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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA


PORTUGUESA

Das visage e das latumia de Elomar Figueira Mello

Alessandra Bonazza

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Literatura Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre
em Letras.

Orientadora: Profª Drª Lênia Márcia de Medeiros Mongelli

São Paulo
2006
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA


PORTUGUESA

Das visage e das latumia de Elomar Figueira Mello

Alessandra Bonazza

São Paulo
2006
DEDICATÓRIA

Ao Sílvio, companheiro e malunga, domador de lubião!


AGRADECIMENTOS

Márcia Mongelli, por ter acreditado que era possível.

Geraldo Augusto Fernandes, Ana Paula Machado D’Ávila e “Seu” Ivanísio, pelo apoio
incondicional.

Regina Célia Tocci Di Giuseppe, pelos “sopros” bíblicos.


RESUMO

Pretende-se, neste estudo, analisar e discutir as obras Cancioneiro, o poema épico


Fantasia leiga para um rio seco e o Auto da Catingueira, de Elomar Figueira Mello, um
artista brasileiro, cantador, operista, arquiteto e criador de bodes, que utiliza em seus textos
poético-musicais imagens do universo medieval “relidas” pelo sertanejo. Com uma
linguagem singular, permeada de arcaísmos, variantes dialetais e neologismos, suas
produções transitam entre o erudito e o popular, demonstrando valores artísticos baseados
na estética européia tradicional e recriados segundo modelos nordestinos, revelando a
diversidade brasileira e, principalmente, o mundo do sertanejo. A análise centra-se no
imaginário religioso do catingueiro e suas confluências com o imaginário medieval, em
aspectos da espiritualidade como a peregrinação e a escatologia. Assim, objetiva-se pensar
na produção elomariana como representante da cultura popular brasileira e partícipe na
construção da identidade nacional.

Palavras-chave: Elomar, cultura popular, espiritualidade, imaginário, identidade


nacional.
ABSTRACT

The purpose of this study is to analyse and discuss the works of the Brazilian artist,
singer, opera composer, architect and goat breeder Elomar Figueira Mello. The pieces to be
studied in this essay are his Cancioneiro, the epic poem Fantasia leiga para um rio seco
and Auto da Catingueira, which poetic and musical images of the medieval universe are
“re-read” by the inlander Elomar. Using singular language, full of archaims, dialectic
variants and neologisms, his works are found between erudition and popularity, showing
artistic values based on the European aesthetics, and recreated according to Brazilian
northeast models It also reveals revealing the Brazilian diversity, and mainly the inlander
world. The analysis focuses on the “catingueiro” religious imaginary and its connections
with the medieval imaginary, considering some aspects of spirituality, such as pilgrimage
and scatology. Thus, the purpose is to think of the elomarian production as an exponent of
the Brazilian popular culture and participant of the construction of the national identity.
Key-words: Elomar, popular culture, spirituality, imaginary, national identity.
SUMÁRIO

1. Introdução 01

2. Capítulo I – Elomar Figueira Mello: um poeta cantador 09

2.1. O homem e o artista 09

2.2. A obra 15

3. Capítulo II – Espiritualidade elomariana 25

3.2.O Cancioneiro 29

3.3.Fantasia leiga para um rio seco 51

4. Capítulo III – Caminhos da cultura brasileira 62

4.2.O Brasil no Auto da Catingueira 62

5. A língua utilizada por Elomar 97

6. Conclusão 104

7. Discografia 112

8. Bibliografia 113

9. Antologia 125
NOTA PRÉVIA

Três elementos devem ser esclarecidos antes da leitura deste trabalho, pois
certamente influenciaram sua produção.
O primeiro deles diz respeito ao acesso às obras do artista. Houve grande
dificuldade na aquisição das gravações, uma vez que boa parte delas é rara, teve pequena
“tiragem” ou foi produzida por Elomar de forma independente. Apenas cinco álbuns são
comercializados pelas principais lojas, mas, mesmo assim, em pequenas quantidades.
Algumas dessas gravações foram adquiridas por meio da Internet, em um momento de
“sorte”, quando um ouvinte resolveu vendê-las. Outras foram adquiridas em alguns sebos
do centro da cidade de São Paulo.
O segundo refere-se também a outra dificuldade: conseguir entrevistas com o
artista, que se mostra bastante avesso à exposição – não admite filmagens e gravações. Não
possui um canal aberto com o público. Portanto, durante a execução desse trabalho, não foi
possível uma “visita” à sua fazenda no interior de Vitória da Conquista, apesar das
inúmeras tentativas. Como o contato já fora estabelecido com seus familiares e Elomar deu
anuência à recepção, o encontro com o artista pode dar-se mesmo após o término da
Dissertação.
O terceiro aspecto, igualmente limitante, é a escassa produção crítica sobre o
assunto e a dificuldade de acesso ao material existente, do qual muita coisa pertence ao
arquivo pessoal de Elomar. Informações foram obtidas de forma esparsa, por meio de
entrevistas do artista aos principais jornais das cidades, quando de alguma apresentação
pública. Há muitas divergências entre elas.
1. INTRODUÇÃO

Cultura popular e constituição da identidade cultural do Brasil é um tema que


suscita interesse em muitos pesquisadores de várias partes do mundo. Mas, o que há de
intrigante neste país e sua identidade cultural? Certamente, alguns fatores chamam a
atenção de imediato – a extensão do território, sua diversidade geográfica, sua forma de
colonização, a evolução sócio-econômica ao longo dos séculos, a jovialidade, a mestiçagem
de raças, o sincretismo religioso, os diferentes costumes e formas de pensamento expressos
nas diversas localidades, a variedade de artistas e suas manifestações na música, na
literatura, na pintura, na escultura, no teatro, no cinema.
Nesse mosaico sócio-histórico-cultural brasileiro, vive Elomar Figueira Mello, um
artista polivalente, nordestino, que respira um Brasil plural, fazendo sua arte a partir de uma
unidade – o Sertão. Ele é cantador, operista, poeta, arquiteto e criador de bodes. Suas
produções musicais foram gravadas a partir da década de 70. É um artista bastante
significativo, porta-voz de uma tradição ibérica relida pelo sertanejo, representante da
cultura popular brasileira. Transita entre o erudito e o popular, buscando, como fonte de
inspiração, o modo de vida do catingueiro1, mais precisamente o de sua região, o sertão
baiano (sudoeste da Bahia), assim como as histórias tradicionais que circularam na Idade
Média e principalmente os fundamentos cristãos presentes nas Sagradas Escrituras. Com
toda essa riqueza de fontes, esse cantador expressará os temas – sagrados e profanos – por
meio de uma linguagem própria, mesclada ao dialeto catingueiro – fato bastante relevante
para este estudo.
Outro elemento que chama a atenção a respeito de Elomar é a prática de uma
diversidade genológica – ele faz óperas, concertos, sinfonias, poemas, cantorias, roteiros e
ensaios, assunto que será apresentado nos capítulos seguintes. Segundo Cláudio Novaes:

“O texto musical de Elomar torna-se a ponte para várias travessias: do


cancioneiro sacro medieval ao canto profano das festas coletivas e do cotidiano

1
Entende-se “catingueiro” como aquele que habita a região ocupada pela caatinga – vegetação que ocorre nos
sertões semi-áridos do Nordeste. “São matas secas, abertas, deciduais, que se desenvolvem em clima cuja
estação de chuvas é bem marcada e cujo volume anual de umidade está abaixo de 700 mm”. ROSS, Jurandyr
L. Sanches (Org). Geografia do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. p. 173.
individual; do refinamento barroco às chulas e parcelas. Portanto não existe a
possibilidade de uma leitura que se exima de uma noção de fronteiras atemporais
e universais na enunciação. São obras/ discursos; formas/ conteúdos que
compõem o texto da diversidade no fichário geral da contemporaneidade”. 2

Assim, estudar criticamente a poética elomariana é transitar e ultrapassar diversas


fronteiras, concretas e abstratas, o que torna o caminho árduo, porém instigante. É
necessário passar pelo artista e suas concepções, por seu meio, por seus personagens, por
sua forma de criação, por suas fontes, pelo social, pelo universal, pelo nacional e
internacional. Nesse sentido, o que se propõe nesta Dissertação é o estudo de algumas das
produções de Elomar, com vistas aos elementos que compõem o imaginário de seus
catingueiros, bem como o tratamento dado a eles, para situá-los no contexto brasileiro,
perscrutando o caminho que assumem dentro da cultura, tentando descobrir que espaço é
esse, se é que há esse espaço.
Escolheu-se como tema central da Dissertação a religiosidade manifesta em suas
composições, pois é marcante a presença de muitos fundamentos judaico-cristãos nelas, o
que pode revelar o imaginário religioso do Nordeste brasileiro, que muito deve ao Barroco,
tão corrente no período colonial. Segundo Afrânio Coutinho, “o barroco ficou sempre
congenial ao espírito brasileiro”.3 Tentam-se estabelecer confluências entre o imaginário
do catingueiro elomariano com o do homem medieval, buscando revelar os pontos comuns,
o porquê deles e qual o significado disso para a cultura brasileira. Para tanto, há a
necessidade de estudos sobre História das mentalidades, Idade Média, principalmente no
que se refere ao imaginário popular religioso, História do Brasil e História cultural,
enfocando a construção da identidade nacional.
A História cultural brasileira começou a ser teorizada apenas no final do século
XIX, a partir de comparações com o mundo europeu, que há muito se preocupava com o
assunto buscando, por meio da tradição popular – histórias, lendas, contos etc –,
identidades nacionais. Renato Ortiz, pesquisador do assunto, estudando o caso europeu,
principalmente o alemão, afirma que, conforme a visão herderiana, “os costumes, as lendas,

2
NOVAES, Cláudio. “Sertania (en)cantada”. Iararana: Revista de arte, crítica e literatura. Salvador, 2001.
p.58.
3
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil – Era barroca e era neoclássica. São Paulo: Global, 1997. v3.
p. 34.
a língua são arquivos de nacionalidade, e formam o alicerce da sociedade” 4. Desta forma,
Herder propõe que os intelectuais alemães se voltem para as tradições e nelas encontrem o
“substrato de uma autêntica cultura nacional”5.
Renato Ortiz expõe que “toda identidade se define em relação a algo que lhe é
exterior, ela é uma diferença”6. Ele situa a problemática da cultura brasileira no âmbito
político, mostrando que a identidade nacional está ligada à construção do Estado, assim
como ocorreu com os países da Europa, defendendo que não existe uma identidade
autêntica, mas sim uma pluralidade de identidades, construída por diferentes grupos sociais
em diferentes épocas.
Nas teorias raciais do século XIX, produzidas por Sílvio Romero, Euclides da
Cunha e Nina Rodrigues, a questão racial assumiu um contorno racista, ao se apoiar nas
teorias do positivismo de Comte, no darwinismo social e no evolucionismo de Spencer,
pois tais teóricos consideraram o assunto sob um único aspecto – o da evolução histórica
dos povos. Assim, aceitar essas idéias implica em ver o Brasil em um estágio civilizatório
“inferior” em relação aos países europeus, sobretudo porque o país pertence ao Novo
Mundo, ou seja, é jovem e colonizado, não possuindo a tradição do Velho Mundo,
mostrando-se defasado. Os intelectuais da época precisavam resolver o dilema de
compreender a defasagem entre realidade e teoria, “hiato entre intenção e realização”7 –
necessidade de modernização, de evolução e inexistência de condições materiais para isso,
“o que se consubstancia na construção de uma identidade nacional”8. Buscam respostas
para a questão do atraso do país nos conceitos de Raça e Meio, traduzindo dois elementos
imprescindíveis para a construção de uma identidade brasileira: o nacional e o popular.
O Brasil é visto como a fusão de três raças – o branco, o negro e o índio. No
entanto, à raça branca é atribuída uma posição de superioridade, enquanto que “o negro e o
índio se apresentam como entraves ao processo civilizatório”9, segundo os estudos de Nina
Rodrigues, pois tais raças se mostram incapazes de assimilar os elementos da civilização
européia. A mestiçagem “moral e étnica” possibilitou a aclimatação dos europeus nos

4
ORTIZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. São Paulo: Editora Olho d’Água, s.d. p.22.
5
Idem, ibidem, p.22.
6
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 7
7
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense,
2001, p.29.
8
Op. cit. ORTIZ, 2003. p.15.
9
Op. cit. ORTIZ, 2003. p.20.
trópicos. O mestiço encerraria em si os “defeitos e as taras transmitidos pela herança
biológica”. Ortiz afirma que, nos estudos sócio-biológicos de Manuel Bonfim, as relações
entre colonizador e colonizado eram vistas como semelhantes às relações entre parasita e
parasitado, considerando-se o Brasil herdeiro de duas características funestas: “o
conservantismo” – apego às tradições e rechaçamento de mudanças sociais; e a falta de
“espírito de observação” – incapacidade de apreender a própria realidade. Assim, a
inferioridade racial explicaria o atraso brasileiro e a idéia de mestiçagem apontaria para a
formação de uma possível unidade nacional.
Essas teorias raciais ficaram obsoletas a partir das primeiras décadas do século XX,
em virtude do processo de urbanização, industrialização e o aparecimento do proletariado.
Caio Prado Jr e Sérgio Buarque são considerados “fundadores” de uma nova linha, gestada
dentro de universidade, para entender a realidade social. Ocorre mudança do conceito de
raça em relação ao de cultura, ou seja, há um distanciamento entre o biológico e o social.
Ainda conforme Ortiz, o mito das três raças torna-se plausível – “o que era mestiço torna-
se nacional”10.
Com a Revolução de 30 e o surgimento do Estado Novo, ocorre transformação na
estrutura econômica e, conseqüentemente, surge a “necessidade de se pensar a identidade
de um Estado que se moderniza”11. Houve expansão de instituições culturais, como o
Serviço Nacional de Teatro e cursos de ensino superior. O ano de 1964 foi um marco na
história brasileira, pois houve internacionalização de capital, concentração de renda,
crescimento da classe média e do parque industrial, criação de um mercado interno que se
contrapõe ao exportador, desenvolvimento desigual das regiões e concentração da
população em grandes centros urbanos. Tudo isso gerou, paralelamente, segundo Ortiz, um
mercado simbólico de bens – a área cultural. Nesse momento, Elomar, ao término de seu
curso de graduação, preparava-se para voltar à sua terra natal e sistematizar sua produção
artística.
Assim, novas teorias foram surgindo e acabaram por mudar o foco de teorização das
questões culturais brasileiras. Em 1966, Castelo Branco cria o CFC – Conselho Federal de
Cultura, cuja ideologia é marcada pelo Brasil mestiço. A mestiçagem assume duplo sentido

10
Op. cit. ORTIZ, 2003. p.41.
11
Op. cit. ORTIZ, 2001. p. 130.
– questão racial (mistura de três raças) e questão da heterogeneidade (diversidade
brasileira). Logo, a identidade brasileira é definida como “unidade na diversidade”. Dessa
forma, para Ortiz, a integração e a interpenetração de esferas, erudito/ popular, econômico/
cultural, escrito/ oral, ocorrida ao longo do século XX, contribuiu de maneira muito
positiva para o desenvolvimento dos bens culturais brasileiros.12
Nesse sentido, as obras de Elomar são elucidativas do processo histórico de
construção da identidade discutido por Ortiz, na medida em que nelas percebem-se
elementos que constituem uma “unidade” na diversidade brasileira, quando o artista, por
meio do trânsito entre variadas esferas (erudito/ popular; escrito/ oral etc.), expõe aspectos
sócio-político-econômico-culturais de uma determinada região, no caso o nordeste
brasileiro.
O trabalho foi organizado do seguinte modo: no Capítulo I, “Elomar Figueira Mello:
um poeta cantador”, há a exposição de dados relevantes a respeito do artista – sua
biografia, suas concepções de vida, de arte, do Brasil, de religião, sua preocupação com as
manifestações culturais, com a língua portuguesa e suas expectativas. No segundo item,
faz-se uma descrição de suas principais produções, com as fontes, os principais temas e os
gêneros.
No Capítulo II – “Espiritualidade elomariana”, estuda-se essa espiritualidade, por
meio da análise crítica dos textos poético-musicais, com vistas ao imaginário cristão de
seus personagens, verificando se esse artista recupera, mantém, continua, rompe ou inova
os elementos que compuseram o ideário cristão da Idade Média ocidental, repensando a
cultura brasileira à luz da européia. Foram enfocados os sub-temas “Peregrinação”,
“Escatologia” e “Além”. No item 1, analisam-se quinze cantigas que compõem o
Cancioneiro, com tema preponderante do religioso, que perpassa praticamente toda a obra
do artista. 13 No item 2, há o estudo do poema épico Fantasia leiga para um rio seco. Neste
capítulo, são delineadas as manifestações de uma espiritualidade muito próxima das
práticas medievais, no que concerne à religiosidade popular.
No Capítulo III, “Caminhos da cultura brasileira”, há a análise de uma extensa
ópera de Elomar: Auto da Catingueira. Em virtude dessa extensão, encontra-se, na

12
Op. cit. ORTIZ, 2001. p.210
13
Essas cantigas foram organizadas na Antologia, apresentada ao final da Dissertação.
Antologia, apenas um excerto, o 1° Canto, escolhido por tratar da protagonista, Dassanta.
Houve o cuidado de descrever e analisar, por meio das ações dos personagens, os valores,
as práticas, os mitos, os elementos sócio-histórico-culturais do Brasil subjacentes às suas
atitudes e falas.
O capítulo IV discute brevemente os processos lingüísticos adotados e criados por
Elomar, devido ao fato de que, de certa forma, para leitor e ouvintes principiantes na arte
elomariana, tais processos causam um entrave na compreensão, pois há a necessidade,
inclusive de uma “educação” auditiva para se penetrar nesse universo.
É necessário salientar que essa pesquisa não faz estudo da Música, ainda que
Elomar seja um cantador. Considera-se o texto verbal, denominado confortavelmente de
“poesia”, pois:

“(...) quando a letra de música se sofistica, extrapolando os limites entre


alta e baixa cultura e confundindo as distinções usualmente feitas entre cultura
erudita e popular, ela alcança um plano esteticamente superior e pode, então, ser
tomada como uma modalidade de poesia: a poesia cantada (uma forma de poesia
de música, em contraposição à poesia literária, de livro)”.14

Pode-se perceber a sofisticação presente em Elomar por meio da sintaxe, da escolha


lexical e da forma como constrói as analogias, fazendo de seus textos um poema:

“lua nova sussarana vai passá


seda branca na passada ela levô
ponta d’unha lua fina no céu
a onça prissunha a cara de réu
o pai do chiqueiro a gata comeu”15

Nos versos acima, “sussarana” é a onça que levou, na semana anterior, um bode
reprodutor, “seda branca”. Com isso, o poeta cantador já avista no céu a lua nova,
comparada à unha. “Prissunha” é a onça que tem uma unha a mais. Outro exemplo que
elucida construções que associam som, imagem e palavra é a cantiga “História de

14
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. (et al.). Literatura e música. São Paulo: Editora Senac SP e Instituto Itaú
Cultural, 2003. p.53
15
“Arrumação”. In: MELLO, Elomar Figueira. Na quadrada das águas perdidas. (CD). Manaus: Sonopress
– Rimo da Amazônia Indústria e Comércio Fonográfico Ltda., selo Rio do Gavião, 1978.
16
vaqueiros” , na qual o poeta cantador relembra histórias de vários companheiros de
vaquejada, no sentido de homenageá-los. O trecho escolhido refere-se à morte de Bragadá
que, por um momento de distração, olhando para sua amada, é ferido pelo boi e vê a
mancha de sangue de seu ventre refletida na pupila da “morena”:

“pelo triz de um momento


da peleja in certa altura
viu nos olhos da morena
ispelhada u’a mancha iscura
faca na venta o boi morreno
Bragadá caiu no chão
Cum vazí rasgado ‘stremeceno
Parava o saingue cum as mão
Amô nun sei pru modi quê
Facilitei olhei você
Foi pur teus olhos pur a fulô
Pegava o boi boi me pego
É dura a sorte do pegado
Morrê da morte chifrada amô”

Segundo Ezra Pound, há três modalidades de poesia:

“1 – Melopéia. Aquela em que as palavras são impregnadas de uma


propriedade musical (som, ritmo) que orienta o seu significado (Homero, Arnaut
Daniel e os provençais). 2 – Fanopéia. Um lance de imagens sobre a imaginação
visual (Rihaku, i.é, Li T’ai-Po e os chineses atingiram o máximo de fanopéia,
devido talvez à natureza do ideograma). 3 – Logopéia. ‘A dança do intelecto entre
as palavras’, que trabalha no domínio específico das manifestações verbais e não
se pode conter em música ou em plástica (Propércio, Laforgue)”. 17

As produções elomarianas respondem positivamente às questões colocadas por


Pound, podendo ser consideradas poesia. O que se considera nesta Dissertação, certamente,
são os aspectos orais presentes na poética elomariana, muito característicos dos textos
tradicionais, dos textos dos trovadores, menestréis e cantadores, pelo modo como foram

16
MELLO, Elomar Figueira Cartas catingueiras. (CD). Manaus: Sonopress – Rimo da Amazônia indústria e
Comércio Fonográfico Ltda., selo Rio do Gavião, 1983.
17
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1998. p. 11.
transmitidos – pela voz, “da qual a poesia constitui o lugar eminente”18, sem, contudo,
trabalhar os gêneros, acordes, ou seja, os aspectos musicais.
Após a explanação das páginas anteriores, observa-se que estudar Elomar Figueira
Mello é uma forma de valorizar e divulgar uma obra que utiliza, de modo singular, o
mundo do sertão, do catingueiro, do nordestino, elementos arraigados na cultura do Brasil,
para recriar o imaginário cristão da Idade Média ocidental. Também é forma de trazê-la
para o meio acadêmico, apesar de seus textos não comporem, necessariamente, um cânone
literário. Indubitavelmente são valiosos, consolidados e raros, uma vez que o artista é,
possivelmente, o único a revelar o universo sertanejo por meio de óperas19, fazendo uma
obra erudita, poético-musical, com elementos populares. Suas composições expressam
artisticamente a cultura e os valores que permeiam um universo arcaico20, constituído de
práticas espirituais judaico-cristãs, de histórias tradicionais de reis, princesas e cavaleiros,
do modo de vida singular do sertanejo, entre outros.
Pretende-se, ao término da Dissertação, responder às seguintes questões: penetrar
no universo elomariano, por meio da análise da espiritualidade apresentada em seus textos,
permite conhecer o imaginário do sertanejo nordestino? Sua obra representa a identidade
cultural nos sertões, essencial para se pensar a nação brasileira? Do ponto de vista cultural,
em que espaço está inserido Elomar Figueira Mello?

18
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. Trad. Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.140
19
Uma prática artística dita erudita e pela qual o artista nutre grande apreço e estabelece vínculo com a
religiosidade. Segundo ele, faz ópera, “porque a ópera dignifica o sertão, o sertanejo. Por que só o europeu
pode dignificar sua música, sua história e seu povo por meio da ópera, que é um dos gêneros mais completos
que existem? Na ópera, você tem dança, música e teatro. É esse o melhor gênero para cantar a história do
sertão, que não é bufa, é épica, é trágica”. Entrevista de Elomar à CHAGAS, Paula. “Elomar deixa a Bahia
para mostrar ao Brasil a sua ópera do sertão”. Jornal da Tarde, s.d.
20
Há também, em paralelo, as composições de Antônio Nóbrega, violinista, compositor e menestrel. Foi
membro do Quinteto Armorial de Ariano Suassuna. Esse assunto é discutido ao longo da Dissertação.
2. Capítulo I - Elomar Figueira Mello: um poeta cantador

“Ninguém pode adquirir o que não possuía ao nascer, nem desejar o


que lhe é estranho”.21

2.1. O homem e o artista

“Não faço shows, faço concertos e cantorias”.22 “A minha fazenda, que se chama
Duas Passagens, fica no meio do sertão baiano, bem perto do céu. Lá crio bodes, cabras e
carneiros. O belo não se inventa, não se pesquisa, o belo vem da alma, do criador, de
Deus”.23 “Eu não sou religioso. Sou um servo de Cristo, dos piores; por uma questão de
cultura, de tradição, sou luterano, protestante”.24 “O sertão é auto-suficiente, não pede nada
para ninguém”. “Há no sertão um enorme manancial cultural que deve ser cantado, tocado e
escrito. Muitos como João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa e José Lins do Rego
já fizeram isso na literatura. Eu sigo essa tradição com minha música e minhas óperas”.25

O parágrafo acima, bastante elucidativo, foi construído no sentido de transmitir, por


meio das palavras do próprio artista, elementos que revelam costumes e valores cultuados
por ele, um artista nordestino, cantador, poeta, operista, ensaísta e arquiteto, e suas
peculiaridades. A primeira delas refere-se ao tratamento que esse cantador dispensa à
língua. Admirador do português, expressa de maneira intensa as manifestações lingüísticas
correntes no sertão baiano, criando o que ele chama de língua “sertaneza” (sic), 26 opondo-

21
Ariano Suassuna citando Thomas Mann. In: SANTOS, Idelette M.F dos. Em demanda da poética popular –
Ariano Suassuna e o movimento Armorial. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. p.287.
22
Elomar em entrevista a Mônica LOUREIRO, Cliquemusic, 08/04/03.
23
Entrevista a Paula CHAGAS – “Elomar deixa a Bahia para mostrar ao Brasil a sua ópera do sertão”. Jornal
da Tarde, s.d.
24
Entrevista a Mauro DIAS, “Elomar povoa canções com deuses e maldições”. O Estado de São Paulo,
21/06/97.
25
Idem, ibidem.
26
Encontrar-se-ão, no quarto capítulo, discussões a respeito dos processos lingüísticos adotados por Elomar.
se ao emprego de palavras estrangeiras, apenas inglesas, no léxico do Brasil.27. Segundo
Simone Guerreiro:

“Elomar participa de uma linha de compositores que se definem como


‘resistência latino-americana’, numa postura que questiona o processo econômico
de globalização, como uma voz sertaneja que resiste em preservar a sua cultura,
os seus valores, chegando, mesmo, a criar uma total antipatia pela cultura norte-
americana, constantemente batida em seu discurso: me recuso a falar inglês,
afirma”.28

Apesar de Elomar mostrar-se avesso à cultura norte-americana, sobretudo no que


diz respeito à língua, salienta-se que é preciso acautelar-se ao usar determinadas expressões
e idéias como “proteção ou preservação” da cultura sertaneja, como foram usadas na
citação acima, já que se pode cair no saudosismo romântico, achando que a “verdadeira”
cultura é fechada e expressa por um material primitivo que não sofre adaptações,
transformações e aquisições. Nesse sentido, corrobora-se, neste trabalho, a idéia de Idelette
Santos, de que, de certo modo, não há necessidade de “proteger” as manifestações culturais
brasileiras:

“A literatura popular não precisa de defensores, de intelectuais


engajados no seu resgate e salvaguardas; ela assumirá sozinha essa função
enquanto tiver poetas e cantadores cantando, a partir de sua alegria e de seus
sofrimentos, histórias de que o povo gosta”.29

Acredita-se também que esta seja a opinião de Elomar Figueira Mello, confirmada
por sua fala, citada no primeiro parágrafo: ”O sertão é auto-suficiente, não pede nada para
ninguém”. Na verdade, Elomar demonstra somente resistência à cultura e aos valores norte-
americanos, impostos por motivos político-econômicos. Reconhece que o Brasil se

27
“Gosto de citações em francês, espanhol, latim e grego. Mas língua inglesa é abominável por uma questão
cultural. Sua proposta imperialista é asquerosa. A Inglaterra se acha porreta, se considerava a rainha dos
mares. De uma hora para outra, seu filho bastardo tomou o poder” Elomar em entrevista. Op. cit.
LOUREIRO, 2003.
28
GUERREIRO, Simone da Silva. Elomar Figueira Mello e a arte sertaneza. Salvador, 2001. Dissertação
(Mestrado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia. p.20.
29
Op. cit. Santos, 1999. P. 272.
constitui em um mosaico cultural, do qual fazem parte inúmeras outras culturas de outros
povos; condena o ufanismo praticado por alguns intelectuais:

“É só saudosismo ufanista. Isso é horrível! Sabe o que é? Estão


limpando o bolor de velhas peças. Você tem de pegar a velha peça, limpar o bolor
e botar ela pra funcionar e acrescentar alguma coisa, sem alterar a estrutura. Ou
então, pegue a velha peça, se inspire na beleza dela e crie um trabalho novo”.30

A segunda particularidade refere-se ao fato de o artista não abrir mão de morar no


campo. Nascido no sertão da Bahia, em Vitória da Conquista, no ano de 1937, é filho de
tradicional família de fazendeiros da Zona da Mata do Itambé e de Mata-de-Cipó, passando
toda a infância na fazenda São Joaquim, no mesmo município. Assim demonstra seu grande
amor pela Natureza – fonte de inspiração – e também pelo trabalho rural, pois desenvolve
atividades de vaqueiro e peão – ferra marrãs, alimenta bodes, tira leite das cabras, faz
manutenção geral em sua propriedade, coordena o trabalho de seus funcionários.Viaja
esporadicamente pelo Brasil para fazer suas apresentações, mas de alguma forma leva algo
da terra para aliviar seu desconforto.31

Outra particularidade desse artista, ligada à anterior, é a transposição de experiências


pessoais, associadas à cultura local, para suas produções. Nesse sentido, ele mantém em
circulação numerosas histórias tradicionais, crenças e práticas. Seu pai era sanfoneiro, o
que possibilitou a Elomar conhecer grandes cantadores, como Zé Crau, Zé Guelê, Zé
Tocador e Vivi do Angico, que tocavam as modas tradicionais e típicas do universo
nordestino, convivendo com os “causos”, com as histórias, com o cordel, com os vaqueiros,
com os tropeiros, com a caatinga, com os animais, com a seca, ou seja, com todos os
elementos que serão apresentados, de maneiras variadas, ao longo de sua obra, seja ela uma
ópera, uma cantiga, uma antífona, um poema épico. Nesse sentido, Elomar pode ser
considerado um “fazendeiro do ar”, como se referia Carlos Drummond de Andrade aos

30
Entrevista de Elomar a RIBEIRO, M. J. “Elomar: um criador de bodes no teste da cabra-cega. Revista Íris.
São Paulo, outubro de 1982, nº353. p.76-77.
31
“Eu não gosto de cidade grande, não gosto de muita gente junta, gosto mesmo é de ficar no meio do mato,
de lidar com a terra, com os bichos e de fazer a minha música. Agora, é claro que me utilizo dos confortos da
luz, da descarga, como todo mundo. (...) Quando tenho de viajar para fazer concertos, eu só fico em flat para
poder cozinhar eu mesmo minhas comidas. Trago carne de bode, meus biscoitos de polvilho, minha farinha.”
Op. cit. CHAGAS, s.d.
escritores que tiveram uma infância rural e “procuraram em sua obra inventar e recriar
terras e reinos imaginários”32. Segundo Idelette, os escritores armoriais são todos
“fazendeiros do ar”:

“(...) a maioria dos escritores pertenceram a famílias rurais, latifundiárias


ou não, o que explica a infância passada no mundo fechado da fazenda. Infância
livre num ‘reino’ que a protege, infância rural que propicia um contato cotidiano
e familiar com a natureza, com a terra e os animais, com um povo de servidores,
vaqueiros, trabalhadores rurais, agregados e afilhados, que revelam à criança o
imaginário popular, os contos e as histórias de fazer medo, os romances cantados
e os folhetos, o mamulengo, as festas de São João etc. A revelação poética na
infância deixa marcas profundas no adulto (...). Essa infância obsessiva pode ser,
para alguns, fonte mágica, para outros, realidade atual, para os demais busca
permanente, mas constitui para todos a via obrigatória de acesso à cultura
popular”.33

Um terceiro tema que, indubitavelmente, será explorado em suas produções com


veemente força é o religioso. Apesar de Elomar não estar filiado a alguma instituição
religiosa, tem em sua formação muitos fundamentos judaico-cristãos, advindos do
protestantismo e transmitidos, sobretudo, por sua mãe, lembrando que o pai era pastor
protestante e fundara a primeira Igreja Batista conquistense. Ver-se-á em sua obra, por
meio de seus personagens, que a palavra de Deus é considerada a maior autoridade;
também a convicção de que todo ser humano é perdoável e a salvação é oferecida como
graça, dom, e que a Bíblia é tida como fonte de autoridade de fé, que não é só crença, é uma
resposta do sertanejo a todas as situações da vida, pois é ilimitado o poder de Deus na
mente, na vontade e nos afetos, ou seja, fé é um fenômeno pessoal. Esse artista aprendeu
esses fundamentos, desde muito jovem, com os cânticos do hinário cristão e do culto
batista, com a leitura das Sagradas Escrituras, dos profetas hebreus, dando especial ênfase a
alguns livros bíblicos, como Apocalipse, Êxodo, Joel, Jó e outros. Segundo Simone
Guerreiro:

“Afirma sua crença antes da religião, referindo-se sempre ao criador como


expressão de infinita bondade e amor dedicado aos homens, mas também

32
Op. cit. SANTOS, 1999. p.97.
33
Idem, ibidem, p.97-98.
entendendo a sua lei como uma lei seca e severa, como o deus do Velho
Testamento. Faz a leitura da palavra bíblica como investigador e pensador, vendo
nela a expressão de uma verdade superior, muitas vezes contrária à verdade
sociológica, mas se colocando oposto ao fanatismo isento de uma postura
pensante, assumindo o papel de um intelectual cristão, cuja crença, como ele
afirma, é intelectiva”.34

Elomar demonstra sua erudição não só por meio de leitura de livros sagrados, mas
também de clássicos da literatura inglesa, francesa, espanhola, portuguesa, grega, latina,
aos quais teve acesso ao ingressar no colégio. Diz ele: “sempre fui tarado por essas belezas.
Então, aos 20 anos eu já tinha lido o que interessa, o essencial”35. Também estudou música
clássica, a partir de 1954, no Conservatório da Bahia, em Salvador, e em 1960, iniciou o
curso de arquitetura, formando-se em 1964. Desenvolveu alguns trabalhos arquitetônicos,
como o templo da 2ª Igreja Batista, em Vitória da Conquista. Assim, é um artista culto que
recorre a objetos culturais populares, adotando-os como “material”, recriando-os e
transformando-os segundo sua inventividade lingüística, poética e musical. Pode-se afirmar
que, apesar de o artista não ter participado do Movimento Armorial36, suas concepções
sobre Arte estão muito próximas às idéias defendidas por Ariano Suassuna: “O Movimento
Armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa
cultura”37.

34
Op. cit. GUERREIRO, 2001. p. 30.
35
MELO, Rita Maria Costa. Elomar Figueira Mello: uma poética do sertão baiano. Recife, 1989.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Pernambuco. p. 51.
36
Movimento artístico, fundado por Ariano Suassuana em 1970, no Recife. Iniciou-se com um concerto
realizado pela Orquestra Armorial e uma exposição de artes plásticas. No ano seguinte, o Movimento se
firmou, apresentou grande número de publicações, concertos, exposições. Reuniu diversos artistas, de
músicos a ceramistas, e tinha como dogma a originalidade da criação, acima da teoria. Ver SANTOS, 1999.
37
Cadernos de Literatura Brasileira – Ariano Suassuna. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000, nº 10,
p.32.
Elomar, na qualidade de importante músico brasileiro38, pode ser definido como
cantador, trovador e menestrel, pois mantém as imagens do universo medieval presentes no
sertão por meio de uma linguagem clássica, mesclada ao dialeto catingueiro. Observa-se a
presença das “literaturas da voz”, assunto explorado por Paul Zumthor39, que se
perpetuaram pela memória e afloraram nos textos, demonstrando valores artísticos
baseados na estética européia, recriados por Elomar segundo modelos nordestinos. Sua obra
transita entre o erudito e o popular, revelando a diversidade brasileira e, principalmente, o
mundo do sertanejo:

“O primeiro contato com Elomar paralisa nossos olhos e nossos ouvidos,


pois sentimos que encontramos, neste representante do semi-árido do nordeste,
referências culturais que parecem surgidas anteriormente ao descobrimento do
Brasil. Sua linguagem, seu comportamento, sua aparência, somados à dolência
dos aboios e à poesia trovadoresca, nos remetem a um Brasil único, que brota na
caatinga para ser um dos galhos mais viçosos da música brasileira”.40

Não é conhecido do grande público porque não faz concessões a redes de televisão
nem tampouco a gravadoras. Segundo ele, “essas sociedades são o poder autoritário,
despótico e opressor dos direitos autorais”41. Tem a perspectiva de fazer com que as
pessoas percebam a riqueza cultural brasileira e isso, segundo ele, só se dá pela educação.

38
Sem dúvida não conhecido por boa parte dos brasileiros, mas reconhecido como artista por vários
estudiosos, em trabalhos como dissertações, teses, artigos, monografia e citações em enciclopédias musicais.
O primeiro trabalho acadêmico é uma dissertação de Mestrado, defendida na Universidade Federal de
Pernambuco, em 1989, por Rita Maria Costa Melo, que tem como objetivo desvendar os mitos fundadores da
cultura por meio da produção de Elomar, canções e óperas gravadas até 1986. Nessa pesquisa, a estudiosa faz
análise antropológica, baseada nas teorias de Gilbert Durand. O segundo, também uma dissertação de
Mestrado, defendida na Universidade Federal da Bahia, em 1998, por Cláudio Novaes. A pesquisa discute a
migração e a identidade sertaneja a partir da cooptação de três artes diferentes – literatura, cinema e música,
propondo intertextualidades entre Os sertões, de Euclides da Cunha, Deus e o diabo na terra do sol, de
Glauber Rocha, e as canções gravadas no disco Na quadrada das águas perdidas, de Elomar. Simone
Guerreiro, em 2001, também da Universidade Federal da Bahia, defendeu sua dissertação de Mestrado sobre
Elomar. O trabalho aborda temas como arte, tecnologia, mídia, sociedade arcaica e global. Seu objetivo é
apreender criticamente o discurso elomariano. Há outras produções de Darcília Simões a respeito da
linguagem utilizada pelo artista (ver bibliografia a respeito do autor). Atente-se ao fato de não haver citações
a Elomar Figueira Mello em um estudo realizado por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, trabalho que
faz retrospectiva crítica dos 85 anos de música no Brasil. SEVERIANO, J. e MELLO, Z. H de. A canção no
tempo – 85 anos de músicas brasileiras. São Paulo: Editora 34, 1998. 2v.
39
Op. cit. ZUMTHOR, 2001.
40
VELLOSO. J. “Elomar – cantor e compositor”. In: THOMPSON, Mario Luiz. Bem-te-vi: música popular
brasileira: 70, 80, 90, a MPB em três décadas. São Paulo: Imprensa Oficial, 2001. 2v. p.205.
41
Entrevista a SANCHES, Pedro. “Elomar se aproxima do erudito e do desencanto”. Folha de São Paulo, s.d.
Tem três filhos, todos “estudados”, todos envolvidos com música, fatos de que se orgulha
muito – Rosa do Prado estudou comunicação; João Ernesto é médico e João Omar é
regente. Mantém aceso dentro de si um desejo:

“O que quero legar para eles e para o mundo com meu trabalho é a
possibilidade de construirmos uma realidade específica, nossa. Que eles tenham
orgulho de serem do sertão, do Brasil. Minha música quer mostrar um povo que é
forte, que é lutador, que constrói obras maravilhosas”.42

2.2. A obra

Elomar possui uma obra bastante volumosa e diversificada. Têm-se notícias de


mais de 10 óperas, 11 antífonas, 4 galopes estradeiros43, 2 concertos para violão e piano, 12
peças para violão solo, um caderno com mais de 80 canções, 3 ensaios e alguns roteiros
cinematográficos. Nem todas elas estão concluídas. Na verdade, é bastante difícil obter
informações de maneira organizada. Conhecem-se esses dados por meio de informações
esparsas, encontradas em entrevistas e em alguns trabalhos acadêmicos, as quais, muitas
vezes, são divergentes – fato já explicado na nota introdutória. As fontes das descrições
que estarão presentes nos próximos parágrafos serão devidamente citadas em nota de
rodapé.
Sua primeira gravação foi um compacto, em LP, sem produtora, em 1968, com
apenas duas faixas: “O violeiro” e “Canção da catingueira”. No mesmo ano, outra
gravação, também um compacto, produzido por Israel Silveira, com arranjos de Remo Usai,
contendo apenas duas canções: “Mulher imaginária” e “O robô”. Esses dois LPs são

42
Op. cit. CHAGAS, s.d.
43
São sextilhas de decassílabos, muito próximas ao martelo (cantado nos desafios). A singularidade
elomariana fez dessa construção uma sinfonia.
bastante raros. Conta-se, hoje, com algumas produções gravadas em CD44: Das barrancas
do Rio Gavião (1973) – primeira produção com 12 canções, a qual o inseriu no
“movimento regionalista” da MPB, comprometido com o imaginário do sertão. Maria
Amélia G. de Alencar o considera precursor:

“da geração que se seguiu a ele, à qual pertencem, por exemplo, em


Minas Gerais, Dércio Marques, em Goiás, Nars Chaul (...), além de inúmeros
compositores e cantadores nordestinos.”45

Outras produções gravadas são: Na quadrada das águas perdidas (1978), Parcela
malunga (1980), Fantasia leiga para um rio seco (1981), ConSertão (1982), Cartas
catingueiras (1983), Auto da catingueira (1984), Cantoria 1 e 2 (1984), Conserto sertanez
(sic) (1985), Dos confins do sertão (1986) – obra gravada na Alemanha – , Elomar em
concerto (1989), Árias sertânicas (1982), Cantoria 3: canto e solo (1995). Em LP, conta-se
com o álbum Sertania (1985), trilha composta para o filme Boi Aruá.
Há menção em uma entrevista46 de uma produção, não gravada, intitulada
Nordestilhas, que consiste “em cânticos equatoriais, litanias de cegos andarilhos sobre ecos
de coros de cavaleiros malucos”. Há, ainda, relato de algumas antífonas – “Loas para um
Justo”, que Elomar fizera para seu filho, “Balada do filho pródigo”, Incelensa ad
moribundum solem. Ele relata que:

“Prometi a Deus uma coleção, a Antifonaria Sertani (o certo seria


‘antifonarium’, mas não gostei do som e ninguém mais sabe latim, então ficou
‘antifonaria’), com 11 peças. Mas fiz mais”.47

44
Os dados completos encontram-se na Discografia.
45
ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. “Cultura e identidade nos sertões do Brasil: representações na música
popular. Actas del III Congresso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estúdio de la Música
Popular, Santa Fé de Bogotá, Colômbia, agosto de 2000. p.9.
46
SOUZA, Jô. “Nordestilhas – cantos equatoriais por renitentes cavaleiros do setentrião. Jornal A Tarde.
Salvador, Caderno 2, 04/10/94.
47
Op. cit. DIAS, 1997.
Quanto às óperas, nem todas estão concluídas. A primeira delas, já completa, é o
Auto da catingueira, que relata a história de Dassanta, do nascimento à sua morte (ver
Capítulo III). Quanto à segunda, Elomar divide-a em 5 óperas, dando o nome geral de
Bespas esponsais sertanas, ou seja, vésperas de casamento no sertão. Todas elas
apresentam teor trágico, passam-se no mês de junho, mês de casamento, mas as
personagens não se casarão por motivos diversos. São elas: A carta, A casa das bonecas, O
peão mansador, Faviela e Os poetas são loucos, mas conversam com Deus.
Em A carta, já concluída48, há os seguintes personagens – Maria, uma moça do
sertão, Diudurico, seu noivo, Tuzinha, prima da moça, Pleibói (sic), filho do dono da
fábrica de tecidos, Gerente da fábrica e sua filha, Professora, Mãe (de Maria), coro de
moças, rapazes, peões e peonas (sic). O enredo desenvolve-se em 4 atos:
Cena (ato) I – Na véspera de São João, em um terreiro fronteiro a uma pequena casa
branca de porta e janelas azuis, em volta da fogueira, ao anoitecer, Maria, Diudurico,
parentes e amigos conversam, comem, bebem e se divertem. Moças e rapazes, em grupos,
brincam de roda, em trajes humildes, alternando estrofes. Chegando de São Paulo,
luxuosamente vestida na última moda, entra Tuzinha e compara a pobreza do lugar com o
esplendor da cidade; Maria lembra a antiga simplicidade da prima e esta lhe pergunta sobre
o casamento. Ao saber dos noivos que a pobreza os impede de casar, Tuzinha, assumindo o
papel de salvadora, sem o conhecimento de Diudurico, propõe que Maria fuja para São
Paulo. Maria, vendo ser essa a única saída, chora. Acabada a festa, Maria, sozinha em um
canto do terreiro, lastima ter de deixar a “Patra vea du Sertão”, em um dos momentos mais
líricos do texto.
Cena (ato) II – Numa sala de máquinas de uma antiga fábrica de tecidos, cinco
peonas e dois peões solistas são acompanhados por um coro complementar. A primeira
peona informa aos demais que o salário vai aumentar; secundados pelo estrépito das
máquinas, todos cantam e fazem planos: repor o que o ladrão levou, inscrever-se no judô,
musculação e “jéz” (sic – grafia fonética da palavra inglesa jazz) etc. O primeiro peão
informa da nova funcionária que virá trabalhar na fábrica e chega Maria. Todos se admiram
de sua beleza e seu toque ingênuo faz com que os demais se lembrem de seus sertões: um

48
Entre 8 a 24/10/04, foi apresentada no CCBB – Centro Cultural do Banco do Brasil, em Brasília, sob a
regência de Henrique Morelenbaum e direção de André Paes Leme.
fala de um sonho da noite anterior, no qual se transportava ao Sertão; outro, de uma mulher
que rompeu a promessa de casamento. Maria fala de sua saudade e do peito ferido por ter
deixado seus amados sem aviso. As máquinas, que haviam diminuído o ritmo para Maria
cantar, voltam ao estrépito normal e o coro dos peões fecha a cena.
Cena (ato) III – A Novilha e o Jaguar - Uma grande ala num apartamento luxuoso.
Móveis, mesas postas, com pratos, talheres, bebidas. O cenário de uma grande festa. O filho
do dono da fábrica, o pleibói (sic), termina os preparativos, dando os últimos retoques no
cabelo, mirando-se num espelho de parede, arrumando a vestimenta, ajeitando os óculos.
Aguardando o gerente, a filha e Maria. Enquanto aguarda, o pleibói canta a “Ária do
Apartamento”, na qual esboça alguma indecisão, ansiedade, resquícios de remorso, ou seja,
uma crise de identidade. Abre-se a porta e entram o gerente, a filha e Maria. Após alguns
minutos, o gerente e a filha desaparecem. Maria pergunta pelos demais convidados e o
pleibói lhe responde que eles chegarão mais tarde. A conversa continua – Maria cada vez
mais desconfiada – e o patrão arma o bote: tenta seduzi-la, mas, a cada frase, Maria
responde com um “Não senhor”; rejeita-o, ele tenta estuprá-la, Maria puxa uma faca e
encosta-lhe no peito dizendo “Sim senhor!” várias vezes. O patrão finge dar-se por vencido,
mas insiste para que ela beba uma taça de vinho. Maria, a princípio, recusa, mas, ante a
insistência do patrão, querendo livrar-se logo, aceita. O vinho fora narcotizado e Maria,
acreditando estar diante de Diudurico, entrega-se ao pleibói.
Após esse episódio, como será lido na carta, Maria entrega-se ao vício e à
prostituição e, degradada, perdida a honra, culturalmente morta, não volta ao Sertão.
Cena (ato) IV – Leitura da carta – No mesmo cenário da cena inicial, anos depois,
mas na mesma data da partida de Maria, todos estão aguardando sua volta, enquanto
festejam a véspera de São João. A noite avança e nem sinal de Maria. De repente, o coro
masculino se alvoroça com alguém que se aproxima de mala na mão. Não é Maria, é uma
mensageira trazendo uma carta de Maria para a mãe. A mãe manda chamar uma professora
que inicia a leitura da carta – este é o clímax e a cena final da ópera. Maria conta suas
vicissitudes, narra sua desgraça e despede-se: 49

“ Adeus mamãe

49
Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 55.
estou morta
para sempre
e nunca mais”50

Essa obra evidencia, idealisticamente, a ingenuidade das moças do sertão ante a


“sociedade imunda dos imundos urbanóides”51. Nela, a beleza física, como se verá também
no Auto da catingueira, é tratada como geradora de desgraça –
Por que fui ser tão bonita
oh sorte por que me feres
se eu seria em melhor dita
a mais feia das mulheres52

Nessa ópera, há evidente distinção entre o sertão e a cidade, tema também


comum nas obras de Ariano Suassuna. Quando a cena acontece no sertão, há tranqüilidade,
proteção divina e linguagem catingueira, porque é o local de nascimento, de criação, de
aquisição de valores morais e culturais do sertanejo. Quando os fatos ocorrem na cidade, há
tensão, presença do diabo e linguagem culta, uma vez que Maria recebeu instrução ao se
mudar. Assim, os personagens, quando são retirados de seu meio, mesmo que aprendam a
dinâmica básica que rege os habitantes citadinos, acabam sofrendo agruras, pois seu ideal
de vida, sua essência não combinam com o mundo urbano.
Outra ópera com praticamente a mesma temática, do homem sertanejo que sofre
desventuras no contato com a cidade, é Casa das Bonecas, com pequena parte escrita e
também gravada em Árias Sertânicas (1992). Há os personagens: Vaqueiro, Noiva,
Boneca, malandros perversos urbanóides (sic), parentes do noivo, empregados da empresa
de ônibus e figurantes. Conta a história de um vaqueiro, noivo de uma moça – no alto
sertão – que vivia de fazer bonecas de pano e de vendê-las nas feiras. Diante das
dificuldades em conseguir o mínimo para um casamento e após insistências da noiva e dos
pais dela, visto que os anos se passavam, o peão cria coragem e migra para São Paulo. Na
época da partida, a Noiva conta ao Peão estar fazendo uma boneca de pano em tamanho

50
“A leitura” (faixa 7).
51
Encarte de Elomar Figueira MELLO, CD Árias Sertânicas, 1992.
52
“A leitura” (faixa 7).
natural, que estará pronta quando ele regressar.53
Na cidade grande, trabalha na construção civil por quatro anos, economizando para
voltar a seu cariri. Completado o tempo, o protagonista mune-se do dinheiro, economizado
a custo, e de presentes: um facão, um rosário com um par de brincos, um violão e o vestido
da noiva; pega um ônibus “de linha” e inicia a volta. Numa das paradas obrigatórias, desce
para tomar café, sempre agarrado ao seu tesouro: todo o dinheiro pelo qual alugara a alma.
Entretanto, malandros perversos colocam narcótico na bebida do Peão; quando acorda,
enlouquece ao descobrir que todo seu dinheiro fora roubado. Dias depois, perambulando
pela cidade, é localizado pelos empregados da empresa de ônibus, que o recambiam ao
rincão natal.
O Peão não reconhece mais parentes, Noiva e amigos; os pais choram o triste
estado do filho que retorna. Na cena seguinte, um diálogo entre a Noiva, o vaqueiro (louco)
e a Boneca, mostra o estado de confusão mental dele, que não distingue, na verdade, a
boneca da amada.54
Novamente, há a evidência de que personagens “nascidos” no sertão não saem
ilesos ao tomarem contato com a vida citadina. Muitos deles alimentam o sonho de
migrarem para as cidades, em busca de bens matérias, geralmente trabalhando na
construção civil, o que possibilitaria a melhora de vida no sertão, mas muitos são
explorados, ficam doentes ou loucos, e outros morrem atropelados, como o vaqueiro
Remundo na cantiga “Chula no terreiro”, ou perdem a memória.
Em Faviela, ópera que faz parte de Bespas esponsais, na qual também não ocorrerá
o sonhado casamento, tem-se um ato e três cenas, com os personagens Aparício (um
vaqueiro), Madrinha, Pai, Mãe, Caçula, Primas, figurantes (comadres ajudantes na
cozinha).
No primeiro ato, as primas e a Caçula conversam na cozinha durante a azáfama dos
preparativos de festa, a “Bespa” – véspera de São João; falam de um parente que foi para o
Paraná. Aparício ronda pela cozinha, o Pai pergunta-lhe da noiva, cede-lhe uma boa égua e
o manda buscar Faviela.

53
Esse enredo lembra uma passagem de Odisséia, de Homero, quando Penélope, ardilosamente, tece uma
mortalha para Ulisses, desmanchando-a todos os dias, com intuito de enganar aos pretendentes, retardando a
possibilidade de casar-se com outro, já que o marido demora demasiadamente para retornar da guerra.
54
Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 53.
No segundo ato, Aparício, montado na égua Catarina, atravessa a Caatinga e expõe
seus anseios, seu amor por Faviela, suas esperanças e temores.
No terceiro e último ato, Aparício chega à casa da Madrinha enlutada, com “o olhar
petrificado no horizonte”. Segundo o costume, toma a bênção, lava o rosto e as mãos e
pergunta por Faviela. A Madrinha conta-lhe do misterioso homem que ali tivera pousada,
na lua minguante anterior, e que consigo levou Faviela. Aparício chora sua dor. 55 Portanto,
esta é mais ópera que está ligada às demais pelo fio temático – casamento que não será
realizado em virtude de acontecimentos trágicos.
Não foi possível obter, com confiabilidade, detalhes a respeito das outras duas
óperas que compõem a pentalogia – O peão mansador e Os poetas são loucos mas
conversam com Deus. Sabe-se da existência de outras em andamento, como De nossas
vidas vaporosas, Os pobres, Os miseráveis, Os desvalidos, Os lanceiros negros e D. Pedro
II.
A sétima ópera, pela ordem de Elomar, é intitulada O retirante – (Prólogo): Um
pequeno fazendeiro do sertão penhora a um banco sua fazenda e todos os seus bens, como
garantia de um empréstimo para beneficiamento da propriedade e da lavoura. As chuvas
não vêm. A casa bancária envia-lhe os avisos de vencimento de prestações e juros. A cada
aviso que recebe, mais aumentam os temores de perder a terra ou de ir para a prisão. Os
dias vão passando; com a lavoura perdida, o banco penhora os bens do fazendeiro.
Numa noite, em seu quarto, na esperança de sentir o vento Norte anunciador da
chuva, recebe uma lufada de ar quente. Esperançoso, fala: “eis que chega o vento Norte” e,
do fundo, uma voz responde: “Não! É o Anjo da Morte”. Após o ocorrido, o fazendeiro
ouve o canto prolongado e firme do sapo cururu na barranca do Rio, donde conclui que a
chuva estava próxima. Levanta-se, convidando todos a se alegrarem, preparando as terras
para o plantio, pois assim poderiam saldar as dívidas. A chuva prometia. Atravessa a sala
escura e depara novamente com o Anjo da Morte, o qual toma pelo boi encantado, o boi
Aruá; decide pegá-lo com vara de ferrão. Persegue a “visagem”, mas não consegue
capturá-la; ela desvanece ao amanhecer.
Ouve-se uma buzina, é o dia da execução da penhora. Chega uma comitiva enviada
pelo banco para a leitura da “Carta de Arrematação”, na qual dão a saber ao fazendeiro que

55
Idem, ibidem. p. 56.
seus bens foram arrematados em leilão.
Ao término da leitura da Carta, na sala repleta de mulheres, crianças e vaqueiros,
estão todos tristes, desapontados. Um jovem vaqueiro, ainda adolescente, adianta-se em
direção ao Porteiro dos Auditórios (encarregado dos ritos jurídicos), reclamando da grande
injustiça. Um policial trespassa-o a baioneta. Ao cair morto, vem o grande clamor dos
presentes, que guardam o corpo pelo resto do dia e pela noite adentro, em fúnebre ritual
roçaliano.56
Nessa ópera, o autor chama a atenção para uma situação comum, vivenciada pelos
pequenos proprietários de terra, criadores de gado miúdo. Com a falta de chuva, que deixa a
terra seca, os sertanejos não conseguem plantar e nem alimentar o gado, fontes de sustento.
Recorrem aos bancos, à procura de financiamento, mas não têm condições de saldar a
dívida, pois não têm trabalho. Dessa forma, o exílio é favorecido, porque não possuindo
mais suas terras, migram para outras regiões em busca de serviço.
A partir da rápida descrição destas óperas57, percebe-se a constante preocupação do
artista em retratar problemas que afetam o sertanejo: a seca, a falta de recursos financeiros,
a execução de bens, as alternativas, que só geram outros problemas, como a migração para
o Sul e o empréstimo em bancos, as mulheres exploradas ou enganadas. Dessa forma,
Elomar dá um tom sociológico às composições, mas com o sentido de expor a vida do
catingueiro, como mesmo afirma o próprio artista:

“Minha música não tem cores sociais, tem cores sociológicas. (...)
Social, pelo que eu entendo, tem de estar ligado, tem de ter uma conotação
política. E minha música não tem nada a ver com política, nem pela direita, nem
pela esquerda, nem para cima, nem para baixo. Minha música fala do homem
como um ser, como uma criatura de Deus. Ela não tem nada a ver com o homem
como uma deformação, uma construção política. É uma criatura de Deus, que
veio à Terra e está aqui travando a luta da vida, mas sempre com esperança de
vencer”.58

56
Op. cit. SIMÕES, 2006. p.51
57
Paráfrases cuja finalidade é apresentar ao leitor uma obra de difícil acesso.
58
Entrevista a VAL, Clarice. “Elomar fala do ‘Cenas brasileiras’, dos seus projetos, da sua obra”. 1998.
disponível em http://www.facom.ufba.br/elomar. Acessado em 17/01/2006.
Existem também os roteiros cinematográficos. Entre os já concluídos está
Sertanílias:

“(...) tem um personagem chamado Sertano. A câmera nunca pega seu


rosto, ele está sempre de perfil, é um anti-herói, uma figura ética que viaja pelos
sertões. Ele anda a cavalo, calça botas, tem uma pistola e porta um facão, mas a
grande arma dele é a palavra, seu discurso passa por todo o conhecimento
histórico do homem. Trabalho entre a ficção e a realidade: na abertura tem cinco
jornalistas que me entrevistam sobre minha obra e vida. Após cada pergunta e
resposta, escorrega para Sertano, viajando por meus personagens; indo e vindo. É
20% de realidade e 80% de imaginário. Já estou esboçando “Sertano visita a
cidade grande”.59

Acrescenta-se, segundo depoimento do autor60, Os vaqueiros, Os escravos e A casa


dos sete candeeiros, todos escritos há mais de 20 anos, além de O cerco de São Sebastião
do Rio de Janeiro, que, segundo o artista, está em sua mente!
Elomar, em 2001, por meio de três ensaios: “Na mira do meu fuzil”, “O enigma da
década defunta” e “A ira de Alá”, posiciona-se criticamente com relação à política e à
economia mundiais, questionando a globalização e os valores que dissemina, tendo como
alvo para seu fuzil os Estados Unidos, tido por ele como uma “besta devoradora” que arrasa
os pobres do planeta. Faz uso do dialeto catingueiro, junto a uma linguagem rebuscada e
arcaica, recorrendo ao latim e ao recurso alegórico, além de figuras bíblicas. Esses ensaios,
veiculados em seu site61, foram objetos de estudo de Simone Guerreiro, que dedicou a eles
um tópico de sua dissertação62, decifrando as parábolas utilizadas pelo artista, facilitando a
compreensão deles por meio de paráfrases.
Observa-se que Elomar se mostra um artista profícuo, com grande quantidade de
trabalhos e, principalmente, diversidade genológica, transitando confortavelmente e com

59
Op. cit. LOUREIRO, 2003.
60
Op. cit. LOUREIRO, 2003.
61
MELLO, Elomar Figueira. Na mira do meu fuzil. Semanário Estado do Sertão, 05 de julho de 2001. O
enigma da década defunta (17/08/2001) e A ira de Alá (12/10/2001). Todos disponíveis em
http://www.elomar.mus.br
62
Op. cit. GUERREIO, 2001. P. 58-76.
propriedade por todos os gêneros praticados. Lamenta-se que existam muitas outras
produções “guardadas”, que não vêm a público por razões diversas, principalmente a
financeira. O artista também lamenta, mas conforma-se:

(...) O que tem de verso meu sendo comido por rato e cupim lá em casa...
Outro dia abri uma sala lá na Casa dos Carneiros e vi um rato saindo com um
pedaço de um poema na boca. Dei um chute nele e disse: ‘rato não come poema
meu’! 63
“(...) No mais, me conformo em partiturá-las, não só as óperas como as
antífonas, os galopes estradeiros e os concertos, guardando-os num velho baú, em
‘campa antiga’, monobloco passageiro do tempo até estação futura, bem vinda
quadra remota onde lhe aguarda uma geração que por justiça e por certo haverá
de ouvir e amar minha música, tão fora de moda nestes dias. Ó tempora! Ó
mores!64

63
Op. cit. LOUREIRO, 2003.
64
Op. cit. SOUZA, 1994.
3. Capítulo II – Espiritualidade elomariana

“Pelo lado de dentro o Homem não muda”.65

Para se fazer um estudo a respeito da espiritualidade elomariana, selecionaram-se


duas de suas produções – o Cancioneiro66 e o poema épico Fantasia leiga para um rio
seco. Primeiro dado a salientar, sem dúvida, é o conceito de espiritualidade seguido neste
trabalho. Assim se entende espiritualidade, conforme explica Vauchez:

“A espiritualidade não é encarada como um sistema codificador das


regras da vida interior, mas antes como uma relação entre certos aspectos do
mistério cristão, particularmente valorizados numa dada época e certas práticas
(ritos, orações, devoções), elas próprias privilegiadas relativamente a outras
67
práticas possíveis no interior da vida cristã”.

Portanto, o conceito diz respeito ao aspecto religioso da vida interior dos homens,
visando ao estabelecimento das relações pessoais com Deus, por meio de práticas
consideradas sagradas e valorizadas por uma determinada sociedade, ou seja, “uma
unidade dinâmica do conteúdo de uma fé e da maneira pela qual é vivida por homens
historicamente determinados”. No caso desta Dissertação, são considerados os aspectos

65
CASCUDO, Luis da Câmara. Superstição no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1985. p. 305.
66
As cantigas que serão analisadas encontram-se na Antologia ao final da Dissertação.
67
VAUCHEZ, André. A espiritualidade da Idade Média Ocidental. Lisboa: Estampa, 1995. p. 12.
ligados à religiosidade cristã, expressos pelo catingueiro elomariano, tais como ecos do
discurso bíblico, o que demonstra a valorização de alguns fundamentos judaico-cristãos e a
constante preocupação em manter, de várias formas, relações com os ensinamentos divinos,
pois os gestos, a maneira de pensar, as crenças, as festas, o modo de viver do sertanejo
retratado na obra de Elomar têm como modelo a Sagrada Escritura. Segundo o artista, na
palavra bíblica há uma verdade superior, inquestionável e absoluta. Guy Lobrichon,
medievalista, pesquisador do assunto “religiosidade”, reforça:

“Os escritos da Bíblia constituem a lei dos cristãos, um código ou norma


intangível, inexpugnável, marcada por um sinal sagrado. Sobre o livro santo
pronunciam-se juramentos, compromissos de fé, promessas essenciais (...)”. 68

A vida, em consonância à palavra de Deus, não é um “estado, mas um estilo de


existência”69. Nos textos de Elomar, é recorrente a idéia de superioridade divina, e a
posição assumida pelo catingueiro é sempre de resignação ao Criador, mesmo ante os
flagelos, uma vez que eles foram determinados por Ele, no sentido de ser um estágio
probatório. Assim, o sertanejo tem a possibilidade de purgar os pecados e completar o
caminho que leva à salvação.
Uma das maiores provações do sertanejo elomariano é a “retirada”, a necessidade de
sair de suas terras, principalmente em virtude da seca e, conseqüentemente, da fome,
passando a peregrinar por lugares insólitos, procurando e aguardando melhores
condições de vida. Esse momento favorece ao peregrino a reflexão sobre sua vida e
alimenta seu anseio pelo encontro com o divino. Esse “retirar-se” do sertanejo, dentro de
uma perspectiva espiritual, funciona como caminho para a ascese, pois a peregrinação é
considerada como:

“O deslocamento de pessoas a lugares em que possam entrar em contato


com o sagrado (...) a peregrinação é um fenômeno quase universal na

68
LOBRICHON, Guy. “Bíblia”. In: LE GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v 1. p. 108.
69
Op. cit. VAUCHEZ, 1995. P. 139.
antropologia religiosa (...). Supõe uma viagem, uma caminhada, isto é, uma prova
física do espaço.

A provação do espaço faz com que o peregrino seja um estrangeiro por


onde passe. Ele é estrangeiro aos olhos dos outros, mas estrangeiro em relação ao
que era antes de se colocar a caminho. A peregrinação é uma prova espiritual.

A caminhada tem um fim específico, que confere sentido complementar


à prova física e espiritual da viagem. (...) é um tempo de festa e celebração. (...) o
peregrino obtém com sua viagem benefícios espirituais e físicos: o perdão dos
pecados e a cura de seu corpo”. 70

Esse “fenômeno universal” pôde também ser observado na Idade Média. O


homem medieval embrenhava-se em caminhos difíceis, com o objetivo de entrar em
contato com elementos divinos por meio de sacrifícios físicos, acreditando que ganharia
a remissão dos pecados. A peregrinação era considerada, naquela época, como um
“exercício ascético e uma forma de penitência”71.

Os personagens retratados por Elomar vivem na aspereza, na penúria, submetidos


às forças da Natureza, desenvolvendo árduos trabalhos e assumindo uma perspectiva
escatológica em relação ao futuro, mantendo-se à espera do Juízo Final. Töpfer, estudioso
das atitudes escatológicas do homem medieval, explica que

“na tradição cristã, o termo ‘escatologia’ (do grego eschata, ‘as últimas
coisas’) designa as idéias concernentes ao fim do mundo ou aos eventos que
atingirão seu termo com o Juízo Final. (...) Em sentido mais amplo, entende-se
por elas (idéias) todas as esperanças, todas as aspirações de conotações religiosas
prevendo o surgimento sobre a terra de uma ordem perfeita, de certa forma
paradisíaca”. 72

70
SOT, Michel. “Peregrinação”. In: LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do
Ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v. 2. p.353.
71
Op. cit.VAUCHEZ, 1995. p. 139
72
TÖPFER, Bernhard. “Escatologia e milenarismo”. In: LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário
temático do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v 1. p.353.
Nesse ponto, elucida-se a conjunção de fundamentos cristãos e judaicos, atualizados
na obra elomariana, pois segundo Sol Biderman, “a escatologia tem sido considerada um
princípio básico da fé judaica”73.
Brian Daley afirma que a escatologia é a fé em soluções finais, representa para o
cristão o estágio final na salvação humana, a espera da recompensa por ter vivido dentro
dos preceitos ético-morais e religiosos pregados pela palavra de Deus. Ele afirma que

“Para pessoas vivendo sob opressão ou perseguição, a esperança


escatológica freqüentemente significou simplesmente o sobrepujante,
radicalmente otimista, sentimento que a intolerável atual ordem de coisas está
para acabar. Expressavam esses sentimentos por imagens apocalípticas. (...) A
escatologia inclui a tentativa de construir uma teodicéia: a justificação da fé em
Deus, uma esperança na revelação final da atividade sábia e amorosa de Deus
através da história, com uma aspiração pelo último ajuste de contas”. 74

Apesar da certeza de que serão salvos, de que conquistarão a Jerusalém Celestial,


pois padeceram, foram pobres, peregrinaram, ou seja, seguiram os caminhos que levam à
salvação, os personagens elomarianos vivem em um clima de angústia constante, porque o
tempo cronológico não é sincrônico ao escatológico. Assim, a vida tem caráter transitório, é
apenas uma passagem para o Reino dos Céus. Esse modo de sentir o futuro é bastante
semelhante ao modo como o sentia o homem medieval nas sociedades cristãs. Segundo Le
Goff:

“(...) sobretudo na Idade Média, o futuro não tem apenas um sentido


cronológico, mas primeiro e principalmente um sentido escatológico. Natureza e
sobrenatureza, no mundo e no além, ontem, hoje, amanhã e sempre, a eternidade,
são unos, feitos de uma mesma trama, não sem acontecimentos (o nascimento, a
morte, a ressurreição)”. 75

O catingueiro retratado por Elomar, assim como o homem medieval, é movido pela
esperança de, um dia, por vontade divina, existir na Terra a Ordem perfeita, ou seja, o
73
BIDERMAN, Sol.Messianismo e escatologia na literatura de cordel. São Paulo, 1970 Tese de Doutorado
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP. p.10.
74
DALEY, Brian. Origens da escatologia cristã. São Paulo: Paulus, 1994. p.13-14.
75
LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa: Estampa, 1995. p. 251.
sonho de os homens livrarem-se dos pecados e conquistarem novamente o paraíso terrestre
ou celestial. Mais forte na poética elomariana é o fato de o sertanejo “dispensar” o Paraíso
terrestre, partindo diretamente para a busca da felicidade no Céu, ou seja, no Paraíso
Celestial, ao lado de Deus. Segundo Delumeau, isso é um traço do pensamento cristão
protestante76, o que poderia estar relacionado à formação religiosa de Elomar.
Nas cantigas elomarianas, justamente pelo objetivo final do sertanejo ser o alcance
do reino dos céus, há a negação do mundo, dos elementos terrenos. A vida é apenas uma
passagem, uma travessia, um caminho de purgações ao qual a morte dará um fim. Esse
tema é bastante antigo e certamente está calcado na Bíblia, precisamente no Livro de Jó e
no Eclesiastes, mas também na civilização greco-romana77. Retoma a temática do
contemptus mundi – “o mundo é vão porque é passageiro”78. As idéias e imagens de um
Além também habitam o imaginário desse sertanejo, que o imagina como lugar paradisíaco,
construído a partir dos ensinamentos bíblicos imiscuídos à realidade nordestina, certamente
sem as agruras vividas no sertão.
O Além do homem medievo era o Além pregado pelo cristianismo. Havia
extrema preocupação com o pós-morte, pois, acreditando-se na ressurreição dos corpos,
aceitava-se a vida após o perecimento do corpo. Essa vida seria plena, em um local seguro,
no qual não haveria enfermidades ou fome. Seria uma terra farta de leite e mel, onde os
cristãos poderiam contemplar a face de Deus. As pessoas viviam à espera do fim do mundo
e do Juízo Final – aos bons era garantido o reino dos céus e aos maus, o inferno A
preocupação com o Além fazia com que as pessoas negassem o mundo, ou seja, o mundo
terrestre, utilizando-o apenas como passagem, lugar onde havia a chance de remissão dos
pecados.

Na análise das cantigas serão enfocados estes aspectos centrais – a peregrinação, a


negação da vida na terra e a espera do Juízo Final – elementos que fazem parte do

76
“(...) os numeroso sermões protestantes que anunciaram aos fiéis o fim próximo do mundo: perspectiva
aterrorizante para os pecadores, horizonte exultante para os eleitos. Mais freqüentemente essa pregação
afastou-se do esquema milenarista e não profetizou nenhum reino de Deus sobre a terra. Ela abria diretamente
para a explosão do julgamento final.” DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo – a culpabilização no Ocidente
(séculos 13-18). Bauru: EDUSC, 2003. v. 2. p. 372.
77
Idem, ibidem. . v. 1. p. 19
78
Idem, ibidem. v.1. p. 25
imaginário religioso nordestino. E igualmente alimentaram o imaginário medieval, num
paralelismo de valores – guardadas as distâncias – que se vem tentando demonstrar.

3.1. O Cancioneiro

Em seu conjunto de canções, denominado Cancioneiro, Elomar explora numerosos


gêneros de cantoria – “incelença”79, “puluxia”80, moirão81, martelo, desafios, louvações,
cantos de amarração e outros. Utiliza elementos trovadorescos de tradição ibérica, imagens
lírico-religiosas traduzidas pelo modo de vida sertanejo. Segundo o artista, “é preciso que
se entenda que já está selado o caderno do cancioneiro elomariano, que fica com mais ou
menos cento e vinte músicas”82.
Nas cantigas selecionadas para representar o Cancioneiro, há, como já mencionado
acima, traços de espiritualidade bastante marcantes e teor religioso evidente. No entanto, é
difícil separar esse dado dos outros elementos que compõem a poética de Elomar, tais como
os costumes regionais.
Em “Noite de Santo Reis” (1)83, têm-se claramente traços da oralidade e da tradição,
tão marcantes na cultura nordestina. Essa cantiga ressalta os valores religiosos subjacentes
à prática do canto na festa de Reis:

“Foram festas populares na Europa (Portugal, Espanha, França, Bélgica,


Alemanha e Itália) dedicadas aos três Reis Magos em uma visita ao Deus
Menino, e ainda vivas em vestígios visíveis. Na península ibérica, os reis
continuam vivos, comemorados, sendo a época de dar e receber presentes, ‘os
reis’, de forma espontânea ou em grupos, com indumentária própria ou não, que
visitam os amigos ou as pessoas conhecidas, na tarde ou noite de 5 de janeiro

79
Excelência - canto entoado à cabeça dos mortos durante o velório. Cf. CASCUDO, Luís da.C. Dicionário
do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.378.
80
“Puluxia” (apologia) – canto de homenagem. Cf. Elomar. Op. cit. Ribeiro, 1982. p.76.
81
“Moirão”, mourão ou trocado – versos dialogados que exigem uma resposta imediata do segundo cantador,
obedecendo ao esquema de rimas escolhido pelo primeiro cantador. Cf. CASCUDO, s.d. p.878.
82
Op. cit. SOUZA, 1994.
83
O número em negrito, entre parênteses, refere-se ao texto na Antologia.
(véspera de Reis) cantando e dançando ou apenas cantando versos alusivos à data
84
e solicitando alimentos ou dinheiro”.

A cantiga é estruturada em três partes: I – Entrada, II – Louvação e III – Aleluia.


Na entrada, o poeta cumprimenta os donos da residência que tiveram sua casa visitada
pelos cantadores – costume no Nordeste brasileiro – e pede permissão para anunciar o
Santo Reis. Nessa entrada, o cantador mostra-se resignado e bastante respeitoso:

“Meu patrão minha senhora


Meu patrão minha senhora
Cum licença de meceis”
(...)

Esses versos fazem um paralelo aos versos tradicionais, muito antigos, cantados em
diversas partes do Brasil:

“Ó de casa, nobre gente,


Escutai e ouvireis,
Lá das bandas do Oriente
São chegados os três Reis”!85

Na Louvação, há descrição de São José e da Virgem Maria, que estão em um


jumento, peregrinando nas estradas de Belém, rumo a uma lapinha. Nesse momento do
poema, o poeta-cantador transmite uma mensagem aos donos da casa: a de que anunciará o
nascimento de Jesus:

“O sinhô com sua Dona


Tem nessa casa um tisôro
(...)
Os filhos qui estão durmino
(...)
84
Op. cit. CASCUDO, s.d, p. 774.
85
Esse canto foi citado por CASCUDO e retomado pelo grupo brasileiro MAWACA, que estuda músicas e
manifestações tradicionais do Brasil e de várias partes do mundo. Em seu álbum Astrolábio tucupira.
com.brasil, há a reprodução desse versos e uma nota explicativa: “A cantora portuguesa Né Ladeiras introduz
a sessão que une o sagrado e o profano, procedimento comum na tradição musical européia que caracteriza a
maioria das manifestações populares brasileiras. Reis é um canto de saudação melismático, de forte influência
moura, que celebra o nascimento de Jesus.” In: MAWACA. Astrolábio tucupira. com. brasil. (CD). Curitiba:
MCD World Music e Ethos Music, 2000.
Vale mais qui prata e oro”

Em seguida, descreve os três Reis Magos, acompanhados da estrela-guia, em


direção a Jesus. Neste ponto, é evidente a referência ao texto bíblico, quando os
astrônomos, a pedido de Herodes, seguem a caminho da Judéia, acompanhando a estrela, e
encontram uma criança nascida, enrolada em faixas, dentro de uma manjedoura:

“(...) dizendo: ‘Onde está aquele que nasceu rei dos judeus? Pois vimos a
sua estrela quando estávamos no Oriente e viemos prestar-lhe homenagem.’ (...)
Tendo ouvido rei (Herodes), partiram; e eis que a estrela que tinham visto quando
estavam no Oriente ia diante deles, até que se deteve por cima do lugar onde
estava a criancinha. Ao verem a estrela, alegraram-se muitíssimo. E, ao entrarem
na casa, viram a criancinha com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, prestaram-lhe
homenagem. Abriram também seus tesouros e presentearam-lhe com dádivas:
ouro, olíbano e mirra”. (Mt 2, 2-11)

Em “Aleluia” (cântico de alegria ou ação de graça), o poeta-cantador narra a


homenagem que os animais prestam ao Menino Jesus e a louvação que os pastores fazem a
Deus pelo nascimento do Salvador, lembrando que eles foram os primeiros a saber desse
acontecimento, avisados pelos anjos:

“Havia também no mesmo país pastores vivendo ao ar livre e mantendo


de noite vigílias sobre os seus rebanhos. E, repentinamente estava parado ao lado
deles o anjo de Jeová, e a glória de Jeová reluzia em volta deles, e ficaram muito
temerosos. Mas o anjo disse-lhes: ‘Não temais, pois, eis que vos declaro boas
novas duma grande alegria que todo o povo terá, porque hoje vos nasceu na
cidade de Davi um Salvador, que é Cristo, o Senhor’”. ( Lc 2: 8-11)

É o momento da cantiga que narra o nascimento de Cristo; no entanto, nos versos


finais, há um salto no tempo e Jesus já opera os milagres, restituindo a visão ao cego (Mt 9:
27-30), a fala ao mudo (Mc 7: 31-33) e o andar ao paralítico (Mc 2: 5-11):

“Aleluia ... aleluia... aleluia


O cego viu o coxo caminhou
O mudo de nascença falou
Quando Jesus andou aqui
Jesus o Bom Pastor da casa de David”

Outra cantiga que pode estar ligada a esta é a “Estrela maga dos ciganos” (2), que
opera praticamente dentro da mesma temática – esperança trazida pela crença em Jesus, a
dádiva de seu nascimento. Nela, o poeta catingueiro expressa sua vida difícil, de
sofrimento, permeada de dívidas e esforços vãos:

“Já num tenho mais costado


Prús baque dêsse rojão
É tanta coisa pur dever tanto pagar
Sem receber tanto que dar”

Diante do sofrimento, do tempo do “quetaí”86, busca esperança na notícia dada


pelos ciganos, verdadeiros peregrinos que erram por diversas regiões, de que uma estrela
mágica vai pousar no sertão, estrela esta que pode ser considerada a de Davi, que eliminará
as penúrias, a tristeza e os elementos que tanto oprimem o poeta catingueiro – “sussarana
seca rapina e ciganos”. Assim, resta a retirada, a peregrinação por outras terras onde a
estrela terá seu raio de alcance:

“Só tô isperano é a promessa dos ciganos


Que na terra inda êsse ano
Vai devagarin pôsar
U’a istrêla maga
N’ua aparição istranha
Da Serra da caratonha
Inté os gerais eu vô prá lá”

Enquanto a promessa não se cumpre, o catingueiro, consciente do que o aflige, pois


se sente submetido ao próprio homem, busca refúgio, alívio para seus tormentos na
peregrinação pelo caminho de São Tiago, em companhia dos Reis Magos:

“E inquanto na face da terra havê tiranos


Vassalos e susseranos

86
Expressão usada no sentido de um tempo em que todos vão ficar onde estão, porque não há mais solução
terrena, não há mais lugar de paz. Entrevista de Elomar a CHAGAS, s.d.
Sinhorio e servidão
fico lá encima hospedado com os Reis Mago
nos camim de São Tiago
num boto os pé nesse chão”

O cantador mostra um mundo dominado por um poder tirânico, destruidor, que


impulsiona o homem ao desespero, pois acredita não haver limites.Também o homem do
medievo nutria esses sentimentos, conforme explica Cohn, medievalista pesquisador da
religiosidade na Idade Média:
“A tirania desse poder tornar-se-á cada vez mais ultrajante e o
sofrimento das suas vítimas cada vez mais intolerável – até que, de súbito, soará a
hora em que os Santos de Deus se levantarão e o derrubarão”.87

Para o cantador, esse “retira-se” tem a função de entrar em contato com o divino,
para fugir dos elementos que o afligem na terra. Percebe-se aqui a presença de um aspecto
que se tornará topoi na poética elomariana – a peregrinação. Interessante salientar que o
poeta catingueiro, nessa cantiga, descreve onde ele se encontra – Bahia, Serra da
Caratonha, mas quer seguir o caminho a Santiago de Compostela (Espanha), lugar sagrado.
O caminho de Santiago teve importância muito grande para homem medieval, que vivia
situações similares – fome, pestes, opressão, exploração dos dominantes – às do catingueiro
de Elomar e rumavam em direção ao santuário em busca de purificação e
conseqüentemente da salvação. Segundo Hilário Franco Jr, o que move as pessoas a esses
lugares sagrados é a crença de que no Céu há um lugar perfeito a que só é permitida a
entrada dos bons que padeceram na terra, elemento recorrente nas canções elomarianas:

“De fato, a perspectiva escatológica leva o cristão a se aproximar de um


local onde a intercessão a seu favor seja mais fácil de obter, agradando
diretamente ao Senhor e colocando-se, assim, numa posição propícia para a
Salvação: ‘todo aquele que tiver deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou
mãe, ou filhos, ou campos, por causa do meu nome, receberá muitas vezes mais,
e herdará a vida eterna’ (Mt 19:29)”. 88

87
COHN, Norman. Nas sendas do milénio: milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade
Média. Porto, 1981. p. 17.
88
FRANCO JR, Hilário. Peregrinos, monges e guerreiros. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 80.
Desse modo, o catingueiro escolhe Santiago porque sabe que seu poder de
intercessão junto a Deus é grande: “Tiago sem dúvida tinha sido um dos apóstolos mais
importantes. Filho de Zebedeu e Maria Salomé – esta, segundo a tradição, irmã da Virgem
– ele era primo-irmão de Jesus”89. Pode-se estabelecer relação entre elementos que são
mencionados nas duas cantigas analisadas até esse momento e que foram considerados
verdadeiros símbolos de ligação entre o peregrino e Deus, por meio do santuário, com as
idéias de Franco Jr:

“(...) todo tipo de milagre acontecia no santuário: ‘a saúde é dada aos


doentes, a vista é devolvida aos cegos, a língua dos mudos é desatada, a audição é
concedida aos surdos, um andar normal é dado aos coxos, os possessos são
libertados (...)’”. 90

“A pergunta” (3), fortemente marcada pelo dialeto catingueiro, é narrativa e


reproduz o diálogo entre dois personagens: o tropeiro Gonsalin e o Quilimero. Nesse
diálogo, o leitor-ouvinte toma conhecimento das agruras na vida dos sertanejos. A primeira
delas, assustadora, é a fome, a “da cara fêa”. Quilimero, estando no sertão na época da seca,
encontra o amigo, o tropeiro Gonsalin, que havia viajado para buscar farinha, e lhe conta os
últimos acontecimentos:

“Adispois de cumê tudo


Cumêr precata surrão
Cumêr côro de rabudo
Cumêr cururu rodão”91
(...)

Também lhe fala da terrível morte, a “véa”, que assolou a região em função da seca
e da fome. Assim, o poeta cantador atravessa as adversidades impostas pela seca e não vê
outra saída que não seja a retirada, chamada por ele de “peregrinação”, questionando-se a
respeito do porquê de Deus permitir tanto sofrimento. Dessa forma, não é explícito o teor
espiritual da peregrinação, mas dentro do contexto elomariano, essa é a saída para a
eliminação dos dissabores:

89
Idem, ibidem. p. 84.
90
Idem, ibidem, p. 86.
91
Respectivamente: couro das alpercatas, rato catingueiro e sapo anunciador da chuva.
“só a terra que você dexô
quinda ta lá num ritirou-se não
os povo as gente os bicho as coisa tudo
uns ritirou-se in pirigrinação
os ôtro os mais velho mais cabiçudo
voltaro pru qui era pru pó do chão
(...)
será qui Deus do céu aqui na terra
do nosso povo intonce se isqueceu”

“Retirada” (4) pode ser ligada à cantiga anterior em função de sua temática. O poeta
cantador narra, consternado, uma peregrinação de sertanejos que rumam à cidade, fugindo
da seca, sofrendo as dores do exílio. Aqui, novamente o retirar-se tem o sentido de ser
estrangeiro, o caráter de exilado. Sot explica que, etimologicamente, a palavra “peregrino”
(peregrinus) significa o exilado ou o expatriado, ressaltando que “o peregrino em todo
lugar é um estrangeiro, desconhecido dos homens, desprezado pelos sedentários, privado
dos recursos de uma coletividade determinada” 92.

“Vai pela estrada enluarada


Tanta gente a retirar
Levando só necessidade
Saudade do seu lugar...”

Mas o catingueiro sabe que esse mundo é destinado ao sofrimento, para que os
pecadores cumpram penitências: “A rota é uma dura ascese. Aí sente-se a fadiga do corpo,
o sofrimento provocado pelos pés doloridos, a tensão dos músculos, a sede e a fome. Aí
sofre-se o rigor das intempéries”93, portanto, o exilar-se tem o sentido de purgar os pecados
“desse mundo de ilusão”:

“Se eu tivesse algum querer


Nesse mundo de ilusão
Não deixava que a saudade
Sociada com o penar
Vivesse pelas estradas

92
Op. cit. SOT, 2002. p. 354.
93
Idem, ibidem. p. 354.
De sofrer a mendigar
Vai pela estrada enluarada
Tanta gente a retirar
Levando nos ombro a cruz
Que Jesus deixou ficar”

Aqui é possível fazer outro paralelo com o pensamento medieval, pois, segundo
Delumeau, que analisou discursos pessimistas de alguns mestres espirituais do medievo,

“(...) o desprezo de si mesmo está associado a uma lamentação sobre a


miséria da condição humana e o caráter transitório das parcas satisfações deste
mundo. (...) Todos os seus bens são ‘transitórios e incertos, frívolos e misturados
com misérias infinitas’. Deus não quer que os homens durmam ‘na paz e no
repouso’ que prejudicariam sua salvação. Assim ele permite que eles (os
pecadores) sejam freqüentemente perturbados e molestados (...)”.94

Nesta cantiga, o cantador exerce o papel de cronista, ou seja, funciona como um


mensageiro social – figura comum desde antanho, em várias partes do mundo – e tem
consciência disso:

“Eu não canto por soberbo


Nem canto por reclamar
Em minha vida de labuta
Canto prazer, canto a dor
E as beleza devoluta
Que Deus no sertão botou”

Esse papel será retomado em outra cantiga – “O violeiro” (5). Nela, encontramos o
poeta valorizando sua profissão e acentuando-se como mensageiro, nunca movido pelo
dinheiro, mas como se tivesse recebido um dom de Deus e a missão de transmitir as
palavras sagradas, sem tirar disso seu sustento, como Cristo pregou aos apóstolos –
“ensinar” de mãos vazias (Mc 6:7-8):

“Vô cantá no cantori primeiro


As coisa lá da minha mudernage
Que me fizeram errante e violeiro

94
Op. cit. DELUMEAU, 2003. p.58.
E falo sero e num é vadiage
(...)
Apois prá o cantadô e violeiro
Só há treis coisa neste mundo vão
Amô, furria, viola, nunca dinheiro
(...)
sem um tustão na cuia o cantadô
canta até morrê o bem do amô”

Nessa missão de mensageiro, ele canta a fugacidade do mundo terreno, o caráter


transitório da vida na terra e o ideal cristão de “beleza na pobreza”, de desapego dos bens
materiais, apoiado no discurso bíblico:

“O Reino pertence aos pobres e aos pequenos, isto é, aos que o


acolheram com um coração humilde. (...) Declara-os bem-aventurados, pois “o
Reino dos Céus é deles” (Mt 5,3); foi aos ‘pequenos’ que o Pai se dignou revelar
o que permanece escondido aos sábios e aos entendidos. Jesus compartilha a vida
dos pobres desde a manjedoura até a cruz; conhece a fome, a sede e a indigência.
Mais ainda: identifica-se com os pobres de todos os tipos e faz do amor ativo para
95
com eles a condição para se entrar em seu reino”.

Essa negação da vida faz com que o poeta cantador assuma uma posição cordata
ante as fatalidades e adversidades, vistas como vontades do Criador:

“Já vi escrito no livro sagrado


Qui a vida nessa terra é u’a passage
E cada um leva um fardo pesado
É um insinamento que derna a mudernage
Eu trago bem dentro do coração guardado”

O que possibilitou a visão que o poeta cantador adquiriu a respeito da vida terrena
foram suas reflexões no “exílio”, suas andanças nas estradas ermas, na solidão, ou seja, um
terreno fértil para a ascensão espiritual. Segundo Sol Biderman, o deserto parece oferecer
condições propícias à pureza religiosa, pois é uma extensão desmedida da terra e do céu.
Lembra que:

95
Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Vozes, 1999. p. 154.
“A fé que brotava da solidão desértica era por demais pura e simples
(...) os judeus passaram pelo deserto. Moisés aí viveu, além de João batista e
Cristo. São Paulo e São João Crisóstomo prepararam-se para suas vocações no
deserto”.96

Pelo fato de o mundo ser cheio de ilusões e ocasiões de pecado, “mais vale
renunciar às criaturas e viver nesta terra como peregrino e como estrangeiro: é pelo exílio
que se ganha o Reino, já que Deus representa todo bem, é vão tentar perseguir realidades
terrestres, as quais decepcionam e apresentam riscos de pecados”97.

“Tive muita dô de não tê nada


Pensando qui esse mundo é tudo tê
Mais só adispois de pená pela estrada
Beleza na pobreza é qui vim vê
vim vê na procissão lovado seja
O malassombro das casa abandonada
Côro de cego nas portas das igreja
E o ermo da solidão das istrada”

Em “Homenagem a um menestrel” (6), têm-se a repetição dos elementos discutidos


na canção anterior e a inserção de uma nova atitude – a introspecção. O “eu” poético, já
idoso, faz um retrospecto do que praticou em vida. Chega à conclusão de que fora pecador,
cometera muitos erros, mas viveu na retidão. Exilou-se, peregrinou por terras insólitas,
passou por sofrimentos e provações diversas, mas por meio da misericórdia divina aguarda
a morte, sua esperança de ganhar o reino dos céus.

“faltoso confesso erros e pecados


(...)
perdido andei na noite longa
com porcos pastei bem distante do lar
mil febres me queimaram o peito
(...)

96
Op. cir. BIDERMAN, 1970. p. 117.
97
Op. cit. VAUCHEZ, 1995. P.48
vendi meus dias em instâncias medonhas
meu tempo querido numa terra estranha”

É marcante nesta canção o discurso bíblico, pois o próprio cantador cita o


Eclesiastes, ao lamentar o modo vão e dispendioso como viveu, o que fornece pistas para
esta análise. As idéias apresentadas no livro dos Eclesiastes versejam a respeito do
significado da vida, enumerando os “tempos” destinados para cada etapa ou meta, e lança a
pergunta crucial a que todo cristão deve responder, provocando, assim, reflexões interiores:

“Para tudo há um tempo determinado, sim, há um tempo para todo


assunto debaixo dos céus: tempo para nascer e tempo para morrer; tempo para
plantar e tempo para desarraigar o que se plantou (...) Que vantagem tem o
realizador naquilo em que trabalha arduamente”? (Ec 3: 1-9)

A resposta é dada – não há vantagens:

“E eu, sim, eu me virei para todos os meus trabalhos que minhas mãos
tinham feito e para a labuta em que eu tinha trabalhado arduamente para realizar,
e eis que tudo era vaidade e um esforço para alcançar o vento, e não havia nada
de vantagem debaixo do sol”. (Ec 2: 11)

“São longos dias e bem grande é o tempo


Oh como lamento o estiolado em vão
Fui perdulário em gastar dissoluto
Horas e minutos que no Eclesiastes
Em derradeiro canto estrofou Salomão
(...)
e a mim resta a Esperança ainda
minha Noiva já és benvinda
Ó Morte eu vou pra Deus”

Portanto, a vida na terra não “é uma arena de ganho; não há retribuição que seja
satisfatória”98. Assim, só resta buscar a morada celestial, mas é preciso completar os quatro
graus da humildade que consistem na negação do indivíduo enquanto ser superior por meio

98
WILLIAMS, James G. “Provérbios e Eclesiastes”. In: ALTER, Robert e KERMODE, Frank. Guia literário
da Bíblia. Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1997. p. 287.
do reconhecimento de suas fraquezas, tornando-se submisso, sujeitando-se a Deus. O
peregrino precisa ter consciência de sua vileza; precisa decompor-se e enxergar todos os
motivos que o transformaram em pecador. Somente dessa maneira será possível viver
espiritualmente, pois “a vida espiritual não é uma aquisição, mas uma demolição”.99
A cantiga (7), “A meu Deus um canto novo”, também é marcada pelos fundamentos
cristãos e pelo discurso bíblico. No título já se tem um indicativo. A expressão “canto
novo” faz alusão aos Salmos – cânticos de agradecimento:

“Gritai de júbilo, ó justos, por causa de Jeová. O louvor da parte dos


retos é próprio. Daí graças a Jeová com a harpa. Entoai-lhe melodias num
instrumento de dez cordas. Cantai-lhe um novo cântico; fazei o melhor ao
tocardes com gritos de alegria”. (Sal 33: 1-3)

O poeta cantador, nessa cantiga, está narrando sua chegada de uma viagem, uma
peregrinação, e descreve os elementos que foi encontrando pelo caminho e que o fizeram
chegar a determinadas conclusões a respeito da vida, coadunando com as reflexões do
cantador da canção “Homenagem a um menestrel”, analisada anteriormente. No entanto,
esta cantiga 7 apresenta um teor mais positivo perante a vida. O peregrino descrito porta-se
como homo viator – vem de lugares distintos, buscando, por meio de provações, a
purgação de seus pecados. Usam-se termos como “grande viagem” e “jornada”, para
mostrar que essa “andança” não é mero caminhar, mas trajetória espiritual. O tom otimista
é revelado ao leitor-ouvinte quando o cantador mostra que veio de paragens protegido pelas
mãos de “Elmana” – que remete a Emanuel, ou seja, a junção de Deus com a criação:

“Eis que a virgem ficará grávida e dará à luz um filho, e dar-lhe-ão o


nome de Emanuel, que quer dizer, traduzindo: ‘Conosco está Deus’”. (Mt 1: 23)

No caminho, cansado de ensinar “justiça ao mundo pecador”, o peregrino encontra


um deficiente físico que não possuía as pernas; fica comovido com a atitude dele, que pediu
a Deus abençoasse o viajante e nada lhe faltasse:

99
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
p.178.
“Topei in certa altura da jornada
com um qui nem tinha pernas para andar
comoveu-me em grande compaixão
voltano o olhar para os céus
recomendou-me ao Deus
Senhor de todos nós rogando
Nada me faltar”

Depois, conclui que as pessoas praticam atos ilícitos, causando sofrimentos, porque
faltam três princípios básicos:

“Resfriando o amor a fé e a caridade


Vejo o semelhante entrar em confusão”

O sofrimento no mundo existe, porque falta a prática das chamadas virtudes


teologais:

“As virtude humanas se fundam nas virtudes teologais que adaptam as


faculdades do homem para que possa participar da natureza divina. Pois as
virtudes teologais se referem diretamente a Deus. (...)”
“As virtudes teologais fundamentam, animam, e carcterizam o agir
moral do cristão. Informam e vivificam todas as virtudes morais. São infundidas
por Deus na alma dos fiéis para torná-los capazes de agir como seus filhos e
merecer a vida eterna. São o penhor da presença e da ação do Espírito Santo nas
faculdades do ser humano. Há três virtudes teologais: a fé, a esperança e a
caridade”. 100

Logo, se o cristão abandona o princípio da fé, que age pela caridade, e caridade é
amor, dispensa a palavra de Deus: “Este é meu preceito: Amai-vos uns aos outros como eu
vos amei” (Jo 15:12) e se perde no mundo terreno, afastando-se de Deus e da salvação
eterna, pois a caridade tem

100
Op. cit. Catecismo. p. 488.
“como frutos a alegria, a paz e a misericórdia; exige a beneficência e a
correção fraterna; é benevolência; suscita a reciprocidade; é desinteressada e
liberal; é amizade e comunhão”. 101

O poeta peregrino, ante a situação de afastamento das pessoas dos preceitos divinos,
desempenha uma importante missão, a de ser mensageiro da palavra de Deus, porque ele
pratica as virtudes teologais – tem fé, tem caridade e esperança,

“pela qual desejamos como nossa felicidade o Reino dos Céus e a Vida
Eterna, pondo nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos não em
nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo”.102

“Fadigado e farto de clamar às pedras


De ensinar justiça ao mundo pecador”

A Esperança é representada por meio da peregrinação e da crença em Cristo, na


ressurreição dos corpos e na vida eterna, logo faz um canto novo a Deus, expressando sua
gratidão pela possibilidade de salvação:

“Na manhã da estrada


E começar tudo de novo
Boas novas de plena alegria
Passaram dois dias da ressurreição
(...)
Vô prossiguino istrada a fora
Rumo à istrêla canora
E ao Senhor das Searas a Jesus eu lôvo
Levam os quatros ventos
Ao meu Deus um canto novo”

Seguindo na perspectiva da crença na salvação e na morada no Reino dos Céus,


apresenta-se um grupo de 8 canções, de teor eminentemente escatológico, ligadas às
temáticas das outras 7 canções anteriores. São elas: “Campo Branco” (8), “Cantiga do

101
Op. cit. Catecismo, p. 492.
102
Idem, ibidem. p.489.
Estradar” (9), “Corban” (10), “Um cavaleiro na tempestade” (11), “O cavaleiro da torre”
(12), “Cavaleiro de São Joaquim” (13), “Seresta sertaneza” (14) e “Chula no terreiro” (15).
“Campo branco” apresenta-se como um canto de comunhão do homem com a
Natureza, de conteúdo escatológico, construído com imagens de acentuada plasticidade e
com discurso bíblico. Professa a chegada da chuva no sertão. Segundo análise de Rita
Melo, tem-se
“(...) a noção da totalidade do homem sertanejo e dos elementos
constituintes deste processo: homens, bichos, natureza e divindade integrados em
um mesmo processo de sobrevivência”. 103

“Campo branco” significa “caatinga”, nome de origem indígena. O poeta cantador


faz um verdadeiro cântico à terra, mostrando que os tempos estão difíceis em função da
seca:

“Campo branco minhas penas que pena secou


Todo bem qui nóis tinha era a chuva era o amor
Num tem nada não nóis dois vai penano assim
Campo lindo ai que tempo ruim
Tu sem chuva e a tristeza em mim”

Diante dos obstáculos impostos pela natureza, não conseguindo vencê-los, alimenta-
se da esperança de uma nova era, melhor, ao lado de Deus. Portanto, só lhe resta clamar ao
Senhor. O cantador faz uso da gradação para demonstrar a intensidade de seu desejo: “peço
a Deus a meu Deus grande Deus de Abraão”, demonstrando a virtude da fé e o alcance do
bem por meio da devoção. Por isso, em apenas quatro versos, a palavra Deus foi usada seis
vezes:

“Todo bem é de Deus que vem


Quem tem bem lôva a Deus seu bem
Quem não tem pede a Deus qui vem”

103
MELO, Rita Maria Costa. Elomar Figueira Mello: uma poética do sertão baiano. Recife, 1989.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Pernambuco. p. 125.
A cantiga mostra a possibilidade de analisar os elementos de duas maneiras – uma
literal, chuva simbolizando fertilidade no campo, renovação da vegetação, o trovão como
anunciador dessa chuva; outra simbólica, por meio da alegoria, com a chuva aludindo ao
dia do Juízo Final e o trovão, à voz de Deus. Essa segunda possibilidade, apesar de Elomar
não a explicitar em seus comentários104, é vista nos versos:

“Esse tempo da vinda tá perto de vin


Sete casca aruêra cantaram prá mim”

“Tempo da vinda” refere-se ao momento em que Jesus descerá à terra e promoverá


o julgamento dos justos. O número 7 (“sete casca aruêra cantaram prá mim”) é bastante
significativo, representa a combinação do número 3, número de Deus, com o número 4,
número dos homens, da criação, ou seja, número de Emanuel, Deus com os homens105,
confirmando a ligação do Senhor com a humanidade perdida. Também sua referência faz
ecoar o texto bíblico, o Apocalipse, o Livro Revelação, no qual cita a abertura dos 7 selos,
a presença dos 7 candeeiros, 7 congregações, 7 anjos, 7 estrelas, 7 lâmpadas, 7 espíritos, 7
olhos, 7 trombetas, 7 flagelos, 7 trovões, 7 chifres, 7 cabeças, 7 taças da ira de Deus, 7
dias, 7 cores do arco-íris.
Tem-se o elemento 7 também na “Cantiga do Estradar” – 7 tempos, 7 reinos, 7
dedais de venenos e a crença na promessa divina de haver o tempo da volta, possibilitando
aos bons a contemplação da “face ogusta” de Deus. O cantador expressa nessa cantiga todo
o sofrimento pelo qual já passou e mostra que tem ciência de que ainda faltam muitas
provações a cumprir até ganhar o reino dos céus. Acreditando na vida como passagem para
um Bem maior, essas provações aparecem ao longo da jornada peregrinatória, cumprida
segundo as palavras das Sagradas Escrituras:

“ele insino qui nois vivesse


a vida a qui só pru passá “

104
“A estrutura da letra e da melodia é um cântico da vinda da chuva”. In: LESSA, Cláudia. “Elomar das
antigas”. Salvador: Folha da Bahia, 26/12/05. “Campo branco, por exemplo, é cantado em igrejas, no interior
do Paraná. Fala dos talos da vegetação da caatinga que, na seca, se revestem de branco, para resistir à seca e
não morrer” Op. cit. DIAS, 1997.
105
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. P. 826-831.
“Pois, no meu caso, viver é Cristo, e morrer é ganho”. (Fil 1: 21)

“nois intonce invitasse


o mau disejo e o coração
nois prufiasse pra sê branco
inda mais puro
qui o capucho do algudão
qui num juntasse dividisse
nem negasse a quem pidisse”

“Em resposta ele lhes dizia: ‘Aquele que tiver duas peças de roupa interior
partilhe com aqueles que não tiver nenhuma, e aquele que tiver coisas para
comer, faça o mesmo’”. (Lc 3:11)
“Dá ao que te pede e não te desvies daquele que deseja tomar emprestado de ti”.
(Mt 5:42)

Assim, o poeta-cantador expressa os ensinamentos divinos de não acumular


riquezas, não se macular com a ambição de possuir bens terrestres, pois neles não se
encontra a felicidade eterna. Somente pelo perecimento do corpo, concretizado pela morte e
pela purificação do espírito, realizada pela purgação das falhas, é que se pode alcançar a
Morada celestial.

Em “Corban” (10), puramente de matiz escatológico, também há referência à


numerologia 7: 7 mil léguas, 7 vacas magras, 7 cravos. Corban “seria uma abnegação, que é
o sacrifício voluntário do que há de egoístico nos desejos e tendências naturais do homem,
em proveito de uma pessoa, causa ou idéia”106. Além de, no próprio título, o autor fazer
alusão a um tipo de atitude pela qual o crente se mostra resignado com um destino a ele
reservado, esperançoso e confiante no projeto divino da salvação, narra a passagem dos
cavaleiros do Apocalipse.
Como Jerusa Pires Ferreira descreve:

“Em hebraico korban, o culto sacrificial do período bíblico, que envolvia


oferendas. Aqui esta oferenda se faz diferente: como em outros textos de Elomar,

106
Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 39.
a obsessão da travessia, da vida como caminho, o percurso perigoso. Aqui se
oferece o Apocalipse, sob o texto bíblico, a morte faz seu caminho no sertão.
Texto de prestação de contas do tempo e do milênio que envolve homem e
natureza, através de toda uma tradição”. 107

Também nesta canção, o cantador-peregrino narra as adversidades existentes na


terra, mostrando que é preciso superá-las por meio da remissão dos pecados e erros
cometidos.

“Só vejo na terra a morte a rondá


Peste mil enfermidades
Fome e guerra ai de mim
Mil ventos da morte
Estrôncios letais
(...)
lastimo meus êrros
de grande pecado”

Os flagelos existem porque

“A vida aqui em baixo é um combate, um combate pela salvação, por


uma vida eterna; o mundo é um campo de batalha onde o homem se bate contra o
diabo, quer dizer, em realidade contra si mesmo. Pois, herdeiro do Pecado
Original, o homem está arriscado a se deixar tentar, a cometer o mal e a se
danar”. 108

O poeta cantador, para reforçar a circunstância de penúria, prevendo que o fim do


mundo está muito próximo, faz um paralelo dos versos “sete vacas magras/ tragam as
gordas nos currais”, com o discurso bíblico, ou seja, com uma passagem do Gênesis que
relata o sonho do faraó que José interpretou como sendo 7 anos de fartura, seguidos de 7
anos de carestia na terra do Egito, por desígnio de Deus.

107
Op. cit. FERREIRA, 2001. P. 170-171.
108
LE GOFF, Jacques. “Além”. In: LE GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. Trad. (Coord.) Hilário Franco Júnior. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002.
v.1. p. 22.
“E eis que subiam do rio Nilo sete vacas de aparência bela e de carnes
gordas, e elas pastavam entre as canas do Nilo. E eis que após elas subiam do rio
Nilo, mais sete vacas de aparência feia e de carnes magras, e elas se postavam ao
lado das vacas à beira do rio Nilo. Então, as vacas de aparência feia e de carnes
magras começaram a devorar as sete vacas de aparência bela e gorda. Nisso o
faraó acordou”. (Gen 41: 2-4)

Por fim, o cantador descreve, demonstrando sua crença na palavra divina, o


momento em que ocorrerá a ressurreição dos corpos, a anunciação dos cavaleiros do
Apocalipse, indicando a vinda de Cristo à terra para presidir o julgamento, no qual se
decidirá quem receberá a salvação e a quem restará a condenação:

“Geme a terra ao rebentá das covas


(...)
quatro cavaleiros
de olhares cruéis
prontos pra peleja
já cavalgam seus corcéis
de olhos para os céus
só ispero Cristo vin”

Essa descrição do momento do Juízo Final também é encontrada em “Um Cavaleiro


na tempestade” (11).
“Quem é quem chega a estas horas
Que insiste e demora
Na porta a bater?
(...)
Abri-me a porta ó senhora
Um instante é a demora
Não ouves cá fora o rugir do trovão
Por armas não porto
Nem punhais nem dardos letais
Só a espada de luz “

Uma donzela pergunta quem bate à porta em hora tardia e um cavaleiro responde
que não é preciso ter medo, pois o “perigo é a descrença”. Esse cavaleiro remete o leitor-
ouvinte a uma passagem do Apocalipse, quando Cristo bate à porta de um fiel:
“Eis que estou em pé à porta e estou batendo. Se alguém ouvir a minha
voz e abrir a porta entrarei na sua [casa] e tomarei a refeição noturna com ele e
ele comigo. Àquele que vencer, concederei assentar-se comigo no meu trono,
assim como eu venci e me assentei com meu Pai no seu trono”. (Re 3: 20-21)

Portanto, somente pela fé na promessa do retorno de Cristo é que o poeta cantador


encara os obstáculos como um meio, sempre suportando-os à espera da recompensa que
valha a retidão e a prática das virtudes. Os versos finais de “O cavaleiro da torre” (12)
demonstram esses elementos:

“Vivendo da fé
A minha crença não se cansa
Preso ao fio desta esperança
Não tiro os olhos dos céus
Confiante na Balança
Que julga o inocente e o réu”

As três últimas canções repetem a mesma temática – o catingueiro vive agruras,


sofre os flagelos, mas enxerga-os como provações a cumprir, já que a vida na terra é
combate, é meio e não fim, acreditando que chegará o dia em que Jesus procederá ao Juízo
Final e dará aos justos o Reino dos Céus. No entanto, elas trazem a concretização desse
reino. O catingueiro tem em seu imaginário a descrição e a idéia, segundo seus desejos e
aspirações, de como é esse Paraíso celestial. Em “Cavaleiro de São Joaquim” (13), o poeta
cantador é um cavaleiro que está em peregrinação, sozinho, viu sua terra queimada pelo sol
e vê a salvação:

“Sonho que na derradeira curva do caminho


Existe um lugar sem dor, sem pedras, sem espinhos”

Portanto, o Paraíso é um local onde não há sofrimento, não há seca, não há fome:

“E enxugará dos seus olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem
haverá mais pranto, nem clamor, nem dor. As coisas anteriores já passaram”. (Re
21:4)
Na cantiga 14, “Seresta sertaneza”, o cantador descreve sua viagem ao reino de
Deus com um tom de torpor, pois ainda não conseguiu conquistá-lo. Descreve regiões
azuis, imensidões, vias estelares e o reino dos cristais, que corresponderia ao Paraíso.
Também é uma canção que denota preocupação na purificação da mente e do corpo, pois o
cantador foge da tentação da “carne”, não desejando perder a castidade, o que exige o
domínio de si mesmo, conseqüentemente de suas paixões, para a busca da paz interior. Faz
um apelo à donzela:

“Donzela fecha esta janela


e não me tentes mais”

Por fim, a cantiga 15, “Chula no terreiro”, é um canto saudoso que relembra os
amigos que participavam da “chula” (canto, festa) e que morreram por diversos motivos –
um foi a São Paulo trabalhar e morreu atropelado; o segundo, em uma retirada, foi levado
por um redemoinho; o terceiro morreu esfaqueado pelo marido da moça por quem havia se
apaixonado e o último foi levado pela correnteza ao fazer a travessia de bois. Diante desses
acontecimentos, o poeta cantador considera a vida como combate e a morte, como prêmio,
acreditando que todos os seus companheiros estão no céu. Um de seus companheiros relata
que vida feliz é aquela que é vivida em um lugar celestial, de paz, de amor, com

“U’a função noite e dia qui a vida fosse


Regada cum galinha vin queijo e doce”

Neste sentido, faz-se um paralelo com a Terra Prometida, mencionada nas Sagradas
Escrituras:

“E estou para descer, a fim de livrá-los da mão dos egípcios e para fazê-
los subir daquela terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana
leite e mel (...)”. (Ex 3: 8)
“E naquele dia terá de acontecer que os montes gotejarão vinho doce, e
os próprios morros manarão leite, e os próprios regos de Judá correrão todos
cheios de água. E da casa de Jeová procederá um manancial e terá de irrigar o
vale da torrente das Acácias”. (Jl 3: 18)
Segundo Hilário Franco Júnior, em um texto sobre as utopias medievais109, para a
Idade Média, o Paraíso foi uma das grandes utopias, pois constitui o primeiro mito da
humanidade: “condição perfeita perdida”. Esse mito aparece nos dias de hoje, nas mais
diferentes sociedades110, movidas pelo anseio de um lugar melhor do que a realidade
vivenciada.
Assim, as três cantigas, cada qual à sua maneira, trazem os sonhos do catingueiro a
respeito do Paraíso. Essa visão é o produto das adaptações dos ensinamentos da Bíblia aos
elementos que compõem seu universo na caatinga, e de um substrato ancestral que
alimenta o imaginário nordestino.

3.2. Fantasia leiga para um rio seco

Fantasia leiga para um rio seco, obra gravada em 1981, foi orquestrada pela
Sinfônica da Bahia e regida pelo maestro Lindenbergue Cardoso111 . Apresenta-se na forma
de CD, acompanhada de um livreto-encarte, escrito por Ernani Maurílio, que faz
apresentação da obra, das letras e esclarece o vocabulário. É um poema narrativo
monologado, em primeira pessoa, no tempo presente, no qual Elomar chama a atenção para
a seca de 1890, que não é relatada pela História com a devida importância, segundo suas
concepções:

“Levas e mangotes de conformados retirantes, errantes abandonados por


caminhos e vales desertos como nos quadros do rei Davi, nus morrendo de fome

109
FRANCO JR, Hilário.As utopias medievais. São Paulo: Brasiliense, 1992.
110
Sobre o assunto, consultar os estudos de PATCH, Howard Rollin. “Viajes al Paraíso”. In: El outro mundo
em la literatura medieval. México: Fondo de Cultura Económica, 1956. HOLANDA, Sérgio Buarque de.
Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 2000.
111
Importante músico baiano, nascido em Livramento em 1939. Formado em música pela UFBA, foi
orientado por Ernst Widmer. “Certa vez confessou-se ‘uma pessoa do interior. Minhas raízes estão na roça e
eu não posso negar essas raízes’”. Apesar de não ter ultrapassado os cinqüenta anos, tem mais de 90 obras
elaboradas. Aos 49 anos apenas e dono de uma linguagem musical bem sua, sincera e representativa, faleceu
subitamente em Salvador, a 23 de maio de 1989. In: VASCO, Mariz. História da música no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. p. 401-404.
e sede, e trespaçados (sic) pelo dardo do fogo de muitos sóis (sem referência
ignoramos quantos foram, pois os românticos historiadores daqueles dias, mais
cronista do salão político, não se tinham dado por conta de que o homem é a
primeira grande essência do universo criado por Deus)”. 112

Jorge A. F. Dantas, estudioso das secas que abalaram o Nordeste, após


levantamento de dados, faz menção à seca de 1890, mas somente em situações ocorridas no
Rio Grande Norte. Explica que uma horda de famintos invadiu as cidades em busca de
refúgio e alívio dos flagelos:

“(...) esta capital presenciou a cena mais comovente, desoladora e triste


que se tem visto nos tempos calamitosos que atravessamos. Uma multidão
compacta de três mil famintos reuniu-se em frente ao consistório da igreja matriz,
à praça da Alegria (...), e ali pedia pão para si, suas mulheres e seus filhos”. (A
fome e os seus horrores. Gazeta do Natal, Natal, n°128, p.4, 27 jul.1889). 113

Ernani Maurílio, na introdução do encarte, traz alguns esclarecimentos a respeito do


que ficou conhecido como “A fome do Noventinha” ou a seca do “Noventinha”. Explica
que todo o polígono da seca, com 7 Estados do Nordeste, estava sendo assolado desde
1887, mas os governos estavam preocupados com questões políticas e não se voltaram aos
flagelados:

“Quem pode se preocupar com a seca no sertão, com milhares de


indivíduos incultos, caladões, cabisbaixos e aparentemente resignados, e que
trazem como marca ferrada o sofrimento em seu semblante?” 114

Relata, ainda, a angústia de muitos habitantes, ao analisar o céu e não conseguir


vislumbrar possibilidade alguma de chuva. Foi uma época de grande sofrimento para os
sertanejos, o que deixou marcas profundas em sua memória. Nesse sentido, Elomar fez
essa obra “num esforço imenso de sessenta pessoas e mais, para que pudéssemos prestar
esta homenagem aos Mortos da Fome do Noventinha”.
112
Encarte que acompanha o CD.
113
DANTAS, George A. F. “Os ‘indesejáveis’ na cidade: representações do retirante da seca (Natal, 1890-
1930)”. Revista Scripta Nova. Barcelona: Universidad de Barcelona, n°94, 1 ago de 2001.
114
MAURÍLIO, Ernani. Encarte de Fantasia leiga para um rio seco.
115
Fantasia conta a saga de um retirante que sai de suas terras em busca de vida
melhor, longe da seca, deixando os filhos e a mulher mortos. Esse retirante, em sua jornada,
só encontra infortúnios e acaba morrendo. Mesmo sabendo da possibilidade de insucesso, o
retirante abandona sua terra, pois é o único modo de escapar da seca. A obra é dividida em
5 cantos: “Incelença pra terra que o sol matou”, “Tirana”, “Parcela”, “Contra-dança” e
“Amarração”. A retirada descrita nessa obra sugere a comparação entre o catingueiro e o
povo judeu que passou pela Diáspora, ambos com destino de peregrinação e sofrimento,
mas movidos pela idéia da terra prometida. O sertão funciona como o deserto, um lugar que
permite a ascese, que possibilita a salvação do sertanejo por meio do padecimento, como no
tempo de Jesus, de Abraão e dos monges do deserto, que peregrinavam com o intuito de
estabelecer o contato com Deus, promovendo a purificação. O poeta-retirante faz uso dos
fundamentos judaico-cristãos em seu discurso, aceita a transitoriedade da vida, tem
preocupação com o Juízo Final, busca a Jerusalém Celestial e mostra resignação ante os
desígnios de Deus, além de descrever cenas apocalípticas.

O primeiro canto traz uma abertura, apenas musicada; entretanto, no encarte, há um


texto que situa o leitor quanto aos fatos que se seguirão:

“(...) a seca, a linguagem musical da região, o sofrimento, a desolação e


o abandono são claramente perceptíveis, embora permaneça a crença e a fé do
catingueiro nas disposições do Eterno. A abertura constitui um vasto painel do
Noventinha, um quadro geral da fome, da seca, ao silêncio da desolação, enfim,
uma coisa muito próxima embora utilizando um outro código de percepção, aos
‘retirantes’ de Portinari”. 116

Após essa abertura, inicia-se “Incelença pra terra que o sol matou”, com 57 versos.
Nessa “excelência” ou “inselência”, canto que incita o horror ao pecado e favorece o
arrependimento, entoado à cabeça dos moribundos ou dos mortos117, a terra e o sertanejo

115
Peça instrumental livremente composta, em que uma idéia musical conduz a outra sem muita rigidez de
forma, sugerindo assim a improvisação. HORTA, Luiz Paulo (ed.) Dicionário de Música. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1985. p. 121.
116
Op. cit. MAURÍLIO, s.p.
117
Op. cit. CASCUDO, s.d. p.378.
são os moribundos. Texto fortemente marcado pelo dialeto catingueiro, descreve a
desolação com a qual o sertanejo depara118.

“Qui disolação
E u’a ossada branca
Fulorano o chão
E o passu-Rei, rei do manjá
Deu bença à morte prá avisá
(...)
Mais o sol malvado
Quemô os imbuzêro
Os bode e os carnêro
Toda criação”

O poeta retirante vê que não lhe resta nada – o gado está morto; a terra está seca,
portanto não pode plantar. O imbuzeiro, geralmente resistente às secas, é importante forma
de vegetação para o catingueiro, pois possui raízes profundas, funcionando como uma fonte
de sobrevivência, já está morto, indício de situação calamitosa. Com essa descrição, é
possível fazer um paralelo com o texto bíblico, precisamente com os versículos de Joel:
“O que a lagarta deixou sobrar, o gafanhoto comeu; e o que o gafanhoto
deixou sobrar, a larva do gafanhoto comeu; e o que a larva de gafanhoto deixou
sobrar, a barata comeu”.
“O campo foi assolado, o solo pôs-se de luto; porque o cereal foi
assolado, o vinho novo se secou, o azeite desvaneceu”. (Jl 1: 4, 10)

O sertanejo-narrador atribui esses acontecimentos – fome, seca, morte – à


proximidade do Juízo Final, sedimentando sua crença nas afirmações dos textos bíblicos:
“Ai do dia; porque está próximo o dia de Jeová, e ele virá como assolação da parte do
Todo-Poderoso”. (Jl 1: 15). Dessa forma também procedia o homem medieval quando era
abatido por flagelos, como a fome, a peste, as guerras, as intempéries, interpretando essas
situações como um aviso dos Céus, mostrando que o dia da Vinda estava próximo. O poeta-
retirante trata esse momento de assolação como um “tempo de perdedêra”:

118
Poema que lembra o Severino retirante em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto: “Desde
que estou retirando/ só a morte vejo ativa,/ só a morte deparei/ e às vezes até festiva;/ só morte tem
encontrado/ quem pensava encontrar vida,/ e o pouco que não foi morte/ foi de vida severina/ (...)”. In: MELO
NETO, João Cabral. Morte e vida Severina: e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994. p. 35-36.
“É qui tão as era
Já muito alcançada
A palavra vea
Reza qui havera
De chegá um tempo
Só de perdedêra”

Continua a descrição da penúria que enfrenta – em sua casa há fome, silêncio,


tristeza, seca, morte de toda a criação, inclusive do cachorro. O poeta-sertanejo culpa o
Diabo, que está fazendo a “festa”. Mas não se abate, não comete ato apostático algum,
continua crendo em Deus e em seu Julgamento:

“Mais não há de sê nada


Na função das bêsta
Purriba da festa
Pirigrina a fé”

Sente-se, nesse momento, ecoar o texto bíblico novamente, pois o retirante, mesmo
abatido por flagelos, não perde a fé em Deus, não desiste de lutar por dias melhores ou
lugares melhores:

“Ainda que a própria figueira não floresça e não haja produção das
videiras, o trabalho da oliveira realmente resulte em fracasso e os próprios
socalcos realmente não produzam alimento, o rebanho seja separado do redil e
não haja manada nos currais. Ainda assim, no que se refere a mim, vou rejubilar
com o próprio Jeová, vou jubilar com Deus da minha salvação”. (Hab 3: 17-18).

Findado o 1°Canto, inicia-se “Tirana”. O poeta-narrador só vê uma saída: a retirada


para o Sul da Bahia, mas reconhece sua fragilidade ante o tempo de Deus, ante seus
desígnios, ou seja, busca uma saída temporária para continuar remindo seus pecados na
terra, sabendo que, na verdade, o único caminho para eliminação dos flagelos é a salvação
divina:
“Num vô rimá suzim contra o tempão de Deus
Todos qui foro num voltaro tão nos céus”

Despede-se do corpo da mulher e do filho, marcando um encontro no céu. Tem


ciência de que, retirando-se, está fadado à morte, pois essa é a conseqüência corrente de
quem vai ao “Reino-do-vai não-torna”, mas não há outra forma. Jerusa Pires Ferreira
explica:

“O Reino do Vai não Torna” é um motivo que comparece no conto e na


literatura popular em geral, ligando-se ao ‘Irás y no volverás’ e a própria noção
de Inferno, de onde não se torna. Na tradição oral nordestina, tanto está
comprometido com esta acepção como associado ao sentido que tem no universo
arturiano: um desafio a enfrentar”.119

Jerusa P. Ferreira, estudando a literatura arturiana, mostra que, nesse reino, há o


encontro com o outro mundo, no qual a espiritualidade é fortemente manifestada, mas o
percurso é longo, é preciso viajar e transpor os obstáculos. Esse percurso propicia o ganho
da paz e felicidades eternas, que, para o catingueiro, dá-se com a morte120. Nesse caminhar,
com sentido de peregrinação, conforme discutido na análise do Cancioneiro, o poeta-
narrador está nu, com fome e com os pés queimados em virtude do calor do chão. Está
descalço porque comeu as sandálias, que eram de couro, pelo desespero da fome: “nem
mias precatas se iscaparo das panela”; contudo, mostra-se desapegado de todo e qualquer
bem material, porque sua busca é espiritual. Dessa forma, vê a vida como passagem, já que
a terra é efêmera, ela perece, está moribunda, queimada pelo sol, mas é ela que dá a
identidade ao homem, é nela que cumpre as etapas da vida – nascer, crescer e morrer – por
isso o catingueiro mostra-se entristecido ao ter de abandoná-la, ainda que espere a vida feliz
no céu.
Esse “enraizar-se”, presente nos textos elomarianos, fundamenta-se nos princípios
judaico-cristãos, pois segundo Régine Azria, a temática da terra, do território, do apego ao
solo, presentes no Velho Testamento, são o fulcro da tradição judaica:

119
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória e outros ensaios. São Paulo: Ateliê, 2003. p. 129.
120
Idem, ibidem. p. 131-132.
“O tema da terra tem uma função mobilizadora que expressa sob a forma
da utopia. Esta está no mito fundador e no projeto escatológico judeus. Ela é seu
fermento, o elemento efervescente. Presente desde o pacto da Aliança, é ela que,
efetivamente, permitirá ao mito desdobrar-se ao longo da história. Pela tradição
proveniente da Bíblia, a terra é concebida como compromisso existencial e
simbólico. Por meio do vínculo espiritual periodicamente renovado entre ‘terra
prometida’ e ‘povo eleito’ encontram-se reunidos os elementos necessários ao
desenvolvimento de uma ‘história santa’ e à emergência de uma concepção
particular do sagrado. Por um rigoroso trabalho de elaboração, a Bíblia se esforça
por instaurar a ruptura com o mundo pagão que sacraliza a natureza e liga o
homem à terra por um elo fusional muito forte”. 121

No 3°Canto, “Parcela”122, o retirante já fugiu de sua terra, e está em peregrinação.


Estabelece um monólogo, tirando conclusões da situação a partir de sua experiência. Sabe
que está se retirando para o “Vai-num-torna” e que, em cada “canto”, encontrará a “foice
armada do Anjo da Morte”. Segundo Jerusa, esse canto expressa o leitmotiv da obra e foi
bastante acolhido na tradição oral do Nordeste, manifestando-se

“(...) não apenas no romanceiro nordestino, que se expressa pela


literatura tradicional de folhetos populares, conhecida como literatura de cordel,
mas no próprio espaço da fala cotidiana de certos cantos do sertão, nos ditos e
estórias que ainda se contam, e reutilizado e transformado por criadores como
Elomar ou Suassuana”. 123
“Pode-se então recuperar o tema do ‘Vai não torna’, motivo de tradição
popular como o suporte de uma interpretação alegórica do doloroso fenômeno
das migrações que significam o enfrentamento de todos os perigos, de inimigos
visíveis, de tantos fantasmas deste mundo a combater. A morte aqui fantasiada
não é alegoria de alguma coisa distante. É o dia-a-dia (sic) trágico que se
presencia, na cidade e no campo”. 124

121
AZRIA, Régine. O Judaísmo. Bauru: EDUSC, 2000. p. 25-27. [apud GUERREIRO, 2001, p.82]
122
“Fórmula poética entre os cantadores do Nordeste do Brasil, muito empregada nos grandes desafios que se
tornaram famosos”. Op. cit. CASCUDO, s.d. p. 673. “A parcela serve para fazer penetrar no clima dos maus
presságios (...)”. Cf. FERREIRA, 2003. p.143.
123
Op. cit. FERREIRA, 2003. p. 137.
124
Idem, ibidem., p. 145
O catingueiro lamenta-se, faz uma triste comparação: “Té a chuva torna cum passá
dos anos”, porém continua prosseguindo, quando ouve o barulho no céu e tem a certeza de
que é Jesus que está vindo para julgar os homens:

“Os istei do céu istralô


Já vem vino sem demora
Cãs voiz dos truvão
O Rei da Glora
Rei da Glora
Muitos mili anjo in grande preparação
Nos alto céus
Vem vino sobre essa Terra
Prá julgá os homes maus
Qui ofendêro a Deus
Oco o toco dos Rubin trombetêro
Atraiz dos véus”

Novamente, têm-se versos escatológicos, fazendo referência direta ao texto bíblico,


repetindo uma característica comum dos textos elomarianos:

“E eu vi, e ouvi uma voz de muitos anjos em volta do trono, e das


criaturas viventes, e dos anciãos, e o número deles era miríades e milhares de
milhares”. (Re 5:11)
“E os sete anjos com as sete trombetas prepararam-se para tocá-las”. (Re
8:6)

Em “Contra-dança”, 4° Canto, não houve o canto da “letra”, apenas a harmonia dos


instrumentos musicais transmitem a mensagem. Segundo Elomar, isso ocorreu por motivos
estruturais de marcação da orquestra; no entanto, traz o texto de abertura original no encarte
e uma explicação prévia feita por Ernani Maurílio. O retirante estabelece um discurso com
os três anjos anunciadores de flagelos – a Seca, a Fome e a Morte. Os personagens, após
reflexões, intuem que a seca é uma imposição de Deus, em cumprimento ao determinismo
profético da Vinda de Cristo, após um largo tempo de fome, miséria e dor125. Expressa, de

125
Cf. MAURÍLIO, em encarte que acompanha o CD.
maneira breve e tácita, a perecibilidade do corpo, a fragilidade da vida humana na terra, que
faz com que o catingueiro ponha “os olhos” no céu:

“Num dá pur conta qui u’a vida humana


Aspena dispena no chão dos imbuzêro
Será o Anjo nunciadô da seca
Qui vem pra improibí a rapacuia
De cantá pra alegrá o coração
O ariri a asa branca e a marreca
De assentá nas terra do sertão?
De ferro estão os céus
Lajedo imenso é o chão”

Finalmente, encontra-se o último canto, “Amarração”, mais extenso musicalmente,


apresentando entretanto 13 versos, dos quais apenas quatro aparecem transcritos no CD. Na
gravação fonográfica, ao final, são cantados 8 versos que serão explorados mais adiante.
“Amarração” é um gênero de cantoria bastante raro nos dias atuais: é cantada após o
trabalho, quando o catingueiro repousa de sua labuta. Zumthor, estudando o cantus
gestualis, cita:

“(...) escreve Jean de Grouchy (...) ‘Este canto se destina a ser executado
em presença de velhos, de obreiros e do vulgo, quando eles repousam de seu
trabalho cotidiano, a fim de que a audição das infelicidades experimentadas pelos
outros os ajude a suportar as suas e de que cada um deles retome em seguida,
mais alerta, sua tarefa profissional. Por isso, esse gênero de canto é útil à
conservação do Estado’”.126

Portanto, “Amarração” pode assumir dois sentidos em Fantasia leiga para um rio
seco – o primeiro, de ser um canto que transmite os infortúnios do catingueiro após seu
périplo pelo sertão, com o intuito de “educar” os demais a respeito dos “assuntos”
celestiais, fazendo com que os outros não desistam de alcançar o Reino dos Céus; o
segundo, de ser apenas um canto finalizador na obra, servindo para “amarrar” os fatos
cantados até o momento, fechar o ciclo – o poeta retirante, abatido por flagelos (cantos 1 e

126
Op. cit. ZUMTHOR, 2001. p. 156.
2), sai em retirada (cantos 3 e 4) e termina seus dias recebendo a morte salvadora, porque
ganhará o reino do Céu (canto 5).
Nesse canto final, o retirante já está próximo às terras do Sul, e em um canto
saudoso, lamenta, por meio de recordações, a perda de seu pequeno universo, gerado na
caatinga. Sente-se expatriado, mas consciente do fim da jornada, da aventura de um
retirante herói-peregrino, que partiu em busca do cumprimento de seus objetivos – expiar
os pecados por meio do sofrimento imposto pelos flagelos, com anuência divina; suportar
firmemente, manter-se fiel aos preceitos bíblicos e obter a vitória, que é o reconhecimento
de Deus de que fora um bom cristão, merecedor da salvação eterna.

“Cadê os pé dos imbuzêro


Qui florava todo ano
Nas baxada e nas vereda mana mĩa
Cadê os pé d’imbú meu mano
Adeus pé dos imbuzêro

O vai-num-torna já vamo avistano


É como um céu trancado e sem luar
Na noite imensa vamo margulhano
Sem esperança de um dia voltar

Mas de repente nos olhos ardentes


Vejo na frente um chapadão sem fim
Um céu aberto e uma luz de Deus
Santos e anjos cantando pra mim”

Assim é terminada Fantasia leiga para um rio seco, com o retirante chegando,
desolado, às terras estrangeiras, das quais sabe que não haverá retorno; contudo,
surpreendentemente, percebe que recebera a dádiva de habitar a morada celestial, tão
esperada após longo tempo de sofrimentos. Tem-se nesses versos a concepção do sertanejo
tem a respeito do Paraíso: um chapadão, elemento prosaico para os catingueiros, um lugar
com a luz divina e os anjos cantando, dados que são encontrados no discurso bíblico.
Após a análise do Cancioneiro elomariano e de Fantasia leiga para um rio seco, é
possível concluir que existe uma “voz” ancestral, transmitida pela memória, pelo canto, que
diz aquilo que está latente no ser humano quanto à espiritualidade, que aproxima, por
exemplo, os peregrinos de antanho, principalmente os medievais, e o catingueiro de
Elomar. Em suas obras, acontece a atualização de um antes, em um movimento de releitura,
de ação e de transformação de uma matriz, de uma fonte comum – noção de travessia,
espera de um futuro, busca de algo perdido – alimentada, sobretudo, pelas Sagradas
Escrituras, que é relida, continuada à maneira nordestina, singularizando relações sócio-
histórico-culturais de um sertão vivo que se move, que é característico de uma região, mas
que carrega elementos universais.
As descrições do Paraíso Celestial, as relações entre Céu e Terra, o caráter
obsedante de uma busca por meio de uma vida transitória, as provações, os sinais divinos, a
promessa de salvação, as histórias bíblicas são elementos que, de forma tácita ou não,
povoam o imaginário do sertanejo e povoaram também o do homem medieval, entendendo
imaginário segundo as concepções de Le Goff e Hilário Franco Júnior, que o definem como
um conjunto ou sistema de decodificadores e representantes culturais, historicamente
variáveis, de um complexo de emoções e pensamentos, ou seja, de um inconsciente
coletivo127. Ainda conforme Franco Júnior:

“(...) os imaginários, formas próprias de os homens verem o mundo e a si


mesmos, criam elos, geram e mantêm grupos, despertam consciência social. Ao
expressar valores coletivos, os imaginários dão ao homem a sensação de
pertencer não apenas ao seu momento, mas de fazer parte de uma história”.128
“(...) os sentimentos de qualquer imaginário não são específicos dele, e
sim expressões de uma sensibilidade que o ultrapassa, que é anterior a ele, mas
manifestada de acordo com a escala de valores vigente. Necessariamente, todo
discurso, sonoro, visual ou verbal, é uma certa leitura histórica do social. São os
imaginários que dão sentido ao existir humano”.129

Portanto, a partir da análise de Fantasia leiga para um rio seco, é possível pontuar
alguns elementos que constituem o imaginário espiritual dos personagens de Elomar, o qual
pode ser visto como um “espelho” do imaginário do sertanejo nordestino, já que as cantigas
desse artista, funcionam como uma leitura histórica da sociedade onde são veiculadas.

127
FRANCO JÚNIOR, Hilário. “O fogo de Prometeu e o escudo de Perseu – Reflexões sobre a
mentalidade e o imaginário”. Signum, 2003. p.73-116.
128
Idem, ibidem, p.106-107.
129
Idem, ibidem, p.113-114.
4. Capítulo III – Caminhos da cultura brasileira

4.1.O Brasil no Auto da Catingueira

Auto da Catingueira, ópera130 em análise neste capítulo, foi concluída em 1969 e


gravada em 1984, mas, desde 64, Elomar trabalha em sua construção. Veio a público em
forma de vinil, acompanhado de um livro. Posteriormente, foi comercializada a versão em
CD131.
Esse Auto foi escolhido como ponto central dessa Dissertação, porque encerra em si
praticamente todos os elementos que compõem a poética elomariana (teor religioso,
aspectos lingüísticos peculiares, práticas culturais sertanejas etc.), inseridos no contexto
brasileiro, exemplificando e legitimando características sócio-lingüístico-histórico-culturais
de há muito apontadas por inúmeros estudiosos de diversas áreas do conhecimento, na
tentativa de definir a identidade ou identidades do Brasil por meio de produções artísticas.
O autor define essa produção como uma:

130
Pode ser considerada uma obra com traços da ópera barroca, que era chamada de “ópera séria, de assunto
mitológico, cavalheiresco (sic) e histórico, além de temas bíblicos... O que importa é que a trama vá se
complicando e dê lugar a cenas de grande efeito, como naufrágios, tempestades, incêndios, aparições de
divindades, no mar, no céu, grutas mágicas, jardins encantados, cidades fantásticas. Sabemos que o barroco se
caracteriza por seu gosto pelo pitoresco, pela mistura e pela complicação”. Em sua estrutura, há, como no
Auto de Elomar, “uma abertura, sem função dramática (...) o recitativo, em que predomina a palavra, pois nele
se desenvolve ou se explica a ação. O núcleo é a ária”. In: FRAGA, Fernando; MATAMORO, Blas. A ópera.
Rio de Janeiro: Angra, 1991. p. 7-16.
131
Elomar dedica o Auto a Marcus Pereira, “brabo e valente na defesa de nosso Patrimônio Musical”; a Ismar
Silveira, “grande Menestrel”; a seus pais e irmãos. Traz introdução e comentário crítico dos cantos com
autoria de Ernani Maurílio e Adelina Renault, além de ilustrações de Juarez Paraíso e capa de Juraci Dórea.
Apesar de apresentar alguns problemas de impressão e também de revisão textual, é uma bela produção,
impressa em 1984 por BIGRAF, com patrocínio do Governo Estadual da Bahia, Secretaria de Fazenda,
Fundação Cultural do Estado da Bahia e Odebrecht Harrison Engenharia de Minas Ltda, com tiragem de
apenas 3000 exemplares.
“ópera sertânica com estrutura de um auto da Idade Média. Não tanto
pelo formato, bem mais pelo assunto: os autos medievais tratavam dos santos,
suas vidas, seus martírios. No Auto da Catingueira não há um santo, mas a
personagem central chama-se Dassanta”.132

Elomar escolhe o auto como forma de expressão, porque a religiosidade, por meio
das diversas formas de manifestação, é recorrente, senão o fulcro de suas produções.
Segundo Massaud Moisés, o auto:

“Vinculado aos mistérios e moralidades, e talvez deles proveniente, (...)


designa toda peça breve, de tema religioso ou profano, em circulação durante a
Idade Média: equivaleria a um ato que integrasse espetáculo maior; daí o
apelativo que recebeu: auto. (...) Com o tempo, mesclando-se de ingredientes
culturais indígenas e africanos, acabou por tornar-se manifestação popular e
folclórica, em que o enredo propriamente teatral, além de reduzido ao elementar,
vinha acompanhado de danças e cantos”. 133

Segundo Lorenzo Mammi, foi na época de D. José I que a ópera foi transplantada
para o Brasil colônia; com teor religioso, exuberante em alegorias e de coloração
claramente barroca, é ligada ao teatro jesuíta e aos mistérios processionais. No século XIX,
torna-se uma forma musical litúrgica, mas leiga, com elementos sociais convencionais,
aliados a arcaicos, que interessam a diferentes camadas sociais – da elite à popular. Assim,
não pode ser considerada mera transposição européia, pois fórmulas nacionais já haviam
sido incrustadas nessa prática músico-teatral, o que, para Mammi, torna o caso brasileiro
singular:

“(...) a música para a cena lírica brasileira, pela mistura de elementos


modernos (europeus) e arcaico (autóctones), longe de ser um fenômeno
periférico, torna-se, a meu ver, exemplar”.

132
DIAS, Mauro. “Elomar capta a essência do Brasil”. O Estado de São Paulo, 21 de junho de 1997.
133
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1995. p. 49.
“(...) uma mistura de música de salão, operística, devocional e folclórica
forma o caldo de onde surgirá, no fim do século, a música popular brasileira”.134

O auto tornou-se um gênero praticado por outros artistas brasileiros, uma forma de
teatro considerado como um resquício dos chamados autos sacramentais. Verifica-se essa
prática em Ariano Suassuna. Em boa parte de suas obras, como exemplo, O rico avarento,
A farsa da boa preguiça, Auto da Compadecida e O castigo da soberba, encontram-se
lições de moralidade e cenas do Juízo Final como conclusão. Ligia Vassalo, pesquisadora
das relações entre cultura medieval e o teatro de Suassuna, esclarece:

“Cronologicamente, a última manifestação de teatro religioso é o auto


sacramental. (...) Trata-se de uma representação profano-litúrgica em uma jornada
ou ato, encenada por ocasião de Corpus Christi e referente ao sacramento da
Eucaristia (...). Ou seja, o auto sacramental atualiza elementos dramáticos já
existentes na procissão de Corpus Christi, saídos da tradição teatral da Idade
Média. (...) Outro tema próprio do auto sacramental é a fugacidade da vida (...)”.
135

Nesse sentido, Elomar recebe essa “herança”, de forma (música e teatro) e de


conteúdo (religioso e laico) para praticar sua ópera, expressando o universo do catingueiro.
O texto introdutório de o Auto da Catingueira é divido em 2 partes: I – “O homem e
a terra” e II - “O auto como narrativa histórica ou o auto como história narrada”. Na
primeira parte, os autores trazem breves informações a respeito de Elomar, de maneira
poética, denominando-o um “cronista de um tempo e de uma cultura”136. Em seguida,
descrevem como foi o trabalho de Elomar para compor essa obra – “Fruto de verdadeiro
‘garimpo’, que esse catingueiro realizou em grande parte de sua vida, entre os deserdados e
humildes de sua aldeia sertaneja”. Explicam ainda as fronteiras geográficas e culturais

134
MAMMI, Lorenzo. “Teatro em música no Brasil monárquico”. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris
(Org.). Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de
São Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial, 2001. p. 39 e 52.
135
VASSALO. Ligia. O sertão medieval – origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves Editora, 1993. p.113. Ver também informações de práticas no Brasil desde o século
XIII em CASCUDO, L da C. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p. 115-116.
136
FIGUEIREDO, Ernani M. da R; RENAULT, Clementine. Auto da catingueira – Elomar Figueira Mello.
Não consta número de página, mas tal citação encontra-se no livro referido.
apresentadas no Auto - Sertão da Ressaca, sudoeste da Bahia, a partir do Mato-Cipó, mas
advertem que não é possível limitá-las, pois essas fronteiras se expandem, por ser o
Nordeste brasileiro um “grande mosaico cultural e humano”. Trazem também elementos
importantes a respeito da linguagem empregada nesses cantos, atribuindo à criação
lingüística de Elomar o caráter lúdico:

“Na caatinga devolve-se à palavra a dignidade perdida nos grandes


centros urbanos; uma idéia é pensada, pesada, construída e só então transmitida.
É fácil sentir que atrás da palavra há uma idéia; atrás da idéia um sentimento;
atrás do sentimento, uma construção mística e mágica. Aqui, a palavra reencontra
sua verdadeira vocação: a de dizer”.137

Chamam atenção ao fato de a construção ser barroca, mas com elementos


medievais, de raízes ibéricas, com temas sertanejos, com histórias ambientadas em uma
terra inóspita:

“Tão terra que às vezes torna-se difícil falar e viver nela; uma terra onde
as pessoas são simples, se encontrando em torno de uma ‘função’ qualquer,
discutindo o tempo, ferrando marrãs, com as mãos comprometidas com o fazer do
leite o alimento, do barro o tijolo, da voz um testemunho, dos passos uma
caminhada, da vida uma forma de espera, da morte uma ressurreição”.138

São histórias ouvidas nas feiras, transmitidas pelos cantadores, “historiadores


depositários dessa cultura ainda não codificada e que, por isso mesmo, é tão forte, tão
integral, porque construída com memória e imaginação”139.
Na segunda parte, os autores trazem um breve resumo do que será cantado no Auto,
ressaltando que nada fora inventado. Nas palavras de Elomar:

“Eu aperto minha memória, me lembro do acontecido, mas ao expô-lo eu


faço com uma carga de emoção que está no fundo de meu eu e da minha

137
Idem, ibidem, primeira página.
138
Idem, ibidem, segunda página.
139
Idem, ibidem, segunda página
memória, do tempo em que vivi e que ouvi, e até mesmo do tempo em que não
vivi140”.

O livro também traz a redação dos cantos, esclarecimento de alguns vocábulos,


biografia dos autores e ainda as partituras de “Tirana da pastora” e “Bespa”.
O Auto da catingueira é composto por 790 versos, divididos em cinco cantos: “Da
Catingueira”, “Dos labutos”, “Das visage e das latumia”, “Do pidido” e “Das violas da
Morte”. Canta a história de Dassanta, a catingueira, do nascimento à morte. Moça de
exuberante beleza, cuidava de arrebanhar as cabras e de ajudar na roça. Com a seca, ela e a
família retiram-se do sertão com destino ao Sete Istrêlo, em véspera de São João, quando
conhece um tropeiro e apaixona-se por ele. O clímax e o desfecho da narrativa acontecem
no canto quinto, quando um cantador nordestino convida o tropeiro, Chico das Chagas,
marido de Dassanta, para um desafio. O duelo acirra-se, a briga acontece e os três acabam
morrendo.
Apresenta um prólogo intitulado “Bespa” – corruptela da palavra véspera141. Nele,
o narrador esclarece que a história de Dassanta, protagonista e tema central do auto, foi
retirada da memória, de um tempo longínquo, e transmitida às gerações por meio dos
cantadores. O violeiro-narrador pede bênção a Deus e licença aos donos da casa para cantar
a história. Essa atitude faz parte da estrutura de praticamente todo início de cantoria, pois o
violeiro acredita que não pode desenvolver seu canto sem a inspiração divina:

“Sinhores dono da casa


o cantadô pede licença
prá puchá a viola rasa
aqui na vossa presença
(...)
iantes porém eu peço
a Nosso Sinhor a bênção
Pois sem Ele a Idea é pensa pru cantá
e pru tocá é mensa a mão” ... 142

140
Idem, ibidem, terceira página.
141
Aspectos referentes à construção lingüística em Elomar serão discutidos em páginas seguintes.
142
CD Auto da Catingueira – (Faixa 1). Dados completos estão na Discografia. As próximas citações apenas
trarão o número da faixa entre parênteses.
O cantador mostra a preocupação de cumprir sua missão – perpetuar as histórias por
meio do canto, característica muito comum em sociedades de cultura oral, que têm a
tradição de contar “boca a boca”. Esse cantador funciona como instrumento do pensamento
coletivo e da memória popular:

“Sinhô me seja valido


inquanto eu tivé cantano
prá qui no tempo currido
cumprido tenha a missão...” (Faixa 1)

Mark Curran, pesquisador americano que se dedicou ao estudo da literatura


brasileira, principalmente do cordel, em um trabalho intitulado “A sátira e a crítica social na
Literatura de cordel”, ressalta a importância dos folhetos de comentário social, mostrando a
capacidade de o poeta narrar acontecimentos históricos, o que o torna um elemento
primordial para a sociedade, pois, segundo ele, está ligado ao povo, compartilha os
problemas, a tradição cultural e sua condição social. Portanto “oferecem ao historiador, ao
sociólogo, e ao antropólogo cultural indicações verdadeiras do pensamento do povo”143. O
pesquisador afirma com exatidão que esse artista sente a obrigação de buscar seus temas
nos problemas sociais. Assim, ao poeta são delegadas duas funções: a de artista – entreter o
povo; e a de comentarista social – informar sobre os acontecimentos passados e atuais.
Segundo Manuel Diegues Junior144, a tradição de contar histórias de “pai para filho”
é corrente no Brasil. Tal fato é explicado por condições culturais e sociais peculiares a
regiões como o Nordeste brasileiro, com organização patriarcal, distantes dos meios de
comunicação, isoladas dos grandes centros urbanos, com dificuldades econômicas e
analfabetismo:
“A própria vida familiar no Nordeste contribuiu para o “serão”, a
reunião noturna em família. Em torno de um candeeiro, depois do jantar, na sala

143
CURRAN, Mark J. “A sátira e a crítica social na Literatura de cordel”, In: DIÉGUES JÚNIOR, Manuel et
al. Literatura popular em verso: estudos. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. p.311. Esse texto pode ser bastante valioso a
pesquisadores que se detêm no tema da cultura popular, pois suscita novos olhares, nada ingênuos, sobre a
Literatura de Cordel, chamando atenção de estudiosos de vários campos para uma rica fonte. Também
demonstra o mecanismo artístico utilizado pelos poetas populares que constituem a chamada literatura de
denúncia, por meio da qual revelam a ideologia do povo.
144
DIÉGUES JR, Manuel. “Ciclos temáticos na Literatura de cordel”. In: DIÉGUES JR, Manuel et al.
Literatura popular em versos – Estudos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda, São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, Rio de Janeiro: Fundação da Casa de Rui Barbosa, 1986. p. 40.
de visitas – fosse um engenho, uma fazenda, um sítio, também não raro uma casa
na cidade – reuniam-se os membros da família. A falta da eletricidade fazia o
candeeiro o ponto de convergência dos familiares: pais, filhos, irmãos, primos
etc. (...) E assim a história se divulgava.”145

Nesse prólogo, também aparece a explicação do narrador quanto ao fato de


conhecer a história de Dassanta justamente por “herança” familiar:

“Dindinha conto cuan meu avô morreu


E hoje eu canto para os filhos meus
E eles amanhã para os filhinhos seus”... (faixa 1)

Esse canto introdutório, narrado em 1ª pessoa, tem a função de trazer ao leitor-


ouvinte elementos que o situem no tempo e no espaço, mostrando essas indicações e os
motivos a que veio o cantador:

“Foi lá nas bandas do Brejo


(...)
num tempo qui num vivi
(...)
viveu Dassanta a Fulô”

Em “Da Catingueira”146, por meio de 91 versos, o narrador, agora fazendo uso da 3ª


pessoa, apresenta a personagem principal – Dassanta. Conta seu nascimento, suas
características e sua sina. Ela nasceu no sertão, em noite de lua minguante, com relâmpago
e chuva. Os pais saíram com ela em busca do batismo e do registro. Essa cena, de teor
sombrio, já que os versos denotando “perigo” são os únicos repetidos (por três vezes),
talvez funcione como antecipadora de fatos sobrenaturais, que aparecerão ao longo do auto:

“Nũa quadra iscura de janêro


Nũa noite de chuva e de truvão”

145
Idem, ibidem, p.41.
146
Esse canto, na íntegra, encontra-se na Antologia.
A “quadra iscura” construída pelo violeiro-cantador tem a função de indicar o
tempo, o tempo marcado por elementos da Natureza, no caso a Lua. O fato de Dassanta ter
nascido sob a lua minguante, ou seja, “sem” lua no céu, reforça o caráter sombrio147.
O próprio nome atribuído à personagem revela seu caráter sagrado. O nome
Dassanta pode ser entendido de duas formas: da Santa (preposição + artigo + substantivo) –
ser de uma Santa; ou dá Santa (verbo + Santa) – pode vir a ser uma Santa. Importante
lembrar que:

“Santo é aquele que se dá a Deus “heroicamente”. E esta oferenda, esta


apaixonada entrega de si mesmo a Ele que é a própria Santidade, independe de
circunstâncias tais como status, educação, temperamento, habilidades naturais ou
falta delas. (...) A santidade – ou qualquer outro grau da verdadeira vida cristã –
não é alcançada por ninguém sem auxílio divino. (...) Homens e mulheres se
tornam santos por “viverem em Cristo”, em qualquer das condições de vida a que
são chamados. Os santos são aqueles que aceitam e cooperam com a graça de
modo mais entusiástico e menos egoísta do que os outros e em grau superlativo,
tornando-se semelhantes a Cristo através do auxílio que Cristo dá a eles.”148

Ela e a família chegam à Vila do Poção para que se possa realizar o batismo e o
registro. A criança está molhada pela chuva, estão todos com fome e com pouco dinheiro,
que será dado ao padre. Dassanta não será registrada por falta de recursos financeiros, mas
o batismo deve ser, a todo custo, realizado, pois é símbolo de purificação.
Há um “salto” no tempo, pois são oferecidos dados de Dassanta já adulta. Do verso
36 ao 48, há sua descrição física – já é “moça feita”, de beleza exuberante. São versos que
revelam elementos de sensualidade:

“Qui Dassanta era bunita que mitia medo

147
“As fases da lua mostram o astro da noite submetido à lei da morte e devir cíclicos. (...) Nas representações
escatológicas, o obscurecimento da lua é símbolo do juízo. (...) Na teologia primitiva cristã, o sol e a lua
tornam-se portadores e imagens de grandes mistérios”. LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos
bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993. p. 141. Ainda a respeito da lua, encontra-se: “A Lua é também o primeiro
morto. Durante três noites, em cada mês lunar, ela está como morta, ela desapareceu... (...) A vida noturna, o
sonho, o inconsciente, a lua são todos termos que têm parentesco com o domínio misterioso do duplo”.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 561-565.
148
ATTWATER, Donald. Dicionário dos Santos. São Paulo: Círculo do Livro, 1983. p.10.
Tinha nos ólho a febre perdedêra
Qui matava mais qui cobra de lajedo
Os pé piqueno e os cabelo cumprido
Imbaixo do vistido um bando de segredo” (Faixa 2)

Há uma característica bastante relevante apresentada nos versos acima: ter nos olhos
a “febre perdedêra” – um olhar sedutor, profundo e faceiro, que arrebata o coração dos
homens, traço que acaba provocando situações de ciúmes e desavenças, por isso
“perdedêra”. Essa beleza será sua fonte de perdição, já que está associada à morte, a duelos,
aos “trincá dos ferro”. Pode-se considerar Dassanta como uma variante do arquétipo da
mulher fatal149: bela, sedutora, fascinante, que intriga as pessoas, provocando medo, pois
ao envolver-se com ela, corre-se o risco de cair em danação. Tem-se, nesse auto, o vínculo
entre amor e morte, bastante recorrente nos textos “literários” da Idade Média, como, por
exemplo, em Tristão e Isolda.

“Mais o pió qui era qui sua buniteza


virô u’a besta fera naquelas redondeza
in todas brincadêra adonde ela chegava
as mulé dançadêra assombrada ficava
já pois dela na fêra os cantadô dizia
qui a dô e as aligria na sombra dela andava
e adonde ela tivesse a vea da foice istava”... (Faixa 2)

A expressão “vea da foice”, registrada nos versos acima, demonstra que a morte foi
personificada pelo cantador por meio de uma imagem muito recorrente na Idade Média:
uma caveira, com seus tributos atemorizantes, carregando a foice que ceifa as vidas,
funcionando como uma “intermediária entre Deus e o diabo, entre bem e mal (...)”.150
A associação entre beleza e desgraça remete a alguns valores do medievo, como o
medo de ser belo, pois a beleza, expressa no corpo (fonte de impulsos irrefreáveis) incitava
149
“São inúmeros os exemplos de uma feminilidade temível e noturna na maior parte das mitologias. É o caso
de Ártemis e de Circe, na mitologia greco-romana: elas personificam uma fatalidade inquietante e exercem o
poder maléfico sobre o homem. (...) Além do físico, ela (a mulher fatal, no caso referindo-se a Carmem)
reunia todos os símbolos nictomorfos segundo uma perspectiva diurna: lindos cabelos negros, (...) olhar forte,
olhos de lobo penetrantes, pele acobreada como a de mouro. (...) Sua beleza e graça ao mesmo tempo
fascinam e intrigam, excluindo toda pureza”. BRUNEL, Pierre. Dicionários de mitos literários. Rio de
Janeiro: José Olympio. p.146.
150
WILLIAMS, G.S. “A morte como texto e signo na literatura da Idade Média”. In: BRAET, Herman;
VERBEKE, Werner (eds.). A morte na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1996. p. 134.
a ocorrência de pecados, como a concupiscência da carne e conseqüente perda da pureza,
expressando um espírito enfraquecido e dominado pelas paixões, o que inviabilizava a
reconquista do Paraíso perdido. Podem-se observar essas idéias em A demanda do Santo
Graal, por exemplo, precisamente com o personagem Galaaz, que, por ser extremamente
belo, é submetido à provação de não cair na tentação e infringir o princípio da castidade ao
ser assediado pela filha do rei Brutos. Gerhild Scholz Williams, estudando a morte como
texto e signo na Idade Média, aponta que “a luta pelo poder entre grupos da nobreza, a
poesia e o canto, o culto à mulher, o ‘amor cortês’ são apresentados como vazios e
condenados como perigosos para a alma”151. Assim, o fato de a Catingueira ser bela,
provocará galanteios e rivalidades, expressos primeiro pelos cantos, por meio do gênero
“desafio”, e depois com armas, que resultará na morte de Chico das Chagas e um Cantador
do Nordeste, que se deixaram levar pela luxúria, um dos pecados capitais, impossibilitando
que Dassanta receba a salvação, por ter sido, justamente, o motivo da danação dos
pretendentes152. Isso pode ser percebido pelo fato de ela ter-se transformado em pássaro ao
morrer:

“Conta os antigo quela dispois da morte viro


Passo das asa marela jaçanã pomba-fulô
Fulô rôxa do Panela só lá tem essa fulô
Dispois da morte viro passo japiassoca assú” (Faixa 2)

153
A Catingueira é transformada em uma jaçanã . Segundo Darcília Simões, a
jaçanã, “por sair somente à noite e viver em pântanos, caminhando sobre as ninféias, essa
ave é identificada pelo povo com as almas penadas, que cumprem um castigo na terra, até o

151
Op. cit. WILLIAMS, p. 133-134.
152
Segundo os ensinamentos cristãos, “temos responsabilidade nos pecados cometidos por outros, quando
neles cooperamos: - participando neles direta e voluntariamente; mandando, aconselhando, louvando ou
aprovando esses pecados; não os revelando ou não os impedindo, quando a isso somos obrigados; protegendo
os que fazem o mal. Assim, o pecado torna os homens cúmplices uns dos outros, faz reinar entre eles a
concupiscência, a violência e a injustiça”. Op. cit. Catecismo. p. 500.
153
Jaçanã = Bras. Zool. Ave caradriiforme, jacanídea (Jacana spinosa jacana), espalhada por todo o Brasil,
de dorso vermelho-castanho vivo, uropígio e cauda mais escuros, rêmiges da mão verde-claras, com pontas
pretas, e cabeça, nuca e parte inferior pretas; nhaçanã, nhançanã, nhanjaçanã, piaçoca, piaçó, japiaçoca,
japiaçó, cafezinho, marrequinha, ferrão. [Aurélio, s.u].
juízo final”154. Ernani Maurílio, estudioso que apresenta a obra em questão, afirma que,
pelo fato da transformação em pássaro,

“... percebe-se a intenção do poeta: pessoas bonitas, ‘marcadas’ pelo


sensitivo, morrem apenas fisicamente, transformando-se rapidamente em seres
igualmente bonitos que podem perpetuar em outro corpo, em outra vida o mesmo
155
tipo de beleza”.

Semelhante a personagens da mitologia greco-romana, como Jacinto, jovem de


notável beleza, que depois de morrer precocemente foi transformado por Apolo em flor, na
flor-de-Jacinto, essa imagem da transformação em pássaro, uma jaçanã, pomba-flor, é
muito significativa para explicar que há em Dassanta elementos sagrados, como pureza e
outras virtudes, não só a visão de mulher faceira, possuidora da “febre perdedêra”. Os
pássaros representam a ligação entre o céu e a terra, sendo considerados animais sagrados.
Segundo Chevalier,

“(...) os Imortais adotam a forma de aves para significar a leveza, a


libertação do peso terrestre. (...) Os pássaros noturnos são freqüentemente
associados às almas dos mortos que vêm gemer durante a noite perto de sua
antiga morada”.
“Ao longo de toda a simbologia judaico-cristã, a pomba – que, com o
Novo testamento, acabará por representar o Espírito Santo – é,
fundamentalmente, um símbolo de pureza, de simplicidade (...) é lícito dizer que
ela representava a sublimação do instinto e, especificamente, do eros. Essas
acepções, (...), fazem com que a pomba represente muitas vezes aquilo que o
homem tem em si mesmo de imorredouro, quer dizer, o princípio vital, a
alma.”156

No próximo canto, em “Dos labutos”, o narrador apresenta a prática de atos de


verdadeira resignação aos “bons” princípios – Dassanta acorda bem cedo, abre a porteira do
chiqueiro, faz suas orações matinais, prepara o café, arruma seus apetrechos de costura e
vai pastorear o gado miúdo o dia todo, além de ajudar na roça.
154
SIMÕES, Darcília (Org). Língua e estilo de Elomar. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006. p.106.
155
Op. cit, FIGUEIREDO, s.p.
156
Op. cit. CHEVALIER, p.687, 689 e 728.
Com a seca, Dassanta tem sua rotina modificada: depois de guardar o rebanho e
juntar as ferramentas necessárias (cocho, malha e prancha), junto à família, retira-se do
sertão com destino ao Sete Istrêlo, local onde se fabrica farinha, para procurar trabalho.
Chega em véspera de São João. Todos se juntam no terreiro, em torno de uma fogueira,
para comemorar a festa de São João, quando Dassanta avista um tropeiro bonito, bem
vestido e atraente. Os versos seguintes descrevem a entrada apoteótica do tropeiro,
expressando a intensa paixão sentida pela catingueira:

“Já a foguêra acesa


Todo mundo no terrêro
Festejava São Juão
Foi cuan intrô o tropêro
Feito um prinspe feiticêro
Foi aquele quilarão
O danado foi riscano
No terreno feito um raí
Dassanta junto dos pai
Prele foi se paxonano
Pois o turuna pachola
Qui tinha pauta cum Cão” (Faixa 3)

O dia em que ocorreu esse encontro é significativo – 23 de junho, véspera de São


João. Trata-se de um dia especial e comemorado em diversas partes do mundo. Há alegria,
dança, bebida, comida, fogueiras e cantoria, além de numerosos prognósticos para o futuro,
conhecidos no Nordeste como “simpatias” ou adivinhações. Grande número delas visa ao
conhecimento do futuro marido ou da data em que ocorrerá o casamento.157
Dassanta e o tropeiro ficaram juntos, mas o narrador não sabe dizer se houve
casamento.
O 3º canto, “Das visage e das latumia”, traz um aspecto relevante para esse auto – é
o momento “cantado” em 1ª pessoa, ou seja, por Dassanta – tema central da obra e também
momento em que a personagem entra em contato com o mundo sobrenatural, tem-se o
depoimento por sua “voz”. É dividido em “Tirana da Pastora” e “Recitativo”. Esta parte do

157
“Santo católico, primo de Jesus Cristo, nascido a 24 de junho (...) São João é festejado com as alegrias
transbordantes de um deus amável e dionisíaco, com farta alimentação, música, danças, bebidas e uma
marcada tendência sexual nas comemorações populares, adivinhações para casamento (...) Portugal possuiu
no espírito de sua população todas as superstições, adivinhações, crendices e agouros amalgamados na noite
de 23 de junho (...)” Op. cit. CASCUDO, s.d. p. 477-478.
auto é extremamente hermética, de difícil compreensão, não só pela estrutura sintática,
muito semelhante às construções barrocas – há, por exemplo, inversões violentas – mas,
sobretudo, pelo entrave lingüístico: o poeta utiliza neologismos e o dialeto catingueiro,
sustentado muitas vezes pela fonética, adotando uma grafia particular:

“cás boca d’istambo imbruiada


barrão de fogo alevantado
Pé-sêco e os anjo na rêde
Armada na incrizilhada
Sete anjin morto de sêde
Horas morta madrugada
Tatú-peba cumeu as mágua
Qui choro na mamona do oro
Pelos banco da meágua
As alma de Chico Bizôro”

Percebem-se no texto acima, a título de exemplificação, as palavras “istambo”


(estômago), e “imbruiada” (embrulhada), claramente grafadas de acordo com a fonética
regional. Estas e outras construções aparecem ao longo das produções de Elomar, inclusive
no próprio auto em questão; no entanto, é nesse 3º canto que praticamente todos os
processos lingüísticos praticados pelo poeta aparecem juntos.
“Tirana da Pastora” é um canto de lamento, um desabafo da protagonista. Não
ocorrem as aparições que habitam o mundo sobrenatural com o qual Dassanta entrará em
contato, mas é o momento de preparo para que elas se apresentem. A catingueira descreve
suas principais ações diárias e o lugar onde faz o pastoreio das cabras, o cerrado, inóspito,
solitário, um lugar de iniciação, pois há provações a serem cumpridas:

“sina cigana
vida de onça
vida tirana
é essa só de andança
e de vivê prissiguino
a criação mĩunça iê...
(...)
vida mais danada inda to pra vê
pelas parambêra desses socobó
vai mia vida intêra já murcha a fulo
Cuma se eu tivesse penas a pagá
pra sê prisionêra nesse caritó
ê vida tirana essa de pastora”158

A palavra “tirana” pode, nessa parte do auto, assumir dois significados – o


primeiro, o de uma composição musical:

“... son canciones para solistas, que pueden ser acentuadas por un
zapateado. Se originaron en las Azores, y en el Brasil se cantan y bailan e
festividades rurales, y también – para animarse en el trabajo – por lavanderas y
piragüeros”.159

O segundo, de sofrimento – vida tirana, vida sofrida. Este lugar de sofrimento, de


solidão, como o deserto para o homem de antanho, é feito de “realidades espirituais e
materiais misturadas entre si, de um vaivém constante entre o geográfico e o simbólico
(...)”160, portanto é nele que Dassanta vê os entes maravilhosos. As duas acepções
combinam-se, pois a catingueira canta seus versos no momento em que está trabalhando e a
temática deles é justamente a explanação de sua vida “difícil”.
É no “Recitativo” que o leitor-ouvinte presencia a maior parte e diversidade de
elementos que compõem o maravilhoso, termo derivado de mirabilia (raiz mir, olhar) –
“coisas que o homem pode admirar com os olhos, coisas perante as quais se arregalam os
olhos”161, o que pressupõe uma metáfora visiva. Esse maravilhoso, para os homens da
Idade Média, compunha um universo e era caracterizado “pela raridade e pelo espanto que
suscita, em geral admirativo. Ele afeta o olhar e implica qualquer coisa de visual”.162 É
produzido por “forças ou por seres sobrenaturais, que são, precisamente, inumeráveis”163,
expressos por meio da aparição – noção suscitada justamente pelo maravilhoso – ou da
“visage”, ou seja, visagem – “assombração, fantasma, alma de outro mundo, aparição

158
Todas as próximas citações referentes ao Auto da Cantigueira pertencem ao terceiro canto, “Das visage e
das latumia”, faixa 3.
159
WECKMANN, Luis. La herencia medieval del Brasil.México: Fondo de Cultura Económica, 1993. p.
226.
160
LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1983. p.43.
161
(Idem, ibidem, p. 18)
162
LE GOFF, “Maravilhoso”. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente
medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, v.2, p.107.
163
Op. cit, LE GOFF, 1983, p.22.
sobrenatural”.164 Portanto, nesse canto, tem-se a expressão do maravilhoso catingueiro,
demonstrado por Dassanta ao longo dos versos.
Há, nessa parte, dois topoi presentes em textos medievais: as maravilhas são
reveladas em local ermo, quando a pessoa está sozinha, acontecem à noite, mais
precisamente à meia-noite, nas chamadas “horas abertas”, que também incluem o meio-dia,
as Trindades, o anoitecer e o amanhecer. Segundo Cascudo, são horas das visões, da
manifestação dos entes sobrenaturais, “hora estranha, parada, com arrepio sinistro nas
folhas.”165 Dassanta as chama de horas mortas, de “hora inselente” e por meio da
enumeração, expõe diversos entes, criando um clima de suspense:

“toda mêa noite na hora inselente


do tempo e do vento e toda criação
já vi ũa noite apois ela num mente
pôro os ramo as fôia no capão
cigarra grilo cururu rodão
cobra gibóia cascavé serepente
lambú treis-pote mãe-da-lũa cancão
tatú mucüim toda alma vivente
té a cachuêra ispindurô pendente
prêsa na pedra sem caí no vão
tudo in memora da hora inselente
qui hai toda noite derna a criação”

A noite é uma hora concedida aos mortos, aos revenants166 , às almas penadas, pois
é “negra como o pecado; é negra também como as trevas do além que elas prolongam na
terra, as trevas povoadas pelas almas privadas da iluminação da visão de Deus”167.
Dassanta encontra-se com as almas penadas justamente à meia-noite:

“pela mêa noite alevantei da rêde


(...)
fui bebê água pert na aguada

164
Op. cit, CASCUDO, s.d, p.911.
165
CASCUDO, Luís da C. Superstição no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1985. p.418
166
Op. cit. WECKEMANN, p.169.
167
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1999. p.199.
(...)
cuano cheguei pert foi qui dei pur fé
fiquei toda ripiada da cabeça aos pé
(...)
topei Chico Nicolau mais Manezim Serrado
eu vi Naninha sentada pidindo ismola
cujos difunto nas viola
cantava uns canto de horrô”

A pastora mantém contato direto com as maravilhas, apresentando algumas delas ao


leitor-ouvinte. A primeira é descrita como “um barrão de fogo alevantado”, o que remete ao
Fogo-fátuo, Fogo-Corredor ou Boitatá. Segundo Cascudo, era uma cobra de fogo que
matava incendiados aqueles que faziam queimadas nos campos, um antigo mito registrado
pelo Padre Anchieta em 1560. Corresponde à ronda-dos Lutinos, na França e à Luz-louca
(Inlicht) na Alemanha168 . Em seguida, Dassanta relata o Pé-Seco – espécie de demônio –
junto a um anjo, deitados na rede, montada em uma encruzilhada; “lugar clássico de
invocações e encantamentos para todos os povos”169, e depois 7 anjos mortos de sede.
Apresenta o “Lubizome”, ou seja, o lobisomem – representando os mischwesen170 , seres
metade homem, metade animal. Estes Constituem uma manifestação típica do maravilhoso,
por meio da metamorfose, “angustiante para os cristãos que acreditam ter sido criados ‘à
imagem de Deus’, e que então a perdem”171 ao se transformarem em lobo. A imagem
carrega uma acepção moral bastante forte, pois passa pela transformação quem é fruto de
uma relação incestuosa ou

“... é o filho que nasceu depois de uma série de sete filhas. Aos treze
anos, numa terça ou quinta-feira, sai de noite, e topando com um lugar onde um
jumento se espojou, começa o fado. Daí por diante, todas as terças e sextas-feiras,
de meia-noite às duas horas, o lobisomem tem de fazer a sua corrida, visitando
sete adros (cemitérios) de Igreja, sete vilas acasteladas, sete partidas do mundo,
sete outeiros, sete encruzilhadas, até regressar ao mesmo espojadouro, onde
readquire a forma humana”. 172

168
Op. cit. CASCUDO, s.d, p.171.
169
Idem, ibidem, p.371
170
Op. cit. LE GOFF, 1983, p. 31.
171
Op. cit. LE GOFF, 2002, p. 115.
172
Op. cit. CASCUDO, s.d, p. 518.
Danielle Pitta173, ao analisar os ritos de passagem no folclore pernambucano,
aponta que esse mito tem grande repercussão no Brasil, e a imagem do lobisomem
visitando cemitérios e sangrando crianças povoa a imaginação do nordestino.
Outras maravilhas reveladas por Dassanta são Uriinha, Boa-Tarde e Mão-Pelada,
que “malungaram”, ou seja, fizeram amizades com o Lobisomem. É bastante recorrente
nesse “Recitativo” a presença de almas penadas, de mortos conhecidos ou não. Em uma
noite, “muito dispois das ave-maria”, Dassanta ia à beira do rio, quando se encontrou com
uma bando de almas penadas, que costuravam e mediam tecidos, umas chorando e outras
gemendo, arrependidas por terem cometido o delito de roubar:

“Inquanto ũas mídia ôtras custurava


Dum lado ũas gimia já ôtras chorava
rismungan qui era os peso e midida
Os retai dos pan qui cuan in vida
tomava prá cuzê e cum alei ficava”

Nesse episódio, é nítida a função moralizante, pois quem comete pecados e não
pratica a confissão antes de morrer fica vagando pelo mundo dos vivos, em busca de
remissão das falhas, portanto é preciso cumprir a lei divina para se obter a salvação. Ao
explicar o objetivo do exemplum para o homem do medievo, o medievalista Jean-Claude
Schmitt aponta que

“morte e os mortos estão igualmente presentes muito concretamente em


um grande número de relatos para dar esperança (mostrando, com o apoio de
exemplos, que até o último suspiro nunca é tarde demais para arrepender-se dos
pecados) ou para despertar o medo (descrevendo com grande luxo de detalhes os
castigos infernais)”174

Le Goff175 mostra como uma das funções do maravilhoso justamente a didático-


moralizante, que aparece também em outro episódio do canto em questão, não em uma
visão de Dassanta, mas sim de sua mãe:

173
PITTA, Danielle P.R. O imaginário e a simbologia da passagem. Recife: Massangana e Fundação
Joaquim Nabuco, 1984. p. 51.
174
Op. cit, SCHMITT, 1999, p.145.
175
Op. cit, LE GOFF, 2002, p.117.
“minha mãe me insinô qui o dismarzêl
a sujêra e o dismantêl tombém é pecado
contô qui há muito na Lagôa Torta
morava ũa mulé , falo in vida da morta
dismantelada dos pé te os cabelo
cuns dente marelo e os vistido rasgado
varria a casa catano os farelo
e adispois amuntuava o cisco dum lado”

Depois de falar a Dassanta a respeito do pecado do “dismarzêl”, “sujêra” ou


dismantêl”, que é um dos pecados capitais (preguiça ou acídia), contou-lhe que o “Cão”
apareceu à porta e matou a mulher, “apois trazia ua pá de lixo e um ferrão na mão”, ou seja,
não cuidar de si próprio, do corpo onde habita a alma e do local onde mora, fere os
preceitos divinos, aproximando o homem do Mal. Há outra referência ao diabo no final do
canto – “istripulia de Rumão”.Cascudo explica que o “Romãozinho” é um “diabinho”,
“uma entidade zombeteira, inquieta e malévola – faz ruído, joga pedra nos telhados e areia
nas janelas, assobia nas fechaduras...”176. Sua presença justifica o uso, pelo poeta, das
palavras “latumia”, corruptela de latomia, que significa algazarra, zoada, ruídos e o
neologismo “pantumia”, designando esse conjunto de sons e “diabruras” realizadas pelo
Romão.
A presença do Diabo esteve associada, “na mentalidade comum, à espera do fim do
mundo”177, pois era preciso proteger-se das tentações para ir ao Paraíso depois que
ocorresse o Juízo Final. Muito presente na cultura brasileira, seus atos atrapalham a ordem,
fazendo com que as pessoas usem “de mil artifícios para afastar a sua perturbadora
presença”.178 Dassanta, para livrar-se das “coisas do malassombro”, utiliza-se da frase:

“eu te arrenego arma pantariosa


eu te arrenego e arrequêro”

Cascudo, ao explicitar como é feito o encontro entre os vivos e os mortos, cita:

176
Op. cit, CASCUDO, s.d, p.790.
177
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800. São Paulo, Companhia das Letras,
1996. p. 243.
178
PONTES, Mário. “A presença demoníaca na poesia popular de Nordeste”. Revista Brasileira de Folclore.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, setembro de 1972, nº 34, p.261.
“Os mais corajosos e destemidos, porém ousam falar-lhes, e para
saberem o que pretendem, dirigem-lhes esta conhecida frase: ‘Eu te requeiro da
parte de Deus e da Virgem digas o que queres.’ E então faz a alma o seu pedido,
geralmente de missas e orações para sua salvação e entrada na celestial
mansão.”179

A Pastora também faz uso da bênção – “voltei corren olhan prá traiz e benzen”. Há
outros elementos de proteção, como o batismo, objetos sagrados como a cruz e a hóstia,
jejuns e orações. “Há um gesto de poder infalível, que salva de todos os perigos: o sinal da
cruz”.180
As maravilhas apresentadas no Auto da Catingueira têm algumas funções
evidenciadas. Uma delas é fazer um “contrapeso à banalidade e à regularidade do
quotidiano”181, porque a Catingueira depara com tensões diárias: é pastora, cuida de bodes
e cabras, vive a “retirada” de suas terras, em virtude das secas, sente saudades de um
tropeiro que conheceu no Sete Istrêlo. Por isso, o maravilhoso seria um modo de atenuar a
realidade, obnubilar a violência, a frustração, a solidão. Dassanta conta as “visage” após ter
reclamado imensamente da sina que acredita ter, de viver peregrinando, acompanhada de
cabras:

“sina cigana
vida de onça,
vida tirana
é essa só de andança
(...)
e assim se vai meus dia
tardes e mĩã
disperdiçado nesse labutá
disapartada de mĩas irirmã
sem o carin dos ôtros irirmão menó”

179
Op. cit, CASCUDO, s.d, p. 63.
180
BASCHET, Jèrôme. “Diabo”. Em: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. Dicionário temático do Ocidente
Medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, v.1, p. 326.
181
Op. cit. LE GOFF, 1983. p.24
Outra função do maravilhoso, evidenciada no texto, é a didático-moralizadora, que
reforça os ensinamentos cristãos por meio da sedução, ao desvendar realidades com
elementos assombrosos. Entretanto, há uma outra, implícita, que se contrapõe à didático-
moralizadora – a de contestar a ideologia cristã, à medida que mostra seres que não são
feitos “à imagem de Deus”182, ou seja, entes grotescos, deformados ou animalescos,
características que os aproximam do Mal. Há, ainda, a função estética, a de surpreender o
“leitor-ouvinte”, provocando uma dilatação do mundo e da psique até o desconhecido,
estimulando o “abrir bem os olhos para a criação e o imaginário”.183 Elomar desenvolve
com maestria essa última função.
O maravilhoso sertanejo, conjunto importante na constituição do imaginário, já
discutido no Capítulo II deste trabalho, indubitavelmente se alimentou de maravilhas
anteriores, conhecidas por meio de histórias bíblicas, de material da Bretanha, da Península
Ibérica e do Oriente, elaboradas inclusive na Idade Média. Circulam pelo Brasil desde o
século XV, por meio de folhetos e dos cantadores, sofrendo adaptações, continuações ou
transformações de acordo com as estruturas, o funcionamento, a cultura e os valores da
sociedade brasileira ao longo de sua formação. Assim, é possível o diálogo entre esses
elementos medievais e os da modernidade, como, por exemplo, com as maravilhas da
poética elomariana, pois como precisamente aponta Hilário Franco Júnior, historiador das
“mentalidades”,
“mesmo entre sociedades distanciadas no espaço e nas trajetórias
históricas, existem similitudes entre as respectivas culturas intermediárias –
devido ao substrato profundo da psicologia coletiva, a mentalidade – ainda que
possam ser enormes as diferenças entre suas culturas de elite”184 .

A partir do exame das maravilhas contidas em “Das visage e das latumia”, é


possível perceber que essa parte do auto é muito significativa para o conjunto, pois ela faz a

182
“Embora se diga que cada homem é criado ‘à imagem de Deus’, o entendimento mais corrente é que ele
não é esta ‘imagem’ nem em seu corpo visível nem na totalidade de sua alma, mas somente na parte superior
da alma (a razão: noûs ou mens). É nesse sentido que o homem, embora pecador, não deixa de levar a marca
do divino, mesmo que o corpo, pelo sofrimento e pela morte, e que a alma, por sua fraqueza temporária,
sofram tais limites como conseqüência do pecado Original”. SCHMITT, Jean-Claude. “Corpo e alma”. In: LE
GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Trad. (Coord.) Hilário Franco Júnior.
São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v. 1. p. 255.
183
Op. cit. LE GOFF, 2002, p. 119.
184
FRANCO JR, Hilário. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1996. p.35.
articulação entre o sagrado e o profano. Também facilita o “mergulho” nos elementos que
constituem o imaginário elomariano, o que reforça as idéias discutidas no Capítulo II.
O quarto canto, “Do pedido”, é o menor deles, com apenas 53 versos cantados por
Dassanta, acompanhada apenas de violoncelo. É um monólogo lírico, de matiz descritivo e
narrativo, com presença de refrão e paralelismo, com invocação ao amigo e estado
sentimental da pastora expressando ternura, singeleza e vaidade feminina, fatores que
fazem o leitor-ouvinte relacioná-la às cantigas trovadorescas medievais, mais precisamente
às de amigo. Já com relacionamento amoroso estabelecido com o tropeiro que conhecera
no Sete Estrelo, a catingueira faz pedidos de compra, uma vez que ele vai à feira. Esses
pedidos são simples produtos de gênero feminino e alimentícios, mas da forma como
Dassanta se reporta ao amado, parecem verdadeiros “mimos”, pois ela o faz de maneira
manhosa, chamando-o de “meu amigo”:

“Já qui tu vai lá prá fêra


Traga de lá para mim
Água da fulô qui chêra
Um nuvêlo e um carrin
Trais um pacote de misse
meu amigo ah se tu visse
(...)”

Segundo Manuel Viegas Guerreiro, esse gênero de cantigas persistiu por muito
tempo e continua “na boca do povo”185; está presente nos cancioneiros do século XV e
XVI, portanto um exemplo bastante representativo da literatura popular do medievo.
Nos primeiros 12 versos, já se têm informações que corroboram a idéia de Dassanta
ter um destino marcado pelo “sensitivo”, quando o leitor-ouvinte fica ciente da “visão” de
um cego-cantador:

“Meu amigo ah se tu visse


Aquele cego cantadô!
Um dia ele me disse
Jogano um mote de amô
Qui eu haverá de vivê

185
GUERREIRO, M. Viegas. Para a história da literatura popular portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura
de Língua Portuguesa, 1983. p.43
Pur esse mundo
E morrê aina em flô”

A figura do cego terá papel fundamental no clímax do auto, no 5º canto, quando


Dassanta pressente o perigo em um momento e expõe a sina cantada por este cego.
Também confirma informações apresentadas no canto 2, quando o narrador afirma que a
“Velha da foice”, a Morte, acompanhava a catingueira em seu dia a dia, prevendo que a
morte seria precoce. Com esses versos, percebe-se mais um elemento arraigado na cultura
popular e fortemente cultuado no Nordeste brasileiro – o cego cantador. Idelette Muzart
Fonseca dos Santos, que realizou importante pesquisa a respeito de poética popular e do
Movimento Armorial de Ariano Suassuna, afirma:

“Existe ainda outro aspecto da poesia improvisada, a poesia cantada


pelos cegos, poesia oral por excelência – os cegos estando, segundo a expressão
de Paul Zumthor, para sempre liberados da escrita. (...) O cego e seu
acompanhante, personagens picarescos do romance, adquirem rapidamente uma
dimensão profética, de vidência, testemunhada pelo romance de loa (louvor) (...)
A cegueira desempenha um papel de passagem para o território do mito: permite
a profecia, (...) e garante a genialidade poética, através da referência a
Homero.”186

Paul Zumthor, citado acima por Idelette Muzart, fazendo uma incursão pelos
intérpretes que utilizaram e utilizam a vocalidade187 ao longo dos séculos, afirma:

“Vários desses ‘cantadores de gesta’ pertenceram à classe,


aparentemente numerosa, dos ‘jograis’ cegos, notáveis em toda Europa até os
séculos XV, XVI e XVII, da península Ibérica à Sicília, dos Bálcãs à Irlanda, da
Hungria à Alemanha e à Rússia – detentores de um repertório tão fortemente
tipificado que, na Espanha e em Portugal, lhes deram um nome, arte de ciego,
romances de ciegos. (...) Essa especialização dos cegos constitui um fato

186
SANTOS, Idelette M.F dos. Em demanda da poética popular – Ariano Suassuna e o movimento Armorial.
Campinas: Editora da Unicamp, 1999. p. 122-123.
187
Zumthor utiliza o termo “vocalidade” em lugar de “oralidade”, pois entende que “vocalidade é a
historicidade de uma voz: seu uso Uma longa tradição de pensamento, é verdade, considera e valoriza a voz
como portadora da linguagem, já que na voz e pela voz se articulam as sonoridades significantes.”
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz – A “Literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 21
etnológico marcante, que se pôde observar, ainda em nossos dias, em todo o
Terceiro Mundo. Sem dúvida, numa sociedade em que nenhuma instituição
assegura nem o cuidado nem a reinserção do cego, a solução mais óbvia de seu
problema é a mendicância, e o canto pode ser o meio. Mais fortemente do que as
motivações econômicas, porém, atuaram as pulsões profundas que para nós
significam, miticamente, figuras antigas como Homero ou Tirésias: aqueles cuja
enfermidade significa o poder dos deuses e cuja ‘segunda vista’ entra em relação
com o avesso das coisas, homens livres da visão comum, reduzidos a ser para nós
só voz pura”. 188

A citação acima certamente se encaixa em casos brasileiros, casos de cantadores


que, a princípio, por necessidades econômicas, passaram a experimentar a “voz” e suas
habilidades em improvisar os versos, transformando-se em “grandes” nomes de poetas
populares, conhecidos nacionalmente, talvez não ganhando a “simpatia” de todo o público,
mas certamente daqueles que habitaram e habitam sua região, como é o caso do Cego
Aderaldo, poeta-cantador, nascido em 1878 em Crato. Ficou cego aos 18 anos, 10 dias
depois de perder o pai. Assim, teve de assumir o sustento da família, encontrando na
cantoria um meio para isso189.
Ainda no 4º canto, Dassanta, junto aos pedidos, traz imiscuídos a eles outros
elementos que compõem os costumes da região – os pratos típicos, como paca, panelada e
brevidade; a importância da feira como ponto de comércio, onde se encontram muitos
gêneros de produtos.
Nos versos de 25 a 38, têm-se novamente elementos maravilhosos e religiosos, que
compõem o imaginário nordestino, já discutido no Capítulo II e retomado no canto anterior.
Dassanta menciona, mais uma vez, o batismo190 como fonte de salvação, a figura do
lobisomem e dos canguinhos191. Os versos abaixo têm a função de antecipar fatos, por meio

188
Idem, ibidem, p. 58.
189
Para informações completas – biografia, obras, repercussão nacional – consultar ADERALDO, Cego. Eu
sou o cego Aderaldo. São Paulo: Maltese, 1994.
190
“O batismo e a eucaristia – praticados pelos crentes, através do espírito, uma parte na própria vida em
memória do Jesus ressuscitado – vieram a ser promessas, também, de uma salvação final que ainda
permanece à frente, além da morte e do colapso da história humana: tipos ou símbolos da vida do mundo
vindouro”. Op.cit. DALEY, 1994. p. 17
191
“Canguinhos” são “diabinhos” cultivados em garrafas, que realizam desejos de seus donos. Segundo
explicação de FIGUEIREDO (Op. cit, s.d. sem página) no livro a respeito do auto, são “entidades demoníacas
que ‘pautam’ com os gananciosos, propondo-lhes fausto e riquezas temporais (terrenas) às custas da prisão
eterna de suas almas na vida extradimensional”.
de elementos sobrenaturais (noite de lua cheia, a festividade acontecendo na casa de um
feiticeiro que se transforma em lobisomem, porque os pais não o batizaram), que ocorrerão
no próximo canto, quando Dassanta e Chico das Chagas comparecerão a uma festa onde se
iniciará a “desgraça” do casal.

“Apois sim vê num isquece


Quinda nessa lũa chêa
Nós vai brincá na quermesse
Lá no Riacho D’Arêa
Na casa daquele home
Feiticêro e curadô
Qui o dia intero é home
Filho de Nosso Sinhô
Mais dispois da mêa noite
É lubisome cumedô
Dos pagão qui as mãe isqueceu
Do batismo salvadô
E tem mais dois garrafão
Cum dois canguin responsadô”

O canto é findado com mais alguns pedidos e a súplica:

“Meu amigo trais


Essas coisinha para mim”

O quinto e último canto do Auto da catingueira, intitulado “Das violas da Morte”, é


o maior deles, com 582 versos. No livro que acompanha os CDs, há um texto introdutório
situando o leitor quanto aos acontecimentos vindouros. Dassanta e seu companheiro
chegam à festa mencionada no 4º canto, em noite de lua cheia. Os convivas estão reunidos
cantando “Clariô”, o casal junta-se a eles. Um cantador nordestino profissional interrompe
a cantoria ao se sentir tocado pela beleza de Dassanta, intima algum dos convidados para
um desafio na viola. Como ninguém aceita o convite, o tropeiro, companheiro de Dassanta,
obriga-se a entrar na disputa, já que os convidados pressionam-no com olhares.
“Clariô”, canto de abertura, é utilizado para “esquentar” a função192, descrevendo
fatos simples e concomitantes ao momento da mesma, como a chegada da lua, o anúncio do
início da festa, as expectativas dos participantes:

“Ai clariô ai ai clariô


Ai clariô ai ai clariô
Ai clariô ai ai clariô
Purriba do lajêdo o lua chegô
Já cá na Cabicêra a função pispiô
Amiã cedo a lũa já entrô
E eu qui vim só
Só prá vê meu amô
Sei qui vô ficá só
Pois ela num chegô”

Nos versos seguintes, o desafio será iniciado entre o tropeiro, companheiro de


Dassanta, e o cantador. Estruturalmente, os desafios iniciam-se com uma saudação aos
anfitriões. Dos versos 1 ao 50, esse cantador faz essa saudação e também se apresenta,
dizendo que veio do Norte, que vem cumprindo sua sina – ilusão da vida ou a faca da morte
– deixando a escolha para a sorte! Faz o convite para o duelo, mas avisa que sua viola
quando “não mata, aleija”, parodiando um provérbio popular. Continua expondo seu breve
mas denso currículo de vitórias em diversas cantorias e dá uma mostra de seus dotes, com
15 versos que funcionam como complexos trava-línguas, com uma combinação fonético-
articulatória bastante difícil. Nos versos abaixo, é possível perceber a inventividade de
Elomar ao “brincar” com as palavras:

“Só na iscada dũa igreja


Labutei cũa duza um dia
Cinco morrêro d’inveja
Treis de avêcho, um de agunia
Matei os bicho cum mote
Qui já me deu treis mulé
É a histora dum cassote
Cum cuati e cum saqüé
O cassote com um pote
Cuô pru cuati um café
192
“Antiga denominação das nossas festividades religiosas e das familiares de batizados, casamentos e
aniversários. (...) Usa-se também deste termo para designar festa ou festim em casa ou nos templos.” Op. cit.
CASCUDO, s.d, p. 416.
Iantes ofreceu um lote
Num saco prá o saqué
O saqüé secô o pote
Dexô o cuati só cũa fé
Di qui dent do tal pote
Inda tinha algum café
E xispô sambano xote
O inxavido do saqüé
Qui cuati quá qui cassote
Boto o bico bato um bote
O qui é qui o saqüé qué
Ĩantes porém aviso
Sô malvado num aliso
Triste ô fliz é o cantadô
Que eu apanhá pra dá o castigo
Apois quem canta cumigo
Sai difunto ô sai dotô”

Ser valente, acumular vitórias em cantorias e conquistar várias mulheres são


símbolos de status entre o grupo de cantadores e vaqueiros, lembrando o vaqueiro descrito
por Euclides da Cunha193. Cascudo descreve o cantador com bastante propriedade:

“É um representante legítimo de todos os bardos, menestréis, gleen-men


trouvères, meistersängers, minnesingers, escaldos, dizendo pelo canto,
improvisado ou memorizado, a história dos homens famosos da região, os
acontecimentos maiores, as aventuras de caçadas e derrubadas de touros ,
enfrentando os adversários nos desafios que duram horas ou noites inteiras, numa
assombrosa de imaginação, brilho e singularidade na cultura tradicional.
Analfabetos ou semiletrados, têm o domínio do povo que os ama e compreende.
(...) Curiosa é a figura do cantador. Tem ele todo o orgulho de seu estado. Sabe
que é uma marca de superioridade ambiental, um sinal de elevação, de
supremacia, de predomínio.”194

A partir dos cantos do desafiante, o tropeiro tem a responsabilidade de “responder”,


logicamente na forma de cantoria, ao cantador do nordeste, pois essa é a função do desafio
– medir forças por meio da habilidade de formular versos nos mais variados gêneros de
cantoria, sempre respeitando o mote imposto. O tropeiro não se intimida e canta:

193
CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, s.d.
194
Op. cit. CASCUDO, s.d. p.236-237.
“Falta o iluste cumpanhêro
Marcá o lugá da prufia
Se lá fora no terrêro
Ô aqui mêrmo no salão”

Com os versos acima, é possível estabelecer relações entre a prática do “desafio”,


chamado pelo tropeiro de “prufia” (porfia), e os torneios ou combates, representados pelas
justas medievais, que Franco Cardini195 afirma serem resquícios de práticas guerreiras da
Ordem da Cavalaria, que conheceu a decadência quando foi transformada em um estrato
inferior, uma vez que seus alicerces (terra e arma) não interessavam a uma monarquia em
vias de se tornar absolutista. Essa cavalaria passou a ser um meio de promoção social para
um grupo de guerreiros sem recursos, em busca de sobrevivência. As justas eram pequenas
contendas, como forma de diversão, no entanto carregando em si valores como lealdade e
valentia e a intenção de conquistar uma dama ou limpar sua honra. Segundo Jean Flori, as
justas contribuíram na criação de uma ética própria da cavalaria, que valorizava o “culto da
coragem e do heroísmo, respeito ao código deontológico que poupa, por interesse ou por
ideal, o homem desarmado ou caído por terra; respeito à palavra dada; zelo pela reputação,
ampliada pela bravura de uns e pela generosidade de outros”196. Cardini afirma que a
cavalaria encontrou seu fim enquanto grupo combatente, mas enquanto mito não, ela ainda
vive através da literatura, inclusive no mundo contemporâneo, como, por exemplo, no
desafio do catingueiro, que também respeita uma ética própria, valorizando a desenvoltura
nos cantos e a valentia, com interesse de fama e conquistas amorosas.
Ao longo de todo o 5º canto, o duelo ocorrerá na forma de cantoria, o desafio.
Importante ressaltar que o gênero “desafio” é uma prática comum entre os cantadores
brasileiros, definido como:

“Disputa poética, cantada de improviso e parte decorada, entre os


cantadores. É gênero que recebemos de Portugal e conhecido em todo o Brasil,
mantido especialmente no nordeste brasileiro, mais no sertão do que na orla

195
CARDINI, Franco. “O guerreiro e o cavaleiro”. In: LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Lisboa;
Editorial Presença, s.d. p. 57- 78.
196
FLORI, Jean. “Cavalaria”. In: LE GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente Medieval.
Trad. (Coord.) Hilário Franco Júnior. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. 2v. p. 196.
litorânea. Os instrumentos de acompanhamento são a viola e a rabeca no Norte, a
sanfona e o violão no Sul, sem que se possam fixar preferências”. 197

Nos cantos 65 a 86, o cantador expõe os gêneros de cantoria dominados por ele,
exigindo o uso dos mesmos pelo tropeiro nesse desafio – “mourão, martelo, tirana, ligeira,
parcela, obra de nove, oito, sete e seis pés em quadrão”. O tropeiro oferece no mote,
alicerçado em sua experiência de vida com humildade, as frustrações e a busca pela
felicidade:

“Apois para entender parcela


Martelo ô côco tiran
Tem que baté mil cancela
Na istrada dos disingan
E ainda purriba tem
Qui sabê sofrê e isperá
Mêrmo saben qui num vem
As coisa do seu sonhá
Na instrada dos disingano
Andei de noite e de dia”

O tropeiro, crente nas palavras divinas, mostra que a vida é uma “istrada dos
disingan”, mas que é preciso passar pela mesma para se conhecer a felicidade, pois é nela
que se padece, que se faz a remissão dos pecados.
Desejando complicar a situação do companheiro de Dassanta, já que ele havia
cumprido os versos e ganhado a simpatia dos ouvintes, o cantador do Nordeste lança um
mote que exige erudição: a Noite de Reis, tema já discutido no capítulo anterior. Mais uma
vez, o tropeiro responde à altura do cantador profissional, que o elogia:

“De tá sem honrado assim

197
Op. cit. CASCUDO, s.d. p. 349. Consultar também CASCUDO, L.da C. Vaqueiros e cantadores. Belo
Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 177-181. Nessa parte da obra,
o autor faz uma retrospectiva histórica a respeito do gênero, desde a Antigüidade à Idade Média, citando que
o Brasil recebera a tradição de Portugal. Cita muito brevemente, duas palavras, a respeito dos árabes, fato que
intrigou o pesquisador Luis Soler, que afirma a origem do desafio como sendo árabe: “Desafio, diálogo
contrapontado mais ou menos agressivo, questionário adivinhatório etc., que foram (e são) características
marcantes da tradição poético-musical dos árabes em seus aspectos de espetáculo e de relacionamento
humano, motivo pelo qual não podemos estranhar que seja precisamente chamado de “mourão” um tipo de
cantoria baseada no diálogo.” SOLER, Luis. Origens árabes no folclore do sertão brasileiro. Florianópolis:
Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1995. p. 104.
Cantan cum gent letrado?”

Continua o exercício de erudição e a tentativa do desafiador em terminar com a


peleja. Nos versos 171 a 180, o cantador continua com o tema bíblico, mas não explicita
esse fato, apenas pede ao tropeiro que interprete o sonho que teve acordado:

“Tava o tempo assim parad


Na maió comodação
De repente num istralad
Vêi um raí e um truvão
Chuveu fogo e azeite quente
Curria pur toda a gente
Na maió das aflição?”

Sem hesitar, o companheiro de Dassanta responde com uma ordem para que o
cantador do Nordeste busque nas Sagradas Escrituras, em Lucas, 21198, a interpretação para
seu sonho, frisando que, nesse capítulo, encontraria as palavras do Mestre a respeito do fim
dos tempos.
É corrente a aceitação entre diversos pesquisadores de cultura popular que a Bíblia é
uma importante fonte, quando não a principal, de conhecimento e inspiração. Da mesma
forma são as histórias tradicionais, como História da donzela Teodora; História do grande
Roberto, duque da Normandi; História da princesa Magalona; História da Imperatriz
Porcina; História de João de Calais e, ainda, História do imperador Carlos Magno e os
Doze Pares de França. Câmara Cascudo, em um estudo a respeito da novelística no
Brasil199, recorre a documentos do Santo Ofício para especular sobre o que os brasileiros
liam no século XVI e XVII. Verificou que não há referência, nesses documentos, às
novelas tradicionais e que, certamente, eram lidos volumes de orações, hagiolários, sermões
e livros de exemplos, lembrando que os livros eram destinados aos mercadores e fidalgos,
enquanto os folhetos, ao povo alfabetizado. Liam-se também o Lunário perpétuo - uma
espécie de almanaque com conhecimentos de astronomia, astrologia, agricultura e cuidados

198
“Então prosseguiu a dizer-lhes: ‘Nação se levantará contra nação e reino contra reino; e haverá grandes
terremotos, e, num lugar após o outro, pestilências e escassez de víveres; e haverá vistas aterrorizantes e
grandes sinais do céu’.” Lc 21:10-11.
199
CASCUDO, Luís da C. Cinco livros do povo – Introdução ao estudo da novelística no Brasil. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio, 1953. p.10-13.
medicinais200 – algumas novelas, a Bíblia e a cartilha. Como a vida familiar era intensa, em
virtude do isolamento das fazendas, da falta de jornais, de rádios e de televisão, os serões,
as leituras de novelas e folhetos, após o jantar, eram freqüentes201.
Continuando o desafio, nos versos 211 a 222, o leitor-ouvinte percebe que o tom
amistoso, mantido até então, começa a desaparecer em função da ousadia do cantador do
Nordeste, que claramente se declara a Dassanta, exigindo que o tropeiro pague o mote com
o gênero “parcela”202, que é tido como um canto causador de desgraça e infelicidade,
indicando ao leitor-ouvinte a intenção de lutar pela Catingueira, sabendo que pode haver
morte com essa luta:

“Todo cantadô de errante


Trais nos peito ũa marzela
Nas alma lũa minguante
Istrada e som de cancela
Fonte qui ficô distante
Qui matava a sêde dela
E o coração mais discrente
Dos amô da catinguêra
Ai o amô é ũa serepente
Esse bicho morde a gente
Vamo pois cantá parcela
Daindá daindá daindá”203

O tropeiro recusa-se a cantar “parcela”, dizendo que é cantador de “coco” e


demonstra que quem a canta “morre doido cantan ela”. Então o cantador pede o gênero

200
Antonio Nóbrega, que foi membro do Movimento Armorial, conforme nota explicativa no Capítulo I,
gravou um CD intitulado Lunário Perpétuo, por Brincante Produções Artísticas Ltda, no qual traz algumas
cantigas com elementos existentes no Lunário Perpétuo.
201
Nesse aspecto, Cascudo confirma as informações já citadas em nota anterior. Ver DIÉGUES JR, 1986.
p.40.
202
Já explicado em nota no Capítulo II.
203
“O grupo de elementos musicais autenticamente raciais dos árabes, historicamente documentados e ainda
marcantes nos povos muçulmanos de hoje, poderíamos resumi-los no seguinte enunciado de tendências: (...)
6) Um apreço muito maior pelos valores do verso que pelos valores propriamente musicais. Razão que explica
a rude maneira de cantar dos violeiros; dentro da qual os elementos musicais, mais do que valerem por si
mesmos, servem sobretudo para sonorizar o recitado poético e ajudá-lo a chegar aos ouvintes : um sistema de
impostação de voz, em suma. (...) ocorre-nos que tudo o que teria de surpreendente tem de coerente ao
supormos a sobrevivência do h’idá beduíno (ye hedia... ye yada...), nos “ai, d-a dá” das ligeiras que são
cantadas nos desafios”. Op. cit. SOLER, 1995. p.101-104.
“perguntação”. O tropeiro aceita, dando um mote misto, com realidade e dados
sobrenaturais, exigindo do cantador experiente as respostas:

“Fazeno a priguntação
Quantas pena tem a treis-pote
Quantos dente tinha o pente
Qui canguin pintiava o cão
No meio de tanta gente”

O cantador do nordeste, vendo-se encantoado, dirige-se de maneira bastante


ofensiva ao tropeiro, aumentado o grau de dificuldade da cantoria, pois exige inúmeras
informações biográficas do companheiro de Dassanta em apenas um “fôlego” respondido:

“O colega adversaro
Num tem o canto apurado
Se cantasse pur salaro
Há muit qui era finado
(...)
agora feito um feitiço
ta meu colega imbuiado
apois quero tudo isso
num só folgo respostado”

O tropeiro consegue pagar o mote dos versos 320 ao 343. Esse momento do desafio
é importante para o auto, porque é a partir dele que se obtêm dados sobre o tropeiro. Chama
Chico das Chagas, nascido no sertão da Bahia, no distrito de Brumado. Faz uma bela
declaração de amor a Dassanta, pressagiando como trágico seu próprio fim, pois decidiu
ficar ao lado dela.

“E essa aqui do meu lado


Essa é minha cumpanhêra
Minha vida é meu bucado
Minha viola gemedêra
Japiassoca dos brejo
Minha sina é ũa perdedêra
Derna que vi ela eu vejo
Qui andano andano e andejo
Violêro malsinado
Vô morreno a vida intera”
Chico sabe que morrerá, pois Dassanta é considerada, como explicado
anteriormente, uma fonte de desgraça aos homens, já que tem nos olhos a “febre
perdedêra”. Relacionando-se com ela, o tropeiro comete o pecado da luxúria,
concupiscência da carne. Interessante notar que a situação de “profia” entre o tropeiro e o
cantador do Nordeste provoca também outros pecados, como a soberba, já que os
cantadores desejam fama; a ira, porque gera ódio e desavenças; e a luxúria, já que
“combatem” para conquistar a Catingueira.
O cantador do nordeste muda o gênero, pede uma louvação. Chico das Chagas
aceita, mas diz que só faz louvação a Dassanta. São 20 versos, do 368 ao 386, de puro
lirismo, de dedicação, de resignação e endeusamento da amada, é um legítimo louvor a
Dassanta, uma promessa de honra e fidelidade, lembrando em demasia o culto à Virgem
nas Cantigas de Santa Maria, que atribuem à mulher as idéias de elevação e pureza, de
devoção espiritual, como um “serviço” prestado à dama celestial. Há uma imagem poética
tocante, quando o tropeiro afirma que seu amor incondicional faz até violão sem corda ou
sem “craviela” (“pescoço”) emitir sons:

“Num sei cantá lôvação


Pra ôtra qui nun sej ela
Quano vô na iscuridão
Me guia duas istrêla
Minha istrada é um quilarão
Me alumia os olhos dela
Num sei cantá lôvação
Pra ôtra qui não sej ela
Pru mod ela no sertão
No rito do coração
Sem corda sem craviela
Geme as viola e os violão
Geme os batê das cancela
Nas baxa nos chapadão
Geme as porta e jinela
Num sei cantá lôvação
Pra ôtra qui num sej ela”
O cantador do Nordeste, de maneira explícita, diz-se apaixonado e interessado por
Dassanta, gerando grande rivalidade entre os contendores. Nesse momento, deixa de ser um
desafio por meio da cantoria, apenas uma competição “verbal”, para progredir para uma
contenda física, com auxílio de armas. Chico das Chagas expõe seus pressentimentos e
conta um sonho de sua mãe, que o viu envolvido em briga:

“Hoje aqui nessa função


Eu to prissintin um chêro
De sangue morte e de dô
(...)
ela sonho qui tú tava
nũa função nas Cabicêra
decente e nũa buniteza
qui fazio gosto inté
intonce quando acordei
vi moiado o cabicêro
apois te via acuado
num canto de um terrêro
trançando cum violêro
facão viola e mulé”

O cantador não se assusta com os cantos de Chico e continua afirmando que facão
(morte), sua forma violenta de solucionar os combates; viola (diversão), instrumento que
mostra como é habilidoso e astuto, mas que é também meio de arrumar confusões; e
mulher (amor), motivo de suas desavenças, sempre foram sua perdição. Exibe que não
sente medo de morrer, pois já sofrera muito, confirmando sua sina de viver na ilusão ou
buscar os “cutelo da morte”:

“Já nem sei mais o qui minhas alma qué


Pra quem viveu penano a vida intêra
Tant faiz morrê nũa boca de fêra
Cumo acuad no canto dum terrêro
Trançad cum violêro, facão, viola e mulé”

Os dois pelejadores já estão conformados que deverão travar uma luta com armas,
cada um assumindo um motivo para esse ato – o cantador quer Dassanta e Chico das
Chagas, respeitando o código de valentia, quer honrar sua dama. Portanto, o motivo da
porfia é Dassanta, o que corrobora a descrição da personagem em cantos anteriores:

“Qui as dô e as aligria na sombra dela andava


E adonde ela tivesse a vea da foice istava
(...)
ĩantes dela chegava na frente as aligria
dispois só se uvia era o trincá dos ferro”

Depois de ouvir Chico das Chagas dizer que sua morte estava próxima, que naquela
noite, antes da aurora já teria partido, Dassanta, preocupada, tenta amenizar a situação e
recobrar o bom senso do tropeiro. Interessante notar que esse fato remete aos cavaleiros das
gestas medievais, que também sabiam que morreriam. Esse conhecimento ou intuição era
adquirido em sonhos ou em outros sinais tidos como anunciadores da morte. No caso do
Chico das Chagas, houve o sinal do galo e o sonho de sua mãe. Philippe Ariès, em seus
estudos a respeito da morte, denomina essa situação de “morte domada”, o que revela certa
aceitação dela.204 É o único momento em que Dassanta participa da cantoria, ocupando a
estrofe com o maior número de versos (52). Ela relembra ao companheiro o que deixaram
em casa – três filhos dormindo, desprevenidos de roupas e alimentos, um filho enterrado no
dia anterior, natimorto, o roçado aberto, o telhado sem telhas, a aproximação da chuva, a
esperança que ela tem de vê-lo rico.

“Pra que tanta disavença


(...)
viola cum violença
é plantá na terra quente
de mĩa ispaia a semente
de noite coi incelença”

O tropeiro não atende a seu apelo e o certame acontece, findando com a morte dos
três. É importante ressaltar que a atitude do tropeiro, Chico das Chagas, não é mera
teimosia, mas a expressão de um código de conduta praticado entre os vaqueiros

204
ARIÈS, P. História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
p. 26-27.
nordestinos. Idelete M. F. dos Santos mostra que o vaqueiro representa o herói popular por
excelência205, ligado

“naturalmente a um cavaleiro”, (...) herói e símbolo do sertão, associado


à figura do cantador para representar e ‘significar’ o Nordeste (...) mostra sua
coragem lutando com peixeira numa briga, conservando uma vida livre e dura,
mas sem realizar aventuras extraordinárias nem missões heróicas. O vaqueiro é o
símbolo de um modo de vida, um pouco à margem de uma sociedade fechada,
posição que permite conservar uma relativa liberdade.” 206

O narrador entra ao final do auto com a mesma justificativa que utilizou no canto
introdutório, “Bespa”, e legitima sua história recorrendo à memória de seus antepassados,
como transmissores de histórias por gerações:

“Minha vó conto
Cuan meu avô morreu
Dindinha conto
Cuano vovô morreu
Qui foi triste aquela função”

Aqui chegado, é perceptível que a obra Auto da catingueira é bastante rica do


ponto de vista temático – encontram-se o tema da terra, da seca, do Sertão como um local
adverso, onde o sertanejo desenvolve sua vida, estabelece sua identidade e se submete às
forças da Natureza; das práticas culturais nordestinas, como as formas de cantoria; das
manifestações espirituais: a morte, como salvação e não punição; a vida como passagem; o
amor carnal, que leva à corrupção dos homens pelo pecado da luxúria; as crenças, apoiadas
nos princípios judaico-cristãos e nos elementos profanos, como nos entes sobrenaturais.
Tem-se, ainda, o tema da memória, que resgata o canto ancestral. Muitos desses temas
estão associados a motivos desenvolvidos na Idade Média, conforme explicado nos
parágrafos supra citados. Nesse auto, ainda, ocorre a recuperação de algumas histórias do
sertão que expressam dados histórico-culturais do catingueiro de Elomar. Ocorre também a

205
Aqui se incluiu o tropeiro, que apesar de conduzir as tropas e ser responsável por transações comerciais,
também lida com o gado e convive no mesmo ambiente sócio-cultural.
206
Op. cit. SANTOS, 1999. p. 91-93.
transformação de histórias e costumes arcaicos, que permearam o imaginário do homem
por séculos, nas mais diversas culturas.
Também é rico seu aspecto formal, por se apresentar em forma de “auto/ ópera”,
promovendo transformações dentro do gênero e aclimatando-as aos “gostos” brasileiros por
meio de linguagem musical nacional, ao fazer uso de instrumento popular, como a viola,
associada a outros considerados eruditos, como a flauta transversal e o violoncelo; ainda
por meio de uma linguagem verbal singular, ao imiscuir o dialeto catingueiro ao léxico
culto, aos neologismos e aos arcaísmos.

5. Capítulo IV – A língua utilizada por Elomar

Nos textos poético-musicais de Elomar Figueira Mello, encontra-se uma


diversidade particularizada de formas lexicais e construções lingüísticas, o que atribui
a eles valor artístico acentuado, pois a forma de expressão distancia-se da linguagem
padrão, fixa e automática. Alguns exemplos de processos lingüísticos adotados pelo
autor, analisados neste capítulo, foram retirados não só do Auto da Catingueira, mas
também de seu Cancioneiro e do poema épico Fantasia leiga para um rio seco,
discutidos no capítulo II. Esse assunto, complexo, não dispõe de um número
suficiente de estudos. Na verdade, tem-se notícia de apenas três trabalhos publicados
pela mesma pesquisadora, Darcília Simões, da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, que muito contribuiu para as reflexões e confecção desse capítulo.207

207
SIMÕES, Darcília. “Elomar e a língua sertaneza”. V SENELEP, Erechim, RS, 2002.
“Parcela da língua sertaneza de Elomar Figueira Mello”. Atas do VI Congresso Nacional de Lingüística e
Filologia. Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2002.
Segundo a pesquisadora,

“Uma língua é identidade de um povo que, por sua vez, atualiza essa
língua de formas diferenciadas, em decorrência de sua distribuição no tempo, no
espaço e na organização social. Logo, num país com as dimensões do Brasil, a
variante do português aqui praticada sofre influências das mais diversas, gerando,
assim, um leque de concretizações lingüísticas que precisam ser conhecidas,
sobretudo pelo povo brasileiro.”208

Elomar faz uso tanto do estilo formal, ou seja, uso padrão da língua, imiscuído a
formas antigas, como também da fala regional, praticada no sertão baiano, uma fala
espontânea, particular, pretensamente fonética, apoiada no cotidiano do catingueiro. A
título de exemplo, tem-se a cantiga “Arrumação”:

“Josefina sai cá fora e vem vê


olha os forro ramiado vai chovê
vai trimina reduzi toda a criação
das banda de lá do ri Gavião
chiquera pra cá já ronca o truvão
futuca a tuia, pega o catadô
vamo plantá feijão no pó
(...)
diligença pega panicum balai
vai cum tua irmã, vai num pulo só
vai culhê o ái, ái de tua avó
(...)
lũa nova sussarana vai passá
seda branca na passada ela levo
(...)
a onça prisunha a cara de réu
o pai do chiquero a gata comeu
foi num truvejo c’ua zagaia só
(...)”

Nesta cantiga, o poeta-cantador conversa com Josefina, dando-lhe ordens quanto

SIMÕES, Darcília (Org). Língua e estilo de Elomar. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006.
208
Op. cit. SIMÕES, 2006, p.13. A pesquisa realizou uma investigação de cunho léxico-semântico-semiótico,
levantando as unidades léxicas de todos os textos poético-musicais de Elomar. Como meta final, elaborou um
pequeno dicionário da linguagem sertaneja.
aos serviços que devem ser executados antes da chegada da chuva. São tarefas corriqueiras,
desenvolvidas em um cenário rural, sertanejo, portanto a linguagem empregada pelo
cantador faz uso de regionalismos e vocábulos com traços orais: “forro ramiado” (céu que
anuncia chuva); “reduzi” (reduzir, com sentido de juntar o gado); “balai” (balaio – cesto de
palha, de talas de palmeira, ou de cipó); “chiquera” (prende no chiqueiro, local onde se
criam bodes, cabras e porcos); “panicum” (panacum – cesta de boca larga); “prisunha”
(animal com a anomalia genética de ter uma unha a mais, indicando ser um bom animal de
caça ou reprodutor); “seda branca” (bode reprodutor); “sussarana” (Suçuarana – mamífero
carnívoro, felídeo, comum em toda a América nos tempos coloniais. Sua coloração é
amarelo-avermelhada queimada, mais escura no dorso, amarelo-claro na parte ventral, seus
filhotes nascem pintados com manchas escuras no corpo, também conhecido como
puma)209; “ai roxo” (alho roxo, o alho roxo demora de 5 a 7 meses, enquanto as outras
lavouras demoram menos); “culhê” (colher, redução do infinitivo); “cum” (com); “trimina”
(termina – metaplasmo de transposição); “tuia” (forma vocalizada para tulha, grande arca
usada para guardar cereal.210 Trata-se também, na zona rural, de um cômodo da casa
utilizado como depósito para guardar ferramentas, sementes e suprimentos).
O poeta faz uso da variante211 sertânica de maneira consciente e com propriedade,
deixando claro a seu público o apreço que sente pelo idioma nacional, mas também sabe da
dificuldade que esse emprego pode gerar àqueles que não têm a vivência lingüística do
nordestino:

“(...) em face da dificuldade da compreensão das nossas estrofes, nossos


versos, uma vez que canto em linguagem dialetal sertaneza (sic), toda vez que eu
vou cantar uma canção assim de pouco conhecimento do público, eu costumo
fazer uma ligeira preleção para dar assim uma chave melhor para penetrar na
história que a gente tá propondo”. 212

209
Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d.
210
Idem, ibidem.
211
“Chama-se variação o fenômeno no qual, na prática corrente, uma língua determinada não é jamais, numa
época, num lugar e num grupo social dados, idêntica ao que ela é noutra época, em outro lugar e em outro
grupo social. (...) De acordo com L. Hjelmslev, a variante é uma forma de expressão diferente de outra quanto
à forma, mas que não acarreta mudança de conteúdo em relação a essa outra.” Em: DUBOIS, Jean et al.
Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 609.
212
Prólogo à apresentação da ária “Faviela” no CD Cantoria 3 – Elomar canto e solo. (apud, SIMÕES.
Darcília. “Elomar e a língua sertaneza”. V SENELEP, Erechim, RS, 2002).
As obras do autor apresentam um potencial expressivo em língua portuguesa
latente, que clama por desvendamentos, sem os quais a compreensão de uma simples
canção fica comprometida, o que exige do leitor-ouvinte uma postura ativa ante o ritmo,
musicalidade, construções, imagens e vocabulário. Sua forma de composição sintático-
lingüística e escolha lexical estão fortemente atreladas às opções temáticas. Quando a
opção temática recai no mundo do sertanejo, há utilização da forma dialetal213 sertaneja,
como já visto em “Arrumação”. Em cantigas cujo tema remonta ao medievo, trazendo
histórias de reis, donzelas e cavaleiros, e também nas de teor religioso, há
predominantemente presença da forma padrão da língua, expressões antigas e arcaísmos,
como se pode observar em “Cantiga de amigo”:

“Lá na Casa dos Carneiros onde os violeiros


vão cantar louvando você
em cantiga de amigo, cantando comigo
somente porque você é
minha amiga mulher
lua nova do céu que já não me quer.
Dezessete é minha conta
vem amiga e conta
uma coisa linda pra mim
conta os fios dos seus cabelos
sonhos e anelos
conta-me se o amor não tem fim
madre amiga é ruim
me mentiu jurando amor que não tem fim”

Nessa cantiga, são perceptíveis elementos de cunho medieval, sobretudo por meio
da escolha lexical, pois o cantador traz marcas da lírica trovadoresca, como nas cantigas de
amigo: “cantar”, “cantiga de amigo”, “amiga”, “mulher”, “madre”, “cabelos”, “anelos”. O
vocabulário usado aqui transita entre o arcaico e o palaciano; por exemplo, a palavra

213
“Dialetal: por oposição a corrente, clássico, literário, escrito, o adj. dialetal serve para caracterizar uma
forma de língua como variedade regional sem o status e o prestígio sócio-cultural da própria língua. (...) Uma
língua se dialetaliza quando toma, segundo as regiões onde é falada, formas notadamente diferenciadas entre
si; a noção de dialetação pressupõe a unidade anterior, pelo menos relativa, da língua em questão.” Op. cit.
DUBOIS, 1997. p. 183
“anelos” tem seu uso datado em 1657 e com pequena freqüência de utilização.214 Em outras
cantigas, encontram-se várias expressões e vocábulos eruditos, que também remontam à
Idade Média, como “donzela”, “murzelo”, “tresloucado cavaleiro andante”, “infindas
sendas”, “cerúleas regiões” e tantos outros. Assim, o poeta-cantador, por meio de
estruturas gramaticais normativas, seleção vocabular e temática voltada ao medievo,
demonstra requinte em seu texto, próprio de usuários da língua culta. 215

Esse modo particular de construir seus poemas, usando tanto a forma dialetal quanto
a culta, faz com que

“sua música seja como meio documentador e propagador da exuberância


da língua portuguesa, em especial a praticada nos sertões, para os quais quase
sempre resta apenas o rótulo de problema brasileiro, sintetizado na palavra seca.
Elomar faz jorrar a cultura do nordeste”216.

Segundo Darcília Simões, as atitudes quanto ao tratamento dado à língua e sua


criação em Elomar são muito semelhantes às de Guimarães Rosa, pois os dois artistas
possibilitaram que suas produções funcionassem como um

“registro da variedade idiomática nacional e documento histórico-


antropológico da cultura brasileira. Elomar, consciente de sua proposta artística,
apropria-se do material lingüístico disponível no Português do Brasil e, ao lado
do recolho de amostras de falas de brasileiros representantes dos mais esquecidos
rincões, renova a língua com construções neológicas, em que aproveita até
material pertencente às línguas aborígines que teimam em sobreviver no território
brasileiro, a despeito de ações modernizantes comprometedoras de nossa
cultura.”217

Encontram-se também, nos textos elomarianos, vocábulos de origem indígena e

214
Cf. Houaiss [s.u]
215
Op. cit. SIMÕES, 2006. p.36.
216
Op. cit. SIMÕES, 2006. p.18.
217
Idem, ibidem. p.18
africana, como a palavra “zagaia” (africanismo – azagaia com aférese – qualquer lança de
arremesso) e os versos “Uiúre iquê uatapí apecatú piaçaciara / Unheên uaá uicú arauaquí
ára uiúre Ianêiara” (formas indígenas218), na introdução da cantiga “O canto do guerreiro
Mongoió”, que desenvolverá a temática referente às origens dos primeiros povos que
habitaram Vitória da Conquista. Quanto aos neologismos, em outras cantigas, há
“cavandante” (cavaleiro + andante), “pantumia” (pan + latomia), “deserança” (des +
herança), “improibi” (não + proibir).
Vários metaplasmos sugerem evolução vocabular, manutenção de um estágio
arcaico da língua ou evolução fonética. No domínio lexical, ocorre um processo
denominado monotongação – resultado de uma tendência fonética histórica de apagamento
da semivogal nos ditongos crescentes ou decrescentes. Tal tendência já era observada no
latim vulgar. Observa-se esse processo, por exemplo, em “iscapô” (escapou); “trombetêro”
(trombeteiro). Também ocorre a desnasalação – apagamento do som nasal – “ofendêro”
(ofenderam). Encontra-se a epêntese, fenômeno que consiste em intercalar em uma palavra
ou grupo de palavras um fonema não etimológico por motivos de eufonia, de comodidade
articulatória, por analogia etc., como – “voiz” (voz), “péis” (pés). Verifica-se uma
recuperação do português arcaico, como “lũa” (luna), “intonce” (enton), “in” (em), “mili”
(mil), “homes” (homẽs). É possível apontar a ocorrência de anaptixe ou suarabácti –
epêntese especial que consiste no desfazer de uma dificuldade de pronúncia decorrente de
grupo consonantal ou travamento silábico, como em “irirmão” (irmão). Tem-se ainda a
aférese – supressão de fonema no início de vocábulo, a exemplo de “rubin” (querubim). A
vocalização das palatais, que trata de uma mutação fonética na aproximação articulatória
entre um fonema consonantal e um vocálico, via de regra, dá-se no contato com a vogal
palatal /i/, verificável em “fio” (filho), “chucaiá” (chocalhar), “tuia” (tulha). Em “istei”
(esteios) ocorre uma apócope, uma supressão de fonema no final do vocábulo..
No domínio dialetal, tem-se a redução da marca de plural – “dos ano”, “nas minha
andança”; redução do gerúndio – “ritirano” (retirando), “cantano” (cantando); opção pela
variante –im, em lugar de –inho: “camin” (caminho), “carrin” (carrinho); perda do travador
consonantal vibrante velar /R/ - “isperá” (esperar), “dô” (dor). Esses processos estão

218
Esses versos não são traduzidos por Elomar em nota explicativa presente no encarte do CD Na quadrada
das águas perdidas.
ligados à oralidade, revelando o uso espontâneo, familiar e “econômico” da língua. Jerusa
Pires Ferreira, na elaboração do encarte do CD Cartas catingueiras, discutindo o dialeto
utilizado por Elomar, explica:

“É no dialeto catingueiro que se constróem algumas destas cartas.


Sentem-se toda uma expressão captada e viva. É como falam as pessoas dali, e é
conforme se expressa, no dia a dia o corpo de personagens desta saga tão grande,
quanto à passagem de mil léguas a caminhar. Este dialeto não precisa de retoques
e se presta para comunicar com solenidade ou graça; não carece de mais atavios e
tanto expressa sutilezas da rotina como as tentativas de superar as limitações da
condição humana. Esta é a própria medida de quem, numa intensa procura de
conversão ao seu chão inicial, foi chegando àquele que seria a linguagem das
linguagens. É como registro de uma fala própria, um apoio na linguagem bíblica,
a partir de uma também espécie de “barroco brasileiro”, que paira na força da
grande tradição da letra ao ouvido”. 219

Por meio de tais recursos é possível traçar as preferências temáticas de Elomar,


documentar o uso de algumas formas regionais, outras eruditas e arcaicas, preservadas e
integradas ao universo expressivo do catingueiro, apontando o “perfil dos tipos humanos
representados pelos personagens que povoam a obra do trovador baiano”220. Importante
lembrar que a riqueza existente nas obras elomarianas não é expressa somente por criações
sintático-lingüísticas, que funcionam como uma ferramenta na criação de expressões
poéticas, mas também por carregarem, subjacentes, conteúdos sócio-histórico-culturais
amplos, fazendo de Elomar um artista singular, representante de sua região e partícipe do
“universo literário nacional”.221

219
FERREIRA, Jerusa Pires. Encarte do CD Cartas Catingueiras, 1982.
220
Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 25.
221
Op. cit, SIMÕES, 2002.
6. Conclusão

“Elomar concentra em si séculos de cultura que o sertão soube processar


a partir da tradição ibérica, e que entre nós se aclimatou, misturou, amalgamou-se
para formar a face mais profunda dos sentimentos nordestinos. Quando canta sua
aldeia, Elomar retrata antes de tudo a condição humana, os temas essenciais que
fazem a grande arte: a vida, a morte, o amor, o sofrimento, a esperança e o
incomensurável. As paisagens sertânicas, tão bem descritas em suas canções, são,
antes de tudo, o palco para que as forças primordiais que regem o drama da
existência possam se manifestar em toda sua plenitude. A seca como provação, a
fartura “nas águas” como renovação do ciclo da vida se integram, como pólos
diferentes, o mesmo tempo de espera e expiação. Movido pela necessidade
interior de retratar com maior densidade o drama da existência, e, especialmente,
a busca constante do diálogo humano com a divindade, Elomar Figueira Mello
foi se aproximando cada vez mais da cultura erudita, da música de concerto.
Porém, aqui mais uma vez se manifesta a genialidade do criador: não se trata de
imitar as formas já estabelecidas por seus grandes irmãos em arte como
Palestrina, Bach, Mozart ou Bethoven. As suas óperas, as suas cantatas, tomam
novamente como matéria-prima os seus próprios elementos culturais, a pátria do
sertão e o trânsito do sertanejo na diáspora, seu sonho, suas esperanças. São os
peregrinos errantes, arrancados da sua terra, em busca de paz e pão. É a nossa
própria tragédia cotidiana” 222.

A partir da citação acima, que resume com acuidade a arte de Elomar, discutem-se
alguns pontos para concluir essa Dissertação. Elomar, representante da cultura popular
brasileira, promove o livre trânsito entre erudito e popular, oral e escrito223, sem que haja
polarização de um ou outro termo, considerando as perspectivas assumidas neste trabalho.
Assim, compartilha-se das idéias de Paul Zumthor quando afirma que cultura popular
refere-se aos usos de determinados elementos e não a sua essência224.

“Na verdade, o que a palavra erudito designa é uma tendência, no seio


de uma cultura comum, à satisfação de necessidades isoladas da globalidade
vivida, à instauração de condutas autônomas, exprimíveis numa linguagem
consciente de seus fins e móvel em relação a elas; popular, a tendência a alto
grau de funcionalidade das formas, no interior de costumes ancorados na
experiência cotidiana, com desígnios coletivos e em linguagem relativamente
cristalizada.”225

Tomando-se o Auto da Catingueira como exemplo, tem-se como elemento erudito,


que atende a uma “necessidade isolada”, a ópera, e como elemento popular, todos os usos e
costumes que se mostram conhecidos, aceitos e praticados pelos nordestinos: crenças,
histórias, linguagem, gêneros de cantoria. No entanto, esses elementos não estão separados,
mas misturados a partir de seleções e adaptações efetuadas por contextos históricos
diferentes ao longo do tempo226. Segundo Elomar:

222
LISBOA, Cezar. “Elomar Figueira Mello – o canto mágico do sertão”. Jangada Brasil, abril 2001, Ano III,
nº 32.
223
Pode-se estabelecer semelhança entre Elomar e Ariano Suassuana, que recorreu e recorre a essa
ambivalência oral-escrito ao estabelecer fundamentos da arte poética armorial. Cf. SANTOS, 1999.
224
Consultar BATANY, Jean. “Escrito/oral”. In : LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário
temático do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v1. p. 383-
395.
225
Op. cit. ZUMTHOR, 2001. p. 118-119.
226
A respeito do conceito de “Cultura intermediária”, consultar FRANCO JR, Hilário. “Meu, teu, nosso –
reflexões sobre o conceito de cultura intermediária”. In: A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São
Paulo: Edusp, 1996. p. 35-41.
“Tem gente que acha que minha música é popular, tem gente que acha
que é regional, outros acham que é erudita. Minha música não é popular, ela está
situada entre o erudito e o regional, pois o regional, quando é puro, tende à
universalização. (...) Mas a música regional, do universo que faço parte, é aquela
que não é urbana e que traduz os sentimentos mais ligados à vida campestre: as
tragédias, os romances, as dificuldades pela sobrevivência. Via de regra, o que
impera é o meteorológico em si, a seca, a enchente, as retiradas.”227

Segundo Idelette Santos, para o termo “popular” existem inúmeras definições;


entretanto, todas elas pressupõem a complexidade da palavra “povo” – o que é relativo ao
povo, feito pelo povo ou amado pelo mesmo. Assim, encontra-se uma “noção movediça”
para o termo. Citando-a:

“(...) a emergência de uma expressão popular na literatura manifesta-se


como fato literário: concretiza-se pela presença de romances ou cantos
tradicionais citados numa obra letrada, pelo papel poético e social assumido pelo
cantador num romance, pelo reconhecimento de um poeta erudito de sua dívida
com o cantador etc”. 228

E acrescenta:

“A maior originalidade da literatura popular nordestina reside, sem


dúvida, no intercâmbio estreito e permanente que se estabelece entre expressão
oral e escritura”. 229

Jerusa Pires Ferreira corrobora as idéias de Idelette, citando diretamente o caso de


Elomar:

227
Entrevista a Fausto Mattos Silva, em setembro de 1994. In: SILVA, F. M. “Música regional e indústria
cultural”. Monografia apresentada no curso Relações Públicas, nas Faculdades Salvador. Salvador, dezembro
de 1994.
228
Op. cit. SANTOS, 1999. p.17.
229
idem, ibidem, p.19.
“Não se trata de construir pontes e relações como costumamos ouvir, e
sobretudo em outros casos, entre o erudito e o popular, mas é como uma travessia
interferente. É o grande texto oral de milênios. Escuta que transfigura elementos,
porções, segmentos e as remete, de novo, a um resultado da forma mais excelente
e elaborada. Aí tudo é perfeito e ressoa como se escutássemos ecos. Idade Média?
Sim e não. Porque há antes de tudo a força do dia a dia do sertão, suas práticas,
seus ritos, seus fazeres. Mas há o cancioneiro galaico-português, o mundo árabe e
judaico, o discurso bíblico, o universo e a gesta dos ciganos, seus mistérios, e a
presença forte de sua linguagem musical.” 230

Ao analisar as composições elomarianas, relacionando-as às citações acima,


percebe-se que é importante observar o intercâmbio entre diferentes elementos, pois aí
reside o fulcro da produção. Os estudos de Peter Burke apontam para essa noção,
mostrando que cultura é “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as
formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que eles são expressos ou
encarnados”231. Burke, ainda, chama atenção ao fato de estudar a cultura a partir da
interação entre culturas do povo e culturas da elite, não optando pela divisão, uma vez que a
fronteira entre elas é vaga. Introduz o conceito de “subcultura”, entendida como “um
sistema de significados partilhados; entretanto, as pessoas que participam dela também
partilham os significados da cultura em geral”232. Assim, existem muitas culturas populares
ou muitas variedades de cultura popular.
Tem-se, no Brasil, um histórico de colonização marcante, que legou à cultura a
mescla de elementos ibéricos, africanos, indígenas, árabes, que podem ser relacionados à
Idade Média, principalmente porque há uma “voz” que sustenta as permanências, as
continuações e as transformações desses elementos. Há um canto ancestral que relembra
fortemente os trovadores, não só pelo modo de trovar, mas por sua função dentro da
sociedade, e hoje nossos cantadores se apresentam como tais; nos temas abordados nas
manifestações artísticas – histórias tradicionais, relatos sobrenaturais, a crença em Deus, a

230
FERREIRA, Jerusa Pires. “Encontrando as Cartas catingueiras”. In: MATOS, C. N.; TRAVASSOS, E.;
MEDEIROS, F.T. de. Ao encontro da palavra cantada: poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.
p.171.
231
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna – Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. p.15.
232
Idem, ibidem, p.69.
espera pelo momento do Juízo Final, o uso de palavras arcaicas e vocábulos próprios,
preenchendo o imaginário nordestino com as justas (relidas no desafio entre Chico das
Chagas e o cantador do nordeste, em nome da honra da dama, a Dassanta), histórias de
princesas, reis, cavaleiros – elementos estes encontrados nas produções analisadas nessa
Dissertação.
Elomar Figueira Mello, inegavelmente, após a apresentação e discussão de suas
obras, pode ser considerado um caso particular da cultura brasileira. Representa, ou
expressa, sem dúvida, o Brasil, no que tange a aspectos sócio-histórico-culturais. O
primeiro argumento que explica essa afirmação é a interpenetração das esferas popular e
erudito, oral e escrito, regional e universal, salientada nos parágrafos anteriores. Um
segundo argumento é seu processo de criação lingüística, um processo artesanal, que
consiste em esculpir os sentidos por meio de ludicidade, plasticidade, atualização e
observação. Rachel de Queiroz depõe:

“Só comparo o Suassuna no Brasil a dois sujeitos: a Vila-Lobos e a


Portinari. Neles a força do artista obra o milagre da integração do material
popular com o material erudito, juntando lembrança, tradição e vivência, com
toque pessoal de originalidade e improvisação.
A tendência de muitos será comparar Suassuna a Guimarães Rosa. Para
mim, não. Rosa era um inventor de pessoas e palavras, inclusive de nomes
próprios; criador de um idioma novo, às vezes belíssimo – mas evidentemente
manufaturado por ele no seu laboratório. Já Suassuna, a sua língua existe, existiu
sempre; pode ser em momento arcaica e preciosa, dando a impressão de
inventiva; porém tudo ali são palavras que hoje ou ontem, o uso poliu e afeiçoou;
e se a sua sintaxe não é a oficial, também não foi composta em banca de trabalho,
visando o efeito eufônico ou poético. É a sintaxe tradicional, poético-coloquial-
declamatória-literária a que recorrem os cantadores e repentistas e os contadores
de romances – naturalmente transfigurada pelo trato que Suassuna lhe dá”.233

Certamente, se Rachel de Queiroz tivesse tido acesso à obra elomarina, incluiria


Elomar nesta comparação, pois ele atende a todos os critérios de valorização da escritora.

233
QUEIROZ, Rachel. “Um romance picaresco?. In: SUASSUNA, A. Romance d’A pedra do reino e o
príncipe do sangue do vai-e-volta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p.16.
O emprego lexical, bem como suas expressões poéticas, que conferem plasticidade à
obra, parecem confirmar uma brasilidade tênue ao ser fiel na explicitação do sertão
nordestino. Dessa forma, por meio da criação de um idioleto234, Elomar expressa sua arte,
com empenho à palavra, estabelece vínculos que atam a sociabilidade, pois a linguagem
literária não apresenta uma estrutura fixa, o artista é:

“livre para escolher e criar uma estrutura própria que proporcione a ele
uma clara expressão de seus sentimentos e idéias. Assim, construindo o texto de
acordo com seus próprios desejos, o escritor consegue que sua criação tenha um
novo valor – passa da simples utilização comunicativa da linguagem a uma
utilização artística da mesma (...). A linguagem passa a ter ‘sabor’”.235

Umberto Eco, que discute a idéia de idioleto, código próprio adotado e criado por
um indivíduo, afirma que este pode causar o efeito de estranhamento nos leitores que não
estão familiarizados com a obra. É o que acontece no caso de Elomar. Entretanto, Eco
ressalta que “o fim da imagem não é tornar mais próxima da nossa compreensão a
significação que veicula, mas criar uma significação particular do objeto”236. É aí que
reside a beleza das composições elomarianas e seu caráter singular, pois o procedimento
acaba re-significando elementos comuns do modo de vida do sertanejo, transpondo-os para
a universalidade.
Assim, Elomar, transitando por variedades lingüísticas – sertânicas, arcaicas,
poéticas, neológicas, com as quais dá voz a seus personagens –, por diversos gêneros –
dramático, lírico e épico –, pelo erudito e popular, por elementos do imaginário medieval,
pelo oral e pelo escrito, mescla saberes e sabores distintos, conferindo a sua obra uma
intensa completude, trazendo à tona elementos que:

“dão relevo à nossa paisagem cultural. (... ) Num misto de romântico –


cuja estética alia uma busca das fontes e origens nacionais – e moderno, a obra de

234
Idioleto entendido como um “conjunto dos enunciados produzidos por uma só pessoa, e principalmente as
constantes lingüísticas que lhes estão subjacentes e que consideramos como idiomas ou sistemas específicos;
o idioleto é, portanto, o conjunto dos usos de uma língua própria de um indivíduo, num momento determinado
(seu estilo)”. Op. cit. DUBOIS, 1997, p. 329.
235
AMORIM, A.R. “A literatura em busca de um conceito”. Urutaguá. Revista da Universidade Estadual de
Maringá, Ano I, nº 2, julho de 2001.
236
ECO, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 71.
Elomar re-busca a paisagem cultural brasileira, cantando-a, ora com a
ingenuidade – por exemplo, cruzando variedades lingüísticas - e a pureza do
caipira sertanejo, ora com a eloqüência do poeta que conhece os clássicos da
literatura universal e que se embebe das fontes mitológicas e míticas que
emolduram a religião”.237

Um conjunto vasto e complexo de manifestações tradicionais, orais ou escritas –


autos, óperas, cantigas, antífonas, cantorias, romances, crenças e saberes – impõe-se por
meio das obras de Elomar. Assim, percebe-se a heterogeneidade, a pluralidade do Brasil em
termos culturais, possuidor de uma categoria de artista, incluídos Elomar e Ariano Suassuna
que, segundo Idelette Santos, referindo-se a Suassuna:

“em vez de se limitar a um regionalismo ou nacionalismo estreitos,


incentiva a uma viagem dentro das culturas brasileiras. O nacionalismo apresenta-
se, então, como uma busca da diferença, da multiplicidade cultural, e não como
uma exaltação unanimista nostálgica.”238

Nesse aspecto, acredita-se que o Brasil, de há muito, abandonou a idéia de um


saudosismo ou de um patriotismo utópico ao buscar sua identidade nacional e cultural,
herança dos intelectuais românticos, que viam no índio o elemento puramente brasileiro e
representativo do país239. Acredita-se que a identidade cultural deva ser estabelecida com o
que é corrente no país, com os meios disponíveis, com elementos e artistas com os quais a
comunidade possa se identificar, criando assim uma cultura original, ainda que feita com
elementos de raízes ibéricas, árabes, gregas, européias e outras, pois a peculiaridade está no
modo como o material foi recriado, adaptado, lido, expresso; nas transformações e nas
“seleções conscientes” ou inconscientes feitas pelos indivíduos – atos importantes
enfatizados por Peter Burke em seus estudos a respeito de diversidade cultural, nos quais

237
Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 32 e 35.
238
Op. cit. SANTOS, 1999. p. 285.
239
A respeito do assunto, consultar ORTIZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. São Paulo:
Olho Dágua, 1985.
defende a idéia de “viagem circular” de temas e fontes, mostrando que o que retorna jamais
é o mesmo que partiu”240.
A obra de Elomar é um amálgama, já que perpassa por diversos movimentos
literários: Barroco, Romantismo e Regionalismo. Isso é possível, já que

“(...) as épocas históricas não se separam umas das outras segundo


contornos nítidos, mas interpenetram-se, imbricam-se, à maneira das manchas de
óleo, pois os sistemas de normas que regulam sua vida não começam e acabam de
maneira abrupta”.241

Tem-se muito de Barroco, fato que o liga à Idade Média. Ao evidenciar o


imaginário religioso do sertanejo, Elomar trabalha com traços fortemente marcantes da
época em questão – nostalgia da religiosidade medieval, legitimidade da palavra bíblica,
ascetismo, dualismo, oposição, tensão, busca por uma vida no céu, desprezo pela vida na
terra, vista apenas como passagem e humanização do sobrenatural. Apresenta o catingueiro
como um peregrino que caminha por terras inóspitas, com o intuito de remir suas falhas,
mantendo-se crente às palavras das Sagradas Escrituras, temente a Deus e esperançoso por
alcançar o Reino dos Céus. Nesse caminhar, o poeta-peregrino-catingueiro revela práticas e
crenças que compõem a espiritualidade do mundo do sertão.
Para Werneck Sodré, o período colonial deixou marcas profundas na formação
histórico-econômico-cultural do Brasil, legando ao país um caráter eminentemente rural242,
o que torna esse solo fértil para receber elementos que compuseram o imaginário medieval.
Termina-se esse trabalho sem esgotar o assunto, que é bastante amplo e complexo,
concluindo-se que a identidade brasileira é formada a partir da unidade na diversidade, pois
há “pluralidades” de cultura, ou seja, existem vários conjuntos de valores espirituais e
materiais acumulados através dos tempos, integrando o patrimônio histórico. Conhecendo,
analisando e valorizando as produções elomarianas é possível enriquecer a História cultural
do Brasil.

240
BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 193.
241
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil – Era barroca e era neoclássica. São Paulo: Global, 1997. v3.
p.15.
242
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