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A apropriação da estética do amador


no cinema e no telejornal

Felipe da Silva Polydoro


Doutorando no Programa de Meios e Processos
Audiovisuais da ECA-USP e Mestre em
Comunicação pela PUC-RS
E-mail: felipepolydoro@gmail.com

Bruno Simões Costa


Doutor em Comunicação pela PUC-RS
Professor associado da PUC-MG e docente
da Pós-graduação em Jornalismo
Cinematográfico da UNA
Resumo: Neste artigo, investigamos a apropriação dos regis- E-mail: brunocscosta@gmail.com
tros amadores por dois objetos distintos: o telejornalismo (a
inserção, nas tele-reportagens, de flagrantes captados por anô-
nimos como documentação visual do ocorrido); e o filme de
ficção (a adoção da linguagem rudimentar do amador como
artifício realista). Constatamos que, apesar de constituir uma
tendência crescente, tal apropriação não vem acompanhada,
necessariamente, da adoção de um ponto de vista do outro.
Palavras-chave: Estética do amador, realismo, cinema, telejor-
nalismo

La apropiación de la estética del aficionado en el cine y en las A enunciação do anônimo


noticias de la televisión
Resumen: En este trabajo se investiga la apropiación de los ví- A produção, a circulação e o consumo in-
deos amateurs en dos objetos distintos: el teleperiodismo (la
inserción, en las noticias, de flagrantes capturados por anóni- tensivos de vídeos digitais amadores refletem
mos como documentación visual de los eventos), y la película novas práticas sociais, políticas e comunica-
de ficción (la adopción de la lenguaje del amateur como arti-
ficio realista). Percibimos que, aunque una tendencia cada vez
cionais – e impactam a linguagem de muitos
mayor, esta apropiación no se acompaña, necesariamente, de objetos midiáticos. A abundância desses re-
un punto de vista del otro. gistros audiovisuais vincula-se, é claro, à pro-
Palabras clave: Estetica amateur, realismo, cinema, teleperio-
dismo. liferação de equipamentos eletrônicos dota-
dos de câmeras (telefones celulares, tablets,
The appropriation of the amateur’s esthetics in movies and on
television news
notebooks, câmeras digitais) e à presença de
Abstract: In this article we investigate the appropriation of uma plataforma, o ciberespaço, que permite
amateur records by distinct objects: TV newscast (the use of a tais imagens circularem de maneira veloz
anonymous amateur videos on News broadcasting as a visual
record); and fiction movies (the use of rudimentary amateur e ininterrupta e, de certa forma, incontro-
language as a realistic pretense). We also realize that, despite its lável. Afora os condicionamentos de ordem
growing use by the media, that appropriation does not neces-
sarily adopt the point of view of the other.
tecnológica, que jamais podem ser pensados
Keywords: Amateur aesthetics, realism, cinema, TV Newscast. isoladamente, trata-se de um fenômeno ima-

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gético situado em um contexto de problema- Percebe-se nos vídeos amadores, produto de


tização das noções contemporâneas de real, sujeitos nascidos e crescidos em uma cultu-
de verdade e de representação, cujas implica- ra midiática, particularidades de linguagem
ções englobam campos variados. como enquadramento e movimento de câ-
Antes quase que restritos aos chamados mera que não diferem essencialmente das
filmes de família ou filmes caseiros, primeiro convenções consolidadas pelo cinema e pela
em película e depois nas então mais dissemi- televisão. Na verdade, a situação é ainda mais
nadas câmeras VHS, os registros audiovisu- complexa, uma vez que, desde pelo menos o
ais amadores hoje existem potencialmente início dos anos 90, o cinema adapta manei-
em qualquer lugar com a presença de um ser rismos de filmes caseiros na busca de novos
humano dotado de um celular. E tal imagem códigos realistas – apropriação que, numa
dinâmica retroalimentar, também influencia
a produção, a apropriação e a recepção dos
O cinema – e o telejor- vídeos digitais amadores que se proliferaram
nalismo ao seu modo – sobretudo a partir dos anos 2000.
tem como pressuposto A retroalimentação percebida pela apro-
a montagem, que, em priação estética e mesmo pelo uso dos pró-
tese, trabalharia prios vídeo amadores não deixa de ser um
sintoma daquilo que Sodré (2002) chama
contra qualquer de bios midiático, toda uma esfera de ações
pretensão naturalista regidas sob a tônica da midiatização. Esta
relação, destacada aqui em sua capacidade
de aproximação, cumpre também, dialetica-
mente, o caminho oposto. Pois os modos de
– seja uma fotografia, seja um vídeo – poderá narrar midiático não deixam de ser um afas-
entrar imediatamente em circulação no cibe- tamento do mundo graças às inúmeras me-
respaço através de conexão sem fio à inter- diações que se interpõem entre o sujeito e o
net. Nesta nova e sempre mutante economia mundo graças àquilo que Figueiredo (2009)
da atenção, vídeos produzidos de forma não- chama de “jogo interno de remissões de um
-profissional, por vezes agudamente rudi- espetáculo para outro.” Seguindo na perspec-
mentares, expostos e exibidos no Youtube ou tiva apontada, compreende-se a emergência
em redes sociais como o Facebook, disputam destes relatos a partir de uma necessidade de
audiência com os programas de televisão, o afirmação discursiva que, simultaneamente,
cinema e outros produtos audiovisuais ins- autoriza uma nova espécie de realismo. Se as
titucionalizados – que, por sua vez, mimeti- mediações acabam por colocar uma capa de
zam a estética de tais imagens ou apropriam- ficção em todo o mundo e, com isso, fazem
-se dos próprios vídeos como matéria-prima balançar a antiga transparência – agora vista,
na composição de narrativas. também pela onipresença do midiático, com
Há uma complexidade de ordem dialé- desconfiança – abre-se espaço para a chama-
tica na política dessas imagens: de um lado, da autoficção.
o caráter democrático e a valorização da he-
terogeneidade que acompanha a explosão [A autoficção] mantém o elo com o real em
do acesso à enunciação, combinado com a função de seu atrelamento à voz que narra,
de sua autorreferencialidade, em contraste,
descentralização no controle sobre o fluxo
por exemplo, com o anonimato das redes
dos objetos midiáticos; de outro, a inevitável comunicacionais ou com a virtualidade
adequação, consciente ou não, dos registros da imagem. Em meio à guerra de relatos,
audiovisuais anônimos às formas instituídas. toma-se partido daquele que parte do in-

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divíduo comum, não porque seja mais fiel evidente como o sistema de angulações com-
aos fatos, mas porque tem a marca pesso- binadas que caracteriza a gramática audio-
al, constituindo um esforço voltado para a visual é determinante para assegurar uma
construção da memória, da identidade e
do sentido (Figueiredo, 2009, p. 138).
nova visão do conteúdo apresentado. A au-
sência do corte – instrumento que ao mesmo
A audiência considerável desses vídeos tempo marca a onividência da representação
em sites como o YouTube, o uso dos registros multiangulada e a quebra de sua transparên-
amadores no telejornalismo e a incorpora- cia – torna-se fundamental para compreen-
ção de seus códigos em filmes de ficção sur- der a retórica do plano-sequência das ima-
gem, olhando por outra chave, como um im- gens amadoras. Este equacionamento entre
pulso de religação com o autêntico, o mundo corte e transparência fica ainda mais claro
empírico no seu estado bruto. quando tomamos como exemplo as peculia-
Neste texto, investigamos a apropriação ridades da transparência cinematográfica.
dos registros audiovisuais amadores por dois O cinema – e o telejornalismo ao seu
objetos distintos: o telejornalismo (isto é, a modo – tem como pressuposto a montagem,
inserção, nas tele-reportagens, de flagrantes que, em tese, trabalharia contra qualquer
captados por anônimos como documento pretensão naturalista. Mas, como argumenta
visual do ocorrido); e o filme de ficção (onde Xavier (2005, p. 30):
surgem como referência a uma estética da
A sequência de imagens, embora apresente
proximidade). Em ambos os casos, este novo descontinuidades flagrantes na passagem
realismo centrado na expressão individual de um plano para o outro, pode ser acei-
e na subjetividade marcada funciona como ta como abertura para um mundo fluente
modo de intensificar os efeitos sensíveis, tra- que está do lado de lá da tela porque uma
zendo para próximo o espectador graças ao convenção bastante eficiente tende a dis-
solver a descontinuidade visual numa con-
estatuto de registro pessoal e algo íntimo. A
tinuidade admitida em um outro nível: o
aproximação com a forma do diário é clara e da narração.
tal qual a forma moderna de registro pessoal
as relações entre interioridade e publicidade Este efeito é conseguido por conta de um
são intensas e complementares. Os registros encadeamento que tende a naturalizar as
amadores em vídeo trazem à tona a marca sequências de imagens apresentadas, crian-
pessoal do sujeito. A eficácia deste recurso do uma integridade no universo apresenta-
retórico se dá justamente porque esses regis- do. Daí, também, a importância das regras
tros opõem à transparência anêmica – esta de continuidade. Um erro na continuidade
sim destituída de clamor psicológico – das deflagra o artificialismo da homogeneidade
imagens tecnicamente perfeitas do telejor- e da integridade fabricadas. No cinema, o
nalismo e do cinema de ficção. cuidado na combinação destas e de outras
A retórica das imagens amadoras ativa diretrizes e o rigor com que elas são seguidas
outras significações e propõe outra visão de constituiu a decupagem clássica. Da obser-
mundo. Como destaca Danto (2010), a re- vação sobre a decupagem de Xavier (2005),
tórica tem como uma de suas funções pri- retemos ainda a questão da sedimentação
mordiais induzir o público (neste caso os es- histórica: a impressão de transparência é
pectadores) a tomar determinada atitude em constituída lentamente graças ao seu uso
relação ao assunto ao qual se refere, “isto é, discriminado ao longo do tempo por uma
fazer com que as pessoas vejam a matéria em série de filmes.
questão sob determinado ângulo” (p. 244). O telejornalismo, ao seu modo, criou
Trazendo a questão para o nosso objeto, fica também uma estética da transparência ba-

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seada na montagem, com o repórter atuan- filme Cloverfield 1 pode ser facilmente apre-
do como uma espécie de narrador do fato, endida, as diferenças discursivas entre am-
narração empiricamente validada pelas se- bos não são tão evidentes. Há uma flagrante
quências de imagens apresentadas depois diferença ontológica: o mundo enquadrado
das passagens ou nas narrações em off. Por pelo amador é dado a priori e o mundo do
um tempo, como a decupagem clássica, esta filme é uma realidade fictícia (no sentin-
“decupagem jornalística” conseguiu criar sua do de construída, pois ela também contém
própria visão da realidade. Contemporane- elementos do mundo empírico-factual). No
amente, atendendo os apelos cada vez mais entanto, essa diferença não alcança a políti-
fortes de imediação, as filmagens amadoras ca das imagens. Em Cloverfield, a emulação
acabaram por constituir, com sua retórica, do registro amador passa pela enunciação
uma nova forma de transparência. de um sujeito identificado, de fato, a vários
Como toda retórica, esta dos vídeos ama- sujeitos. Há o reconhecimento de um autor
dores angaria seu poder, em parte, da denún- que imediatamente altera a relação aventa-
cia da falsidade das outras visões de mundo. da de visibilidade. Reconhecer um autor é,
Ao retomar o plano sequência e apresentá-lo em termos de política da imagem, assegurar
como forma ótima de reproduzir a realida- uma subjetividade humana que podemos li-
de, estas imagens denunciam o artificialismo gar imediatamente ao testemunho.
da decupagem jornalística tradicional. Deste A testemunha anônima dos vídeos ama-
modo, são um autêntico pharmakon, um re- dores, por sua vez, se não retira a credibili-
médio para a desconfiança com a retórica do dade da narração – pois esta é garantida pelo
telejornalismo e um veneno para a sua anti- automatismo da câmera e pelos dispositivos
ga transparência. Isto porque, em tese, nada técnicos elencados – desliga o conteúdo de
se aproximaria tanto da realidade como o sua biografia. Este desligamento, para Ran-
plano-sequência, pois nele abre-se mão da cière (2010), será fundamental para decifrar o
ubiquidade da câmera que tudo pode ver em sistema de informações das nossas sociedades
função de uma subjetividade. A imagem pro- permeadas de imagens. Para ele, mais do que
jetada busca a coincidência com a visão hu- respeitar uma lógica de acumulação, a socie-
mana, ressaltando o caráter único e subjetivo dade das imagens trabalha por subtração:
do acontecimento para cada pessoa que vê,
Funciona selecionando os seres falantes e
já que “não é concebível ‘ver e ouvir’ a reali-
racionais, capazes de ‘decifrar’ o fluxo de in-
dade no seu acontecer sucessivo senão de um
formação que concerne às multidões anôni-
único ângulo visual de cada vez: e este ângulo
mas. A política própria destas imagens con-
visual é sempre de um sujeito que vê e ouve.”
siste em nos ensinar que nem qualquer um é
(Pasolini, 1982, p. 193). Enquanto acontece
capaz de ver e falar. (Rancière, 2010, p. 97).2
na forma do plano-sequência, a imagem fo-
O uso contínuo das imagens amadoras
tográfica resiste a significação, ela reproduz,
nos telejornais mostra que eventualmente
nos termos de Pasolini (1982), a linguagem
é dado aos anônimos o privilégio da visão
da realidade desenrolando-se como sucessão
(pois o visto por eles é usado), mas jamais
de acontecimentos vistos de um único ponto
de vista. 1
Cloverfield (Estados Unidos, 2008), dirigido por Matt Ree-
ves. A narrativa – na qual um monstro aparece subitamente
na cidade de Nova York – é toda filmada na perspectiva dos
Naturalismo e convenção personagens, que carregam uma câmera portátil originalmente
usada para documentar a festa de despedida do protagonista,
Se a nível formal (enquadramentos in- prestes a se mudar para o Japão. A gravação que vemos é, su-
postamente, o cartão de memória da câmera portátil, encon-
certos, falta de foco, câmera trêmula etc.) a trada pelo exército dos Estados Unidos.
similaridade entre os vídeos amadores e o 2
Tradução nossa.

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a posse do discurso. A narração em off que ce as imagens, ele deve ser atualizado para
se sobrepõe às imagens torna-se o reconhe- esta estética específica. Em primeiro lugar,
cimento de que, se existe alguma validade o observador invisível se dá a ver (a menos
naquele testemunho, ela se concentra na em termos de simulação, uma vez que o efe-
proximidade do fato. O fato mostrado deve tivo aparato que grava as imagens não vai
ser complementado pelo discurso daquele ser mostrado), ele adquire uma identidade
que detém as condições de falar, isto é, o e uma imagem. Mais do que uma imagem e
jornalista. O falar do jornalista, por vias es- uma identidade, ele subdivide-se em várias
pecíficas, efetivamente se sobrepõe às ima- identidades e imagens, há uma alternância
gens, isto é, se coloca por cima, em um nível de enunciadores que permite a comunhão
hierárquico superior. Nos registros amado-
res, o testemunho acaba por se enredar em
um dispositivo que o engloba. O jornalista Ainda que suavizado
ou apresentador que vai narrar as imagens pelas intervenções
usa um texto impessoal, neutro e pretensa- editoriais, o vídeo
mente imparcial. Esta dessubjetivação do amador surge como
conteúdo acaba por contribuir para demar- um fragmento potente
car fortemente as hierarquias discursivas.
na composição de
Parece haver, portanto, uma importante di-
ferença retórica a ser retida. uma tele reportagem
Os anônimos que nos permitem ver o
mundo por sua ótica, apesar de não serem
mais apenas objetos do nosso olhar, conti-
nuam em larga escala dependentes da nossa da palavra com a imagem. Os personagens
retórica. Ao produzir imagens eles mesmos, tornam-se, deste modo, sujeitos e objetos,
os anônimos ensejam fazer visível a sua sub- sendo dado a eles o poder de efetivamente
jetividade; mas sem a palavra, sem a retórica testemunhar. Ao fazer este vai e vem, o filme
do texto, seu testemunho acaba por reforçar reafirma a importância de um texto para
a partilha das sensibilidades, continuamos qualquer imagem. Ao comentar as imagens
a ver “demasiados corpos que são objetos que eles mesmo produzem, os personagens
da palavra sem ter eles mesmos a palavra”.3 garantem àquelas imagens uma retórica
(Rancière, 2010, p. 97). que inclui o testemunho, a subjetividade, o
Coincidentemente, no filme Cloverfield indivíduo.
as imagens amadoras vêm daqueles que es- Delimitado o escopo discursivo do rea-
tão acostumados ao privilégio da palavra na lismo no filme, resta ponderar sua potência
nossa sociedade. Talvez por conta disso, eles de verossimilhança. Em Cloverfield, a esté-
não apenas registrem o fato por meio da tica do amadorismo visa justamente trazer
câmera, mas também se colocam na frente autenticidade e provocar um efeito de real
dela para emitir suas opiniões. Para a narra- que contrabalança a inverossimilhança da
tiva, tão importante quanto as imagens cap- trama (um monstro gigante atacando Nova
tadas pelas testemunhas de fatos inusitados York). Apesar de claramente ficcional, o fil-
é o depoimento das testemunhas. Se há de me trabalha dentro de uma proposta um
fato neste filme um observador invisível tanto naturalista. Aquelas imagens supos-
(com todas as implicações antropocêntricas tamente seriam as conseguidas por pesso-
que este conceito pressupõe) que nos forne- as comuns se um monstro atacasse a cida-
de. Vê-se claramente a tentativa de apagar
3
Tradução nossa. a marca da mediação do diretor e de todo

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aparato cinematográfico para deixar o es- O vídeo amador como evidência


e testemunho subjetivo
pectador diante da ação em si através de
perspectivas altamente subjetivas
Ao incorporar (no sentido literal do ter-
Se por um lado esta estética consegue
mo) os registros amadores em sua narrativa, o
satisfatoriamente reduzir o nível de media-
telejornalismo elimina ao menos parcialmen-
ção e colocar os espectadores mais perto da
te a potência da experiência de realidade pro-
ação, não podemos deixar de notar que, em
piciada pelo subjetivismo do plano-sequencia.
uma curiosa volta dialética, este mesmo ex-
O editor de telejornal toma o vídeo amador
pediente acaba por minar o poder realista da
como uma matéria-prima na montagem da
representação. Caímos, então, no paradoxo
tele-reportagem: corta e reproduz apenas o
semelhante àquele enfrentado pela escritura
naturalista, o apelo excessivo ao lado mais trecho factualmente mais relevante; insere
narração, ilustrações, legenda, zoom, entre
outros artifícios de edição. Um vídeo amador
O paradoxo da cuja versão “bruta” passa dos dois minutos vai
televisão é o de ser contribuir com, digamos, quinze a vinte se-
gundos de uma tele reportagem, devidamente
um meio de grande
coberto com a narração de um repórter ou do
intensidade sensória apresentador. A montagem imprime dinâmi-
– “narcotizante”– ca, velocidade e uma visão panorâmica que,
mas com um muitas vezes, aceleram e matam o tempo do
público dispersivo flagrante amador, marcado por uma maior
lentidão – e consequente suspense.
Há um compromisso com a objetivida-
de e com uma visão panorâmica, bem como
traumático da realidade através de uma nar- uma série de condicionamentos de um dis-
ração que valoriza a intensidade sensível, o curso que conjuga imagem, som e linguagem
chocante e o sujo leva a transparência a um verbal. Na televisão, toda imagem obrigato-
extremo tão grande que ela se torna opaca e riamente virá acompanhada de som e pala-
se destaca como convenção. vra. Estamos diante de uma estrutura pluri
A estética do real hollywoodiana só e multiangular que se choca com a visada
pode ser realista na medida em que leva unívoca e acintosamente perspectivada do
ao extremo os dispositivos que garantem plano-sequencia.
autenticidade no discurso do amador, de- Ainda que suavizado pelas intervenções
nunciando assim completa e irremedia- editoriais, o vídeo amador surge como um
velmente a sua artificialidade. Ao tentar fragmento potente na composição de uma
estabelecer novas fronteiras para o imedia- tele-reportagem. Isso porque cumpre duas
to através da promessa constante de mais funções essenciais deste formato narrativo
proximidade, ela esconde o mundo ficcio- normalmente desempenhados por dois ele-
nal sob a aparência da verdade simulada. mentos enunciativos de ordem diferentes. O
Ao apostar na ausência do olhar desencar- registro amador é tanto uma evidência quanto
nado que esconde aquele que filma – pro- um testemunho. É prova documental e “obje-
cedimento marcante da estética realista tiva” do fato ocorrido, mostra e atesta que algo
hollywoodiana – este novo realismo aposta ocorreu; e, além disso, fruto da operação de
naquilo que Jost (2009) chama de eu-ori- um sujeito (ainda que anônimo), adota um
gem, uma marca do real também falsa, ou, ponto de vista e promove o efeito de identifi-
mais precisamente, fingida. cação, tão necessário ao telejornalismo.

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Portanto, a imagem documental amado- verbal, autolegitima-se. Isto é: no telejor-


ra é preciosa para um produto midiático que nalismo, o atestado de veracidade do fato
alia informação com entretenimento; que veiculado por meio da imagem audiovisual
pretende combinar a frieza e a objetivida- é a própria imagem e a suposta transparên-
de da imagem técnica com a necessidade de cia com que revela ao público determina-
seduzir a audiência por via de artifícios de da ocorrência. O texto da narração atribui
identificação. O paradoxo da televisão é o de significados e institui uma narrativa, mas a
ser um meio de grande intensidade sensória legitimação do fato reproduzido reside prin-
– “narcotizante” (Temer, 2010) – mas com cipalmente na própria imagem. Jamais há,
um público dispersivo, que consome o con- na voz dos telejornais, uma postura auto
teúdo enquanto realiza tarefas domésticas, reflexiva, que questione e problematize o
faz refeições, conversa e, cada vez mais, inte- estatuto verídico das imagens veiculadas ou
rage com outros meios como computadores, enfatize o caráter inerentemente parcial e
tablets, smartphones, etc. No telejornalismo, perspectivado de qualquer narrativa da rea-
isso significa ênfase na dramatização, miran- lidade, inclusive a audiovisual. Os testemu-
do o envolvimento emocional do espectador nhos verbais e as opiniões – nas reportagens
– vide a prática dos noticiários da Rede Glo- nas quais estas cabem – por vezes divergem
bo, por exemplo, de incluírem personagens entre si e produzem diferentes versões, numa
em suas reportagens. Temer (2010, p. 114) lógica multifocal, conforme já comentamos.
detalha os papéis de dois agentes diferentes No entanto, os fatos documentados visual-
na composição de uma tele reportagem: mente são posicionados como verdadeiros,
isto é, haveria indiscutível correspondência
O entrevistado é o sujeito que está dentro entre esses enunciados e os fatos tais como
do fato, é parte da história (em oposição ao
repórter, que apenas relata) e dá a dimen- transcorreram no mundo histórico.
são emocional do acontecimento. Cabe ao Pode-se aventar que o uso crescente de
repórter a razão da narrativa e ao entrevis- registros anônimos no telejornal, acompa-
tado a emoção do fato, essa última explo- nhados que são de um efeito renovado de
rada em todos os seus aspectos extremos, realismo, abalam a veracidade das imagens
com incentivo às lágrimas ou a explosões geradas pelos cinegrafistas profissionais das
de alegria, a comentários sarcásticos ou en-
graçados, enfim, tudo o que possa mexer
emissoras de televisão – isto em um contex-
com o coração do público. to de desconfiança e ceticismo em relação
às imagens institucionalizadas e tecnica-
Há inúmeros casos em que a captação mente apuradas somada a um ímpeto por
do vídeo amador se dá na própria duração transparência e por um contato direto com
do fato – às vezes, logo depois do ocorrido o “mundo real”. Como comentado antes, o
– por um cinegrafista anônimo próximo ou realismo de determinada imagem indire-
diretamente envolvido no fato filmado. A tamente acusa a falsidade de outros tipos
qualidade de imagem discrepante, o movi- de registros imagéticos do real. Diante das
mento instável de câmera e o enquadramen- captações típicas do telejornal, a filmagem
to impreciso agravam o efeito de presença amadora apresenta-se como mais imediata
imediata do próprio fato. Há representação, espacial e temporalmente. Capta o fato no
reapresentação e também um eficaz efeito de instante de sua ocorrência, “de dentro” e ao
presentificação, ainda que a montagem sub- vivo. Há um efeito de “imediação” (Bolter &
traia parte da intensidade. Grusin, 2000), uma promessa de eliminação
Tradicionalmente, a imagem televisiva, da mediação resultante do trabalho de um
embora venha acompanhada de narração, sujeito supostamente autônomo a todas as
fotolegenda e outros significantes de ordem instituições midiáticas e seus complexos (e,

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em certa medida, secretos) condicionamen- fato em questão torna-se um acontecimen-


tos políticos, econômicos, culturais, estéticos to de impacto massivo e alça-se ao status
etc. Curiosa estética cujo realce do dispositi- de notícia em um Jornal Nacional apenas
vo e da presença de um sujeito cinegrafista porque foi filmado. Circulam nos sites de
injeta realismo e a sensação de transparência armazenamento e exibição de vídeos uma
(o aviso por parte dos telejornais de que de- infinidade de filmagens banais, cotidianas,
terminadas imagens são produto de um ci- destituídas de valor-notícia – ainda que al-
negrafista amador justificam a precariedade guns dos vídeos banais atinjam audiências
técnica mas também sublinham o efeito de consideráveis no Youtube, por exemplo. Sem
real da cena). esgotar o tema, podemos listar algumas exi-
O registro amador também reforça o gências para que a captação anônima seja
compromisso jornalístico com a atualidade incorporada à tele reportagem: 1) precisa
e reforça a temporalidade essencial da tele- estar ligada a uma ocorrência: uma ação,
visão, marcada por um presente contínuo. um desenlace, uma alteração no estado de
O vídeo amador é, cada vez mais, um objeto coisas na duração e no espaço interno dessa
identificado com os meios digitais e, isolado imagem; ou, em casos de menor frequência,
deste contexto (fazendo uma separação tal- a filmagem deverá ser realizada temporal-
vez simplória entre a televisão, mídia velha, mente próxima à ocorrência (antes ou de-
e as novas mídias calcadas na tecnologia da pois), e dar visibilidade a fatores, ações e
computação), carrega a aura de “tempo real” personagens ligados a tal ocorrência, sejam
dos meios computacionais, cuja condensa- elementos vinculados às causas seja a apre-
ção no presente, em um perpétuo devir, está sentação de consequências visíveis de tal
intensificada – como afirma Lévy (1995). ocorrência; 2) tal ocorrência ou fato deverá
Para Machado (2000, p. 105), a temporalida- enquadrar-se na noção de acontecimento,
de do “ao vivo” está no fundamento do tele- conforme os critérios contemporâneos de
jornalismo: noticiabilidade; 3) ainda que tecnicamente
rudimentar e impreciso no enquadramento,
Tornou-se essencial a presença da televisão
o vídeo precisa ter um padrão mínimo de
no local e tempo dos acontecimentos, não
apenas para autorizá-la como fonte confi- qualidade que permita ao espectador dis-
ável, mas principalmente esta é a condição tinguir o que acontece nas imagens; vídeos
sine qua non de seu processo significante. excessivamente confusos e/ou nos quais os
fatos relevantes permaneçam fora de campo
No entanto, é importante sublinhar que terão menor chance de serem aproveitados;
todas essas contribuições dos registros ama- 4) tal vídeo dota-se de uma imagem – um
dores servem mais para intensificar efeitos fato, um ângulo, um ponto de vista – que o
de linguagens que já são típicos do telejor- próprio telejornal não possui.
nal, bem como reforçar o discurso típico Objeto de agressiva intervenção editorial,
deste gênero televisivo – isto é, a promessa com profundas alterações na sua temporali-
(certamente ingênua) de um contato mais dade e inserido em um discurso multiangular,
direto com o real e de uma transmissão li- descentralizado e polifônico, o vídeo amador
vre de condicionamentos é apenas isto: uma propicia uma intensificação de alguns efeitos
promessa, fruto de um efeito no nível do dis- do telejornalismo convencional – e oferece
curso vigente. alguma oxigenação formal – mas não produz
Via de regra, há uma categoria específica modificações significativas em tal discurso.
de vídeos amadores que são incorporados Superficialmente, a voz do outro já estava
nas tele reportagens: aqueles que captam presente na tele-reportagem, na infinidade
imagens vinculadas a acontecimentos de re- de depoimentos dos entrevistados, muitos
levância midiática – sendo que, às vezes, o

Líbero – São Paulo – v. 17, n. 34, p. 89-98, jul./dez. de 2014


Felipe da Silva Polydoro / Bruno Simões Costa – A apropriação da estética do amador no cinema e no telejornal
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dos quais de classes mais baixas. Mas tal voz comunicação, os jornalistas, o mercado pu-
aparecia de forma tímida, enquadrada por blicitário, os diversos poderes públicos e, em
um discurso cujo enunciador é a empresa jor- alguma medida, o público espectador). O
nalística. A presença do registro amador não filme de ficção aqui analisado, que se vale da
modifica em nada a política dessas imagens, simulação do registro amador como recurso
reguladas por parâmetros estéticos, morais e estético, remete ao mesmo tipo de conclusão:
deontológicos construídos e consensados pe- a de que a mera incorporação da linguagem
las instituições e atores de alguma forma en- ou dos próprios vídeos amadores não signifi-
volvidos na produção, veiculação e recepção ca a adoção da perspectiva do outro.
dos conteúdos do telejornal (as empresas de (artigo recebido mar.2014/aprovado mai.2014)

Referências

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