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divíduo comum, não porque seja mais fiel evidente como o sistema de angulações com-
aos fatos, mas porque tem a marca pesso- binadas que caracteriza a gramática audio-
al, constituindo um esforço voltado para a visual é determinante para assegurar uma
construção da memória, da identidade e
do sentido (Figueiredo, 2009, p. 138).
nova visão do conteúdo apresentado. A au-
sência do corte – instrumento que ao mesmo
A audiência considerável desses vídeos tempo marca a onividência da representação
em sites como o YouTube, o uso dos registros multiangulada e a quebra de sua transparên-
amadores no telejornalismo e a incorpora- cia – torna-se fundamental para compreen-
ção de seus códigos em filmes de ficção sur- der a retórica do plano-sequência das ima-
gem, olhando por outra chave, como um im- gens amadoras. Este equacionamento entre
pulso de religação com o autêntico, o mundo corte e transparência fica ainda mais claro
empírico no seu estado bruto. quando tomamos como exemplo as peculia-
Neste texto, investigamos a apropriação ridades da transparência cinematográfica.
dos registros audiovisuais amadores por dois O cinema – e o telejornalismo ao seu
objetos distintos: o telejornalismo (isto é, a modo – tem como pressuposto a montagem,
inserção, nas tele-reportagens, de flagrantes que, em tese, trabalharia contra qualquer
captados por anônimos como documento pretensão naturalista. Mas, como argumenta
visual do ocorrido); e o filme de ficção (onde Xavier (2005, p. 30):
surgem como referência a uma estética da
A sequência de imagens, embora apresente
proximidade). Em ambos os casos, este novo descontinuidades flagrantes na passagem
realismo centrado na expressão individual de um plano para o outro, pode ser acei-
e na subjetividade marcada funciona como ta como abertura para um mundo fluente
modo de intensificar os efeitos sensíveis, tra- que está do lado de lá da tela porque uma
zendo para próximo o espectador graças ao convenção bastante eficiente tende a dis-
solver a descontinuidade visual numa con-
estatuto de registro pessoal e algo íntimo. A
tinuidade admitida em um outro nível: o
aproximação com a forma do diário é clara e da narração.
tal qual a forma moderna de registro pessoal
as relações entre interioridade e publicidade Este efeito é conseguido por conta de um
são intensas e complementares. Os registros encadeamento que tende a naturalizar as
amadores em vídeo trazem à tona a marca sequências de imagens apresentadas, crian-
pessoal do sujeito. A eficácia deste recurso do uma integridade no universo apresenta-
retórico se dá justamente porque esses regis- do. Daí, também, a importância das regras
tros opõem à transparência anêmica – esta de continuidade. Um erro na continuidade
sim destituída de clamor psicológico – das deflagra o artificialismo da homogeneidade
imagens tecnicamente perfeitas do telejor- e da integridade fabricadas. No cinema, o
nalismo e do cinema de ficção. cuidado na combinação destas e de outras
A retórica das imagens amadoras ativa diretrizes e o rigor com que elas são seguidas
outras significações e propõe outra visão de constituiu a decupagem clássica. Da obser-
mundo. Como destaca Danto (2010), a re- vação sobre a decupagem de Xavier (2005),
tórica tem como uma de suas funções pri- retemos ainda a questão da sedimentação
mordiais induzir o público (neste caso os es- histórica: a impressão de transparência é
pectadores) a tomar determinada atitude em constituída lentamente graças ao seu uso
relação ao assunto ao qual se refere, “isto é, discriminado ao longo do tempo por uma
fazer com que as pessoas vejam a matéria em série de filmes.
questão sob determinado ângulo” (p. 244). O telejornalismo, ao seu modo, criou
Trazendo a questão para o nosso objeto, fica também uma estética da transparência ba-
seada na montagem, com o repórter atuan- filme Cloverfield 1 pode ser facilmente apre-
do como uma espécie de narrador do fato, endida, as diferenças discursivas entre am-
narração empiricamente validada pelas se- bos não são tão evidentes. Há uma flagrante
quências de imagens apresentadas depois diferença ontológica: o mundo enquadrado
das passagens ou nas narrações em off. Por pelo amador é dado a priori e o mundo do
um tempo, como a decupagem clássica, esta filme é uma realidade fictícia (no sentin-
“decupagem jornalística” conseguiu criar sua do de construída, pois ela também contém
própria visão da realidade. Contemporane- elementos do mundo empírico-factual). No
amente, atendendo os apelos cada vez mais entanto, essa diferença não alcança a políti-
fortes de imediação, as filmagens amadoras ca das imagens. Em Cloverfield, a emulação
acabaram por constituir, com sua retórica, do registro amador passa pela enunciação
uma nova forma de transparência. de um sujeito identificado, de fato, a vários
Como toda retórica, esta dos vídeos ama- sujeitos. Há o reconhecimento de um autor
dores angaria seu poder, em parte, da denún- que imediatamente altera a relação aventa-
cia da falsidade das outras visões de mundo. da de visibilidade. Reconhecer um autor é,
Ao retomar o plano sequência e apresentá-lo em termos de política da imagem, assegurar
como forma ótima de reproduzir a realida- uma subjetividade humana que podemos li-
de, estas imagens denunciam o artificialismo gar imediatamente ao testemunho.
da decupagem jornalística tradicional. Deste A testemunha anônima dos vídeos ama-
modo, são um autêntico pharmakon, um re- dores, por sua vez, se não retira a credibili-
médio para a desconfiança com a retórica do dade da narração – pois esta é garantida pelo
telejornalismo e um veneno para a sua anti- automatismo da câmera e pelos dispositivos
ga transparência. Isto porque, em tese, nada técnicos elencados – desliga o conteúdo de
se aproximaria tanto da realidade como o sua biografia. Este desligamento, para Ran-
plano-sequência, pois nele abre-se mão da cière (2010), será fundamental para decifrar o
ubiquidade da câmera que tudo pode ver em sistema de informações das nossas sociedades
função de uma subjetividade. A imagem pro- permeadas de imagens. Para ele, mais do que
jetada busca a coincidência com a visão hu- respeitar uma lógica de acumulação, a socie-
mana, ressaltando o caráter único e subjetivo dade das imagens trabalha por subtração:
do acontecimento para cada pessoa que vê,
Funciona selecionando os seres falantes e
já que “não é concebível ‘ver e ouvir’ a reali-
racionais, capazes de ‘decifrar’ o fluxo de in-
dade no seu acontecer sucessivo senão de um
formação que concerne às multidões anôni-
único ângulo visual de cada vez: e este ângulo
mas. A política própria destas imagens con-
visual é sempre de um sujeito que vê e ouve.”
siste em nos ensinar que nem qualquer um é
(Pasolini, 1982, p. 193). Enquanto acontece
capaz de ver e falar. (Rancière, 2010, p. 97).2
na forma do plano-sequência, a imagem fo-
O uso contínuo das imagens amadoras
tográfica resiste a significação, ela reproduz,
nos telejornais mostra que eventualmente
nos termos de Pasolini (1982), a linguagem
é dado aos anônimos o privilégio da visão
da realidade desenrolando-se como sucessão
(pois o visto por eles é usado), mas jamais
de acontecimentos vistos de um único ponto
de vista. 1
Cloverfield (Estados Unidos, 2008), dirigido por Matt Ree-
ves. A narrativa – na qual um monstro aparece subitamente
na cidade de Nova York – é toda filmada na perspectiva dos
Naturalismo e convenção personagens, que carregam uma câmera portátil originalmente
usada para documentar a festa de despedida do protagonista,
Se a nível formal (enquadramentos in- prestes a se mudar para o Japão. A gravação que vemos é, su-
postamente, o cartão de memória da câmera portátil, encon-
certos, falta de foco, câmera trêmula etc.) a trada pelo exército dos Estados Unidos.
similaridade entre os vídeos amadores e o 2
Tradução nossa.
a posse do discurso. A narração em off que ce as imagens, ele deve ser atualizado para
se sobrepõe às imagens torna-se o reconhe- esta estética específica. Em primeiro lugar,
cimento de que, se existe alguma validade o observador invisível se dá a ver (a menos
naquele testemunho, ela se concentra na em termos de simulação, uma vez que o efe-
proximidade do fato. O fato mostrado deve tivo aparato que grava as imagens não vai
ser complementado pelo discurso daquele ser mostrado), ele adquire uma identidade
que detém as condições de falar, isto é, o e uma imagem. Mais do que uma imagem e
jornalista. O falar do jornalista, por vias es- uma identidade, ele subdivide-se em várias
pecíficas, efetivamente se sobrepõe às ima- identidades e imagens, há uma alternância
gens, isto é, se coloca por cima, em um nível de enunciadores que permite a comunhão
hierárquico superior. Nos registros amado-
res, o testemunho acaba por se enredar em
um dispositivo que o engloba. O jornalista Ainda que suavizado
ou apresentador que vai narrar as imagens pelas intervenções
usa um texto impessoal, neutro e pretensa- editoriais, o vídeo
mente imparcial. Esta dessubjetivação do amador surge como
conteúdo acaba por contribuir para demar- um fragmento potente
car fortemente as hierarquias discursivas.
na composição de
Parece haver, portanto, uma importante di-
ferença retórica a ser retida. uma tele reportagem
Os anônimos que nos permitem ver o
mundo por sua ótica, apesar de não serem
mais apenas objetos do nosso olhar, conti-
nuam em larga escala dependentes da nossa da palavra com a imagem. Os personagens
retórica. Ao produzir imagens eles mesmos, tornam-se, deste modo, sujeitos e objetos,
os anônimos ensejam fazer visível a sua sub- sendo dado a eles o poder de efetivamente
jetividade; mas sem a palavra, sem a retórica testemunhar. Ao fazer este vai e vem, o filme
do texto, seu testemunho acaba por reforçar reafirma a importância de um texto para
a partilha das sensibilidades, continuamos qualquer imagem. Ao comentar as imagens
a ver “demasiados corpos que são objetos que eles mesmo produzem, os personagens
da palavra sem ter eles mesmos a palavra”.3 garantem àquelas imagens uma retórica
(Rancière, 2010, p. 97). que inclui o testemunho, a subjetividade, o
Coincidentemente, no filme Cloverfield indivíduo.
as imagens amadoras vêm daqueles que es- Delimitado o escopo discursivo do rea-
tão acostumados ao privilégio da palavra na lismo no filme, resta ponderar sua potência
nossa sociedade. Talvez por conta disso, eles de verossimilhança. Em Cloverfield, a esté-
não apenas registrem o fato por meio da tica do amadorismo visa justamente trazer
câmera, mas também se colocam na frente autenticidade e provocar um efeito de real
dela para emitir suas opiniões. Para a narra- que contrabalança a inverossimilhança da
tiva, tão importante quanto as imagens cap- trama (um monstro gigante atacando Nova
tadas pelas testemunhas de fatos inusitados York). Apesar de claramente ficcional, o fil-
é o depoimento das testemunhas. Se há de me trabalha dentro de uma proposta um
fato neste filme um observador invisível tanto naturalista. Aquelas imagens supos-
(com todas as implicações antropocêntricas tamente seriam as conseguidas por pesso-
que este conceito pressupõe) que nos forne- as comuns se um monstro atacasse a cida-
de. Vê-se claramente a tentativa de apagar
3
Tradução nossa. a marca da mediação do diretor e de todo
dos quais de classes mais baixas. Mas tal voz comunicação, os jornalistas, o mercado pu-
aparecia de forma tímida, enquadrada por blicitário, os diversos poderes públicos e, em
um discurso cujo enunciador é a empresa jor- alguma medida, o público espectador). O
nalística. A presença do registro amador não filme de ficção aqui analisado, que se vale da
modifica em nada a política dessas imagens, simulação do registro amador como recurso
reguladas por parâmetros estéticos, morais e estético, remete ao mesmo tipo de conclusão:
deontológicos construídos e consensados pe- a de que a mera incorporação da linguagem
las instituições e atores de alguma forma en- ou dos próprios vídeos amadores não signifi-
volvidos na produção, veiculação e recepção ca a adoção da perspectiva do outro.
dos conteúdos do telejornal (as empresas de (artigo recebido mar.2014/aprovado mai.2014)
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