabalho parte de uma perspectiva de tomá-lo como
valor do justo, norma jurídica e fato social. Por sua vez, analisando-o enquanto inserido na
sociedade, a relação que aí se estabelece é de mútua dependência: ao mesmo tempo em que
a sociedade cria o Direito, a ele se submete. O Direito não tem existência em si mesmo, vige
na sociedade e sua materialidade, seu conteúdo, está na sociedade, nas relações da vida
humana em sociedade. A inexistência do Direito tornaria caótica a sociedade, o Direito sem a
sociedade inexistiria.
Sob essa condução teórica, a oposição norma versus realidade desvanece; o mundo
do ser apartado do mundo do dever ser fenece. É a explicação do fenômeno jurídico a partir
das condições historicamente determinadas pela sociedade, mas não de forma reflexiva. É
consideração do direito posto e do direito pressuposto , forma de pensar dialeticamente o
Direito produzido a partir de múltiplas inter-relações. Nesse sentido, assim leciona GRAU
(1999, p.43/44):
A forma jurídica é imanente à infra-estrutura, como pressuposto interior à sociedade civil, mas a
transcende enquanto posta pelo Estado, como direito positivo. ...O estado põe o direito - direito
que dele emana - que até então era uma relação jurídica interior à sociedade civil. Mas essa
relação jurídica que preexistia como direito pressuposto, quando o estado põe a lei torna-se direito
posto (direito positivo).
Para o autor, o que explica o desenvolvimento histórico do homem é a forma pela qual
ele reproduz suas condições de existência. Nesse sentido, a sociedade estrutura dois níveis. O
primeiro deles, a infra-estrutura que é determinante, constitui a base econômica,
correspondendo às relações: do homem com a natureza no sentido de produzir a própria
existência; dos homens entre si, ou seja: relações entre os proprietários e os não-proprietários;
e, finalmente, entre os proprietários e os objetos de trabalho. O segundo nível compreende a
superestrutura que é constituída pela estrutura jurídica-política, representada pelo Estado e
pelo Direito, como também pela estrutura ideológica representada por formas de consciência
social tais como a religião, a educação etc.
A realidade econômica, isto é, o processo de produção dos bens materiais, é o que
determina a evolução política e jurídica. Esse é o ponto fundamental. Apesar de Marx se
abeberar da filosofia dialética de Hegel, dela se aparta ao enveredar por um materialismo
dialético que tem nos fatores materiais a explicação para a história.
Enquanto o idealismo hegeliano tinha como ponto de partida a Ideia, em Marx se
inverte o movimento: parte-se do desenvolvimento material para as Ideias. O Direito é
fundamentalmente dependente da evolução das forças produtivas; surge a cada etapa, a cada
estágio da sociedade, como consequência. Observando-se a realidade feudal, a forma de
organizar a produção prendia o camponês ao solo numa relação de servidão; a organização
capitalista da fase industrial, para sua lógica de acumulação, prescinde de um servo, a ela está
atrelada uma nova relação: a do assalariamento, posto que o homem está “livre”, à disposição
do capital, na forma que melhor permita sua expansão. O Direito que surge nessa nova etapa
do desenvolvimento capitalista, referencia uma modificação das forças produtivas materiais;
não são, portanto, normas disciplinadoras da relação: servo-senhor feudal, mas assalariado-
capitalista. A essas formas de organizar a produção correspondem aparatos jurídicos
diferentes. O determinismo mecanicista embutido na concepção marxista do Direito repousa
precisamente no rompimento da nova realidade econômica com a velha forma jurídica; a velha
estrutura jurídica é destroçada com o surgimento de uma nova realidade econômica.
RECASENS SICHES (1970, p.450), ao analisar esse “monismo econômico”, a passagem de
uma velha estrutura jurídica para uma nova realidade econômica, assim posiciona:
Novo regime jurídico, que é levado em seu ventre pela nova situação econômica. Mas para que se
possa fazer tal coisa, é mister que se tenha cumprido já nas entranhas da economia a gestação de
um novo regime, posto que não são os homens quem pode criar sistemas jurídicos ao seu talante,
se não que estes podem ser engendrados unicamente pela substância econômica da história. Os
homens, o mais que podem fazer será desempenhar uma função gestadora de um novo regime
surgido no processo da dialética econômica.
Esse reducionismo economicista, mecânico, subjacente ao esquema teórico do
materialismo histórico, reduz o Direito a mero elemento da superestrutura; elemento reflexivo
das forças produtivas em dado momento da evolução histórica da sociedade. Ademais, outra
implicação decorre dessa concepção marxista: ao Direito está reservado o papel de aparato
jurídico para que a classe economicamente mais favorecida exerça sua dominação sobre as
demais. Em suma, dividida a sociedade entre proprietários e não-proprietários, entre classes
sociais antagônicas, a ordem jurídica impõe normas legais para que a classe capitalista exerça
sua dominação sobre a sociedade.
A essa percepção do Direito, STAMLER (1929, p.106) contrapõe uma visão idealista
segundo a qual o jurídico é que condiciona o econômico, visto que seria a pré-condição da
própria vida em sociedade, para esse autor os fatos econômicos:
(...) são fenômenos de massa de uma mesma espécie, dentro de relações juridicamente
organizadas. Formam-se no curso de uma vida social historicamente dada. É verdade que deles
surgem tendências reformadoras do sistema jurídico, que lhes serve de base. Tais tendências,
porém, ao triunfarem, formam, sob o amparo do direito novo, outros fenômenos econômicos da
mesma espécie, resultando daí uma interminável rotação da vida social.
Por outro lado, assevera o autor, o Direito não se cinge a refletir a constituição
econômica: “o legislador, o governador, por intermédio das leis, podem dirigir a evolução social,
acelerar transformações, provocar reformas”. (1955, p.206).
Uma análise semelhante da relação Direito e Economia é feita por GRAU (1999, p.41)
quando discute o Direito posto e o Direito pressuposto. O primeiro correspondendo ao
Direito positivo, o segundo ao que está entranhado nas relações sociais. Afirma o autor: “a
economia condiciona o direito, mas o direito condiciona a economia”. Essa relação de
determinismo recíproco, em tudo dialética, ocorre tendo em vista estar a forma jurídica inserta
na infra-estrutura, isto é, não obstante inexistir ainda um Direito posto pelo Estado, a relação
existente não deixa de ser jurídica, visto que é uma relação onde está presente a vontade das
partes; a partir dela, o Estado põe o Direito. Assim, vai-se do “direito ao direito” (1999, p.44).
Dois aspectos merecem destaque: em primeiro lugar, tem-se que o Direito não é
apenas aquele que emana do Estado, nas relações econômicas já existe um Direito
(pressuposto), muito embora ainda não recepcionado pelo Direito positivo (posto), isso ocorre
em razão de que a própria dinâmica da sociedade faz surgir novas formas dos homens se
relacionarem, em específico, através dos fatos econômicos, que muitas vezes avançam além
do Direito regulado ao ponto de chegar a modificá-lo mediante um novo Direito posto. Mas, e
esse é o segundo aspecto, isso não autoriza pensar numa relação de causalidade, mecânica,
trata-se de uma relação dialética: a Economia ao mesmo tempo que determina o Direito, o
Direito determina a Economia. O Direito, portanto, é instrumento de mudança social.
Tendo em vista o que foi até aqui explanado, não mais se autoriza pensar em um
Direito condicionado à Economia. O que se tem cristalizado é a existência de uma relação de
mútua determinação. As forças econômicas, é reconhecimento válido, assumem uma
importância significativa em sociedades organizadas sob o modelo capitalista de produção,
influência que encaminha modificações frequentes na ordem jurídica estabelecida, desde que
estas não mais respaldem o desenvolvimento daquelas. No entanto uma vez constituída a
nova ordem, tem ela presença ativa, orientadora e, muitas vezes, até inovadora, capaz de
dirigir a evolução social, acelerar transformações e provocar reformas.
Não mais é mais possível pensar num Direito pairando sobre a sociedade, trôpego, ou
ao sabor dos fatos, mas num Direito que tenha presença, que esteja inserido e seja constitutivo
do modo de produção social.
O Direito, portanto, deve ser pensado como “fenômeno social”, com a “qualidade de ser
social”; isto é, estruturado mediante uma integração do fato, do valor e da norma. Mais ainda,
enquanto inserido numa sociedade capitalista, relacionado aos fatos econômicos, não como
mero reflexo ou forma e conteúdo, mas determinado e determinante, numa relação dialética.
É o Direito como expressão social. É Direito inserido na realidade social, nas entranhas
das relações sociais de produção. É Direito que surge e se desenvolve a partir das relações
dos homens entre si; relações econômicas, mas não exclusivamente, e que mesmo não
estando regulado, sendo Direito pressuposto, transcende esse nível e passa a ser Direito posto
pelo Estado.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norbert. O positivismo Jurídico: lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995
EHRLICH, Eugene. Fundamentos da sociologia do direito. Brasília: UNB, 1986
GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1999
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997
LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955
MARX, Karl. Para uma crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção
Os Pensadores)
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1995
RECASENS SICHES, Luís. Tratado general de filosofia del Derecho. México: Editora Porrua,
1970
STAMLER, Rudolf. Economia y Derecho, segun la concepción materialista de la historia: uma
investigación filosófica social. Madrid: Reus, 1929