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Alessandra Bonazza
São Paulo
2006
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Alessandra Bonazza
São Paulo
2006
DEDICATÓRIA
Geraldo Augusto Fernandes, Ana Paula Machado D’Ávila e “Seu” Ivanísio, pelo apoio
incondicional.
The purpose of this study is to analyse and discuss the works of the Brazilian artist,
singer, opera composer, architect and goat breeder Elomar Figueira Mello. The pieces to be
studied in this essay are his Cancioneiro, the epic poem Fantasia leiga para um rio seco
and Auto da Catingueira, which poetic and musical images of the medieval universe are
“re-read” by the inlander Elomar. Using singular language, full of archaims, dialectic
variants and neologisms, his works are found between erudition and popularity, showing
artistic values based on the European aesthetics, and recreated according to Brazilian
northeast models It also reveals revealing the Brazilian diversity, and mainly the inlander
world. The analysis focuses on the “catingueiro” religious imaginary and its connections
with the medieval imaginary, considering some aspects of spirituality, such as pilgrimage
and scatology. Thus, the purpose is to think of the elomarian production as an exponent of
the Brazilian popular culture and participant of the construction of the national identity.
Key-words: Elomar, popular culture, spirituality, imaginary, national identity.
SUMÁRIO
1. Introdução 01
2.2. A obra 15
3.2.O Cancioneiro 29
6. Conclusão 104
7. Discografia 112
8. Bibliografia 113
9. Antologia 125
NOTA PRÉVIA
Três elementos devem ser esclarecidos antes da leitura deste trabalho, pois
certamente influenciaram sua produção.
O primeiro deles diz respeito ao acesso às obras do artista. Houve grande
dificuldade na aquisição das gravações, uma vez que boa parte delas é rara, teve pequena
“tiragem” ou foi produzida por Elomar de forma independente. Apenas cinco álbuns são
comercializados pelas principais lojas, mas, mesmo assim, em pequenas quantidades.
Algumas dessas gravações foram adquiridas por meio da Internet, em um momento de
“sorte”, quando um ouvinte resolveu vendê-las. Outras foram adquiridas em alguns sebos
do centro da cidade de São Paulo.
O segundo refere-se também a outra dificuldade: conseguir entrevistas com o
artista, que se mostra bastante avesso à exposição – não admite filmagens e gravações. Não
possui um canal aberto com o público. Portanto, durante a execução desse trabalho, não foi
possível uma “visita” à sua fazenda no interior de Vitória da Conquista, apesar das
inúmeras tentativas. Como o contato já fora estabelecido com seus familiares e Elomar deu
anuência à recepção, o encontro com o artista pode dar-se mesmo após o término da
Dissertação.
O terceiro aspecto, igualmente limitante, é a escassa produção crítica sobre o
assunto e a dificuldade de acesso ao material existente, do qual muita coisa pertence ao
arquivo pessoal de Elomar. Informações foram obtidas de forma esparsa, por meio de
entrevistas do artista aos principais jornais das cidades, quando de alguma apresentação
pública. Há muitas divergências entre elas.
1. INTRODUÇÃO
1
Entende-se “catingueiro” como aquele que habita a região ocupada pela caatinga – vegetação que ocorre nos
sertões semi-áridos do Nordeste. “São matas secas, abertas, deciduais, que se desenvolvem em clima cuja
estação de chuvas é bem marcada e cujo volume anual de umidade está abaixo de 700 mm”. ROSS, Jurandyr
L. Sanches (Org). Geografia do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. p. 173.
individual; do refinamento barroco às chulas e parcelas. Portanto não existe a
possibilidade de uma leitura que se exima de uma noção de fronteiras atemporais
e universais na enunciação. São obras/ discursos; formas/ conteúdos que
compõem o texto da diversidade no fichário geral da contemporaneidade”. 2
2
NOVAES, Cláudio. “Sertania (en)cantada”. Iararana: Revista de arte, crítica e literatura. Salvador, 2001.
p.58.
3
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil – Era barroca e era neoclássica. São Paulo: Global, 1997. v3.
p. 34.
a língua são arquivos de nacionalidade, e formam o alicerce da sociedade” 4. Desta forma,
Herder propõe que os intelectuais alemães se voltem para as tradições e nelas encontrem o
“substrato de uma autêntica cultura nacional”5.
Renato Ortiz expõe que “toda identidade se define em relação a algo que lhe é
exterior, ela é uma diferença”6. Ele situa a problemática da cultura brasileira no âmbito
político, mostrando que a identidade nacional está ligada à construção do Estado, assim
como ocorreu com os países da Europa, defendendo que não existe uma identidade
autêntica, mas sim uma pluralidade de identidades, construída por diferentes grupos sociais
em diferentes épocas.
Nas teorias raciais do século XIX, produzidas por Sílvio Romero, Euclides da
Cunha e Nina Rodrigues, a questão racial assumiu um contorno racista, ao se apoiar nas
teorias do positivismo de Comte, no darwinismo social e no evolucionismo de Spencer,
pois tais teóricos consideraram o assunto sob um único aspecto – o da evolução histórica
dos povos. Assim, aceitar essas idéias implica em ver o Brasil em um estágio civilizatório
“inferior” em relação aos países europeus, sobretudo porque o país pertence ao Novo
Mundo, ou seja, é jovem e colonizado, não possuindo a tradição do Velho Mundo,
mostrando-se defasado. Os intelectuais da época precisavam resolver o dilema de
compreender a defasagem entre realidade e teoria, “hiato entre intenção e realização”7 –
necessidade de modernização, de evolução e inexistência de condições materiais para isso,
“o que se consubstancia na construção de uma identidade nacional”8. Buscam respostas
para a questão do atraso do país nos conceitos de Raça e Meio, traduzindo dois elementos
imprescindíveis para a construção de uma identidade brasileira: o nacional e o popular.
O Brasil é visto como a fusão de três raças – o branco, o negro e o índio. No
entanto, à raça branca é atribuída uma posição de superioridade, enquanto que “o negro e o
índio se apresentam como entraves ao processo civilizatório”9, segundo os estudos de Nina
Rodrigues, pois tais raças se mostram incapazes de assimilar os elementos da civilização
européia. A mestiçagem “moral e étnica” possibilitou a aclimatação dos europeus nos
4
ORTIZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. São Paulo: Editora Olho d’Água, s.d. p.22.
5
Idem, ibidem, p.22.
6
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 7
7
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense,
2001, p.29.
8
Op. cit. ORTIZ, 2003. p.15.
9
Op. cit. ORTIZ, 2003. p.20.
trópicos. O mestiço encerraria em si os “defeitos e as taras transmitidos pela herança
biológica”. Ortiz afirma que, nos estudos sócio-biológicos de Manuel Bonfim, as relações
entre colonizador e colonizado eram vistas como semelhantes às relações entre parasita e
parasitado, considerando-se o Brasil herdeiro de duas características funestas: “o
conservantismo” – apego às tradições e rechaçamento de mudanças sociais; e a falta de
“espírito de observação” – incapacidade de apreender a própria realidade. Assim, a
inferioridade racial explicaria o atraso brasileiro e a idéia de mestiçagem apontaria para a
formação de uma possível unidade nacional.
Essas teorias raciais ficaram obsoletas a partir das primeiras décadas do século XX,
em virtude do processo de urbanização, industrialização e o aparecimento do proletariado.
Caio Prado Jr e Sérgio Buarque são considerados “fundadores” de uma nova linha, gestada
dentro de universidade, para entender a realidade social. Ocorre mudança do conceito de
raça em relação ao de cultura, ou seja, há um distanciamento entre o biológico e o social.
Ainda conforme Ortiz, o mito das três raças torna-se plausível – “o que era mestiço torna-
se nacional”10.
Com a Revolução de 30 e o surgimento do Estado Novo, ocorre transformação na
estrutura econômica e, conseqüentemente, surge a “necessidade de se pensar a identidade
de um Estado que se moderniza”11. Houve expansão de instituições culturais, como o
Serviço Nacional de Teatro e cursos de ensino superior. O ano de 1964 foi um marco na
história brasileira, pois houve internacionalização de capital, concentração de renda,
crescimento da classe média e do parque industrial, criação de um mercado interno que se
contrapõe ao exportador, desenvolvimento desigual das regiões e concentração da
população em grandes centros urbanos. Tudo isso gerou, paralelamente, segundo Ortiz, um
mercado simbólico de bens – a área cultural. Nesse momento, Elomar, ao término de seu
curso de graduação, preparava-se para voltar à sua terra natal e sistematizar sua produção
artística.
Assim, novas teorias foram surgindo e acabaram por mudar o foco de teorização das
questões culturais brasileiras. Em 1966, Castelo Branco cria o CFC – Conselho Federal de
Cultura, cuja ideologia é marcada pelo Brasil mestiço. A mestiçagem assume duplo sentido
10
Op. cit. ORTIZ, 2003. p.41.
11
Op. cit. ORTIZ, 2001. p. 130.
– questão racial (mistura de três raças) e questão da heterogeneidade (diversidade
brasileira). Logo, a identidade brasileira é definida como “unidade na diversidade”. Dessa
forma, para Ortiz, a integração e a interpenetração de esferas, erudito/ popular, econômico/
cultural, escrito/ oral, ocorrida ao longo do século XX, contribuiu de maneira muito
positiva para o desenvolvimento dos bens culturais brasileiros.12
Nesse sentido, as obras de Elomar são elucidativas do processo histórico de
construção da identidade discutido por Ortiz, na medida em que nelas percebem-se
elementos que constituem uma “unidade” na diversidade brasileira, quando o artista, por
meio do trânsito entre variadas esferas (erudito/ popular; escrito/ oral etc.), expõe aspectos
sócio-político-econômico-culturais de uma determinada região, no caso o nordeste
brasileiro.
O trabalho foi organizado do seguinte modo: no Capítulo I, “Elomar Figueira Mello:
um poeta cantador”, há a exposição de dados relevantes a respeito do artista – sua
biografia, suas concepções de vida, de arte, do Brasil, de religião, sua preocupação com as
manifestações culturais, com a língua portuguesa e suas expectativas. No segundo item,
faz-se uma descrição de suas principais produções, com as fontes, os principais temas e os
gêneros.
No Capítulo II – “Espiritualidade elomariana”, estuda-se essa espiritualidade, por
meio da análise crítica dos textos poético-musicais, com vistas ao imaginário cristão de
seus personagens, verificando se esse artista recupera, mantém, continua, rompe ou inova
os elementos que compuseram o ideário cristão da Idade Média ocidental, repensando a
cultura brasileira à luz da européia. Foram enfocados os sub-temas “Peregrinação”,
“Escatologia” e “Além”. No item 1, analisam-se quinze cantigas que compõem o
Cancioneiro, com tema preponderante do religioso, que perpassa praticamente toda a obra
do artista. 13 No item 2, há o estudo do poema épico Fantasia leiga para um rio seco. Neste
capítulo, são delineadas as manifestações de uma espiritualidade muito próxima das
práticas medievais, no que concerne à religiosidade popular.
No Capítulo III, “Caminhos da cultura brasileira”, há a análise de uma extensa
ópera de Elomar: Auto da Catingueira. Em virtude dessa extensão, encontra-se, na
12
Op. cit. ORTIZ, 2001. p.210
13
Essas cantigas foram organizadas na Antologia, apresentada ao final da Dissertação.
Antologia, apenas um excerto, o 1° Canto, escolhido por tratar da protagonista, Dassanta.
Houve o cuidado de descrever e analisar, por meio das ações dos personagens, os valores,
as práticas, os mitos, os elementos sócio-histórico-culturais do Brasil subjacentes às suas
atitudes e falas.
O capítulo IV discute brevemente os processos lingüísticos adotados e criados por
Elomar, devido ao fato de que, de certa forma, para leitor e ouvintes principiantes na arte
elomariana, tais processos causam um entrave na compreensão, pois há a necessidade,
inclusive de uma “educação” auditiva para se penetrar nesse universo.
É necessário salientar que essa pesquisa não faz estudo da Música, ainda que
Elomar seja um cantador. Considera-se o texto verbal, denominado confortavelmente de
“poesia”, pois:
Nos versos acima, “sussarana” é a onça que levou, na semana anterior, um bode
reprodutor, “seda branca”. Com isso, o poeta cantador já avista no céu a lua nova,
comparada à unha. “Prissunha” é a onça que tem uma unha a mais. Outro exemplo que
elucida construções que associam som, imagem e palavra é a cantiga “História de
14
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. (et al.). Literatura e música. São Paulo: Editora Senac SP e Instituto Itaú
Cultural, 2003. p.53
15
“Arrumação”. In: MELLO, Elomar Figueira. Na quadrada das águas perdidas. (CD). Manaus: Sonopress
– Rimo da Amazônia Indústria e Comércio Fonográfico Ltda., selo Rio do Gavião, 1978.
16
vaqueiros” , na qual o poeta cantador relembra histórias de vários companheiros de
vaquejada, no sentido de homenageá-los. O trecho escolhido refere-se à morte de Bragadá
que, por um momento de distração, olhando para sua amada, é ferido pelo boi e vê a
mancha de sangue de seu ventre refletida na pupila da “morena”:
16
MELLO, Elomar Figueira Cartas catingueiras. (CD). Manaus: Sonopress – Rimo da Amazônia indústria e
Comércio Fonográfico Ltda., selo Rio do Gavião, 1983.
17
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1998. p. 11.
transmitidos – pela voz, “da qual a poesia constitui o lugar eminente”18, sem, contudo,
trabalhar os gêneros, acordes, ou seja, os aspectos musicais.
Após a explanação das páginas anteriores, observa-se que estudar Elomar Figueira
Mello é uma forma de valorizar e divulgar uma obra que utiliza, de modo singular, o
mundo do sertão, do catingueiro, do nordestino, elementos arraigados na cultura do Brasil,
para recriar o imaginário cristão da Idade Média ocidental. Também é forma de trazê-la
para o meio acadêmico, apesar de seus textos não comporem, necessariamente, um cânone
literário. Indubitavelmente são valiosos, consolidados e raros, uma vez que o artista é,
possivelmente, o único a revelar o universo sertanejo por meio de óperas19, fazendo uma
obra erudita, poético-musical, com elementos populares. Suas composições expressam
artisticamente a cultura e os valores que permeiam um universo arcaico20, constituído de
práticas espirituais judaico-cristãs, de histórias tradicionais de reis, princesas e cavaleiros,
do modo de vida singular do sertanejo, entre outros.
Pretende-se, ao término da Dissertação, responder às seguintes questões: penetrar
no universo elomariano, por meio da análise da espiritualidade apresentada em seus textos,
permite conhecer o imaginário do sertanejo nordestino? Sua obra representa a identidade
cultural nos sertões, essencial para se pensar a nação brasileira? Do ponto de vista cultural,
em que espaço está inserido Elomar Figueira Mello?
18
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. Trad. Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.140
19
Uma prática artística dita erudita e pela qual o artista nutre grande apreço e estabelece vínculo com a
religiosidade. Segundo ele, faz ópera, “porque a ópera dignifica o sertão, o sertanejo. Por que só o europeu
pode dignificar sua música, sua história e seu povo por meio da ópera, que é um dos gêneros mais completos
que existem? Na ópera, você tem dança, música e teatro. É esse o melhor gênero para cantar a história do
sertão, que não é bufa, é épica, é trágica”. Entrevista de Elomar à CHAGAS, Paula. “Elomar deixa a Bahia
para mostrar ao Brasil a sua ópera do sertão”. Jornal da Tarde, s.d.
20
Há também, em paralelo, as composições de Antônio Nóbrega, violinista, compositor e menestrel. Foi
membro do Quinteto Armorial de Ariano Suassuna. Esse assunto é discutido ao longo da Dissertação.
2. Capítulo I - Elomar Figueira Mello: um poeta cantador
“Não faço shows, faço concertos e cantorias”.22 “A minha fazenda, que se chama
Duas Passagens, fica no meio do sertão baiano, bem perto do céu. Lá crio bodes, cabras e
carneiros. O belo não se inventa, não se pesquisa, o belo vem da alma, do criador, de
Deus”.23 “Eu não sou religioso. Sou um servo de Cristo, dos piores; por uma questão de
cultura, de tradição, sou luterano, protestante”.24 “O sertão é auto-suficiente, não pede nada
para ninguém”. “Há no sertão um enorme manancial cultural que deve ser cantado, tocado e
escrito. Muitos como João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa e José Lins do Rego
já fizeram isso na literatura. Eu sigo essa tradição com minha música e minhas óperas”.25
21
Ariano Suassuna citando Thomas Mann. In: SANTOS, Idelette M.F dos. Em demanda da poética popular –
Ariano Suassuna e o movimento Armorial. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. p.287.
22
Elomar em entrevista a Mônica LOUREIRO, Cliquemusic, 08/04/03.
23
Entrevista a Paula CHAGAS – “Elomar deixa a Bahia para mostrar ao Brasil a sua ópera do sertão”. Jornal
da Tarde, s.d.
24
Entrevista a Mauro DIAS, “Elomar povoa canções com deuses e maldições”. O Estado de São Paulo,
21/06/97.
25
Idem, ibidem.
26
Encontrar-se-ão, no quarto capítulo, discussões a respeito dos processos lingüísticos adotados por Elomar.
se ao emprego de palavras estrangeiras, apenas inglesas, no léxico do Brasil.27. Segundo
Simone Guerreiro:
Acredita-se também que esta seja a opinião de Elomar Figueira Mello, confirmada
por sua fala, citada no primeiro parágrafo: ”O sertão é auto-suficiente, não pede nada para
ninguém”. Na verdade, Elomar demonstra somente resistência à cultura e aos valores norte-
americanos, impostos por motivos político-econômicos. Reconhece que o Brasil se
27
“Gosto de citações em francês, espanhol, latim e grego. Mas língua inglesa é abominável por uma questão
cultural. Sua proposta imperialista é asquerosa. A Inglaterra se acha porreta, se considerava a rainha dos
mares. De uma hora para outra, seu filho bastardo tomou o poder” Elomar em entrevista. Op. cit.
LOUREIRO, 2003.
28
GUERREIRO, Simone da Silva. Elomar Figueira Mello e a arte sertaneza. Salvador, 2001. Dissertação
(Mestrado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia. p.20.
29
Op. cit. Santos, 1999. P. 272.
constitui em um mosaico cultural, do qual fazem parte inúmeras outras culturas de outros
povos; condena o ufanismo praticado por alguns intelectuais:
30
Entrevista de Elomar a RIBEIRO, M. J. “Elomar: um criador de bodes no teste da cabra-cega. Revista Íris.
São Paulo, outubro de 1982, nº353. p.76-77.
31
“Eu não gosto de cidade grande, não gosto de muita gente junta, gosto mesmo é de ficar no meio do mato,
de lidar com a terra, com os bichos e de fazer a minha música. Agora, é claro que me utilizo dos confortos da
luz, da descarga, como todo mundo. (...) Quando tenho de viajar para fazer concertos, eu só fico em flat para
poder cozinhar eu mesmo minhas comidas. Trago carne de bode, meus biscoitos de polvilho, minha farinha.”
Op. cit. CHAGAS, s.d.
escritores que tiveram uma infância rural e “procuraram em sua obra inventar e recriar
terras e reinos imaginários”32. Segundo Idelette, os escritores armoriais são todos
“fazendeiros do ar”:
32
Op. cit. SANTOS, 1999. p.97.
33
Idem, ibidem, p.97-98.
entendendo a sua lei como uma lei seca e severa, como o deus do Velho
Testamento. Faz a leitura da palavra bíblica como investigador e pensador, vendo
nela a expressão de uma verdade superior, muitas vezes contrária à verdade
sociológica, mas se colocando oposto ao fanatismo isento de uma postura
pensante, assumindo o papel de um intelectual cristão, cuja crença, como ele
afirma, é intelectiva”.34
Elomar demonstra sua erudição não só por meio de leitura de livros sagrados, mas
também de clássicos da literatura inglesa, francesa, espanhola, portuguesa, grega, latina,
aos quais teve acesso ao ingressar no colégio. Diz ele: “sempre fui tarado por essas belezas.
Então, aos 20 anos eu já tinha lido o que interessa, o essencial”35. Também estudou música
clássica, a partir de 1954, no Conservatório da Bahia, em Salvador, e em 1960, iniciou o
curso de arquitetura, formando-se em 1964. Desenvolveu alguns trabalhos arquitetônicos,
como o templo da 2ª Igreja Batista, em Vitória da Conquista. Assim, é um artista culto que
recorre a objetos culturais populares, adotando-os como “material”, recriando-os e
transformando-os segundo sua inventividade lingüística, poética e musical. Pode-se afirmar
que, apesar de o artista não ter participado do Movimento Armorial36, suas concepções
sobre Arte estão muito próximas às idéias defendidas por Ariano Suassuna: “O Movimento
Armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa
cultura”37.
34
Op. cit. GUERREIRO, 2001. p. 30.
35
MELO, Rita Maria Costa. Elomar Figueira Mello: uma poética do sertão baiano. Recife, 1989.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Pernambuco. p. 51.
36
Movimento artístico, fundado por Ariano Suassuana em 1970, no Recife. Iniciou-se com um concerto
realizado pela Orquestra Armorial e uma exposição de artes plásticas. No ano seguinte, o Movimento se
firmou, apresentou grande número de publicações, concertos, exposições. Reuniu diversos artistas, de
músicos a ceramistas, e tinha como dogma a originalidade da criação, acima da teoria. Ver SANTOS, 1999.
37
Cadernos de Literatura Brasileira – Ariano Suassuna. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000, nº 10,
p.32.
Elomar, na qualidade de importante músico brasileiro38, pode ser definido como
cantador, trovador e menestrel, pois mantém as imagens do universo medieval presentes no
sertão por meio de uma linguagem clássica, mesclada ao dialeto catingueiro. Observa-se a
presença das “literaturas da voz”, assunto explorado por Paul Zumthor39, que se
perpetuaram pela memória e afloraram nos textos, demonstrando valores artísticos
baseados na estética européia, recriados por Elomar segundo modelos nordestinos. Sua obra
transita entre o erudito e o popular, revelando a diversidade brasileira e, principalmente, o
mundo do sertanejo:
Não é conhecido do grande público porque não faz concessões a redes de televisão
nem tampouco a gravadoras. Segundo ele, “essas sociedades são o poder autoritário,
despótico e opressor dos direitos autorais”41. Tem a perspectiva de fazer com que as
pessoas percebam a riqueza cultural brasileira e isso, segundo ele, só se dá pela educação.
38
Sem dúvida não conhecido por boa parte dos brasileiros, mas reconhecido como artista por vários
estudiosos, em trabalhos como dissertações, teses, artigos, monografia e citações em enciclopédias musicais.
O primeiro trabalho acadêmico é uma dissertação de Mestrado, defendida na Universidade Federal de
Pernambuco, em 1989, por Rita Maria Costa Melo, que tem como objetivo desvendar os mitos fundadores da
cultura por meio da produção de Elomar, canções e óperas gravadas até 1986. Nessa pesquisa, a estudiosa faz
análise antropológica, baseada nas teorias de Gilbert Durand. O segundo, também uma dissertação de
Mestrado, defendida na Universidade Federal da Bahia, em 1998, por Cláudio Novaes. A pesquisa discute a
migração e a identidade sertaneja a partir da cooptação de três artes diferentes – literatura, cinema e música,
propondo intertextualidades entre Os sertões, de Euclides da Cunha, Deus e o diabo na terra do sol, de
Glauber Rocha, e as canções gravadas no disco Na quadrada das águas perdidas, de Elomar. Simone
Guerreiro, em 2001, também da Universidade Federal da Bahia, defendeu sua dissertação de Mestrado sobre
Elomar. O trabalho aborda temas como arte, tecnologia, mídia, sociedade arcaica e global. Seu objetivo é
apreender criticamente o discurso elomariano. Há outras produções de Darcília Simões a respeito da
linguagem utilizada pelo artista (ver bibliografia a respeito do autor). Atente-se ao fato de não haver citações
a Elomar Figueira Mello em um estudo realizado por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, trabalho que
faz retrospectiva crítica dos 85 anos de música no Brasil. SEVERIANO, J. e MELLO, Z. H de. A canção no
tempo – 85 anos de músicas brasileiras. São Paulo: Editora 34, 1998. 2v.
39
Op. cit. ZUMTHOR, 2001.
40
VELLOSO. J. “Elomar – cantor e compositor”. In: THOMPSON, Mario Luiz. Bem-te-vi: música popular
brasileira: 70, 80, 90, a MPB em três décadas. São Paulo: Imprensa Oficial, 2001. 2v. p.205.
41
Entrevista a SANCHES, Pedro. “Elomar se aproxima do erudito e do desencanto”. Folha de São Paulo, s.d.
Tem três filhos, todos “estudados”, todos envolvidos com música, fatos de que se orgulha
muito – Rosa do Prado estudou comunicação; João Ernesto é médico e João Omar é
regente. Mantém aceso dentro de si um desejo:
“O que quero legar para eles e para o mundo com meu trabalho é a
possibilidade de construirmos uma realidade específica, nossa. Que eles tenham
orgulho de serem do sertão, do Brasil. Minha música quer mostrar um povo que é
forte, que é lutador, que constrói obras maravilhosas”.42
2.2. A obra
42
Op. cit. CHAGAS, s.d.
43
São sextilhas de decassílabos, muito próximas ao martelo (cantado nos desafios). A singularidade
elomariana fez dessa construção uma sinfonia.
bastante raros. Conta-se, hoje, com algumas produções gravadas em CD44: Das barrancas
do Rio Gavião (1973) – primeira produção com 12 canções, a qual o inseriu no
“movimento regionalista” da MPB, comprometido com o imaginário do sertão. Maria
Amélia G. de Alencar o considera precursor:
Outras produções gravadas são: Na quadrada das águas perdidas (1978), Parcela
malunga (1980), Fantasia leiga para um rio seco (1981), ConSertão (1982), Cartas
catingueiras (1983), Auto da catingueira (1984), Cantoria 1 e 2 (1984), Conserto sertanez
(sic) (1985), Dos confins do sertão (1986) – obra gravada na Alemanha – , Elomar em
concerto (1989), Árias sertânicas (1982), Cantoria 3: canto e solo (1995). Em LP, conta-se
com o álbum Sertania (1985), trilha composta para o filme Boi Aruá.
Há menção em uma entrevista46 de uma produção, não gravada, intitulada
Nordestilhas, que consiste “em cânticos equatoriais, litanias de cegos andarilhos sobre ecos
de coros de cavaleiros malucos”. Há, ainda, relato de algumas antífonas – “Loas para um
Justo”, que Elomar fizera para seu filho, “Balada do filho pródigo”, Incelensa ad
moribundum solem. Ele relata que:
44
Os dados completos encontram-se na Discografia.
45
ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. “Cultura e identidade nos sertões do Brasil: representações na música
popular. Actas del III Congresso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estúdio de la Música
Popular, Santa Fé de Bogotá, Colômbia, agosto de 2000. p.9.
46
SOUZA, Jô. “Nordestilhas – cantos equatoriais por renitentes cavaleiros do setentrião. Jornal A Tarde.
Salvador, Caderno 2, 04/10/94.
47
Op. cit. DIAS, 1997.
Quanto às óperas, nem todas estão concluídas. A primeira delas, já completa, é o
Auto da catingueira, que relata a história de Dassanta, do nascimento à sua morte (ver
Capítulo III). Quanto à segunda, Elomar divide-a em 5 óperas, dando o nome geral de
Bespas esponsais sertanas, ou seja, vésperas de casamento no sertão. Todas elas
apresentam teor trágico, passam-se no mês de junho, mês de casamento, mas as
personagens não se casarão por motivos diversos. São elas: A carta, A casa das bonecas, O
peão mansador, Faviela e Os poetas são loucos, mas conversam com Deus.
Em A carta, já concluída48, há os seguintes personagens – Maria, uma moça do
sertão, Diudurico, seu noivo, Tuzinha, prima da moça, Pleibói (sic), filho do dono da
fábrica de tecidos, Gerente da fábrica e sua filha, Professora, Mãe (de Maria), coro de
moças, rapazes, peões e peonas (sic). O enredo desenvolve-se em 4 atos:
Cena (ato) I – Na véspera de São João, em um terreiro fronteiro a uma pequena casa
branca de porta e janelas azuis, em volta da fogueira, ao anoitecer, Maria, Diudurico,
parentes e amigos conversam, comem, bebem e se divertem. Moças e rapazes, em grupos,
brincam de roda, em trajes humildes, alternando estrofes. Chegando de São Paulo,
luxuosamente vestida na última moda, entra Tuzinha e compara a pobreza do lugar com o
esplendor da cidade; Maria lembra a antiga simplicidade da prima e esta lhe pergunta sobre
o casamento. Ao saber dos noivos que a pobreza os impede de casar, Tuzinha, assumindo o
papel de salvadora, sem o conhecimento de Diudurico, propõe que Maria fuja para São
Paulo. Maria, vendo ser essa a única saída, chora. Acabada a festa, Maria, sozinha em um
canto do terreiro, lastima ter de deixar a “Patra vea du Sertão”, em um dos momentos mais
líricos do texto.
Cena (ato) II – Numa sala de máquinas de uma antiga fábrica de tecidos, cinco
peonas e dois peões solistas são acompanhados por um coro complementar. A primeira
peona informa aos demais que o salário vai aumentar; secundados pelo estrépito das
máquinas, todos cantam e fazem planos: repor o que o ladrão levou, inscrever-se no judô,
musculação e “jéz” (sic – grafia fonética da palavra inglesa jazz) etc. O primeiro peão
informa da nova funcionária que virá trabalhar na fábrica e chega Maria. Todos se admiram
de sua beleza e seu toque ingênuo faz com que os demais se lembrem de seus sertões: um
48
Entre 8 a 24/10/04, foi apresentada no CCBB – Centro Cultural do Banco do Brasil, em Brasília, sob a
regência de Henrique Morelenbaum e direção de André Paes Leme.
fala de um sonho da noite anterior, no qual se transportava ao Sertão; outro, de uma mulher
que rompeu a promessa de casamento. Maria fala de sua saudade e do peito ferido por ter
deixado seus amados sem aviso. As máquinas, que haviam diminuído o ritmo para Maria
cantar, voltam ao estrépito normal e o coro dos peões fecha a cena.
Cena (ato) III – A Novilha e o Jaguar - Uma grande ala num apartamento luxuoso.
Móveis, mesas postas, com pratos, talheres, bebidas. O cenário de uma grande festa. O filho
do dono da fábrica, o pleibói (sic), termina os preparativos, dando os últimos retoques no
cabelo, mirando-se num espelho de parede, arrumando a vestimenta, ajeitando os óculos.
Aguardando o gerente, a filha e Maria. Enquanto aguarda, o pleibói canta a “Ária do
Apartamento”, na qual esboça alguma indecisão, ansiedade, resquícios de remorso, ou seja,
uma crise de identidade. Abre-se a porta e entram o gerente, a filha e Maria. Após alguns
minutos, o gerente e a filha desaparecem. Maria pergunta pelos demais convidados e o
pleibói lhe responde que eles chegarão mais tarde. A conversa continua – Maria cada vez
mais desconfiada – e o patrão arma o bote: tenta seduzi-la, mas, a cada frase, Maria
responde com um “Não senhor”; rejeita-o, ele tenta estuprá-la, Maria puxa uma faca e
encosta-lhe no peito dizendo “Sim senhor!” várias vezes. O patrão finge dar-se por vencido,
mas insiste para que ela beba uma taça de vinho. Maria, a princípio, recusa, mas, ante a
insistência do patrão, querendo livrar-se logo, aceita. O vinho fora narcotizado e Maria,
acreditando estar diante de Diudurico, entrega-se ao pleibói.
Após esse episódio, como será lido na carta, Maria entrega-se ao vício e à
prostituição e, degradada, perdida a honra, culturalmente morta, não volta ao Sertão.
Cena (ato) IV – Leitura da carta – No mesmo cenário da cena inicial, anos depois,
mas na mesma data da partida de Maria, todos estão aguardando sua volta, enquanto
festejam a véspera de São João. A noite avança e nem sinal de Maria. De repente, o coro
masculino se alvoroça com alguém que se aproxima de mala na mão. Não é Maria, é uma
mensageira trazendo uma carta de Maria para a mãe. A mãe manda chamar uma professora
que inicia a leitura da carta – este é o clímax e a cena final da ópera. Maria conta suas
vicissitudes, narra sua desgraça e despede-se: 49
“ Adeus mamãe
49
Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 55.
estou morta
para sempre
e nunca mais”50
50
“A leitura” (faixa 7).
51
Encarte de Elomar Figueira MELLO, CD Árias Sertânicas, 1992.
52
“A leitura” (faixa 7).
natural, que estará pronta quando ele regressar.53
Na cidade grande, trabalha na construção civil por quatro anos, economizando para
voltar a seu cariri. Completado o tempo, o protagonista mune-se do dinheiro, economizado
a custo, e de presentes: um facão, um rosário com um par de brincos, um violão e o vestido
da noiva; pega um ônibus “de linha” e inicia a volta. Numa das paradas obrigatórias, desce
para tomar café, sempre agarrado ao seu tesouro: todo o dinheiro pelo qual alugara a alma.
Entretanto, malandros perversos colocam narcótico na bebida do Peão; quando acorda,
enlouquece ao descobrir que todo seu dinheiro fora roubado. Dias depois, perambulando
pela cidade, é localizado pelos empregados da empresa de ônibus, que o recambiam ao
rincão natal.
O Peão não reconhece mais parentes, Noiva e amigos; os pais choram o triste
estado do filho que retorna. Na cena seguinte, um diálogo entre a Noiva, o vaqueiro (louco)
e a Boneca, mostra o estado de confusão mental dele, que não distingue, na verdade, a
boneca da amada.54
Novamente, há a evidência de que personagens “nascidos” no sertão não saem
ilesos ao tomarem contato com a vida citadina. Muitos deles alimentam o sonho de
migrarem para as cidades, em busca de bens matérias, geralmente trabalhando na
construção civil, o que possibilitaria a melhora de vida no sertão, mas muitos são
explorados, ficam doentes ou loucos, e outros morrem atropelados, como o vaqueiro
Remundo na cantiga “Chula no terreiro”, ou perdem a memória.
Em Faviela, ópera que faz parte de Bespas esponsais, na qual também não ocorrerá
o sonhado casamento, tem-se um ato e três cenas, com os personagens Aparício (um
vaqueiro), Madrinha, Pai, Mãe, Caçula, Primas, figurantes (comadres ajudantes na
cozinha).
No primeiro ato, as primas e a Caçula conversam na cozinha durante a azáfama dos
preparativos de festa, a “Bespa” – véspera de São João; falam de um parente que foi para o
Paraná. Aparício ronda pela cozinha, o Pai pergunta-lhe da noiva, cede-lhe uma boa égua e
o manda buscar Faviela.
53
Esse enredo lembra uma passagem de Odisséia, de Homero, quando Penélope, ardilosamente, tece uma
mortalha para Ulisses, desmanchando-a todos os dias, com intuito de enganar aos pretendentes, retardando a
possibilidade de casar-se com outro, já que o marido demora demasiadamente para retornar da guerra.
54
Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 53.
No segundo ato, Aparício, montado na égua Catarina, atravessa a Caatinga e expõe
seus anseios, seu amor por Faviela, suas esperanças e temores.
No terceiro e último ato, Aparício chega à casa da Madrinha enlutada, com “o olhar
petrificado no horizonte”. Segundo o costume, toma a bênção, lava o rosto e as mãos e
pergunta por Faviela. A Madrinha conta-lhe do misterioso homem que ali tivera pousada,
na lua minguante anterior, e que consigo levou Faviela. Aparício chora sua dor. 55 Portanto,
esta é mais ópera que está ligada às demais pelo fio temático – casamento que não será
realizado em virtude de acontecimentos trágicos.
Não foi possível obter, com confiabilidade, detalhes a respeito das outras duas
óperas que compõem a pentalogia – O peão mansador e Os poetas são loucos mas
conversam com Deus. Sabe-se da existência de outras em andamento, como De nossas
vidas vaporosas, Os pobres, Os miseráveis, Os desvalidos, Os lanceiros negros e D. Pedro
II.
A sétima ópera, pela ordem de Elomar, é intitulada O retirante – (Prólogo): Um
pequeno fazendeiro do sertão penhora a um banco sua fazenda e todos os seus bens, como
garantia de um empréstimo para beneficiamento da propriedade e da lavoura. As chuvas
não vêm. A casa bancária envia-lhe os avisos de vencimento de prestações e juros. A cada
aviso que recebe, mais aumentam os temores de perder a terra ou de ir para a prisão. Os
dias vão passando; com a lavoura perdida, o banco penhora os bens do fazendeiro.
Numa noite, em seu quarto, na esperança de sentir o vento Norte anunciador da
chuva, recebe uma lufada de ar quente. Esperançoso, fala: “eis que chega o vento Norte” e,
do fundo, uma voz responde: “Não! É o Anjo da Morte”. Após o ocorrido, o fazendeiro
ouve o canto prolongado e firme do sapo cururu na barranca do Rio, donde conclui que a
chuva estava próxima. Levanta-se, convidando todos a se alegrarem, preparando as terras
para o plantio, pois assim poderiam saldar as dívidas. A chuva prometia. Atravessa a sala
escura e depara novamente com o Anjo da Morte, o qual toma pelo boi encantado, o boi
Aruá; decide pegá-lo com vara de ferrão. Persegue a “visagem”, mas não consegue
capturá-la; ela desvanece ao amanhecer.
Ouve-se uma buzina, é o dia da execução da penhora. Chega uma comitiva enviada
pelo banco para a leitura da “Carta de Arrematação”, na qual dão a saber ao fazendeiro que
55
Idem, ibidem. p. 56.
seus bens foram arrematados em leilão.
Ao término da leitura da Carta, na sala repleta de mulheres, crianças e vaqueiros,
estão todos tristes, desapontados. Um jovem vaqueiro, ainda adolescente, adianta-se em
direção ao Porteiro dos Auditórios (encarregado dos ritos jurídicos), reclamando da grande
injustiça. Um policial trespassa-o a baioneta. Ao cair morto, vem o grande clamor dos
presentes, que guardam o corpo pelo resto do dia e pela noite adentro, em fúnebre ritual
roçaliano.56
Nessa ópera, o autor chama a atenção para uma situação comum, vivenciada pelos
pequenos proprietários de terra, criadores de gado miúdo. Com a falta de chuva, que deixa a
terra seca, os sertanejos não conseguem plantar e nem alimentar o gado, fontes de sustento.
Recorrem aos bancos, à procura de financiamento, mas não têm condições de saldar a
dívida, pois não têm trabalho. Dessa forma, o exílio é favorecido, porque não possuindo
mais suas terras, migram para outras regiões em busca de serviço.
A partir da rápida descrição destas óperas57, percebe-se a constante preocupação do
artista em retratar problemas que afetam o sertanejo: a seca, a falta de recursos financeiros,
a execução de bens, as alternativas, que só geram outros problemas, como a migração para
o Sul e o empréstimo em bancos, as mulheres exploradas ou enganadas. Dessa forma,
Elomar dá um tom sociológico às composições, mas com o sentido de expor a vida do
catingueiro, como mesmo afirma o próprio artista:
“Minha música não tem cores sociais, tem cores sociológicas. (...)
Social, pelo que eu entendo, tem de estar ligado, tem de ter uma conotação
política. E minha música não tem nada a ver com política, nem pela direita, nem
pela esquerda, nem para cima, nem para baixo. Minha música fala do homem
como um ser, como uma criatura de Deus. Ela não tem nada a ver com o homem
como uma deformação, uma construção política. É uma criatura de Deus, que
veio à Terra e está aqui travando a luta da vida, mas sempre com esperança de
vencer”.58
56
Op. cit. SIMÕES, 2006. p.51
57
Paráfrases cuja finalidade é apresentar ao leitor uma obra de difícil acesso.
58
Entrevista a VAL, Clarice. “Elomar fala do ‘Cenas brasileiras’, dos seus projetos, da sua obra”. 1998.
disponível em http://www.facom.ufba.br/elomar. Acessado em 17/01/2006.
Existem também os roteiros cinematográficos. Entre os já concluídos está
Sertanílias:
59
Op. cit. LOUREIRO, 2003.
60
Op. cit. LOUREIRO, 2003.
61
MELLO, Elomar Figueira. Na mira do meu fuzil. Semanário Estado do Sertão, 05 de julho de 2001. O
enigma da década defunta (17/08/2001) e A ira de Alá (12/10/2001). Todos disponíveis em
http://www.elomar.mus.br
62
Op. cit. GUERREIO, 2001. P. 58-76.
propriedade por todos os gêneros praticados. Lamenta-se que existam muitas outras
produções “guardadas”, que não vêm a público por razões diversas, principalmente a
financeira. O artista também lamenta, mas conforma-se:
(...) O que tem de verso meu sendo comido por rato e cupim lá em casa...
Outro dia abri uma sala lá na Casa dos Carneiros e vi um rato saindo com um
pedaço de um poema na boca. Dei um chute nele e disse: ‘rato não come poema
meu’! 63
“(...) No mais, me conformo em partiturá-las, não só as óperas como as
antífonas, os galopes estradeiros e os concertos, guardando-os num velho baú, em
‘campa antiga’, monobloco passageiro do tempo até estação futura, bem vinda
quadra remota onde lhe aguarda uma geração que por justiça e por certo haverá
de ouvir e amar minha música, tão fora de moda nestes dias. Ó tempora! Ó
mores!64
63
Op. cit. LOUREIRO, 2003.
64
Op. cit. SOUZA, 1994.
3. Capítulo II – Espiritualidade elomariana
Portanto, o conceito diz respeito ao aspecto religioso da vida interior dos homens,
visando ao estabelecimento das relações pessoais com Deus, por meio de práticas
consideradas sagradas e valorizadas por uma determinada sociedade, ou seja, “uma
unidade dinâmica do conteúdo de uma fé e da maneira pela qual é vivida por homens
historicamente determinados”. No caso desta Dissertação, são considerados os aspectos
65
CASCUDO, Luis da Câmara. Superstição no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1985. p. 305.
66
As cantigas que serão analisadas encontram-se na Antologia ao final da Dissertação.
67
VAUCHEZ, André. A espiritualidade da Idade Média Ocidental. Lisboa: Estampa, 1995. p. 12.
ligados à religiosidade cristã, expressos pelo catingueiro elomariano, tais como ecos do
discurso bíblico, o que demonstra a valorização de alguns fundamentos judaico-cristãos e a
constante preocupação em manter, de várias formas, relações com os ensinamentos divinos,
pois os gestos, a maneira de pensar, as crenças, as festas, o modo de viver do sertanejo
retratado na obra de Elomar têm como modelo a Sagrada Escritura. Segundo o artista, na
palavra bíblica há uma verdade superior, inquestionável e absoluta. Guy Lobrichon,
medievalista, pesquisador do assunto “religiosidade”, reforça:
68
LOBRICHON, Guy. “Bíblia”. In: LE GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v 1. p. 108.
69
Op. cit. VAUCHEZ, 1995. P. 139.
antropologia religiosa (...). Supõe uma viagem, uma caminhada, isto é, uma prova
física do espaço.
“na tradição cristã, o termo ‘escatologia’ (do grego eschata, ‘as últimas
coisas’) designa as idéias concernentes ao fim do mundo ou aos eventos que
atingirão seu termo com o Juízo Final. (...) Em sentido mais amplo, entende-se
por elas (idéias) todas as esperanças, todas as aspirações de conotações religiosas
prevendo o surgimento sobre a terra de uma ordem perfeita, de certa forma
paradisíaca”. 72
70
SOT, Michel. “Peregrinação”. In: LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do
Ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v. 2. p.353.
71
Op. cit.VAUCHEZ, 1995. p. 139
72
TÖPFER, Bernhard. “Escatologia e milenarismo”. In: LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário
temático do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v 1. p.353.
Nesse ponto, elucida-se a conjunção de fundamentos cristãos e judaicos, atualizados
na obra elomariana, pois segundo Sol Biderman, “a escatologia tem sido considerada um
princípio básico da fé judaica”73.
Brian Daley afirma que a escatologia é a fé em soluções finais, representa para o
cristão o estágio final na salvação humana, a espera da recompensa por ter vivido dentro
dos preceitos ético-morais e religiosos pregados pela palavra de Deus. Ele afirma que
O catingueiro retratado por Elomar, assim como o homem medieval, é movido pela
esperança de, um dia, por vontade divina, existir na Terra a Ordem perfeita, ou seja, o
73
BIDERMAN, Sol.Messianismo e escatologia na literatura de cordel. São Paulo, 1970 Tese de Doutorado
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP. p.10.
74
DALEY, Brian. Origens da escatologia cristã. São Paulo: Paulus, 1994. p.13-14.
75
LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa: Estampa, 1995. p. 251.
sonho de os homens livrarem-se dos pecados e conquistarem novamente o paraíso terrestre
ou celestial. Mais forte na poética elomariana é o fato de o sertanejo “dispensar” o Paraíso
terrestre, partindo diretamente para a busca da felicidade no Céu, ou seja, no Paraíso
Celestial, ao lado de Deus. Segundo Delumeau, isso é um traço do pensamento cristão
protestante76, o que poderia estar relacionado à formação religiosa de Elomar.
Nas cantigas elomarianas, justamente pelo objetivo final do sertanejo ser o alcance
do reino dos céus, há a negação do mundo, dos elementos terrenos. A vida é apenas uma
passagem, uma travessia, um caminho de purgações ao qual a morte dará um fim. Esse
tema é bastante antigo e certamente está calcado na Bíblia, precisamente no Livro de Jó e
no Eclesiastes, mas também na civilização greco-romana77. Retoma a temática do
contemptus mundi – “o mundo é vão porque é passageiro”78. As idéias e imagens de um
Além também habitam o imaginário desse sertanejo, que o imagina como lugar paradisíaco,
construído a partir dos ensinamentos bíblicos imiscuídos à realidade nordestina, certamente
sem as agruras vividas no sertão.
O Além do homem medievo era o Além pregado pelo cristianismo. Havia
extrema preocupação com o pós-morte, pois, acreditando-se na ressurreição dos corpos,
aceitava-se a vida após o perecimento do corpo. Essa vida seria plena, em um local seguro,
no qual não haveria enfermidades ou fome. Seria uma terra farta de leite e mel, onde os
cristãos poderiam contemplar a face de Deus. As pessoas viviam à espera do fim do mundo
e do Juízo Final – aos bons era garantido o reino dos céus e aos maus, o inferno A
preocupação com o Além fazia com que as pessoas negassem o mundo, ou seja, o mundo
terrestre, utilizando-o apenas como passagem, lugar onde havia a chance de remissão dos
pecados.
76
“(...) os numeroso sermões protestantes que anunciaram aos fiéis o fim próximo do mundo: perspectiva
aterrorizante para os pecadores, horizonte exultante para os eleitos. Mais freqüentemente essa pregação
afastou-se do esquema milenarista e não profetizou nenhum reino de Deus sobre a terra. Ela abria diretamente
para a explosão do julgamento final.” DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo – a culpabilização no Ocidente
(séculos 13-18). Bauru: EDUSC, 2003. v. 2. p. 372.
77
Idem, ibidem. . v. 1. p. 19
78
Idem, ibidem. v.1. p. 25
imaginário religioso nordestino. E igualmente alimentaram o imaginário medieval, num
paralelismo de valores – guardadas as distâncias – que se vem tentando demonstrar.
3.1. O Cancioneiro
79
Excelência - canto entoado à cabeça dos mortos durante o velório. Cf. CASCUDO, Luís da.C. Dicionário
do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.378.
80
“Puluxia” (apologia) – canto de homenagem. Cf. Elomar. Op. cit. Ribeiro, 1982. p.76.
81
“Moirão”, mourão ou trocado – versos dialogados que exigem uma resposta imediata do segundo cantador,
obedecendo ao esquema de rimas escolhido pelo primeiro cantador. Cf. CASCUDO, s.d. p.878.
82
Op. cit. SOUZA, 1994.
83
O número em negrito, entre parênteses, refere-se ao texto na Antologia.
(véspera de Reis) cantando e dançando ou apenas cantando versos alusivos à data
84
e solicitando alimentos ou dinheiro”.
Esses versos fazem um paralelo aos versos tradicionais, muito antigos, cantados em
diversas partes do Brasil:
“(...) dizendo: ‘Onde está aquele que nasceu rei dos judeus? Pois vimos a
sua estrela quando estávamos no Oriente e viemos prestar-lhe homenagem.’ (...)
Tendo ouvido rei (Herodes), partiram; e eis que a estrela que tinham visto quando
estavam no Oriente ia diante deles, até que se deteve por cima do lugar onde
estava a criancinha. Ao verem a estrela, alegraram-se muitíssimo. E, ao entrarem
na casa, viram a criancinha com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, prestaram-lhe
homenagem. Abriram também seus tesouros e presentearam-lhe com dádivas:
ouro, olíbano e mirra”. (Mt 2, 2-11)
Outra cantiga que pode estar ligada a esta é a “Estrela maga dos ciganos” (2), que
opera praticamente dentro da mesma temática – esperança trazida pela crença em Jesus, a
dádiva de seu nascimento. Nela, o poeta catingueiro expressa sua vida difícil, de
sofrimento, permeada de dívidas e esforços vãos:
86
Expressão usada no sentido de um tempo em que todos vão ficar onde estão, porque não há mais solução
terrena, não há mais lugar de paz. Entrevista de Elomar a CHAGAS, s.d.
Sinhorio e servidão
fico lá encima hospedado com os Reis Mago
nos camim de São Tiago
num boto os pé nesse chão”
Para o cantador, esse “retira-se” tem a função de entrar em contato com o divino,
para fugir dos elementos que o afligem na terra. Percebe-se aqui a presença de um aspecto
que se tornará topoi na poética elomariana – a peregrinação. Interessante salientar que o
poeta catingueiro, nessa cantiga, descreve onde ele se encontra – Bahia, Serra da
Caratonha, mas quer seguir o caminho a Santiago de Compostela (Espanha), lugar sagrado.
O caminho de Santiago teve importância muito grande para homem medieval, que vivia
situações similares – fome, pestes, opressão, exploração dos dominantes – às do catingueiro
de Elomar e rumavam em direção ao santuário em busca de purificação e
conseqüentemente da salvação. Segundo Hilário Franco Jr, o que move as pessoas a esses
lugares sagrados é a crença de que no Céu há um lugar perfeito a que só é permitida a
entrada dos bons que padeceram na terra, elemento recorrente nas canções elomarianas:
87
COHN, Norman. Nas sendas do milénio: milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade
Média. Porto, 1981. p. 17.
88
FRANCO JR, Hilário. Peregrinos, monges e guerreiros. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 80.
Desse modo, o catingueiro escolhe Santiago porque sabe que seu poder de
intercessão junto a Deus é grande: “Tiago sem dúvida tinha sido um dos apóstolos mais
importantes. Filho de Zebedeu e Maria Salomé – esta, segundo a tradição, irmã da Virgem
– ele era primo-irmão de Jesus”89. Pode-se estabelecer relação entre elementos que são
mencionados nas duas cantigas analisadas até esse momento e que foram considerados
verdadeiros símbolos de ligação entre o peregrino e Deus, por meio do santuário, com as
idéias de Franco Jr:
Também lhe fala da terrível morte, a “véa”, que assolou a região em função da seca
e da fome. Assim, o poeta cantador atravessa as adversidades impostas pela seca e não vê
outra saída que não seja a retirada, chamada por ele de “peregrinação”, questionando-se a
respeito do porquê de Deus permitir tanto sofrimento. Dessa forma, não é explícito o teor
espiritual da peregrinação, mas dentro do contexto elomariano, essa é a saída para a
eliminação dos dissabores:
89
Idem, ibidem. p. 84.
90
Idem, ibidem, p. 86.
91
Respectivamente: couro das alpercatas, rato catingueiro e sapo anunciador da chuva.
“só a terra que você dexô
quinda ta lá num ritirou-se não
os povo as gente os bicho as coisa tudo
uns ritirou-se in pirigrinação
os ôtro os mais velho mais cabiçudo
voltaro pru qui era pru pó do chão
(...)
será qui Deus do céu aqui na terra
do nosso povo intonce se isqueceu”
“Retirada” (4) pode ser ligada à cantiga anterior em função de sua temática. O poeta
cantador narra, consternado, uma peregrinação de sertanejos que rumam à cidade, fugindo
da seca, sofrendo as dores do exílio. Aqui, novamente o retirar-se tem o sentido de ser
estrangeiro, o caráter de exilado. Sot explica que, etimologicamente, a palavra “peregrino”
(peregrinus) significa o exilado ou o expatriado, ressaltando que “o peregrino em todo
lugar é um estrangeiro, desconhecido dos homens, desprezado pelos sedentários, privado
dos recursos de uma coletividade determinada” 92.
Mas o catingueiro sabe que esse mundo é destinado ao sofrimento, para que os
pecadores cumpram penitências: “A rota é uma dura ascese. Aí sente-se a fadiga do corpo,
o sofrimento provocado pelos pés doloridos, a tensão dos músculos, a sede e a fome. Aí
sofre-se o rigor das intempéries”93, portanto, o exilar-se tem o sentido de purgar os pecados
“desse mundo de ilusão”:
92
Op. cit. SOT, 2002. p. 354.
93
Idem, ibidem. p. 354.
De sofrer a mendigar
Vai pela estrada enluarada
Tanta gente a retirar
Levando nos ombro a cruz
Que Jesus deixou ficar”
Aqui é possível fazer outro paralelo com o pensamento medieval, pois, segundo
Delumeau, que analisou discursos pessimistas de alguns mestres espirituais do medievo,
Esse papel será retomado em outra cantiga – “O violeiro” (5). Nela, encontramos o
poeta valorizando sua profissão e acentuando-se como mensageiro, nunca movido pelo
dinheiro, mas como se tivesse recebido um dom de Deus e a missão de transmitir as
palavras sagradas, sem tirar disso seu sustento, como Cristo pregou aos apóstolos –
“ensinar” de mãos vazias (Mc 6:7-8):
94
Op. cit. DELUMEAU, 2003. p.58.
E falo sero e num é vadiage
(...)
Apois prá o cantadô e violeiro
Só há treis coisa neste mundo vão
Amô, furria, viola, nunca dinheiro
(...)
sem um tustão na cuia o cantadô
canta até morrê o bem do amô”
Essa negação da vida faz com que o poeta cantador assuma uma posição cordata
ante as fatalidades e adversidades, vistas como vontades do Criador:
O que possibilitou a visão que o poeta cantador adquiriu a respeito da vida terrena
foram suas reflexões no “exílio”, suas andanças nas estradas ermas, na solidão, ou seja, um
terreno fértil para a ascensão espiritual. Segundo Sol Biderman, o deserto parece oferecer
condições propícias à pureza religiosa, pois é uma extensão desmedida da terra e do céu.
Lembra que:
95
Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Vozes, 1999. p. 154.
“A fé que brotava da solidão desértica era por demais pura e simples
(...) os judeus passaram pelo deserto. Moisés aí viveu, além de João batista e
Cristo. São Paulo e São João Crisóstomo prepararam-se para suas vocações no
deserto”.96
Pelo fato de o mundo ser cheio de ilusões e ocasiões de pecado, “mais vale
renunciar às criaturas e viver nesta terra como peregrino e como estrangeiro: é pelo exílio
que se ganha o Reino, já que Deus representa todo bem, é vão tentar perseguir realidades
terrestres, as quais decepcionam e apresentam riscos de pecados”97.
96
Op. cir. BIDERMAN, 1970. p. 117.
97
Op. cit. VAUCHEZ, 1995. P.48
vendi meus dias em instâncias medonhas
meu tempo querido numa terra estranha”
“E eu, sim, eu me virei para todos os meus trabalhos que minhas mãos
tinham feito e para a labuta em que eu tinha trabalhado arduamente para realizar,
e eis que tudo era vaidade e um esforço para alcançar o vento, e não havia nada
de vantagem debaixo do sol”. (Ec 2: 11)
Portanto, a vida na terra não “é uma arena de ganho; não há retribuição que seja
satisfatória”98. Assim, só resta buscar a morada celestial, mas é preciso completar os quatro
graus da humildade que consistem na negação do indivíduo enquanto ser superior por meio
98
WILLIAMS, James G. “Provérbios e Eclesiastes”. In: ALTER, Robert e KERMODE, Frank. Guia literário
da Bíblia. Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1997. p. 287.
do reconhecimento de suas fraquezas, tornando-se submisso, sujeitando-se a Deus. O
peregrino precisa ter consciência de sua vileza; precisa decompor-se e enxergar todos os
motivos que o transformaram em pecador. Somente dessa maneira será possível viver
espiritualmente, pois “a vida espiritual não é uma aquisição, mas uma demolição”.99
A cantiga (7), “A meu Deus um canto novo”, também é marcada pelos fundamentos
cristãos e pelo discurso bíblico. No título já se tem um indicativo. A expressão “canto
novo” faz alusão aos Salmos – cânticos de agradecimento:
O poeta cantador, nessa cantiga, está narrando sua chegada de uma viagem, uma
peregrinação, e descreve os elementos que foi encontrando pelo caminho e que o fizeram
chegar a determinadas conclusões a respeito da vida, coadunando com as reflexões do
cantador da canção “Homenagem a um menestrel”, analisada anteriormente. No entanto,
esta cantiga 7 apresenta um teor mais positivo perante a vida. O peregrino descrito porta-se
como homo viator – vem de lugares distintos, buscando, por meio de provações, a
purgação de seus pecados. Usam-se termos como “grande viagem” e “jornada”, para
mostrar que essa “andança” não é mero caminhar, mas trajetória espiritual. O tom otimista
é revelado ao leitor-ouvinte quando o cantador mostra que veio de paragens protegido pelas
mãos de “Elmana” – que remete a Emanuel, ou seja, a junção de Deus com a criação:
99
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
p.178.
“Topei in certa altura da jornada
com um qui nem tinha pernas para andar
comoveu-me em grande compaixão
voltano o olhar para os céus
recomendou-me ao Deus
Senhor de todos nós rogando
Nada me faltar”
Depois, conclui que as pessoas praticam atos ilícitos, causando sofrimentos, porque
faltam três princípios básicos:
Logo, se o cristão abandona o princípio da fé, que age pela caridade, e caridade é
amor, dispensa a palavra de Deus: “Este é meu preceito: Amai-vos uns aos outros como eu
vos amei” (Jo 15:12) e se perde no mundo terreno, afastando-se de Deus e da salvação
eterna, pois a caridade tem
100
Op. cit. Catecismo. p. 488.
“como frutos a alegria, a paz e a misericórdia; exige a beneficência e a
correção fraterna; é benevolência; suscita a reciprocidade; é desinteressada e
liberal; é amizade e comunhão”. 101
O poeta peregrino, ante a situação de afastamento das pessoas dos preceitos divinos,
desempenha uma importante missão, a de ser mensageiro da palavra de Deus, porque ele
pratica as virtudes teologais – tem fé, tem caridade e esperança,
“pela qual desejamos como nossa felicidade o Reino dos Céus e a Vida
Eterna, pondo nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos não em
nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo”.102
101
Op. cit. Catecismo, p. 492.
102
Idem, ibidem. p.489.
Estradar” (9), “Corban” (10), “Um cavaleiro na tempestade” (11), “O cavaleiro da torre”
(12), “Cavaleiro de São Joaquim” (13), “Seresta sertaneza” (14) e “Chula no terreiro” (15).
“Campo branco” apresenta-se como um canto de comunhão do homem com a
Natureza, de conteúdo escatológico, construído com imagens de acentuada plasticidade e
com discurso bíblico. Professa a chegada da chuva no sertão. Segundo análise de Rita
Melo, tem-se
“(...) a noção da totalidade do homem sertanejo e dos elementos
constituintes deste processo: homens, bichos, natureza e divindade integrados em
um mesmo processo de sobrevivência”. 103
Diante dos obstáculos impostos pela natureza, não conseguindo vencê-los, alimenta-
se da esperança de uma nova era, melhor, ao lado de Deus. Portanto, só lhe resta clamar ao
Senhor. O cantador faz uso da gradação para demonstrar a intensidade de seu desejo: “peço
a Deus a meu Deus grande Deus de Abraão”, demonstrando a virtude da fé e o alcance do
bem por meio da devoção. Por isso, em apenas quatro versos, a palavra Deus foi usada seis
vezes:
103
MELO, Rita Maria Costa. Elomar Figueira Mello: uma poética do sertão baiano. Recife, 1989.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Pernambuco. p. 125.
A cantiga mostra a possibilidade de analisar os elementos de duas maneiras – uma
literal, chuva simbolizando fertilidade no campo, renovação da vegetação, o trovão como
anunciador dessa chuva; outra simbólica, por meio da alegoria, com a chuva aludindo ao
dia do Juízo Final e o trovão, à voz de Deus. Essa segunda possibilidade, apesar de Elomar
não a explicitar em seus comentários104, é vista nos versos:
104
“A estrutura da letra e da melodia é um cântico da vinda da chuva”. In: LESSA, Cláudia. “Elomar das
antigas”. Salvador: Folha da Bahia, 26/12/05. “Campo branco, por exemplo, é cantado em igrejas, no interior
do Paraná. Fala dos talos da vegetação da caatinga que, na seca, se revestem de branco, para resistir à seca e
não morrer” Op. cit. DIAS, 1997.
105
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. P. 826-831.
“Pois, no meu caso, viver é Cristo, e morrer é ganho”. (Fil 1: 21)
“Em resposta ele lhes dizia: ‘Aquele que tiver duas peças de roupa interior
partilhe com aqueles que não tiver nenhuma, e aquele que tiver coisas para
comer, faça o mesmo’”. (Lc 3:11)
“Dá ao que te pede e não te desvies daquele que deseja tomar emprestado de ti”.
(Mt 5:42)
106
Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 39.
a obsessão da travessia, da vida como caminho, o percurso perigoso. Aqui se
oferece o Apocalipse, sob o texto bíblico, a morte faz seu caminho no sertão.
Texto de prestação de contas do tempo e do milênio que envolve homem e
natureza, através de toda uma tradição”. 107
107
Op. cit. FERREIRA, 2001. P. 170-171.
108
LE GOFF, Jacques. “Além”. In: LE GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. Trad. (Coord.) Hilário Franco Júnior. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002.
v.1. p. 22.
“E eis que subiam do rio Nilo sete vacas de aparência bela e de carnes
gordas, e elas pastavam entre as canas do Nilo. E eis que após elas subiam do rio
Nilo, mais sete vacas de aparência feia e de carnes magras, e elas se postavam ao
lado das vacas à beira do rio Nilo. Então, as vacas de aparência feia e de carnes
magras começaram a devorar as sete vacas de aparência bela e gorda. Nisso o
faraó acordou”. (Gen 41: 2-4)
Uma donzela pergunta quem bate à porta em hora tardia e um cavaleiro responde
que não é preciso ter medo, pois o “perigo é a descrença”. Esse cavaleiro remete o leitor-
ouvinte a uma passagem do Apocalipse, quando Cristo bate à porta de um fiel:
“Eis que estou em pé à porta e estou batendo. Se alguém ouvir a minha
voz e abrir a porta entrarei na sua [casa] e tomarei a refeição noturna com ele e
ele comigo. Àquele que vencer, concederei assentar-se comigo no meu trono,
assim como eu venci e me assentei com meu Pai no seu trono”. (Re 3: 20-21)
“Vivendo da fé
A minha crença não se cansa
Preso ao fio desta esperança
Não tiro os olhos dos céus
Confiante na Balança
Que julga o inocente e o réu”
Portanto, o Paraíso é um local onde não há sofrimento, não há seca, não há fome:
“E enxugará dos seus olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem
haverá mais pranto, nem clamor, nem dor. As coisas anteriores já passaram”. (Re
21:4)
Na cantiga 14, “Seresta sertaneza”, o cantador descreve sua viagem ao reino de
Deus com um tom de torpor, pois ainda não conseguiu conquistá-lo. Descreve regiões
azuis, imensidões, vias estelares e o reino dos cristais, que corresponderia ao Paraíso.
Também é uma canção que denota preocupação na purificação da mente e do corpo, pois o
cantador foge da tentação da “carne”, não desejando perder a castidade, o que exige o
domínio de si mesmo, conseqüentemente de suas paixões, para a busca da paz interior. Faz
um apelo à donzela:
Por fim, a cantiga 15, “Chula no terreiro”, é um canto saudoso que relembra os
amigos que participavam da “chula” (canto, festa) e que morreram por diversos motivos –
um foi a São Paulo trabalhar e morreu atropelado; o segundo, em uma retirada, foi levado
por um redemoinho; o terceiro morreu esfaqueado pelo marido da moça por quem havia se
apaixonado e o último foi levado pela correnteza ao fazer a travessia de bois. Diante desses
acontecimentos, o poeta cantador considera a vida como combate e a morte, como prêmio,
acreditando que todos os seus companheiros estão no céu. Um de seus companheiros relata
que vida feliz é aquela que é vivida em um lugar celestial, de paz, de amor, com
Neste sentido, faz-se um paralelo com a Terra Prometida, mencionada nas Sagradas
Escrituras:
“E estou para descer, a fim de livrá-los da mão dos egípcios e para fazê-
los subir daquela terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana
leite e mel (...)”. (Ex 3: 8)
“E naquele dia terá de acontecer que os montes gotejarão vinho doce, e
os próprios morros manarão leite, e os próprios regos de Judá correrão todos
cheios de água. E da casa de Jeová procederá um manancial e terá de irrigar o
vale da torrente das Acácias”. (Jl 3: 18)
Segundo Hilário Franco Júnior, em um texto sobre as utopias medievais109, para a
Idade Média, o Paraíso foi uma das grandes utopias, pois constitui o primeiro mito da
humanidade: “condição perfeita perdida”. Esse mito aparece nos dias de hoje, nas mais
diferentes sociedades110, movidas pelo anseio de um lugar melhor do que a realidade
vivenciada.
Assim, as três cantigas, cada qual à sua maneira, trazem os sonhos do catingueiro a
respeito do Paraíso. Essa visão é o produto das adaptações dos ensinamentos da Bíblia aos
elementos que compõem seu universo na caatinga, e de um substrato ancestral que
alimenta o imaginário nordestino.
Fantasia leiga para um rio seco, obra gravada em 1981, foi orquestrada pela
Sinfônica da Bahia e regida pelo maestro Lindenbergue Cardoso111 . Apresenta-se na forma
de CD, acompanhada de um livreto-encarte, escrito por Ernani Maurílio, que faz
apresentação da obra, das letras e esclarece o vocabulário. É um poema narrativo
monologado, em primeira pessoa, no tempo presente, no qual Elomar chama a atenção para
a seca de 1890, que não é relatada pela História com a devida importância, segundo suas
concepções:
109
FRANCO JR, Hilário.As utopias medievais. São Paulo: Brasiliense, 1992.
110
Sobre o assunto, consultar os estudos de PATCH, Howard Rollin. “Viajes al Paraíso”. In: El outro mundo
em la literatura medieval. México: Fondo de Cultura Económica, 1956. HOLANDA, Sérgio Buarque de.
Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 2000.
111
Importante músico baiano, nascido em Livramento em 1939. Formado em música pela UFBA, foi
orientado por Ernst Widmer. “Certa vez confessou-se ‘uma pessoa do interior. Minhas raízes estão na roça e
eu não posso negar essas raízes’”. Apesar de não ter ultrapassado os cinqüenta anos, tem mais de 90 obras
elaboradas. Aos 49 anos apenas e dono de uma linguagem musical bem sua, sincera e representativa, faleceu
subitamente em Salvador, a 23 de maio de 1989. In: VASCO, Mariz. História da música no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. p. 401-404.
e sede, e trespaçados (sic) pelo dardo do fogo de muitos sóis (sem referência
ignoramos quantos foram, pois os românticos historiadores daqueles dias, mais
cronista do salão político, não se tinham dado por conta de que o homem é a
primeira grande essência do universo criado por Deus)”. 112
Após essa abertura, inicia-se “Incelença pra terra que o sol matou”, com 57 versos.
Nessa “excelência” ou “inselência”, canto que incita o horror ao pecado e favorece o
arrependimento, entoado à cabeça dos moribundos ou dos mortos117, a terra e o sertanejo
115
Peça instrumental livremente composta, em que uma idéia musical conduz a outra sem muita rigidez de
forma, sugerindo assim a improvisação. HORTA, Luiz Paulo (ed.) Dicionário de Música. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1985. p. 121.
116
Op. cit. MAURÍLIO, s.p.
117
Op. cit. CASCUDO, s.d. p.378.
são os moribundos. Texto fortemente marcado pelo dialeto catingueiro, descreve a
desolação com a qual o sertanejo depara118.
“Qui disolação
E u’a ossada branca
Fulorano o chão
E o passu-Rei, rei do manjá
Deu bença à morte prá avisá
(...)
Mais o sol malvado
Quemô os imbuzêro
Os bode e os carnêro
Toda criação”
O poeta retirante vê que não lhe resta nada – o gado está morto; a terra está seca,
portanto não pode plantar. O imbuzeiro, geralmente resistente às secas, é importante forma
de vegetação para o catingueiro, pois possui raízes profundas, funcionando como uma fonte
de sobrevivência, já está morto, indício de situação calamitosa. Com essa descrição, é
possível fazer um paralelo com o texto bíblico, precisamente com os versículos de Joel:
“O que a lagarta deixou sobrar, o gafanhoto comeu; e o que o gafanhoto
deixou sobrar, a larva do gafanhoto comeu; e o que a larva de gafanhoto deixou
sobrar, a barata comeu”.
“O campo foi assolado, o solo pôs-se de luto; porque o cereal foi
assolado, o vinho novo se secou, o azeite desvaneceu”. (Jl 1: 4, 10)
118
Poema que lembra o Severino retirante em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto: “Desde
que estou retirando/ só a morte vejo ativa,/ só a morte deparei/ e às vezes até festiva;/ só morte tem
encontrado/ quem pensava encontrar vida,/ e o pouco que não foi morte/ foi de vida severina/ (...)”. In: MELO
NETO, João Cabral. Morte e vida Severina: e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994. p. 35-36.
“É qui tão as era
Já muito alcançada
A palavra vea
Reza qui havera
De chegá um tempo
Só de perdedêra”
Sente-se, nesse momento, ecoar o texto bíblico novamente, pois o retirante, mesmo
abatido por flagelos, não perde a fé em Deus, não desiste de lutar por dias melhores ou
lugares melhores:
“Ainda que a própria figueira não floresça e não haja produção das
videiras, o trabalho da oliveira realmente resulte em fracasso e os próprios
socalcos realmente não produzam alimento, o rebanho seja separado do redil e
não haja manada nos currais. Ainda assim, no que se refere a mim, vou rejubilar
com o próprio Jeová, vou jubilar com Deus da minha salvação”. (Hab 3: 17-18).
119
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória e outros ensaios. São Paulo: Ateliê, 2003. p. 129.
120
Idem, ibidem. p. 131-132.
“O tema da terra tem uma função mobilizadora que expressa sob a forma
da utopia. Esta está no mito fundador e no projeto escatológico judeus. Ela é seu
fermento, o elemento efervescente. Presente desde o pacto da Aliança, é ela que,
efetivamente, permitirá ao mito desdobrar-se ao longo da história. Pela tradição
proveniente da Bíblia, a terra é concebida como compromisso existencial e
simbólico. Por meio do vínculo espiritual periodicamente renovado entre ‘terra
prometida’ e ‘povo eleito’ encontram-se reunidos os elementos necessários ao
desenvolvimento de uma ‘história santa’ e à emergência de uma concepção
particular do sagrado. Por um rigoroso trabalho de elaboração, a Bíblia se esforça
por instaurar a ruptura com o mundo pagão que sacraliza a natureza e liga o
homem à terra por um elo fusional muito forte”. 121
121
AZRIA, Régine. O Judaísmo. Bauru: EDUSC, 2000. p. 25-27. [apud GUERREIRO, 2001, p.82]
122
“Fórmula poética entre os cantadores do Nordeste do Brasil, muito empregada nos grandes desafios que se
tornaram famosos”. Op. cit. CASCUDO, s.d. p. 673. “A parcela serve para fazer penetrar no clima dos maus
presságios (...)”. Cf. FERREIRA, 2003. p.143.
123
Op. cit. FERREIRA, 2003. p. 137.
124
Idem, ibidem., p. 145
O catingueiro lamenta-se, faz uma triste comparação: “Té a chuva torna cum passá
dos anos”, porém continua prosseguindo, quando ouve o barulho no céu e tem a certeza de
que é Jesus que está vindo para julgar os homens:
125
Cf. MAURÍLIO, em encarte que acompanha o CD.
maneira breve e tácita, a perecibilidade do corpo, a fragilidade da vida humana na terra, que
faz com que o catingueiro ponha “os olhos” no céu:
“(...) escreve Jean de Grouchy (...) ‘Este canto se destina a ser executado
em presença de velhos, de obreiros e do vulgo, quando eles repousam de seu
trabalho cotidiano, a fim de que a audição das infelicidades experimentadas pelos
outros os ajude a suportar as suas e de que cada um deles retome em seguida,
mais alerta, sua tarefa profissional. Por isso, esse gênero de canto é útil à
conservação do Estado’”.126
Portanto, “Amarração” pode assumir dois sentidos em Fantasia leiga para um rio
seco – o primeiro, de ser um canto que transmite os infortúnios do catingueiro após seu
périplo pelo sertão, com o intuito de “educar” os demais a respeito dos “assuntos”
celestiais, fazendo com que os outros não desistam de alcançar o Reino dos Céus; o
segundo, de ser apenas um canto finalizador na obra, servindo para “amarrar” os fatos
cantados até o momento, fechar o ciclo – o poeta retirante, abatido por flagelos (cantos 1 e
126
Op. cit. ZUMTHOR, 2001. p. 156.
2), sai em retirada (cantos 3 e 4) e termina seus dias recebendo a morte salvadora, porque
ganhará o reino do Céu (canto 5).
Nesse canto final, o retirante já está próximo às terras do Sul, e em um canto
saudoso, lamenta, por meio de recordações, a perda de seu pequeno universo, gerado na
caatinga. Sente-se expatriado, mas consciente do fim da jornada, da aventura de um
retirante herói-peregrino, que partiu em busca do cumprimento de seus objetivos – expiar
os pecados por meio do sofrimento imposto pelos flagelos, com anuência divina; suportar
firmemente, manter-se fiel aos preceitos bíblicos e obter a vitória, que é o reconhecimento
de Deus de que fora um bom cristão, merecedor da salvação eterna.
Assim é terminada Fantasia leiga para um rio seco, com o retirante chegando,
desolado, às terras estrangeiras, das quais sabe que não haverá retorno; contudo,
surpreendentemente, percebe que recebera a dádiva de habitar a morada celestial, tão
esperada após longo tempo de sofrimentos. Tem-se nesses versos a concepção do sertanejo
tem a respeito do Paraíso: um chapadão, elemento prosaico para os catingueiros, um lugar
com a luz divina e os anjos cantando, dados que são encontrados no discurso bíblico.
Após a análise do Cancioneiro elomariano e de Fantasia leiga para um rio seco, é
possível concluir que existe uma “voz” ancestral, transmitida pela memória, pelo canto, que
diz aquilo que está latente no ser humano quanto à espiritualidade, que aproxima, por
exemplo, os peregrinos de antanho, principalmente os medievais, e o catingueiro de
Elomar. Em suas obras, acontece a atualização de um antes, em um movimento de releitura,
de ação e de transformação de uma matriz, de uma fonte comum – noção de travessia,
espera de um futuro, busca de algo perdido – alimentada, sobretudo, pelas Sagradas
Escrituras, que é relida, continuada à maneira nordestina, singularizando relações sócio-
histórico-culturais de um sertão vivo que se move, que é característico de uma região, mas
que carrega elementos universais.
As descrições do Paraíso Celestial, as relações entre Céu e Terra, o caráter
obsedante de uma busca por meio de uma vida transitória, as provações, os sinais divinos, a
promessa de salvação, as histórias bíblicas são elementos que, de forma tácita ou não,
povoam o imaginário do sertanejo e povoaram também o do homem medieval, entendendo
imaginário segundo as concepções de Le Goff e Hilário Franco Júnior, que o definem como
um conjunto ou sistema de decodificadores e representantes culturais, historicamente
variáveis, de um complexo de emoções e pensamentos, ou seja, de um inconsciente
coletivo127. Ainda conforme Franco Júnior:
Portanto, a partir da análise de Fantasia leiga para um rio seco, é possível pontuar
alguns elementos que constituem o imaginário espiritual dos personagens de Elomar, o qual
pode ser visto como um “espelho” do imaginário do sertanejo nordestino, já que as cantigas
desse artista, funcionam como uma leitura histórica da sociedade onde são veiculadas.
127
FRANCO JÚNIOR, Hilário. “O fogo de Prometeu e o escudo de Perseu – Reflexões sobre a
mentalidade e o imaginário”. Signum, 2003. p.73-116.
128
Idem, ibidem, p.106-107.
129
Idem, ibidem, p.113-114.
4. Capítulo III – Caminhos da cultura brasileira
130
Pode ser considerada uma obra com traços da ópera barroca, que era chamada de “ópera séria, de assunto
mitológico, cavalheiresco (sic) e histórico, além de temas bíblicos... O que importa é que a trama vá se
complicando e dê lugar a cenas de grande efeito, como naufrágios, tempestades, incêndios, aparições de
divindades, no mar, no céu, grutas mágicas, jardins encantados, cidades fantásticas. Sabemos que o barroco se
caracteriza por seu gosto pelo pitoresco, pela mistura e pela complicação”. Em sua estrutura, há, como no
Auto de Elomar, “uma abertura, sem função dramática (...) o recitativo, em que predomina a palavra, pois nele
se desenvolve ou se explica a ação. O núcleo é a ária”. In: FRAGA, Fernando; MATAMORO, Blas. A ópera.
Rio de Janeiro: Angra, 1991. p. 7-16.
131
Elomar dedica o Auto a Marcus Pereira, “brabo e valente na defesa de nosso Patrimônio Musical”; a Ismar
Silveira, “grande Menestrel”; a seus pais e irmãos. Traz introdução e comentário crítico dos cantos com
autoria de Ernani Maurílio e Adelina Renault, além de ilustrações de Juarez Paraíso e capa de Juraci Dórea.
Apesar de apresentar alguns problemas de impressão e também de revisão textual, é uma bela produção,
impressa em 1984 por BIGRAF, com patrocínio do Governo Estadual da Bahia, Secretaria de Fazenda,
Fundação Cultural do Estado da Bahia e Odebrecht Harrison Engenharia de Minas Ltda, com tiragem de
apenas 3000 exemplares.
“ópera sertânica com estrutura de um auto da Idade Média. Não tanto
pelo formato, bem mais pelo assunto: os autos medievais tratavam dos santos,
suas vidas, seus martírios. No Auto da Catingueira não há um santo, mas a
personagem central chama-se Dassanta”.132
Elomar escolhe o auto como forma de expressão, porque a religiosidade, por meio
das diversas formas de manifestação, é recorrente, senão o fulcro de suas produções.
Segundo Massaud Moisés, o auto:
Segundo Lorenzo Mammi, foi na época de D. José I que a ópera foi transplantada
para o Brasil colônia; com teor religioso, exuberante em alegorias e de coloração
claramente barroca, é ligada ao teatro jesuíta e aos mistérios processionais. No século XIX,
torna-se uma forma musical litúrgica, mas leiga, com elementos sociais convencionais,
aliados a arcaicos, que interessam a diferentes camadas sociais – da elite à popular. Assim,
não pode ser considerada mera transposição européia, pois fórmulas nacionais já haviam
sido incrustadas nessa prática músico-teatral, o que, para Mammi, torna o caso brasileiro
singular:
132
DIAS, Mauro. “Elomar capta a essência do Brasil”. O Estado de São Paulo, 21 de junho de 1997.
133
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1995. p. 49.
“(...) uma mistura de música de salão, operística, devocional e folclórica
forma o caldo de onde surgirá, no fim do século, a música popular brasileira”.134
O auto tornou-se um gênero praticado por outros artistas brasileiros, uma forma de
teatro considerado como um resquício dos chamados autos sacramentais. Verifica-se essa
prática em Ariano Suassuna. Em boa parte de suas obras, como exemplo, O rico avarento,
A farsa da boa preguiça, Auto da Compadecida e O castigo da soberba, encontram-se
lições de moralidade e cenas do Juízo Final como conclusão. Ligia Vassalo, pesquisadora
das relações entre cultura medieval e o teatro de Suassuna, esclarece:
134
MAMMI, Lorenzo. “Teatro em música no Brasil monárquico”. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris
(Org.). Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de
São Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial, 2001. p. 39 e 52.
135
VASSALO. Ligia. O sertão medieval – origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves Editora, 1993. p.113. Ver também informações de práticas no Brasil desde o século
XIII em CASCUDO, L da C. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p. 115-116.
136
FIGUEIREDO, Ernani M. da R; RENAULT, Clementine. Auto da catingueira – Elomar Figueira Mello.
Não consta número de página, mas tal citação encontra-se no livro referido.
apresentadas no Auto - Sertão da Ressaca, sudoeste da Bahia, a partir do Mato-Cipó, mas
advertem que não é possível limitá-las, pois essas fronteiras se expandem, por ser o
Nordeste brasileiro um “grande mosaico cultural e humano”. Trazem também elementos
importantes a respeito da linguagem empregada nesses cantos, atribuindo à criação
lingüística de Elomar o caráter lúdico:
“Tão terra que às vezes torna-se difícil falar e viver nela; uma terra onde
as pessoas são simples, se encontrando em torno de uma ‘função’ qualquer,
discutindo o tempo, ferrando marrãs, com as mãos comprometidas com o fazer do
leite o alimento, do barro o tijolo, da voz um testemunho, dos passos uma
caminhada, da vida uma forma de espera, da morte uma ressurreição”.138
137
Idem, ibidem, primeira página.
138
Idem, ibidem, segunda página.
139
Idem, ibidem, segunda página
memória, do tempo em que vivi e que ouvi, e até mesmo do tempo em que não
vivi140”.
140
Idem, ibidem, terceira página.
141
Aspectos referentes à construção lingüística em Elomar serão discutidos em páginas seguintes.
142
CD Auto da Catingueira – (Faixa 1). Dados completos estão na Discografia. As próximas citações apenas
trarão o número da faixa entre parênteses.
O cantador mostra a preocupação de cumprir sua missão – perpetuar as histórias por
meio do canto, característica muito comum em sociedades de cultura oral, que têm a
tradição de contar “boca a boca”. Esse cantador funciona como instrumento do pensamento
coletivo e da memória popular:
143
CURRAN, Mark J. “A sátira e a crítica social na Literatura de cordel”, In: DIÉGUES JÚNIOR, Manuel et
al. Literatura popular em verso: estudos. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. p.311. Esse texto pode ser bastante valioso a
pesquisadores que se detêm no tema da cultura popular, pois suscita novos olhares, nada ingênuos, sobre a
Literatura de Cordel, chamando atenção de estudiosos de vários campos para uma rica fonte. Também
demonstra o mecanismo artístico utilizado pelos poetas populares que constituem a chamada literatura de
denúncia, por meio da qual revelam a ideologia do povo.
144
DIÉGUES JR, Manuel. “Ciclos temáticos na Literatura de cordel”. In: DIÉGUES JR, Manuel et al.
Literatura popular em versos – Estudos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda, São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, Rio de Janeiro: Fundação da Casa de Rui Barbosa, 1986. p. 40.
de visitas – fosse um engenho, uma fazenda, um sítio, também não raro uma casa
na cidade – reuniam-se os membros da família. A falta da eletricidade fazia o
candeeiro o ponto de convergência dos familiares: pais, filhos, irmãos, primos
etc. (...) E assim a história se divulgava.”145
145
Idem, ibidem, p.41.
146
Esse canto, na íntegra, encontra-se na Antologia.
A “quadra iscura” construída pelo violeiro-cantador tem a função de indicar o
tempo, o tempo marcado por elementos da Natureza, no caso a Lua. O fato de Dassanta ter
nascido sob a lua minguante, ou seja, “sem” lua no céu, reforça o caráter sombrio147.
O próprio nome atribuído à personagem revela seu caráter sagrado. O nome
Dassanta pode ser entendido de duas formas: da Santa (preposição + artigo + substantivo) –
ser de uma Santa; ou dá Santa (verbo + Santa) – pode vir a ser uma Santa. Importante
lembrar que:
Ela e a família chegam à Vila do Poção para que se possa realizar o batismo e o
registro. A criança está molhada pela chuva, estão todos com fome e com pouco dinheiro,
que será dado ao padre. Dassanta não será registrada por falta de recursos financeiros, mas
o batismo deve ser, a todo custo, realizado, pois é símbolo de purificação.
Há um “salto” no tempo, pois são oferecidos dados de Dassanta já adulta. Do verso
36 ao 48, há sua descrição física – já é “moça feita”, de beleza exuberante. São versos que
revelam elementos de sensualidade:
147
“As fases da lua mostram o astro da noite submetido à lei da morte e devir cíclicos. (...) Nas representações
escatológicas, o obscurecimento da lua é símbolo do juízo. (...) Na teologia primitiva cristã, o sol e a lua
tornam-se portadores e imagens de grandes mistérios”. LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos
bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993. p. 141. Ainda a respeito da lua, encontra-se: “A Lua é também o primeiro
morto. Durante três noites, em cada mês lunar, ela está como morta, ela desapareceu... (...) A vida noturna, o
sonho, o inconsciente, a lua são todos termos que têm parentesco com o domínio misterioso do duplo”.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 561-565.
148
ATTWATER, Donald. Dicionário dos Santos. São Paulo: Círculo do Livro, 1983. p.10.
Tinha nos ólho a febre perdedêra
Qui matava mais qui cobra de lajedo
Os pé piqueno e os cabelo cumprido
Imbaixo do vistido um bando de segredo” (Faixa 2)
Há uma característica bastante relevante apresentada nos versos acima: ter nos olhos
a “febre perdedêra” – um olhar sedutor, profundo e faceiro, que arrebata o coração dos
homens, traço que acaba provocando situações de ciúmes e desavenças, por isso
“perdedêra”. Essa beleza será sua fonte de perdição, já que está associada à morte, a duelos,
aos “trincá dos ferro”. Pode-se considerar Dassanta como uma variante do arquétipo da
mulher fatal149: bela, sedutora, fascinante, que intriga as pessoas, provocando medo, pois
ao envolver-se com ela, corre-se o risco de cair em danação. Tem-se, nesse auto, o vínculo
entre amor e morte, bastante recorrente nos textos “literários” da Idade Média, como, por
exemplo, em Tristão e Isolda.
A expressão “vea da foice”, registrada nos versos acima, demonstra que a morte foi
personificada pelo cantador por meio de uma imagem muito recorrente na Idade Média:
uma caveira, com seus tributos atemorizantes, carregando a foice que ceifa as vidas,
funcionando como uma “intermediária entre Deus e o diabo, entre bem e mal (...)”.150
A associação entre beleza e desgraça remete a alguns valores do medievo, como o
medo de ser belo, pois a beleza, expressa no corpo (fonte de impulsos irrefreáveis) incitava
149
“São inúmeros os exemplos de uma feminilidade temível e noturna na maior parte das mitologias. É o caso
de Ártemis e de Circe, na mitologia greco-romana: elas personificam uma fatalidade inquietante e exercem o
poder maléfico sobre o homem. (...) Além do físico, ela (a mulher fatal, no caso referindo-se a Carmem)
reunia todos os símbolos nictomorfos segundo uma perspectiva diurna: lindos cabelos negros, (...) olhar forte,
olhos de lobo penetrantes, pele acobreada como a de mouro. (...) Sua beleza e graça ao mesmo tempo
fascinam e intrigam, excluindo toda pureza”. BRUNEL, Pierre. Dicionários de mitos literários. Rio de
Janeiro: José Olympio. p.146.
150
WILLIAMS, G.S. “A morte como texto e signo na literatura da Idade Média”. In: BRAET, Herman;
VERBEKE, Werner (eds.). A morte na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1996. p. 134.
a ocorrência de pecados, como a concupiscência da carne e conseqüente perda da pureza,
expressando um espírito enfraquecido e dominado pelas paixões, o que inviabilizava a
reconquista do Paraíso perdido. Podem-se observar essas idéias em A demanda do Santo
Graal, por exemplo, precisamente com o personagem Galaaz, que, por ser extremamente
belo, é submetido à provação de não cair na tentação e infringir o princípio da castidade ao
ser assediado pela filha do rei Brutos. Gerhild Scholz Williams, estudando a morte como
texto e signo na Idade Média, aponta que “a luta pelo poder entre grupos da nobreza, a
poesia e o canto, o culto à mulher, o ‘amor cortês’ são apresentados como vazios e
condenados como perigosos para a alma”151. Assim, o fato de a Catingueira ser bela,
provocará galanteios e rivalidades, expressos primeiro pelos cantos, por meio do gênero
“desafio”, e depois com armas, que resultará na morte de Chico das Chagas e um Cantador
do Nordeste, que se deixaram levar pela luxúria, um dos pecados capitais, impossibilitando
que Dassanta receba a salvação, por ter sido, justamente, o motivo da danação dos
pretendentes152. Isso pode ser percebido pelo fato de ela ter-se transformado em pássaro ao
morrer:
153
A Catingueira é transformada em uma jaçanã . Segundo Darcília Simões, a
jaçanã, “por sair somente à noite e viver em pântanos, caminhando sobre as ninféias, essa
ave é identificada pelo povo com as almas penadas, que cumprem um castigo na terra, até o
151
Op. cit. WILLIAMS, p. 133-134.
152
Segundo os ensinamentos cristãos, “temos responsabilidade nos pecados cometidos por outros, quando
neles cooperamos: - participando neles direta e voluntariamente; mandando, aconselhando, louvando ou
aprovando esses pecados; não os revelando ou não os impedindo, quando a isso somos obrigados; protegendo
os que fazem o mal. Assim, o pecado torna os homens cúmplices uns dos outros, faz reinar entre eles a
concupiscência, a violência e a injustiça”. Op. cit. Catecismo. p. 500.
153
Jaçanã = Bras. Zool. Ave caradriiforme, jacanídea (Jacana spinosa jacana), espalhada por todo o Brasil,
de dorso vermelho-castanho vivo, uropígio e cauda mais escuros, rêmiges da mão verde-claras, com pontas
pretas, e cabeça, nuca e parte inferior pretas; nhaçanã, nhançanã, nhanjaçanã, piaçoca, piaçó, japiaçoca,
japiaçó, cafezinho, marrequinha, ferrão. [Aurélio, s.u].
juízo final”154. Ernani Maurílio, estudioso que apresenta a obra em questão, afirma que,
pelo fato da transformação em pássaro,
157
“Santo católico, primo de Jesus Cristo, nascido a 24 de junho (...) São João é festejado com as alegrias
transbordantes de um deus amável e dionisíaco, com farta alimentação, música, danças, bebidas e uma
marcada tendência sexual nas comemorações populares, adivinhações para casamento (...) Portugal possuiu
no espírito de sua população todas as superstições, adivinhações, crendices e agouros amalgamados na noite
de 23 de junho (...)” Op. cit. CASCUDO, s.d. p. 477-478.
auto é extremamente hermética, de difícil compreensão, não só pela estrutura sintática,
muito semelhante às construções barrocas – há, por exemplo, inversões violentas – mas,
sobretudo, pelo entrave lingüístico: o poeta utiliza neologismos e o dialeto catingueiro,
sustentado muitas vezes pela fonética, adotando uma grafia particular:
“sina cigana
vida de onça
vida tirana
é essa só de andança
e de vivê prissiguino
a criação mĩunça iê...
(...)
vida mais danada inda to pra vê
pelas parambêra desses socobó
vai mia vida intêra já murcha a fulo
Cuma se eu tivesse penas a pagá
pra sê prisionêra nesse caritó
ê vida tirana essa de pastora”158
“... son canciones para solistas, que pueden ser acentuadas por un
zapateado. Se originaron en las Azores, y en el Brasil se cantan y bailan e
festividades rurales, y también – para animarse en el trabajo – por lavanderas y
piragüeros”.159
158
Todas as próximas citações referentes ao Auto da Cantigueira pertencem ao terceiro canto, “Das visage e
das latumia”, faixa 3.
159
WECKMANN, Luis. La herencia medieval del Brasil.México: Fondo de Cultura Económica, 1993. p.
226.
160
LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1983. p.43.
161
(Idem, ibidem, p. 18)
162
LE GOFF, “Maravilhoso”. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente
medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, v.2, p.107.
163
Op. cit, LE GOFF, 1983, p.22.
sobrenatural”.164 Portanto, nesse canto, tem-se a expressão do maravilhoso catingueiro,
demonstrado por Dassanta ao longo dos versos.
Há, nessa parte, dois topoi presentes em textos medievais: as maravilhas são
reveladas em local ermo, quando a pessoa está sozinha, acontecem à noite, mais
precisamente à meia-noite, nas chamadas “horas abertas”, que também incluem o meio-dia,
as Trindades, o anoitecer e o amanhecer. Segundo Cascudo, são horas das visões, da
manifestação dos entes sobrenaturais, “hora estranha, parada, com arrepio sinistro nas
folhas.”165 Dassanta as chama de horas mortas, de “hora inselente” e por meio da
enumeração, expõe diversos entes, criando um clima de suspense:
A noite é uma hora concedida aos mortos, aos revenants166 , às almas penadas, pois
é “negra como o pecado; é negra também como as trevas do além que elas prolongam na
terra, as trevas povoadas pelas almas privadas da iluminação da visão de Deus”167.
Dassanta encontra-se com as almas penadas justamente à meia-noite:
164
Op. cit, CASCUDO, s.d, p.911.
165
CASCUDO, Luís da C. Superstição no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1985. p.418
166
Op. cit. WECKEMANN, p.169.
167
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1999. p.199.
(...)
cuano cheguei pert foi qui dei pur fé
fiquei toda ripiada da cabeça aos pé
(...)
topei Chico Nicolau mais Manezim Serrado
eu vi Naninha sentada pidindo ismola
cujos difunto nas viola
cantava uns canto de horrô”
“... é o filho que nasceu depois de uma série de sete filhas. Aos treze
anos, numa terça ou quinta-feira, sai de noite, e topando com um lugar onde um
jumento se espojou, começa o fado. Daí por diante, todas as terças e sextas-feiras,
de meia-noite às duas horas, o lobisomem tem de fazer a sua corrida, visitando
sete adros (cemitérios) de Igreja, sete vilas acasteladas, sete partidas do mundo,
sete outeiros, sete encruzilhadas, até regressar ao mesmo espojadouro, onde
readquire a forma humana”. 172
168
Op. cit. CASCUDO, s.d, p.171.
169
Idem, ibidem, p.371
170
Op. cit. LE GOFF, 1983, p. 31.
171
Op. cit. LE GOFF, 2002, p. 115.
172
Op. cit. CASCUDO, s.d, p. 518.
Danielle Pitta173, ao analisar os ritos de passagem no folclore pernambucano,
aponta que esse mito tem grande repercussão no Brasil, e a imagem do lobisomem
visitando cemitérios e sangrando crianças povoa a imaginação do nordestino.
Outras maravilhas reveladas por Dassanta são Uriinha, Boa-Tarde e Mão-Pelada,
que “malungaram”, ou seja, fizeram amizades com o Lobisomem. É bastante recorrente
nesse “Recitativo” a presença de almas penadas, de mortos conhecidos ou não. Em uma
noite, “muito dispois das ave-maria”, Dassanta ia à beira do rio, quando se encontrou com
uma bando de almas penadas, que costuravam e mediam tecidos, umas chorando e outras
gemendo, arrependidas por terem cometido o delito de roubar:
Nesse episódio, é nítida a função moralizante, pois quem comete pecados e não
pratica a confissão antes de morrer fica vagando pelo mundo dos vivos, em busca de
remissão das falhas, portanto é preciso cumprir a lei divina para se obter a salvação. Ao
explicar o objetivo do exemplum para o homem do medievo, o medievalista Jean-Claude
Schmitt aponta que
173
PITTA, Danielle P.R. O imaginário e a simbologia da passagem. Recife: Massangana e Fundação
Joaquim Nabuco, 1984. p. 51.
174
Op. cit, SCHMITT, 1999, p.145.
175
Op. cit, LE GOFF, 2002, p.117.
“minha mãe me insinô qui o dismarzêl
a sujêra e o dismantêl tombém é pecado
contô qui há muito na Lagôa Torta
morava ũa mulé , falo in vida da morta
dismantelada dos pé te os cabelo
cuns dente marelo e os vistido rasgado
varria a casa catano os farelo
e adispois amuntuava o cisco dum lado”
176
Op. cit, CASCUDO, s.d, p.790.
177
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800. São Paulo, Companhia das Letras,
1996. p. 243.
178
PONTES, Mário. “A presença demoníaca na poesia popular de Nordeste”. Revista Brasileira de Folclore.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, setembro de 1972, nº 34, p.261.
“Os mais corajosos e destemidos, porém ousam falar-lhes, e para
saberem o que pretendem, dirigem-lhes esta conhecida frase: ‘Eu te requeiro da
parte de Deus e da Virgem digas o que queres.’ E então faz a alma o seu pedido,
geralmente de missas e orações para sua salvação e entrada na celestial
mansão.”179
A Pastora também faz uso da bênção – “voltei corren olhan prá traiz e benzen”. Há
outros elementos de proteção, como o batismo, objetos sagrados como a cruz e a hóstia,
jejuns e orações. “Há um gesto de poder infalível, que salva de todos os perigos: o sinal da
cruz”.180
As maravilhas apresentadas no Auto da Catingueira têm algumas funções
evidenciadas. Uma delas é fazer um “contrapeso à banalidade e à regularidade do
quotidiano”181, porque a Catingueira depara com tensões diárias: é pastora, cuida de bodes
e cabras, vive a “retirada” de suas terras, em virtude das secas, sente saudades de um
tropeiro que conheceu no Sete Istrêlo. Por isso, o maravilhoso seria um modo de atenuar a
realidade, obnubilar a violência, a frustração, a solidão. Dassanta conta as “visage” após ter
reclamado imensamente da sina que acredita ter, de viver peregrinando, acompanhada de
cabras:
“sina cigana
vida de onça,
vida tirana
é essa só de andança
(...)
e assim se vai meus dia
tardes e mĩã
disperdiçado nesse labutá
disapartada de mĩas irirmã
sem o carin dos ôtros irirmão menó”
179
Op. cit, CASCUDO, s.d, p. 63.
180
BASCHET, Jèrôme. “Diabo”. Em: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. Dicionário temático do Ocidente
Medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, v.1, p. 326.
181
Op. cit. LE GOFF, 1983. p.24
Outra função do maravilhoso, evidenciada no texto, é a didático-moralizadora, que
reforça os ensinamentos cristãos por meio da sedução, ao desvendar realidades com
elementos assombrosos. Entretanto, há uma outra, implícita, que se contrapõe à didático-
moralizadora – a de contestar a ideologia cristã, à medida que mostra seres que não são
feitos “à imagem de Deus”182, ou seja, entes grotescos, deformados ou animalescos,
características que os aproximam do Mal. Há, ainda, a função estética, a de surpreender o
“leitor-ouvinte”, provocando uma dilatação do mundo e da psique até o desconhecido,
estimulando o “abrir bem os olhos para a criação e o imaginário”.183 Elomar desenvolve
com maestria essa última função.
O maravilhoso sertanejo, conjunto importante na constituição do imaginário, já
discutido no Capítulo II deste trabalho, indubitavelmente se alimentou de maravilhas
anteriores, conhecidas por meio de histórias bíblicas, de material da Bretanha, da Península
Ibérica e do Oriente, elaboradas inclusive na Idade Média. Circulam pelo Brasil desde o
século XV, por meio de folhetos e dos cantadores, sofrendo adaptações, continuações ou
transformações de acordo com as estruturas, o funcionamento, a cultura e os valores da
sociedade brasileira ao longo de sua formação. Assim, é possível o diálogo entre esses
elementos medievais e os da modernidade, como, por exemplo, com as maravilhas da
poética elomariana, pois como precisamente aponta Hilário Franco Júnior, historiador das
“mentalidades”,
“mesmo entre sociedades distanciadas no espaço e nas trajetórias
históricas, existem similitudes entre as respectivas culturas intermediárias –
devido ao substrato profundo da psicologia coletiva, a mentalidade – ainda que
possam ser enormes as diferenças entre suas culturas de elite”184 .
182
“Embora se diga que cada homem é criado ‘à imagem de Deus’, o entendimento mais corrente é que ele
não é esta ‘imagem’ nem em seu corpo visível nem na totalidade de sua alma, mas somente na parte superior
da alma (a razão: noûs ou mens). É nesse sentido que o homem, embora pecador, não deixa de levar a marca
do divino, mesmo que o corpo, pelo sofrimento e pela morte, e que a alma, por sua fraqueza temporária,
sofram tais limites como conseqüência do pecado Original”. SCHMITT, Jean-Claude. “Corpo e alma”. In: LE
GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Trad. (Coord.) Hilário Franco Júnior.
São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v. 1. p. 255.
183
Op. cit. LE GOFF, 2002, p. 119.
184
FRANCO JR, Hilário. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1996. p.35.
articulação entre o sagrado e o profano. Também facilita o “mergulho” nos elementos que
constituem o imaginário elomariano, o que reforça as idéias discutidas no Capítulo II.
O quarto canto, “Do pedido”, é o menor deles, com apenas 53 versos cantados por
Dassanta, acompanhada apenas de violoncelo. É um monólogo lírico, de matiz descritivo e
narrativo, com presença de refrão e paralelismo, com invocação ao amigo e estado
sentimental da pastora expressando ternura, singeleza e vaidade feminina, fatores que
fazem o leitor-ouvinte relacioná-la às cantigas trovadorescas medievais, mais precisamente
às de amigo. Já com relacionamento amoroso estabelecido com o tropeiro que conhecera
no Sete Estrelo, a catingueira faz pedidos de compra, uma vez que ele vai à feira. Esses
pedidos são simples produtos de gênero feminino e alimentícios, mas da forma como
Dassanta se reporta ao amado, parecem verdadeiros “mimos”, pois ela o faz de maneira
manhosa, chamando-o de “meu amigo”:
Segundo Manuel Viegas Guerreiro, esse gênero de cantigas persistiu por muito
tempo e continua “na boca do povo”185; está presente nos cancioneiros do século XV e
XVI, portanto um exemplo bastante representativo da literatura popular do medievo.
Nos primeiros 12 versos, já se têm informações que corroboram a idéia de Dassanta
ter um destino marcado pelo “sensitivo”, quando o leitor-ouvinte fica ciente da “visão” de
um cego-cantador:
185
GUERREIRO, M. Viegas. Para a história da literatura popular portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura
de Língua Portuguesa, 1983. p.43
Pur esse mundo
E morrê aina em flô”
Paul Zumthor, citado acima por Idelette Muzart, fazendo uma incursão pelos
intérpretes que utilizaram e utilizam a vocalidade187 ao longo dos séculos, afirma:
186
SANTOS, Idelette M.F dos. Em demanda da poética popular – Ariano Suassuna e o movimento Armorial.
Campinas: Editora da Unicamp, 1999. p. 122-123.
187
Zumthor utiliza o termo “vocalidade” em lugar de “oralidade”, pois entende que “vocalidade é a
historicidade de uma voz: seu uso Uma longa tradição de pensamento, é verdade, considera e valoriza a voz
como portadora da linguagem, já que na voz e pela voz se articulam as sonoridades significantes.”
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz – A “Literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 21
etnológico marcante, que se pôde observar, ainda em nossos dias, em todo o
Terceiro Mundo. Sem dúvida, numa sociedade em que nenhuma instituição
assegura nem o cuidado nem a reinserção do cego, a solução mais óbvia de seu
problema é a mendicância, e o canto pode ser o meio. Mais fortemente do que as
motivações econômicas, porém, atuaram as pulsões profundas que para nós
significam, miticamente, figuras antigas como Homero ou Tirésias: aqueles cuja
enfermidade significa o poder dos deuses e cuja ‘segunda vista’ entra em relação
com o avesso das coisas, homens livres da visão comum, reduzidos a ser para nós
só voz pura”. 188
188
Idem, ibidem, p. 58.
189
Para informações completas – biografia, obras, repercussão nacional – consultar ADERALDO, Cego. Eu
sou o cego Aderaldo. São Paulo: Maltese, 1994.
190
“O batismo e a eucaristia – praticados pelos crentes, através do espírito, uma parte na própria vida em
memória do Jesus ressuscitado – vieram a ser promessas, também, de uma salvação final que ainda
permanece à frente, além da morte e do colapso da história humana: tipos ou símbolos da vida do mundo
vindouro”. Op.cit. DALEY, 1994. p. 17
191
“Canguinhos” são “diabinhos” cultivados em garrafas, que realizam desejos de seus donos. Segundo
explicação de FIGUEIREDO (Op. cit, s.d. sem página) no livro a respeito do auto, são “entidades demoníacas
que ‘pautam’ com os gananciosos, propondo-lhes fausto e riquezas temporais (terrenas) às custas da prisão
eterna de suas almas na vida extradimensional”.
de elementos sobrenaturais (noite de lua cheia, a festividade acontecendo na casa de um
feiticeiro que se transforma em lobisomem, porque os pais não o batizaram), que ocorrerão
no próximo canto, quando Dassanta e Chico das Chagas comparecerão a uma festa onde se
iniciará a “desgraça” do casal.
193
CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, s.d.
194
Op. cit. CASCUDO, s.d. p.236-237.
“Falta o iluste cumpanhêro
Marcá o lugá da prufia
Se lá fora no terrêro
Ô aqui mêrmo no salão”
195
CARDINI, Franco. “O guerreiro e o cavaleiro”. In: LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Lisboa;
Editorial Presença, s.d. p. 57- 78.
196
FLORI, Jean. “Cavalaria”. In: LE GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente Medieval.
Trad. (Coord.) Hilário Franco Júnior. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. 2v. p. 196.
litorânea. Os instrumentos de acompanhamento são a viola e a rabeca no Norte, a
sanfona e o violão no Sul, sem que se possam fixar preferências”. 197
Nos cantos 65 a 86, o cantador expõe os gêneros de cantoria dominados por ele,
exigindo o uso dos mesmos pelo tropeiro nesse desafio – “mourão, martelo, tirana, ligeira,
parcela, obra de nove, oito, sete e seis pés em quadrão”. O tropeiro oferece no mote,
alicerçado em sua experiência de vida com humildade, as frustrações e a busca pela
felicidade:
O tropeiro, crente nas palavras divinas, mostra que a vida é uma “istrada dos
disingan”, mas que é preciso passar pela mesma para se conhecer a felicidade, pois é nela
que se padece, que se faz a remissão dos pecados.
Desejando complicar a situação do companheiro de Dassanta, já que ele havia
cumprido os versos e ganhado a simpatia dos ouvintes, o cantador do Nordeste lança um
mote que exige erudição: a Noite de Reis, tema já discutido no capítulo anterior. Mais uma
vez, o tropeiro responde à altura do cantador profissional, que o elogia:
197
Op. cit. CASCUDO, s.d. p. 349. Consultar também CASCUDO, L.da C. Vaqueiros e cantadores. Belo
Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 177-181. Nessa parte da obra,
o autor faz uma retrospectiva histórica a respeito do gênero, desde a Antigüidade à Idade Média, citando que
o Brasil recebera a tradição de Portugal. Cita muito brevemente, duas palavras, a respeito dos árabes, fato que
intrigou o pesquisador Luis Soler, que afirma a origem do desafio como sendo árabe: “Desafio, diálogo
contrapontado mais ou menos agressivo, questionário adivinhatório etc., que foram (e são) características
marcantes da tradição poético-musical dos árabes em seus aspectos de espetáculo e de relacionamento
humano, motivo pelo qual não podemos estranhar que seja precisamente chamado de “mourão” um tipo de
cantoria baseada no diálogo.” SOLER, Luis. Origens árabes no folclore do sertão brasileiro. Florianópolis:
Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1995. p. 104.
Cantan cum gent letrado?”
Sem hesitar, o companheiro de Dassanta responde com uma ordem para que o
cantador do Nordeste busque nas Sagradas Escrituras, em Lucas, 21198, a interpretação para
seu sonho, frisando que, nesse capítulo, encontraria as palavras do Mestre a respeito do fim
dos tempos.
É corrente a aceitação entre diversos pesquisadores de cultura popular que a Bíblia é
uma importante fonte, quando não a principal, de conhecimento e inspiração. Da mesma
forma são as histórias tradicionais, como História da donzela Teodora; História do grande
Roberto, duque da Normandi; História da princesa Magalona; História da Imperatriz
Porcina; História de João de Calais e, ainda, História do imperador Carlos Magno e os
Doze Pares de França. Câmara Cascudo, em um estudo a respeito da novelística no
Brasil199, recorre a documentos do Santo Ofício para especular sobre o que os brasileiros
liam no século XVI e XVII. Verificou que não há referência, nesses documentos, às
novelas tradicionais e que, certamente, eram lidos volumes de orações, hagiolários, sermões
e livros de exemplos, lembrando que os livros eram destinados aos mercadores e fidalgos,
enquanto os folhetos, ao povo alfabetizado. Liam-se também o Lunário perpétuo - uma
espécie de almanaque com conhecimentos de astronomia, astrologia, agricultura e cuidados
198
“Então prosseguiu a dizer-lhes: ‘Nação se levantará contra nação e reino contra reino; e haverá grandes
terremotos, e, num lugar após o outro, pestilências e escassez de víveres; e haverá vistas aterrorizantes e
grandes sinais do céu’.” Lc 21:10-11.
199
CASCUDO, Luís da C. Cinco livros do povo – Introdução ao estudo da novelística no Brasil. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio, 1953. p.10-13.
medicinais200 – algumas novelas, a Bíblia e a cartilha. Como a vida familiar era intensa, em
virtude do isolamento das fazendas, da falta de jornais, de rádios e de televisão, os serões,
as leituras de novelas e folhetos, após o jantar, eram freqüentes201.
Continuando o desafio, nos versos 211 a 222, o leitor-ouvinte percebe que o tom
amistoso, mantido até então, começa a desaparecer em função da ousadia do cantador do
Nordeste, que claramente se declara a Dassanta, exigindo que o tropeiro pague o mote com
o gênero “parcela”202, que é tido como um canto causador de desgraça e infelicidade,
indicando ao leitor-ouvinte a intenção de lutar pela Catingueira, sabendo que pode haver
morte com essa luta:
200
Antonio Nóbrega, que foi membro do Movimento Armorial, conforme nota explicativa no Capítulo I,
gravou um CD intitulado Lunário Perpétuo, por Brincante Produções Artísticas Ltda, no qual traz algumas
cantigas com elementos existentes no Lunário Perpétuo.
201
Nesse aspecto, Cascudo confirma as informações já citadas em nota anterior. Ver DIÉGUES JR, 1986.
p.40.
202
Já explicado em nota no Capítulo II.
203
“O grupo de elementos musicais autenticamente raciais dos árabes, historicamente documentados e ainda
marcantes nos povos muçulmanos de hoje, poderíamos resumi-los no seguinte enunciado de tendências: (...)
6) Um apreço muito maior pelos valores do verso que pelos valores propriamente musicais. Razão que explica
a rude maneira de cantar dos violeiros; dentro da qual os elementos musicais, mais do que valerem por si
mesmos, servem sobretudo para sonorizar o recitado poético e ajudá-lo a chegar aos ouvintes : um sistema de
impostação de voz, em suma. (...) ocorre-nos que tudo o que teria de surpreendente tem de coerente ao
supormos a sobrevivência do h’idá beduíno (ye hedia... ye yada...), nos “ai, d-a dá” das ligeiras que são
cantadas nos desafios”. Op. cit. SOLER, 1995. p.101-104.
“perguntação”. O tropeiro aceita, dando um mote misto, com realidade e dados
sobrenaturais, exigindo do cantador experiente as respostas:
“Fazeno a priguntação
Quantas pena tem a treis-pote
Quantos dente tinha o pente
Qui canguin pintiava o cão
No meio de tanta gente”
“O colega adversaro
Num tem o canto apurado
Se cantasse pur salaro
Há muit qui era finado
(...)
agora feito um feitiço
ta meu colega imbuiado
apois quero tudo isso
num só folgo respostado”
O tropeiro consegue pagar o mote dos versos 320 ao 343. Esse momento do desafio
é importante para o auto, porque é a partir dele que se obtêm dados sobre o tropeiro. Chama
Chico das Chagas, nascido no sertão da Bahia, no distrito de Brumado. Faz uma bela
declaração de amor a Dassanta, pressagiando como trágico seu próprio fim, pois decidiu
ficar ao lado dela.
O cantador não se assusta com os cantos de Chico e continua afirmando que facão
(morte), sua forma violenta de solucionar os combates; viola (diversão), instrumento que
mostra como é habilidoso e astuto, mas que é também meio de arrumar confusões; e
mulher (amor), motivo de suas desavenças, sempre foram sua perdição. Exibe que não
sente medo de morrer, pois já sofrera muito, confirmando sua sina de viver na ilusão ou
buscar os “cutelo da morte”:
Os dois pelejadores já estão conformados que deverão travar uma luta com armas,
cada um assumindo um motivo para esse ato – o cantador quer Dassanta e Chico das
Chagas, respeitando o código de valentia, quer honrar sua dama. Portanto, o motivo da
porfia é Dassanta, o que corrobora a descrição da personagem em cantos anteriores:
Depois de ouvir Chico das Chagas dizer que sua morte estava próxima, que naquela
noite, antes da aurora já teria partido, Dassanta, preocupada, tenta amenizar a situação e
recobrar o bom senso do tropeiro. Interessante notar que esse fato remete aos cavaleiros das
gestas medievais, que também sabiam que morreriam. Esse conhecimento ou intuição era
adquirido em sonhos ou em outros sinais tidos como anunciadores da morte. No caso do
Chico das Chagas, houve o sinal do galo e o sonho de sua mãe. Philippe Ariès, em seus
estudos a respeito da morte, denomina essa situação de “morte domada”, o que revela certa
aceitação dela.204 É o único momento em que Dassanta participa da cantoria, ocupando a
estrofe com o maior número de versos (52). Ela relembra ao companheiro o que deixaram
em casa – três filhos dormindo, desprevenidos de roupas e alimentos, um filho enterrado no
dia anterior, natimorto, o roçado aberto, o telhado sem telhas, a aproximação da chuva, a
esperança que ela tem de vê-lo rico.
O tropeiro não atende a seu apelo e o certame acontece, findando com a morte dos
três. É importante ressaltar que a atitude do tropeiro, Chico das Chagas, não é mera
teimosia, mas a expressão de um código de conduta praticado entre os vaqueiros
204
ARIÈS, P. História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
p. 26-27.
nordestinos. Idelete M. F. dos Santos mostra que o vaqueiro representa o herói popular por
excelência205, ligado
O narrador entra ao final do auto com a mesma justificativa que utilizou no canto
introdutório, “Bespa”, e legitima sua história recorrendo à memória de seus antepassados,
como transmissores de histórias por gerações:
“Minha vó conto
Cuan meu avô morreu
Dindinha conto
Cuano vovô morreu
Qui foi triste aquela função”
205
Aqui se incluiu o tropeiro, que apesar de conduzir as tropas e ser responsável por transações comerciais,
também lida com o gado e convive no mesmo ambiente sócio-cultural.
206
Op. cit. SANTOS, 1999. p. 91-93.
transformação de histórias e costumes arcaicos, que permearam o imaginário do homem
por séculos, nas mais diversas culturas.
Também é rico seu aspecto formal, por se apresentar em forma de “auto/ ópera”,
promovendo transformações dentro do gênero e aclimatando-as aos “gostos” brasileiros por
meio de linguagem musical nacional, ao fazer uso de instrumento popular, como a viola,
associada a outros considerados eruditos, como a flauta transversal e o violoncelo; ainda
por meio de uma linguagem verbal singular, ao imiscuir o dialeto catingueiro ao léxico
culto, aos neologismos e aos arcaísmos.
207
SIMÕES, Darcília. “Elomar e a língua sertaneza”. V SENELEP, Erechim, RS, 2002.
“Parcela da língua sertaneza de Elomar Figueira Mello”. Atas do VI Congresso Nacional de Lingüística e
Filologia. Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2002.
Segundo a pesquisadora,
“Uma língua é identidade de um povo que, por sua vez, atualiza essa
língua de formas diferenciadas, em decorrência de sua distribuição no tempo, no
espaço e na organização social. Logo, num país com as dimensões do Brasil, a
variante do português aqui praticada sofre influências das mais diversas, gerando,
assim, um leque de concretizações lingüísticas que precisam ser conhecidas,
sobretudo pelo povo brasileiro.”208
Elomar faz uso tanto do estilo formal, ou seja, uso padrão da língua, imiscuído a
formas antigas, como também da fala regional, praticada no sertão baiano, uma fala
espontânea, particular, pretensamente fonética, apoiada no cotidiano do catingueiro. A
título de exemplo, tem-se a cantiga “Arrumação”:
SIMÕES, Darcília (Org). Língua e estilo de Elomar. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006.
208
Op. cit. SIMÕES, 2006, p.13. A pesquisa realizou uma investigação de cunho léxico-semântico-semiótico,
levantando as unidades léxicas de todos os textos poético-musicais de Elomar. Como meta final, elaborou um
pequeno dicionário da linguagem sertaneja.
aos serviços que devem ser executados antes da chegada da chuva. São tarefas corriqueiras,
desenvolvidas em um cenário rural, sertanejo, portanto a linguagem empregada pelo
cantador faz uso de regionalismos e vocábulos com traços orais: “forro ramiado” (céu que
anuncia chuva); “reduzi” (reduzir, com sentido de juntar o gado); “balai” (balaio – cesto de
palha, de talas de palmeira, ou de cipó); “chiquera” (prende no chiqueiro, local onde se
criam bodes, cabras e porcos); “panicum” (panacum – cesta de boca larga); “prisunha”
(animal com a anomalia genética de ter uma unha a mais, indicando ser um bom animal de
caça ou reprodutor); “seda branca” (bode reprodutor); “sussarana” (Suçuarana – mamífero
carnívoro, felídeo, comum em toda a América nos tempos coloniais. Sua coloração é
amarelo-avermelhada queimada, mais escura no dorso, amarelo-claro na parte ventral, seus
filhotes nascem pintados com manchas escuras no corpo, também conhecido como
puma)209; “ai roxo” (alho roxo, o alho roxo demora de 5 a 7 meses, enquanto as outras
lavouras demoram menos); “culhê” (colher, redução do infinitivo); “cum” (com); “trimina”
(termina – metaplasmo de transposição); “tuia” (forma vocalizada para tulha, grande arca
usada para guardar cereal.210 Trata-se também, na zona rural, de um cômodo da casa
utilizado como depósito para guardar ferramentas, sementes e suprimentos).
O poeta faz uso da variante211 sertânica de maneira consciente e com propriedade,
deixando claro a seu público o apreço que sente pelo idioma nacional, mas também sabe da
dificuldade que esse emprego pode gerar àqueles que não têm a vivência lingüística do
nordestino:
209
Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d.
210
Idem, ibidem.
211
“Chama-se variação o fenômeno no qual, na prática corrente, uma língua determinada não é jamais, numa
época, num lugar e num grupo social dados, idêntica ao que ela é noutra época, em outro lugar e em outro
grupo social. (...) De acordo com L. Hjelmslev, a variante é uma forma de expressão diferente de outra quanto
à forma, mas que não acarreta mudança de conteúdo em relação a essa outra.” Em: DUBOIS, Jean et al.
Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 609.
212
Prólogo à apresentação da ária “Faviela” no CD Cantoria 3 – Elomar canto e solo. (apud, SIMÕES.
Darcília. “Elomar e a língua sertaneza”. V SENELEP, Erechim, RS, 2002).
As obras do autor apresentam um potencial expressivo em língua portuguesa
latente, que clama por desvendamentos, sem os quais a compreensão de uma simples
canção fica comprometida, o que exige do leitor-ouvinte uma postura ativa ante o ritmo,
musicalidade, construções, imagens e vocabulário. Sua forma de composição sintático-
lingüística e escolha lexical estão fortemente atreladas às opções temáticas. Quando a
opção temática recai no mundo do sertanejo, há utilização da forma dialetal213 sertaneja,
como já visto em “Arrumação”. Em cantigas cujo tema remonta ao medievo, trazendo
histórias de reis, donzelas e cavaleiros, e também nas de teor religioso, há
predominantemente presença da forma padrão da língua, expressões antigas e arcaísmos,
como se pode observar em “Cantiga de amigo”:
Nessa cantiga, são perceptíveis elementos de cunho medieval, sobretudo por meio
da escolha lexical, pois o cantador traz marcas da lírica trovadoresca, como nas cantigas de
amigo: “cantar”, “cantiga de amigo”, “amiga”, “mulher”, “madre”, “cabelos”, “anelos”. O
vocabulário usado aqui transita entre o arcaico e o palaciano; por exemplo, a palavra
213
“Dialetal: por oposição a corrente, clássico, literário, escrito, o adj. dialetal serve para caracterizar uma
forma de língua como variedade regional sem o status e o prestígio sócio-cultural da própria língua. (...) Uma
língua se dialetaliza quando toma, segundo as regiões onde é falada, formas notadamente diferenciadas entre
si; a noção de dialetação pressupõe a unidade anterior, pelo menos relativa, da língua em questão.” Op. cit.
DUBOIS, 1997. p. 183
“anelos” tem seu uso datado em 1657 e com pequena freqüência de utilização.214 Em outras
cantigas, encontram-se várias expressões e vocábulos eruditos, que também remontam à
Idade Média, como “donzela”, “murzelo”, “tresloucado cavaleiro andante”, “infindas
sendas”, “cerúleas regiões” e tantos outros. Assim, o poeta-cantador, por meio de
estruturas gramaticais normativas, seleção vocabular e temática voltada ao medievo,
demonstra requinte em seu texto, próprio de usuários da língua culta. 215
Esse modo particular de construir seus poemas, usando tanto a forma dialetal quanto
a culta, faz com que
214
Cf. Houaiss [s.u]
215
Op. cit. SIMÕES, 2006. p.36.
216
Op. cit. SIMÕES, 2006. p.18.
217
Idem, ibidem. p.18
africana, como a palavra “zagaia” (africanismo – azagaia com aférese – qualquer lança de
arremesso) e os versos “Uiúre iquê uatapí apecatú piaçaciara / Unheên uaá uicú arauaquí
ára uiúre Ianêiara” (formas indígenas218), na introdução da cantiga “O canto do guerreiro
Mongoió”, que desenvolverá a temática referente às origens dos primeiros povos que
habitaram Vitória da Conquista. Quanto aos neologismos, em outras cantigas, há
“cavandante” (cavaleiro + andante), “pantumia” (pan + latomia), “deserança” (des +
herança), “improibi” (não + proibir).
Vários metaplasmos sugerem evolução vocabular, manutenção de um estágio
arcaico da língua ou evolução fonética. No domínio lexical, ocorre um processo
denominado monotongação – resultado de uma tendência fonética histórica de apagamento
da semivogal nos ditongos crescentes ou decrescentes. Tal tendência já era observada no
latim vulgar. Observa-se esse processo, por exemplo, em “iscapô” (escapou); “trombetêro”
(trombeteiro). Também ocorre a desnasalação – apagamento do som nasal – “ofendêro”
(ofenderam). Encontra-se a epêntese, fenômeno que consiste em intercalar em uma palavra
ou grupo de palavras um fonema não etimológico por motivos de eufonia, de comodidade
articulatória, por analogia etc., como – “voiz” (voz), “péis” (pés). Verifica-se uma
recuperação do português arcaico, como “lũa” (luna), “intonce” (enton), “in” (em), “mili”
(mil), “homes” (homẽs). É possível apontar a ocorrência de anaptixe ou suarabácti –
epêntese especial que consiste no desfazer de uma dificuldade de pronúncia decorrente de
grupo consonantal ou travamento silábico, como em “irirmão” (irmão). Tem-se ainda a
aférese – supressão de fonema no início de vocábulo, a exemplo de “rubin” (querubim). A
vocalização das palatais, que trata de uma mutação fonética na aproximação articulatória
entre um fonema consonantal e um vocálico, via de regra, dá-se no contato com a vogal
palatal /i/, verificável em “fio” (filho), “chucaiá” (chocalhar), “tuia” (tulha). Em “istei”
(esteios) ocorre uma apócope, uma supressão de fonema no final do vocábulo..
No domínio dialetal, tem-se a redução da marca de plural – “dos ano”, “nas minha
andança”; redução do gerúndio – “ritirano” (retirando), “cantano” (cantando); opção pela
variante –im, em lugar de –inho: “camin” (caminho), “carrin” (carrinho); perda do travador
consonantal vibrante velar /R/ - “isperá” (esperar), “dô” (dor). Esses processos estão
218
Esses versos não são traduzidos por Elomar em nota explicativa presente no encarte do CD Na quadrada
das águas perdidas.
ligados à oralidade, revelando o uso espontâneo, familiar e “econômico” da língua. Jerusa
Pires Ferreira, na elaboração do encarte do CD Cartas catingueiras, discutindo o dialeto
utilizado por Elomar, explica:
219
FERREIRA, Jerusa Pires. Encarte do CD Cartas Catingueiras, 1982.
220
Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 25.
221
Op. cit, SIMÕES, 2002.
6. Conclusão
A partir da citação acima, que resume com acuidade a arte de Elomar, discutem-se
alguns pontos para concluir essa Dissertação. Elomar, representante da cultura popular
brasileira, promove o livre trânsito entre erudito e popular, oral e escrito223, sem que haja
polarização de um ou outro termo, considerando as perspectivas assumidas neste trabalho.
Assim, compartilha-se das idéias de Paul Zumthor quando afirma que cultura popular
refere-se aos usos de determinados elementos e não a sua essência224.
222
LISBOA, Cezar. “Elomar Figueira Mello – o canto mágico do sertão”. Jangada Brasil, abril 2001, Ano III,
nº 32.
223
Pode-se estabelecer semelhança entre Elomar e Ariano Suassuana, que recorreu e recorre a essa
ambivalência oral-escrito ao estabelecer fundamentos da arte poética armorial. Cf. SANTOS, 1999.
224
Consultar BATANY, Jean. “Escrito/oral”. In : LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário
temático do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v1. p. 383-
395.
225
Op. cit. ZUMTHOR, 2001. p. 118-119.
226
A respeito do conceito de “Cultura intermediária”, consultar FRANCO JR, Hilário. “Meu, teu, nosso –
reflexões sobre o conceito de cultura intermediária”. In: A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São
Paulo: Edusp, 1996. p. 35-41.
“Tem gente que acha que minha música é popular, tem gente que acha
que é regional, outros acham que é erudita. Minha música não é popular, ela está
situada entre o erudito e o regional, pois o regional, quando é puro, tende à
universalização. (...) Mas a música regional, do universo que faço parte, é aquela
que não é urbana e que traduz os sentimentos mais ligados à vida campestre: as
tragédias, os romances, as dificuldades pela sobrevivência. Via de regra, o que
impera é o meteorológico em si, a seca, a enchente, as retiradas.”227
E acrescenta:
227
Entrevista a Fausto Mattos Silva, em setembro de 1994. In: SILVA, F. M. “Música regional e indústria
cultural”. Monografia apresentada no curso Relações Públicas, nas Faculdades Salvador. Salvador, dezembro
de 1994.
228
Op. cit. SANTOS, 1999. p.17.
229
idem, ibidem, p.19.
“Não se trata de construir pontes e relações como costumamos ouvir, e
sobretudo em outros casos, entre o erudito e o popular, mas é como uma travessia
interferente. É o grande texto oral de milênios. Escuta que transfigura elementos,
porções, segmentos e as remete, de novo, a um resultado da forma mais excelente
e elaborada. Aí tudo é perfeito e ressoa como se escutássemos ecos. Idade Média?
Sim e não. Porque há antes de tudo a força do dia a dia do sertão, suas práticas,
seus ritos, seus fazeres. Mas há o cancioneiro galaico-português, o mundo árabe e
judaico, o discurso bíblico, o universo e a gesta dos ciganos, seus mistérios, e a
presença forte de sua linguagem musical.” 230
230
FERREIRA, Jerusa Pires. “Encontrando as Cartas catingueiras”. In: MATOS, C. N.; TRAVASSOS, E.;
MEDEIROS, F.T. de. Ao encontro da palavra cantada: poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.
p.171.
231
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna – Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. p.15.
232
Idem, ibidem, p.69.
espera pelo momento do Juízo Final, o uso de palavras arcaicas e vocábulos próprios,
preenchendo o imaginário nordestino com as justas (relidas no desafio entre Chico das
Chagas e o cantador do nordeste, em nome da honra da dama, a Dassanta), histórias de
princesas, reis, cavaleiros – elementos estes encontrados nas produções analisadas nessa
Dissertação.
Elomar Figueira Mello, inegavelmente, após a apresentação e discussão de suas
obras, pode ser considerado um caso particular da cultura brasileira. Representa, ou
expressa, sem dúvida, o Brasil, no que tange a aspectos sócio-histórico-culturais. O
primeiro argumento que explica essa afirmação é a interpenetração das esferas popular e
erudito, oral e escrito, regional e universal, salientada nos parágrafos anteriores. Um
segundo argumento é seu processo de criação lingüística, um processo artesanal, que
consiste em esculpir os sentidos por meio de ludicidade, plasticidade, atualização e
observação. Rachel de Queiroz depõe:
233
QUEIROZ, Rachel. “Um romance picaresco?. In: SUASSUNA, A. Romance d’A pedra do reino e o
príncipe do sangue do vai-e-volta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p.16.
O emprego lexical, bem como suas expressões poéticas, que conferem plasticidade à
obra, parecem confirmar uma brasilidade tênue ao ser fiel na explicitação do sertão
nordestino. Dessa forma, por meio da criação de um idioleto234, Elomar expressa sua arte,
com empenho à palavra, estabelece vínculos que atam a sociabilidade, pois a linguagem
literária não apresenta uma estrutura fixa, o artista é:
“livre para escolher e criar uma estrutura própria que proporcione a ele
uma clara expressão de seus sentimentos e idéias. Assim, construindo o texto de
acordo com seus próprios desejos, o escritor consegue que sua criação tenha um
novo valor – passa da simples utilização comunicativa da linguagem a uma
utilização artística da mesma (...). A linguagem passa a ter ‘sabor’”.235
Umberto Eco, que discute a idéia de idioleto, código próprio adotado e criado por
um indivíduo, afirma que este pode causar o efeito de estranhamento nos leitores que não
estão familiarizados com a obra. É o que acontece no caso de Elomar. Entretanto, Eco
ressalta que “o fim da imagem não é tornar mais próxima da nossa compreensão a
significação que veicula, mas criar uma significação particular do objeto”236. É aí que
reside a beleza das composições elomarianas e seu caráter singular, pois o procedimento
acaba re-significando elementos comuns do modo de vida do sertanejo, transpondo-os para
a universalidade.
Assim, Elomar, transitando por variedades lingüísticas – sertânicas, arcaicas,
poéticas, neológicas, com as quais dá voz a seus personagens –, por diversos gêneros –
dramático, lírico e épico –, pelo erudito e popular, por elementos do imaginário medieval,
pelo oral e pelo escrito, mescla saberes e sabores distintos, conferindo a sua obra uma
intensa completude, trazendo à tona elementos que:
234
Idioleto entendido como um “conjunto dos enunciados produzidos por uma só pessoa, e principalmente as
constantes lingüísticas que lhes estão subjacentes e que consideramos como idiomas ou sistemas específicos;
o idioleto é, portanto, o conjunto dos usos de uma língua própria de um indivíduo, num momento determinado
(seu estilo)”. Op. cit. DUBOIS, 1997, p. 329.
235
AMORIM, A.R. “A literatura em busca de um conceito”. Urutaguá. Revista da Universidade Estadual de
Maringá, Ano I, nº 2, julho de 2001.
236
ECO, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 71.
Elomar re-busca a paisagem cultural brasileira, cantando-a, ora com a
ingenuidade – por exemplo, cruzando variedades lingüísticas - e a pureza do
caipira sertanejo, ora com a eloqüência do poeta que conhece os clássicos da
literatura universal e que se embebe das fontes mitológicas e míticas que
emolduram a religião”.237
237
Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 32 e 35.
238
Op. cit. SANTOS, 1999. p. 285.
239
A respeito do assunto, consultar ORTIZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. São Paulo:
Olho Dágua, 1985.
defende a idéia de “viagem circular” de temas e fontes, mostrando que o que retorna jamais
é o mesmo que partiu”240.
A obra de Elomar é um amálgama, já que perpassa por diversos movimentos
literários: Barroco, Romantismo e Regionalismo. Isso é possível, já que
240
BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 193.
241
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil – Era barroca e era neoclássica. São Paulo: Global, 1997. v3.
p.15.
242
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2002.
7. DISCOGRAFIA DE ELOMAR FIGUEIRA MELLO
MELLO, Elomar Figueira. Das Barrancas do Rio Gavião. (CD). Manaus: Polygram do
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______________________. Na quadrada das águas perdidas. (CD). Manaus: Sonopress –
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_______________________com, LIMA, Arthur Moreira, DO MONTE, Heraldo; GOMES,
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_______________________. Fantasia leiga para um rio seco. (CD). Manaus: Sonopress-
Rimo da Amazônia Indústria e Comércio Fonográfico Ltda., selo Rio do Gavião, 1981.
_______________________com LIMA, Arthur Moreira; MOURA, Paulo. Consertão.
(CD) Kuarup Discos, 1982.
_______________________Cartas catingueiras. (CD). Manaus: Sonopress – Rimo da
Amazônia indústria e Comércio Fonográfico Ltda., selo Rio do Gavião, 1983.
______________________. Cantoria 1. (CD). Kuarup Discos, 1984.
______________________. Cantoria 2. (CD). Kuarup Discos, 1984.
______________________. Auto da catingueira. (CD). Manaus: Sonopress – Rimo da
Amazônia Indústria e Comércio Fonográfico Ltda., Editora e Gravadora Rio do Gavião,
1984.
_____________________ com SANTOS, Turíbio; XANGAI e MELLO, João Omar.
Conserto sertanez, (CD).1985.
______________________. Dos confins do sertão. (CD). Alemanha Ocidental: Trikont,
1986.
______________________. Elomar em concerto. (CD). Kuarup Discos, 1989.
______________________.Árias Sertânicas. (CD). Manaus: Sonopress – Rimo da
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